Fernanda Vieira Fernandes. DE ROBERTO SUCCO A

Transcrição

Fernanda Vieira Fernandes. DE ROBERTO SUCCO A
DE ROBERTO SUCCO A ROBERTO ZUCCO: AS IMAGENS
REAIS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA OBRA
DRAMÁTICA DE BERNARD-MARIE KOLTÈS
Fernanda Vieira Fernandes*
Robert Ponge**
RÉSUMÉ: Cet article se penche sur Roberto Zucco, pièce de B.-M. Koltès, avec deux
objectifs: d'une part, pour étudier comment les images du meurtrier italien Roberto Succo ont
bouleversé l’auteur, l’incitant à rédiger cette pièce; d'autre part, pour réfléchir sur les images
qu'il utilise pour caractériser son protagoniste. Nous commençons par présenter quelques
informations concernant Koltès et son texte, suivies de données sur la genèse de la pièce et
sur ce qui a intéressé l’auteur chez le criminel. Ensuite, nous analysons comment il est parti
de l’image d’un homme réel comme point de départ pour la création de l’intrigue. D’un côté,
nous travaillons quelques possibilités de lecture de l’image de Succo dans la construction de
Zucco. D’un autre côté, nous discutons quelques propositions d’interprétation des images du
personnage tout en vérifiant quels sont les éléments du réel qui ont été repris par Koltès.
MOTS-CLÉS: THÉÂTRE FRANÇAIS, KOLTÈS (B.-M.), ROBERTO ZUCCO
RESUMO: Este artigo se debruça sobre Roberto Zucco, peça de Bernard-Marie Koltès, e
visa verificar como as imagens reais do assassino Roberto Succo impactaram o autor,
motivando-o a redigir essa obra teatral, bem como a refletir acerca das imagens através das
quais ele caracteriza o protagonista. Primeiramente, são apresentadas informações acerca
do dramaturgo e do texto, seguidas por dados da gênese e da aproximação de Koltès com o
criminoso. Logo após, o artigo se detém sobre o fato de a criação ter partido da imagem de
um homem real para, a partir disso, criar o enredo da peça. Por um lado, são verificadas
possibilidades de leitura para a compreensão da imagem de Succo na construção de Zucco.
Por outro, lançam-se propostas de interpretação para as imagens do personagem geradas
pela dramaturgia koltesiana, verificando também quais elementos reais estão presentes ali.
PALAVRAS-CHAVE: TEATRO FRANCÊS, KOLTÈS (B.-M.), ROBERTO ZUCCO
*
Doutoranda do PPG em Letras da UFRGS (Área de Estudos da Literatura, Especialidade de Literaturas Estrangeiras
Modernas, Ênfase de Literaturas Francesa e Francófonas); bolsista CNPq.
**
Professor titular aposentado do Instituto de Letras da UFRGS, docente convidado do Departamento de Línguas Modernas e
do PPG em Letras da UFRGS.
Introdução
O presente artigo apresenta um recorte de estudo acerca de Roberto Zucco, obra teatral
do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, verificando como as imagens reais do serial
killer Roberto Succo (através de fotos e reportagem televisiva sobre o mesmo) impactaram o
autor e o conduziram à escrita da peça. Além disso, visa a uma breve reflexão sobre o
personagem protagonista através das imagens apresentadas pelo texto dramático.
Baseado em fatos verídicos, o enredo apresenta a história de um jovem que comete
vários crimes aparentemente sem motivação. Ao criar Roberto Zucco, Koltès partiu, pela
primeira vez, de um fait divers: a figura do assassino italiano Succo, que amedrontara a
França entre 1987 e 1988, o fascinou de tal maneira que ele o absorveu para a cena. O tema
dialoga diretamente com a dissertação Um estudo de Roberto Zucco, peça teatral de BernardMarie Koltès, defendida em 2009 na UFRGS.
No primeiro momento, são apresentadas algumas informações acerca do autor e do
texto dramático. Logo após, são levantados dados sobre a gênese da obra, mais
especificamente, acerca da aproximação de Koltès com o criminoso Roberto Succo,
ressaltando que o objetivo do dramaturgo não era reproduzir a história real daquele homem, e
sim, reinventar a trajetória do assassino.
O terceiro ponto versa justamente sobre o fato de a criação literária ter partido da
imagem de um homem real que os meios de comunicação estamparam na época para, a partir
disso, criar a imagem teatral de um protagonista bastante diferente dos heróis tradicionais.
Nesta parte, o estudo é dividido em dois pontos. Primeiramente, são vislumbradas as
possibilidades de leitura para a compreensão da imagem de Succo na construção de Zucco
através de textos dos seguintes teóricos e pesquisadores do teatro: Anne Ubersfeld, AnneFrançoise Benhamou, Stéphane Patrice e Johan Faerber. Na sequência, são lançadas breves
propostas de interpretação para as imagens do personagem epônimo geradas pela dramaturgia
koltesiana, ou seja, como é caracterizado cenicamente Roberto Zucco, principalmente no que
concerne ao que Koltès carrega do real para o literário, a partir do estudo da referida
dissertação de mestrado.
Breves informações sobre Bernard-Marie Koltès
Bernard-Marie Koltès nasceu em 1948, na cidade de Metz, região leste da França.
Escreveu quinze peças teatrais, um romance e duas novelas. Teve como principal encenador
de suas obras o diretor Patrice Chéreau. Entre os seus aspectos biográficos, destaca-se a sua
fascinação por viagens a terras estrangeiras, realizando a primeira delas em 1968. Os destinos
mais apreciados por ele eram os países dos continentes africano e americano, locais para onde
viajou diversas vezes. No texto “L’aller double de Koltès”, Mathieu Protin afirma:
Les voyages de Koltès ne relèvent pas de la simple anecdote biographique. Ils ont
rythmé son existence [...]. De même qu’il n’a jamais cessé d’écrire, il n’aura cessé
de voyager [...]. Le voyageur et l’écrivain ne sont pas séparables. L’écriture se fait le
plus souvent en voyage et à propos de ces voyages. (PROTIN: 2007, p. 18)
O contato com o teatro se deu em 1970, quando Koltès encantou-se com o espetáculo
Medéia, de Sêneca, dirigido por Jorge Lavelli e protagonizado pela atriz Maria Casarès. A
partir daí passou a produzir literatura dramática. Contudo, conforme os críticos, foi apenas em
1977 que a dramaturgia koltesiana ganha uma escrita pessoal, com os primórdios da
linguagem própria do autor, em La Nuit juste avant les forêts. Seu sucesso veio com a
encenação de Combat de nègre et de chiens, em 1983, iniciando a parceria com Chéreau.
Suas peças refletem o universo de um autor preocupado com as minorias, os
estrangeiros, a política, a solidão e a violência. Faleceu em Paris em 1989, aos 41 anos, vítima
da AIDS, deixando inacabada a obra teatral Coco, sobre a estilista francesa Coco Chanel e sua
empregada Consuelo. Atualmente, é considerado pelos estudiosos e críticos o principal
dramaturgo francês do final do século XX, com uma vendagem expressiva de seus textos,
sendo traduzido para diversos idiomas e encenado por diretores do mundo todo.1
Roberto Zucco: a obra-prima koltesiana
Roberto Zucco (1988) foi a última peça que Koltès finalizou, já escrita no período em
que ele sabia que logo seria vitimado por sua doença. Esta obra é considerada a de maior
expressividade dentre todas as que o dramaturgo produziu. A crítica ressalta que ele
conseguiu englobar nela vários temas abordados nos seus textos anteriores, demonstrando
evolução crescente de sua escrita, que atinge aí o seu ápice. Por conta disso, é tomada como a
obra-prima koltesiana ou, ainda, sua obra testamentária. O autor não chegou a assistir à
primeira montagem da peça, que estrearia em abril de 1990 na Schaubühne am Lehniner
Platz, em Berlim, com direção de Peter Stein, para quem Koltès havia enviado o texto algum
tempo antes.
A peça teatral Roberto Zucco é dividida em quinze unidades nitidamente separadas,
numeradas de I a XV. Essas unidades podem ser designadas como sequências, partes, cenas
ou quadros. No enredo, é apresentada a trajetória de um jovem que pratica diversos crimes,
aparentemente sem motivação. A ação principal do texto dramático está no caminho
percorrido pelo protagonista Zucco a partir do assassinato de seu pai e do consequente
encarceramento (ocorridos em momento anterior ao início do texto) até a sua queda na cena
final. O jovem mata também a mãe, um inspetor de polícia e um garoto, além de sequestrar
uma senhora. O percurso do matador é interrompido apenas quando uma jovem com a qual
ele envolvera-se o delata à polícia, pois, apaixonada e abandonada pela família, deseja a
qualquer custo reencontrá-lo. Novamente preso e mais uma vez em fuga, acaba por cair dos
telhados do presídio, aclamado como herói por outros prisioneiros que assistem à cena.2
Gênese da peça: a influência de Roberto Succo na escrita de Roberto Zucco
O texto Roberto Zucco foi criado em um período de seis meses e teve como inspiração
um fato verídico dos anos 80: a trajetória de Roberto Succo, um jovem italiano que executou
uma série de delitos (roubos, estupros, agressões e mortes) tanto em seu país, quanto na
França, onde foi acusado de assassinar cinco pessoas, entre 1986 e 1988.3 O caso teve grande
destaque na imprensa da época e a dificuldade em prender o serial killer, que se valia de
diversas identidades falsas e cujo rosto tinha feições mutantes – cada foto sua trazia uma
aparência diferente –, levou as autoridades francesas a espalharem cartazes de Procura-se
estampados com quatro retratos seus.
O primeiro contato visual do autor com a imagem de Succo foi justamente através de
um destes cartazes, em fevereiro de 1988, no metrô de Paris. Sobre o fato, Koltès comentou
em entrevista: “Je l’ai vue dans le métro, et je suis resté devant, j’étais fasciné, je ne sais pas
pourquoi” (KOLTÈS: 1999, p. 154).
Algum tempo depois, o dramaturgo assistiu a uma reportagem num telejornal que
exibia imagens de Roberto Succo durante uma fuga da penitenciária, um dia após ter sido
preso. Ele conseguira escapar durante o banho de sol e subira nos telhados da cadeia.
Rapidamente, o local ficou repleto de curiosos, jornalistas e equipes de televisão. Por mais de
uma hora, Roberto exibiu-se perante as câmeras, dirigindo-se ao público, declarando-se
vítima de uma prisão injusta, arremessando telhas às viaturas e fazendo um strip-tease. Nu e
pendurado a um fio elétrico, tentou passar de um lado a outro dos telhados, mas acabou
caindo de uma altura de cinco metros, o que lhe causou algumas fraturas e a captura por parte
da polícia. Koltès, diante destas imagens televisivas, novamente, se impressionou com a
figura do criminoso, seus depoimentos e suas ações agressivas sem qualquer explicação. Para
o autor, aquilo carregava algo de heróico, de mítico:
[...] Cet homme tuait sans aucune raison. Et c’est pour cela que, pour moi, c’est un
héros. Il est tout à fait conforme à l’homme de notre siècle, peut-être même aussi à
l’homme des siècles précédents. Il est le prototype-même de l’assassin qui tue sans
raison. Et la manière dont il perpétue ses meurtres, nous fait retrouver les grands
mythes, comme par exemple le mythe de Samson et Dalila [...]. (KOLTÈS: 1999, p.
109-110)
Depois de consultar algumas notícias sobre o caso, iniciou a escrita de Roberto Zucco.
Enquanto ele valia-se do fato para criar uma peça, a jornalista Pascale Froment dedicava-se a
reconstruir a biografia do matador, publicada no livro Je te tue: histoire vraie de Roberto
Succo, assassin sans raison (1991).4 Ao saber da fascinação do dramaturgo pela imagem de
Succo e de seu desejo de escrever um texto teatral a partir de sua história, Froment propôs a
Koltès um encontro, no qual lhe forneceu alguns dados sobre Succo e uma fita cassete que
continha gravações de voz do mesmo – que o escritor usaria como inspiração para criar uma
das cenas da obra, conforme será apresentado posteriormente.
Todavia, apesar destas informações repassadas por Froment e da leitura de artigos de
jornais, Koltès não pesquisou realmente a trajetória de Succo, nem entrevistou pessoas que
estiveram envolvidas com o caso: “Je ne savais pas grand-chose de cet homme, j’avais quatre
articles de journaux. Je n’ai pas fait de recherches. Pour moi, c’est un mythe et cela doit rester
un mythe [...]” (KOLTÈS: 1999, p. 111).
Na verdade, o episódio real serviu como impulso para a criação do texto, sem
preocupação com a fidelidade histórica. O semblante, considerado de “une beauté fabuleuse”
(KOLTÈS: 1999, p. 146) e o comportamento de Succo bastavam para que Koltès recriasse, no
teatro, esta figura. O que existia era um encantamento pela imagem do matador, o desejo de
reinventá-lo e de dar a ele visibilidade:
[...] J’avais là un homme avec cette force, avec ce destin; il ne manquait plus que le
regard extérieur. Et c’était là le but de ma nouvelle pièce: faire que, pendant
quelques mois, la photo et le nom de cet homme figurent sur de grandes affiches.
C’est ma raison d’être, ma raison d’écrire. (KOLTÈS: 1999, p. 110)
O fato de a criação dramatúrgica ter partido da imagem de um homem real para, a
partir disso, criar a imagem teatral do protagonista gerou conflitos na França, com a acusação
de que Koltès estaria fazendo apologia ao criminoso. Em 1992, as famílias das vítimas de
Roberto Succo chegaram a conseguir que o espetáculo (na versão francesa dirigida por Bruno
Boëglin) fosse cancelado na cidade de Chambéry, onde cinco anos antes o jovem assassinara
friamente um policial. Artistas e críticos teatrais saíram em defesa do texto koltesiano,
alegando que não era cabível censurar uma obra literária. Na imprensa, as opiniões dividiamse entre aqueles que defendiam e aqueles que criticavam a escolha do dramaturgo.5
A influência das imagens reais na construção da literatura dramática
Através de textos de teóricos e pesquisadores do teatro, são levantadas agora
possibilidades de leitura para a compreensão da imagem de Succo na construção de Roberto
Zucco. Ou, ainda, é proposta a reflexão, em linhas gerais, sobre o que a presença do real traz
de significativo para a construção do ficcional.
Conforme Anne Ubersfeld, o objetivo de Koltès com o uso da imagem de um
assassino verídico para a criação do personagem pode ser assim resumido: “Transformer un
tueur fou en objet mythique, métaphore de la violence de notre monde [...]” (UBERSFELD:
1999, p. 70). Anne-Françoise Benhamou, em “Territoires de l’œuvre”, artigo presente na
publicação Théâtre aujourd’hui nº 5 (1996), acredita que Koltès parece querer deixar como
seu testamento um jogo confuso da ficção com o real, ao escolher como modelo para seu
último herói, um assassino. Benhamou contrapõe dois pontos:
[...] il est absurde de reprocher à Koltès de faire l’apologie d’un meurtrier puisqu’il
ne s’agit que de fiction; c’est Zucco en tant que mythe contemporain qu’il faut
considérer; seule importe dans une œuvre d’art la transfiguration opérée par l’artiste
[...]. Mais protéger ainsi Roberto Zucco de ses détracteurs, n’était-ce pas négliger la
marque originelle que l’auteur avait voulu imprimer à sa pièce – la présence “en
palimpseste” du réel? (BENHAMOU: 1996, p. 8)
Segundo Benhamou, a influência da imagem real de Succo nos obriga a manter
próximas ao universo cênico as imagens emprestadas do fato verídico. Para a estudiosa, a
relação conturbada que se estabelece entre o ficcional e o literário fazia parte do projeto
artístico koltesiano naquele momento e sua intenção era nos obrigar a jamais confundir Zucco
com Succo e, nem mesmo, compartilhar da fascinação do dramaturgo pelo criminoso, mas
estabelecer um vai-e-vem entre a história que ele nos apresenta e o mundo em que vivemos. O
jogo de ter como ponto de partida de um enredo teatral um sujeito abominado pela sociedade,
conforme Benhamou, vai além da atração pela imagem do matador, dando ao autor a
característica do politicamente incorreto, já percebida em outras obras e atingindo seu ponto
alto na última delas.
[...] Koltès n’est pas un auteur “dramatugiquement correct”. Pas plus qu’il n’est
“politiquement correct”: chacune de ses pièces en témoigne et, plus explicitement
que les autres, la dernière. Ce n’est pas par hasard qu’il a choisi Roberto Succo, un
meurtrier, pour modèle de son ultime héros – de son hérault ultime [...]. Il n’est pas
question ici de nier l’existence autonome, poétique, de l’œuvre. Mais en modifiant
d’une lettre seulement le nom du tueur dont la beauté évoquait la sienne, en avouant
presque son intention de lui ériger un tombeau, Koltès n’a-t-il pas choisi à dessein
de le laisser hanter sa dernière œuvre? (BENHAMOU: 1996, p. 9)
Johan Faerber, em Bernard-Marie Koltès: Roberto Zucco (2006), ao discorrer sobre as
relações que a imagem de Succo imprime a Zucco, afirma que a figura do assassino real se
impõe como um objeto de curiosidade e de horror para o público em geral, provocando
sentimentos de atração e repulsão. Roberto Succo possuía, segundo ele, defeitos e qualidades
que pareciam exceder às possibilidades humanas. Agia sem nenhuma lógica ou razão, e,
envolto por mistérios, tornou-se uma figura enigmática. Faerber acredita que “[...] Succo ne
cadre pas avec l’image d’un tueur sanguinaire. C’est aussi pourquoi il fascine Koltès [...]”
(FAERBER: 2006, p. 48).
O estudioso também retoma a questão do mito na transposição do fato real para o texto
dramático: “[...] ce qui l’intéresse, c’est la légende qui s’attache au personnage” (FAERBER:
2006, p. 49). A partir disso, Bernard-Marie Koltès criaria o seu próprio mito teatral, dando à
intriga e aos personagens as características para a construção deste, e fazendo do protagonista
um ser sobrenatural, exatamente como aparentava a imagem de Succo perante o seu olhar.
Stéphane Patrice lança questionamentos sobre os por quês de o dramaturgo se valer de
um fait divers e, ainda, como (e por que), por um ato pessoal de tradução, metamorfose,
analogia e identificação, Succo se torna Zucco – a imagem real se torna teatral. Em suas
conclusões, Patrice destaca que o autor foi às fontes do mal para questionar como este foi
engendrado. O fato de valer-se do entusiasmo provocado pelo encantamento com a imagem
do matador não faz da arte koltesiana uma rival do jornalismo, pois, conforme, já
mencionado, o impulso vinha do semblante e do comportamento de Succo, não de sua
trajetória em si: “[...] Il s’extrait de la pure actualité télévisuelle ou médiatique pour donner à
entendre l’écho d’une humanité historique: Koltès invite à penser son temps, contre son
temps” (PATRICE: 2008, p. 144).
Desta forma, Patrice crê que a tarefa da arte ao empoderar-se da vida real, ou partir
dela, é ultrapassá-la, revelando um fato social, uma questão ou um problema: neste caso, a
imagem de Succo como ponto de partida para uma obra dramática que fale da França e, indo
além, de todas as civilizações modernas que sofrem com a violência. Assim, Roberto Zucco,
“tragédie contemporaine, [...] exprime la montée du meurtre, la manière dont un sujet devient
meurtrier [...]” (PATRICE: 2008, p. 139).
Os olhares dos críticos e estudiosos mencionados acima levam à conclusão de que a
discussão acerca da influência das imagens reais na construção dramatúrgica, no que se refere
à obra koltesiana em análise, está agregada ao questionamento sobre as razões que levaram o
autor a valer-se de seu entusiasmo para com um assassino na criação de um texto literário, e,
consequentemente, quais são as implicações disso. Ou seja, ultrapassa a questão da influência
da imagem de Succo para a criação de Roberto Zucco e entra nos aspectos morais da escolha,
ou, ainda, nos propósitos de Koltès ao optar por um fato tão polêmico e próximo dele em
tempo e espaço, deixando-se levar pelas impressões que o criminoso lhe causava.
Cabe observar o gosto que o dramaturgo tinha pelo submundo, pelos marginalizados,
pelas características das grandes metrópoles, como o barulho e a confusão, o que pode ser
verificado, por exemplo, no relato que ele faz sobre sua viagem ao Brasil em 1985:
Rio, c’est évidemment pas mal, dans le genre paradis balnéaire pour milliardaire
[...]. São Paulo, c’est beaucoup mieux: une New York latine, bruyante, bordélique,
arnaqueuse; pour moi, qui suis un rat plutôt qu’un lézard, je suis beaucoup plus ému
en jouant aux machines électroniques dans une sorte de couloir sordide des basfonds de São Paulo qu’en flânant le long des kilomètres de plages dorées de Rio [...].
(KOLTÈS: 2009, p. 500)
Esta atração pelo lado obscuro das cidades, também se revela em relação às pessoas,
visto que ele tinha aversão àqueles que julgava como burgueses, ou classe média, preferindo
os marginais e oprimidos, figuras recorrentes em seus textos teatrais. A aparência bela de
Roberto Succo foi o primeiro estímulo da obra de Koltès, mas, certamente, o lado contestador
e fora dos padrões sociais do jovem o fascinou. Roberto Zucco serviria para denunciar uma
sociedade que o dramaturgo julgava violenta por toda parte (KOLTÈS: 1999, p. 139-140) e,
de certa forma, com um texto oriundo da história de um assassino e, indo adiante, carregando
o nome deste com apenas a troca de uma letra, o autor conseguiu criar uma grande
provocação como legado de sua obra.
A imagem de Roberto Zucco: a presença do real no personagem da peça teatral
Vista a questão da influência da imagem de Succo sobre Bernard-Marie Koltès,
propõe-se agora o olhar para a criação literária e a construção do imagético a partir dela. Para
tanto, verifica-se brevemente de que maneira Koltès apresenta seu controverso e polêmico
protagonista e como o caracteriza cenicamente, valendo-se de elementos do real.
Roberto Zucco é o personagem principal e central, epônimo da peça, está presente em
dez das quinze cenas e é mencionado em outras três. O primeiro traço do real presente no
ficcional é a questão do nome e sobrenome, que foi mantido por Koltès propositalmente,
alterando apenas a letra inicial do último: “[...] je garde le nom. J’ai voulu changer parce que
je n’ai jamais fait de pièce sur un fait divers, mais je ne peux pas changer ce nom [...]. Ainsi,
j’aurais le plaisir de passer dans la rue et de voir sur les affiches le nom de ce mec”
(KOLTÈS: 1999, p. 145-146).
Na França, durante o período de busca a Roberto Succo, a imprensa chegou a publicar
reportagens utilizando a letra “z” por ter dúvidas quanto à pronúncia e à escrita. Johan Faerber
analisa a troca como a passagem do homem comum ao personagem do texto, com sua
trajetória em ziguezague:
[...] le dramaturge ne dresse pas une chronique réaliste. Il hausse le fait divers à la
hauter du mythe, ce que montre le glissement du “S” au “Z”. Le “Z” incarne la
déviance du personnage, car Zucco est l’homme qui zigzague hors de la réalité et
rejoint le mythe. (FAERBER: 2006, p. 46)
De acordo com a mãe de Zucco, na segunda cena, o filho tem 24 anos: “Pourquoi cet
enfant, si sage pendant vingt-quatre ans, est-il devenu fou brusquement?” (KOLTÈS: 1990, p.
17), portanto, um pouco mais velho do que Succo, que cometeu seu primeiro crime aos 19 e,
aos 24, fugiu do presídio italiano, rumando para a França.
Koltès coloca o jovem em cena vestindo um uniforme militar, e, com isso, repete um
traço marcante do criminoso original, Succo, denominado pela imprensa de “l’homme au
treillis” ou “le meurtrier au treillis” (FORMENT: 2005, p. 248, 276). A nacionalidade do
protagonista não pode ser precisada no texto dramático, pois em nenhum momento é
confirmada. Indícios revelam que ele tem sotaque estrangeiro e ele mesmo chega a afirmar
que é italiano, procedente de Veneza – o que estaria de acordo com o fato original, porque o
assassino nasceu em Mestre, cidade próxima a Veneza e as testemunhas de seus crimes
destacavam a presença de um sotaque estrangeiro na fala do rapaz.
Quanto às questões comportamentais, exceto em momentos de fúria, quando o serial
killer Succo agia de maneira violenta e cometia atrocidades, seu comportamento era discreto,
calmo, dócil e cortês. Estas características, somadas a sua beleza, cativavam as mulheres. Tais
traços foram mantidos por Koltès, visto que o personagem também apresenta variações de
comportamento, expressas por terceiros, variando-se os adjetivos que o caracterizam dos
negativos aos positivos. Entre os negativos, destacam-se: “bête furieuse”, “bête sauvage”,
“malade”, “cinglé”, “fou”, “démon” e “diable”. O lado positivo é manifestado com “gentil”,
“doux”, “timide”. O próprio Zucco considera-se “doux” e “pacifique”. Sua beleza é outro
traço que permanece no texto dramático, chamando a atenção de algumas mulheres durante o
enredo.
O protagonista teatral potencializa a discrição do Succo real através de seu desejo de
invisibilidade:
J’ai toujours pensé que la meilleure manière de vivre tranquille était d’être aussi
transparent qu’une vitre, comme un caméléon sur la pierre, passer à travers les murs,
n’avoir ni couleur ni odeur; que le regard des gens vous traverse et voit les gens
derrière vous, comme si vous n’étiez pas là. C’est une rude tâche d’être transparent;
c’est un métier; c’est un ancien, très ancien rêve d’être invisible [...]. (KOLTÈS:
1990, p. 36-37)
De certa forma, é como se Koltès reproduzisse através deste desejo do personagem a
característica de Succo em conseguir fugir e escapar por diversas vezes da polícia, sem se
fazer notar, quase invisível, porque, conforme já mencionado, foi difícil encontrá-lo e prendêlo, sendo necessário espalhar cartazes de Procura-se, cuja presença também está indicada na
obra, através da didascália da cena VI.
Com relação à trajetória de ambos, mesmo que Koltès não tenha tido a preocupação de
reproduzir os fatos reais, alguns pontos ligados ao verídico aparecem na peça teatral.
Primeiramente, o dramaturgo utilizou-se de três dos vários crimes cometidos por Succo para
inspirar Zucco: o assassinato dos pais e de um inspetor de polícia. Em segundo lugar, está a
questão da delação por parte de uma garota: as autoridades só conseguiram chegar a Succo
através do depoimento de uma jovem chamada Sabrina. Na peça, uma moça (a “gamine”)
fornece as informações sobre Zucco, em especial, o seu nome e sobrenome, e é ela quem se
aproxima dele na rua, indicando à polícia que aquele seria o sujeito que procuram. O terceiro
ponto mais relevante em comum entre os percursos deles refere-se às fugas do presídio que
ambos têm em suas trajetórias, sendo aquela apresentada na última cena do texto mais
próxima ao real, por ocorrer pouco tempo depois da captura de Zucco, que sobe nos telhados
da prisão, despe-se, é observado por diversas pessoas e cai – bastante semelhante ao relato da
fuga de Succo apresentado anteriormente. A diferença é que Succo novamente é detido,
enquanto Zucco tem na queda o desfecho de sua história.
A fita que a biógrafa Pascale Froment forneceu a Koltès, com gravações da voz do
criminoso italiano, mencionada nas informações referentes à gênese da peça, serviu como
material para a criação de uma fala de Zucco, na cena VI. Segue abaixo a transcrição das
palavras de Succo e, na sequência, como foi absorvido na obra literária, proferido pelo
protagonista:
Être ou ne pas être... Ça, c’est le problème. Je crois que... il n’y a pas de mots, il n’y
a rien à dire... mais... quand on croit en quelque chose, quand on croit plus en
quelque chose, il faut se trouver quelque chose d’autre. Quelque chose d’autre en
quoi croire, et ça, pour continuer à vivre, pour pouvoir... voir. C’est ça, voir...
qu’est-ce qui se passera. D’ailleurs, le temps, le temps, ça n’existe pas. Le temps,
c’est dans notre tête, dans notre façon de penser. Bon, un an, cent ans, c’est pareil...
Tôt ou tard, on doit tous mourir. Tous. Et ça... ça fait chanter les oiseaux, les
oiseaux. Ça fait chanter les abeilles. Ça fait rire les oiseaux. (SUCCO, citado por
FROMENT: 2005, p. 275)
Je crois qu’il n’y a pas de mots, il n’y a rien à dire [...]. De toute façon, un an, cent
ans, c’est pareil ; tôt ou tard, on doit tous mourir, tous. Et ça, ça fait chanter les
oiseaux, ça fait rire les oiseaux. (KOLTÈS: 1990, p. 49)
Por fim, a principal imagem que Bernard-Marie Koltès almeja com Roberto Zucco, é
reproduzir uma figura mítica. Seu objetivo era este, já que assim ele via Roberto Succo e sua
trajetória de “étoile filante” (KOLTÈS: 1999, p. 154). Desta maneira, sua ideia, na construção
do protagonista, era criar um herói através da imagem dele.
Na última cena, a XV, diálogos, que não possuem uma procedência definida, –
imagina-se que sejam de prisioneiros –, clamam: “Tu es un héros, Zucco”. E o comparam a
personagens míticos: “C’est Goliath”; “C’est Samson” (KOLTÈS: 1990, p. 93) – exatamente
as figuras que Koltès usava para comparar ao homem real. Contudo, o Zucco koltesiano
rejeita esta imagem, pois crê que os heróis são criminosos. Em comportamento contraditório,
apesar de ser um matador, não deseja ter as mãos sujas de sangue, que, para ele, é a coisa mais
visível do mundo. Novamente é retomado aqui o desejo pela invisibilidade.
Sua imagem heróica não segue o perfil que se pressupõe: ele não é dotado de atributos,
poderes e valores sociais inabaláveis, não é admirado por feitos relevantes ao bem comum.
Seu ponto de partida não se encaixaria neste protótipo. Além disso, este perfil de
comportamento perfeito não ilustraria o homem do final do século XX: faz-se necessário um
novo modelo. Segundo Patrice Pavis, em seu Dicionário de teatro, “[...] o anti-herói aparece
como a única alternativa para a descrição das ações humanas [...]” (PAVIS: 2003, p. 194).
Roberto Zucco configura-se então como um anti-herói contemporâneo, desprovido de
qualquer moral. E, todavia, é um personagem com o qual o público se identifica, ou, ao
menos, pelo qual se compadece. De certa forma, com isso, Koltès busca para a trajetória do
protagonista o mesmo olhar que tinha para a do criminoso italiano:
Succo a une trajectoire d’une pureté incroyable. Contrairement aux tueurs en
puissance – et il y en a beaucoup –, il n’a pas de motivations répugnantes pour le
meurtre, qui chez lui est un non-sens. Il suffit d’un petit déraillement [...]: un petit
déclenchement, et hop! c’est fini [...]. (KOLTÈS: 1999, p. 154-155)
Através da peça, pode-se inferir que Koltès lança ao leitor/espectador a reflexão sobre
quem são os culpados pela violência nos dias atuais. O autor usa Roberto Zucco e seu ponto
de partida, a imagem de Roberto Succo, para, exatamente, como colocam os seus estudiosos e
críticos, fazer pensar sobre a violência, mostrando-a tão próxima, no jogo entre o real e o
ficcional. Valendo-se da provocação e do choque que provocou (e provoca) no público o
personagem de trajetória heróica, criminoso de inspiração verídica, Bernard-Marie Koltès
alcança um de seus objetivos: denunciar a realidade que o cercava, estampando nas ruas o
nome de um representante legítimo desta situação.6
1
Para maiores informações sobre o dramaturgo, ver “Percurso de Bernard-Marie Koltès”, em: FERNANDES, Fernanda V.
Um estudo de Roberto Zucco, peça teatral de Bernard-Marie Koltès. Dissertação de Mestrado em Letras. Orientação Prof.
Dr. Robert Ponge. Porto Alegre: UFRGS, 2009. p. 41-52. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/17655>, último acesso
em 12 de dezembro de 2012; ver também a bibliografia à qual esse trabalho remete.
2
Para maiores informações sobre a peça, ver “Análise dramatológica”, em: FERNANDES. Um estudo de Roberto Zucco,
peça teatral de Bernard-Marie Koltès. Op. cit. p. 67-117.
3
Conforme a autora da biografia sobre Roberto Succo, Pascale Froment, é de autoria questionável um dos cinco assassinatos
a ele atribuído: o da ex-professora de inglês France Vu-Dinh, raptada em 27 de abril de 1987, na cidade de Annecy, cujo
corpo nunca foi encontrado. A obra de Froment, apresentada na bibliografia deste artigo, é a principal fonte de informações
utilizada na pesquisa acerca do assassino italiano.
4
Este título refere-se à primeira edição da obra de Pascale Froment. Nesse artigo foi utilizada a edição do ano de 2005, que
possui o seguinte título, indicado na bibliografia: Roberto Succo: histoire vraie d’un assassin sans raison.
5
Sobre o tema, ver o artigo: FERNANDES, Fernanda V.; PONGE, Robert. “Antagonismo de olhares: embates na recepção
de Roberto Zucco, peça teatral de Bernard-Marie Koltès”. In: Cadernos do IL, Porto Alegre, v. 43, p. 222-232, dezembro de
2011. [online] Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/cadernosdoil/article/view/25320>, último acesso em 12 de dezembro de
2012.
6
As informações para a elaboração da parte final do artigo foram extraídas principalmente no estudo implementado em
“Alguns pontos de convergência/divergência entre a ficção e a realidade” e “Roberto Zucco”. In: FERNANDES. Um estudo
de Roberto Zucco, peça teatral de Bernard-Marie Koltès. Op. cit. p. 60-66 e 85-98, respectivamente.
BIBLIOGRAFIA
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combats avec la scène. Paris: CNDP, 1996, p. 7-40.
FAERBER, Johan. Bernard-Marie Koltès: Roberto Zucco. Paris: Hatier, coll. “Profil d’une
œuvre”, 2006.
FERNANDES, Fernanda Vieira. Um estudo de Roberto Zucco, peça teatral de BernardMarie Koltès. 2009. 167f. Dissertação (Mestrado em Letras); orientação Robert Ponge.
Instituto de Letras, UFRGS, Porto Alegre, RS. [online] Disponível em:
http://hdl.handle.net/10183/17655. Arquivo acessado em 12 de dezembro de 2012.
______; PONGE, Robert. Antagonismo de olhares: embates na recepção de Roberto Zucco,
peça teatral de Bernard-Marie Koltès. Cadernos do IL, Porto Alegre, v. 43, p. 222-232,
dezembro
de
2011.
[online]
Disponível
em:
http://seer.ufrgs.br/cadernosdoil/article/view/25320. Arquivo acessado em 12 de dezembro de
2012.
FROMENT, Pascale. Roberto Succo: histoire vraie d’un assassin sans raison. Paris:
Gallimard, coll. “Folio”, 2005.
KOLTÈS, Bernard-Marie. Lettres. Paris: Minuit, 2009.
______. Roberto Zucco suivi de Tabataba. Paris: Minuit, 1990.
______. Une part de ma vie: entretiens 1983-1989. Paris: Minuit, 1999.
PATRICE, Stéphane. Koltès subversif. Paris: Descartes & Cie, coll. “Essais”, 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para língua portuguesa sob a direção de J.
Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PROTIN, Matthieu. L’aller double de Koltès. Les Nouveaux Cahiers de la ComédieFrançaise, nº 1, intitulada “Bernard-Marie Koltès”. Paris: La Comédie-Française, p. 18-21,
março de 2007.
UBERSFELD, Anne. Bernard-Marie Koltès. Paris: Actes Sud, coll. “Apprendre, n° 10”,
1999.

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