Arquivo PDF - 6,7Mb - Comissão da Verdade do Rio
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Relatório Parcial da Relatório Parcial da Comissão Verdade Comissão da da Verdade do Rio do Rio Relatório Parcial da Relatório Parcial da Comissão Verdade Comissão da da Verdade do Rio do Rio Sumário Apresentação.......................................................................................................... 7 Decreto, lei, formação e divisão em frentes de trabalho........................................ 9 Fórum de Participação da Sociedade Civil .......................................................... 13 Grupos de Trabalho .............................................................................................. 14 Expediente Membros: Wadih Damous Álvaro Caldas Eny Moreira Geraldo Cândido João Ricardo Dornelles Marcelo Cerqueira Nadine Borges Secretaria executiva: Virna Plastino Assessoria: Ana Carolina Grangeia Denise Assis Fabio Cascardo Marcelo Auler Natália Cindra Pedro Bomfim Vítor Guimarães Assessoria de Comunicação: Renata Sequeira Assessoria Administrativa: Fernanda Pires Marta Pinheiro Estagiários: Ana Carolina Feliciano Diego Maggi Lucas Pedretti Juliano Patiu 14.........................................................................................................................................................................GT DOPS 18........................................................................................................................................................ GT Casa da Morte 18...........................................................................................................................................................GT Testemunhos 19.....................................................................................................................................................................GT Sindical Comissões Municipais da Verdade ...................................................................... 23 Testemunhos da Verdade ..................................................................................... 23 24......................................................................................................... Testemunho: Dulce Pandolfi e Lucia Murat 27................................................................................................................................Testemunho: Caso Mário Alves 31.................................................................................................Testemunho: Onde está Honestino Guimarães? 33................................................................................................................................ Testemunho da Verdade DOPS 34.................................................................................................................................... Testemunhos nos Sindicatos 35......................................................................................................................... Testemunho dos Operários Navais 35..................................................................................................................................Testemunho dos Metroviários 36................................................................................................................................. Testemunho dos Metalúrgicos 37....................................................................................................................................... Testemunho dos Bancários 38...........................................................................Testemunho da Verdade: Tortura e repressão ontem e hoje Audiências Públicas.............................................................................................. 41 41......................................................................................................................... Militares Perseguidos na Ditadura 41....................................................................................................................O papel da Igreja na ditadura militar 43............................................................................................................................................... Caso Atentado da OAB 43........................................................................................................................................... Caso Norberto Habegger 44..........................................................................................................................................................Caso Raul Amaro Casos solucionados pela CEV-Rio e em andamento............................................ 47 47..................................................................... Chacina de Quintino: 8985 – Um Número para Não Esquecer 49..........................................................................................................................................Depoimento dos vizinhos 52...................................................................................................................................................... Caso Rubens Paiva 55............................................................................................................... Depoimento do Coronel Paulo Malhães 58..............................................................................................Caso Stuart Edgard Angel Jones (em andamento) Design Editorial: Marcelo Santos Diligências ............................................................................................................ 63 Comissão da Verdade do Rio Avenida Marechal Câmara, 210, 4º andar - Centro, Rio de Janeiro, RJ - CEP: 20.020-080 Telefone: (21) 2277-2389 www.cev-rio.org.br www.facebook.com/comissaodaverdadedorio [email protected] Seminários............................................................................................................ 69 63............................................................................................................................................................................... DOPS 65.........................................................................................................................................................................DOI-Codi 66.....................................................................................................................................................................Vila Militar 69.............................................................Seminário DOPS: Ocupar a Memória – Um Espaço em Construção 71........................................................................................Calendário de “descomemoração”: 50 anos do golpe 72................................................................. Seminário 50 anos do golpe militar: o Brasil que nós perdemos 73............................................................................Jornadas de Memória Verdade e Justiça nas Universidades Pesquisas FAPERJ/CEV-Rio.................................................................................. 75 Mudança do nome da escola................................................................................ 76 Recomendações para o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade........ 81 Apresentação A memória e a verdade não são temas fáceis. Sua complexidade pode ser comprovada diante da demora do Estado na investigação dos crimes cometidos por seus agentes, com a chancela dos superiores hierárquicos, incluindo a mais alta cúpula das Forças Armadas. Eles mataram, torturaram e desapareceram com centenas de pessoas em nosso país, antes e durante a ditadura. A Comissão da Verdade do Rio considera que todos os casos, sem exceção, precisam de esclarecimento. Nesse momento apresentamos à sociedade um balanço parcial de casos já investigados e um apanhado geral das principais atividades desenvolvidas em nosso primeiro ano de trabalho. No entanto, esses episódios aqui narrados possuem importantes características para a elucidação dos crimes cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura. Por mais que tenhamos avançado, os arquivos das Forças Armadas seguem nos porões. Isso não nos impedirá de reconstituir com rigor a verdade histórica, às vezes em uma dimensão individual e limitada, outras com fatos que nos aproximam da visão integral da verdade até hoje negada pela repressão. Considerando que muitos personagens dessa história de violações silenciada ainda estão vivos, desejamos coragem para que estas testemunhas enfrentem os fantasmas e o legado da violência que nos ronda até hoje. Sem isso, a dívida histórica do Estado com a verdade persistirá. Está em nossas mãos enfrentar as violações de direitos humanos do passado. Fazemos isso ou não teremos condições de prevenir as atrocidades e os desrespeitos nos dias atuais. Rio de Janeiro, 27 de junho de 2014 Wadih Damous Presidente da Comissão da Verdade do Rio Decreto, lei, formação e divisão em frentes de trabalho A Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, constituída pela Lei Estadual nº 6335/2012, tem por finalidade elucidar os fatos e as circunstâncias das graves violações de direitos humanos praticadas no período de 1946 a 1988, promovendo, em particular, o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáver e sua autoria. Entre várias atribuições, deve identificar e tornar públicas as estruturas, os locais, as instituições, bem como suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e civis, relacionadas à prática de violações de direitos humanos. Os trabalhos também auxiliam à Comissão Nacional da Verdade contribuindo para a efetivação do direito à memória e à verdade histórica. A posse da comissão aconteceu em 08 de maio de 2013 e a sede da comissão, desde a sua criação, é na Av. Marechal Câmara, 210, 4º andar, no prédio da Caixa de Assistência dos Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil. A comissão é composta por sete membros, que possuem notória história de comprometimento com a defesa e garantia dos direitos humanos. São eles: Wadih Damous (presidente), Álvaro Caldas, Eny Moreira, Geraldo Cândido da Silva, João Ricardo Dornelles, Marcelo Cerqueira e Nadine Borges, além de dez assessores. A Comissão Estadual da Verdade do Rio organizou o seu funcionamento interno em cinco Frentes de Trabalho (FTs): I. Mortos e Desparecidos Políticos • Esclarecer casos de morte e desaparecimento; • Identificar os fatos, circunstâncias e autoria desses fatos; • Utilizar acervos arquivísticos como fontes de pesquisa (Arquivo Nacional, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, dentre outros). 8 9 II. Planos e Atentados Terroristas praticados por agentes do Estado • I nvestigar e explicar os diversos planos e atentados ocorridos no Rio de Janeiro durante o período da Ditadura, como por exemplo, Rio Centro e Bomba na sede do Conselho Federal da OAB; • E sclarecer o funcionamento de Estado de exceção nesse período. III.Financiamento, Estruturas e Institucionalidade da Repressão • Identificar a cadeia de comando em tais atos, apontando os responsáveis, esclarecendo o modelo de funcionamento estatal e a institucionalidade social do regime autoritário (enfatizando: Financiamento e apoio civil, poder Executivo/Legislativo/ Judicial e as Forças Armadas). IV.Centros Clandestinos e Oficiais de Repressão e Lugares de Resistência • Identificar e tornar públicas as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos; • Revelar o método de funcionamento desses locais. V.Observatório para a Não-Repetição • Mapear os possíveis padrões de violações de direitos humanos atuais que se relacionam com a violência institucionalizada antes e durante a ditadura militar, a fim de recomendar ao Estado a adoção de medidas e políticas públicas para evitar a repetição de tais práticas. As Comissões da Verdade no Brasil foram criadas a partir de uma luta de décadas da sociedade civil organizada e dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, juntamente com os ex-presos políticos e demais pessoas atingidas pela ditadura militar. Nesse sentido, e reconhecendo esse histórico, foi formulada uma série de ações e políticas para construir uma gestão participativa da Comissão da Verdade do Rio. São exemplos dessa gestão o Fórum de Participação da Sociedade Civil, os Grupos de Trabalho e as Comissões Municipais e Setoriais da Verdade. 10 Fórum de Participação da Sociedade Civil O Fórum de Participação é o principal instrumento de gestão participativa da comissão. Desde o mês de maio de 2013 foi construído como uma forma de permanente diálogo entre a comissão e a sociedade civil e é realizado toda a última sexta-feira do mês. A CEV-Rio construiu o Fórum como um espaço institucional de apresentação dos trabalhos realizados e de processamento das demandas das organizações da sociedade civil, de militantes e dos familiares atingidos pela ditadura militar. Todas as reuniões contam com a presença dos comissionados e os encaminhamentos são levados à subsequente reunião ordinária semanal dos membros da CEV-Rio para deliberação. Arte: Marcelo Santos/SEASDH Até o presente momento, foram realizadas oito edições do Fórum de Participação da Sociedade Civil. Os temas debatidos foram: Pesquisa sobre Ditadura Militar, para estabelecer parceria com pesquisadores do Rio de Janeiro (30/08), Arquivos da Repressão, para discutir o acesso e as condições dos arquivos localizados estado do Rio (27/09), Edital de Pesquisa da Faperj, para apresentar o edital público que auxiliou os trabalhos da Comissão e sanar dúvidas sobre o mesmo com a presença de representantes da Faperj (25/10), Políticas Públicas de Reparação, para discutir com as comissões de reparação (São Paulo e Rio de Janeiro) e a Comissão de Anistia as políticas públicas nessa área (13/12), Descomemoração do Golpe de 1964 (14/02), para discutir uma agenda unificada de ações e atividades relativas aos 50 anos do golpe e, por último, a Divulgação do depoimento do coronel Paulo Malhães, com a disponibilização, na íntegra, da entrevista dada à Comissão da Verdade do Rio (30/5). Nessas oito edições do Fórum reuniram-se em média de 400 pessoas de mais de 60 entidades e órgãos públicos, como: Associação Democrática e Nacionalista dos Militares; Associação Nacional dos Anistiados Políticos, Aposentados e Pensionistas; Centros Acadêmicos das universidades públicas do RJ; Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis; Clínicas do Testemunho; Coletivo 12 13 RJ Memória, Verdade e Justiça; Comissão de Direitos Humanos da OAB; Conselho Regional de Psicologia; Grupo Tortura Nunca Mais; Instituto Estudos da Religião (ISER); Movimento Popular de Favelas; União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, além de diversos setores governamentais de esferas municipal, estadual e federal. É importante lembrar também que representantes de diversos arquivos estiveram presentes como, Arquivo Nacional, CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação da FGV), APERJ (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Centro de Documentação da CUT e Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro. o Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DOPS/ GB) em um centro de memória da resistência e das lutas sociais. O prédio é tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) e pertence à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Grupos de Trabalho A partir das demandas apresentadas nas reuniões do Fórum de Participação, a CEV-Rio estruturou os Grupos de Trabalho (GT). Os GT’s são espaços que reúnem pessoas interessadas e engajadas no tema da Justiça Transicional; membros de entidades de direitos humanos e memória, verdade e justiça; membros e assessores da CEV-Rio; além de convidados que auxiliem no desenvolvimento dos trabalhos. Os GT’s foram criados para apoiar e potencializar trabalhos que já estavam sendo realizados por outros órgãos do poder público ou por entidades da sociedade civil, bem como para auxiliar o trabalho da comissão e ajudar a decidir prioridades em diversas frentes. Os quatro GT’s que existem hoje no âmbito da Comissão da Verdade do Rio são: GT DOPS, GT Casa da Morte de Petrópolis, GT Testemunhos, GT Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical. Os temas foram selecionados, por um lado, por sua importância dentro das investigações sobre a ditadura militar e, por outro, devido aos trabalhos já avançados que outras entidades realizavam, com os quais a Comissão busca dialogar. GT DOPS O GT DOPS resulta de uma antiga demanda de diversos setores da sociedade civil, que pretendem transformar o prédio onde funcionou 14 Uma das iniciativas do GT DOPS foi a realização de visitas técnicas, com equipes dos arquivos Nacional e Estadual e do INEPAC, para vistoriar as instalações e os documentos remanescentes no local Crédito: GT DOPS 15 Na ocasião da solenidade de nomeação dos componentes da CEVRio, o governador em exercício comprometeu-se em tornar esse prédio um centro de memória. Assim, foi deliberado, no Fórum de Participação, a importância da criação de um Grupo de Trabalho específico para acompanhar essa demanda. O GT tem como objetivo: articular com a sociedade civil e órgãos do Estado para incidir política e culturalmente no local, realizar atividades para a preservação e destinação do prédio, e ainda, coletar depoimentos daqueles que estiveram presos no DOPS. É um GT que está relacionado não só com as políticas de memória e de não repetição, mas também com as investigações sobre a estrutura da repressão da ditadura. No âmbito deste GT DOPS foram realizadas até o presente momento: seis visitas ao prédio; o Seminário DOPS: Ocupar a Memória – Um Espaço em Construção, que além de palestras sobre os usos do prédio através do tempo e a construção e gestão dos Espaços de Memória, promoveu o primeiro depoimento público formal realizado no próprio lugar onde ocorreram as violações de direitos humanos à época da ditadura militar; e a elaboração de um plano de uso do prédio como Espaço de Memória para as políticas de Direitos Humanos e culturais do Rio de Janeiro. Institucionalmente, neste primeiro ano, compuseram ou estiveram presentes em reuniões do GT: Comissão da Verdade da UFRJ; Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça; Instituto de Estudos da Religião (Iser); Lembrar é (Re)Existir; Superintendência de Estado de Museus, Instituto Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural (INEPAC), Superintendência de Estado de Promoção dos Direitos Humanos, da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH). GT foi composto também por militantes, que aportaram nas discussões e atividades seus conhecimentos em arquitetura, história, psicologia, engenharia, museologia, ciências sociais e advocacia. Ato “50 anos do Golpe – A história que tortura Petrópolis”, organizado pela Comissão da Verdade do Rio, movimentos sociais de Petrópolis e do Rio de Janeiro, para reivindicar verba para a desapropriação da Casa da Morte Crédito: Bruno Marins 16 17 GT Casa da Morte O GT Casa da Morte trata, principalmente, da construção de processos de memorialização a respeito de um centro clandestino de torturas, conhecido como a Casa da Morte de Petrópolis. Deste modo, entidades de direitos humanos locais; órgãos públicos de investigação e denúncia (Ministério Público Federal) e representantes do Poder Executivo (Procuradoria-Geral do Município de Petrópolis), para citar alguns exemplos, se reúnem periodicamente a fim de difundir a história da casa na cidade de Petrópolis, e o mais importante: desapropriar o imóvel e transformá-lo em um centro de memória, verdade e justiça. Recém instalada, em maio de 2013, a CEV-Rio já fazia suas primeiras reuniões em Petrópolis, inteirando-se progressivamente dos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos por movimentos sociais, ONG’s, Ministério Público Federal, Museu Imperial, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Prefeitura e ouvindo personagens que vivenciaram os anos de chumbo na cidade. Diante disto, a CEV-Rio optou por dedicar uma parte de sua assessoria para a investigação dos fatos relacionados à Casa da Morte e outra parte para auxiliar no processo pedagógico e de políticas de não-repetição, prestando apoio às iniciativas de criação de um Memorial na cidade. Assim, em 30 de agosto de 2013, a Comissão criou mais um Grupo de Trabalho no âmbito do Fórum de Participação da Sociedade Civil, visando articular e potencializar todas essas iniciativas. GT Testemunhos Outro exemplo de Grupo de Trabalho criado durante o primeiro ano de funcionamento da Comissão é o GT Testemunhos. Este GT foi criado após o III Fórum de Participação, quando se discutiu a formulação de uma metodologia para a coleta de testemunhos de atingidos e familiares daqueles que sofreram violações, bem como de agentes da ditadura. No âmbito do GT – que conta com a participação de ex-presos e familiares das vítimas, de psicólogos da equipe do Projeto Clínicas dos Testemunhos da Comissão de Anistia/Ministério da Justiça e da assessoria da CEV-Rio –, é 18 levado em consideração tanto o aspecto reparatório individual quanto o coletivo/político de um testemunho. Assim, o GT debate o caráter pedagógico dos depoimentos públicos que compreendem os Testemunhos da Verdade, investindo esforços na construção do mesmo, bem como orienta a equipe da CEV-Rio na coleta dos depoimentos reservados. Além da metodologia de coleta de depoimentos (oitivas), ainda no âmbito do GT Testemunho, elaborou-se a construção de um banco de dados a respeito dos mesmos. O registro dos depoimentos e os relatórios formulados a partir das informações obtidas nas oitivas são armazenados em um banco de dados que visa quantificar os depoimentos coletados, estabelecer relações entre eles e facilitar o processo de busca com base em informações específicas. Membros e assessores da CEV-Rio, até o presente momento, ouviram cerca de 210 pessoas, em seus trabalhos de investigação, dos quais 75 depoimentos foram públicos, colhidos no formato das audiências que compreendem os Testemunhos da Verdade. Esses depoimentos, prestados de forma reservada ou pública, têm ajudado a elucidar fatos e circunstâncias de graves violações de direitos humanos no período da ditadura militar. GT Sindical O Grupo de Trabalho Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical, por sua vez, é desdobramento de um Grupo de Trabalho que funciona junto à Comissão Nacional da Verdade, que também aborda a violação aos trabalhadores e aos sindicatos durante a ditadura, o qual reúne representantes das dez centrais sindicais brasileiras. Para que a CEV-Rio pudesse aprofundar suas investigações no tema, foi realizada uma reunião de articulação da investigação sobre repressão aos trabalhadores e sindicatos no Rio de Janeiro, com as mesmas centrais sindicais CUT, CSP, Conlutas, CPD, UGT, NCST e Força Sindical. Os objetivos do GT são: levantar quais sindicatos que sofreram invasão e intervenção no Golpe; listar quantos e quais dirigentes sindicais foram cassados pela Ditadura e os responsáveis por isso; 19 listar quantos e quais dirigentes sindicais foram presos/torturados/ sequestrados; indicar a rede de repressão aos trabalhadores, que perpassava diversos órgãos de segurança (Dops, DOI-Codi, CIE, CISA e Cenimar) e, por fim, articular evidências da vinculação das empresas públicas e privadas que colaboraram com o regime. Para contar essa história de luta e resistência dos trabalhadores, o GT Sindical realizou, com a colaboração da Comissão Nacional da Verdade, cinco atividades com testemunhos de militantes que sofreram perseguições durante a ditadura. Conforme veremos mais adiante, foram ouvidas lideranças dos sindicatos dos Operários Navais, dos Metroviários, dos Metalúrgicos e dos Bancários em audiências públicas que ajudam a montar o quadro da repressão a essas categorias. 20 21 Comissões Municipais da Verdade Outra política da gestão participativa é a interiorização dos trabalhos da comissão, por meio das Comissões Municipais da Verdade. As comissões municipais são compostas, em sua maioria, pela sociedade civil e consistem em um trabalho articulado com a CEV-Rio e com o poder público local. Desde sua formação, a CEVRio fomentou a criação de Comissões Municipais da Verdade em diversos municípios e estão em funcionamento as comissões de Niterói, Macaé, Volta Redonda, São João de Meriti, São Gonçalo, Duque de Caxias, Barra Mansa e Nova Friburgo. Além dessas, há coletivos pró-comissão municipal nas cidades de Petrópolis e Resende. Criadas por lei ou decreto municipal, as comissões têm como objetivo investigar as graves violações de direitos humanos nos seus municípios para subsidiar o trabalho da Comissão da Verdade do Rio e a Comissão Nacional da Verdade. Neste sentido, elas conduzem pesquisas, recolhem depoimentos e articulam o debate público sobre o direito à memória e à verdade nos municípios que estão inseridas. Testemunhos da Verdade Para investigar e obter informações sobre as violações de direitos humanos na ditadura militar, a Comissão da Verdade tem atuado por meio da análise de documentos, da diligência a locais de memória e da coleta de depoimentos de atingidos dos perpetradores (agentes do Estado), que constitui fonte essencial para a compreensão e investigação dos fatos. Comissões Municipais da Verdade no Estado do Rio de Janeiro 22 O trabalho da CEV-Rio, portanto, tem como uma de suas principais atividades os Testemunhos da Verdade. Trata-se essencialmente de uma tomada pública de depoimentos de ex-presos e familiares dos mortos e desaparecidos políticos. Em todos eles, a CEV-Rio conduz pelo menos uma conversa anterior com os depoentes, valendo-se da 23 metodologia desenvolvida pelo Projeto Clínicas do Testemunho, da Comissão da Anistia/ Ministério da Justiça, que visa trabalhar o cuidado, a clareza do depoimento e o potencial político do testemunho público. A Comissão da Verdade do Rio tem como objetivo fazer com que o Estado reconheça aqueles que foram atingidos pela ditadura militar. Além de serem fonte primordial de informações para as investigações da comissão, os sobreviventes e os familiares dos mortos e desaparecidos políticos continuam sendo os protagonistas na luta histórica pela verdade sobre o período. A realização dos Testemunhos da Verdade é uma das formas de reparação aos atingidos pelas violações do Estado, pois, além de, relatar as experiências pessoais, reconstrói a memória coletiva, associando a singularidade dessas experiências com a narrativa compartilhada socialmente. Por isso, a reparação se dá ao criar uma situação em que o relato é feito publicamente e divulgado nos meios de comunicação. Os Testemunhos da Verdade, portanto, vem se mostrando como a iniciativa com maior potencial de sensibilização, dando voz aos afetados pela violência do Estado, ao mesmo tempo em que exerce uma função político-pedagógica. Testemunho: Dulce Pandolfi e Lucia Murat “Por acreditar que no Brasil de hoje a busca pelo direito à verdade e à memória é condição essencial para nos libertarmos de um passado que não podemos esquecer, aceitei o convite da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro para fazer aqui, hoje, esse depoimento, ainda que com alguma dificuldade. Como os testemunhos que estão sendo dados à Comissão da Verdade, embora sobre o passado, dizem respeito ao presente e apontam para o futuro, tenho a convicção de que eles vão ajudar a contribuir para a construção de um Brasil mais justo e solidário”. Este é um trecho do depoimento da historiadora Dulce Pandolfi na primeira atividade pública da Comissão da Verdade do Rio, em 28 de maio de 2013, no plenário da Alerj. Dulce dividiu com os presentes as lembranças da prisão e contou detalhes sobre as sessões de tortura a que foi submetida. Ela afirmou que serviu de cobaia para uma aula de tortura. “O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática com algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau-de-arara, ouvia o professor dizer: “Essa é a técnica mais eficaz”. Acho que o professor tinha razão. Quando eu comecei a passar muito mal, a aula foi interrompida e fui levada para a cela. As meninas gritavam, imploravam, tentando em vão impedir que a aula continuasse. A resposta do médico Amílcar Lobo, diante dos torturadores e diante de todas nós, foi: “Ela ainda aguenta”. E, de fato, a aula continuou”. Dulce fazia parte do DCE da Universidade Federal de Pernambuco e, na década de 70, se mudou para o Rio de Janeiro, onde continuou a militância na Aliança Libertadora Nacional (ALN). Foi levada para o quartel do Exército na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde funcionava o DOI-CODI e, depois, transferida para o DOPS, na Rua da Relação, no Centro. Ela ficou presa um ano e quatro meses. Primeiro Testemunho da Verdade da CEV-Rio contou com os depoimentos de Dulce Pandolfi e Lucia Murat na Plenária da ALERJ Crédito: Gabriel Telles/ALERJ 24 Assim como Dulce Pandolfi, a cineasta Lucia Murat, que prestou depoimento no mesmo ato, falou da figura de um médico que a examinou durante uma sessão de tortura que, segundo sua percepção, deve ter durado mais de dez horas: 25 “De um momento para o outro, eu estava nua, apanhando no chão. Logo em seguida, me levantaram no pau-de-arara e começaram com os choques. Amarraram a ponta de um dos fios no dedo do meu pé, enquanto a outra ficava passeando nos seios, na vagina, na boca. Quando começaram a jogar água, eu estava desesperada e achei, num primeiro momento, que era para aliviar a dor; quase agradeci. Logo em seguida, os choques recomeçavam muito mais fortes. Percebi que a água era para aumentar a força dos choques. Isso durou horas. De tempos em tempos me baixavam do pau-de-arara. Lembro que o médico entrou e me examinou. Aparentemente, fui considerada capaz de resistir, pois a tortura continuou. Logo que comecei a apanhar, achei que não ia resistir e inventei uma história que na minha cabeça me possibilitaria me suicidar”. Lúcia foi presa em março de 1971, no Jacarezinho, por agentes da repressão quando foi conduzida para o DOI-Codi. Em um dos intervalos da sessão de tortura, ela foi levada para a enfermaria do Batalhão da Polícia do Exército, onde passaria ali algumas horas ao lado de soldados, que eram também enfermeiros: Testemunho: Caso Mário Alves O baiano Mário Alves iniciou sua militância aos 16 anos de idade, ainda no período do Estado Novo. Formado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia da Bahia, ele ingressou, em 1945, no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, em 1968, fundou o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Mário Alves era um dos dirigentes mais procurados pela repressão e acabou sendo sequestrado, em 16 de janeiro de 1970, por agentes do Estado, na Abolição. Levado para o 1º Batalhão de Polícia do Exército, sede do DOI-Codi, foi visto, por outros companheiros detidos, ser barbaramente torturado com choque, pau-de-arara e empalamento, que teria provocado uma hemorragia e causado a sua morte. Mário Alves foi o primeiro caso confirmado de tortura e morte no DoiCodi e, sua história, foi o fio condutor de um Testemunho da Verdade, realizado pela Comissão da Verdade do Rio, conjuntamente com a Comissão Nacional da Verdade, na Alerj, em 14 de agosto de 2013. O trabalho foi subsidiado pela denúncia formulada pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Os depoentes - Álvaro Caldas, José Luís Sabóia, José Carlos Tórtima, Maria Dalva Leite de Castro, “Major Jacarandá, nunca é tarde para o senhor se reconciliar com a sociedade e rejeitar o seu passado”, disse José Carlos Tórtima ao major Jacarandá após prestar depoimento à CEV-Rio Crédito: Bruno Marins “Enquanto aplicava as compressas, esse enfermeiro me disse que, quando terminasse o serviço militar, queria esquecer tudo o que viu ali”. Lucia, diante de uma plateia lotada, fez uma homenagem a esses dois desconhecidos soldados que passaram horas, ao seu lado, aplicando compressas em seus ferimentos. Este e outro recruta, que se dispôs a levar uma mensagem para a família dela, representou o único momento de humanidade durante os anos em que sofreu com a violência de um Estado repressor, disse Lúcia. 26 27 Newton Leão Duarte e Paulo Sérgio Paranhos – foram, assim, como Mário Alves, presos e torturados no DOI-Codi. Nesta ocasião, a filha única do desaparecido, Lucia Vieira Caldas, leu um texto emocionado citando, por exemplo, a militância política do pai, que foi um dos fundadores da UNE na Bahia: “Ele teve uma vida curta, de lutas, inteiramente dedicada ao seu sonho revolucionário. A verdade finalmente está sendo revelada e a história lhe fará justiça”, disse. Para acessar os demais documentos deste caso, que comprovam as teses demonstradas pela CEV-Rio, basta enviar uma solicitação para [email protected] durante o período de atuação da comissão. Na ocasião, quatro agentes acusados de participação na tortura, morte e desaparecimento do corpo de Mário Alves foram convocados. Foram eles: os ex-tenentes do Exército Luiz Mário Correia Lima, Roberto Duque Estrada, promovido a capitão enquanto servia no DOI-Codi, e Dulene Garcez, comandante do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), além do ex-major do Corpo de Bombeiros Valter da Costa Jacarandá, único que compareceu ao ato. Eles alegaram que já prestaram esclarecimentos acerca desse fato e que respondem judicialmente pelo sequestro, tortura e morte do líder comunista Mário Alves. O major Jacarandá, embora tenha negado que participou de qualquer episódio envolvendo tortura, admitiu que “no calor do interrogatório, excessos foram cometidos”. Posteriormente admitiu como excessos a prática de tortura de presos políticos. Ele disse não ter qualquer informação sobre o desaparecimento e morte de Mário Alves. Os tenentes Garcez e Correia Lima foram convocados uma segunda vez para prestar esclarecimentos sobre a morte e desaparecimento de Mário Alves e compareceram, em 02 de outubro de 2013, à sede da Comissão da Verdade do Rio para a tomada de depoimentos, mas diante da covardia que lhes é peculiar disseram que não teriam nada a declarar. Álvaro Caldas, na ocasião, prestou depoimento e apresentou uma série de provas que confirmam a participação dos militares em sua prisão. O jornalista mostrou um documento, um auto de busca e apreensão, datado de 29 de abril de 1970, no qual consta a assinatura de Dulene Garcez, responsável pelo 1º Batalhão do Exército. A notificação dava conta da apreensão ao automóvel de 28 29 Álvaro que, por estar preso, estava com as prestações atrasadas. O carro se encontrava no pátio do batalhão. Tenentes Garcez (foto) e Correia Lima convocados, pela segunda vez, para prestar esclarecimentos sobre a morte e desaparecimento de Mario Alves Crédito: Bruno Marins “Este relato é para comprovar que estive frente a frente com o tenente Garcez e, claro, em posição desvantajosa. Ele me deu ordens para tirar a roupa e fui submetido a torturas por ele, em companhia do Correia Lima e dos tenentes Avólio e Magalhães, do capitão Zamith, entre outros. Tenho como registro da minha passagem por lá um documento que comprova a presença do tenente. Por estar preso deixei de pagar duas parcelas e a empresa entrou com mandato de busca e apreensão. O mandato foi assinado pelo então tenente Garcez, responsável pelo DOI-Codi”, declarou Álvaro. O militar, diante dessa afirmação, apenas disse: nada a declarar, assim como o Correia Lima. Os dois justificaram a postura alegando que já tinham prestado esclarecimentos à Comissão Nacional da Verdade e ao Ministério Público Federal. “Eu já colaborei. Durante duas horas prestei depoimento para a Comissão Nacional da Verdade. Falei sobre o meu relacionamento com o major Jacarandá, todo o relacionamento que tive com o Amílcar Lobo (médico que, segundo o relato de vários ex-presos, era o responsável por atestar se o preso tinha condições de continuar sendo torturado). É exatamente o que eu declarei e não tenho o que acrescentar. Não posso esclarecer, porque eu desconheço esse fato (sobre o Mário Alves) ”, disse Correia Lima. Testemunho: Onde está Honestino Guimarães? Arte: Marcelo Santos/SEASDH 30 31 Honestino Guimarães, líder estudantil e presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), foi preso seis vezes. Da última vez, em 10 de outubro de 1972, o ex-aluno de geologia da UnB, que dá nome ao atual Diretório Central dos Estudantes (DCE) da instituição, nunca mais apareceu. Pesquisas da Comissão da Verdade do Rio dão conta de que ele era muito vigiado pela repressão e, quando foi sequestrado, era condenado pela 11ª Circunscrição Judiciária de 1972, embora, já no ano anterior, estivesse sendo procurado pela Marinha. A equipe da comissão realizou pesquisas no Arquivo Nacional e no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e descobriu o momento em que os órgãos da repressão confirmaram que Honestino estava no Rio de Janeiro, local de seu desaparecimento. Antes do Encaminhamento 204 da Divisão de Segurança e Informações do MEC, os órgãos de segurança não sabiam em qual Estado Honestino estava (ele entrou para a clandestinidade depois da promulgação do AI-5). Entretanto, esses documentos mostram que Honestino esteve presente em uma reunião de Centros Acadêmicos, em Niterói, no primeiro semestre de 1973. Em 10 de outubro de 2014, portanto, 40 anos de desaparecimento de Honestino, a comissão realizou o Testemunho da Verdade – Onde está Honestino Guimarães? Na ocasião, a filha de Honestino, Juliana Botelho Guimarães, prestou um depoimento público em que falou sobre a ausência do pai: “Hoje completam exatos 40 anos que o meu pai não voltou pra casa. Eu tinha apena três e só entendia que ele havia desaparecido da minha vida”. Juliana, em seu discurso, falou sobre o processo, na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que declarou, oficialmente, Honestino Guimarães um anistiado post mortem. “A Comissão de Anistia também recomendou duas mudanças na certidão de óbito: uma referente à causa da morte, para que conste ‘atos violentos praticados pelo Estado’; outra para substituição do termo ‘falecido em 10 de outubro de 1973’ para ‘desaparecido em 10 de outubro de 1973’”. A publicação desta portaria do Ministério da Justiça, no Diário Oficial, foi feita em 11 de abril de 2014. Na ocasião, além de Juliana, prestaram depoimento Agostinho 32 Guerreiro, militante, junto com Honestino, na organização Ação Popular (AP), e o vereador do Rio de Janeiro Eliomar Coelho, seu colega na Universidade de Brasília, além de Elia Menezes, que conheceu Honestino na clandestinidade. A Comissão da Verdade do Rio, após o ato, realizado conjuntamente com a Comissão de Verdade e Memória da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, deu prosseguimento à investigação. Um documento do Serviço Nacional de Informações (SNI), de 1978, encontrado pela Comissão Estadual de Pernambuco, e analisada pela CEV-Rio, trouxe mais um dado para a investigação do caso Honestino Guimarães: “Preso em 10 Out 73 no Rio de Janeiro. ” Esta é considerada a primeira citação oficial achada sobre a prisão do líder estudantil, em que se confirma a data do desaparecimento. O documento, de 71 páginas, foi a resposta do SNI para uma série de perguntas do Ministério da Aeronáutica, sobre o paradeiro de dezenas de opositores da ditadura. Testemunho da Verdade DOPS O Seminário DOPS: Ocupar a Memória – Um Espaço em Construção, realizado em 04 de novembro de 2013, teve como ponto alto da programação o testemunho de quatro ex-presos que passaram pelo antigo centro de tortura que fica na esquina das Ruas da Relação e dos Inválidos, em frente ao chamado Palácio da Polícia. Primeiro testemunho da CEV-Rio realizado em local simbólico para ex-presos, neste caso, Newton Leão Duarte, Ana Miranda e Wadih Damous em frente ao DOPS Crédito: Bruno Marins 33 A demanda pela realização de Testemunhos em locais simbólicos foi encampada pela sociedade civil em praticamente todos os Fóruns de Participação, e destacada sua importância por aqueles que testemunharam no evento: Romeu Bianchi Júnior, Geraldo Cândido, Newton Leão, Ana Miranda. “Há alguns anos seria impensável que estivéssemos numa reunião como essa em frente ao prédio do DOPS reivindicando a posse desse prédio para uma organização de direitos humanos. Isso é reparação. Isso é a maior ideia do que seria reparação. Para mim é uma realização de vida”, disse Newton Leão Duarte, que foi preso em 1969 aos 19 anos de idade quando era estudante de Engenharia. “Fomos torturados barbaramente por espancamentos e choques elétricos, da mesma maneira que os presos políticos em todo o Brasil, como no DOI-CODI foram torturados. O que significa que a polícia civil, à época, utilizava esses mesmos meios. Aqui foi a nossa primeira sessão de sevícias”. Ana Miranda Batista, militante da Ação Libertadora Nacional, que esteve presa durante nove meses no DOPS, ressaltou em seu depoimento a relevância do evento: “É motivo de orgulho para nós, que estamos lutando há tanto tempo para que este prédio se transforme em um Espaço de Memória das lutas políticas e sociais no Brasil, participar deste Seminário que ajudamos a organizar - e depor aqui hoje, como testemunha da verdade”. A CEV-Rio pretende dar continuidade a esse formato de Testemunho da Verdade em espaços de memória, a fim de reparar simbolicamente os ex-presos políticos, difundir o conhecimento sobre esses locais, tentar remontar a estrutura dos aparelhos de repressão e transformar esses espaços em centros de memória da resistência. Testemunhos nos Sindicatos O golpe de militar de 1964 atingiu, de imediato, as organizações de trabalhadores. Considerados os pilares de sustentação do governo João Goulart deposto pelo Golpe, diversos sindicatos foram invadidos e suas diretorias cassadas. Para contar essa história de 34 luta e resistência dos trabalhadores, a Comissão da Verdade do Rio realizou diversas atividades, no âmbito do Testemunho da Verdade. Grandes lideranças dos Sindicatos dos Operários Navais, dos Metroviários, dos Metalúrgicos e dos Bancários já foram ouvidas em audiências públicas que ajudam a montar o quadro da repressão a essas categorias. Testemunho dos Operários Navais O primeiro testemunho da verdade, construído pelo GT Sindical junto com um sindicato, foi a dos Operários Navais de Niterói e São Gonçalo, no dia 25 de novembro de 2013. A atividade também foi a primeira realizada na própria sede do sindicato que, nas décadas de 50 e 60, era um dos principais pontos de referência dos trabalhadores do setor, motivo pelo qual, no primeiro dia do golpe, a sede foi invadida, destruída e muitas lideranças foram presas, além de acarretar inúmeras demissões. O ato que foi realizado em parceria com a Comissão da Verdade em Niterói e contou com os depoimentos de Benedito Joaquim dos Santos, Oswaldo Veloso, Jayme Navas e José Gonçalves, quem declarou: “Fui a última pessoa a pegar o microfone e pedir que todos saíssem do sindicato, porque tínhamos a informação de que a polícia ia invadir o local. Saímos igual a ratos com medo dos gatos”. Testemunho dos Metroviários O modelo do Testemunho da Verdade foi usado para marcar a posse da Comissão da Verdade do Sindicato dos Metroviários, em 15 de janeiro de 2014, na sede do órgão, na Praça da Bandeira. Na ocasião, os ex-militantes Francisco Parente e Denis Linhares prestaram depoimento. “As marcas da tortura não vão sumir nunca. Elas são violentas e só quem sofreu pode mensurar a dor”, disse Francisco Parente que, em seu depoimento, lembrou de ex-companheiros como Aloísio Palhano, militante do Sindicato dos Bancários, e que consta da lista de desaparecidos que “dedicaram suas vidas à democracia”. 35 Geraldo Cândido, membro e coordenador do GT Sindical da CEV-Rio, no Testemunho da Verdade do Sindicato dos Metalúrgicos Crédito: Bruno Marins A instalação de mais uma comissão da verdade de categoria profissional no Estado do Rio de Janeiro, além dos petroleiros, professores e jornalistas, abre caminho para o pedido de abertura do acervo do metrô para que se possa, então, fazer uma busca nessa documentação e descobrir, entre outras coisas, a razão da demissão de alguns funcionários. sindicato, inaugurado em 1959, foi palco de eventos marcantes, como a visita do cosmonauta soviético Yuri Gagarin, em 1962, e a assembleia dos marinheiros em apoio às reformas de base, em 1964. O ato, organizado conjuntamente com o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, marcou 97 anos da instituição. “O sindicato foi destruído, mas resistiu. O movimento continuou e é isso que fica. Eternamente. Assim como esse sindicato”, disse José Ferreira Nobre, militante sindical desde 1947, e um dos depoentes no evento, ao lado de Severino Batista Cabral e Valdir Vicente, operários navais em 1964. Testemunho dos Bancários Em 1964 o Sindicato dos Bancários sofreu a primeira intervenção que durou dois anos. No Banco do Brasil, por exemplo, foi instaurada uma Comissão Geral de Inquérito, que passou a perseguir os sindicalistas, promoveu demissões, transferências e a retirada de cargos. Outra intervenção, desta vez em 1968, provocou novas cassações e prisões. Uma terceira intervenção, em 1972, mais dura, terminou com a sede do sindicato sendo invadida, e se estendeu por sete anos. Para analisar a repressão ao Sindicato dos Bancários a comissão dividiu sua pesquisa em dois períodos: de 1964 a 1972 e de 1972 a 1988. E esse recorte permitiu, inclusive, a realização de duas atividades, no formato do Testemunho da Verdade, com as lideranças dos bancários que atuaram contra a ditadura militar. Testemunho dos Metalúrgicos 36 Outra categoria profissional que sofreu intensa repressão foi a dos Metalúrgicos. A sede, que funciona em Benfica, foi invadida na madrugada do dia 1º de abril de 1964 e diversos sindicalistas foram presos. A invasão foi seguida de intervenção política, que se deu até 1968. Nova intervenção foi feita em 1973 e se estendeu até 1975. O primeiro Testemunho da Verdade aconteceu em 19 de novembro de 2013 e o segundo em 3 de junho de 2014, ambos realizados na sede do órgão, que fica no Centro do Rio. Auri Gomes da Silva, Samuel Henrique Maleval, Jorge Couto e Edmilson Martins de Oliveira foram os depoentes que reconstruíram, por meio dos testemunhos, a luta e resistência dos bancários. A história de resistência do “Palácio dos Metalúrgicos”, como é conhecida a sede, durante a ditadura militar foi tema de mais um Testemunho da Verdade realizado em 29 de abril de 2014. O “Veio o AI-5 e a luta recuou. Com o AI-5, a brutalidade foi tamanha que nós fomos massacrados. Fomos presos e submetidos à tortura. No DOI-Codi fui colocado numa cela que deram o nome de “geladeira”. Artes: Marcelo Santos/SEASDH 37 Ali, a gente, semi-nu, não podia dormir, porque um autofalante ficava o dia inteiro ligado com música nas alturas. À noite eram aquelas aulas de tortura que um agente dava para o outro”, disse Auri Gomes da Silva, membro da diretoria do sindicato. ditadura e a permanência de elementos autoritários na democracia. O evento foi organizado conjuntamente com o projeto Clínicas do Testemunho e o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. No segundo Testemunho dos bancários houve o primeiro depoimento de uma mulher que, assim como os demais depoentes, foi presidente do sindicato. “Mandaram me tirar a roupa e entrar na geladeira, que era uma sala muito fria, onde fiquei por dois ou três dias”, contou Fernanda Cariso que foi presa em 1977 e, na ocasião, integrava o movimento estudantil do PCB. Roberto Percinotto, Ivan Pinheiro e Cyro Garcia foram os outros militantes do movimento sindical que testemunharam no ato. Na ocasião ouviu-se o depoimento de Elinor Brito, preso político, ex-militante do PCBR: “O sistema de tortura era sistemático e era a forma que a ditadura tinha de liquidar física e psicologicamente o militante. A intenção era reduzir o ser humano a nada”, disse Elinor Brito. Testemunho da Verdade: Tortura e repressão ontem e hoje Discutir a permanência das práticas de violações aos direitos humanos foi o objetivo da atividade que marcou um ano de trabalho da CEV-Rio Crédito: Bruno Marins 38 Outros testemunhos foram prestados por Jivago Novaes, preso, em outubro de 2013, quando participou de um ato em apoio aos professores no Centro do Rio, e pela Deise Carvalho, mãe de Andreu Carvalho, morto em 2009 nas dependências do Degase. O Testemunho da Verdade foi a atividade escolhida para marcar um ano de trabalho da Comissão da Verdade do Rio, comemorado em 8 de maio. O ato, realizado na Alerj, foi pensado para mostrar a continuidade da prática de violações aos direitos humanos durante a 39 Audiências Públicas Além dos Testemunhos da Verdade, a agenda pública da Comissão se organiza mediante a realização de outras atividades, onde podemos distinguir Audiências Públicas, Seminários, Diligências, Jornadas nas Universidades, dentre outras. Militares Perseguidos na Ditadura Em parceria com a Comissão Nacional da Verdade, a CEV-Rio realizou três audiências públicas sobre os militares que foram perseguidos. Em dois dias de oitivas, 12 e 13 de agosto de 2013, foram ouvidos militares que resistiram ao regime ditatorial de 1964 e, por isso, foram presos, torturados, expulsos e perseguidos pelas três forças armadas, como Joaquim Aurélio de Oliveira e Wanderlei Silva, dois ex-marinheiros, ambos associados hoje à União de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA), e José Bezerra da Silva e Belmiro Demétrio, ambos ex-militares da Aeronáutica, que relataram as torturas e perseguições que sofreram por serem considerados “subversivos” e apoiadores de Brizola e João Goulart. O papel da Igreja na ditadura militar Outra audiência pública realizada pela Comissão da Verdade do Rio, conjuntamente com a Comissão Nacional da Verdade, aconteceu nos dias 17 e 18 de setembro de 2013, sobre o papel da igreja durante a ditadura militar. O professor e bispo emérito da Igreja Metodista do Rio de Janeiro, Paulo Ayres Mattos –, líder ecumênico, que deu abrigo a refugiados do Cone Sul que procuraram o Brasil nos anos 70 após os golpes militares no Chile, no Uruguai e na Argentina – foi um dos depoentes. Além de Paulo Ayres Mattos prestaram depoimento as ex-presas políticas Jessie Jane e Letícia Contrim e os ex-presos Marcos Arruda e Zwinglio Motta Dias, cujo irmão, Ivan Motta Dias, é desaparecido político. Na ocasião foi feita uma homenagem póstuma ao exdeputado Lysâneas Maciel, que teve seu mandato cassado pela ditadura, e a Herbert de Souza, o Betinho, ex-líder da Juventude 40 41 Universitária Católica e da Ação Popular, além de exilado, durante a ditadura, que se tornou um líder na luta pelos direitos humanos após seu retorno ao Brasil. Caso Atentado da OAB Para marcar os 33 anos do atentado à OAB, que matou a secretária Lyda Monteiro, a CEV-Rio, a Comissão Nacional da Verdade e o Nucleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, coordenado pelo membro da CEV-Rio João Ricardo Dornelles, realizaram a audiência pública “Caso Atentado da OAB” no dia 27 de agosto de 2013, na PUC-Rio. Dona Lyda Monteiro, secretária da OAB morreu ao abrir uma cartabomba endereçada ao ex-presidente da OAB carioca, o advogado Seabra Fagundes. Na ocasião da audiência o advogado Seabra Fagundes e o filho de Lyda, Luiz Fellipe Monteiro, prestaram o seu testemunho. A suspeita é a de que o envio da carta-bomba, ocorrido em 27 de agosto de 1980, tenha sido uma tentativa de forjar um ataque de grupos de esquerda. Caso Norberto Habegger Último depoimento público dado por dom Waldyr Calheiros, antes de sua morte, para as equipes das comissões Nacional, Estadual e Municipal da Verdade Crédito: Thiago Vilela/CNV O ponto alto da programação foi a exibição do depoimento, prégravado com a presença de Nadine Borges, membro da CEV- Rio, na casa de dom Waldyr Calheiros, bispo emérito da diocese de Volta Redonda. A cidade que, durante o regime militar, sofreu intensa repressão, por conta do atuante movimento sindical, teve na figura de dom Waldyr, um importante aliado contra as violações perpetradas pelos militares. “Uma ditadura é uma coisa que não pode durar muito. Um dia é um ano de estrago”, disse dom Waldyr que viria a morrer meses depois de dar esse testemunho aos 90 anos de idade. 42 Foto de Andres Habegger com o pai, o jornalista Armando Habegger, que desapareceu no Rio de Janeiro em 1978 Crédito: Arquivo pessoal 43 Outra audiência pública realizada na CEV-Rio foi sobre o Caso Habegger. Andrés, filho do jornalista argentino Norberto Armando Habegger, que desapareceu no Rio de Janeiro em 1978, prestou depoimento à Comissão da Verdade do Rio e à Comissão Nacional da Verdade em 30 de novembro de 2013. Habegger é um dos 106 casos de desaparecimento de latino-americanos que estão sendo investigados pela justiça argentina na chamada Operação Condor. Como resultado das investigações empreendidas na Argentina, Andrés revelou nesta audiência o nome de três militares argentinos - Enrique José Del Pino, Alfredo Omar Feito e Guillermo Victor Cardozo – que seriam os responsáveis pela prisão, no Rio de Janeiro, de Norberto Habegger, que teriam tido a ajuda da repressão brasileira para capturá-lo. Na ocasião, a CEV-Rio entregou para a consulesa Alana Lomónaco, representante do governo da Argentina, um documento produzido pelo Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), e disseminado para todo o sistema de repressão, datado de agosto de 1977. O informe, sobre a repressão aos Montoneros, comprova a existência de uma rede de informações entre as ditaduras do Cone Sul. O documento era inédito para a família e para o governo argentino. Após as declarações de Andrés, a CEV- Rio ouviu do torturador Paulo Malhães informações sobre perseguições e prisões de argentinos na cidade do Rio de Janeiro. Os fatos foram comunicados ao Governo Argentino e as investigações relativas à Operação Condor podem ser determinantes para comprovar o envolvimento desse e de outros agentes no desparecimento de Norberto Habegger. Caso Raul Amaro Com a entrega, em 5 de dezembro de 2013, do relatório Raul Amaro Nin Ferreira, fruto da pesquisa dos sobrinhos de Raul Amaro e do projeto Armazém Memória, a Comissão da Verdade do Rio abriu uma nova linha de investigação: a possibilidade de tortura dentro do Hospital Central do Exército. Raul Amaro foi preso em uma blitz da Polícia do Exército, em Laranjeiras, morrendo, onze dias depois, no HCE. O relatório reúne o acervo documental produzido pela família e revela documentos inéditos dos órgãos da repressão, assim como depoimentos de parentes e amigos de Raul Amaro. 44 45 Casos solucionados pela CEV-Rio e em andamento Chacina de Quintino: 8985 – Um Número para Não Esquecer Arte: Marcelo Santos/SEASDH 46 47 A Chacina de Quintino, episódio pouco conhecido da ditadura militar, foi um dos casos investigados pela Comissão da Verdade do Rio. Depois de 42 anos, a versão oficial foi desconstruída. Antônio Marcos Pinto de Oliveira, Ligia Maria Salgado Nóbrega e Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, militantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), não foram mortos em uma troca de tiros. Eles foram chacinados sem esboçar nenhuma reação. A pesquisa se deu a partir da localização do documento que relatava a operação, elaborado pela equipe do Dops, de um conjunto de fotos dos corpos, feitos pelos peritos do Instituto Carlos Éboli, e os laudos cadavéricos, além de entrevistas com os vizinhos da vila de número 8985, localizada na Avenida Suburbana, onde aconteceu a chacina. Os ferimentos que as imagens exibiam se mostraram pouco condizentes com a versão sustentada pela polícia, a de troca de tiros, e os laudos cadavéricos não registraram resquícios de pólvora nas mãos das vítimas. A entrevista com os vizinhos, que, num primeiro momento, se mostraram receosos ao falar sobre o assunto, foi de extrema valia, pois revelam incongruências entre a hora do tiroteio e a do episódio, visto que todos relatam que a polícia já estava no local desde o fim da tarde. Depoimento dos vizinhos “Era polícia ali, polícia do exército. Entraram no condomínio e aí aconteceu, a gente só ouvia os barulhos de tiro (...). Era cedo isso, coisa de nove horas da noite Tinha muita polícia. Acho que era polícia do exército, não sei. Mas era muita polícia”. (Vizinho 1, 54 anos) “Era um entra e sai danado, mas a gente não sabia o que era. Estouraram um [outro aparelho] aqui nessa rua também e outros do bairro, mas por quê? Porque tinha saída dos dois lados, era estratégico. Estava todo mundo dormindo, foi de dez horas em diante. Foi tudo bem caladinho, mas a polícia chegou aqui na janela mandando a gente se proteger e ficar debaixo da cama, porque eles [as vítimas] podiam ter munição também e atirar, mas era muita gente, eles não podiam” (Vizinho 2, 78 anos) Documento oficial sobre a comunicação do episódio ao Dops foi enviado às 00h20, mas vizinhos e jornais da época, como Correio da Manhã e Folha de S. Paulo, falam do acontecido às 21h15 e 23h15, respectivamente. Crédito: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro 48 “Acho que eram dez horas da noite, os policiais vieram (...). Uma moça muito feia com fundo de garrafa, de trancinha. Aí quando ela morreu ela era linda, mas ela se fantasiava de feia né (...). O tiroteio comeu, o tiroteio comeu. A polícia que atirava. Quando eles [as vítimas] viram que o negócio estava assim, tentaram entrar na casa 70 lá por trás, que tinha muito caminho, e eles queriam fugir por trás, por essa rua. E a polícia metralhou. Agora trocou a janela, que era de madeira e tava cheia de buraco de bala até pouco tempo. E essa moça que parecia que era feia, ela veio assim se rendendo. Aí já viu né? [Faz som de tiro] e ela caiu ali. Caiu ali onde tem a garagem. Então foi uma coisa 49 terrível (...). Então ficou meses as pessoas ali tomando conta. Não, eles não reagiram, não deu tempo. Eles [polícia] esperaram anoitecer, ali onde tinha um muro. Eles [vítimas] já saíram mortos” (Vizinha 3, 69 anos). local foram recolhidos corpos de duas mulheres e um homem, com as guias 1, 2 e 3. Wilton, portanto, não foi vítima da Chacina de Quintino. “Ali era um terreno, onde é esse edifício (...). Eles chegaram umas sete horas da noite, mais ou menos. Eu ia até viajar no dia seguinte, era uma quarta-feira da semana santa. Nós só escutamos aquele tiroteio. A minha irmã que estava aqui comigo, chegou na janela e o policial do DOPS disse: “fecha a janela e não sai!” (...).Tem a Rua Manoel da Nóbrega, lá eles [policiais] pegaram uns. Mataram uns lá e trouxeram um, todo “estrupiado”, todo ferido pra cá. Foi o que disse onde era. Ouvi dizer que eles jogavam lá de cima cá pra baixo [os corpos], mas eu não vi nada”. (Vizinha 4, 84 anos) O resultado desse trabalho foi apresentado, em um Testemunho da Verdade, em 29 de novembro, quando foram ouvidos familiares e amigos de vítimas, como Fátima Setúbal, irmã de Antônio Marcos Pinto de Oliveira, Iara Lobo Leite, filha de Maria Regina, Francisco Nóbrega, irmão de Lígia Maria Salgado, e Lília Ferreira Lobo, amiga de Maria Regina, além do ex-militante da VAR-Palmares, Além dos vizinhos, a equipe da CEV-Rio entrevistou o médicolegista Valdecir Tagliare, que foi o responsável por assinar o óbito das vítimas. Ele revela que os corpos “eram jovens demais, bem vestidos, visivelmente de classe média. Totalmente distinto dos corpos que costumávamos examinar até então”. Ele afirma que os corpos apresentavam esmagamento total das mãos e parte dos braços o que comprovaria os golpes causados por “armamento pesado”. Ele contou ainda que o laudo enviado para a direção, como era o procedimento, foi adulterado. “Só tive acesso ao microfilme anos mais tarde”. Por fim, a pesquisa se debruçou sobre a afirmação de que Wilton Ferreira seria mais uma vítima da Chacina de Quintino, conforme fontes atuais de pesquisa, como a publicação “Direito à Memória e à Verdade”, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. A investigação encontrou o livro de diligência do Dops com o comunicado posterior ao de Quintino, exatamente às 04h. Este documento informa que o estouro do aparelho de Cavalcanti foi feito pela mesma equipe de Quintino, que fica a cerca de 10 minutos de distância. Wilton foi morto e removido para o IML com a guia nº4. O memorando 694 do delegado do Dops ao diretor do IML solicita que funcionários do órgão se dirijam ao instituto para fotografar e colher as impressões digitais dos cadáveres de duas moças e dois homens, recolhidos com as guias 1, 2, 3 e 4. Porém, o documento oficial do Dops, comunicando o acontecido em Quintino, diz que no 50 Memorando do delegado do Dops solicita que funcionários se dirijam ao IML para fotografar e colher as impressões digitais dos cadáveres de duas moças e dois homens. Porém, o documento oficial do Dops diz que no local foram recolhidos corpos de duas mulheres e um homem. Crédito: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro 51 Adauto Dourado de Carvalho, que reconheceu o corpo de Antônio Marcos no IML. O texto de seis páginas assume pela primeira vez o que os militares sempre negaram: que Rubens Paiva foi “detido no QG da 3ª Zona Aérea e de lá conduzido para o DOI” Crédito: Arquivo Nacional (Código ARJ-ACE 446-71) “Minha voz, embargada neste momento, representa, também, além da minha própria, algumas vozes que foram caladas à força durante os anos de repressão da ditadura militar”, disse Fátima Setúbal. A fala de Iara Lobo seguiu a mesma linha: “Temos a consciência de que as nossas histórias de vida e de morte, transcorridos 42 anos, não podem ficar ocultas e impunes. Pois hoje são a história do Brasil”. Caso Rubens Paiva Um ponto de destaque nas atividades da Comissão da Verdade do Rio foi derrubar e desmascarar a versão mantida pelos militares de que o ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, preso no dia 20 de janeiro de 1971 e levado para o DOI no quartel do 1º Batalhão da Polícia do Exército (1º BPE), foi sequestrado na madrugada do dia 22 de janeiro, por militantes da esquerda. Na versão mentirosa mantida pelo Exército, durante 43 anos, ele estava em um Volkswagen do DOI, em uma diligência com o então capitão Raymundo Ronaldo Campos e os sargentos Jaci e Jurandyr Ochsendorf e Souza (que são irmãos) quando o carro foi abordado por dois outros veículos e houve intensa troca de tiros. A falsa versão foi sustentada para esconder os reais motivos do desaparecimento de Paiva: sua morte sobre tortura dentro do quartel da PE na Rua Barão de Mesquita. Para derrubá-la definitivamente, a CEV-RIO levou cerca de dez meses conversando com o oficial envolvido na história, o hoje coronel reformado Raimundo Ronaldo Campos, até convencê-lo a contar como se deram os fatos naquela madrugada. Esse agente da repressão também prestou depoimento ao Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Em um depoimento prestado ao presidente da Comissão Wadih Damous e ao assessor Marcelo Auler, em 18 de novembro de 2013, ele confessou, pela primeira vez, que na noite do dia 21 para 22 de janeiro de 1971, em dado momento, sem se lembrar da hora exata, o chefe do setor de operações que estava de plantão, no caso, o Major Francisco Demiurgo Santos Cardoso, o chamou e disse, “olha, você 52 vai pegar o carro, levar em um ponto bem distante daqui, vai tocar fogo no carro para dizer que o carro foi interceptado por terroristas e vem para cá”. Raimundo Ronaldo Campos chegou a questionar seu superior perguntando o porquê desta operação e ouviu como resposta que era “para justificar o desaparecimento de um prisioneiro”. Nesta hora, o major Demiurgo não lhe deu o nome do prisioneiro e só depois, quando voltou ao quartel e preencheu o Mapa de Missão, é que foi informado de que se tratava de Rubens Paiva. A revelação ganhou importância ao por fim à farsa do suposto sequestro. O coronel Ronaldo acabou sendo o segundo oficial do 53 Depoimento do Coronel Paulo Malhães O informe de nº 70, classificado como “confidencial”, é expedido pelo SNI/ARJ (Área do Rio de Janeiro), em 26 de janeiro de 1971, ou seja, apenas seis dias após a prisão do deputado Rubens Paiva, já atestava, por metáfora, a sua morte. O texto diz (com erro gramatical): “À SS-16, estas cartas, apesar do que já ocorreu, é interessante que sejam analisadas.” Crédito: Arquivo Nacional (Código ARJ-ACE 446-71) Quatro meses depois de ouvir a confissão do hoje coronel Ronaldo, a CEV-Rio conseguiu levantar o destino dado ao corpo do ex-deputado Rubens Paiva. A revelação, em 11 de março de 2014, em um segundo encontro (o primeiro ocorreu em 18 de fevereiro) com Nadine Borges e Marcelo Auler, membro e assessor da comissão, partiu do coronel reformado do Exército Paulo Malhães. Torturador confesso, na ditadura militar ele foi um dos principais expoentes do Centro de Inteligência do Exército (CIE), com o codinome de “Dr. Pablo”. Equipe da CEV-Rio esteve duas vezes com o coronel Paulo Malhães, que, posteriormente, prestou depoimento público à CNV Crédito: Marcelo Oliveira/CNV Em um primeiro momento, como esclareceu, o corpo foi enterrado no Alto da Boa Vista, em uma iniciativa dos militares do DOI. Pouco tempo depois, ao perceberem que uma obra de calçamento da estrada ameaçava revelar os restos mortais ali enterrados, houve o translado do que restou de Rubens Paiva para um terreno na Barra da Tijuca, ainda por iniciativa dos militares do DOI-CODI, com a possível ajuda de policiais civis. Malhães participou do desenterro e o corpo, ainda em estado de putrefação, foi transportado, por sua equipe em um saco impermeável e jogado em um rio – provavelmente o Piabanha – na região de Itaipava, região serrana do Rio de Janeiro. Exército a confirmar a morte do ex-deputado dentro da instituição militar. Anteriormente, o tenente-médico Amílcar Lobo já admitira esta hipótese, em depoimentos prestados no Inquérito Policial Militar (IPM), à imprensa e na Auditoria Militar, ao confirmar ter atendido, durante uma madrugada, a um preso, em uma das celas do Pelotão de Investigação Criminal (PIC) do 1º BPE. 54 55 Segundo as explicações dadas durante o depoimento, no saco foram colocados alguns pesos de forma calculada para, ao mesmo tempo, não permitir que ele boiasse, nem tampouco ficasse no fundo, mas pudesse ser levado pela corrente. O Piabanha desagua no Rio Paraíba que, por sua vez, corre em direção ao oceano Atlântico. A mesma prática do corpo ensacado e jogado n’água, segundo relatou Malhães, foi utilizada após o assassinato de Onofre Pinto no massacre de Medianeira em Foz do Iguaçu: seu corpo foi jogado nas águas de forma a que fosse levado para a foz do Rio, já no Uruguai, bem como na operação limpeza da Guerrilha do Araguaia. Nas suas revelações, os corpos das vítimas da ditadura militar que “precisavam desaparecer” para que ocultassem os assassinatos, tinham, em geral, as arcadas dentárias quebradas e as pontas dos dedos cortados para impossibilitar um futuro reconhecimento, caso viessem a ser encontrados. Quando jogados ao mar ou em rio, tinham o ventre cortado para evitar que inchassem e viessem a boiar. Técnicas adotadas, inclusive, junto aos militantes do PCdoB mortos na guerrilha do Araguaia. O depoimento de Malhães detalhou práticas adotadas pelos oficiais do Centro de Inteligência do Exército de “abrirem” o que chamou de “aparelhos”, ou “casas de conveniência”, para as quais os presos eram levados sem que houvesse registro oficial de suas prisões, como ocorria quando chegavam a uma unidade militar. A prática teve início com a prisão de militantes do PCBR, período em que os militares procuravam o líder do partido, Apolônio de Carvalho. E assim surgiu a ideia, logo encampada por outros oficiais do CIE, de se criar um “aparelho” para interrogar presos, muitas vezes debaixo de torturas físicas ou psicológicas. Coube ao então coronel Coelho Neto, chefe de gabinete do general Milton Tavares, comandante do CIE, conseguir com o seu amigo, antigo interventor de Petrópolis, Fernando Aires da Mota, o empréstimo da casa da Rua Arthur Barbosa 668, no bairro do Caxambu, pertencente ao alemão Mário Lodders, um simpatizante da ditadura militar. Ali passou a funcionar o aparelho que mais tarde ficou conhecido como “Casa da Morte”. Não foi o único “aparelho” utilizado, mas o principal deles. 56 Nela, sete oficiais do CIE - dos quais Malhães identificou seis, a saber: capitães Paulo Malhães, Freddie Perdigão Pereira, José Brant Teixeira, o major Rubem Paim Sampaio, o coronel Orlando de Souza Rangel, o Dr. Pepe, o tenente-coronel Ciro Etchegoyen e o militar de codinome Dr. Guilherme – passaram a conduzir presos na tentativa de transformá-los em “infiltrados”, isto é, retornarem ao convívio de suas organizações de esquerda para repassarem informações das mesmas aos encarregados da repressão. Quando o preso não concordava em colaborar, “seguia destino”, eufemismo utilizado por Malhães para explicar o desaparecimento, a morte do prisioneiro. A revelação da existência deste aparelho, mantido com verba oficial do Exército, só aconteceu porque a militante do VAR-Palmares, Inês Etienne Romeu, ali mantida ilegalmente durante três meses em 1971, sem que sua prisão fosse oficializada, ao deixar a Casa na condição de “infiltrada” entregou-se à Justiça Militar, tornando-se uma presa oficial e evitando que viesse a ser assassinada. Ainda assim, foi somente em setembro de 1979, depois de cumprir pena de prisão e ser anistiada, que ela fez a denúncia sobre o aparelho clandestino de Petrópolis ao então presidente da OAB, Eduardo Seabra Fagundes. As declarações de Malhães, que estão reproduzidas na integra na página da CEV-Rio (www.cev-rj.org.br). O resultado, praticamente previsto por ele mesmo, mostrou-se fatal um mês depois de sua aparição em uma audiência pública, quando foi encontrado morto em sua casa. As circunstâncias da morte estão sendo investigadas pela Polícia Civil e acompanhadas pela Polícia Federal, mas as autoridades desse processo que corre em segredo de Justiça apontam para a hipótese de latrocínio em um cenário ainda pouco esclarecido e que não afasta a hipótese de possível eliminação. As revelações do Coronel Malhães demonstraram aspectos parciais de uma “guerra”, em que ele se apresentou como um dos principais personagens de eliminação dos inimigos e adversários do regime de exceção que só desapareceriam com a morte psicológica. É temerário considerar e ler esse depoimento sem imaginar a possibilidade 57 de uma armadilha, uma vez que, por mais verossimilhança que tenham, estas informações podem ter uma dimensão exagerada e, dessa forma, se prestariam para almejar um determinado resultado gerando um registro histórico que ele, o torturador, não conseguiria sozinho. Nestas pastas, com cerca de 800 documentos cada, se encontram descritas – frutos da “arapongagem” praticada pela repressão, na época – as ações guerrilheiras organizadas pelo MR-8. Sob os codinomes “Henrique” e “Paulo”, Stuart participou de várias, chegando a sair ferido no joelho, em uma troca de tiros com a Polícia. Mesmo que se comprove a verdade dos fatos descritos pelo torturador confesso, o que só será possível com a abertura dos arquivos das Forças Armadas, o que se busca é dar conhecimento e lutar para o esclarecimento desses fatos. Tais ações, o levaram a interagir com uma parcela expressiva da esquerda. A perseguição e queda de Stuart se deveram, além do seu papel de liderança, ao fato de ter dado proteção a Carlos Lamarca, considerado um desertor, pelos militares. Isto fez com que fosse transferido para ele todo o rancor dos oficiais das várias Forças, que na época agiam de forma conjunta na busca aos dissidentes do regime. Caso Stuart Edgard Angel Jones (em andamento) Todas as vezes que se elabora uma lista com os militantes de esquerda que resistiram à ditadura e desapareceram em consequência de sua luta, o nome de Stuart Edgard Angel Jones é um dos primeiros a ser citado. Até então, sua morte é descrita em circunstâncias brutais, com base numa carta deixada pelo ex-guerrilheiro, integrante da VPR, (Vanguarda Popular Revolucionária), Alex Polari de Alverga, preso na véspera de sua queda, em 14 de maio de 1971, segundo testemunhos da época. Alex foi um dos responsáveis pelo sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben. Ele descreve que Stuart teria sido amarrado a um jipe no pátio interno da Base Aérea do Galeão, e arrastado, aspirando gás do cano de descarga do veículo. Agonizante, foi levado para a última das celas destinadas aos presos políticos que lá se encontravam. Seus gemidos e pedidos por água vararam a madrugada e foram ouvidos por Maria Cristina de Oliveira, que se encontrava na cela ao lado. Já amanhecendo, ela ouviu a movimentação para a retirada do corpo de Stuart. Nenhuma explicação foi fornecida sobre o seu desaparecimento, tampouco foi esclarecido o destino dado aos seus restos mortais. Em seus trabalhos na busca pelos desaparecidos políticos, a CEVRio tem se debruçado sobre o caso de Stuart. Foram consultadas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 20 pastas relacionadas às suas atividades na Dissidência Guanabara, que mais tarde viria a se transformar na facção denominada MR-8, da qual era o líder. 58 Imagem do laudo de local – encontro de ossada em 18 de outubro de 1971 na cabeceira da pista do Aeroporto Santos Dumont Crédito: Instituto de Criminalística Carlos Éboli 59 Foram ainda consultados mais de 80 documentos no Arquivo Nacional, que detém parte do registro das atividades do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), tido como órgão responsável pelo desaparecimento do militante. Sempre apoiada na documentação pesquisada e nas indicações da família, a CEV- Rio ouviu em torno de 30 pessoas sobre o caso. Também foi empreendida uma busca por fotos e laudos no Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE). Ali foi encontrado um envelope contendo uma sequência de quatro negativos, fruto de uma perícia de local, datada de 18 de outubro de 1971, o ano da morte de Stuart Edgard Angel Jones. Revelados, eles exibiram o achado de uma ossada, na ponta de pedras da cabeceira da pista do Aeroporto Santos Dumont. Aeronáutica, é apontado como envolvido, na carta que Alex Polari endereçou à estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart, onde revelava têlo visto ser torturado na Base Aérea do Galeão. Coincidentemente, é o nome do oficial que aparece nos documentos de recebimento de carros apreendidos com o também integrante do MR-8, Zaqueu José Bento, preso dias antes da queda de Stuart, pelo CISA. A documentação segue direto para o comandante da Base, João Paulo Bournier, apontado na carta de Alex, como o mandante da morte de Stuart, que hoje integra a lista dos desaparecidos. Supõe-se que seu corpo tenha sido jogado em alto-mar, ou enterrado como indigente. As investigações prosseguem. Uma das pessoas entrevistadas sobre o desaparecimento de Stuart foi o coronel reformado Lúcio Valle Barroso, hoje com 80 anos, que admitiu, pela primeira vez, o envolvimento do CISA na prisão do ex-guerrilheiro. Ele contou que o sargento Abílio Corrêa de Sousa, codinome Pascoal, teria sido o responsável, tanto pela prisão de Rubens Paiva, quanto a de Stuart. Revelou, ainda, que costumava levar presos políticos para tomar banho de mar na cabeceira da pista, compartilhada entre o 3º Comando Aéreo Regional e a operação comercial do Santos Dumont. Exatamente o local onde foram recolhidos, os ossos, pela Polícia, em outubro de 1971. O laudo da ossada, encontrada entre as pedras que protegem a pista da ação do mar, é assinado pelo perito Jaques Wygoda. Procurado pela Comissão, ele chegou a comentar ter emitido vários laudos para “suicidados” dentro do DOI-CODI, da Rua Barão de Mesquita. As investigações rastrearam, ainda, vôos de aviões de pequeno porte saídos do aeroporto do Galeão, em direção a campos de pousos militares, em outros estados. Lúcio Barroso admitiu que o CISA usou esse tipo de aeronaves no transporte de presos políticos. O nome de Lúcio Valle Barroso, então capitão intendente da 60 61 Diligências Outro mecanismo utilizado pela comissão para a investigação e posterior comprovação de violação de direitos humanos são as diligências, que são visitas aos locais de repressão. Esse instrumento funciona como um dispositivo legal de visitação e reconhecimento dos locais que foram centros de torturas na ditadura militar. Até o presente momento, a CEV-Rio realizou diligências a três centros de repressão da ditadura: ao DOI-Codi, onde hoje funciona o 1º Batalhão da Polícia do Exército, na Tijuca, ao DOPS, no Centro e a Vila Militar, em Deodoro. DOPS No âmbito do GT DOPS realizou-se uma diligência em 15 de julho de 2013, quando se buscou identificar e registrar possíveis características arquitetônicas e de uso das instalações durante o período da ditadura que porventura ainda estivessem preservadas. Nesta incursão, documentada pelo GT, foram encontrados, ainda, arquivos do período da repressão política, que estavam em avançado Documentos, datados de 1940 a 2011, encontrados no Dops, dão conta, por exemplo, das listas de escala de serviço e de operações policiais, com os funcionários que trabalhavam na Polícia Civil no período da ditadura militar Crédito: Thiago Régis/GT DOPS 62 63 estado de abandono e deterioração. A partir desta primeira visita, outras cinco foram feitas para dar continuidade ao trabalho de preservação da memória do DOPS. Diante da situação do prédio e do acervo, a GT DOPS iniciou dois processos com o intuito de garantir a preservação destes patrimônios: o primeiro junto ao INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) e o segundo junto aos arquivos estadual (APERJ) e nacional (Projeto Memórias Reveladas). Ambos os processos desencadearam a troca de informações interinstitucionais e a ida de equipes técnicas para avaliar os patrimônios em risco. Com relação ao estado de conservação do prédio e suas características históricas, o INEPAC demonstrou grande empenho na tentativa de preservar o bem, apresentando o processo de tombamento do prédio, o esforço de sua equipe ao longo dos últimos anos e as dificuldades enfrentadas no acompanhamento das obras feitas no prédio, executadas pela empresa WTorres e, aparentemente, fruto de um Termo de Ajustamento de Conduta da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro com a empresa estatal Petrobrás. Quanto à documentação, ao inspecionar o acervo as equipes técnicas dos arquivos identificaram: certificados de registro de armas e explosivos, bem como registros e portes de armas das décadas de 1940 a 2011; escalas de serviços e outros documentos referentes ao Departamento Pessoal, fichas com pareceres sobre idoneidade moral e profissional da segunda metade da década de 1960 e pacotes fechados em sacolas plásticas e caixas com informações sobre pessoas e operações policiais. As equipes constataram, ainda, a necessidade de higienização de cada item para que ele possa ser manuseado para uma eventual consulta ou identificação mais minuciosa. Entendendo que a manutenção do acervo no prédio prejudica a conservação do mesmo e atrapalha a continuidade das obras de restauração parcial do edifício, os órgãos aqui citados e a Superintendência Estadual de Museus da Secretaria de Cultura verificaram a possibilidade de remanejar os papéis para um local mais apropriado. Tendo em vista que a transferência para as dependências do APERJ foi descartada em razão da falta de espaço 64 na sua sede, ainda não foi encontrada uma solução para o problema. Com relação ao prédio, o GT ainda busca meios para garantir a preservação de suas características e uma destinação para o prédio que promova políticas de memória e direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro. Contudo, tendo em vista que a posse do prédio ainda é da Polícia Civil, a ingerência do GT nesta seara se vê bastante limitada. DOI-Codi Foram feitas três tentativas de visitar as instalações do DOICodi. E apenas na terceira, com o apoio da Comissão de Verdade e Memória do Senado Federal, após longa negociação feita pela Comissão Nacional da Verdade e pela Comissão da Verdade do Rio com o ministério da Defesa e o Comando do Exército, que foi possível realizar a diligência no local. Na terceira tentativa (23 de setembro), membros da CEV-Rio, senadores João Capiberibe (PSB-AP), Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), as deputadas Erundina e Jandira Feghali conseguiram visitar o local, que foi o principal centro de torturas na ditadura militar. A visita foi considerada pelos integrantes da comitiva uma importante iniciativa para reconstituir os fatos que lá se passaram, bem como uma primeira iniciativa para a transformação do local em centro de memória. Após três tentativas fracassadas, a CEV-Rio consegue realizar diligência ao DOI-Codi, quando foi entregue uma solicitação oficial de acesso à documentação do Exército ao Comando Militar do Leste Crédito: Lula Aparício 65 Esse dia foi marcante para Álvaro Caldas, que esteve no DOICodi em momentos distintos da sua vida, as primeiras vezes como “subversivo” e “prisioneiro”, em suas palavras, para depois voltar duas vezes “em missão oficial como membro da Comissão da Verdade do Rio para fazer um reconhecimento de suas instalações”. Foi lá que o ex-preso político passou por diversas seções de tortura, com choque, pau de arara e afogamento. Após diligência ele afirmou que, mesmo com algumas mudanças, é possível reconhecer o local: “O DOI-Codi foi o pior local que passei na vida. O de maior sofrimento e dor, mas também de alegrias, quando um confortava o outro. Volto 43 anos depois da primeira vez que vim para cá. Na primeira, em fevereiro de 1970, preso num ponto de encontro na rua, em Vaz Lobo, cheguei algemado, no banco de trás de um Aero Willis. Na segunda, três anos depois, entrei de capuz, estendido no piso traseiro de um Corcel, depois de sequestrado em casa. Em ambas, meus captores me conduziram por um portão lateral, entrada exclusiva para as dependências do DOI-Codi, situadas no fundo do pátio interno do quartel. A estrutura interna sofreu algumas mudanças, mas é possível reconhecer as salas onde aconteciam as torturas, que eram a rotina do DOI-Codi. Outros portões precisam ser abertos e esse foi apenas o primeiro. É necessário saber onde estão os mortos e desaparecidos e também ouvir os torturadores”, disse, emocionado Álvaro. década de 70, ela teria se atirado nos trilhos do metrô por não ter aguentado a pressão. No dia seguinte foi realizada, no Arquivo Nacional, a audiência pública sobre tortura e mortes na Polícia do Exército na Vila Militar que se debruçou sobre os casos do sargento da PM da Guanabara, Severino Viana Colou, e do estudante de Medicina Chael Charles Schreier, ocorridas em maio e novembro de 1969, na companhia de Polícia do Exército da Vila Militar. Prestaram depoimento, na ocasião, Silvio Da-Rin, Francisco Calmon, Amílcar Baiardi e Rosalinda Santa Cruz. Na ocasião, prestou depoimento o coronel reformado do Exército Hargreaves Figueiredo Rocha, de 82 anos, que negou ter sido um dos autores do laudo de necropsia produzido dentro do Hospital Central do Exército (HCE). Vila Militar Outra diligência, feita conjuntamente com a Comissão Nacional da Verdade, em 23 de janeiro de 2014, permitiu reconhecer, apesar das inúmeras mudanças, as celas e as salas de tortura que funcionavam na Vila Militar, em Deodoro. Silvio Da-Rin foi um dos ex-presos político que acompanhou a visita. Ele foi detido em 1969 e conseguiu identificar onde eram as celas, solitárias e coletivas, e o refeitório, onde os detidos recebiam a visita de familiares e advogados. Outro ex-preso que participou da visita foi Francisco Calmon Ferreira Silva. Na ocasião, ele mencionou o nome de 18 companheiros que foram levados para Vila Militar, destacando entre eles o de Maria Auxiliadora que ficou 42 dias presa no local. Segundo Calmon, na 66 67 Seminários Seminário DOPS: Ocupar a Memória – Um Espaço em Construção A principal atividade pública do GT DOPS em 2013 foi a realização, nos dias 4 e 5 de novembro, do Seminário DOPS: Ocupar a Memória – Um Espaço em Construção, que abordou o histórico de repressão e resistência do prédio. No primeiro dia de Seminário, no painel sobre Usos do Prédio Através do Tempo, os temas discutidos foram em torno da política de repressão que perpassa a Primeira República, o Estado Novo e a Ditadura Militar. Essa mesa reuniu os professores Marcos Brêtas, Anita Prestes e Jessie Jane Vieira de Souza, do Departamento de História da UFRJ, além da Mãe Meninazinha de Oxum, do Terreiro Ilê Omolu Oxum. Nessa mesa discutiu-se que o prédio do DOPS era um espaço que, antes mesmo do golpe de 64, era usado pelos aparelhos de segurança do governo. Em 1910, por exemplo, foi criado ali a sede da Polícia Central e, ainda no período Vargas, com a perseguição às religiões de matrizes africanas, inúmeros terreiros foram invadidos pela polícia. As imagens apreendidas eram levadas para o Dops e esse material, até hoje, está em posse da polícia, no prédio do antigo IML. “Já procuramos a polícia para devolução, porque todas aquelas imagens não deveriam estar em um museu, mas nas nossas casas e terreiros. A polícia trata como acervo, mas para a gente é sagrado”, explicou Mãe Meninazinha de Oxum. Essa discussão teve continuidade no segundo dia, no painel sobre Construção e Gestão de Espaços de Memória, no qual gestores/ militantes trouxeram suas experiências a frente de Espaços de Memória no Rio de Janeiro, Brasil e América Latina. Marcelo Cunha apresentou o projeto museológico do Museu AfroBrasileiro da UFBA, pioneiro na repatriação de imagens da cultura afro-brasileira apreendidos pelas forças policiais: “Na Bahia vivemos 68 69 um cenário parecido com esse do Rio. O candomblé era criminalizado e visto como prática de feitiçaria e falsa medicina. Os objetos que não eram destruídos, com a invasão dos terreiros, eram levados para a sede da polícia. São esses elementos que compõem, atualmente, o acervo do Museu Afro-Brasileiro. A repatriação é simbólica, o que nos interessa é que essa coleção representa a violência policial e a repressão do Estado”. Suelli Bellato, vice-presidente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, apresentou o projeto do Memorial da Anistia, que está em fase de construção. No local, os visitantes terão acesso aos 72 mil processos de presos, banidos e exilados. Outra experiência apresentada no seminário foi a de São Paulo, com o Memorial da Resistência, que recebe, por ano, cerca de 70 mil visitantes. Desse total, 25 mil são estudantes, sendo a maioria (18 mil) do Ensino Fundamental. Kátia Filipini falou sobre a importância de envolver os ex-presos políticos e seus familiares para, a partir desses testemunhos, estruturar o projeto de centro de memória. período de abertura, já passamos do segredo e da clandestinidade. Ouço dizer que esse já é o momento para pensarmos o que queremos para o Dops”, disse Fabiola Heredia. Calendário de “descomemoração”: 50 anos do golpe 1º de abril de 2014. 50 anos do golpe militar. Para “descomemorar” essa data, a Comissão da Verdade do Rio produziu o “Calendário de Descomemoração do Golpe Civil-Militar: 50 anos de resistência e luta pela democracia, Ditadura Nunca Mais”, em duas versões, digital e impressa, compilando 126 atividades no Rio de Janeiro entre março e maio de 2014, desde debates com ex-militantes políticos e especialistas no tema, lançamento de livros e filmes, até palestras em instituições de ensino (foram, ao todo, 65 escolas e universidades). A mesma preocupação foi apresentada por Cláudia Ribeiro da Silva, do Museu da Maré, iniciativa do Rio de Janeiro. Segundo ela, o Museu da Maré tem forte participação dos moradores. “O museu, fundado em maio de 2006, é um instrumento de resistência e um espaço para se conhecer a história da Maré e de seus moradores. Por isso criamos um fórum para que essa participação seja efetiva. Eles, inclusive, opinam sobre as exposições que montamos”. Por fim, representando o Archivo Provincial de la Memoria de Córdoba, na Argentina, Fabiola Heredia demonstrou as mais diversas e criativas estratégias de atuação de um Espaço de Memória. E ressaltou a importância de ocupar o local, valendo-se de toda sorte de manifestações políticas e culturais: “Essa é uma conversa sobre o tipo de sociedade que queremos. É uma luta para que esses espaços, usados como centros de tortura, sejam recuperados e possam mostrar para o que realmente foram usados. Na Argentina há exemplos de locais como o DOPS que se transformaram em escolas primárias, por exemplo. Isso é feito para manter o silêncio. Mas vivemos um 70 Arte: Marcelo Santos/SEASDH A publicação foi um encaminhamento do Fórum de Participação de fevereiro. O calendário reuniu diversas atividades, não apenas as organizadas pela Comissão da Verdade do Rio, mas de instituições da sociedade civil, além de diversos eventos de comissões municipais e setoriais. 71 Seminário 50 anos do golpe militar: o Brasil que nós perdemos O pontapé inicial dessa extensa programação foi o Seminário “50 anos do golpe militar: o Brasil que nós perdemos”, organizado pela Comissão da Verdade do Rio, o Instituto João Goulart e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), local do evento. O dia não podia ser mais emblemático: 13 de março. Mesma data, 50 anos atrás, do ato que ficou conhecido por Comício da Central e reuniu milhares de pessoas, que esperavam para ouvir o então presidente João Goulart que defenderia as reformas de base propostas por seu governo: agrária, educacional e política. O seminário contou com uma programação extensa e com a presença e participação da ex-primeira dama e viúva de João Goulart, Maria Thereza Goulart, e de seus filhos, João Vicente, presidente do Instituto João Goulart, e Denise Goulart, vice-presidente do órgão. O ato começou com a palestra “O porquê do golpe” de Waldir Pires que foi Consultor-Geral da República em 1964. A programação do seminário contou ainda com debates acerca das reformas educacional, agrária e política. E para encerrar, a mesa sobre “As lutas das ruas: a criminalização dos movimentos sociais e a não responsabilização dos agentes do Estado”. Nomes como o da educadora Nita Freire e João Pedro Stédile participaram da atividade que teve o objetivo de analisar a conjuntura que precedeu o golpe, refletir sobre as permanências e o desafio para a consolidação da democracia. O seminário contou ainda com a participação de Randolfe Rodrigues, Paulo Ribeiro, Daniel Iliescu, Kleybson Ferreira, Rafael Kritski, Fernanda Vieira, Adriano Pilatti e Mauro Iasi. Jornadas de Memória Verdade e Justiça nas Universidades Outras atividades que merecem destaque, durante o Calendário da Descomemoração, foram as Jornadas nas Universidades, nas instituições que ganharam o edital público que a CEV-Rio lançou junto à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). UFRJ, UFF de Volta Redonda, UFRRJ, PUC-Rio, Fundação Getúlio Vargas e IBMEC organizaram sete seminários com o objetivo de esclarecer os objetivos das pesquisas financiadas que auxiliam os trabalhos da CEV-Rio. “Foi Deus que me ajudou a estar aqui neste momento, depois de 50 anos, para uma reflexão sobre o Brasil com que o Jango tanto sonhou”, disse Maria Theresa Goulart no seminário que marcou 50 anos do Comício da Central do Brasil Crédito: Lula Aparício 72 73 Pesquisas FAPERJ/CEV-Rio Esta foi uma ação inédita no que diz respeito às atividades das Comissões da Verdade instauradas no Brasil. O edital público lançado pela CEV-Rio em parceria com a Faperj, teve um investimento total de R$2 milhões, distribuídos entre os sete projetos que ganharam o financiamento do programa de “Apoio ao estudo de temas relacionados ao direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988”. O Fórum de Participação sobre o edital FAPERJ contou com a presença de Caio Almeida, representante da fundação, para explicar o edital publicado em parceria com a CEV-Rio Crédito: Bruno Marins 74 Os projetos aprovados, que auxiliarão os trabalhos da CEV-Rio, mas se estenderão ao prazo de vigência da mesma, foram: “Conflitos por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”, da UFRRJ; “O testemunho como janela: o perfil dos atingidos e a estrutura repressiva do estado ditatorial no Rio de Janeiro a partir de testemunhos dados à comissão de reparação do Estado do Rio de Janeiro”, da UFRJ; “Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar”, da Fundação Getúlio Vargas; “Políticas públicas de memória para o Estado do Rio de 75 Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição”, da PUCRio; “Justiça autoritária? Uma investigação sobre a estrutura da repressão no poder judiciário do estado do Rio de Janeiro (19461988)”, da UFRJ; “A estrutura de atuação do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro durante o período do governo militar e recomendações para políticas públicas de não repetição neste âmbito”, da IBMEC; e, por fim, “O 1º Batalhão de Infantaria blindada do Exército e a repressão militar no Sul Fluminense”, da UFF de Volta Redonda. A cerimônia de mudança de nome foi realizada na própria escola, em 13 de dezembro, 45 anos depois da promulgação do Ato Institucional nº 5 no governo de Costa e Silva, instrumento responsável pelo fechamento do congresso e por suspender a possibilidade de impetração de habeas corpus nos casos de crimes políticos. Mudança do nome da escola Ao invés de Colégio Estadual Presidente Costa e Silva, Colégio Estadual Abdias Nascimento. É assim que a escola de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, passou a ser chamada depois de iniciativa inédita da Comissão da Verdade do Rio, com a colaboração das Secretarias de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos e de Educação. Considerando que ainda existem monumentos, avenidas, ruas e escolas públicas no Estado do Rio de Janeiro que homenageiam ditadores e agentes da ditadura militar, a CEV-Rio considera que a troca de nome cumpre uma função pedagógica sobre a formação de crianças, jovens e de gerações futuras. Legenda: Iniciativa inédita da CEV-Rio mudou o nome de escola em Nova Iguaçu que homenageava ditador Crédito: Wanderson Cruz/SEASDH Neste sentido, a comissão iniciou, em agosto de 2013, um trabalho de sensibilização com os professores e seus 1200 alunos do ensino Médio e Fundamental. Como a escola desenvolvia o projeto pedagógico Saber Étnico Racial (SER), o nome escolhido pela comunidade escolar homenageia Abdias Nascimento, referência na militância do movimento negro, um personagem da nossa história que lutou pela democracia e pela igualdade racial. Abdias foi fundador do Teatro Experimental do Negro e o primeiro deputado federal a dedicar seu mandato à luta contra o racismo. Foi senador e, no governo de Leonel Brizola, nomeado Secretário de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Estado do Rio de Janeiro. 76 77 A Comissão da Verdade do Rio elaborou em parceria com a sociedade civil um conjunto de recomendações à Comissão Nacional da Verdade. Almeja-se que essas ideias sejam incorporadas ao relatório final e, posteriormente, se transformem em políticas públicas capazes de enfrentar e garantir a não repetição das violações de direitos humanos. Todas as recomendações foram construídas com as portas abertas: a melhor forma de pensar nas políticas públicas. Nosso trabalho busca revelar fatos, circunstâncias e autorias dessas violações de Direitos Humanos, bem como identificar os locais que serviram à repressão, mas cabe ao Estado brasileiro assumir para si a responsabilidade de efetivar uma política nacional de não esquecimento após a entrega do relatório final. No Fórum de Participação do dia 05 de setembro de 2014 produzimos um documento com as recomendações enviadas à CNV. Cada uma traz em si aspectos de resistência que acompanham a humanidade ao longo de séculos. O Brasil tem em suas mãos a oportunidade de reformular o currículo das Forças Armadas e incluir no material didático conteúdos que revelem as atrocidades da ditadura. Podemos citar vários exemplos de medidas administrativas como renomear a ponte Rio Niterói que presta homenagem ao ditador Costa e Silva. São questões mais simples como essa ou mais complexas como a revisão da Lei de Anistia que apresentamos nesse relatório parcial. Esse é o único modo de evitar a repetição, e para que essa porta não se feche, cabe à sociedade mantê-la aberta. As novas gerações não conhecerão a história desse país se não souberem exatamente quem, como e a mando de quem tantas violações aconteceram, por exemplo, na famigerada casa da morte em Petrópolis. A busca da verdade é dever do Estado, da sociedade e de cada um de nós. Para descortinar esse passado e exigir políticas de memória, verdade e justiça no estado do Rio de Janeiro, realizaremos plenárias públicas para debater, ouvir e decidir quais serão as nossas recomendações no âmbito da Comissão da Verdade do Rio. Nadine Borges Presidente Interina da Comissão da Verdade do Rio Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2014 78 79 Recomendações para o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade 30 de setembro de 2014 Todas as recomendações sugeridas pela Comissão da Verdade do Rio estão consagradas no art. 3º, VI, da Lei nº 12.528/12, a saber, “recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional”. Este documento foi aprovado pelo Fórum de Participação da Verdade do Rio e contou com a colaboração de parceiros como o projeto Clínicas do Testemunho e o Memórias Reveladas do Arquivo Nacional. Deste modo, expomos abaixo nossas sugestões com o órgão responsável e a justificativa de cada medida de não-repetição. 80 81 1. Criar Espaços de Memória sobre a violência estatal durante a ditadura militar em locais que serviram para prisões e torturas de presos políticos no estado do Rio de Janeiro: DOPS/RJ (Rio de Janeiro), DOI-CODI (Rio de Janeiro), Casa da Morte (Petrópolis), Ilha das Flores (São Gonçalo), Invernada de Olaria (Rio de Janeiro), Ginásio do Caio Martins (Niterói), Ginásio do Clube Ypiranga (Macaé), Batalhão de Infantaria Blindada do Exército (Barra Mansa). 3. Criar uma Política Nacional de Arquivos e incluir os acervos das Forças Armadas: CISA, CIE e CENIMAR, bem como o do Ministério das Relações Exteriores (CIEx) em uma plataforma única em todo o país que inclua todos os documentos dos órgãos do Sistema Nacional de Informações e Contra-informação (SISNI). Órgão responsável: Ministério da Justiça e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Relevância: A localização e o recolhimento dos arquivos são essenciais para o avanço das pesquisas históricas e para o conhecimento sobre esse passado. Além disso, podem fornecer informações importantes para que as famílias e o Poder Público avancem no sentido de esclarecer as circunstâncias em que ocorreram violações e, principalmente, descobrir o paradeiro de desaparecidos políticos. Relevância: Criar espaços de memória significa: construção de memórias coletivas sobre o passado traumático; 99 Sinalização e abertura para o conhecimento da sociedade sobre este período; 99 Reconhecimento do valor histórico e testemunhal destes lugares; 99 Promoção da memória de forma ativa e pedagógica; 99 Ressignificação simbólica desses espaços; 99 Direito à Memória como um direito humano reconhecido internacionalmente; 99 Consolidação democrática e construção do “Nunca mais”. 2. Criar uma Política Pública para o mapeamento e mudança de nomes de ruas, estradas, pontes, praças, logradouros e instituições públicas que levem o nome de agentes da repressão, em especial de ditadores. Órgão responsável: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Relevância: Espaços centrais em diversas cidades como, por exemplo, a Ponte Costa e Silva (Federal entre Niterói e Rio de Janeiro), o viaduto 31 de março (Rio de Janeiro), a Ponte General Emílio Garrastazu Médici (Municipal em Volta Redonda – RJ), sem contar diversas escolas, ruas e praças que homenageiam ditadores e perpetradores de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a democracia e os Direitos Humanos. 82 Órgão responsável: Ministério da Defesa e Ministério da Justiça 4. Localizar e abrir os documentos de órgãos vinculados à repressão política nos estados, em especial os acervos dos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), promovendo seu recolhimento e tratamento técnico nos arquivos públicos e disponibilização no Banco de Dados Memórias Reveladas do Arquivo Nacional. Órgão responsável: Ministério da Justiça e governos estaduais Relevância: A guarda de documentação pública federal cabe ao Arquivo Nacional, onde já se encontram os acervos do SNI, CGI, DSIs, etc. Já os documentos estaduais como, por exemplo, do DOPS devem ser tutelados pelos arquivos estaduais. 5. Ampliar e aperfeiçoar o banco de dados Memórias Reveladas, alimentando-o com informações e representantes digitais dos acervos documentais e orais em posse do Poder Público, cujo acesso deve ser universalizado, facilitado e disponibilizado na Internet, com a criação de polos de acesso em diferentes localidades. Órgão responsável: Presidência da República e Ministério da Justiça Relevância: A maior parte do acervo do DOPS se encontra no Arquivo Público do Estado, mas não está digitalizada, o que dificulta a pesquisa e prejudica a longevidade do material. Outra parte dessa documentação, a CEV-Rio encontrou abandonada e sem indexação 83 no prédio onde funcionou o DOPS. Somado a isso, as comissões municipais, pesquisadores e pessoas interessadas no tema precisam se deslocar até a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro para consultar este acervo. 6. Realizar um pedido de desculpas oficial por parte dos comandantes do Exército, Marinha, Aeronáutica e da Presidência da República, reconhecendo as graves violações de direitos humanos cometidas contra a sociedade brasileira com a presença de ex-presos e familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar. Órgão responsável: Ministério da Defesa e Presidência da República Relevância: O pedido de desculpas do Estado é fundamental para firmar o processo de Justiça Transicional. No âmbito da reparação integral dos atingidos, este pedido demonstra a superação de uma perspectiva meramente pecuniária, compreendendo integralmente os impactos psicológicos e sociais do dano, além de alcançar uma reforma institucional do Estado. Deste modo, o nosso horizonte deve ser um processo de transição que transforme estas instituições para que respeitem e garantam Direitos Humanos, reconhecendo quando eventualmente não os tenha respeitado, como na ditadura militar. 7. Cumprir todos os pontos resolutivos da Sentença do Caso Julia Gomes Lund e outros versus Brasil da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Órgão responsável: Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e Congresso Nacional Relevância: Na sentença do Caso Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Brasil adotasse um conjunto de medidas para garantir os direitos à Memória, à Verdade e à Justiça. O cumprimento em sua totalidade responderia a anseios de familiares e da sociedade civil, além de representar avanço na proteção dos Direitos Humanos no país. A sentença determina que o Estado brasileiro deve, dentre outras medidas: investigar e esclarecer os crimes cometidos por agentes do Estado durante a 84 repressão à Guerrilha do Araguaia, responsabilizando penalmente os perpetradores; encontrar o paradeiro dos restos mortais dos desaparecidos e entregá-los aos parentes; oferecer tratamento médico psicológico às famílias; implementar curso obrigatório e permanente sobre Direitos Humanos em todos os níveis das Forças Armadas e tipificar o crime de desaparecimento forçado. 8. Democratizar os meios de Comunicação com a aprovação de uma nova lei de meios. Órgão responsável: Ministério das Comunicações Relevância: Apresentar proposta ao Congresso Nacional que amplie e diversifique a outorga de licenças por parte do Poder Público para transmissão de TV (aberta e fechada) e rádio, considerando que o atual marco regulatório defende parâmetros estabelecidos pela ditadura militar. É dever do Estado assegurar o acesso universal aos meios de Comunicação, contribuindo desta forma com a liberdade de informação, inclusão social, não-discriminação, promoção da diversidade cultural, educação e entretenimento. A Comunicação deve, portanto, ser entendida como um Direito Humano, servindo de exemplo as experiências de países como Reino Unido, Holanda e as reformas já implantadas pele Argentina, Uruguai e Equador. 9. Estabelecer atenção psicossocial permanente às vítimas de violência institucional como forma de reparação integral. Órgão responsável: Ministério da Saúde, Secretaria de Direitos Humanos e Ministério da Justiça Relevância: A rede de atenção psicossocial deve garantir atendimento especializado e multidisciplinar às vítimas de violência institucional no Brasil. A ditadura militar deflagrou um profundo processo de violência contra amplos segmentos da população brasileira, em especial a mais pobre e negra. Nesse sentido, medidas reparatórias, não apenas no âmbito pecuniário, mas no subjetivo, devem ser proporcionadas pelo Estado. Até 2011, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República fomentava um programa de Centros de Atendimento às Vítimas de Violência em diferentes 85 pontos do território brasileiro, em uma perspectiva de atendimento interdisciplinar. Mais recentemente, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça iniciou o projeto Clínicas do Testemunho, que visa tal atendimento, mas com enfoque específico para anistiados e familiares. Portanto, sugerimos que o projeto Clínicas do Testemunho deve ser transformado em política de Estado, articulada intersetorialmente de maneira a garantir a reparação psicológica às pessoas afetadas pela violência de Estado, bem como capacitar os profissionais de saúde para a ampliação dessa atenção a todos os afetados do passado e do presente. 10.Tipificar o crime de desaparecimento forçado. Órgão responsável: Presidência da República e Congresso Nacional Relevância: O desaparecimento forçado foi um dos métodos de repressão mais característicos da ditadura militar e ainda hoje é prática comum por parte de agentes do Estado. A tipificação do crime representaria avanço importante para de coibir esta prática, conforme exige o Direito Internacional dos Direitos Humanos. 11.Criar um organismo de monitoramento da implantação das recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade ao Estado brasileiro. Órgão responsável: Presidência da República e Secretaria de Direitos Humanos Relevância: O término da Comissão Nacional da Verdade não pode significar uma estagnação da pauta Memória, Verdade e Justiça. Se uma das atribuições legais da CNV é fazer recomendações ao Estado, a fim de evitar a repetição de crimes ocorridos no passado, é essencial que tais recomendações materializem-se em políticas públicas, que garantam transformações em determinadas estruturas do Estado brasileiro, avançando na proteção dos Direitos Humanos. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos se caracteriza como um importante organismo permanente vinculado à agenda da Justiça Transicional, bem como o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Cabe ao Estado brasileiro consolidar em sua estrutura um organismo 86 de monitoramento e implantação da totalidade das recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade. 12.Retificar as certidões de óbito de pessoas assassinadas pela ditadura militar com a real causa mortis. Órgão responsável: Conselho Nacional de Justiça Relevância: A exemplo do emblemático caso do jornalista Vladmir Herzog, cuja certidão de óbito foi alterada por determinação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a retificação das certidões de óbito com a inserção da real causa mortis (fazendo menção a torturas, execução sumária etc.) é elemento essencial para a reparação dos atingidos e para a consolidação do direito à Memória e à Verdade. 13.Localizar e identificar no Ministério das Relações Exteriores, em especial nas embaixadas do Brasil no exterior, a documentação diplomática relativa ao período da ditadura militar, recolhendo ao Arquivo Nacional o acervo referente à perseguição política e a violações de direitos humanos ocorridas naquele período. Órgão responsável: Ministério das Relações Exteriores e Ministério da Justiça Relevância: Durante a ditadura, o Brasil possuía diversas embaixadas em funcionamento no exterior. Como se sabe, milhares de brasileiros foram obrigados a deixar o país em decorrência de perseguição política. A documentação presente nestas embaixadas pode conter informações importantes sobre estes brasileiros. 14.Realizar uma auditoria da dívida da ditadura militar. Órgão responsável: Presidência da República e Congresso Nacional Relevância: O ciclo atual de endividamento no Brasil teve início nos anos 1970, no âmbito do que a ditadura chamou de “milagre econômico”. Uma auditoria da dívida do período faz-se necessária, a medida em que, planos de ajuste fiscal e medidas correlatas, vem aprofundando as desigualdades sociais em nosso país, desde então. 87 15.Estabelecer um feriado nacional como marco para comemorar a Democracia (5 de outubro). Órgão responsável: Presidência da República e Congresso Nacional Relevância: Feriados são importantes instrumentos de transmissão de memória. O estabelecimento de um feriado no dia da promulgação da Constituição cidadã de 1988, 5 de outubro, tem o sentido de homenagem e comemoração, por ser este o marco definitivo do fim da ditadura militar no Brasil. 16.Apresentar os “termos de destruição”, previstos no Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS), que tratarem da incineração de documentos do período da ditadura militar relacionados às Forças Armadas e a órgãos de informação e contra-informação vinculados ao SISNI. Órgão responsável: Ministério da Defesa Relevância: Um dos argumentos apresentados pelas Forças Armadas para impedir o acesso aos arquivos do período da ditadura militar é o de que eles já teriam sido incinerados. Nesse caso, é essencial que sejam apresentados os recibos dessa incineração como determina a lei. 17.Adotar medidas administrativas para cassar a gratificação e honrarias e afastar servidores públicos comprovadamente envolvidos em graves violações de Direitos Humanos. Órgão responsável: Presidência da República, Previdência Social e Congresso Nacional Relevância: A permanência de agentes envolvidos na repressão em cargos públicos ou ganhando gratificações é incompatível com a democracia. A manutenção de seus vínculos com o funcionalismo público passa a inaceitável mensagem de desresponsabilização dos que cometeram graves violações de Direitos Humanos. 18.Reformar os currículos mínimos e os conteúdos de materiais didáticos, a fim de incluir o debate sobre o tema da ditadura militar de forma mais profunda no sistema educacional brasileiro. 88 Órgão responsável: Ministério da Educação Relevância: Os livros didáticos adotados pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC e os currículos mínimos, embora tratem do tema da ditadura militar no Brasil, não o fazem a partir de um debate aprofundado que inclua o processo de transição e que foque nas graves violações de Direitos Humanos ocorridas no período. A exigência de que esse tema seja tratado nas escolas é essencial para transmitir o conhecimento sobre os fatos ocorridos para as novas gerações, condição para o estabelecimento de uma cultura de respeito aos Direitos Humanos. 19.Desmilitarizar as polícias e criar Ouvidorias Externas para as instituições de segurança cidadã. Órgão responsável: Congresso Nacional Relevância: Embora as polícias militares não tenham sido criadas na ditadura, sua transformação em força auxiliar do Exército se deu no ano de 1969. A formação atual das polícias visa o combate ao inimigo interno, à época os “subversivos” e “terroristas”, e hoje identificados a partir de outras categorias. A desmilitarização da polícia e a criação de uma ouvidoria externa representam uma inversão nessa lógica, com a preparação dos agentes não para a repressão de um potencial inimigo, mas para a proteção dos direitos dos cidadãos. 20.Extinguir do ordenamento e da prática jurídica brasileira a declaração de auto de resistência e quaisquer estratégias inibidoras de investigação; assegurar o devido processo legal e as garantias judiciais em caso de execução sumária. Órgão responsável: Presidência da República e Congresso Nacional Relevância: Além de não terem amparo legal no direito penal brasileiro, o termo “auto de resistência” é frequentemente utilizado em inquéritos policiais para encobrir casos de abusos e execuções de civis por agentes do Estado. Em regra, esses casos não são investigados sob a justificativa de uma suposta autodeclaração de legítima defesa por parte da polícia, 89 desestimulando a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário. É importante ressaltar que a primeira normativa que inseriu os autos de resistência como um instrumento a ser utilizada pelo policial data de 1968. 21.Rever a cassação por motivos políticos dos mandatos de todos os parlamentares após o golpe de 1964. Órgão responsável: Congresso Nacional Relevância: A revisão da cassação e devolução simbólica dos mandatos de parlamentares perseguidos são importantes medidas de reparação para as vítimas da perseguição política e para a democracia. Trata-se, ainda, de uma forma de resgatar a memória e a história desses parlamentares. 22.Adotar nas Instituições Militares de Educação (Colégios, Escolas e Academias Militares) os parâmetros estabelecidos pelo MEC nos currículos pedagógicos. Órgão responsável: Congresso Nacional Relevância: A formação das escolas militares não pode ser diferente de outras instituições de ensino do país. Por não estarem adequadas a parâmetros curriculares do MEC, ainda hoje utilizam materiais que tratam o golpe a partir de uma perspectiva que o legitima, ignorando, quando não justificando, o papel das próprias Forças Armadas nas graves violações de Direitos Humanos ocorridas no período. 23.Adotar o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade e o Programa Nacional de Direitos Humanos como material pedagógico nos cursos das Instituições Militares de Educação (Colégios, Escolas e Academias Militares), bem como os relatórios das comissões estaduais, respeitando o local da instituição de ensino. Órgão responsável: Ministério da Defesa Relevância: A utilização do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade e das comissões estaduais, assim como o Programa Nacional 90 de Direitos Humanos, como material obrigatório nas escolas militares, bem como o fomento às visitas de locais de memória da ditadura, preencheriam lacunas na formação dos oficiais no que se refere ao conhecimento histórico do período e ao conjunto de graves violações de Direitos Humanos perpetradas por agentes do Estado. 24.Apoiar, nas universidades, nos arquivos e nos museus, o estabelecimento de linhas de pesquisa, a produção de conteúdos, a tomada de depoimentos, o registro de informações, o recolhimento e o tratamento técnico de acervos sobre fatos ainda não conhecidos ou esclarecidos sobre o período da ditadura militar. Órgão responsável: Ministério da Educação, Ministério da Justiça e Ministério da Cultura Relevância: Ainda cabe ao Brasil avançar no conhecimento histórico sobre o período da ditadura militar, uma vez que há diversos fatos ligados a graves violações de Direitos Humanos não esclarecidos. A produção de conteúdo, a partir de documentos, testemunhos e informações novas, possui importante caráter pedagógico e reparatório, colocando a discussão sobre este período no meio social e contribuindo para a não-repetição de abusos de poder e violações de Direitos Humanos. 25.Revisão/Reinterpretação da Lei de Anistia Órgão responsável: Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional Relevância: A Lei de Anistia de 1979 e sua interpretação até hoje são os principais elementos que garantem a não responsabilização dos agentes do Estado, protagonistas das violações de Direitos Humanos ocorridas durante a ditadura militar. Ao estender, tanto aos perseguidos políticos, quanto aos agentes do Estado, a lei continua impedindo a investigação e a persecução dos mais violentos crimes, tidos como imprescritíveis e não-anistiáveis por organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos. 91 26. Proibir o julgamento de civis pela Justiça Militar conforme ADPF 289 Órgão responsável: Congresso Nacional Relevância: Decisão recente do Supremo Tribunal Federal declarou constitucional o julgamento de civis por tribunais militares, mesmo em tempos de paz. Entretanto, diversos países que também passaram por períodos autoritários revisaram sua legislação no que tange a esse tema, como Portugal, Argentina, Colômbia, Paraguai, México e Uruguai. Há, ainda, uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005), que determinou que o Chile adotasse semelhante medida. 27.Extinguir do ordenamento jurídico brasileiro o crime de desacato; Órgão responsável: Congresso Nacional Relevância: O crime de desacato configura mais uma formulação autoritária na legislação e na prática policial brasileira. Organismos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos há muito tempo já se manifestaram contrariamente aos países cuja legislação tipifica este crime, afirmando que este se presta ao abuso e constitui um meio para silenciar ideias e opiniões. Além disso, este tipo penal garante, de maneira injustificada, uma maior proteção a funcionários públicos. Segundo a Comissão Interamericana, o simples fato de tipificar o crime de desacato configura uma violação à liberdade de expressão e ao direito à informação. 28.Acabar com a Justiça Militar da União e dos Estados. Órgão responsável: Congresso Nacional Relevância: O funcionamento da Justiça Militar em tempos de paz é injustificável à luz dos princípios democráticos e republicanos. Países como Argentina, França e Bélgica já extinguiram suas Justiças Militares, estabelecendo a competência do foro civil para todo e qualquer cidadão que pretenda defender seus direitos. 92 93