O espectador ingênuo__ Psicanálise, cinema, literatura e música
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O espectador ingênuo__ Psicanálise, cinema, literatura e música
O espectador ingênuo__ Psicanálise, cinema, literatura e música EI_Olho.indd 1 3/13/12 10:00 AM COLEÇÃO DISCURSO PSICANALÍTICO Direção Sidnei Goldberg O espectador ingênuo__ Psicanálise, cinema, literatura e música Marcus do Rio Teixeira EI_Rosto.indd 1 3/13/12 10:00 AM © do autor, 2012 © Ágalma, 2012 para a língua portuguesa ©Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2006 Para o texto: Um novo realismo – A narrativa cientificista © Círculo Psicanalítico da Bahia, 2008, 2009 Para os textos: Nabokov, leitor de Joyce e O humor e a delicadeza © Robson de Freitas Pereira, 2007 Para os textos: Lucy in the sky with diamonds e Good morning, good morning 1a edição: março de 2012 Projeto gráfico da capa e páginas de abertura Homem de Melo & Troia Design Editor Marcus do Rio Teixeira Diretor da Coleção Discurso Psicanalítico Sidnei Goldberg Revisão Solange Mendes da Fonseca Depósito legal Todos os direitos reservados Ágalma Psicanálise Editora Ltda Av. Anita Garibaldi, 1815 Centro Médico Empresarial, Bloco B, sala 401 40170-130 Salvador-Bahia, Brasil Telefax: (71) 3245-7883 Tel: (71) 3332-8776 e-mail: [email protected] Site: www.agalma.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T267e Teixeira, Marcus do Rio O espectador ingênuo : psicanálise, cinema, literatura e música / Marcus do Rio Teixeira. - Salvador, BA : Agalma, 2012. il. ; 21 cm (Discurso psicanalítico ; 12) Anexos Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-85458-34-8 1. Psicanalise e cinema. 2. Cinema - Aspectos psicológicos. 3. Cinema e literatura. 4. Roteiros cinematográficos - História e crítica. I. Título. II. Série. 12-1263. 02.03.12 12.03.12 CDD: 791.43019 CDU: 791.235:159.9 033626 Para Adi Para os amantes do cinema SUMÁRIO 08 Prefácio Wael de Oliveira IMAGEM 22 “Absolutamente Alice” 32 Uma deusa num T-Bird branco & outras histórias – Sobre American Graffiti 42 Todos na torre de vigia – Sobre Watchmen 54 O humor e a delicadeza – Sobre Lost in translation 68 Um bom ano – Tratado sobre as paixões 76 Woody Allen e o Kairós 88 O que é o centro do mundo para você? – Sobre MasculinoFeminino: 15 fatos precisos 98 Blow-Up ou A crise do sentido TEXTO 108 Um novo realismo – A narrativa cientificista 118 Nabokov, leitor de Joyce SOM 128 Good morning, good morning Marcus do Rio Teixeira e Robson Pereira 134 Lucy in the sky with diamonds 141 147 149 161 Ficha técnica dos filmes comentados Agradecimentos Índice Créditos das ilustrações Prefácio Wael de Oliveira* Psicanalista Membro da Associação Psicanalítica de Curitiba, Wael de Oliveira também é psicóloga do HC-UFPR e mestre em História pela mesma UFPR. Às vezes, escreve poemas. * Ingenuidade E o computador ainda me pergunta: quer salvar as alterações em Desejo? Um prefácio não é fácil. Faço o que posso, desosso a palavra e cavo seu tutano. Mas não me engano: ela não me entrega seu engodo, seu engate, o ponto onde me abate o saber. Assim as curvas da palavra de tantos inesperados, onde tento escrever. Marcus do Rio Teixeira nos apresenta um livro onde o que menos se encontra é ingenuidade. Isto é o que se encontrava na velha brincadeira bilátera dos meninos, à beira da calçada: em cima, embaixo, em cima, embaixo...Coisa de moleque manquitola. Mas manco não era Édipo que trazia no corpo a marca significante paterna? Neste livro, a marca permanece na palavra mas Marcus também manca... de desejo. 9 O ESPECTADOR INGÊNUO Sim, porque, para um psicanalista, desejo manco não é aquele a quem falta força. Desejo manco é carteira de identidade, é aquele que mata a fome e mostra a falta. O desejo moleque de Marcus do Rio Teixeira brinca na sarjeta: “é psicanálise, não é... é, não é... é, não é... “, brinca com a força ainda bruta do desejo de meninos, aquele tipo de desejo que ainda não se desgastou na lima da vida até ficar rombudo, sem ponta. Por isso as análises deste livro não são frases, são estocadas. E assim vamos, mancos de desejo, saltando de um texto a outro, de um filme a outro, de uma música a outra, de uma delícia a outra. A marcha ondulante do menino Marcus nos leva a passear por esta sarjeta-litoral que alguns diriam não se tratar de psicanálise, mais próxima da terceira margem que ele construiu para si, menos bilátera e mais moebiana, de onde nos apresenta alguns de seus efeitos. E é precisamente isso o que faz dele um livro não dirigido apenas a psicanalistas. Os que não têm conhecimento sobre psicanálise mas amam cinema, literatura e música – é pouco? – não terão a menor dificuldade de desfrutar o livro de Marcus do Rio Teixeira. Agora, um pouco do que me produziu a leitura de palavras como estas. Cobra Cega Tenho alguém que brinca comigo e se esconde nas palavras. Algumas tão pequeninas que até o espanto se espanta que me escondam, que me velem. Em outras vou quase infinita, surpresa de que revelem meu brinco de esconde-esconde, que me enfeita nem sei onde. Tenho uma certa incerteza 10 PREFÁCIO de que alguém escondido dentro de cada palavra atrás de cada beleza, me brinca interrompido. Nos intervalos me esfumo, desapareço, desmancho. Reapareço sem rumo, tonta do brincar que volta e da altura do desejo que me pendura em seu gancho. I Marcus dividiu seu livro em três calçadas: a das letras, a do som e a aquela da fama, como o lugar onde os astros do cinema deixam suas digitais para a posteridade, em Hollywood. Claro, a ordem das calçadas foi outra, mas, assim, pude brincar também. São justamente os filmes que abrem o livro, num convite ao olhar redobrado, ao deslizamento significante condição para a metáfora, pois o que lemos nos evoca o que não vemos. Trata-se tanto de filmes que marcaram a geração com acesso ao desbunde do desejo nos anos 60 quanto de filmes recentes. Ele começa sutilmente, apresentando-nos ao ingênuo do título: o espectador ideal de Hollywood, que se parece com a Alice de Tim Burton, um espectador no qual não se devem provocar inquietudes. Mas, rapidamente, a sutileza cede à análise crua – que indica porque Alice não fica nua – de, entre vários personagens, uma rainha cujas ordens são o paradigma do desejo insatisfeito, um discurso anacrônico e um chapeleiro que permanece indeciso entre ser um daqueles da era vitoriana, que escondiam os cabelos das mulheres (resguardando o recato feminino da mulher já submetida à castração) ou ser um protetor da vocação fálica desta nova Alice. A próxima sessão de cinema trata de um filme cultuado por várias características que Marcus descreve com precisão; mas, e sobretudo, talvez seja cultuado por uma espécie de vaga semelhança 11 O ESPECTADOR INGÊNUO com o périplo subjetivo do Bloom joyciano, cujo ápice aponta para um retorno à casa do próprio desejo. Em American Graffiti – título genial, que desenha sem desdenhar o próprio espírito norte-americano – reencontramos a ingenuidade evocada no título do livro, mesmo que lhe vejamos as costas em sua saída de cena. Apesar da caricatura que alguns filmes recentes sobre adolescentes fazem de American Grafitti, este não termina datado, seja pelo tratamento estético seja pela proximidade estrutural com as questões da adolescência ocidental. Dessa análise saborosíssima, gostaria de destacar a preciosidade do título, já que Curt se dirige – em desespero de causa, na busca pelo engate de seu desejo – ao oráculo do avesso, Wolfman Jack, para que leve suas palavras aos deuses, no caso, uma deusa que desliza sobre rodas para terminar o filme como um ideal que recobre o objeto, sempre hiante, do desejo. Continuamos com Watchmen onde, com uma simples frase a propósito da obra de Alan Moore, Marcus nos apresenta o cerne de uma transmissão pelo real: “...muitos conhecem os discípulos de Moore sem jamais terem lido a sua obra.” Um pouco à frente, seguindo seus passos, encontramos uma banda de Moëbius onde menos esperávamos: tanto a escolha dos uniformes – ditados pela questão edípica de cada herói – quanto a realidade alternativa, são testemunhos do fantasma com pés de barro – fantasia na fantasia. Lost in Translation evoca, na homofonia do nome, Lost in Space, seriado de ficção científica dos anos 60; curiosamente, há deriva em ambos. E com direito a extras!! Se nossa primeira imagem neste prefácio foi a cabeça ondulante do menino no litoral da calçada, a imagem que agora se impõe é a mão ondulante do maestro revelando a arte que habita a polifonia de uma orquestra. Em gíria interiorana do início dos anos 70, Marcus debulha na análise desse filme deliciosamente terno de Sofia Coppola. Sua leitura vai diretamente ao ponto onde Bob se desorienta ante o desejo feminino, desorientação já anunciada na cena da tradutora, pois um homem sempre supõe algum gozo no trato 12 PREFÁCIO feminino do excesso. A fresta criada pela diferença entre as línguas toma um valor parecido com aquele existente nas dublagens malfeitas, em que o pequeníssimo intervalo temporal presente impede que o espectador deslize no eixo especular, hipostasiando seu ideal do ego ao objeto externo, como Freud descreve no esquema de Psicologia das Massas. Isso favorece sua posição crítica diante do que vê. Por outro lado, como Marcus identifica de modo brilhante, é por essa mesma fresta que o personagem desliza por um circuito metonímico que lembra aquele descrito por Kubrick em De Olhos Arregaladamente Fechados (na bela tradução de Uri Avnery). O autor afirma que A Good Year não foi um filme menor de Ridley Scott, como entendem alguns críticos. Sigo sua leitura e descubro um delicioso jogo significante com o nome do personagem: a partir da brincadeira carinhosa do tio (Max-a-Million), pode ser lido em francês tanto como Max-tem-Milhão como Maxobjeto a-Milhão. A segunda é mais tentadora, já que Marcus aponta muito acuradamente que Max só pode abordar Fanny quando um ‘a’ termina de cair, depois de resgatar a carta do tio das águas infantis da piscina. Finalmente, numa espécie de curto circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, percebe que a carta termina com uma interrogação sobre o futuro, um pedido para que mantenha a propriedade e um cálculo que funciona como nome próprio a partir de um retorno do recalcado, retorno do “elo com a infância de seu sinthoma”, nas palavras de Marcus: seu nome está escrito como Max-a-1/4-a-Million. Um quarto de volta? Seu quarto de volta? Os vários críticos azedos que li na world (wild) web poderiam ir um pouco além de seu umbigo e utilizar leituras como a de Marcus para não pagar um mico assim tão grande. Sobre Whatever Works e You Will Meet A Tall Dark Stranger, ambos de Woody Allen, é melhor que a poesia tome a palavra. Intersecção Me diz: encontro é o que insiste, 13 O ESPECTADOR INGÊNUO é dor que existe tanto entanto que resiste? Triste arquejo no som em arco, íris de um desejo que não é pouco nem parco. Em silêncio, faço o possível no nunca pronto de minha folha. Imenso indizível que, se desencontro, é sempre escolha. Outra delícia vem na análise de Masculine-Féminine, 15 faits précis, de Jean-Luc Godard, onde Marcus se desvia da discussão sobre gêneros para recuperar a virulência da diferença entre os sexos, em sua ausência significante. Ele vai direto à questão do filme dentro do filme, com o que faz lembrar que Freud aponta o sonho dentro do sonho, como indicador de maior proximidade com o desejo inconsciente. Marcus tem sacadas interessantíssimas, como indicar a antecipação do uso das novas mídias e sua relação com a deriva, no que acrescento a observação freudiana sobre a dissolução do ‘feixe pulsional’. E o título do texto, que expõe o núcleo duro do filme, quando destaca a pergunta de Madeleine? Aqui, lembrei-me da brincadeira entre amantes quando um diz ‘eu te amo’ e o outro responde ‘eu também’, numa espécie de juramento com os dedos da palavra torcidos em figa. Com Blow-Up, Marcus presenteia o leitor com um exemplo de como o cinema pode aproximar-se do que é mais íntimo do método psicanalítico: a suspensão do sentido. Ele parte da hesitação de um homem siderado pelo encontro com uma mulher que o demanda enquanto detentor de algo que deseja e que não é o atributo fálico. Como este homem não porta a sustentação fálica que lhe 14 PREFÁCIO permitiria o enfrentamento do enigma, Marcus mostra a festa que Antonioni faz com o deslizamento metonímico do desejo. II A segunda calçada em que Marcus do Rio Teixeira brinca é a calçada do escrito: literatura e narrativa jornalística. No texto sobre o empobrecimento da narrativa em favor da paixão pela ciência (como não se lembrar novamente de Psicologia das Massas?), ele destaca o que chama de Weltanschauung cientificista e apresentou-me mais uma interrogação sobre o provável empobrecimento subjetivo de quem sustenta sua relação com o saber nos cadernos de ciência dos jornais, grandes ou pequenos, impressos ou virtuais. Mesmo Aluísio de Azevedo, nosso maior nome da literatura naturalista, encerrou sua carreira de escritor com um livro impecável do ponto de vista estrutural: O Livro de uma Sogra. Isso em tempos em que as escolhas – inclusive narrativas – eram consequência da riqueza subjetiva. O texto de Marcus também me remete, imediatamente, a um livro que mostra como o discurso da ciência não precisa empobrecer a narrativa. Refiro-me a Conversas sobre o Invisível, transcrição do diálogo de dois astrofísicos franceses (Jean Adouze e Michel Cassé), quando a divulgação dos conceitos científicos começou a ferver (logo depois de Fritjof Capra), ante o desafio lançado por Jean-Claude Carrière (roteirista de Buñuel) sobre conceitos fundamentais da física, sem o uso de qualquer fórmula. Leitura deliciosa porque mantém o sujeito em seus intervalos significantes. Em seguida, Marcus levanta algumas questões sobre a produção de Vladimir Nabokov perante o enigma que lhe apresenta (também a ele...) James Joyce. De Nabokov, leitor de Joyce, quero frisar apenas o que também me interroga diante da função do Outro, na escrita: por mais que a disciplina seja necessária ao ato de escrever, a espécie de imposição exercida pelo Outro no ato criativo é, esta 15 O ESPECTADOR INGÊNUO sim, indispensável, já que não se sabe de onde esta palavra nasce/ surge/se impõe a quem escreve. Espécie de ghost writing, escrita do fantasma, que funda o sujeito em questão na escrita e, em última instância, permite responder à pergunta apresentada pela esfinge inapreensível do real com as letras da própria matéria que a compõe. III Last but not least, dancei pra valer com a letra de Marcus na calçada do som. E, como o leitor também recria a obra em sua leitura, quero inverter a ordem dos textos suscitados pelas composições de John Lennon e Paul McCartney. Lucy in the Sky With Diamonds, para mim, evoca primeiramente a delícia das brincadeiras sonoras nos dias de juventude no Madrigal Pro-Música, sob a regência do Pe. José Penalva. Agradeço a Marcus retirar lembrança tão doce do olvido. E, com a força dessa lembrança, pergunto se não é o caleidoscópio que salta dos olhos da menina para a letra da música em tantas, variadas, inesperadas e belas imagens... E não é esta, também, uma das funções da psicanálise: resgatar o novo no cotidiano, como um caleidoscópio onde as palavras coloridas de pulsão fazem desenhos sempre renovados? Por fim, uma última brincadeira com a letra: Leia-me, Se Der... não pode ser mais um desafio que a esfinge de olhos caleidoscópicos lança ao oferecer um veículo feito de palavras – newspaper taxi – que leve da cena do rio (S1) para a catraca (S2), passagem que funda um sujeito na operação da linguagem? Não é por acaso que deixo para o final meu encantamento com a análise que Marcus faz de Good morning, good morning, em feliz parceria com Robson Pereira. Em primeiro lugar para lembrar que sigo Marcus, pois, se acusam John de se inspirar em banalidades, também temos um “menor” (?!) deste quilate: Chico Buarque, com Notícia de Jornal, uma das mais belas e doloridas músicas sobre a vida que se esconde entre letras que escondem coisas. 16 PREFÁCIO Ao seguir o que Marcus indica John ter feito com o tédio, só posso concordar que, assim como a violência do significante acionado pelo desejo do Outro desperta para a vida, a algaravia do final de Good morning, good morning nos dá a dica de como John lidou com isso. Quem quiser brincar na calçada com Marcus vai deparar-se com uma face alegre e saborosa da mesma psicanálise que conduz cada um aos vales aonde o sol nunca chega, para evocar as larvas sem luz, como Lacan alerta no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Por mim, quero que minhas palavras – escritas uma vez para um baiano cujas músicas sempre me trouxeram muita alegria – sejam também dedicadas a este baiano Marcus do Rio Teixeira, cujo nome parece, ainda uma vez, brincar com minhas próprias letras. Lavagem sem fim Na bateia do baiano vaza um rio colorido de letras, pausas e sons, deixando no seu vazar palavras de todos os tons. Da bateia do baiano escoa, por todo janeiro, água que não é do rio que deságua em fevereiro. O baiano que bateia na sua bateia cantante toda luz de lua cheia da sua canção diamante, parece cantar brincadeiras, frases e mil melodias retidas em sua peneira que esconde o sol da Bahia. 17 O ESPECTADOR INGÊNUO Bateia palavra, baiano, bateia palavra dengosa, que desse teu rio profano só sai gema preciosa. 18