Emilio Gennari - Arte da Toupeira

Transcrição

Emilio Gennari - Arte da Toupeira
Emilio Gennari
A educação em tempos de
qualidade total. 3ª Edição.
Ao reproduzir... cite a fonte.
2
Índice:
Introdução
03
1. Um breve passeio pela história da educação
05
2. O mundo do trabalho está com a palavra
10
3. A robótica, os novos trabalhadores e o ensino de qualidade
15
4. O Estado “educador”.
21
5. Escola: o tortuoso caminho da autonomia
25
6. Trabalhadores e educação: pistas para uma reflexão
28
7. Anexos: Nádia, a coruja, fala do 1º de Maio
35
3
Introdução.
Há uma coisa sobre a qual parece que estamos todos de acordo: a escola pública vai mal das pernas. Do
presidente da República ao cidadão mais humilde, não há quem não se queixe de que o ensino é fraco e não
prepara para o mundo do trabalho.
Diante do aparente consenso, a escola é colocada no banco dos réus e apontada como uma das principais
responsáveis pela falta de profissionais preparados, pelos descaminhos dos jovens, que não vêem nela um meio
para realizar seus sonhos, e pelo número crescente de pessoas que vivem às margens da sociedade sem
perspectivas de futuro.
Assim, reconhecidas as falhas oriundas da precariedade da estrutura física, dos pais que não
acompanham as crianças, do clima de violência que cerca a escola e do despreparo dos docentes, chega-se
rapidamente à conclusão de que tudo depende da educação. Em outras palavras, com um ensino funcionando a
contento estaríamos resolvendo os problemas que nos afligem e abrindo caminhos para uma melhora substancial
das condições de vida.
O esforço que vamos fazer a partir de agora é justamente o de arranhar esta convicção que as pessoas
repetem acreditando ter encontrado nela a resposta às suas angústias e indagações sobre o desemprego, a miséria
e a marginalização social. Por isso, vamos analisar os rumos dos ensinos médio e fundamental não a partir do
ambiente escolar e sim das necessidades concretas do mundo do trabalho. Através delas apresentaremos as
mudanças que, na escola, procuram moldar o perfil de trabalhador que melhor satisfaz as exigências do mercado
e da produção. Para facilitar esta tarefa, peço que acompanhe com a atenção as próximas linhas deste estudo.
Imagine estar na praia olhando para o mar. Nele, como você sabe, vivem peixes de todos os tipos, cores,
formas e hábitos alimentares. Cada um deles tem certa habilidade para procurar o necessário para sobreviver e
para se defender dos predadores. Neste maravilhoso ambiente de cidadania marinha, tudo parece bonito, natural
e justo, não fosse por um pequeno detalhe que nós, humanos, conhecemos há muito tempo: o peixe grande come
o pequeno.
Sim, eu sei que isso faz parte do equilíbrio natural das espécies, mas não deixa de ser intrigante o fato de
que, em nome da natureza, alguns peixes mais “privilegiados” não titubeiem em transformar outros em almoço.
Agora pare e pense: o que aconteceria se os tubarões fossem gente e começassem a organizar a vida marinha de
acordo com suas necessidades?
Provavelmente, a primeira medida seria a de acabar com esse negócio de cada peixe poder ir para onde
quer, se juntar aos semelhantes e, ainda que mudo, sair falando o que bem entende. Por isso, os tubarões
mandariam construir cercas para dificultar a entrada de seus inimigos e dividiriam os espaços destinados aos
peixinhos de cada espécie. Em seguida, tratariam de convencê-los da importância de respeitar o que é de cada
um, ainda que os cardumes sejam obrigados a viver num aperto danado.
Mas, como não é fácil consolidar novos costumes, além das dentadas indispensáveis para mostrar quem
manda no pedaço, seria necessário educar as novas gerações, quem diria, através de uma escola. Melhor, duas:
uma para os filhotes de tubarão e a outra para os demais peixinhos.
Na primeira, os pequenos predadores aprenderiam a mandar, a falar em público e a dar vazão a seus
instintos sem experimentar sentimentos de culpa. Pouco a pouco, seriam convencidos de que é natural que as
coisas sejam assim e que os outros peixes não têm sequer a metade do seu valor porque não se esforçam, são
preguiçosos, não sabem aproveitar das oportunidades e se acomodam facilmente.
4
A outra escola se dedicaria à formação de bons cidadãos marinhos. Nela, os peixinhos aprenderiam
desde criancinhas que alguns nasceram para mandar e outros para obedecer. É claro que isso não seria
apresentado como um privilégio, e sim como uma questão de berço, de sorte ou até mesmo de predestinação
desta sábia natureza que coloca cada um em seu devido lugar. Portanto, longe de cobiçar a posição dos tubarões,
o jeito seria ir se conformando com a própria situação sem opor resistências ou, no máximo, se esforçar para
viver melhor sob o governo dos predadores.
Se isso não bastasse, as lições de geografia se encarregariam de ensinar que o melhor lugar para nadar é
perto da boca dos tubarões. Os contos das aulas de português apresentariam a biografia de peixinhos cujo
sacrifício pessoal em favor dos predadores seria descrito como um dos momentos mais altos de sua existência.
No livro de história ganhariam destaque os grandes tubarões do passado, homenageados por suas
proezas destruidoras realizadas em nome da civilização e do progresso. Em algumas páginas teria também a
fotografia deste ou daquele peixinho que foi promovido a algum cargo de confiança em função dos seus serviços
e de sua obediência às ordens superiores.
Você está vendo aquela coisa esquisita que as ondas deixaram na areia? Não, não é uma garrafa. Parece
um livro. Sim, um livro estranho que tem a forma de um dente de tubarão. Vamos dar uma olhada. Veja só, a
água corroeu a sua capa, mas ainda dá pra ler o que está escrito na primeira página: “A verdadeira vida do
peixinho só começa na barriga do tubarão”. Será que é o livro de religião da escola dos predadores? Bom,
deixo a você decidir.
Voltando para o mundo dos humanos, podemos dizer que seria muito bom se tudo isso fosse fruto da
imaginação ou pertencesse a um passado distante como o de Bertolt Brecht que é quem inspirou este exemplo
com um de seus escritos.1 Infelizmente não é assim.
Como não deve acreditar cegamente no que estou dizendo, só me resta convidar você a ler as páginas
deste trabalho orientado por algumas perguntas: quando os diversos setores da sociedade falam em qualidade do
ensino, do que é que eles estão falando? O que os empresários entendem por uma boa escola? Que tipo de
educação interessa às classes trabalhadoras em sua luta contra a exploração?
Bom, o jeito agora é nadarmos juntos numa reflexão que reconstrói a relação entre o mundo da escola e
o da produção. Portanto, pegue os pés-de-pato, a máscara, o oxigênio e não esqueça do colete salva-vidas. Sim,
eu sei que você sabe se virar, mas a maré está brava e mergulhar nela não vai ser fácil.
1
A versão original encontra-se em Brecht B., Storie da calendario, Ed. Einaudi, Turim 1972, pg. 134-136.
5
1. Um breve passeio pela história da educação.
Para começar a nossa viagem, o melhor a fazer é nadar no mar da história. Vamos voltar ao passado e,
pela precisão, ao antigo Egito. Como em toda sociedade que produz riquezas a partir da exploração da maioria
dos seus habitantes, percebemos que o saber não é democratizado e que cada setor tem acesso a um determinado
tipo de educação.
Em grandes linhas, podemos dizer que existem quatro grupos de pessoas que recebem um ensino
diferenciado: o faraó e os senhores da corte, os escribas e todos aqueles que se dedicam às funções
administrativas, os artesãos e, por último, os escravos.
Cerca de 2.600 anos antes de Cristo, os filhos do faraó, seus futuros conselheiros e os nobres do Egito
são educados para dominar a arte da palavra. Ao falar da instrução a eles destinada Ptahotep escreve:
“Se a sua boca procede com palavras indignas, tu deves domá-lo em sua boca, inteiramente... A
palavra é mais difícil do que qualquer trabalho, e seu conhecedor é aquele que sabe usá-la a
propósito. São artistas aqueles que falam no conselho... Reparem todos que são eles que aplacam a
multidão e que sem eles não se consegue nenhuma riqueza”. 2
Em português claro, quem manda deve dominar a arte da palavra. Falar em público requer tato e
estratégia tanto na hora de intervir nos conselhos restritos do poder, como na de passar uma lábia na multidão
para buscar apoio, acalmar seus ânimos, justificar a repressão dos descontentes e reafirmar os valores da elite
como os únicos capazes de organizar a sociedade. Lembra das escolas organizadas pelos tubarões? É da primeira
delas que estamos falando, só que no país das pirâmides.
A sociedade muda e força o ensino destinado a este grupo a adaptar-se à nova realidade. Lá pelo ano
2.000 antes de Cristo os nobres do Egito conquistam a possibilidade de governar suas regiões num regime de
maior autonomia em relação ao poder do faraó. O país é dividido em feudos e começa um período de desordem e
agitação social. É neste contexto que a educação destinada às elites incorpora uma formação mais aprimorada do
homem político e a educação física como parte da preparação necessária para eventuais enfrentamentos nos
campos de batalha.
È interessante reparar que os nobres e a família do faraó não se preocupam em ensinar a seus filhos a
escrever. Acontece que, nesta época, a escrita é apenas um instrumento destinado a registrar os atos oficiais e
administrativos. Por isso, ela é entregue aos escribas que, em geral, aprendem esta arte com os pais. Além do
ofício, será inculcado neles um profundo sentimento de obediência e submissão. Neste sentido, Amenemope
escreve:
“Quando erras perante o teu superior e teus discursos ficam desconexos, tuas adulações serão
retribuídas com afrontas e tuas lisonjas com pancadas. Diga a verdade perante o nobre, para que
não se torne dono de tua cabeça. Não escute as conversas de um magnata na sua casa e não as
espalhes para outros. Não ofendas a quem é maior do que tu. Deixa que ele te bata enquanto a tua
2
Texto reproduzido em Manacorda M. Alighiero (1996) pg. 14.
6
mão fica sobre o peito; deixa que ele te ofenda enquanto a tua boca cala: amanhã se estiveres na
frente dele, te dará pão à vontade. O cão late para quem lhe dá pão, pois ele é o seu dono”. 3
No que diz respeito à instrução dos artesãos e das massas populares, Diadoro da Sicília traz uma
informação razoavelmente confiável:
“O resto da multidão dos egípcios aprende dos pais e dos parentes, desde a idade infantil, os ofícios
que exercerá na sua vida. Ensinam a ler e a escrever um pouquinho, não a todos, mas àqueles que se
dedicam a um ofício”.4
É fundamental que você saiba que o resto da multidão, ao qual se ensinam as noções necessárias para o
exercício da profissão e para os contatos sociais que ela supõe, não inclui a massa dos escravos. Estes terão o
capataz como professor e o chicote como recurso pedagógico que lhe ensinará com o sangue a trilhar o duro
caminho da exploração e da dor.
Você deve ter percebido que no antigo Egito, como em toda sociedade dividida em classes, os grupos
dominantes usam o processo educativo como um meio para moldar as camadas da população. Como o oleiro
molda o barro, as elites se preocupam em formar cada setor da sociedade de acordo com a necessidade de
garantir a ordem que proporciona a materialização de seus interesses. Por isso, na civilização egípcia podemos
visualizar uma característica que vai se manter constante ao longo da história: há sempre uma relação direta
entre o tipo de educação e a posição que o indivíduo ocupa na sociedade. Como dizem os tubarões: “Cada
macaco no seu galho”. Falha nossa: “Cada cardume na sua cerca”.
No mar da Roma antiga, as coisas não são muito diferentes. Lá, o primeiro educador é o pater familiae.
Desde a fundação da cidade, a autonomia da educação paterna é uma lei do Estado pela qual o pai é dono e
artífice de seus filhos. A antiga monarquia romana, de fato, é uma república constituída pelos proprietários das
terras e dos núcleos rurais (familiae), dos quais fazem parte as mulheres, os filhos, os escravos, os animais e
qualquer outro bem. O pai-proprietário (pater) exerce sobre eles um poder soberano que, entre outras coisas, lhe
permite matar os que apresentam deficiências físicas, prender, flagelar, condenar aos trabalhos agrícolas
forçados, vender ou mesmo matar os filhos rebeldes, mesmo quando, já adultos, estes ocupam cargos públicos.
A educação no seio da família visa, basicamente, o ensino das letras, do direito, o domínio da retórica e
das condições para desempenhar as atividades políticas, típicas das classes dominantes. Ainda que o
desenvolvimento histórico imponha mudanças nos costumes e nas instituições que se dedicam à educação dos
jovens, a organização do Estado impede o livre acesso do povo simples à arte da palavra. As poucas escolas
existentes não passam de um meio para a capacitação de um grupo restrito de indivíduos.
Neste contexto, à exceção da agricultura, fonte de domínio do pai-proprietário, todas as atividades
produtivas são consideradas indignas de um homem livre. Exercidas pelos escravos ou pelos estrangeiros, seu
ensino é reservado aos membros das classes sociais inferiores. À diferença da situação que encontramos no
Egito, em Roma nos deparamos com a necessidade de fazer com que os conhecimentos e as habilidades de
algumas profissões sejam ensinados em escolas. Trata-se de um costume que alguns praticam para melhor
3
4
Texto citado em Manacorda M. Alighiero (1996) pg. 36.
Texto citado em Manacorda M. Alighiero (1996) pg. 39.
7
explorar o trabalho servil. Além de formarem escravos mais qualificados para serem empregados em suas
propriedades, as escolas profissionalizantes da época permitem utilizar o ensino como investimento de capital na
medida em que possibilita vender ou alugar escravos a um preço bem mais alto. A evolução torna os tubarões
mais espertos.
Se é verdade que, ao longo dos séculos, as descobertas da ciência e da técnica impõem mudanças aos
processos de aprendizagem, é também verdade que cada passo do desenvolvimento histórico coloca aos
predadores a necessidade de resolver o velho problema de como e quanto instruir quem é destinado não aos
círculos do poder e sim à produção. Um documento do início de 1400 (época em que já temos uma burguesia
urbana no interior da sociedade feudal) nos ajuda a visualizar quanto acabamos de afirmar:
“Messer Giannozo Manetti nasceu no ano de 1393... O pai... , Bernardo, mandou-o, ainda de poucos
anos, segundo o costume da cidade, a aprender a ler e a escrever; tendo aprendido em pouco tempo
quanto é necessário para ser um bom mercador, passou-o para o ábaco e em poucos meses tornou-se
tão douto naquela ciência quanto um profissional da mesma. Aos dez anos foi posto no banco e em
poucos meses lhe foi entregue a conta do caixa. Depois que, conforme o costume, ficou algum tempo
no caixa, foram-lhe entregues os livros e ele dedicou-se a este trabalho por vários anos. Feito isso,
começou a pensar consigo mesmo se seria possível ele conquistar fama ou glória para si e para a sua
família com aquilo que estava fazendo, mas não viu essa possibilidade e chegou à conclusão de que o
único meio para tanto era o estudo das letras: e por isso determinou absolutamente de, posposta
qualquer outra preocupação, dedicar-se a esses estudos.”5
A preparação escolar de Messer Giannozzo é feita em vista do exercício de sua profissão. Ele aprende
gramática, letras e cálculo de acordo com um conjunto de noções básicas que um bom comerciante deve dominar,
mas trata-se, ainda, de uma formação técnica substancialmente diferenciada daquela que se dirige a quantos se
preparam para o exercício do poder.
As coisas não mudam mesmo sob o impulso dos ideais da Revolução Francesa. Os defensores da
educação pública e universal fazem questão de reafirmar que o esforço de estender a instrução escolar a todos os
cidadãos não significa que ela tenha que ser igual para todos. Em 1809, por exemplo, Murat escreve:
“É necessário que exista uma instrução para todos, uma para muitos e uma para poucos. A primeira
não deve fazer do povo tantos sábios, mas deve instruí-lo tanto quanto basta para que possa tirar
proveito dos sábios”.6
Se considerarmos o fato de que os sábios são os intelectuais a serviço da ordem, podemos concluir que
se trata de um aprendizado cujo objetivo central é garantir as condições mínimas para que as classes
trabalhadoras possam assimilar as convicções e os valores dos grupos dominantes. Apesar de empunharem a
bandeira da liberdade, igualdade e fraternidade, os novos tubarões continuam levantando velhas cercas, ainda
que disfarçadas pela suposta igualdade de direitos.
5
6
Texto citado em Manacorda M. Alighiero (1996) pg. 171.
Texto citado em Manacorda M. Alighiero (1996) pg. 256.
8
Preocupação semelhante havia sido explicitada em 1803 pelo industrial e economista francês Jean
Baptiste Say. Suas observações indicavam que a ignorância e os efeitos da divisão do trabalho produzem
operários e operárias que se orientam somente por seus instintos egoístas e imediatos, incapazes de sentimentos e
convicções cívicas indispensáveis para manter suas ações nos limites da ordem. Para ele, um trabalhador
embrutecido pela repetição e simplicidade de suas tarefas, dificilmente é capaz de conceber relações gerais,
sentimentos nobres como, por exemplo, a compreensão de que o respeito pela propriedade privada favorece a
prosperidade pública. Say encerra seu raciocínio com uma indagação que dispensa comentários:
“Como dar a eles o grau de instrução que julgamos necessária para o bem-estar da ordem social?” 7
A esta altura, não restam dúvidas quanto ao fato de que, numa sociedade dividida em classes, a educação
não é um fim em si mesmo, e sim um dos instrumentos para manter e fazer avançar uma determinada ordem
social. Orientada pelas elites, a escola não visa apenas preparar os indivíduos para este ou aquele trabalho, mas
deve fazer com que incorporem valores, idéias, critérios de análise da realidade e formas de comportamento
capazes de garantir que as coisas mudem para que o essencial, a exploração, possa continuar. Por isso, para a
própria classe dominante, é importante que todos freqüentem as salas de aula e que a educação escolar seja, até
certo nível, obrigatória e paga pelo Estado. Como reconhecia a imperatriz Maria Teresa d’Áustria, em 1760:
“Em cada época, a instrução é, e sempre foi, um fato político”. 8
Você deve estar achando que as reflexões acima dizem respeito a épocas distantes, cheias de tubarões
atrasados e autoritários, e que as democracias do terceiro milênio deixam para trás a visão que sustenta esta
análise. Para ir de encontro às suas inquietações continuaremos nosso breve mergulho na história da educação
com duas reflexões.
È verdade que hoje a escola está aberta a todos, que ninguém obriga os pobres a freqüentar este ou
aquele instituto de ensino e que têm filhos e filhas de famílias operárias cursando as melhores universidades do
país. Mas, será que isso se aplica à maioria? Não estaríamos confundindo a exceção com a regra? Vamos
explicitar isso com um exemplo.
Coloque lado a lado uma criança nascida no seio de uma família de trabalhadores e outra que teve um
berço de ouro, típico da reduzidíssima classe alta.
A primeira, provavelmente, só vai ter acesso a papel, lápis, borracha, canetas, etc., com 6 ou 7 anos
quando, se tiver sorte, vai entrar na pré-escola ou diretamente na primeira série. Não bastasse isso, ela vai pegar
seus materiais numa mistura de temor e curiosidade alimentada pelos protestos dos pais que, encurralados por
uma renda familiar apertada, acham um absurdo a lista de materiais pedida pelos professores e não hesitam em
soltar alguns gritos quando lápis e caderno acabam.
Suas aulas acontecerão numa escola pública, com classes superlotadas, docentes mal remunerados e, às
vezes, despreparados, em horários que objetivamente são um obstáculo ao aprendizado e em estruturas físicas
7
As considerações sobre o pensamento de Say foram extraídas da tese de doutorado de Reginaldo Carmello Correa de
Moraes, Planejamento: democracia ou ditadura? - Intelectuais e reformas sócio-econômicas no pós--guerra, USP,
São Paulo 1987, pg. 247-248.
8
Texto citado em Manacorda M. Alighiero (1996) pg. 247.
9
que dificultam a concentração e a dedicação aos estudos. Em caso de notas vermelhas, tapas, puxões de orelha e
chineladas serão, talvez, o único reforço escolar oferecido no ambiente doméstico. Nas horas de descanso, não
poucas vezes esta criança terá que engraxar sapatos, vender sorvetes ou se dedicar a pequenos serviços que
ajudam a aumentar o orçamento familiar. As estatísticas dizem que, em breve, a precariedade das condições de
vida vai levar uma fatia desses alunos e alunas a abandonarem a escola. Na melhor das hipóteses, boa parte deles
irá completar os estudos após jornadas de trabalho estafantes ou optará por cursos profissionalizantes.
Vamos olhar agora para a criança da classe alta. As condições econômicas de que dispõe, e o próprio
ambiente doméstico, vão fazer com que o seu acesso à escola, cadernos, canetas, etc., aconteça muito mais cedo.
Sua formação se dará nos melhores institutos com direito a aulas particulares, cursos extracurriculares, viagens
ao exterior, dedicação exclusiva ao estudo, jornais, revistas, internet e o que tem de mais moderno no campo da
cultura e da informação. Além disso, esta criatura vai mandar nos empregados a serviço da família, é estimulada
a falar em público, a se afirmar nos círculos que freqüenta e, pouco a pouco, a cuidar dos negócios da família.
Afinal, berço é berço e não se discute.
Ou seja, apesar da lei e das autoridades não destinarem aos pobres esta ou aquela escola e de
incentivarem o acesso ao ensino, as condições de vida da classe trabalhadora e das elites se encarregam, por si
só, de viabilizar e reproduzir a discriminação que a igualdade de direitos diz querer corrigir.
Como? Você acha que isso é coisa de país subdesenvolvido? Então, está muito enganado. Ao falar do
ensino na Suécia, um documento da CEPAL/UNESCO constata:
“O impacto das diferenças sociais torna-se particularmente visível nos dois extremos do ciclo
escolar. De um lado, a proporção das crianças que não consegue êxito no ensino primário não
diminuiu nos últimos dez anos. Subsistindo um remanescente irredutível de 10 a 15% de excluídos.
No outro extremo, o ingresso na educação superior é determinado por uma prova altamente
competitiva - apenas 30% da faixa etária consegue superá-la. O acesso está fortemente condicionado
pela condição social do estudante e, por extensão, pelo tipo de formação pós-secundária recebida,
resultando favorecidos os alunos de formação geral mais longa, habitualmente integrantes dos
estratos mais abastados. Quer dizer, o sistema escolar altamente homogêneo não consegue eliminar
as condicionantes sociais relativas à origem do estudante”. 9
Pelo visto, não é pelo fato dos tubarões serem loiros, de olhos azuis e garantirem aos peixinhos
condições mais favoráveis que eles deixam de ser tubarões. Acontece que em qualquer sociedade baseada na
exploração (ainda que nos moldes do Estado do bem-estar social), tratar com igualdade situações econômicas
diferentes não elimina e sim aumenta as desigualdades. Os dados que se referem aos crescentes níveis de pobreza
e marginalização no primeiro mundo estão em todos os jornais. Parece incrível, mas é a pura realidade.
A segunda reflexão diz respeito à preocupação das classes dominantes com os valores e as idéias que são
ensinadas nas escolas. Além das aberrações que lotam os livros, vale a pena olhar, por exemplo, o que reza a
legislação do Texas (EUA) a respeito dos textos a serem adotados nas salas de aula. Esse Estado que integra um
país considerado a mais sólida democracia do planeta, prevê em suas leis que:
9
Em CEPAL/UNESCO (1985), pág. 399.
10
“O conteúdo do livro didático deve promover a cidadania e a compreensão das qualidades essenciais
e das vantagens do sistema de livre empresa, enfatizando o patriotismo e o respeito pela autoridade
constituída, promovendo o respeito pelos direitos individuais. Os livros didáticos não devem incluir
extratos ou obras que encorajem ou aprovem a desobediência civil, a agitação social ou o
desrespeito à lei, nem devem conter idéias que sirvam para o enfraquecimento da autoridade ou que
possam causar situações constrangedoras ou interferências na atmosfera de aprendizado na sala de
aula. Por fim, os livros didáticos não devem encorajar estilos de vida que se afastem dos padrões
geralmente aceitos na sociedade”.10
Até nas supostas melhores sociedades a democracia dos tubarões, desculpe, do capital só funciona bem
quando tudo se mantém nos estreitos limites da sua ordem. Para bom entendedor, meia palavra basta. O jeito,
agora, é nadarmos juntos nas correntezas do próximo capítulo.
2. O mundo do trabalho está com a palavra.
Na parte anterior, percebemos que a escola muda em função das mudanças que ocorrem na sociedade.
Por isso, o nosso primeiro passo não é analisarmos os ensinos fundamental e médio em suas diretrizes atuais,
mas sim o que está acontecendo no mundo do trabalho.
Com certeza, você já deve ter visto alguma reportagem sobre os novos maquinários das empresas. À
primeira vista, parece que está chegando uma avalanche de robôs inteligentes, prontos para substituir o ser
humano em todas as operações. Mas as coisas não são bem assim.
Em outubro de 2000, uma reportagem do jornal Gazeta Mercantil indica que, no Brasil, o contingente de
robôs está por volta das 2 mil unidades. Parece muita coisa, não é? Só parece. Este número, de fato, é
extremamente pequeno quando comparado com a minúscula Taiwan (4.500 robôs), com a Coréia do Sul
(27.000) ou com a Alemanha (60.000). Agora, se quiser ficar assustado mesmo, compare o total de engenhocas
em nosso território com as 402.000 do Japão!11
Isso significa que, apesar de representarem um avanço em relação ao passado, os robôs brasileiros são
instalados em pequenas ilhas de produção e não representam uma realidade que tende a generalizar-se no curto
prazo. Quem diz isso, não sou eu, pobre peixinho, e sim os tubarões, desculpe, os empresários. Vejamos:
“Nas novas fábricas de carros implantadas no Brasil a robotização é secundária. Quando aparecem,
os robôs estão concentrados na pintura e na armação, onde a carroceria é soldada. Na montagem há
poucos sinais deles. Quem pensava que nos novos tempos da indústria não haveria espaço para os
trabalhadores, se enganou. A mão humana continua funcionando melhor do que a eletrônica na
10
Este texto foi extraído de Apple M. W. e Oliver A “Indo para a direita - a educação e a formação de movimentos
conservadores” em: GENTILI P. (Org.) Pedagogia da Exclusão, pg. 279.
11
Os dados sobre o Brasil e o Japão foram publicados na matéria de Assis Moreira, Contingente Mundial de robôs
aumenta 12%, em Gazeta Mercantil, 19/10/2000. Os números que se referem à Taiwan, Coréia do Sul e Alemanha
constam de um relatório da ONU e da Federação Internacional de Robótica publicado pelo mesmo jornal em 29/10/97.
11
grande maioria das operações de montagem. E, além do mais, é mais barata, particularmente no
caso brasileiro. (...)
O custo da mão-de-obra dos novos pólos automobilísticos do país é baixo. Os salários em algumas
regiões chegam a ser até seis ou sete vezes menores dos que são pagos na Alemanha ou em outros
países da Europa para as mesmas funções na linha de montagem. As montadoras contam também
com alguns instrumentos de flexibilização da jornada de trabalho, como o banco de horas ou a hora
extra, que evitam a abertura de novos turnos de trabalho e podem representar uma importante
redução de custos fixos. Nesta situação, o investimento em robôs perde sentido”. 12
Uma década depois, a realidade mudou, mas não de forma significativa. Os salários continuam baixos e
é comum se deparar com uma rotação de pessoal que troca um operário de R$ 1800,00 por dois de R$ 900,00. 13
Algumas estimativas indicam que a chegada de novos investimentos e o atendimento de padrões internacionais
nas mercadorias exportadas levam o número de robôs à casa das 4.000 unidades. Ninguém nega este avanço,
mas, em comparação com os países desenvolvidos, trata-se, ainda, de algo bastante limitado. A maior parte da
inovação tecnológica continua baseada na troca de equipamentos manuais por máquinas automatizadas e
programas de computador que, como veremos, dispensam profissionais qualificados, via de regra, com salários
acima da média.
Depois de constatarmos que, em país de salário baixo, o robô tem visto de entrada restrito a algumas
operações, vale a pena dar uma olhada no que consiste a reestruturação produtiva da qual todos falam, mas
pouca gente sabe o que é.
Já faz um bom tempo que os empresários perceberam a importância do conhecimento que está na cabeça
dos funcionários para ampliar os resultados da empresa. Não, não se trata do que eles aprenderam na escola,
ainda que isso possa ter servido de base. Estamos falando do saber prático que se adquire no exercício diário das
tarefas e se aprimora na medida em que os empregados são chamados a resolverem os problemas do processo de
trabalho. Estamos falando de um macete usado para dar conta das metas exigidas, garantir certa vantagem
quando da disputa por uma promoção ou para implementar formas de resistência individuais e coletivas.
Consciente de que, no chão de fábrica, as relações humanas baseadas na repressão apenas impedem que
esta preciosidade seja comunicada à administração, a maior parte das grandes empresas desenvolve canais de
participação que levam empregados e empregadas a comunicarem o seu saber em troca de prêmios, gratificações
ou alguma forma de reconhecimento. Valorizado, o indivíduo veste a camisa da qualidade, conta o que sabe, dá
idéias, sugere mudanças, reduz os custos e... faz os lucros aumentarem. Quer um exemplo? Aí vai ele. Anos
atrás, a Atlantic realizou uma campanha interna contra a burocracia que infestava seus escritórios. De acordo
com a própria empresa,
12
Reportagem de Vicente Vilardaga, Montadoras brasileiras limitam o uso de robôs, em Gazeta Mercantil, 27/06/2000.
A título de exemplo, os dados da CUT/Dieese, divulgados pelo jornal Valor Econômico em 19/08/2010, constatam que,
no 1º semestre de 2010, os bancos criaram 9.048 vagas, fruto da demissão de 18.261 pessoas e da contratação de outras
27.309. Pelos números, seria de esperar um aumento dos gastos salariais, mas, infelizmente, o que ocorre é justamente
uma redução de 38,04% no salário médio que os bancos vão pagar ao contingente recém-contratado. De fato, o
vencimento médio dos demitidos era de R$ 3.531,15 (perfazendo um total de gasto salarial mensal de R$ 64.482.330,15),
contra R$ 2.187,78 dos novatos (ou seja, um gasto salarial mensal de R$ 59.746.084,02). A contas feitas, o novo
contingente permite que as instituições financeiras poupem nada menos do que R$ 4.736.246,13 em salários mensais.
13
12
“Os resultados do 1º ano de campanha foram, com a participação dos funcionários, 1.600 idéias e
1,5 milhão de papéis eliminados que corresponderam a 105 mil horas de trabalho ou ao trabalho de
50 homens por ano e uma economia de U$ 490 mil. Esses resultados levaram a empresa a tentar
transformar o tempo ganho em aumento da produtividade”.14
Como? Você quer saber o que aconteceu com os 50 homens cujo trabalho foi poupado? Quer mesmo que
eu diga... ou... já sabe? Sim, é isso mesmo, foram para o olho da rua. Claro, não sem ganhar os direitos legais,
algum benefício adicional e um caloroso aperto de mão do gerente.
O mesmo aconteceu com os funcionários da Atlas Copco de São Bernardo do Campo (SP) que na
década de 80 passam por um processo parecido. De acordo com as informações da Comissão de Fábrica, em
1984, esta empresa de motores para compressores empregava 2.500 funcionários que garantiam uma produção
média de 2000 motores por dia. Após sete anos de boas idéias e sem comprar máquinas novas, a Atlas Copco
chega a produzir 5.500 motores/dia com apenas 1.400 operários. É claro que este processo tem limites, mas aqui
estamos diante de alguns resultados do saber prático extraído com doses adequadas de agrados que enchem de
orgulho aqueles que, até ontem, eram tratados na base do cala a boca peão!
Resumindo, podemos dizer que, na maioria das grandes empresas, a reestruturação produtiva passa
inicialmente por uma reorganização das tarefas sugerida pelos empregados. Os patrões lançam mão de novos
equipamentos somente a partir do momento em que a capacidade instalada atinge o seu limite físico diante de um
mercado em expansão.
Enquanto isso não ocorre, ao vestir a camisa da empresa, trabalhadores e trabalhadoras ajudam a cavar
a própria cova na exata medida em que o saber prático é transferido para os equipamentos. É verdade que, nos
setores de ponta, o processo de demissão costuma ser mais lento, melhor remunerado, menos traumático do que
em outros lugares, mas, nem por isso, os peixinhos deixam de levar uma dentada do tubarão. Para quem fica,
além do medo de ser o próximo da lista, sobra um ritmo de trabalho alucinante e a labuta por metas cujas regras
foram legitimadas pelos próprios funcionários.
Espero não tenha esquecido de que estamos falando das maiores e melhores empresas. Quanto às demais,
não vai precisar se esforçar muito para constatar a forte presença do trabalho terceirizado, temporário, infantil e
outras pérolas que, volta e meia, ocupam os noticiários até da página policial. Nelas, a precarização e a
desqualificação chegam a possibilitar uma rotatividade anual de 50% da força de trabalho empregada. Some isso
ao contingente que, de acordo com o IBGE, reúne cerca da metade da População Economicamente Ativa na
informalidade e perceberá o verdadeiro rosto da reestruturação produtiva.
Por outro lado, não são poucas as situações em que a reorganização do trabalho conhece a introdução de
equipamentos informatizados para reduzir as paradas conhecidas como tempos mortos, nos quais o operador fica
à espera da retomada da produção. Se, por exemplo, a troca de ferramentas numa prensa manual levava cerca de
2 horas, nos equipamentos automatizados esta tarefa gira em torno dos 15 minutos, o que permite uma utilização
mais intensa da força de trabalho.
Mas isso não é tudo. De fato, os sistemas eletrônicos permitem controlar o desempenho dos funcionários
e saber, em tempo real, o que cada um deles está fazendo. Veja, por exemplo, o que acontece no setor de serviços
ao qual se refere o trecho deste estudo:
14
Em Atlantic «exorciza» a burocracia, publicado no jornal Folha de São Paulo.
13
“Os funcionários das empresas de call center que atendem os clientes são submetidos, de modo
sistemático e permanente, a diversas formas de controle que misturam tecnologias sofisticadas e
tradicionais no acompanhamento do trabalho, podendo envolver, como declarou Adriana, uma
monitoração constante dos funcionários no seu posto de trabalho através de câmaras de circuito
fechado de televisão. Na administradora Credicard, afirma Mariana, não existe um circuito interno
de TV, mas «existe o PA, um aparelho de monitoria que permite ao supervisor, a qualquer hora e sem
avisar, acessar qualquer ramal de qualquer atendente. Este tipo de monitoração costuma acontecer a
todo momento». O ambiente de trabalho é geralmente fechado e a disposição do trabalhador e o
emprego de biombos procuram impedir o seu contato com os demais.
A avaliação da produtividade é feita através de relatórios diários detalhados, os quais ficam
disponíveis para os funcionários na forma de «feed back», podendo ser extraídos a qualquer
momento do programa de computação empregado para o atendimento aos clientes. Estes softwares
podem fornecer, sempre que solicitado pelo empregador, o tempo utilizado nas respostas para cada
atendimento, o tempo ocioso, a demora em atender às chamadas e diversos outros itens que possam
interessar ao avaliador”.15
Ao ter seu desempenho sistemática e constantemente analisado, o funcionário tende a elevar o ritmo e a
evitar até mesmo as paradas destinadas a satisfazer suas necessidades fisiológicas. Você mesmo pode constatar
isso ao ver quantas garrafinhas de água povoam os balcões de atendimento dos bancos, das agências do correio
ou os guichês de qualquer empresa prestadora de serviços. Como levantar pra beber é sinônimo de perder tempo,
reduzir a produtividade, ser objeto de uma possível repreensão e prejudicar a avaliação de desempenho, o jeito é
submeter o corpo a uma disciplina férrea que eleva o estresse, a fadiga mental e o risco de distúrbios psíquicos.
Você não imaginava que os tubarões tivessem ido tão longe, mas esta é uma realidade que já faz parte do
quotidiano de inúmeros setores da economia.
Não bastassem as formas de reestruturação já citadas, muitas empresas passam pela terceirização de
suas atividades. Hoje, é comum que, por exemplo, o pessoal da vigilância, da limpeza, do restaurante e até
mesmo de tarefas essenciais, como a manutenção dos equipamentos, pertença a uma prestadora de serviços com
custos menores em relação aos diretamente contratados. Esta proeza só é possível porque os terceirizados
recebem salários e benefícios inferiores aos que são pagos aos demais funcionários.
O processo de terceirização, às vezes, conhece até mesmo a transferência de parte da produção a
pequenas e micro empresas ou a intermediários que montam uma rede de trabalho domiciliar para distribuir
matérias-primas e recolher produtos acabados. Chupetas e roupas de criança, por exemplo, são, respectivamente,
montadas e costuradas no ambiente doméstico de famílias onde país, filhos e avós se unem para dar conta do
recado em condições de trabalho e remuneração extremamente precárias.
O que acha? Será que esta forma de organizar a produção ajuda os tubarões a aumentarem os seus
lucros? Sabe, não quero parecer sectário, mas tenho a leve impressão que sim.
15
Em Rui Aguiar Dias, Modernização e superexploração: o trabalhador plugado pelo computador, em Cadernos do
CEAS (2000), reproduzido na revista Quinzena N.º 287 do Centro de Pesquisas Vergueiro, pág. 6.
14
Como a regra geral do sistema capitalista é produzir mais com menos gente e em tempos cada vez
menores, o resultado concreto da reestruturação produtiva só pode ser esse: do lado dos tubarões, um
crescimento constante da produtividade, da competitividade e do lucro. Nas cercas dos peixinhos... bem... mais
dificuldades, marginalização, desemprego e subemprego.
Sua impaciência revela que quer entender as relações entre este mundo e a escola. Em primeiro lugar,
como a maioria das pessoas em idade de trabalho vai estar desempregada, subempregada ou contratada em
micro, pequenas e médias empresas que passam longe da robotização e da informatização, a futura classe
trabalhadora não precisa de estudos para desempenhar as tarefas solicitadas.
A construção civil é, sem dúvida, um dos setores nos quais esta realidade se manifesta com força total.
Veja o que diz, numa entrevista, o presidente da Tecnisa, Carlos Alberto Julio, que mantém em suas
dependências uma escola corporativa:
“Imagine um servente de 22 anos, analfabeto: ele tem uma grande capacidade física para carregar
um saco de cimento até o 17º andar, mas quando ele chegar aos 42 ele não terá mais esse vigor.
Então ele será alfabetizado em nossos canteiros de obras. Nossos funcionários terminam o serviço,
tomam um banho quente, um café reforçado e vão para a sala de aula no canteiro de obras. E
recebem o diploma do MEC.
Esse nosso funcionário, quando aprende a ler e escrever, não necessariamente ficará mais produtivo
e terá um futuro melhor, mas ele começará a ler o boletim do filho, não tomará mais ônibus errado,
não atrasará mais, a obra fica limpa, porque na sala de aula a professora ensina conceitos de
higiene”.16
Para a Tecnisa, como para grande parte das empresas em nosso país, o empregado instruído é aquele que
sabe ler o letreiro do ônibus (para não usar como desculpa do atraso o fato de ter pegue a condução errada), evita
desperdícios e é capaz de fazer contas elementares. Para isso, a escola atual e até boa demais e nem precisaria de
tantas matérias para ensinar tão pouco. De resto, o funcionário não terá maiores dificuldades para aprender o que
suas funções exigem, tamanha é a desqualificação das tarefas que irá desempenhar.
O que disse? Você não consegue entender por que estão pedindo o ensino fundamental completo de um
candidato a gari? Isso é fácil de ser explicado. Olhe ao seu redor e me responda: o que mudou no trabalho de um
gari ao longo dos últimos dez anos?
Você acertou! Não mudou nada.
O gari, de fato, continua sendo aquela figura que corre atrás do caminhão de lixo recolhendo os sacos
que os moradores deixam nas calçadas e jogando-os na traseira do mesmo caminhão. Suas habilidades ainda são:
agilidade, resistência física, um bom estômago para agüentar o fedor e um mínimo de pontaria a ser aprimorada
no exercício da função.
Mesmo nos casos de coleta seletiva, não há necessidade de saber ler e escrever já que papel, vidro,
plástico e metais são depositados em recipientes de cor diferente e, na dúvida, é só levantar a tampa dos mesmos,
ver ou apalpar para identificar do que se trata. Definitivamente, um analfabeto poderia desempenhar as funções
16
A íntegra da entrevista foi publicada pelo Diário do Comércio e da Indústria em 17/08/2009.
15
de gari sem ter problemas maiores dos que são enfrentados por um colega que cursou o ensino fundamental
completo.
O fato é que a falta de emprego faz os trabalhadores começarem a relacionar a piora de suas condições
de vida com a exploração mantida pelos tubarões, o que pode dar origem a protestos imprevisíveis. Para driblar
esta possibilidade, os predadores buscam transferir para o sujeito a responsabilidade do desemprego criado pelas
necessidades do sistema capitalista.
Ficou difícil? Então se imagine numa daquelas filas de pessoas que amanhecem todos os dias na portaria
de uma empresa com a esperança de serem contratadas. O guarda sai, faz perguntas, alguns vão embora e outros
deixam a carteira profissional na mão dele. Chegando a sua vez, ele começa a balançar a cabeça quando você diz
que não completou o ensino fundamental e, em seguida, te dispensa. Parece incrível, mas ao ver os convidados a
preencher a solicitação de emprego, você acha que trabalho tem, mas o problema está nos estudos exigidos.
Convencido disso, vai se matricular em alguma escola. Sem dúvida, estudar vai lhe fazer bem. Mas ao
voltar para a firma com o diploma na mão, o mesmo guarda, provavelmente, dirá que aquelas vagas já foram
preenchidas e para as que sobram... bem... o dono está exigindo o ensino médio. Novamente, você inocenta o
sistema e assume a culpa pelo seu desemprego sem sequer perceber que na rua da amargura tem muita gente com
diploma universitário...
Este mesmo processo se repete diariamente com milhares de pessoas que acreditam piamente nas
supostas chances de subir na vida. Para elas, o sistema é bom e o verdadeiro problema está em não terem tido a
oportunidade de estudar ou terem ficado bagunçando no lugar de participar das aulas. Resumindo, a exigência do
canudo faz com que os patrões matem dois coelhos com uma cajadada só: de um lado, resolve alguns problemas
do processo de trabalho e, de outro, é parte dos elementos que levam grandes cardumes de peixinhos a se
conformarem com a sua realidade.
Assustado? Agüente firme. Nadar neste mar não é fácil.
3. A robótica, os novos trabalhadores e o ensino de qualidade.
Quando pensamos num robô ou num equipamento informatizado, temos a impressão de que seus
operadores devem ser pessoas altamente capacitadas. As coisas não são bem assim.
A introdução de sistemas automatizados demanda um número extremamente pequeno de funcionários
com novas e mais elevadas qualificações. Na indústria, por exemplo, os técnicos que reparam eventuais falhas de
equipamento e de programa, que adaptam as engenhocas eletrônicas às características de cada local e garantem
seu funcionamento ininterrupto costumam ter cursos de especialização realizados, às vezes, em centros mantidos
pelos fabricantes. Sua escassez momentânea garante salários acima da média, uma boa cesta de benefícios e um
processo de constante atualização profissional.
Mas, ao lado deste grupo seleto, as novas tecnologias não exigem operadores que tenham qualificações
especiais. Ao contrário, como a supervisão dos equipamentos é feita através de terminais de computador, o que
se pede são habilidades que se resumem a:
1. Saber ler e entender o que está sendo lido. Obviamente, não estou falando daquela leitura sílaba por sílaba e
sim de uma que seja rápida o suficiente para acompanhar o texto que aparece no monitor e compreender sem
demora as operações que estão sendo solicitadas.
16
2. Escrever sem cometer erros de ortografia. Os computadores não reconhecem comandos que não tenham sido
digitados com a seqüência de letras que consta dos seus programas. A velocidade do processo de trabalho
não permite que os operadores percam tempo com as tentativas que seriam necessárias para acertar a palavra
que faz o robô voltar a funcionar.
3. Conhecimento e manuseio de um teclado. Melhor ainda se o candidato tiver passado por um curso de
datilografia ou de informática. Isso vai ajudá-lo a ter maior segurança e agilidade na hora de digitar as
respostas solicitadas pelo equipamento.
4. A capacidade de lidar com máquinas e aprender noções elementares de eletricidade, mecânica e informática
repassadas, via de regra, durante a fase de treinamento.
Sabendo que os programas dos robôs são propriedade exclusiva de cada empresa e não há escola que
possa ensinar a operá-los, agora você entende porque está sendo exigido o ensino médio completo para ser
contratado como operário de uma montadora. Ninguém pede deste nível de escolaridade a profissionalização de
seus alunos e sim que os capacite nos requisitos básicos exigidos. Eu sei que o ensino fundamental já deveria dar
conta da leitura, do entendimento de texto e da escrita, mas você sabe que a escola ficou tão fraca a ponto de ter
gente saindo da oitava série semi-analfabeta. O que os tubarões esperam de alguém que pleiteia essas vagas é que
saiba ler, escrever e digitar, usando todos os dedos, auxilio e não aussilho toda vez que a máquina requer esse
comando.
A sua cara me diz que está achando isso meio estranho. Então vou lhe dar dois exemplos extraídos de
estudos realizados na indústria metalúrgica e nas centrais de atendimento informatizadas.
A diferença de qualificação entre o operador de uma máquina manual e de um equipamento
informatizado aparece de forma gritante neste relato:
“Quem trabalha numa mandriladora manual tem que ter muito mais conhecimento. Hoje em dia, a
máquina faz praticamente tudo. Mas se você trabalha numa convencional, você tem que seguir o
desenho etapa por etapa; você tem que puxar a coordenada em «X» e em «Y»; você tem que ter
precisão. Se você tem que furar aqui, você tem que saber que tem que ter 6 mm do outro lado, por
exemplo. Nessa em que eu estou não. Se a peça sair errada o problema é do programador, não é
meu. Numa mandriladora convencional você tem que ter qualificação mesmo. Você tem que quebrar
a cabeça pra você não errar, para seguir o desenho nos conformes, porque se você errar o erro é
seu, que lá não tem programador. Você tem que conhecer muito mais de desenho e de processo”.
17
Ao falar dos novatos que lidam apenas com equipamentos informatizados, o operário diz:
“O pessoal mais velho chama os caras da ilha de «robozinho» porque eles ficam só tirando peça. O
pessoal gosta de zombar deles porque lá eles só sabem apertar botão e trocar peça. Para tocar as
novas máquinas é só dar um treinozinho que o cara já está bom”. 18
17
Texto extraído da pesquisa de Márcia de Paula Leite, Inovação tecnológica e relações industriais: um estudo de caso
na metal-mecânica. Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, 1991, Mímeo, pg. 12
18
Idem, pg. 13.
17
O mesmo ocorre com os torneiros mecânicos transformados em operadores de máquinas acionadas por
comando numérico (CNC). Como no caso da mandriladora, o equipamento dispensa os conhecimentos e as
qualificações do passado. Conectado á rede telefônica, as coordenadas de usinagem são transmitidas diretamente
do departamento de projetos que pode estar, literalmente, do outro lado do mundo. Cabe ao operador ajustar na
máquina a peça metálica a ser trabalhada, fechar a porta que serve de proteção, aguardar a transferência de
dados e, após a autorização luminosa do painel, apertar o botão que inicia o processo. Terminada a usinagem, ele
retira a peça, a coloca num carrinho e a encaminha ao departamento que fará as verificações necessárias. Nada
que alguém minimamente treinado não possa fazer.
Agora, vamos sair da metalurgia para entrarmos na sala de uma central de atendimento ao cliente. Como
você pode ver, tem computador pra tudo quanto é lado, gente que não desgruda os olhos do monitor enquanto
digita informações passadas por telefone. Será que este trabalho exige um grau de qualificação elevado? Ao
contrário.
“Até recentemente, exigia-se dos empregados recrutados para os serviços de atendimento um certo
domínio de computação, sendo os candidatos submetidos a um treinamento na empresa, uma vez que
as linguagens utilizadas nos programas de computação eram mais complexas e as interfaces não tão
amigáveis como nos modelos atuais. Também requeria-se um preparo no trato com os cliente e,
principalmente, uma certa capacidade de tomar decisões baseadas nas respostas fornecidas pelos
mesmos.
Com o aparecimento de novos softwares auto-explicativos, com os scripts padrão para as falas e as
rotinas pré-estabelecidas, cabe ao novo trabalhador digitar apenas as respostas nos campos
oferecidos na tela do computador, enquanto o programa se encarrega de fazer a avaliação da
resposta do cliente e indicar o passo seguinte a ser dado pelo atendente. Em alguns casos, a
tecnologia se encarrega até de determinar quanto tempo o atendente deve perder com um ou outro
cliente, dependendo da sua importância para a empresa”. 19
Tenho certeza de que não precisa de comentários para explicitar depoimentos tão ilustrativos. Agora já
sabe que, contrariando a ênfase dos discursos oficiais sobre a qualidade do ensino, o que os tubarões querem
mesmo é que a escola ajude na formação de um trabalhador que tenha olho vivo, mão ágil e certa predisposição a
se deixar esfolar. Nesta perspectiva, quando o sujeito domina o essencial não há porque insistir que ele aprenda
história, geografia, filosofia, literatura, sociologia etc., que, dizem os predadores, não tem muito a ver com o
mundo da produção.
Para eles, mais do que o saber propriamente dito, o que importa são as competências de base, ou seja, os
elementos que a escola pode desenvolver para preparar o acesso ao trabalho. Longe de ser coisa de terceiro
mundo, esta postura vem sendo discutida há mais de uma década nos países da União Européia. Ao tratar do
assunto no Plano de Desenvolvimento da Educação para o período 2010-2014, Androulla Vassiliov, resume em
algumas frases as prioridades da comissão que chefia:
19
Em Ruy Aguiar Dias, texto citado, pg. 5.
18
“Aperfeiçoar as competências e o acesso à educação, concentrando-se nas necessidades dos
mercados; ajudar a Europa a participar da competição globalizada; equipar os jovens para o
mercado de trabalho atual; e responder às conseqüências da crise econômica”. 20
Se ficou difícil entender a colocação, aqui vai um exemplo esclarecedor. No ambiente europeu, um dos
empregos considerados não-qualificados é, sem dúvida, o de balconista no vagão restaurante de um trem
internacional. A pessoa contratada deve ser uma espécie de pau-pra-toda-obra. De fato, exige-se dela que saiba
se comunicar de maneira elementar em línguas diferentes; possuir certa disposição para o cálculo mental;
dominar um mínimo de cultura tecnológica, digital e científica para conseguir lidar com uma variedade de
instrumentos (forno, micro-ondas, ebulidor, caixa registradora, leitores de cartão bancário, refrigerador, sistema
de alto-falante, painel de alimentação elétrica, etc.). Também precisa demonstrar competências sociais e
relacionais no contato com clientes muito diferentes, além de senso de iniciativa, espírito empreendedor e
flexibilidade (em razão dos horários e dos imprevistos que podem ocorrer nos trens).
Hoje, esta lista de competências para o que é considerado um posto não-qualificado, por si só, exclui
nada menos do que 30 milhões de trabalhadores da União Européia. No momento, a baixa disponibilidade desta
força de trabalho obriga as redes ferroviárias a contratarem pessoas mais qualificadas e com salários maiores.
Daí a necessidade de apressar os tempos na capacitação de homens e mulheres que tenham os requisitos
apontados e permitam uma forte redução dos ordenados.
Diante de um mercado que demanda crescente flexibilidade e capacidade de adaptação ao trabalho em
cargos não-qualificados, a Comissão Européia para a Educação toma a iniciativa de apresentar uma lista de
competências elementares. Esta deve servir de ponto de partida para uma reforma dos sistemas de ensino
fundamental, médio e profissional de cada país membro a ser realizada até 2020. Como ninguém sabe como
serão as técnicas a serem utilizadas no trabalho daqui a dez anos, ninguém pode prever as necessidades precisas
em termos de conhecimento e qualificação, daí o constante e inevitável atraso dos programas educativos. O que
se sabe a partir do presente é que para se adaptar à evolução do mercado de trabalho, as escolas devem
desenvolver nos alunos as competências que seguem:
“Comunicação na língua materna; comunicação em línguas estrangeiras; competência matemática e
competência de base em ciências e tecnologias; competência digital; aprender a aprender;
competências sociais e cívicas; espírito de iniciativa e de empreendedorismo; sensibilidade e
expressão culturais”.21
Sim, você entendeu bem. Não há nenhuma preocupação com a necessidade de fazer com que os
estudantes tenham uma bagagem cultural maior, mas tão somente que as escolas repassem noções e aptidões cuja
aplicação e desenvolvimento atenda à demanda do mercado e comprometa o sujeito com sua própria
empregabilidade.
Além de desnecessária para a realização das tarefas, a posse de conhecimentos e critérios de análise
capazes de proporcionar uma visão de mundo mais ampla seria um perigo para os tubarões. O fato de
20
21
Em Nico Hirtt, Adaptação e flexibilidade, e,m Le Monde Diplomatique Brasil, Ano 4, Número 39, Outubro de 2010.
Idem.
19
trabalhadores e trabalhadoras terem melhores condições de compreender a vida em sociedade pode levar a
rejeitar a banalização da injustiça social, a sair da submissão, a despertar a indignação, a questionar a
exploração e a criticar o que os empresários insistem em apontar como valores capazes de garantir o sucesso
pessoal, o progresso e o crescimento da nação.
É por isso que, no Brasil e no mundo desenvolvido, o empobrecimento cultural das futuras classes
trabalhadoras não é um efeito colateral indesejado, próprio da escola pública. Ele é sim uma necessidade do
sistema que não hesita em criar as condições materiais (salas superlotadas, professores desmotivados, carências
de todos os tipos) para que a falta de bagagem cultural possa acontecer de forma natural e controlada em
benefício de competências que não demandam conhecimentos consistentes. Entre elas, saltam aos olhos a
capacidade de trabalhar em grupo; um mínimo de criatividade para associar e adaptar conhecimentos básicos
elementares; o foco na empregabilidade como objetivo permanente e razão de ser da aceitação voluntária dos
sacrifícios exigidos; e as noções de empreendedorismo vinculadas a uma iniciação profissional ou à habilidade de
prever possibilidades e conseqüências das escolhas a serem implementadas.
Não sei se percebeu, mas há aqui duas respostas para as críticas corriqueiras: o fato de a escola não
preparar para o mundo do trabalho e a não reprovação dos alunos. De um lado, em graus e níveis diferenciados a
depender da situação de cada país, a adaptação do ensino ganha formas e expressões proporcionais à média das
competências e qualificações exigidas em cada setor da economia. Por sua vez, estas competências e
qualificações são definidas a partir das características e do nível tecnológico empregado no trabalho, o que
implica na impossibilidade material de a escola se adiantar à evolução dos maquinários, pois é justamente esta
evolução que define o ritmo das mudanças e das aptidões exigidas pelo mercado. De outro, como, no Brasil, as
vagas para trabalhos que exigem habilidades apreendidas na escola são bem reduzidas, elas podem ser facilmente
preenchidas por quem estudou em instituições privadas ou por alunos dedicados da escola pública.
O que preciso ficar claro é que, para os tubarões, o objetivo final é sempre o mesmo: moldar um
trabalhador confiável, que vincula a realização pessoal às metas da empresa, se dispõe a superar os próprios
limites, vê a competência como atendimento das demandas empresariais e a manutenção do emprego como meio
imprescindível para realizar sonhos de consumo que proporcionem reconhecimento social. 22
Na medida em que as pessoas vivenciam a busca do lucro, o interesse pessoal, a acumulação e a
competição como algo natural, elas tendem a se conformar com a necessidade de fazer sacrifícios para adequar
constantemente suas vidas às exigências da ordem dominante. Esta lógica funciona tão bem que as visões de
mundo contrárias ao sistema não só desaparecem do imaginário da classe trabalhadora, como são por ela
condenadas como fora da realidade.
Você deve estar achando que agora a imaginação passou dos limites e que a fantasia tomou o lugar da
análise objetiva. Seria bom se fosse, mas, infelizmente, não é assim.
Com certeza, já deve ter ouvido falar que as empresas vêm implantando a produção enxuta baseada num
método japonês conhecido como Just-in-Time (no tempo certo). Em outras palavras, isso significa que, por
exemplo, nas fábricas estão sendo eliminados os estoques de matérias-primas e produtos semi-acabados na
passagem entre um setor e outro da linha de montagem. De um lado, isso ajuda os empresários a poupar muito
dinheiro, mas, de outro, a falta de algum componente ou o atraso em sua reposição podem paralisar o trabalho
22
Uma análise bem mais aprofundada desta questão pode ser encontrada no estudo de Emilio Gennari, Da alienação à
depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento, Mímeo, São Paulo, 2010, 2ª Edição.
20
em poucas horas. Cientes desta vulnerabilidade, os patrões têm gastado um bom dinheiro para aprimorar os
mecanismos de seleção, controle do desempenho e das relações que se estabelecem entre os funcionários a fim de
evitar formas de resistência individuais e coletivas que atrapalhem o andamento da produção.
Os tubarões sabem que os ensinos fundamental e médio não têm condições de fazer com que os futuros
trabalhadores assimilem de forma consistente os conceitos de lucratividade, produtividade, competitividade,
eficiência, e nem as qualificações necessárias para atender plenamente as demandas do mercado. O que eles
querem é que o ambiente escolar apenas ajude a criar alguma predisposição a este processo que se realizará no
âmbito da empresa ou em cursos de capacitação específicos.
É claro que não se trata de uma tarefa fácil e seria ingenuidade nossa pensar que ela pode ser entregue a
um corpo docente despreparado, mal remunerado e politicamente pouco confiável. A relativa autonomia que
professores e professoras ainda têm ao lecionar torna praticamente impossível controlar o conteúdo e os valores
transmitidos. Um profissional revoltado com suas condições de vida e de trabalho ou um peixinho vermelho
minimamente esperto podem alimentar o senso crítico dos alunos e estimular no cardume a necessidade de se
rebelar perante as injustiças e se capacitar para deixar de ser mero expectador da cena social.
Sim, eu sei que isso acontece poucas vezes, mas, ainda assim, tanto o Estado como os empresários já
perceberam a necessidade de arranhar esta liberdade do corpo docente e de neutralizar as posições que divergem
da lógica dominante. Os primeiros passos nesta direção têm apontado várias possibilidades. Uma delas tem sido
a padronização do material didático usado na sala de aula e sua imposição ao corpo docente. Ou, ainda,
implantando nas escolas alguns projetos controlados e dirigidos por organizações não-governamentais,
vinculadas à iniciativa privada, que tendem a se legitimar perante a comunidade local na medida em que suprem
algumas das carências do Estado.
Cientes de que isso é muito pouco, várias grandes empresas têm optado por realizar a formação de seus
futuros empregados organizando escolas para crianças e adolescentes dos 7 aos 16 anos. É o caso, por exemplo,
do grupo Randon, líder brasileiro em implementos rodoviários, com sede em Caxias do Sul, RS. Com um
faturamento bruto que, em 2010, atinge os R$ 4 bilhões, a empresa conta com um centro educacional próprio
onde atende cerca de 350 alunos até os 14 anos de idade no programa Florescer. Este número vai se estreitando
fortemente no projeto Qualificar destinado à faixa etária entre os 14 e os 16. Enquanto os jovens cursam o
ensino médio oficial a empresa usa as horas vagas para uma formação que inclui aulas de matemática básica,
português instrumental, informática, inglês, esportes e o que chama de educação para o trabalho. Os alunos que
se destacam ganham a possibilidade de aprimorar seus conhecimentos com aulas e treinamentos relacionados à
solda, usinagem, pneumática, hidráulica, metrologia, eletrônica, montagem de componentes automotivos.
Completados os 16 anos, os melhores talentos recebem uma tentadora oferta de emprego na Randon que,
graças ao sistema por ela implementado depende muito menos da contratação de quem não conhece e pode
alavancar suas metas futuras com base numa força de trabalho jovem, dedicada, confiável e com elevado
sentimento de gratidão.23
A esta relação direta com a formação e seleção dos futuros empregados, os empresários vêm associando
fortes investimentos em cursos à distância. É claro que não se trata de algo aberto a qualquer pessoa, mesmo
23
Dados extraídos da reportagem de Guilherme Arruda, Randon dá oportunidade a adolescentes, em Gazeta Mercantil
26/07/2006 e da matéria de Sérgio Bueno, Em busca do tempo perdido, em Valorinveste, novembro de 2010.
21
porque a exigência mínima de que o aluno tenha um computador ligado à internet, por si só, limita o número dos
que podem desfrutar desta possibilidade.
As atividades monitoradas através da rede colocam os envolvidos em condições que se aproximam às de
um simulador de vôo para pilotos. Além do conteúdo propriamente dito, programas e professores criam situações
que permitem avaliar as reações de quem está do outro lado da linha, sua capacidade de assumir riscos, de
encaminhar soluções, de incorporar formas de comportamento e valores considerados adequados pela empresa. É
assim que, sem grandes gastos, os patrões conseguem realizar uma pré-seleção de candidatos que apresentam um
padrão de respostas, atitudes e competências importantes para as vagas oferecidas, a ser verificado e lapidado
nos momentos que seguem.24
Como você pode ver, as investidas dos tubarões são grandes e dificultam a construção de uma visão
crítica de seus objetivos e dos meios que utilizam para alcançá-los. Se é verdade que os ensinos fundamental e
médio precisam mudar em vários aspectos, as intervenções empresariais e a própria realidade devem nos
despertar para algumas perguntas básicas: em que mudanças estamos apostando? A que interesses elas atendem?
Que futuro preparam para a coletividade? Nosso entendimento em relação ao Estado e à educação é suficiente
para responder a estes desafios? Até a que ponto a postura e o desempenho em sala de aula acabam reafirmando
uma realidade que pretendemos negar?
Sim, eu sei que é uma verdadeira enxurrada de perguntas. Por isso, respire fundo, ajeite a máscara, olhe
para o caminho percorrido e se prepare para nadar mais um bocado porque aí vem...
4. O Estado “educador”.
Já deve ter percebido que toda greve ou protesto dos profissionais do ensino denuncia um Estado que não
está cumprindo com a tarefa de proporcionar uma educação de qualidade. Ao esperar que atenda suas
reivindicações, os docentes demonstram ver nele uma instituição imparcial que, ao colocar-se acima dos tubarões
e dos peixinhos, pode restabelecer as condições que levam ao bem comum.
Na maioria das vezes, as demonstrações de descontentamento são seguidas por uma longa e paciente
espera por mudanças que acabam não acontecendo ou, quando se tornam realidade, costumam frustrar as
expectativas. A sensação de desânimo que se instala nas escolas tende a fazer com que os manifestantes de ontem
se conformem com a nova situação e comecem a revelar certa falta de compromisso com o trabalho educativo.
Será que já não passou da hora de se perguntar qual é o papel do Estado na sociedade? Se é verdade que
ele age com imparcialidade, por que, em geral, suas decisões acabam favorecendo algum grupo empresarial? Se,
como dizem os meios de comunicação, o objetivo é o de promover o bem comum, por que são sempre as classes
trabalhadoras a pagarem a conta?
São perguntas simples, mas que, ao orientarem a leitura dos acontecimentos, levariam muitos peixinhos
a acharem que tem algo errado em sua maneira de ver o mundo.
Então, vamos refletir um pouco mais sobre a questão do Estado. Já pensou no que aconteceria se cada
tubarão organizasse o seu pedaço de mar em luta aberta com os demais tubarões? É isso mesmo, não demoraria
24
Heron A. Sâmara, Possibilidades do e-learning, em Gazeta Mercantil 11/09/2001 e Soraia Haddad, Adesão ao elearning dobra no país desde o início do ano, em Gazeta Mercantil, 15/04/2002.
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nada para que cada um começasse a agredir o outro e não só a devorar os peixinhos que mantém sob o seu
domínio. Em pouco tempo, se instalaria uma guerra total que ameaçaria a ordem de exploração construída pelos
predadores. Faz-se necessário, portanto, que haja uma espécie de acordo de cavalheiros pelo qual as lutas
internas não ameaçam a sobrevivência da espécie e seja preservada a continuidade do que garante aos patrões a
possibilidade de acumular riquezas às custas dos trabalhadores.
Para isso, os predadores são chamados a reconhecer um conjunto de instituições, regras e formas de
comportamento capazes de garantir a manutenção da ordem. Precisam, digamos, de um Estado tubaronense que,
mesmo tendo um peixinho como presidente, ajude a perpetuar a exploração ora através da coerção, ora do
convencimento. O uso prioritário de uma das formas vai depender do momento, da rebeldia dos peixinhos e da
possibilidade de obter o consentimento destes às medidas sugeridas pelos tubarões.
Lá pela década de 20 do século passado, teve um peixe vermelho que nadou pelos mares da Itália e, de
um tenebroso presídio no qual havia sido preso por suas atividades políticas, escrevia que o Estado não pode ser
visto como um juiz imparcial e sim
“como o organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à máxima
expansão do próprio grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e
apresentados como a força motora de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as
energias nacionais; ou seja, o grupo dominante vem coordenando concretamente seus interesses com
os interesses gerais dos grupos subalternos e a vida do Estado é concebida como um seguido formarse e superar-se de equilíbrios instáveis, no âmbito da lei, entre os interesses do grupo fundamental e
os interesses dos grupos subordinados”. 25
Em outras palavras, o Estado é formado por um conjunto de organismos cujas atividades permitem à
elite permanecer no poder e fazer com que este se torne ainda maior graças a um movimento pelo qual os
peixinhos acreditam que eles também se beneficiam com as condições que sustentam o crescimento dos tubarões.
É como se, diante do predador, a pequena sardinha dissesse: Um dia eu também chego lá! E isso não
porque ela vai mudar de espécie, mas porque conseguiu abrir uma vendinha informal de minhocas que foi
destaque no Pequenas Empresas Grandes Negócios. E, diante do reconhecimento obtido, não são poucos os
peixes que se convencem da própria chance de subir na vida, da necessidade de começar de baixo, de suar a
camisa, de ter visão do mercado e ser competentes no que fazem como condições para o sucesso.
Bom, nada impede à sardinha empreendedora de virar almoço dos predadores e ter seu negócio destruído
a qualquer momento. Mas, como dizem os terrores dos mares, outros podem se afirmar em seu lugar. O
importante é que os habitantes marinhos continuem convencidos de que podem crescer e até virar predadores,
sem perceber que, se isso fosse realmente possível, estaria decretada a morte dos tubarões, cuja sobrevivência
depende de uma massa crescente a ser devorada.
Agora, para que esta maneira de interpretar a realidade se torne senso comum, cabe também ao Estado a
tarefa de moldar a visão de mundo dos pequenos fazendo com que orientem o cotidiano de acordo com os valores
e as formas de comportamento dominantes. Neste contexto, a escola é apenas um dos meios pelos quais as elites
dialogam com os cardumes, perdão, com as massas, levando-as a abandonarem aquelas crenças, valores e
25
Em Gramsci A. Quaderni del Carvere, pg. 1584.
23
atitudes que dificultam a manutenção e o aprofundamento da exploração. Cria-se, assim, um consenso básico em
torno de idéias que parecem certas e inquestionáveis por apontarem um futuro promissor que justifica e legitima
os sacrifícios do presente.
Para dar consistência a este processo, não faltam formas de participação e envolvimento da cidadania
marinha em eventos cujas metas, normas, critérios e duração são estabelecidos e controlados pelos tubarões. Por
isso, aparentemente, ninguém pode dizer que os peixinhos não estejam vivendo numa sociedade democrática. O
que poucos vêem é que eles são livres de fazer o que os interesses dos predadores apontam como bom, justo,
sábio e moderno. Ou, como diz Eduardo Galeano, em Palavras Andantes:
“A liberdade do mercado te permite aceitar os preços que te são impostos. A liberdade de opinião te
permite ouvir os que opinam em teu nome. A liberdade de escolha te permite escolher o tempero com
que serás comido”.
Trocado em miúdos, o que os peixinhos têm dificuldade de perceber são as relações que se escondem por
trás desta aparência democrática. São elas que ao dirigir as mudanças no interior da escola e da sociedade não
têm o objetivo de melhorar o ensino e as condições de vida da coletividade e sim de garantir que estes se adaptem
aos interesses empresariais, garantam a adesão a seus valores e ajudem a esvaziar o descontentamento social.
Quer um exemplo? Lá vai ele: os Amigos da Escola. A escolha deste nome não foi feita por acaso. Você
mesmo já deve ter dito mais de uma vez que amigo de verdade a gente vê na hora do aperto. Pois estamos
falando justamente de uma situação na qual os poucos recursos públicos destinados à educação têm aumentado a
lista de carências e precariedades com as quais costumamos nos deparar nas escolas públicas. Diante das queixas
do corpo docente, das denúncias veiculadas pela mídia e dos protestos de pais e alunos, o Estado tubaronense em
sua versão municipal, estadual e federal, dá a sua resposta: no lugar de ficar apontando problemas, crie você
mesmo a solução!
É isso mesmo! Se na sala onde seu filho estuda o telhado estiver vazando, você que é pedreiro ajude a
providenciar o conserto. Faltou merenda? Então organize uma horta comunitária de onde tirar o reforço para a
comida da garotada. Cansou de ver as paredes pichadas? Passe o final de semana pintando a escola! Os
marginais estão tomando conta do portão? Por que você não se une aos pais de outros alunos para manter um
esquema de vigilância permanente?
O que incomoda não é a participação e o envolvimento da comunidade que se aproxima de um ambiente
onde, até ontem, se limitava a depositar o filho no começo das aulas para retirá-lo horas depois. Este, no caso, é
um sinal de que a solidariedade continua viva apesar do crescente individualismo no qual foram mergulhadas as
relações sociais. O que angustia é a sonora risada que sai da boca dos predadores após os comentários que eles
tecem em homenagem ao trabalho voluntário dos peixinhos. É que o grau de submissão e conformismo chega a
tal ponto que não estamos nos apercebendo de coisas bem simples.
Primeiro, apesar de pagarmos uma pesada carga de impostos, não só não recebemos de volta os
benefícios correspondentes como somos chamados a pagar novamente com o nosso trabalho pelas conseqüências
do descaso, das falcatruas, das roubalheiras e da corrupção que reduzem o dinheiro a ser destinado à educação.
Como está difícil tirar mais tributos de salários minguados, o caminho que os tubarões encontraram é justamente
o de cobrar a diferença na forma de trabalho voluntário.
24
Mas isso não é tudo. Não sei se você sabe, mas cerca de 35% dos gastos do governo federal se destinam
a pagar os custos dos empréstimos contraídos junto aos bancos através de títulos do tesouro (a tal da dívida
interna). É justamente o dinheiro dos impostos que não vai para a educação, saúde, moradia, transporte, etc., que
serve para remunerar as polpudas quantias que os tubarões emprestam ao Estado através de aplicações no
mercado financeiro. É por isso que eles estão rindo à toa toda vez que vêem nosso trabalho substituir a
intervenção do Estado. Quanto mais ele poupa, mais está garantido o dinheiro para seus cofres! De quebra, ao
resolver os problemas da escola, o descontentamento diminui e as pessoas começam a se convencer de que
encontraram a solução para a ineficiência da administração pública, ao mesmo tempo em que continuam
deixando na mão dela (e, portanto, dos tubarões) vultuosas quantias que não serão revertidas a seu favor.
Só pra pensar. Você já imaginou o que aconteceria se, no lugar de substituir o Estado, a presença da
comunidade na escola se tornasse momento de encontro de quem, cansado de ser enganado, decide utilizar suas
energias para desmascarar os predadores e cobrar parte da conta paga com seus sofrimentos? Será que não é
exatamente a ausência desta cobrança e da participação necessária para dar vida às ações que a sustentam a
garantir que os tubarões nadem sossegados em mares calmos e de comida farta? Bom, como você é inteligente,
aposto que conhece as respostas.
Outra forma de ocultar a realidade e apontar um bode expiatório pelo mau desempenho dos alunos é
proporcionada pelo sistema de remuneração com o qual o Estado expressa a suposta valorização do trabalho
docente. Longe de garantir um piso salarial que retribua os anos dedicados aos estudos e proporcione sua
continuidade, várias administrações estaduais e municipais vinculam formas diferentes de abono ao nível de
aprendizado medido em testes oficiais que provocam, pelo menos, duas distorções e uma injustiça.
Em primeiro lugar, a pontuação obtida por cada escola pode ser artificialmente aumentada na medida em
que as aulas destinam-se a responder aos testes e não a proporcionar um trabalho pedagógico consistente e
condizente com a idade e a realidade dos alunos. Em segundo lugar, alguns sistemas de remuneração vinculam
boa parte do benefício à diferença de desempenho consolidada de um ano pra outro. Por exemplo, numa escala de
zero a cinco para a avaliação da unidade escolar, a que recebeu nota 0,3 no ano letivo anterior e no atual passa a
0,6 vai obter a parte integral da gratificação que se refere a este item pelo fato de os estudantes terem dobrado a
pontuação obtida, apesar desta se colocar em patamares inegavelmente insuficientes. Por outro lado, os alunos de
uma escola que tiraram nota 4 doze meses antes e 4,5 no último teste proporcionam apenas 12,5% de adicional
ao benefício, apesar de estarem próximos do nível mais elevado.
A injustiça diz respeito ao fato de responsabilizar direta e unicamente quem ensina pelo mau desempenho
dos alunos. Esta concepção desconsidera, por exemplo, as condições em que são ministradas as aulas; o número
de crianças e adolescentes em cada sala; o ambiente em volta da escola; a realidade das famílias; a possibilidade
de os pais acompanharem o desempenho do próprio filho ou de morarem numa casa onde este pode ter um
espaço físico para estudar e assim por diante. Para o Estado e os tubarões, reconhecer isso é sinônimo de retirar
o cômodo biombo com o qual, de um lado, ocultam as várias faces da injustiça social que subjazem a esta
realidade e, de outro, apresentam a educação como caminho privilegiado de ascensão social, tendo quem ensina
como único responsável pelo sucesso ou o fracasso dos alunos.
Mas isso não é tudo. Diante dos fracos resultados da escola pública, a própria elite se encarrega de
fortalecer a idéia pela qual só o que é privado é bom. Além de transformar instituições de ensino em fábricas de
dinheiro com direito a salas lotadas, o esforço de propaganda não consegue disfarçar algo que salta aos olhos:
muitos professores são os mesmos que, em outros períodos, trabalham na escola pública e que, na particular,
25
encontram condições de trabalho melhores e alunos cujas famílias costumam seguir o desempenho escolar dos
filhos. Basta este diferencial para produzir resultados mais satisfatórios, ainda que insuficientes para uma
verdadeira valorização do corpo docente.
Alguma coisa me diz que cansou de nadar neste capítulo, mas tem um último aspecto que gostaria de
abordar: a formação dos professores. Via de regra, estes profissionais tem uma leitura da sociedade assentada em
formas aprimoradas de senso comum, em noções fragmentadas e num acúmulo espontâneo de experiências. Não
poucas vezes, suas concepções de mundo são permeadas por uma incorporação acrítica de conceitos, valores e
critérios de análise que dominam o ambiente onde vivem, sistematizados, reafirmados e atualizados nos meios de
comunicação locais ou de circulação nacional.
A ausência de uma reflexão crítica e coerente manifesta-se também na ação pedagógica desenvolvida na
escola. Em geral, não há por parte dos docentes uma preocupação constante de avaliar os objetivos de sua
prática, a que interesses de classe responde, se está usando o método adequado para atingi-los e se o conteúdo do
ensino contribui para melhorar o senso crítico dos alunos.
Tiradas algumas exceções, a maioria dos e das profissionais do ensino não domina sólidos pressupostos
teóricos que permitem realizar esta crítica permanente ao conteúdo transmitido e ao desempenho em sala de aula,
e sequer percebem que suas palavras e atitudes moldam as cabeças dos futuros trabalhadores de acordo com os
interesses e os ideais da elite.
Do ponto de vista dos peixinhos, é fundamental que, no cotidiano da ação educativa, o docente seja
capaz de construir os elementos que, ao questionar o senso comum, levam alunos e alunas a querer intervir na
sociedade para mudá-la. Um profissional desse tipo não interessa ao Estado tubaronense, mas, para nós, é
indispensável que seja ele a assumir a educação com a missão de formar pessoas capazes de pensar, estudar,
dirigir e controlar os passos de quem dirige a vida em sociedade.
5. O tortuoso caminho da autonomia.
Nos últimos anos, as manifestações em defesa da escola pública têm revelado a preocupação do corpo
docente com os rumos da educação. As bandeiras da democratização do ensino e a necessidade de transformar os
pais dos alunos em aliados que apóiem suas lutas vêm impulsionando propostas de mudança que expressam o
desejo de uma maior autonomia da escola em relação ao controle do Estado. Resta saber se, por si só, as
propostas na mesa conseguem romper os limites que as elites querem ver reafirmados nas práticas a serem
desenvolvidas em sala de aula. Pra início de conversa, vamos levantar algumas das formas sob as quais tem sido
concretizada a autonomia da escola.
Em alguns estados e municípios, além dos conselhos de pais e mestres, tem sido implantada a eleição
direta para os cargos de direção e coordenação pedagógica. Apesar de ser um passo rumo à democratização, o
seu funcionamento real tem se demonstrado insuficiente para arranhar o controle que os tubarões mantêm sobre a
educação. O simples fato de poder eleger diretores, coordenadores e membros do conselho não garante que estes
pensem a qualidade do ensino do ponto de vista dos peixinhos ou, pelo menos, tenham condições de superar os
limites do senso comum em cuja escola foram formados durante longos anos.
E tem mais. Se prestar atenção ao comportamento da grande maioria dos pais que integram o conselho
escolar vai perceber que, para eles, aquela reunião mensal representa mais um castigo do que uma possibilidade
26
de debater os rumos da escola. A baixa escolaridade, o sentimento de inferioridade e o pensamento mágico,
sempre presentes no senso comum do povo simples, impedem que vençam a intimidação e expressem suas
dúvidas e questionamentos. Freqüentemente, eles mal conseguem costurar algumas frases. O medo de errar e
passar vergonha faz com que abram a boca só para dizer o óbvio. Isso quando não entram mudos e saem calados
desses momentos que foram criados com o objetivo de levar a comunidade a participar da escola.
Sendo assim, a questão não é a de eliminar esta forma de participação e sim de começarmos a pensar
melhor nos passos que podem levar escola e comunidade a caminharem juntas, a romperem o gelo da relação e
transformarem o cotidiano num momento em que o encontro, a formação e o envolvimento sejam facilitados e
incentivados.
Ao querer que as eleições da direção e do conselho da escola representem uma possibilidade concreta de
abrir espaços à educação que interessa aos peixinhos, devemos criar as condições para que estes instrumentos se
tornem a expressão concreta de uma democracia efetiva. Para que as coisas mudem, não basta que as pessoas
votem, escolham seus representantes e só voltem a aparecer na próxima eleição. É necessário que tanto os eleitos,
como os demais docentes e a comunidade sejam progressivamente envolvidos e capacitados a intervirem nas
discussões, a entenderem o momento presente e a expressarem com seu voto o compromisso de acompanhar o
trabalho a ser implementado. Do contrário, corremos o sério risco de termos fóruns de discussão e ação que
acabam esvaziando e desqualificando o esforço de democratização proposto.
E tem mais. Na medida em que os momentos eleitorais e os conselhos são fortemente influenciados pela
simpatia pessoal, pela amizade, pela possibilidade de obter alguma vantagem individual, enfim, por valores e
atitudes que passam longe de uma postura ética e de uma perspectiva de enfrentamento da lógica dominante, não
só perdem a razão de ser, como são facilmente reabsorvidos pelas próprias instituições do Estado.
Outra vertente da autonomia é a que faz de cada escola um projeto pedagógico único, próprio,
estritamente vinculado às particularidades do ambiente local. Este viés nega a universalidade do conhecimento e
tende a transformar a espontaneidade em fio condutor de sua proposta pedagógica. Os riscos da supervalorização
da cultura local são enormes. Ao elevar a descrição das particularidades de uma região em ponto de partida e de
chegada do ensino, acaba-se aprisionando o aluno num ambiente onde é difícil arranhar os limites de sua
compreensão da realidade.
Não que a vida do dia-a-dia, com sua carga de sofrimentos, angústias, momentos de luta e de resistência,
deva ser banida e impedida de ganhar sentido no interior da escola. Se assim fosse, estaria excluída do ambiente
escolar justamente a bagagem de idéias, valores e vivências incorporada no ambiente familiar e comunitário e
através da qual as pessoas se relacionam com o mundo, razão pela qual que deve ser incorporada.
O problema é que, ao limitar o currículo e as atividades pedagógicas às manifestações da realidade local,
corre-se o risco de reafirmar apenas as expressões do senso comum, tão caras aos tubarões, e de legitimá-las
como critérios de análise do cotidiano sem que sejam interpretadas, criticadas e transformadas rumo a uma visão
de mundo coerente e voltada à transformação da sociedade como um todo. Não podemos esquecer que o local
ganha sentido e ajuda a abrir a cabeça das pessoas na medida em que é inserido no universal e que ambos são
lidos a partir de pressupostos que desvendam as relações sociais invisíveis às maiorias.
Agora me diga, por que é tão difícil perceber os limites das propostas de democratização do ensino que
estão sendo discutidas e aceitas pelos predadores? Por que nossos esforços se perdem em discussões vagas e
inconcludentes? Será que os pressupostos que sustentam nosso desejo de mudança impedem uma análise
profunda da realidade?
27
Por exemplo, o objetivo de transformar o aluno em cidadão é suficiente para orientar o ensino que
interessa à classe trabalhadora? Por falar nisso, já parou para pensar no que significa ser cidadão? Não? Bom,
então, vamos refletir juntos.
De acordo com o dicionário Aurélio, cidadão é um indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de
um Estado ou no desempenho de seus deveres para com este. Ou seja, não é alguém que questiona a ordem
dominante e sim que age nos limites que esta mesma ordem define, ainda que os direitos e os deveres tenham sido
demarcados pelos tubarões. Resultado: o exercício da cidadania apenas legitima e fortalece as regras às quais
cada indivíduo é chamado a se submeter.
Trocado em miúdos, em nome das relações de propriedade consolidadas no interior do Estado, o cidadão
proprietário dos meios de produção (fábricas, bancos, terras, comércio), tem o direito de assalariar os cidadãos
trabalhadores que, por sua vez, terão o dever de respeitar a propriedade e o direito de escolher entre vender a sua
força de trabalho ou morrer de fome. É claro que empregados e empregadas também gozam de privilégios:
votam, moram em casas populares, andam de ônibus, têm acesso à saúde pública e a enterro gratuito em caso de
indigência. Por outro lado, o cidadão capitalista, detém o direito legal de acumular riquezas às custas dos seus
funcionários, mora numa mansão, trata seus resfriados no exterior, anda em carros de luxo e tem acesso a todo
tipo de conforto.
Sendo assim, não é difícil perceber que a igualdade proclamada pela cidadania política é apenas formal
e acaba legitimando as desigualdades com as quais nos deparamos na vida em sociedade. Se o objetivo do ensino
é transformar o aluno em cidadão, significa que o nosso esforço em sala de aula limita-se a formar indivíduos
que respeitam e, de conseqüência, se submetem à ordem estabelecida e ao caráter excludente desta.
Não por acaso, ministros, generais, presidentes, banqueiros e demais tubarões querem fazer de cada
brasileiro um cidadão! Ao aceitar os rumos da sociedade e ao reagir apenas quando a exploração passa dos
limites, esta maravilhosa cidadania multiuso ajuda as elites a aperfeiçoarem o sistema e a visualizarem quando
seus exageros podem levar a situações de convulsão social.
Mas isso não é tudo. Se o ensino visa formar simples cidadãos, a discussão acaba enfatizando um debate
contraditório em torno do eixo público-privado. Sim, eu sei que para o povo simples a ausência de uma escola
pública e gratuita seria uma catástrofe ainda maior. Mas, ao limitar a discussão a esse contexto, reconhecemos
implicitamente que se o Estado pagasse melhores salários, reduzisse o número de alunos por sala de aula,
fornecesse material didático suficiente e desse alguns cursos aos professores já estaria garantindo a educação da
futura classe trabalhadora. Ou seja, esquecemos, mais uma vez, de que não existe uma educação para a vida e
sim que sempre educamos alguém em alguma coisa, com base em determinados valores que tendem, ou não, a
reproduzir e fortalecer as relações sociais existentes.
Podemos até dizer que a escola controlada e dirigida pelo Estado é pública, pois está aberta a todas as
camadas sociais, mas o conteúdo nela desenvolvido é privado na medida em que orienta a visão de mundo dos
futuros trabalhadores e trabalhadoras de acordo com idéias, valores, formas de comportamento e critérios de
análise da realidade que obedecem à ordem dos tubarões. Por isso, se não começamos a pensar a escola a partir
da necessidade dos peixinhos romperem a dominação à qual estão submetidos será impossível criarmos meios
para construir uma autonomia real nas instituições de ensino.
Veja este exemplo. Apesar de suas limitações, as escolas dos acampamentos do Movimento Sem Terra
vêm dando passos importantes neste sentido. Ao entender a educação escolar como um elemento fundamental nos
processos de transformação social, o MST tem como objetivo o de contribuir
28
“para a construção de um homem novo, da mulher nova, construtores de uma sociedade mais justa,
fraterna e socialista, e libertos de todas as formas de opressão e de exploração”. 26
Os desafios da luta pela Reforma Agrária, a necessidade de educar para a cooperação e de capacitar
pessoas a pensarem estrategicamente o seu futuro, orientam a postura do movimento, os temas que serão tratados
e debatidos na sala de aula, as práticas pedagógicas e a própria formação dos educadores. Veja só que gozado,
trata-se de um ensino privado, alicerçado em pressupostos debatidos entre o cardume dos peixinhos e orientado
para uma crítica real da ordem social existente.
O que acha? Será que já não passou da hora de termos um projeto de educação cujas bases podem ser
elaboradas no cotidiano das salas de aula e da relação com a comunidade local? Que passos podemos dar neste
longo e tortuoso caminho que leva nossas escolas a serem um meio para capacitar trabalhadores e trabalhadoras
a enfrentarem os mecanismos de exploração?
São perguntas que continuam à espera de uma resposta.
6. Trabalhadores e educação: pistas para uma reflexão.
Nesta altura, deve ter ficado claro que entregar ao Estado a tarefa de melhorar o ensino é como confiar
aos tubarões a organização da vida marinha. Ninguém duvida que as coisas vão mudar, só que o resultado final
estará sempre de acordo com a visão e os interesses dos predadores.
Acredite, uma educação que desenvolva os elementos básicos para uma compreensão crítica da
sociedade e sirva para os futuros trabalhadores e trabalhadoras enveredarem pelo caminho da mudança, não será
obra do acaso e nem do espírito filantrópico deste ou daquele representante da elite, mas só pode ser fruto do
compromisso sério de docentes comprometidos com as lutas da classe.
Sim, eu sei que as coisas estão difíceis, que a sobrecarga de horas na sala de aula é grande, que a vida e
o cansaço falam mais alto, que só a boa vontade de alguns não basta e que ________________ (força,
acrescente aqui a sua queixa). Tenho plena consciência disso tudo, mas ao visualizar as dificuldades não dá pra
aceitar que elas sejam motivo suficiente para deixarmos as coisas como estão ou ficarmos à espera de que
alguma melhora gere nos docentes o compromisso com a necessidade de educar a futura classe trabalhadora no
rumo que apontamos.
Sabemos que as coisas não são assim, que os tubarões estão fechando o cerco em torno da escola e que,
hoje mais do que nunca, é indispensável aproveitar ao máximo os poucos espaços que restam para poder criar
momentos de reflexão e pequenas realizações que permitam abrir o debate com os colegas, os alunos e a
comunidade local.
A este compromisso individual e intransferível deve se somar uma mudança de atitudes dos próprios
sindicatos. Para além das necessárias mobilizações em torno do salário, das condições de trabalho e demais
benefícios, é preciso que despendam suas energias em algo igualmente importante: a formação dos docentes para
uma prática de ensino que some esforços para denunciar e superar a ordem dos tubarões.
26
Em CALDART R. S. (1997), pág. 11.
29
De fato, se os seus associados não dominam critérios de análise da realidade que ajudam a ir além das
visões bizarras, fragmentadas, contraditórias e inconseqüentes do senso comum, dificilmente deixarão de usar as
idéias e os valores das elites como fio condutor de suas práticas pedagógicas.
O primeiro passo coletivo pode ser dado em direção a um diagnóstico da realidade que permite perceber
as pressões sobre os rumos da educação vindas do ambiente circunstante e antever suas conseqüências para o
futuro imediato e de médio prazo.
Para além dos discursos oficiais e das promessas eleitorais de apostar na educação, o avanço do agronegócio, da indústria e do setor de serviços em várias regiões do país traz aos docentes desafios e necessidades
que se aprofundam na medida em que os investimentos exigem competências e saberes nem sempre disponíveis
no âmbito local. Por isso, um diagnóstico preliminar do que será pedido a professores e professoras de primeiro e
segundo graus pode ser obtido como resposta às perguntas que seguem:
1. Que investimentos estão sendo introduzidos no município e no estado?
2. De que tipo de trabalhadores eles precisam em termos de valores, saberes e competências?
3. Como as novas demandas da economia se relacionam e entram em choque com os interesses políticos da
elite que, até ontem, administrava seus projetos e negócios com uma determinada intervenção no poder
público e junto à população, tendo como base posturas atrasadas e conservadoras?
4. De que forma as mudanças na economia e os novos investimentos alteram o senso comum da população
a fim de ganhar seu apoio e adesão às necessidades por elas introduzidas?
5. Quais as principais mudanças na administração municipal e/ou estadual na forma pela qual organizam a
educação em seus territórios?
6. Em que direção os novos interesses da elite estão conduzindo a relação do estado com os docentes em
termos de qualificação, conhecimento, busca de uma adesão ativa a projetos que visam desenvolver as
competências necessárias para a formação dos novos trabalhadores?
7. Como o corpo docente de cada escola e a comunidade em volta dela percebem as mudanças em curso e
que atitudes manifestam diante das possibilidades e contradições que estas vêm evidenciando ao serem
implementadas?
8. No atraso dos governos estadual e municipal em viabilizar as medidas no interior das unidades escolares,
quantos recursos estão entregando à iniciativa privada para que esta realize a formação e o treinamento
da força de trabalho?
Ao remontar o triângulo Estado-Empresa-Educação e a forma como este é, ou não, percebido,
conseguiremos ter uma noção mais precisa dos processos em curso, dos problemas e contradições que projetam
sobre o ensino, os docentes e a população local a fim de questionar eficazmente as bases desta relação.
Como sindicatos de trabalhadores no ensino, além de relacionar os sintomas com as causas, de avaliar
como cada unidade escolar lida com as mudanças e as questões por elas colocadas, podemos superar o âmbito da
ação econômico-corporativa e da crítica pontual ao visualizar os primeiros passos do que consideramos ser um
projeto de educação que interessa aos trabalhadores e não às elites.
Sim, claro, isso é difícil, demanda um tempo que não temos e certa dose de desprendimento. O fato é que
deixar as coisas acontecerem sem, ao menos, espernear só irá produzir um patamar de submissão e integração à
visão de mundo dos predadores que proporcionará dificuldades ainda maiores para a ação coletiva da classe
trabalhadora.
30
Não dá pra se iludir com a possibilidade da elite abrir mão de seus objetivos imediatos e históricos e nem
de acreditar ingenuamente que basta entregar nossas queixas ao vento para que este traga as soluções desejadas.
Construir as condições da mudança implica em manter atualizado o diagnóstico da exploração e dos problemas
que traz aos trabalhadores enquanto classe, em renovar a capacidade de indignação e alimentar sentimentos de
coletividade que ajudem a superar posturas individualistas e negativistas, próprias do tempo em que vivemos.
Seria muito bom se este esforço de investigação da realidade fosse acompanhado por uma formação
teórica que permita sistematizar os dados coletados e visualizar as saídas possíveis. Melhor ainda se, de mãos
dadas com esta preocupação, der vida a trabalhos de grupos para a preparação coletiva de aulas a serem
sugeridas à categoria no âmbito do calendário já conhecido. Além de ajudar professores e professoras a
praticarem os conceitos assimilados e a superarem as dificuldades iniciais, esta atividade levaria à criação de um
grupo que pensa e planeja os primeiros passos a partir do cotidiano do trabalho.
Parece pouco, mas, na situação em que nos encontramos, pode realizar experiências que despertam
interesse, aproximam as pessoas, criam um clima de diálogo e de confiança entre aqueles que se abrem a uma
visão crítica ou, revoltados com a realidade, procuram alguém para conversar.
Na sala de aula, um dos caminhos que permitem iniciar um trabalho desse tipo é o resgate do professor
enquanto sujeito envolvido na produção e na recuperação da memória histórica. Vamos considerar, por exemplo,
as datas comemorativas que marcam o ano letivo. Se observarmos atentamente, reparamos que em quase todas
as escolas estes momentos merecem um lugar de destaque. Passado o carnaval, nos deparamos com o dia do
índio, Tiradentes, o dia das mães, a proclamação da Lei Áurea, as festas juninas, o dia dos pais, da pátria, do
professor, da proclamação da república, etc.
É interessante reparar que, em geral, o sentido dado a estas celebrações ora representa uma leitura da
história de acordo com a versão dos vencedores, ora uma apresentação dos papéis sociais que os tubarões
desejam verem reafirmados ao longo do tempo.
Mas isso não é tudo. Olhando atentamente, podemos perceber que faltam datas como o 8 de março e o
20 de novembro, e que outras tiveram seu sentido histórico totalmente descaracterizado. É o caso, por exemplo,
do 1º de maio que, em alguns livros didáticos, é lembrado, como a Festa do Trabalho ou o dia da morte de
Ayrton Senna.
Por que, não podemos aproveitar estes mesmos momentos para resgatar a história contada agora pelos
vencidos e atualizá-la com as contradições do presente? Por que não apresentar a sociedade indígena como
exemplo de comunismo primitivo e as verdadeiras razões pelas quais os índios foram e estão sendo
exterminados? Por que não mostrar o 8 de março e o 1º de maio como dias de luta nos quais, historicamente,
trabalhadores e trabalhadoras reivindicam a redução da jornada de trabalho não apenas para dedicar mais tempo
ao descanso e ao lazer, mas também para ter condições de estudar e se preparar para dirigir os passos de uma
nova sociedade (vide texto em anexo)? O que nos impede de desmascarar o processo histórico que levou à
promulgação da Lei Áurea e que continua lançando mão do preconceito e da desigualdade como instrumentos de
divisão da classe trabalhadora e caminho para alimentar um contingente de marginalizados cujo desemprego
mantém os salários abaixo do necessário para viver? Ao lembrar de Zumbi dos Palmares, por que não falar da
organização social, política e militar dos quilombos, resgatando a possibilidade de os oprimidos se organizarem e
reagirem nas condições mais difíceis e adversas? Será que no lugar de nos limitarmos a ridicularizar o homem do
campo nas festas caipiras não deveríamos introduzir o 17 de junho, dia do migrante? Pelo menos, ao analisar e
êxodo rural teríamos uma ótima oportunidade de revelar aos alunos as verdadeiras razões que trouxeram boa
31
parte de seus pais para os grandes centros urbanos e como isso alimentou a degradação das nossas periferias
para proporcionar ao mercado uma força de trabalho farta e disposta a qualquer sacrifício.
Tudo isso pode parecer pouco e fragmentado, mas já pensou no momento de reflexão que pode ser criado
no interior de algumas escolas onde pequenos grupos de docentes resolvem trabalhar com os alunos e a
comunidade alguns desses temas?
A lista das possibilidades não pára por aqui. Se as datas comemorativas não permitem a continuidade da
obra de reconstrução da memória histórica ao longo do ano letivo, o que impede que a gente possa organizar o
estudo da história enquanto transformação do trabalho humano ao longo dos séculos? Por que não iniciar esse
estudo resgatando as experiências vivenciadas pelos alunos que trabalham para aumentar o orçamento familiar
ou que assistem diariamente aos efeitos do trabalho sobre a vida dos pais e familiares? Por que não visualizar os
mecanismos de exploração que geram esta situação?
Sem dúvida, além de questionarmos o senso comum que aceita o sofrimento como uma sina, estaríamos
ajudando o estudante a incorporar duas perguntas às suas indagações sobre a vida: por que isso acontece desse
jeito? A que interesses atendem estas relações que vemos desenvolver-se debaixo dos nossos olhos? Ou seja, não
se trata apenas de buscar maneiras de descrever a realidade, mas, sobretudo, de dirigir a reflexão dos alunos para
a descoberta de elementos da análise social que permitem fortalecer seu espírito crítico.
Realizada esta primeira parte, poderia se iniciar um passeio pela história a fim de descobrir se, como
dizem os tubarões, sempre foi assim, e, de conseqüência, o quotidiano, como uma mera repetição de formas de
exploração, é fatalmente destinado a se perpetuar ao longo dos séculos. Podemos começar pela sociedade
indígena evidenciando o processo pelo qual os seus membros construíam as relações de sobrevivência e de troca,
passando em seguida para a época da escravidão e, desta, para um painel das mudanças que ocorreram com a
chegada dos imigrantes, até finalizarmos o estudo com a organização social do trabalho em nossos dias, com as
características e as implicações que sua manutenção pressupõe.
Sem dúvida, não faltarão ocasiões para mostrar que nem sempre houve exploração e que, no Brasil, ela
tem pouco mais de 500 anos de história. Teremos vários elementos para evidenciar como ela nasce e se
desenvolve na passagem da propriedade coletiva para a propriedade privada dos meios de produção. De fato, é
neste momento que o trabalho deixa de ter como objetivo central a satisfação das necessidades do ser humano
para tornar-se um meio que proporciona a uma minoria a acumulação privada das riquezas produzidas
coletivamente pela força de trabalho.
Percorrendo estes passos, será possível recolocar no seu devido lugar as personagens ilustres que
povoam os livros de história, resgatar as lutas dos trabalhadores, o verdadeiro sentido dos acontecimentos
históricos, a situação econômica do país em cada época, as relações internacionais nas quais estava inserido, as
escolhas que foram feitas pelas elites e suas conseqüências para o conjunto da população.
Em outras palavras, o estudo do passado ganhará vida exatamente porque nele indígenas, negros,
imigrantes, trabalhadores e trabalhadoras voltarão a ocupar o lugar essencial que sempre tiveram e que sempre
foi negado pelos tubarões.
Este é apenas um dos caminhos que podem contribuir para desenvolver o espírito crítico dos alunos. Sei
que é pouco, mas vai ajudar a manusear instrumentos de análise com os quais lhes será possível começar a
avaliar as possibilidades e o impacto dos projetos de mudança social tendo em vista não o interesse individual ou
de um pequeno grupo de predadores, e sim sua capacidade real de atender às necessidades da vida coletiva.
32
Além de estimular a leitura e a pesquisa, um trabalho dessa envergadura abre espaço para o debate
aberto das idéias. É importante sublinhar que além do esforço de ordenar o próprio pensamento e de redigi-lo,
alunos e alunas podem ser chamados a relatarem o resultado do seu estudo e a defenderem as conclusões a que
chegaram.
Expor o próprio pensamento com começo, meio e fim exige, de um lado, o esforço de vencer o medo do
julgamento alheio e, de outro, obriga ao saudável exercício de dar unidade e coerência à própria fala. Ainda que
os resultados venham somente em médio prazo, começaremos a perceber que este caminho ajuda a superar o
sentimento de inferioridade assimilado no ambiente familiar do povo simples.
Ao falar sobre isso, o próprio Gramsci constata:
“O operário acredita sempre ser mais ignorante e mais incapaz de quanto efetivamente é; o operário
tem sempre medo de expressar suas opiniões porque acredita que elas têm pouco valor uma vez que
foi acostumado a pensar que sua função na vida não é produzir idéias, dar direção, ter opiniões,
mas, ao contrário, é seguir as idéias dos outros, executar a direção estabelecida pelos outros e
escutar de boca aberta as opiniões alheias”.27
Ajudar a vencer este bloqueio é, sem dúvida, uma tarefa importante para quem procura formar pessoas
capazes de dirigir os acontecimentos e controlar quem orienta os passos da vida em sociedade.
Agora, se para os trabalhadores e as trabalhadoras o ensino de qualidade é aquele que dá instrumentos
para compreender e transformar a realidade de marginalização, o processo educativo não pode deixar de
questionar a razão pela qual os estudantes buscam dar continuidade aos seus estudos. Não devemos esquecer que
uma das expectativas em relação à escola é a obtenção de um diploma que sirva de passaporte para sair da
condição operária rumo a uma possível e incerta ascensão social em nome da qual se sacrificam valores e
vivências.
Isso significa que o aprendizado, além de levar os alunos a superar os preconceitos e o conformismo,
deve contribuir também para que estes visualizem uma opção concreta por valores que ao rejeitar a lógica do
lucro, da competição, da obsessão pelo consumo, típicas do individualismo capitalista, apontem para a urgência
de intervir na história construindo respostas às necessidades coletivas.
Vejo que você está coçando a cabeça. Será que é o que estou pensando? Como? O problema é o
desinteresse de professores e professoras? São os estudantes que não estão com nada? Você acha que, no fundo,
a responsabilidade não é nossa e sim da sociedade?
Bom... Olha... Não é porque estou vendo um tubarão vindo em sua direção com a boca
assustadoramente aberta e sim porque como companheiro de viagem que fui vou lhe pedir mais um pouco de
atenção.
Enquanto estava atrás das grades, aquele peixinho vermelho do qual falava antes escrevia algumas
reflexões sobre esta relação entre o indivíduo e a sociedade que vale a pena reproduzir aqui:
“Se para mudar cada indivíduo precisa que toda a sociedade mude antes dele, de forma mecânica,
ou, quem sabe, por obra de alguma força sobre-humana, nenhuma mudança jamais seria possível. A
27
Em Gramsci A., La costruzione del Partito Comunista, pg. 60.
33
história, pelo contrário, é uma luta ininterrupta de indivíduos e de grupos para alterar a cada
momento aquilo que já existe; mas, para que esta luta seja eficiente, estes indivíduos e grupos
deverão sentir-se superiores à realidade existente, educadores da sociedade etc.
O ambiente, portanto, não justifica, mas tão somente «explica» o comportamento dos indivíduos, e
especialmente daqueles que são historicamente mais passivos. A «explicação» servirá, às vezes, para
demonstrar indulgência com os indivíduos e fornecerá dicas para a educação dos mesmos, mas
jamais deve converter-se em «justificação», sob pena de levar necessariamente a uma das formas
mais hipócritas e revoltantes de conservadorismo e reacionarismo”. 28
Sim, eu sei que somos peixinhos limitados, meio lerdos e pouco preparados, mas, queiramos ou não, está
em nossas mãos a responsabilidade histórica de contribuirmos com a formação das futuras classes trabalhadoras.
Pode não ser muito o que podemos fazer para os cardumes desconfiarem da lógica e dos ensinamentos
dos tubarões, mas, sem dúvida, vai ser uma peça importante na construção de um mundo onde a vida humana, e
não o lucro, seja a preocupação central de todas as ações.
Coragem!
Ainda temos que nadar muito, mas, de braçada em braçada, a gente vai conseguir fazer com que os de
baixo escrevam as páginas da história.
Emilio Gennari.
Brasil, novembro de 2010.
28
Em Gramsci A., Quaderni del Carcere, pg. 1878.
34
Bibliografia:
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Vozes, Petrópolis 1997.
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1987.
 DIAS AGUIAR RUY, “Modernização e superexploração: o trabalhador plugado pelo computador”, em
Cadernos do CEA, N.º 186, março/abril de 2000.
 DIEESE, Globalização e setor automotivo, Ed. Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, São Bernardo do
Campo 1996.
 FIDALGO F. S. e MACHADO L. R. DE SOUZA (Org.), Controle da Qualidade Total - uma nova
pedagogia do capital, Ed. Movimento de Cultura Marxista, Belo Horizonte 1996, 2ª edição.
 GENNARI E. Automação, Terceirização, Programas de Qualidade Total – os fatos e a lógica das
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São Paulo, 2010, 2ª Edição.
 GENTILI P. A (Org.), Pedagogia da Exclusão - crítica ao neoliberalismo em educação, Ed. Vozes,
Petrópolis 1996, 2ª edição.
 GENTILI P. A e SILVA T. T. (Org.), Neoliberalismo, qualidade total e educação - visões críticas, Ed.
Vozes, Petrópolis 1995, 2ª edição.
 GOMES H., Qualidade Total na Escola - Padronização, Ed. LE/Pitágoras Tec., Belo Horizonte 1994.
 GRAMSCI A, La costruzione del Partito Comunista - 1923-1926, Ed. Einaudi, Torino 1978.
 GRAMSCI A, Quaderni del Carcere, edizione critica dell’istituo Gramsci a cura di Valentino Gerratana,
Ed. Einaudi, Torino 1977.
 GUILLON A B. B. e MIRSHAWKA V., Reeducação - Qualidade, produtividade e criatividade: caminho
para a escola excelente do século XXI, Ed. Makron Books, São Paulo 1994.
 JUNQUEIRA P. N., Ideologia e hegemonia - as condições de produção da educação, Ed. Cortez/Autores
Associados, São Paulo, 1980.
 LEITE MARIA DE PAULA, Inovação tecnológica e relações industriais: um estudo de caso na metalmecânica. Faculdade de Educação da UNICAMP.Campinas 1991, mímeo.
 MANACORDA M. A, História da Educação - da antigüidade aos nossos dias, Ed. Cortez, São Paulo
1996, 5ª edição.
 MANACORDA M. A, Marx e a pedagogia moderna, Ed. Cortez/Autores Associados, São Paulo 1991.
 MANACORDA M. A, O princípio educativo em Gramsci, Ed. Artes Médicas, Porto Alegre 1990.
 NOSELLA P., A escola de Gramsci, Ed. Artes Médicas, Porto Alegre 1992.

VÁRIOS AUTORES, Empregabilidade e Educação – Novos caminhos no mundo do trabalho,
EDUC/Rhodia, São Paulo 1997.
35
Anexo - Nádia, a coruja, fala do 1º de Maio.
Tarde de domingo. A preguiça tenta desesperadamente atrasar o passar das horas. O gostinho de
liberdade da sexta-feira começa a ser acorrentado pela perspectiva de reencontro com a rotina do trabalho . Em
busca de alívio, os olhos correm as folhas do calendário enquanto o coração comemora os dias marcados como
feriado. Afinal, toda folga significa lazer, descanso, uma corrida ao shopping e um tempo maior longe do serviço.
A mente viaja nas asas destes pensamentos quando seu vôo é bruscamente interrompido por um grito
estranho.
- “Não acredito! Vocês, humanos, só pensam nisso. Parece que o calendário é feito apenas para marcar
folgas e feriados!”, diz uma voz desconhecida que vem detrás dos livros mal-amontoados na estante.
- “Por que? Não é assim?”, indagam os lábios perplexos.
O breve silêncio deixado pela pergunta é quebrado por um seco “Não mesmo!” que chega a machucar o
ouvido.
- “E você, quem é?”, indaga o homem sem fazer cerimônias.
- “Sou Nádia, a coruja que se aninhou na sua estante para ler os livros que você deixa pegando poeira”,
responde a pequena ave com ar de reprovação.
- “Era só o que me faltava! Não bastassem as dificuldades do dia-a-dia, agora devo aturar um bicho
qualquer que invade o meu espaço e tira o meu sossego!”.
- “Huuum! Além de estar por fora, rosna para intimidar”, murmura a coruja num vôo rápido até a mesa.
- “Vai dizer que o calendário esconde coisas que não sei?”, pergunta o homem em tom de desafio.
A coruja recolhe as asas e com um olhar maroto retoma a conversa:
- “Por exemplo, você sabe me dizer o que aconteceu no 1º de Maio para ele ser feriado?”.
- “Bom, sei que é a Festa do Trabalho e também que foi nesse dia que Ayrton Senna morreu... Lembro
que foi num acidente, durante uma corrida de...”,
Sem esperar o fim da frase, Nádia deixa escapar uma sonora gargalhada. Passo a passo, se aproxima,
pisca os olhos e com uma expressão severa diz:
- “Já vi que sua memória é curta, que seus olhos só enxergam o que todos vêem e que sua boca repete o
que é por demais conhecido. Desse jeito, você não vai conseguir entender o porquê das coisas. Quem olha o
calendário só para procurar os feriados não vê que ele é feito de momentos de luta e de resistência que os
poderosos procuram apagar. Resgatar estes momentos é uma das ações necessárias para que a vida não seja um
eterno conformar-se diante da exploração e nem a busca desesperada de algo que ajude a esquecer o sofrimento
diário. É com a história nas mãos que a dignidade abre caminhos rumo a um mundo onde há, finalmente, um
lugar para todos e não só para um punhado de privilegiados”.
- “Como assim? Você quer dizer que o 1º de Maio esconde coisas que eu não sei?”, pergunta o homem
ao não se dar por vencido.
- “Muitas!”, responde a coruja ao apoiar a asa na pilha de papéis e revistas que está sobre a mesa. E
acrescenta: “É uma história que todos deveriam conhecer para poder refletir sobre o seu presente e não se deixar
enganar pelos poderosos”.
Entre a vergonha e a curiosidade, as mãos arrumam papel e caneta para registrar as passagens desta
história. Nádia espera pacientemente que esteja tudo pronto. Olha para o alto, suspira e, com voz pausada,
começa o seu relato.
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- “Bem. Vejamos. Não sei se você já percebeu, mas toda a riqueza que existe ao nosso redor é o
resultado do trabalho de milhões de trabalhadores e trabalhadoras que se esfolam em troca de um salário que
poucas vezes cobre suas necessidades vitais. Isso acontece porque a mixaria que recebem representa só uma
pequena parte do que produzem ao longo de uma jornada de oito horas. Trata-se de algo que, no máximo,
corresponde a uns cinqüenta minutos de trabalho, enquanto o valor das mais de sete horas restantes fica de graça
para o patrão”.
- “Mas, Nádia, o dono da firma onde trabalho paga direitinho e recebo por todas as horas trabalhadas.
Você tem certeza do que está dizendo?”.
- “Veja bem. O que você recebe como pagamento de um dia de trabalho corresponde ao que vai fazer das
6.00 da manhã até, no máximo, 50 minutos depois. A impressão de que todo o seu trabalho é pago vem da
divisão da riqueza produzida neste curto espaço de tempo pelas oito horas passadas na fábrica. Por isso, à
primeira vista, parece que todo o seu trabalho foi pago, quando, na verdade, a parte maior do valor que nasceu
dele ficou com o dono da empresa”.
- “Entendi isso. Só não consigo perceber o que esta questão tem a ver com o 1º de Maio”, insiste o
homem com certa dose de impaciência.
- “Acontece que, séculos atrás, nas primeiras indústrias, a jornada de trabalho dos operários varia entre
14 e 16 horas diárias. Se isso não bastasse, as fábricas são abafadas, mal-iluminadas e sem nenhuma higiene. Os
baixos salários obrigam famílias inteiras a vender sua força de trabalho e nem as crianças escapam desse
sacrifício. A fome tem um lugar privilegiado em seus lares acompanhada de perto por doenças contagiosas que se
espalham rapidamente graças às péssimas condições de vida. A morte ronda as famílias operárias e ser levado
por ela após os 40 anos é privilégio para poucos.
É nesta realidade que trabalhadores e trabalhadoras descobrem na solidariedade a primeira forma de
diminuir seus sofrimentos e de reagir. Pouco a pouco, nascem mais idéias que ajudam a entender a situação em
que vivem e a dar vida às primeiras ações de resistência. Entre os enfrentamentos mais duros e difíceis está, sem
dúvida, a luta pela redução da jornada de trabalho.
Em 1819, por exemplo, os operários da cidade de Manchester, na Inglaterra, realizam uma manifestação
contra as injustiças a que estavam submetidos. O chefe do governo não titubeia: manda apontar os canhões
contra eles e atira provocando um massacre. Apesar deste desfecho terrível, o movimento consegue a aprovação
de uma lei que limita a 10 horas diárias o trabalho das crianças entre 9 e 16 anos. Algum tempo depois, em
1824, os primeiros sindicatos da Inglaterra organizam greves em várias cidades exigindo a jornada de 8 horas e,
após vários enfrentamentos, conseguem fazer com que as crianças trabalhem “apenas” nove horas. Diante desta
conquista, os patrões fecham as fábricas e ameaçam não reabri-las caso a jornada não venha a ser fixada em,
pelo menos, dez horas. O governo atende à reivindicação dos empresários, mas não consegue deter as greves e os
protestos que, em 1847, levam à conquista da jornada de dez horas para todos os adultos. Coincidência ou não, a
nova lei passa a vigorar na Inglaterra a partir de 1º de maio de 1848.
Na França, o início das lutas é um pouco diferente, apesar das condições de vida e de trabalho serem
bem parecidas às da classe trabalhadora inglesa. Em junho de 1830, várias categorias manifestam o desejo de
reduzir a jornada para onze horas diárias. Longe de ocupar as ruas e as praças com seus protestos, trabalhadores
e trabalhadoras optam por apresentar suas reivindicações através de um abaixo-assinado no qual apelam aos
representantes da nação para que compreendam que suas necessidades são quotidianas, assim como o é o seu
37
trabalho. A resposta do governo ao movimento pacífico é dada por um decreto que trata as reuniões operárias
como uma incitação à desordem e apresenta uma longa lista de punições para quem insistir em realizá-las.
Cortado o caminho do diálogo e destruída toda ilusão na boa vontade dos patrões, a luta se torna mais
dura. No dia 1º de maio de 1831, na cidade de Bordeaux, os serradores destroem as novas serras mecânicas e em
diversos municípios os protestos terminam em quebra-quebra. Mas a classe trabalhadora francesa terá que lutar
por mais de uma década para reduzir a jornada para 10 horas diárias. Esta conquista será novamente derrotada
em fevereiro de 1848 quando o governo de Paris põe fim aos protestos operários fuzilando 3 mil manifestantes e
deportando outros 4 mil. Retomado o controle da situação, a elite aumenta a jornada de trabalho para 11 horas
na capital e para 12 nas demais províncias. Serão necessários longos enfrentamentos para que as oito horas se
tornem realidade também na França.
- “Nádia, uma vez ouvi dizer que o 1º de Maio começou a ser comemorado a partir do que aconteceu nos
Estados Unidos?”, pergunta o ajudante com ar de indagação.
A coruja lança o olhar típico de quem não gostou da interrupção. Em seguida, limpa a garganta com um
sonoro “Hem! Hem!” e retomada o seu relato:
- “Passando aos Estados Unidos, não vou perder tempo descrevendo a situação de seus trabalhadores,
pois ela não é muito diferente daquela que encontramos na Inglaterra e na França. Sob o peso da miséria e da
exploração, em 1827, começam a aparecer vários movimentos pela redução da jornada de trabalho. As lutas
prosseguem nos anos seguintes e, em agosto de 1866, o Congresso Operário de Baltimore define a conquista das
oito horas como a primeira grande necessidade do presente para libertar o trabalho da escravidão capitalista.
Em 25 de junho de 1868, diante dos protestos que surgem em várias regiões, o parlamento estadunidense
aprova a Lei Ingersoll que fixa a jornada de trabalho em oito horas. Mas ao mesmo tempo em que dita a regra,
esta norma abre brechas para as necessidades particulares dos empresários em nome das quais a duração dos
turnos acaba sendo invariavelmente superior ao estabelecido. Para as organizações operárias este é um sinal
claro de que a simples existência da lei não garante a aplicação dos seus direitos. Para isso, se faz necessária
uma ampla e constante mobilização que, em nome da Defesa da Ordem, será duramente reprimida nos anos
seguintes.
Em abril de 1886, os enfrentamentos explodem em diversas cidades. Vários empresários cedem e
aceitam assinar contratos que reduzem a jornada de trabalho para oito horas diárias. Os protestos se alastram
pelo país e em Chicago, sede da vanguarda do empresariado americano da época, os patrões preparam o terreno
para reprimir as passeatas marcadas para o início de maio. O Chicago Times, um dos jornais que não usa meias
palavras para expressar o pensamento da elite, escreve: o único jeito de curar os trabalhadores do orgulho é
reduzi-los a máquinas humanas, e o melhor alimento que os grevistas podem ter é o chumbo! Mais claro do
que isso, impossível.
No dia 1º de maio, a cidade amanhece completamente parada. Milhares de pessoas aderem ao chamado
das organizações sindicais cujo lema é: A partir de hoje, nenhum operário deve trabalhar mais de oito horas
por dia. Oito horas de Trabalho! Oito horas de repouso! Oito horas de educação!
Como você pode ver, a classe operária da época não quer trabalhar menos só para reduzir seus
sofrimentos e ter mais tempo para o lazer, mas apresenta a necessidade de estudar e se capacitar como um dos
caminhos para aprender a dirigir os passos da vida em sociedade.
Como estava dizendo, no dia 1º de maio, em Chicago, está tudo parado e a única coisa que se mexe é
uma passeata de milhares de trabalhadores que se dissolve pacificamente após um comício.
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Contrariada pela elevada adesão ao movimento e pelo tranqüilo desenrolar dos protestos, a elite planeja
uma série de provocações e agressões às manifestações previstas para a segunda-feira, dia 3 de maio. A polícia
se encarrega de viabilizar a estratégia traçada pelos patrões. No início da manhã atira num grupo de operários
que protestam diante da fábrica Mc Cornick Harvester. Resultado: dois mortos, cinqüenta feridos e centenas de
presos. Diante dos acontecimentos, os líderes do movimento conclamam os manifestantes à calma e convocam
um novo ato para o dia seguinte.
Os trabalhadores e suas famílias atendem ao chamado. Quando a manifestação começa a se dispersar,
cerca de 180 policiais agridem e espancam quantos encontram pelo caminho. Neste instante, uma bomba vinda
não se sabe de onde explode no meio dos guardas. É o sinal da carnificina. Em poucos minutos, reforços policiais
chegam de toda parte atirando e matando manifestantes. As autoridades decretam o estado de sítio. Milhares de
trabalhadores e trabalhadoras lotam as prisões. A imprensa concentra seus ataques nos líderes do movimento.
A justiça age rapidamente e leva diante dos tribunais August Spies, Sam Fielden, Oscar Neeb, Adolph
Ficher, Michel Schwab, Louis Lingg e Georg Engel. O julgamento começa em 21 de junho de 1886. Logo na
abertura, Albert Parsons, que havia conseguido escapar da prisão, entra no tribunal e declara: Excelência, vim
para ser processado com os meus companheiros inocentes. O processo corre rápido com provas e testemunhas
inventadas. As palavras de um jurado revelam o sentido desta farsa: Que sejam enforcados. São homens
desenvolvidos demais, inteligentes demais, perigosos demais para os nossos privilégios. A sentença condena à
morte Parsons, Engel, Fischer, Lingg e Spies; Field e Schwabb à prisão perpétua e Neeb a quinze anos de
cárcere.
Na sala lotada e silenciosa, Spies é um dos que comentam o veredicto: Se com o nosso enforcamento
vocês pensam em destruir o movimento operário – este movimento do qual milhões de seres humanos
humilhados, que sofrem na pobreza e na miséria, esperam a redenção – se esta é sua opinião enforquem-nos.
Aqui terão apagado uma faísca, mas lá e acolá, atrás e na frente de vocês, por toda parte, as chamas
crescerão. É um fogo subterrâneo e vocês não podem apagá-lo.
No dia 11 de novembro, os condenados à morte são executados. Em Chicago, os patrões respiram
aliviados. Apesar do impressionante aparato policial, seis mil trabalhadores carregam os restos mortais de seus
líderes.
Em 1892, pressionado pela persistente onda de protestos contra a iniqüidade do processo, o governador
do estado anula a sentença, liberta os presos e acusa de infâmia o juiz, os jurados e as falsas testemunhas.
A semente plantada no sangue daqueles dias se torna símbolo de luta no mundo inteiro. Em dezembro de
1888, a Federação Americana do Trabalho aprova a proposta de realizar uma nova greve geral no dia 1º de maio
de 1890 para estender a jornada de oito horas a todo o território dos Estados Unidos. Esta decisão acaba tendo
repercussão no Congresso Socialista que em julho do ano seguinte reúne em Paris 391 delegados de 20 países.
Entre suas decisões, o 1º de maio de 1890 é escolhido como o dia de uma grande manifestação internacional para
impor aos poderes públicos a redução legal da jornada de trabalho para oito horas diárias.
As dúvidas sobre as possibilidades reais de um enfrentamento destas proporções se somam às divisões
do movimento, à repressão das forças policiais e às dificuldades criadas pela realidade das organizações
operárias em cada país. O que os delegados não esperavam é que aquela deliberação para maio de 1890 acabaria
se tornando um marco nas lutas operárias dos anos seguintes”.
39
Nádia pára de falar. Pede água para refrescar a garganta. O homem aproveita para dar uma gostosa
espreguiçada. Depois de alguns goles, a coruja fica de costas e, de rabo de olho, acompanha os movimentos do
ajudante como quem espera uma pergunta óbvia.
- “Nádia, você falou da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos, mas como é que o 1º de Maio foi se
desenvolvendo aqui no Brasil?”.
Com um sorriso doce e malicioso, a coruja abre as asas como quem se alegra ao ver o interesse em
conhecer melhor a história desta data.
- “Sabia que você iria me perguntar isso! O sexto sentido de uma coruja não falha! Pois bem, vale a pena
lembrar que enquanto o Congresso Socialista de Paris delibera sobre o 1º de maio de 1890, o Brasil acaba de
aprovar a Lei Áurea com a qual pretende abolir oficialmente a escravidão. A economia da época se baseia,
sobretudo, na agricultura e o processo de industrialização é muito lento. A classe operária é ainda pequena e, em
1900, não passa de 55 mil pessoas.
As condições de vida e de trabalho são tão duras quanto as que encontramos nos demais países. O jornal
operário O Combate relata alguns abusos dos patrões que nos ajudam a visualizar esta realidade: Entre eles
podemos citar nominalmente o Sr. Crespi porque assistimos ontem à entrada de cerca de 60 pequenos, às 7
horas da noite em sua fábrica da Mooca. Essas crianças, entrando naquela hora, saem às 6 horas da manhã.
Trabalham, pois, 11 horas a fio em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos, à meia noite! O
pior é que elas se queixam de que são espancadas pelo mestre de fiação Silvio dos Remos. Muitas mostramnos equimoses nos braços e nas costas. Algumas apresentam mesmo ferimentos produzidos com uma
manivela. Há uma com as orelhas feridas por continuados e violentos puxões. (...) Trata-se de crianças de 12,
13 e 14 anos.
Apesar desses complicadores, entre 1887 e 1900, grupos de trabalhadoras e trabalhadores são obrigados
pela repressão a comemorar o 1º de maio em lugar fechado através de palestras e reuniões. Há associações
sindicais que publicam seus primeiros informativos resgatando os acontecimentos que dão origem a esta data, ao
passo que outras encenam peças de teatro que retratam a vida operária e a necessidade de somar forças pela
redução da jornada de trabalho.
Sentindo o cheiro do perigo, parte da elite brasileira começa a tomar medidas que vão além da repressão.
Alguns empresários dão início a uma política de esvaziamento do sentido das comemorações do 1º de maio ao
torná-las um momento de confraternização com seus funcionários. Para ter uma idéia deste processo, basta ler
um pequeno trecho do jornal O Amigo do Povo que fala das celebrações de 1904: os operários da fábrica Globo
fizeram manifestações de apreço aos patrões, por estes não terem aderido ao Centro Industrial dos
Fabricantes de Calçados, oferecendo-lhes uma cesta de flores, retribuída com um almoço de confraternização.
Sem esperar que esta data se fixe entre os trabalhadores como um momento de luta, os empresários começam a
semear o sentido que se fortalecerá nas décadas seguintes.
Dois anos mais tarde, se reúne no Rio de Janeiro o 1º Congresso Operário Brasileiro que sublinha a
importância de conquistar a jornada de oito horas. Em suas conclusões, os delegados condenam as festas
promovidas pelos empresários, incitam os operários a protestar contra a repressão e a fazer do 1º de maio de
1907 o momento em que o operariado do Brasil impõe a redução da jornada de trabalho.
Marcada a data, as forças vivas do movimento preparam seus protestos e manifestações nas principais
cidades do país. No estado de São Paulo, tudo transcorre num clima de tensão e enfrentamentos. Diante dos
passos das organizações sindicais, as autoridades proíbem a concentração marcada na Praça da Sé, enquanto
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soldados e policiais ocupam as ruas do centro. A Federação Operária de São Paulo convoca, então, uma reunião
na sua sede para discutir os rumos a serem tomados. Três dias depois, os metalúrgicos da capital entram em
greve e várias outras categorias seguem o seu exemplo. A paralisação do trabalho atinge Campinas, Itu, São
Bernardo e Santos. O poder reage com a repressão. Muitos manifestantes são presos e espancados e mais de cem
emigrantes estrangeiros acabam expulsos do país.
A amplitude da greve assusta os patrões e não são poucas as empresas que começam a adotar a jornada
de oito horas. Mas, no ano seguinte, a crise econômica e o desemprego ameaçam as conquistas já alcançadas e
enfraquecem o sindicalismo combativo.
Em agosto de 1914, o início da Primeira Guerra Mundial marca o aumento dos sofrimentos da classe
trabalhadora. O conflito transforma as exportações aos países europeus num verdadeiro negócio da China para
os patrões. Para você ter uma idéia, só em 1917, o Brasil vende à Europa 22 mil toneladas de arroz, 50 mil
toneladas de feijão e 30 mil toneladas de carne congelada. No país, os poucos artigos de primeira necessidade
que se encontram nos mercados são vendidos a um preço até dez vezes maior. Some esta realidade ao arrocho
salarial e às extenuantes jornadas de trabalho e não terá dificuldade em perceber que enquanto a guerra enche os
bolsos dos capitalistas a fome toma conta dos estômagos das famílias operárias. Com o passar dos meses a
situação se torna cada vez mais explosiva e o governo prepara a polícia e o exército para reprimir qualquer
tentativa de revolta.
Nos primeiros meses de 1917, várias greves estouram em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os têxteis
cariocas que faltam ao trabalho para participar das comemorações do 1º de maio são punidos e decidem paralisar
a produção. Pouco a pouco, o movimento atinge Petrópolis, Juiz de Fora e se amplia como mancha d’óleo até o
Rio Grande do Sul. O seu ponto mais alto é na cidade de São Paulo quando, apesar da repressão, o comando de
greve chega a controlar a distribuição dos gêneros de primeira necessidade. Os patrões se vêem forçados a
atender várias reivindicações, mas se opõem com todas as forças à redução da jornada de trabalho.
A luta vai prosseguir nos anos seguintes com altos e baixos que dependem do grau de organização dos
sindicatos e do peso da repressão policial.
No vaivém dos enfrentamentos, a elite procura fazer do 1º de maio um momento que reafirma sua visão
da relação entre patrões e trabalhadores. Em 26 de setembro de 1924, um decreto do Presidente da República,
Artur Bernardes, transforma esta data em feriado nacional. Ao falar do decreto, a mensagem presidencial
enviada ao parlamento diz: A significação que esta data passou a ter, nos últimos tempos, consagrando-se não
mais a protestos subversivos, mas à glorificação do trabalho ordeiro e útil, justifica plenamente o nosso voto.
Não sei se você percebe o que isso significa – diz Nádia ao espetar o ar com a ponta da asa -, mas os
poderosos criam o feriado de 1º de maio quando ainda não há uma lei que determina a jornada de trabalho de oito
horas, motivo das manifestações que deram origem a esta data. A elite brasileira procura se apropriar dela
justamente para esvaziá-la do espírito de luta depositado pela classe trabalhadora. Ao tentar substituir os
protestos subversivos pela glorificação do trabalho ordeiro e útil, os patrões tratam de alimentar o clima de paz
social, sem o qual não dá pra garantir a continuidade da exploração.
O 1º de maio como feriado nacional é apenas mais um passo rumo às transformações implementadas por
Getúlio Vargas entre 1930 e 1945. Alternando boas doses de repressão a algumas migalhas, Vargas consegue
derrotar as organizações operárias que criticam o sistema e implementar um sindicalismo dócil aos interesses do
Estado e dos patrões. É neste cenário que, durante o seu governo, o 1º de maio começa a ser celebrado no estádio
do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, onde os operários desfilam homenageando as autoridades presentes”.
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- “Desse jeito as lutas dos trabalhadores devem ter acabado de vez!”, perguntam os lábios à procura de
respostas para as inquietações que começam a povoar os pensamentos.
- “Não - responde a coruja - não só elas não acabam, como se mantêm vivas nas ações de todos aqueles
que fazem ecoar novamente o grito de revolta dos primeiros. A rebeldia, a dignidade e a solidariedade são o
combustível que alimenta o fogo subterrâneo do qual falava Spies após ouvir a sentença. Os patrões fazem de
tudo para apagar as faíscas, mas o fogo faz brotar outras onde eles menos esperam. Veja só esta manchete de
primeira página do jornal A Plebe de 1948: Primeiro de Maio é um dia de protesto. Não é a “festa” do
trabalho, como afirmam os mistificadores. O trabalho vive escravizado e os escravos não costumam festejar a
sua escravidão.
E tem mais. Se você lembrar de alguns passos da história recente, vai perceber que nem a ditadura
militar que se instala no Brasil em 1964 consegue apagar este fogo. Lembra, por exemplo, do 1º de maio de
1980?”, pergunta Nádia sem disfarçar o sorriso que invade o seu rosto.
- “Bom... para ser sincero... não”.
- “Pois saiba que já no final de março daquele ano os metalúrgicos do ABC paulista dão início a uma
longa greve. Em resposta aos protestos, em 17 de abril, o Ministério do Trabalho fecha os sindicatos e cassa suas
diretorias. Dois dias depois, a polícia prende arbitrariamente os líderes do movimento, mas nem isso amedronta
os trabalhadores e as trabalhadoras que resistem nas fábricas.
Diante dos acontecimentos, uma multidão de homens e mulheres responde às medidas repressivas do
governo alimentando a solidariedade com os grevistas. Integrantes dos movimentos populares, das comunidades
de base, dos sindicatos, das mais variadas associações e correntes políticas se organizam em todo o país para
angariar os fundos que ajudam a sustentar as famílias dos grevistas.
No dia 1º de maio daquele ano, oito mil policiais armados até os dentes cercam São Bernardo do Campo.
O governo ameaça punir as manifestações e interdita o estádio de Vila Euclides, o Paço Municipal e a Praça da
Matriz. Mas a participação no ato convocado pelas forças vivas do movimento supera todas as expectativas.
Mais de 120 mil pessoas furam o bloqueio da polícia e ocupam os espaços que haviam sido proibidos fazendo
tremer as bases da ditadura militar”.
- “Tudo bem, Nádia, mas as coisas não são mais assim. Parece que ninguém se importa com nada. Aliás,
a moda agora é o tal do showmício, com direito a bingo e festas organizados até mesmo pelos sindicatos que
eram referências de luta...”, murmura o homem ao sacudir a cabeça.
A coruja ouve calada. Em seguida, põe as asas atrás das costas e andando de um lado pra outro da mesa,
devolve em resposta um punhado de perguntas.
- “Por acaso, a exploração acabou? Os trabalhadores e as trabalhadoras estão tão bem a ponto de não
precisarem reagir aos desmandos dos patrões? Você já percebeu que os tapinhas nas costas distribuídos pelos
empresários nas melhores empresas são retribuídos com o aumento do ritmo de trabalho, da produção e com a
diminuição do número de funcionários? Até quando vão agüentar calados o aumento das metas e a retirada dos
poucos direitos que lhe restam? A dignidade e a rebeldia continuam vivas mesmo quando não conseguem vir à
luz em manifestações que sacodem a história. Não são poucas as pessoas que debaixo da terra guardam,
protegem e alimentam o fogo do qual falava Spies. O fato dos patrões estarem ganhando não significa que
estamos perdidos. O jogo apenas começou, e eles sabem disso.
O que precisamos é dar forma e cor à esperança. Devemos torná-la concreta e coletiva para contagiar
mais pessoas e fazer com que não se conformem com o sofrimento. Só assim vão começar a perceber que um
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novo amanhã depende da nossa capacidade de mudar os rumos da história e não da boa vontade deste ou daquele
sujeito. Por isso, comemorar o 1º de maio não é apenas lembrar do passado. É, sobretudo, renovar o
compromisso de lutarmos contra toda forma de injustiça e exploração que condenam à fome e ao esquecimento
milhões de seres humanos no mundo inteiro”.
Em silêncio, as mãos escrevem as últimas linhas. A cabeça ainda mistura perguntas, relatos, anseios e
perplexidades.
Disfarçadamente, Nádia pega a régua que sai de uma revista e encosta uma das extremidades na mesa
como quem segura o cajado antes de sair para uma longa caminhada. Instantes depois, se aproxima e pede para
dar uma olhada nas folhas:
- “Nada mal. Até que você merece”, murmura com ar satisfeito.
- “Mereço... o que?”, pergunta o homem perplexo enquanto ajeita ao papeis que estão sobre a mesa.
Mal acaba de falar e, num gesto rápido, a coruja bate três vezes com a régua na cabeça e nos ombros
dizendo solenemente:
- “Eu Nádia, nomeio você secretário da ordem das corujas”.
- “E se eu não quiser?”, indaga o escolhido para ter uma noção do futuro que lhe espera.
- “Tarde demais! Já está feito!”, responde a ave ao empinar o bico e olhar disfarçadamente para o alto.
“De hoje em diante vai escrever para ajudar grandes e pequenos a refletirem sobre a realidade que os cerca. Mas,
agora, vamos fechar logo este texto antes que nossos leitores e leitoras se cansem. Ah! Não esqueça de enviar um
abraço e de dizer a todos e a todas que não se assustem com a ação dos poderosos. Por muito que tentem, não
vão conseguir apagar o fogo que a dignidade, a solidariedade e a rebeldia alimentam.
Assinado: Nádia. A coruja”.
P.S. Passados alguns minutos, o secretário consegue convencer a nova “hospede” da estante a dizer quais foram
os livros que andou lendo para contar esta história. Aí vão eles:

ACO, História da classe operária no Brasil, Vol. 1 a 5, Edição da Ação Católica Operária, Rio de
Janeiro.

Edgard Carone, Movimento Operário no Brasil – (1877-1944), Ed. Difel, São Paulo, 1984.

John W. Dulles, Anarquistas e Comunistas no Brasil – (1900-1935), Ed. Nova Fronteira, 2ª Edição,
Rio de Janeiro 1977.

José Luiz Del Roio, 1º de Maio – Cem anos de luta (1886-1896), Ed. Global/Oboré, São Paulo 1986.

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