Bioética e Políticas Públicas - Conselho Nacional de Ética para as

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Bioética e Políticas Públicas - Conselho Nacional de Ética para as
Bioética e Políticas Públicas
Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida
Título: Bioética e Políticas Públicas
© Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida 2014
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CNECV
Conselho Nacional de Ética
para as Ciências da Vida
Presidente
Miguel Oliveira da Silva
Vice-Presidente
Michel Renaud
Conselheiros designados pela Assembleia da República
Agostinho Almeida Santos
Francisco Carvalho Guerra
Jorge Sequeiros
José Germano de Sousa
Maria do Céu Patrão Neves
Miguel Oliveira da Silva
Conselheiros designados por Resolução do
Conselho de Ministros
Isabel Santos
Lígia Amâncio
Maria de Sousa
Rita Lobo Xavier
Rosalvo Almeida
Conselheiros designados por outras entidades
Ana Sofia Carvalho – Designada pelo Conselho de
Reitores das Universidades Portuguesas
Carolino Monteiro – Designado pela Ordem dos Biólogos
Duarte Nuno Vieira – Designado pelo Instituto
Nacional de Medicina Legal
João Ramalho-Santos – Designado pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia
José Lebre de Freitas – Designado pela Ordem dos Advogados
Lucília Nunes – Designada pela Ordem dos Enfermeiros
Michel Renaud – Designado pela Academia de Ciências de Lisboa
Pedro Nunes – Designado pela Ordem dos Médicos
–5–
Índice
7
Introdução
Miguel Oliveira da Silva
15
Cuidados de Saúde e Política Financeira em
tempos de crise global
Agostinho Almeida Santos
27
Uma proposta de um modelo de
deliberação ética para a saúde pública
Ana Sofia Carvalho
39
Aspetos éticos em farmacogenómica
Carolino Monteiro
47
Os princípios éticos da autonomia, beneficiência e
justiça nos rastreios
Isabel Pereira dos Santos
65
Por uma Bioética útil
João Ramalho-Santos
81
Tecnologias de “Nova Geração” para Sequenciação
de Genomas Completos: políticas públicas para
testes genéticos relacionados com a saúde
Jorge Sequeiros
105
Apreciação bioética da prática e das políticas
públicas sobre terapêuticas não convencionais
José Germano de Sousa
121
Responsabilidade e poder nas políticas e nos
cuidados de saúde: a participação como imperativo
Lucília Nunes
147
Outras Ciências, Outras Vidas – A abelha
melífera e alguns dos seus ensinamentos
Maria de Sousa, Raquel Teixeira de Sousa
171
Ensaios Clínicos: o Regulamento europeu
Maria do Céu Patrão Neves
185
Reflexão bioética sobre o
projeto de lei da “coadoção”
Maria Rita Lobo Xavier
201
O bem da pessoa e o bem comum
no pano de fundo da teoria da justiça
Michel Renaud
233
Ciência, Ética e o mito da imortalidade
Rosalvo Almeida
–7–
Introdução
Miguel Oliveira da Silva
Ética e Política são dois termos de um binómio que, na
cultura ocidental, tem já mais de vinte e quatro séculos. Não
por acaso, mas por necessidade, no final do último livro (livro
X) da sua imensa Ética a Nicómaco, Aristóteles anuncia sua
obra seguinte, complementar 1, inevitável, precisamente intitulada Política 2.
Ética e Política não se excluem: é desejável que na Política – isto é, na gestão do bem comum - a Ética seja sempre
tida em conta, esteja nela contida: a sensibilidade e reflexão
ética moldam, temperam, informam e enformam as decisões
políticas, as leis justas.
A Ética sem Política, só por si, é claramente insuficien3
te , mesmo quando, no plano individual, cumprimos através
das nossas acções o dever imposto pelos nossos valores. Por
isto, “formada a princípio para preservar a vida, a cidade subsiste para assegurar a vida boa 4”, já que “o homem é, por natureza, um ser vivo político 5”, quer dizer, também um
1. Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1181 b 19.
2. De resto, já Platão se dedicara à Filosofia para tentar resolver os problemas que enfrentara na polis. Os seus livros República e O Político são disso
testemunho.
3. “Não consistem os fins no estudo e no conhecimento puramente teórico
das diferentes acções, mas sobretudo na respectiva execução? E no que diz
respeito à virtude, também não basta saber no que ela consiste, mas esforçarmo-nos também por a viver, praticar e tornar realidade.” Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1179 b 1-4.
4. Aristóteles, Política, 1252 b 29-30.
5. Aristóteles, Política, 1253 a 2-3.
–8–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
politikon zoon, um animal político que pretende construir e viver na cidade feliz (polis eudaimon) 6.
Falamos, é claro, do político, no sentido nobre e elevado
da palavra, não da má utilização da retórica, com a exploração da persuasão e suas ambiguidades, afectos, pluralidade
de implícitos, conversão do verosímil em verdadeiro 7, diferentes modos de dizer, flutuação de opiniões, credibilidade,
probidade e carácter moral de quem diz, do que se diz e como
se diz, interesse, disposição e motivação de quem ouve ou de
quem lê 8.
Acresce que as leis, se e quando justas, têm, elas próprias, uma acção pedagógica, educativa, na formação ética do
carácter moral e das virtudes de um povo: “receber desde jovem uma educação orientada com rectidão para a virtude é
coisa difícil de imaginar quando se não foi educado sob leis
justas 9“.
No caso da Ética, em geral, e da Ética das Ciências da
Vida em particular – Bioética – do que se trata é da sabedoria
prática.
E a sabedoria prática delibera sobre casos singulares e situações particulares, delibera sobre valores e tem o dever de
os tentar concretizar na vida real.
A Bioética não é, pois, uma ciência 10 e, como tal, não delibera sobre o universal. A Bioética não tem leis nem as produz. A Bioética escolhe com prudência a decisão que, na
maioria dos casos (ut in pluribus), com maior probabilidade 11
se julga poder ser a mais acertada e que melhor realiza os valores. Não trata de certezas, dogmas, infalibilidades. Não se
contenta com a aproximação suficiente do bem (agathou), pro6. Aristóteles, Política, 1323 b 30.
7. Aristóteles, Retórica, 1355 a.
8. Aristóteles, Retórica, 1355 a-1356 b.
9. Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1179 b 32.
10. Miguel Oliveira da Silva. A Bioética: ciência ou sabedoria prática? In: A sexualidade, a Igreja e a Bioética. Lisboa, Caminho, 2008.
11. “A razão humana não pode abarcar a infinidade das coisas singulares…
No entanto, a infinidade das experiências singulares reduz-se na maioria
dos casos a algumas em número finito, cujo conhecimento é suficiente para
a prudência humana” Tomás de Aquino, Summa Teologica, II, II ae. q.47, a3,
ad 2.
BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS – INTRODUÇÃO | MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA
–9–
cura sempre o óptimo (to aristón), como arqueiros que tentam
com a flecha atingir, sempre e apenas, o centro do alvo 12.
Assim, “o que se nos pede não é que estejamos cem por
cento seguros de não nos equivocarmos, mas que, antes de
decidirmos, deliberemos, e decidamos, depois, responsavelmente. Uma coisa é ter decidido responsavelmente, e outra
coisa é estarmos totalmente seguros de nos não termos enganado” 13.
E porque certas áreas e questões bioéticas conduzem o
legislador a elaborar leis (necessariamente universais), há
aqui, não raras vezes, uma tal ou qual inevitável tensão, e até
precaridade, na relação entre o particular e o universal, entre
os universos da Bioética e da Política. Mesmo quando, avisadamente e com prudência, e até pela própria natureza dos
temas em causa, a lei impõe a sua revisão para breve 14 e prevê o direito – constitucional em Portugal 15 – de objecção de
consciência 16.
Daqui que novos conhecimentos científicos e o desenvolvimento da reflexão bioética possam dialogicamente conduzir a novas propostas bioéticas 17 para uma nova revisão legislativa. Como se vê nem sempre é fácil encontrar o deno-
12. Diego Grácia. Como Arqueros al Blanco. Madrid, Triacastela, 2004.
13. Juan Masiá Clavel. La gratitude responsable. Madrid, Universidad Pontifícia Comillas, Declée de Brower, 2004, p. 151.
14. Em França, algumas leias bioéticas são revistas todos os cinco anos,
obrigatoriamente.
Em Portugal, o Parecer 63/CNECV/2012 propôs isto mesmo – avaliação e
revisão da nova Lei de PMA passados 3 anos da respectiva promulgação.
Veremos quando, como e se haverá uma nova lei de PMA.
15. Constituição da República Portuguesa, artº 41º.
16. Como é o caso em Portugal das leis sobre PMA (Lei32/2006, Artº 11), sobre a IVG (Lei 16/2007, Artº12), e sobre as Directivas Antecipadas de Vontade (Lei 16/2012. Artº 9º).
Sublinhe-se que há quem se oponha ao direito de objecção de consciência
em matéria de IVG (Julian Savulescu. Conscientious objection in medicine. British Medical Journal, 2006, 332:294-297). Tal controvérsia é motivo de debate em Congressos Europeus de Contracepção (ver 13th Congress of the
European Society of Contraception and Reproductive Health, Lisboa, 28-31
Maio, 2014).
17. O CNECV elaborou já, desde 1993, três diferentes Pareceres sobre Procriação Medicamente Assistida (PMA) e, desde 1994 outros quatro diferentes Pareceres sobre questões éticas no final da vida humana.
–10–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
minador comum que proporcione estabilidade e serenidade
e há por vezes que reapreciar as leis em vigor 18.
De resto, se, em geral, as leis nunca podem prever todas
as situações em que se aplicarão, com maioria de razão tal se
passa nas chamadas leis bioéticas. De certo modo isto contraria o conselho de Aristóteles, preocupado já com a possibilidade do juiz (e, digo eu, do decisor político) poder ter que
decidir sobre situações antes imprevistas: “ acima de tudo,
convém, portanto, que as leis, estabelecidas numa base justa,
determinem elas mesmas tudo o que é permitido e que deixem os juízes fazer o menos possível 19”.
Na realidade é imensa a velocidade com que novas possibilidades e inéditas realidades surgem, em função do desenvolvimento científico e tecnológico. Daí novos problemas
éticos que exigem ponderação e serena deliberação, sem resposta pré fabricada, realitas semper maior.
Alguns exemplos: até há 10 anos a vitrificação de ovocitos era impossível, hoje uma realidade que permite conservar
e utilizar gâmetas femininos jovens e saudáveis, porventura
por dezenas de anos; até há pouco o transplante de útero era
inimaginável, hoje é já uma promessa no humano; a investigação com os diferentes tipos de células estaminais prossegue, constantemente abrindo e fechando perspectivas e sonhos, com desenlace clínico ainda incerto, com recursos financeiros avultados, com recorrente promiscuidade entre investigadores e decisores políticos, e fraude, também recorrente, na escrita científica publicada nas ditas melhores revistas.
E, contudo, as leis são universais, tratam do geral e não
do particular, e impõem por vezes sanções a quem as não
cumprir, não falam de probabilidades nem prevêem a correcção de mais que uma opção certa para resolução do mesmo problema. Nem admitem, por regra, casos excepcionais
que se não incluam no respectivo universo.
18. As Leis da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e da Procriação Medicamente assistida (PMA) – uma apreciação bioética. Colecção Bioética 13,
CNECV, Lisboa, 2011
19. Aristóteles, Retórica, 1354 a
BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS – INTRODUÇÃO | MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA
–11–
Assim, em certo sentido, qualquer lei que tenta regular
e/ou regulamentar comportamentos e sanções sobre questões éticas da ciências da vida corre seriamente o risco de, a
priori, ser já uma lei incompleta e carente de revisão a curto
prazo.
Vejam-se em Portugal dois exemplos recentes onde parecem haver dificuldades e aparentes hesitações que levam a
que a própria nova lei (ou revisão de anterior) não tenha (ainda?) tido condições para avançar.
Primeiro exemplo: desde Julho desde 2012 a lei sobre Directivas Antecipadas de Vontade aguarda pela regulamentação e pelo rentev (Registo Nacional de Testamento Vital),
sem o qual apenas por excepção anedótica se saberá quem escreveu ou não o respectivo testamento vital (e o que nele escreveu) ou quem designou o respectivo procurador de cuidados de saúde. O segundo exemplo diz respeito a uma hipotética nova lei de pma (admitindo, entre outras novas realidades, a gravidez de substituição), que marca passo no Parlamento desde finais de 2011, não obstante o Parecer do
cnecv ter sido dado no início de 2012 20.
Esta relação, por vezes esta tensão entre Ética e Política,
entre Ética e políticas públicas, é mais acentuada nas ciências
da vida pelo rápido e por vezes imprevisível avanço científico e tecnológico: quem poderia, por exemplo, prever há duas
décadas a gravidez e maternidade após a menopausa?
Tratando-se das políticas públicas decorrentes de deliberações sobre temas bioéticos – não necessariamente ditos
“fracturantes” nem apenas ligados à vida humana (é inexplicável a forma como, em Portugal, os Centros de Bioética têm
descurado nas suas acções de pós-graduação as questões éticas da vida animal e da ética da Natureza, esquecendo, de
resto, o espírito primevo, fresquício e profético de Potter 21
que se referia a todas as formas de vida, não apenas à vida
humana) – bom seria que estas, as políticas públicas, incluís20. Parecer sobre Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição. Parecer 63 /CNECV/2012
21. Van Renselaer Potter. Bioethics - bridge to the future, Prentice-Hall, New
Jersey, 1971.
–12–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
sem no seu normativo a obrigatoriedade legal da respectiva
revisão periódica.
Assim, é curial que as actuais legislações e/ou regulamentações de certas leis que possibilitam determinadas políticas públicas, respectivamente sobre a Interrupção Voluntária de Gravidez e Procriação Medicamente Assistida, careçam
de uma revisão, desejavelmente na sequência de um debate
cívico sereno e transparente.
No primeiro destes exemplos discute-se a gratuitidade para muitos inaceitável - do aborto recorrente e do pagamento integral (mais caro e mais perigoso, por se tratar de
método cirúrgico e não químico) pelo sns dos abortos realizados sem qualquer justificação em clínicas privadas (e são
cerca de um terço dos abortos legais realizados em Portugal
por opção da mulher até às 10 semanas).
No segundo caso, e no contexto da discutida doação
anónima de gâmetas, instituída com pressupostos não escritos mas que se verificaram falsos – se a doação não fosse anónima não haveria dadores e dadoras suficientes, e o facto é
que em Portugal, com o anonimato, não há dadores suficientes porque se importam gâmetas em clínicas privadas – importa ponderar os interesses da criança que vai nascer e dos
seus legítimos desejos em, no contexto da sua identidade global, poder querer conhecer pessoalmente os seus progenitores genéticos. Tal foi o caso da evolução verificada no Reino
Unido em que se passou do anonimato na doação de gâmetas ao não anonimato e à possibilidade em, a partir dos 18
anos, se conhecer o progenitor genético 22.
O presente livro que o cnecv agora dá à estampa no final do seu 4º mandato (2009-2014) é um conspecto de treze diferentes artigos de outros tantos capítulos em que conselheiros e conselheiras23, com total liberdade na escolha do tema
e na sua redacção, discorreram sobre diferentes questões éticas e respectivas políticas públicas.
22. Nuffield Council on Bioethics. Donor conception: ethical aspects of information sharing. Londres, 2013
23. Excepcionalmente, o artigo da autoria da Conselheira Maria de Sousa
é co-assinado, a pedido da autora, por Raquel Teixeira de Sousa, cientista
que não integra a composição do CNECV.
BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS – INTRODUÇÃO | MIGUEL OLIVEIRA DA SILVA
–13–
Na sua diversidade e policromia reconhecerá o leitor interessado a panóplia de algumas das principais questões que
hoje e no futuro próximo ocupam e preocupam os bioeticistas e decisores políticos portugueses, e não só. É um livro a ler
e revisitar nos próximos tempos.
Os conteúdos abrangidos são muito diversos e, conforme as afinidades electivas de cada um, interessam a um público mais ou menos ledor e conhecedor de questões bioéticas
e preocupado na forma como a gestão do bem comum com
elas tem lidado, e, bem assim, na forma como pode e deve
com elas lidar no futuro próximo.
Nestes textos – que traduzem posições individuais dos
seus autores e não do cnecv enquanto instituição – há uma
saudável pluralidade de sensibilidades e diversidade de posicionamentos bioéticos, intencionalmente sem a procura de
harmonização e consenso entre diferentes perspectivas e
olhares.
No seu todo, este original é um valioso acervo que pretende estimular a reflexão bioética, dando testemunho de
algo que o cnecv pode influenciar na sociedade em geral e
nos decisores políticos em particular.•
–15–
Cuidados de Saúde e Política Financeira
em tempos de crise global
Agostinho Almeida Santos1
A crise económica global dos últimos anos reflecte-se na
gestão, já complexa, da prestação de cuidados de saúde, não
só na Europa, como também no Mundo.
O tema foi, recentemente, objecto de uma série de artigos, publicados na “Lancet”, a propósito da agitação que afecta as políticas europeias e as eventuais consequências sobre a
saúde dos cidadãos.
O que é certo e deve ser objecto de reflexão é que as crises económicas não se desencadeiam de um dia para o outro,
mas resultam de mudanças da economia global, de erros perpetrados pelos decisores políticos e de cálculos erróneos dos
mercados financeiros e dos investidores.
A actual situação mundial e em particular a que se vive
na Europa têm origem em 2008, no dia em que o Banco Lehman Brothers (nos Estados Unidos) declarou falência, com generalizada estupefacção.
E a questão desde logo avançada foi arrasadora. Se uma
instituição bancária, com a credibilidade e influência internacional da que estava em causa, pôde ser considerada em
bancarrota, que outra instituição financeira, no mundo global,
não pode estar em perigo?
As razões da presente crise financeira são actualmente
1. Professor Catedrático Aposentado da Faculdade de Medicina de Coimbra. Ex-Presidente do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Membro do CNECV por eleição da Assembleia da
República
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
bem conhecidas. Investimentos vultuosos cobertos por hipotecas de alto risco, mal geridas pelos credores, e um consumo
excessivo de bens supérfluos estimulado pelas instituições financeiras estiveram na base de créditos mal parados e insolvências inesperadas. Além de um sistema regulador financeiro, no mínimo, pouco atento.
As consequências negativas desta política financeira perversa sucederam-se em cascata. Os juros aumentaram fortemente, as falências ocorreram em catadupa e os negócios tornaram-se cada vez menos rentáveis.
A crise financeira esteve na origem de uma crise económica grave. O Produto Interno Bruto (pib) regrediu progressivamente em todos os países da Europa e o desemprego rapidamente se tornou motivo de forte preocupação económica e social na União Europeia.
Nestas condições económicas deterioradas os orçamentos dos Estados passaram a ser elaborados com reduções significativas e progressivamente mais acentuadas.
A diminuição das receitas dos Estados, o aumento das
despesas, sobretudo sociais, e também o acréscimo dos juros
das dívidas contraídas para manter os compromissos governamentais deram azo a um deficit contínuo das contas públicas de muitos países.
A crise económica e financeira que está a ser vivida em
grande parte dos países europeus causou uma considerável
deterioração das finanças públicas desses mesmos países.
Face à situação de crise, alguns governos viram-se obrigados a adoptar medidas de austeridade e a diminuir substancialmente as despesas do sector público dos Estados.
Nos países sob assistência financeira da “Troika” (União
Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) têm vindo a ser impostas, pelas instituições financiadoras, não apenas reduções de orçamentos estatais, mas
também alterações importantes das próprias estruturas e organização do sector público.
No quadro destas condições restritivas exigidas aos países financiados pelo exterior, também os responsáveis pelas
CUIDADOS DE SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE GLOBAL | AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS
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políticas de Saúde se viram obrigados a alterar os orçamentos sectoriais das instituições de Saúde Pública.
As reduções orçamentais condicionaram cortes no financiamento dos Hospitais e outras Unidades de Saúde que
incidiram não só a nível dos salários dos profissionais, mas
também no âmbito da aquisição de medicamentos e outros
produtos de consumo e até nas próprias despesas gerais.
Todas estas medidas de política económica deverão condicionar reflexos evidentes na prestação de cuidados em saúde pública, muito embora o tema não tenha vindo a ser discutido de forma aprofundada e responsável, como achamos
que deveria ser. E, por isso, lanço para debate esta reflexão de
cidadania.
No ponto de vista social e ético terão de se avaliar, com
urgência e de forma independente, as eventuais implicações
negativas de uma situação inesperada e brusca que deverá ter
incidências sobre a actividade dos serviços de Saúde e sobre
a prestação de cuidados sanitários aos cidadãos.
Esta questão é tanto mais importante quando é certo que
os efeitos da crise económica e financeira são já visíveis e sentidos pelas comunidades socialmente mais desfavorecidas,
sobretudo nos países mais afectados pela hecatombe.
As medidas de austeridade impostas pelos governos dos
países sob assistência financeira internacional condicionam
negativamente a procura de cuidados de saúde pelos próprios cidadãos que vêm minorar os seus proventos e não conseguem pagar, total ou parcialmente, os actos médicos e as
respectivas taxas ditas “moderadoras” e nem sequer podem
adquirir medicamentos, em especial os mais caros ou quando está prescrita polimedicação, sobretudo em pacientes mais
idosos ou de menores recursos.
Por enquanto, ainda não é muito evidente uma influência deveras significativa da presente crise sobre as instituições
de saúde e, sobretudo, sobre as intervenções mais necessárias
ou urgentes que são devidas aos cidadãos doentes. Porém, já
se começam a divulgar indicadores de algumas influências da
escassez de recursos financeiros sobre o estado sanitário das
populações, sobretudo as mais vulneráveis (diminuição
–18–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
preocupante da natalidade, menor procura dos tratamentos
de esterilidade conjugal, incremento substancial da venda de
antidepressivos, por exemplo).
Torna-se, por tudo isto, imperioso estar vigilante, uma
vez que a situação se pode deteriorar em futuro mais ou menos próximo.
O que não deixa de impressionar é o facto de não haver
avaliações e análises sobre a consequência da crise, face ao estado da saúde pública e ao bem-estar dos cidadãos. As reflexões que vão sendo divulgadas são de índole individual e não
resultam de participação conjunta de equipas especializadas
na matéria, com cariz independente, envolvidas em projectos
específicos sustentados por fundos internacionais e escrutinados por entidades sem vínculos políticos aos Governos que
implementam as medidas de austeridade.
O impacto dos serviços de saúde sobre vários aspectos
importantes da vida dos cidadãos, da Saúde em geral e da
própria economia global são circunstâncias que devem exigir
uma reflexão atenta quando se prevê, como é quase inevitável, uma redução dos orçamentos das instituições sanitárias.
O elevado nível de desemprego e a diminuição do poder
de compra das populações condicionam uma redução dos
proveitos fiscais dos Estados e, simultaneamente, os Serviços
de Saúde vêm aumentar progressivamente os seus custos
com agravamento de determinadas patologias e incremento
de exames complementares cada vez mais sofisticados e onerosos.
Paralelamente, não se pode deixar de considerar que,
tendo em conta as regras da economia, a diminuição dos orçamentos destinados à protecção social e aos cuidados de
saúde pode contribuir, também por si, para uma evolução
económica de pendor negativo.
Toda a problemática evocada é verdadeiramente complexa, sobretudo porque:
– os doentes devem continuar a ter direito a ser assistidos adequadamente;
– a redução dos orçamentos destinados às instituições
dependentes do Estado é inexorável;
CUIDADOS DE SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE GLOBAL | AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS
–19–
– a situação crítica é mais difícil de sustentar e de tolerar,
sobretudo no âmbito dos serviços públicos de assistência sanitária.
Acontece, porém, que a contracção da economia condiciona uma redução das receitas dos governos que são, assim,
confrontados com duas atitudes políticas possíveis:
– aumento dos impostos (medida socialmente difícil de
aceitar);
– e/ou redução das despesas públicas.
De tudo isto e de muito mais que fica por dizer e às vezes se desconhece, resultam as consequências sociais que ensombraram o nosso horizonte colectivo, nem sempre despido
de conflitos e contradições, numa área que tem a ver com a
vida e com o bem-estar das pessoas.
De facto, neste momento, 40% dos cidadãos estão em risco de pobreza.
Os doentes crónicos, sem dinheiro, abandonam as medicações.
15% dos portugueses já não têm dinheiro para pagar
comparticipações nos medicamentos.
3.760 idosos morreram sós, sem assistência, durante o
ano de 2012.
Cerca de 20.000 portugueses de idade avançada vivem
sozinhos, muitos deles sem qualquer apoio domiciliário.
Os diabéticos, asmáticos e doentes mentais que foram
obrigados a parar os tratamentos acabam nas urgências hospitalares.
Simultaneamente, o aumento brutal das taxas moderadoras nos Serviços de Saúde não moderou nada, antes obstaculizou a procura de cuidados que podem ser vitais.
As urgências hospitalares (e não só as falsas) diminuíram
cerca de 40%. Por carências de dinheiro dos cidadãos.
Os indicadores são preocupantes. Os cortes são imensos
e não há soluções miraculosas.
Continua a navegar-se à vista. Sem rumo, nem leme.
–20–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Mas, como se podem reduzir as despesas em Saúde?
Existem estratégias de gestão que podem ser adaptadas
a planos de contingência. Mesmo antes da crise económica e
financeira que teve início em 2009, já tinham sido introduzidas algumas medidas gestionárias de contenção nos Hospitais da Universidade de Coimbra (huc), face aos deficits orçamentais continuadamente apurados.2
A política da administração e as estratégias de gestão
que foram implementadas tinham em vista alguns objectivos
precisos:
• Garantir a boa qualidade dos serviços prestados;
• Tentar uma redução racional de custos;
• Procurar equilibrar o orçamento global.
A filosofia de gestão foi, em conformidade, centrada sobre vários parâmetros:
• Controlo permanente de produtividade;
• Vigilância muito aturada e tão eficaz quanto possível
das despesas;
• Preservação da qualidade dos cuidados prestados;
• Reflexão cuidada sobre as opiniões positivas e negativas expressas pelos utentes ou familiares.
No sentido de proporcionar um contributo de cidadania
e participar num encontro de soluções concretas e credíveis,
e não apenas para elaboração de um mero exercício de retórica inconsequente, procurei elencar 13 medidas, e apenas treze medidas concretas, que julgo urgente deverem ser implementadas, no sentido de inverter a marcha para o abismo.
Sirvo-me da reflexão pessoal ao longo dos tempos e da
experiência vivida durante os anos em que assumi a responsabilidade de gestão dos huc. A qual me posso orgulhar de
2. O Autor do texto foi Presidente do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra (do Sector Público Administrativo) entre 2005 e 2007.
CUIDADOS DE SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE GLOBAL | AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS
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dizer ter conseguido equilibrada, até na perspectiva financeira.
E por ser equilibrada redundou em incumprimentos
pela tutela e em cortes orçamentais antes contratualizados. O
que culminou então na apresentação da minha demissão, publicamente explicada.
Quais são então algumas das políticas que urge implementar para tratar as “maleitas” da Saúde em Portugal?
1. O Serviço Nacional de Saúde deve manter-se Universal, embora não possa assumir-se como tendencialmente
gratuito. É utópico. Todos teremos de o pagar, muito embora
proporcionalmente às posses de cada um.
2. Devem adoptar-se soluções eficazes e já tentadas com
resultados evidentes, em Portugal. A mortalidade infantil é
um indicador sanitário que nos coloca nos primeiros lugares
de excelência a nível mundial. Tão só e apenas porque se implementaram Unidades Coordenadoras Funcionais (ucf) que
estabeleceram uma rede de prestação de cuidados com sinergias e interligações operativas, eficazes e acolhidas com
satisfação pelas instituições, profissionais e beneficiários.
Urge repetir a experiência noutras áreas especializadas.
3. O modelo institucional de governação, sobretudo nos
Hospitais públicos, deverá retomar um regime que se enquadre no figurino do Sector Público Administrativo. As
tentativas ensaiadas com Sociedades Anónimas (sa), Entidades Públicas Empresariais (epe) ou Parcerias Público Privadas
(ppp) foram opções frustradas, tendo-se revelado ineficazes e
inadequadas pelo que só têm posto em causa a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.
4. A fusão de unidades de prestação de cuidados de
Saúde, sobretudo de grandes hospitais, constitui medida
apressada, sem estudos prévios e que se tem revelado incongruente. Só tem levantado mais problemas de gestão (macrocefala) e vai condicionando conhecidos conflitos insaná-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
veis entre profissionais, sem quaisquer benefícios para as populações. Devem, isso sim, testar-se fusões lógicas (por exemplos de Maternidades Centrais afastadas apenas algumas
centenas de metros, como é o caso de Coimbra) ou de urgências próximas e sem relevância de actividade clínica. O modelo terá de ser implementado de forma progressiva e à medida que forem avaliados os resultados. E sempre, mas sempre, com anuência partilhada dos profissionais envolvidos.
5. As carreiras médicas hospitalares e de clínica geral e
medicina familiar devem ser revitalizadas e sustentadas
num ensino pós-graduado qualificado, sendo dotadas de
graus progressivos de ascensão e avaliação da diferenciação
por júris especializados de âmbito nacional e não por puro
compadrio ideológico ou por afeição pessoal.
6. As Faculdades de Medicina têm de rever a sua estratégia funcional e pedagógica. É necessário e urgente definir o
número de médicos e respectiva diferenciação adequado ao
nosso País para, assim, regular o acesso às instituições universitárias. Os modelos pedagógicos não podem estar expostos aos modernismos de Bolonha. Será admissível que não
haja praticamente ensino de administração em Saúde, gestão
de recursos ou análises de sistemas económicos nas Faculdades de Medicina em Portugal? E que nem se referencie a Telemedicina como aposta num sistema partilhado de cuidados
de Saúde? É preciso evitar os desperdícios. Transmitindo
também princípios éticos. Aos estudantes terá de ser ministrado um ensino baseado na avaliação do doente e da doença e menos dependente de resultados de exames complementares cada vez mais sofisticados e, por isso, mais caros. A
rarefação do raciocínio médico é indesejável e tem tendência
a institucionalizar-se cada vez mais.
7. Os gestores dos Serviços de Saúde devem ser personalidades de méritos reconhecidos e desvinculados do poder
político, não podendo, nem devendo ser dele uma mera correia de transmissão. A preocupação dominante dos agentes
CUIDADOS DE SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE GLOBAL | AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS
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da governação das unidades de saúde deve estar centrada na
satisfação dos profissionais, na sua coesão interna hierarquizada e na sua dedicação à instituição, de maneira a garantir
a qualidade e eficácia dos serviços prestados e a satisfação
dos cidadãos que recorrem aos serviços de saúde públicos. A
gestão dos serviços de saúde deve assentar no princípio da
competência e ser exercida com transparência através da divulgação pública periódica de resultados de exploração escrutinados por Revisor Oficial de Contas e auditados por um
Conselho Executivo externo e independente.
8. A actividade das unidades de saúde deve reger-se por
Contratos-Programa negociados com a tutela e baseados em
avaliação do histórico institucional, devendo ser escrupulosamente respeitados pelas partes e acompanhados em conjunto, com periodicidade curta e regular, e sem recurso a esquemas de engenharia financeira viciadores da verdade das
finanças institucionais.
9. A arquitetura gestionária deve centrar-se em unidades
operacionais sinérgicas, agrupadas em Departamentos,
com afinidades técnico-científicas e geridas sob a forma de
centros de responsabilidade, dotados de autonomia e sujeitos
a escrutínios regulares, quer dos orçamentos sectoriais, quer
das actividades desenvolvidas e previamente contratualizados com o órgão de tutela da instituição, cumprindo as metas e respeitando as projeções desenvolvidas para o ano económico.
A indigitação dos responsáveis pelos Departamentos,
pelos Centros de Responsabilidade e Unidades Operacionais
deve efectuar-se após avaliação, por entidades credenciadas,
do mérito curricular dos candidatos que se submetam a concurso de chefia e que tenham apresentado projectos relativos
a planos de acção anuais e trienais para a respectiva área de
intervenção.
10. Deverão ser activados Conselhos Médicos e de Enfermagem representativos dos profissionais das respectivas
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
áreas que analisem as questões relevantes inerentes às suas
actividades específicas e que apresentem sugestões para
maior eficácia e operacionalidade da instituição.
11. Os quadros profissionais devem ser estabelecidos
com parcimónia, mas terão de ser adaptados às necessidades
operacionais e segundo “ratios” definidos internacionalmente. Os profissionais médicos devem ser contratados em exclusiva dedicação à instituição e com horários de trabalho
adaptados às necessidades operacionais. A prática médica
privada poderá ser facultada nas instituições de saúde pública mediante acordos celebrados entre os interessados e os
órgãos de gestão, sem prejuízo da normal assistência sanitária pública.
12. Os cuidados médicos devem ser prestados com base
na avaliação racional das patologias e utilização dos procedimentos de análise complementar mais banais e informativos, reduzindo-se os exames mais sofisticados e onerosos
que só deverão ser implementados quando clinicamente justificados por critérios científicos.
Deverão ser implementados, de forma progressiva, protocolos diagnósticos e terapêuticos estabelecidos para diferentes situações clínicas em assumido cumprimento dos preceitos decorrentes de “standards” estabelecidos pela Medicina Baseada na Evidência e com obrigatória justificação dos
desvios que forem preconizados.
Deverá reforçar-se a intervenção das Comissões de Farmácia e Terapêutica, com especial incidência na introdução
nos formulários de novos medicamentos e particular atenção
à realização de ensaios clínicos com produtos de eficácia não
comprovada ou até pouco previsível.
A prescrição por unidose deve ser prática generalizada
e progressivamente adaptada, apesar dos interesses opositores envolvidos.
13. A gestão financeira deve promover pagamento
atempado a fornecedores, tendo em consideração a relação
CUIDADOS DE SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE GLOBAL | AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS
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comercial de confiança e a possível e desejável negociação de
preços, com a consequente redução dos custos.
Terão de ser preconizadas intervenções pedagógicas continuadas junto dos agentes sanitários, visando reduzir desperdícios (água, luz, comunicações, consumíveis, transportes, …).
Deverão ser avaliados todos os recebimentos hospitalares “milionários” de alguns profissionais médicos, que, a meu
conhecimento, já chegaram a atingir 37.924,00 € num só mês.
Por incrível que possa parecer!
É desejável a avaliação ética do comportamento dos profissionais de saúde e a recolha de informações e opiniões dos
cidadãos sobre a prestação dos cuidados de saúde facultados,
sendo as mesmas objecto de análise sistemática, aprofundada e consequente, sobretudo das reclamações dos utilizadores. O erro médico deverá ser, sempre, objecto de registo, avaliação e correcção.
Com orçamentos reduzidos e exigências tecnológicas
cada vez mais avançadas e caras é necessário aprender a viver com os meios disponíveis e saber cuidar dos doentes com
eficácia, através da prática de uma medicina moderna que
deve centrar-se na avaliação clínica, valorizando o raciocínio
médico que, infelizmente, se vai rarefazendo devido à tendência para o substituir por meios progressivamente mais sofisticados mas, em certos casos, pouco consentâneos com a
pessoa individual que é o doente em si mesmo.
Esta restrição da prática do raciocínio médico vem-se
tornando, a nosso ver, cada vez mais frequente, sendo, por
isso, necessário ensinar aos médicos, desde a sua aprendizagem nas Faculdades de Medicina, quais os custos dos seus
procedimentos e respectivo interesse para a saúde dos pacientes, bem como o impacto que os mesmos determinam sobre uma economia global que está em crise e que nos envolve a todos, enquanto cidadãos, e que virá a condicionar, seguramente, o nosso futuro colectivo.
Um conjunto de intervenções deste ou de outro tipo semelhante, mas com pressupostos similares e objectivos idên-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
ticos evitará a falência do Serviço Nacional de Saúde, contribuirá para a melhoria do estado sanitário dos portugueses,
evitará o pessimismo “militante” e contribuirá, seguramente,
para que haja mais e melhor Saúde em Portugal. Para todos!
E não só para os mais ricos ou para os que têm amigos influentes.•
–27–
Uma proposta de um modelo de
deliberação ética para a saúde pública
Ana Sofia Carvalho
A saúde pública, ao contrário de outras áreas da saúde,
concentra a sua acção, não na saúde dos indivíduos mas na
saúde das populações, configurando muitas vezes uma potencial ameaça à liberdade individual, o que lhe confere natureza eticamente controversa.
A bioética, na sua vertente biomédica, emerge e desenvolve-se em contextos essencialmente ligados aos cuidados
médicos e à investigação em seres humanos, fazendo sobressair uma série de preocupações éticas que em certas situações
não se adequam ao contexto da saúde pública. De facto, é inegável que toda a área dos cuidados de saúde e da investigação biomédica atribui enorme importância ao princípio da
autonomia, importância que, porque falamos de populações
e não de indivíduos, adquire diferentes contornos em saúde
pública.
Os códigos de ética médica e de investigação biomédica,
emergindo de uma tendência onde a autonomia aparece
como central e inviolável, devotam ao correspondente consentimento informado uma importância central. Desta forma,
estes mesmos códigos estão, em muitos dos seus articulados,
desajustados à prática da saúde pública. Quando os códigos
contemplam situações específicas de saúde pública (p.e. as
doenças de declaração obrigatória) estas são sempre apresentadas como derrogações de um princípio. Assim, esta área
reveste-se de um carácter de “excepcionalismos” a regras éticas universalmente consagradas. Estas excepções, normal-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
mente aprovadas por legislação específica, tornam a fronteira entre a ética e a política muito ténue e acentuam a necessidade de estabelecer uma reflexão sólida para as tomadas de
decisão nesta área. Desta forma, a análise das questões éticas
em programas de saúde pública e, concomitantemente, a política que subjaz a esse mesmo programa exige um quadro referencial de análise ética distinto.
Poderemos identificar dois aspectos éticos que apresentam maior divergência em relação ao quadro tradicional da
ética médica (Have et al., 2010). Em primeiro lugar, o facto de
a ética em saúde pública ter como referência a população e
não o indivíduo; e, em segundo lugar, ao contrário das referências éticas mais tradicionais, onde a ênfase é predominantemente colocada na cura e no cuidado, a saúde pública
centra a sua acção na prevenção.
De acordo com Roberts e Reich (2002) as questões éticas
em saúde pública podem ser articuladas a partir de três grandes categorias de reflexão filosófica, correspondendo cada
uma destas teorias a um discurso ético diferente sobre o
modo de analisar as questões em saúde pública: uma corrente eminentemente utilitarista, que reforça que as decisões devem ser avaliadas pelas suas consequências; o liberalismo, focado nos direitos e oportunidades e na liberdade individual
como pilar estruturante da sociedade; e o comunitarismo,
com ênfase na sociedade civil e não apenas no indivíduo, sustentando que o individualismo exacerbado proveniente do liberalismo leva a sociedade inevitavelmente a situações insustentáveis.
No entanto, não será esta a reflexão que presidirá a este
artigo, que tem como objectivo rever os diferentes instrumentos éticos existentes na literatura internacional e elaborar
uma proposta que permita ajudar os profissionais a deliberar
sobre aspectos éticos dos programas e das políticas de saúde
pública.
UMA PROPOSTA DE UM MODELO DE DELIBERAÇÃO ÉTICA PARA A SAÚDE PÚBLICA | ANA SOFIA CARVALHO
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Um modelo de deliberação para a saúde pública
Quais são as questões éticas básicas na área da saúde pública? Que orientações éticas são mais apropriadas para o esclarecimento e a resolução dessas mesmas questões? Que
princípios éticos e correntes devem ser considerados na deliberação e consequente tomada de decisão nos programas e
políticas de saúde pública? De que forma a reflexão ética
pode ser considerada como constituindo um reforço nas políticas públicas na área (Callahan & Jennings, 2002)?
Com base no desafio que as questões anteriormente elencadas nos colocam e após revisão de alguns modelos propostos na literatura seleccionamos alguns modelos que de alguma forma poderiam constituir-se como adequados à persecução do nosso objectivo (Tannahill, 2008; Nuffield Council on Bioethics, 2007; European Public Health Ethics Network, 2006; Childress et al., 2002; Kass, 2001). Num artigo
publicado em 2001, “An ethics framework for public health”,
Nancy Kass identifica cinco etapas de análise que, em nosso
entender, se podem constituir como uma ferramenta capaz de
permitir aos profissionais de saúde e aos governos ponderar
as implicações éticas, não só das suas propostas e/ou intervenções, como as de outras entidades particulares que sob o
pretexto da saúde pública cerceiam o ingresso ou o usufruto
de determinados serviços ou bens. Neste texto apresentamos
um breve resumo destas cinco etapas e o modo como consideramos que as mesmas podem ser equacionadas no contexto nacional.
Etapa 1 – Quais os objectivos do programa proposto?
Esta primeira etapa pretende identificar o objectivo final
do programa (intervenção) proposto(a). A definição dos objectivos deve ser o melhoramento da saúde das populações
que, na área da saúde pública, se deve traduzir na redução da
morbilidade e da mortalidade. Assim, e ao contrário do que
algumas vezes acontece neste tipo de programas, quando se
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
desenha ou avalia determinada proposta o elemento central
deve ser o objectivo final, ou seja, a redução da morbilidade/mortalidade, e não os objectivos de processo.1
Etapa 2 – Qual é a efectividade do programa no
cumprimento dos seus objectivos?
Esta etapa deve ser formulada de forma a permitir examinar os pressupostos que presidiram à elaboração do programa e a evidência científica que existe para suportar esses
mesmos pressupostos.2
Tem sido demonstrado que muitos dos programas são
extremamente eficazes na transmissão da mensagem sem, no
entanto, o programa ser eficaz na alteração dos comportamentos.3 Esta disposição obriga à obtenção de dados em duas
etapas do programa: os dados a priori que provem cientificamente a razoabilidade dos pressupostos e, os dados a posteriori sobre a avaliação da efectividade de cada um dos pressupostos na prossecução do objectivo. A premência desta análise aumenta na mesma proporção em que aumentam os encargos/riscos éticos colocados pelo programa.
1. O programa de rastreio do VIH tem como objectivo último diminuir os
casos de VIH e não aumentar o número de pessoas que consentem fazer o
teste. O programa de educação para saúde a nível da redução do risco cardíaco deve ter como objectivos que os indivíduos tenham menos ataques
cardíacos, não que tenham mais competências educacionais para mudarem
o seu comportamento.
2. Um programa da redução do risco cardíaco tem como objectivo reduzir
as ocorrências de acidentes fatais; os pressupostos são que o programa vai:
(a) atingir indivíduos em risco, (2) que estes indivíduos irão entender a
mensagem, (3) que os indivíduos irão alterar o seu comportamento (deixar
de fumar, alterar a dieta, aumentar o exercício) na linha sugerida pelo programa, (4) que estas alterações não teriam ocorrido sem o programa e (5)
que as alterações do comportamento resultam na diminuição do número de
eventos do foro cardíaco.
3. Os programas de esclarecimento sobre os riscos de comportamentos de
consumo de álcool e drogas.
UMA PROPOSTA DE UM MODELO DE DELIBERAÇÃO ÉTICA PARA A SAÚDE PÚBLICA | ANA SOFIA CARVALHO
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Etapa 3 – Quais são os principais riscos éticos
colocados pelo programa?
Tendo dados que permitam demonstrar que os pressupostos do programa são adequados para a prossecução do
objectivo final, a etapa seguinte compreende a análise dos riscos colocados pelo programa. Nesta área três categorias de
riscos éticos podem ser identificadas:
1. Riscos para a privacidade e confidencialidade
2. Riscos para a liberdade e autonomia
3. Riscos a nível do princípio da justiça
Riscos para a privacidade e a confidencialidade
A nível da privacidade e da confidencialidade diferentes
programas poderão constituir-se como ameaças a este princípio. As estratégias de vigilância e as estatísticas de morbilidade essencialmente desenhadas para monitorizar a saúde
das populações colocam problemas a nível da privacidade
especialmente quando a colheita de dados é obrigatória e os
dados são passíveis de identificação. Também esta vigilância
epidemiológica poderá resultar em problemas de possível estigmatização de certos grupos ou regiões que importa considerar.4
É importante sublinhar que questões relativas à responsabilidade dos profissionais na área da saúde pública em matéria de notificação individual e proteção de privacidade e
confidencialidade não são objecto de consenso (Callahan &
Jennings, 2002). Com a informatização dos dados pessoais estas questões adquiriram ainda um carácter de maior sensibilidade e complexidade.
A questão da privacidade coloca-se também de forma
premente no caso de doenças de declaração obrigatória. De
4. Um programa da redução do risco cardíaco tem como objectivo reduzir
as ocorrências de acidentes fatais; os pressupostos é que programa vai: (a)
atingir indivíduos em risco, (2) que estes indivíduos irão entender a mensagem, (3) que os indivíduos irão alterar o seu comportamento (deixar de
fumar, alterar a dieta, aumentar o exercício) na linha sugerida pelo programa, (4) que estas alterações não teriam ocorrido sem o programa e, (5)
que as alterações do comportamento resultam na diminuição do número de
eventos do foro cardíaco.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
facto, é nesta área que esta questão se reveste de maior complexidade, uma vez que os dados pessoais são sempre identificáveis. Assim, neste contexto, acrescem às questões relativas à privacidade importantes questões no domínio da confidencialidade. Ainda neste contexto, a vigilância clínica dos
contactos, que muitas vezes acompanha os relatórios das
doenças de declaração obrigatória, coloca problemas adicionais a nível da privacidade e da confidencialidade já que tornam identificáveis não só a pessoa doente mas a rede de contactos que, em certas situações, principalmente de ordem sexual, poderão comportar problemas de enorme complexidade ética.
As novas tecnologias de informatização da saúde podem, sem dúvida, aumentar a segurança e a privacidade no
armazenamento e transmissão dos dados pessoais. No entanto, é de importância crucial que existam normas muito claras sobre a forma como os dados na área da saúde pública são
armazenados e a forma como é respeitada a confidencialidade e a privacidade dos seus titulares (Parecer n.º 60 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Parecer sobre Informação de Saúde e Registos Informáticos de Saúde).
Embora sendo consensual que a garantia de privacidade total das informações e dados pessoais em saúde é impossível,
deverão existir normas e guias de conduta muito claros que
permitam a confiança dos cidadãos na forma como é garantida a confidencialidade e a privacidade dos seus dados de
saúde. Algumas recomendações importantes podem ser encontradas no parecer anteriormente referido; normas específicas para a área da saúde pública poderão ser consultadas no
artigo de Myers et al. (2008).
Riscos para a liberdade e autonomia
Uma das tensões mais complexas nesta área é a que resulta do confronto entre uma orientação predominante individualista, centrada na autonomia individual e, consequentemente, no bem individual, e uma corrente de orientações
comunitárias em que o bem comum assume uma maior relevância (Callahan & Jennings, 2002). Deste modo, e resgatan-
UMA PROPOSTA DE UM MODELO DE DELIBERAÇÃO ÉTICA PARA A SAÚDE PÚBLICA | ANA SOFIA CARVALHO
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do o debate sobre o paternalismo médico, que considerou eticamente inaceitável limitar a liberdade individual mesmo
com o intuito de garantir os melhores interesses da pessoa,
podemos traçar facilmente o paralelismo com a área da saúde pública e questionar se limitar as liberdades individuais
como a protecção do bem comum não está isento de confronto semelhante.
Por outro lado, se se pode argumentar que a liberdade de
escolha é total, incluindo no que respeita às escolhas de estilos de vida com consequências para a saúde, também se pode
alegar que a cada um deve ser imputada a responsabilidade
pelas escolhas individuais e, consequentemente, assumir que
a priorização nos cuidados de saúde é uma prática eticamente
legítima (Lindbladh, 1998).
Para além das questões anteriormente descritas, relativas
às questões da privacidade e da confidencialidade, o caso das
doenças de declaração obrigatória interfere de forma manifesta com as questões de liberdade e autonomia. De facto, os
riscos éticos são para a pessoa doente mas os benefícios para
outrem. As intervenções em saúde pública são frequentemente desenhadas para um determinado grupo de indivíduos de forma a proteger a saúde de outro grupo de indivíduos.5 Assim, o binómio risco/benefício adquire nesta área
contornos específicos.
Por outro lado, também colocando desafios a nível do
princípio da autonomia, temos os programas desenhados não
para proteger o indivíduo de “outros” mas, assumindo uma
postura marcadamente paternalista, para o proteger de “si
mesmo”. Muitas das campanhas, p.e. monitorização da pressão arterial, redução da percentagem de sal no pão, instituição de limites de velocidade, tendo, num primeiro momento,
sido motivadas por preocupações de ordem social essencialmente a nível da redução dos custos da saúde, são formas de
aumentar as competências de cada indivíduo para promover
a sua própria saúde. Também na área dos programas educa5. Os programas relacionados com a tuberculose são, normalmente, desenhados com o objectivo de proteger a saúde dos cidadãos das ameaças colocadas por outros.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
cionais para a saúde é importante garantir que estes são desenhados de forma a evitar práticas eticamente questionáveis,
como a manipulação e a coerção.
Riscos para o princípio da justiça
Qualquer tentativa de deliberação na área da saúde tem
a ponderação baseada no princípio da justiça como corolário
obrigatório. Este princípio já foi motivo de extensa e importante reflexão por parte do Conselho Nacional de Ética para
as Ciências da Vida (Parecer Sobre Um Modelo De Deliberação Para Financiamento Do Custo Dos Medicamentos, 2012).
A nível dos programas de educação para a saúde, a questão da justiça coloca-se quando estes são direccionados apenas para certos públicos; mesmo constituindo uma prática
justificável (p.e. existem dados epidemiológicos que atestam
o risco acrescido naquela população) devem ser consideradas
as ramificações sociais; o estigma social que pode resultar
deste fraccionamento deve ser analisado. Na quinta etapa serão descritas mais considerações relativas a este princípio.
Etapa 4 – Como podem ser minimizados os riscos?
Esta etapa tem como objectivo, após a elaboração de um
elenco de todos os riscos éticos do programa, avançar com estratégias e propostas que permitam a minimização dos mesmos; assim, e quando existam duas opções no desenho de
programa, a prioridade deve ser dada à opção que minimize
os riscos morais para a privacidade, confidencialidade, autonomia e justiça.
Etapa 5 – O programa vai ser aplicado de forma justa?
Nesta etapa o princípio da justiça deve condicionar toda
UMA PROPOSTA DE UM MODELO DE DELIBERAÇÃO ÉTICA PARA A SAÚDE PÚBLICA | ANA SOFIA CARVALHO
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a reflexão. Neste sentido, qualquer estratificação social deve
ser sempre justificada.6
Esta proposta não significa que os programas e os recursos devam ser alocados de forma igual e sem critérios,
querendo antes, reforçar que a alocação de recursos e de programas deve ser justa. Qualquer distribuição desigual deve
ser baseada em dados cientificamente robustos e qualquer estigmatização resultante da estratificação dos programas
deve ser considerada.
Nota conclusiva
Estando determinado que o programa proposto é capaz
de atingir o seu objectivo(s), que os riscos estão devidamente identificados e minimizados e que vai ser aplicado de forma não discriminatória, ao encetar a conclusão do processo
deve incluir-se uma reflexão sobre se os potenciais benefícios
da proposta justificam os riscos que a mesma comporta. Assim, balanceando valores e interesses, quanto maior for o risco ético imposto por determinado programa/intervenção,
maiores devem ser os benefícios que a nível da saúde pública sejam expectáveis.
Temos consciência que apresentar qualquer modelo de
deliberação na área da saúde apresenta inúmeros desafios.
Na área da saúde pública diferentes correntes, valores e princípios terão que ser considerados num modelo deliberativo;
no entanto, embora um modelo ajude a definir e a concentrar
um determinado referencial ético, esta proposta assente num
conjunto de referenciais deve sempre ser contextualizada com
base numa matriz casuística que obriga a determinada plasticidade (Giacomini et al., 2008).
Para formular políticas públicas e decidir sobre os casos
particulares, haverá uma necessidade contínua de especificar
6. Os programas de rastreio VIH não podem ser aplicados somente em populações economicamente desfavorecidas. Os programas de redução do
risco cardíaco não podem ser exclusivamente aplicados a população caucasiana e em particular aos homens quando se sabe p.e. que também as mulheres e as minorias comportam risco substancial para este tipo de doença.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
e julgar o equilíbrio dos diferentes princípios elencados, desenvolvendo regras e guias de ação específicos que, ao mesmo tempo, contribuam para aumentar a dignidade de cada
pessoa, o seu bem individual, e para promover o bem comum
numa sociedade justa.•
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–39–
Aspetos éticos em farmacogenómica
Carolino Monteiro
A Farmacogenética é uma área científica que estuda o
modo através do qual o genoma influencia a resposta do organismo humano aos fármacos.
A primeira referência de variabilidade individual remonta a Pitágoras que, em 510 a.C., descreveu a variação na
incidência de anemia hemolítica em resposta à ingestão de favas. Todavia, hoje, as variações individuais nas respostas às
terapêuticas são familiares a todos os profissionais de saúde
e sabe-se que a administração de um fármaco a um indivíduo
pode resultar numa resposta benéfica, nula ou adversa.
Em 1957, pela primeira vez é colocada a hipótese de que
quer a toxicidade induzida por fármacos quer a ausência da
sua eficácia possam ser devidas a diferenças genéticas que se
traduzem em deficiências enzimáticas, e, no fim dos anos noventa, o termo farmacogenómica emerge associado às aplicações industriais da genómica na criação de novos fármacos.
De modo a situar-se a priori o tema, e a sua relevância, refere-se que nos Estados Unidos da América morrem, anualmente, entre 100 a 180 mil pessoas por reacções adversas a
fármacos, o que constitui um sério problema de saúde pública. Decorrentes do Projecto do Genoma Humano, foram já
identificadas mais de 3 milhões de variações genéticas, muitas das quais poderão estar relacionadas, por exemplo, com a
susceptibilidade a desenvolver-se uma determinada doença
ou com a capacidade de resposta a fármacos. A ciência, agora de modo mais estruturado e com estratégias mais bem definidas, começa a utilizar esta informação para prever, para
–40–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
certos indivíduos, a eficácia, ineficácia ou toxicidade de um
determinado fármaco.
A farmacogenómica e a sua aplicação prática, a farmacogenética, têm, assim, como propósito, elucidar como determinadas variações pontuais nos genes de um indivíduo
afetam a sua resposta aos fármacos administrados. No
presente, os testes farmacogenéticos podem ajudar o clínico
a projetar o melhor tratamento a dar aos doentes, nomeadamente em várias formas de cancro, em patologias do foro psiquiátrico e na vertente cardiovascular.
Uma informação detalhada e atualizada sobre variações
genéticas e resposta a fármacos pode ser encontrada na "Pharmacogenomics Knowledge Base" (http:// www. pharmgkb.
org/), base de dados que constitui parte da rede de investigação em farmacogenómica dos National Institutes of Health
(nih-usa).
Um aspeto expectável nos avanços da farmacogenómica
é a identificação da "farmacocinética de alto risco", geneticamente determinada – termo cunhado para descrever uma
droga que está associada a uma via única, ou de bioativação
ou de inativação. Assim, se estão presentes variantes associadas a perda de função é de prever uma enorme variação
nos efeitos de uma molécula.
Ainda na decisão terapêutica, cita-se que são requeridos,
de modo sistemático, testes genéticos para o Abacavir (para
a infecção por hiv), por risco de hipersensibilidade no caso de
portadores do alelo hla-b*5701. O genótipo do doente é determinado com o recurso a sondas imobilizadas e, no caso de
ser hla b57*1, há a recomendação da não administração do
fármaco. Há a informação de este procedimento estar recomendado e implementado em todos os serviços de infeciologia nacionais.
Um outro exemplo a relevar é o da Varfarina, que é,
atualmente, um excelente modelo no âmbito da farmacogenética, por rotina. A Varfarina, que em doses não ajustadas expõe o doente a um aumento de risco, foi já alvo de atenção em
alguns laboratórios nacionais, relevando o seu potencial preditivo com a introdução da análise de um marcador (vkor)
ASPETOS ÉTICOS EM FARMACOGENÓMICA | CAROLINO MONTEIRO
–41–
entre os vários associados a este fármaco. Presentemente, as
plataformas de testes para a Varfarina aprovadas internacionalmente são já várias a que se podem ligar modelos matemáticos que permitem deduzir a dose adaptada a cada indivíduo.
Em 2011, surgiu uma importante publicação científica, já
com dados de análise retrospetiva, que inequivocamente
aconselha o uso da farmacogenética para apoio à clínica na
administração da Varfarina, em rotina, pois é indispensável o
estudo simultâneo de vários marcadores e do perfil clínico.
Mais, simultaneamente com os algoritmos desenvolvidos e
utilizados para determinar a dose mais apropriada deste fármaco, em sintonia com os parâmetros clássicos (peso, área
corporal, idade, sexo, etnias, toma de outros fármacos,…) e
com a informação clínica, tem vindo a ser relevada dado haver, em alguns casos, uma marcada variação associada principalmente a conjuntos populacionais/étnicos.
Em Portugal, há marcadores fugazmente analisados em
rotina, em diferentes unidades de prestação de cuidados de
saúde e de investigação de apoio à clínica, na área oncológica, que se traduzem da maior relevância para a adequação da
estratégia terapêutica e do seu sucesso, nomeadamente os
marcadores denominados egfr, kras, kit/pdgfra, dpoid e
tpmt.
O Tamoxifeno é o exemplo de um fármaco-alvo, uma
molécula usada no tratamento do cancro da mama, com diagnóstico positivo para recetores de estrogénio. O Tamoxifeno
necessita da bioativação por uma isoforma do citocromo
p450, o cyp2d6, que apresenta níveis enzimáticos reduzidos
em 7% da população caucasóide. Este olhar é já recomendado pela Food and Drug Administration, dos Estados Unidos
da América, dado o seu potencial fármaco-económico, sendo
a administração do Tamoxifeno restrita a mulheres com variantes funcionais para o cyp2d6.
–42–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
A tecnologia de genotipagem na
componente farmacogenética
As plataformas dmet (Drug Metabolizing Enzymes and
Transporters), desenvolvidas por múltiplas empresas, permitem rastrear o genoma mediante uma análise padronizada
de centenas de variantes em centenas de genes relacionados
com a absorção, distribuição, metabolismo e eliminação de
fármacos, permitindo prever associações entre as variações
nos genes responsáveis por estes parâmetros e o perfil farmacocinético e farmacodinâmico da farmacoterapia.
A solução ideal consistiria na determinação de todos os
possíveis polimorfismos existentes no genoma e na sua análise. Todavia, o tempo necessário para a interpretação dos dados obtidos sem utilidade imediata para o doente, aumentando os custos associados a esta análise, cria, adicionalmente um dilema ético de acumulação de informação sem aspetos de beneficência direta para a pessoa.
Para além da plataforma dmet, que permite analisar e
prever a adme (absorção, distribuição, metabolismo e eliminação) individual de mais de 200 fármacos, é importante
mencionar ainda o Pain Research Panel, desenvolvido em colaboração com a Algynomics, que contém mais de 3.500 marcadores em 370 genes, cujos produtos estão implicados em
vias metabólicas que influenciam a perceção à dor, à inflamação e ao humor.
Os avanços registados permitem identificar variações
particulares que estão associadas a especificidades de cada
tumor, especialmente à presença de alterações distintas em
células da mesma entidade tumoral o que condiciona a adaptação de regimes terapêuticos de acordo com as variações
presentes. Algumas destas variações podem, aliás, estar em
diminuto número e adquirem uma enorme importância, pois
podem estar associadas a multirresistências e serem, em janela temporal não definida, as causadoras de recidivas nestes
doentes.
Um outro exemplo marcante desta área centra-se na terapêutica pelo Lumiracoxib que, apesar de muito útil, em al-
ASPETOS ÉTICOS EM FARMACOGENÓMICA | CAROLINO MONTEIRO
–43–
guns casos, induzia lesões hepáticas graves. A associação desta variabilidade a alelotipos de hla criou um duplo efeito:
um primeiro, a selecção de indivíduos de acordo com o seu
perfil após tipagem do hla, e um segundo, de ressuscitação
de um fármaco que iria ser descontinuado, não obstante o seu
enorme valor terapêutico para um grupo restrito de doentes.
Recentemente, os Genome Wide Association Studies
(gwas) têm permitido a identificação de novas variações genéticas e ainda de novos loci que são candidatos à compreensão de novos mecanismos farmacocinéticos e farmacodinâmicos.
A farmacogenómica requer uma educação dos clínicos
na utilização da informação genética e nos seus limites. Há,
atualmente, um consórcio internacional que redige as recomendações para a utilização da farmacogenética na prática
clínica, dando, aos que se iniciam nesta prática, um guia prático e útil.
Neste contexto, e no futuro, cita-se a necessidade de registos eletrónicos dos doentes com as regras internacionais de
respeito pela confidencialidade e privacidade, que disponibilizem tal informação aos clínicos, de modo fácil e rápido,
para os apoiar nas decisões em tempo real.
Esta necessidade tem maior peso em comunidades
multi-étnicas nas quais o perfil de decisão é mais variável decorrente de um background genético, também ele mais complexo.
Em farmacogenética, os testes devem respeitar as regras
instituídas para os testes genéticos e, internacionalmente, é
consensual que devem ser uma componente separada de outros testes analíticos, pelo que é reforçada a ideia da necessidade da educação dos clínicos na interpretação de dados e de
um investimento específico em tecnologias de informação.
Ainda, é considerado como sendo de enorme relevo a
educação do público acerca das múltiplas variáveis associadas à aplicação da farmacogenómica, da sua aplicação prática na inclusão e exclusão de doentes, pois tal compreensão
pública é imprescindível de modo a serem abolidos ou minimizados os riscos de criação de estigmas sociais, nomeada-
–44–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
mente os associados a uma decisão de não incluir determinado doente em nenhum protocolo terapêutico.
Aspectos éticos
A introdução da farmacogenómica, ferramenta crucial
na medicina personalizada, cria uma discussão nos aspectos
de confidencialidade de dados genéticos e na estratificação de
populações. Numa sociedade multi-étnica e multicultural há
a necessidade de se clarificar que a utilização de informação
científica é a base da discriminação, que é uma discriminação
positiva e não negativa, isto é, adequar a terapêutica e dose ao
património genético individual e não a uma discriminação
baseada em factores culturais/étnicos.
A utilização de plataformas com o débito de maior ou
menor número de dados polimórficos faz com que sejam, ainda, colocados pontos em discussão: um maior número de dados permite o seu arquivo para o futuro, se necessário, com
um esforço financeiro inicial inalterado. Mas o argumento
contrário também é real, isto é, para quê reter uma grande
quantidade de informação sobre o património genético individual se esta poderá não ser nunca necessária para o indivíduo em causa. Acresce, e não deve ser negligenciada, que a
investigação, por ausência de informação, é, neste caso, um
elemento negativo no cômputo da discussão.
A falta de acesso a estas metodologias é, no mundo atual,
mais um dos aspetos com repercussão ética na saúde sendo
evidente a enorme diferença na oferta e na sua utilização em
países considerados desenvolvidos em contraste com os não
desenvolvidos. Muitas vezes afirma-se que não existem grandes benefícios no recurso à genómica nos países pobres. Esta
é uma atitude que faz aumentar o fosso que existe entre muitos países e muitas populações, aumentando as desigualdades, com óbvios dilemas éticos. A aplicação do conhecimento em farmacogenómica em países em desenvolvimento é de
importância inquestionável na promoção da equidade.
A enfatizar, há que chamar a atenção para relatórios in-
ASPETOS ÉTICOS EM FARMACOGENÓMICA | CAROLINO MONTEIRO
–45–
ternacionais que mencionam que o número de internamentos, com as consequências negativas para os doentes e para os
sistemas de saúde, são uma forte razão para se incrementar as
políticas de recurso aos dados da farmacogenética, com os
métodos mais desenvolvidos da nanotecnologia e com as ferramentas de privacidade e respeito pelo rigor na prática de
acesso à informação genética.
Olhando para o futuro, é hoje aceite, principalmente com
a reflexão oriunda do International Serious Adverse Events
Consortium, que deve ser repensada a atitude de prescrição
de um fármaco para o qual se conhece a existência de variações genéticas associadas à respectiva resposta, nomeadamente a associação com a dose a administrar.
Nota final
A farmacogenética permite que o clínico, em vez de basear a decisão da dose inicial do fármaco só a características
tradicionais, tenha a possibilidade de utilizar a informação
genética para prever a resposta de um indivíduo a uma determinada terapêutica possibilitando, assim, uma escolha do
fármaco mais eficaz e uma dosagem mais apropriada ao perfil do doente. Isto significa que a farmacogenética, com o
apoio das plataformas nanotecnológicas e dos algoritmos,
permite que os indivíduos possam ser tratados com medicamentos mais seguros, evitando reações adversas, aumentando o número de curas efetivas, numa melhoria muito significativa e generalizada da qualidade em saúde, em suma, com
vantagem para os doentes e para a economia associada aos
sistemas de saúde.
Na área da farmacogenética e do acesso às suas potencialidades e utilidade há que encorajar uma discussão ética a
par da discussão científica, criando-se uma visão a longo prazo, iniciando-se novas redes de diagnóstico e investigação e
melhorando a coordenação das já existentes, com compromissos claros e ambiciosos face a metas a curto, médio e longo prazos.
–46–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
A aplicação desta área em países em desenvolvimento
poderá criar marcas positivas indeléveis no progresso desses
mesmos países e das suas populações de modo mais harmonioso. Este será também um excelente contributo, pois estará
associado a investigação em comunidades vulneráveis e, a jusante, será uma contribuição inquestionável na promoção de
equidade.
Em pensamento final, salvaguardando e promovendo as
questões éticas, a aplicação da farmacogenómica é uma premente necessidade, não um luxo. É, em saúde, um valioso
contributo para a justiça social.•
–47–
Os princípios éticos da autonomia,
beneficência e justiça nos rastreios
M. Isabel Pereira dos Santos*
Conflitos de interesse: os que constam na identificação pessoal.
“Knowing is not enough; we must apply
Willing is not enough; we must do.”
– Goethe
“Vive de forma sensata – de entre mil pessoas, só uma morre de morte natural,
o resto sucumbe devido a modos de vida irracionais”
– Maimónides, a.d. 1135-1204
1 – Introdução
A melhoria do estado da saúde, ao longo do tempo, tem
sido alcançada mediante um vasto leque de intervenções. Algumas, diretamente ligadas ao contexto dos serviços de saúde (programas de vacinação) e outras, mediante melhoria das
condições de vida e do ambiente. Historicamente, o melhoramento substantivo de diversos indicadores de saúde
* Médica de Família no Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Ocidental e Oeiras/Unidade de Saúde Familiar Conde de Oeiras. Professora
Auxiliar Convidada da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade
Nova de Lisboa. Membro do Centro de Estudos de Doenças Crónicas/Grupo de Informação Académica Independente da FCM/UNL. Coordenadora do Internato de Medicina Geral e Familiar da Região de Saúde de Lisboa
e Vale do Tejo. Membro do Conselho Nacional de Qualidade de Saúde,
DGS Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida · [email protected].
–48–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
deve-se mais a medidas não médicas, relacionadas com as
condições de vida, saneamento básico, ambiente, qualidade
do ar, condições dos locais de trabalho e de habitação, do que
a medidas médicas1,2,3. No entanto, apesar dos diversos determinantes de saúde, falar de saúde significa, na maioria das
vezes, falar de medicina ou de cuidados de saúde. Na Medicina, o domínio da saúde pública tem sido reconhecido, comparativamente com o da medicina clínica, como sendo o que,
no século passado, trouxe mais melhorias à saúde e longevidade às populações, principalmente nos países ocidentais4.
Os nossos serviços de saúde têm sofrido consideráveis
mudanças nos últimos 30 anos. A medicina dita preventiva,
até há pouco pertença quase exclusiva da Saúde Pública, passou a ocupar uma fração importante na prestação de todos os
cuidados médicos, em particular nos Cuidados de Saúde Primários (csp). Na especialidade de Medicina Geral e Familiar,
de uma prática dirigida a pessoas e famílias temos assistido
progressivamente a um movimento para uma medicina centrada em populações5. Esta deslocação da medicina curativa
para a medicina preventiva, em particular na prática dos médicos de família, tem sido estimulada pela política de saúde,
existindo mesmo incentivos financeiros neste sentido6.
Em diversos atos da medicina clínica, parece ser claro o
processo de tomada de decisão e o direito dado ao doente de
recusar ou aceitar um procedimento ou um tratamento. No
entanto, na saúde pública e particularmente nas ações de natureza preventiva, parece presumir-se a adesão de todas as
pessoas às recomendações que lhes são dadas ou aos exames
solicitados. Porém há pessoas que recusam vacinas constantes do Plano Nacional de Vacinações; muitas pessoas com
mais de 90 anos recusam a vacina contra o tétano; ou há quem
prefira ter o parto em casa.
Prevenir é evitar que algo aconteça. Este conceito é quase intuitivo. Há diversos procedimentos que podemos adotar
para que a doença não aconteça (prevenção primária): as recomendações nutricionais, as recomendações de segurança
de estilos de vida saudáveis, as vacinações. Os rastreios fazem parte da prevenção secundária e destinam-se a detetar a
OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA AUTONOMIA, BENEFICÊNCIA, E JUSTIÇA NOS RASTREIOS
M. ISABEL PEREIRA DOS SANTOS
–49–
doença quando esta ainda não apresenta nem sinais nem sintomas. A sua disseminação decorre da ideia, fortemente instalada na nossa sociedade, que “a deteção precoce salva sempre vidas” e que haverá sempre uma sobrevida. Este apelo é
tão forte que 87 % dos adultos sujeitos a rastreio de rotina nos
Estados Unidos, em 2002, acreditavam que o rastreio era sempre bom e 74% acreditavam que detectar as lesões malignas,
precocemente, salvava vidas na maioria das vezes7. A maioria dos adultos portugueses, actualmente, acredita que fazer
“análises gerais” e ser visto pelo seu médico, com uma periodicidade anual, traz benefícios8. Sabemos que os programas de rastreio podem oferecer benefícios, mas também sabemos que podem causar dano9,10,11,12. No caso dos rastreios,
o pedido não parte em geral das pessoas. As pessoas são encorajadas ou persuadidas a neles participar.
No domínio da prevenção as Normas de Orientação Clínica que influenciam as intervenções médicas em saúde e as
avaliações de desempenho dos médicos e dos serviços frequentemente não são suportadas por evidência científica válida, por avaliação crítica da evidência disponível ou por um
julgamento crítico objetivo que relacione a evidência com as
necessidades dos médicos e dos doentes13,14.
Apesar de serem várias as questões éticas que se podem
colocar no contexto da prevenção e promoção da saúde, neste texto, que se pretende generalista, queremos salientar o
conflito entre as finalidades da prevenção e os valores sociais
de autonomia, responsabilidade, justiça social ou beneficência e identificar possíveis formas de os resolver. Para o efeito
socorremo-nos de alguns exemplos e centramo-nos numa forma particular de prevenção, os rastreios.
2 – A evidência que suporta as decisões em saúde
pública não é isenta de um juízo moral
A definição adotada pela Organização Mundial de Saúde (oms) relativamente à Saúde Pública15,16 é a seguinte:
“Saúde publica é a arte e a ciência de prevenir a doença,
–50–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
prolongando a vida e promovendo a saúde através dos esforços organizados da sociedade”. Desta definição emergem
diversos problemas, relacionados com a descrição dos constructos nela incluídos – “ciência”, “arte”, “prolongar a vida”,
“esforços organizados da sociedade” – e com a qualidade das
provas que suportam as decisões de fazer isto e não aquilo em
saúde pública. Neste texto pretende-se sublinhar que as considerações de natureza moral e política são da maior importância na construção da evidência que está por trás das decisões em saúde pública, nomeadamente no respeitante à definição de prioridades17,18.
A epidemiologia, ciência que suporta as macro decisões
em Saúde Pública, é considerada como uma fonte de informação objetiva para decisões relacionadas com resultados em
saúde e com a história natural das doenças e dos tratamentos.
Os riscos e os benefícios são qualificados e calculados em termos probabilísticos e as conclusões usadas na definição de
“melhor prática”, algoritmos de custo-benefício, “ação certa”,
e nas decisões em saúde comunitária. As conclusões dos estudos epidemiológicos são extraídas de dados numéricos e
têm o valor atribuído aos dados objetivos19. No entanto, vários clínicos sentem-se desconfortáveis pela forma como a
epidemiologia se limitou a uma perspectiva biomédica estreita, cometendo a falacia de inferir que a doença nas populações pode ser compreendida estudando-se os fatores de risco de cada indivíduo para a doença. Shy20 é um deles e, por
isso, tenta redefinir a missão da epidemiologia como o estudo da distribuição e dos determinantes sociais de saúde nas
populações.
A epidemiologia tem um fundo moral que partilha com
todos os ramos, atividades e componentes da saúde e que se
traduz em procurar determinar as “melhores práticas” em
saúde apesar “do melhor” ser, em certa medida, definido pelos valores sociais atribuídos ao bem primário da saúde21.
Muitos autores na área da epidemiologia realçam os problemas éticos desta disciplina22. A decisão em se fazerem estudos epidemiológicos numa área e de se comparar esses dados
OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA AUTONOMIA, BENEFICÊNCIA, E JUSTIÇA NOS RASTREIOS
M. ISABEL PEREIRA DOS SANTOS
–51–
com outras zonas ou países, ou com outros períodos históricos, é em si uma questão ética.
3 – A ética da saúde pública e a ética dos
profissionais prestadores de cuidados
O médico estabelece uma relação de um para um, de responsabilidade com a pessoa que o consulta porque tem um
problema ou deseja um conselho. O imperativo clínico é fazer
o que for necessário para ajudar e cuidar dessa pessoa. O médico de saúde pública responde a um coletivo de indivíduos
numa comunidade, onde um problema de saúde afeta um
grande número de pessoas nessa localidade. O falso alarme
de gripe h1n1 em 2009 em Portugal é disto exemplo23,24,25.
Nesta situação de decisão centralizada de saúde pública, em
que não existe uma relação continuada entre o especialista e
o grupo afetado pela intervenção, não há oportunidade de as
pessoas expressarem os seus pontos de vista quanto às medidas de proteção/ prevenção a que se vêem obrigadas. Os
especialistas de saúde pública, a oms e a Direção-Geral de
Saúde (dgs) fizeram um julgamento sobre o que era do interesse da população, sem que esta o tivesse pedido e dirigiu-se a toda a sociedade e não a pessoas singulares. Esta medida paternalista conflitua com os direitos individuais e gera
problemas de natureza ética com implicações políticas. Na resolução do potencial conflito dever-se-ia avaliar a evidência
disponível e saber se as medidas que se deseja pôr em prática melhoram de facto a saúde das populações e se essa melhoria pode ser objectivamente demonstrada26. De acordo
com esta abordagem, a concordância entre diferentes peritos
quanto à efetividade de uma determinada intervenção obtém-se mediante a concordância sobre os factos obtidos de
uma forma científica, neste caso mediante estudos epidemiológicos26. No entanto, nem sempre é possível alcançar
conclusões claras e certas mediante os estudos epidemiológicos disponíveis e frequentemente há questões de natureza social e política que afetam o julgamento e a aplicação das con-
–52–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
clusões epidemiológicas disponíveis, sendo por isso indispensável dispor de um guião que ajude a tomar as melhores
decisões éticas27,28,29,30.
4 – Prevenção e rastreios
Prevenção, evicção e proteção, apesar de terem significados diferentes, são todas elas vulgarmente referidas como
prevenção. A prevenção significa reduzir a incidência ou mesmo a abolição de uma dada doença. A evicção será manter-se
livre de fatores de risco. Por proteção entende-se limitar a disseminação de doença, seja por vacinação ou imunização passiva.
À partida parece evidente que a prevenção é sempre
uma coisa boa. No entanto, esta justificação geral nem sempre
se aplica a áreas específicas da prevenção, por exemplo aos
rastreios, procedimentos que procuram identificar uma
doença ou condição de pré-doença, antes da manifestação de
sinais ou sintomas, e para a qual existe uma intervenção efetiva disponível. Esta atividade é em geral vista com bons
olhos e está na moda. Os governos encorajam-na e a maioria
das organizações de doentes e médicos também31. Assume-se
que cada pessoa irá beneficiar quer dos rastreios quer das recomendações. Politicamente os programas de saúde (designação dada à maioria dos programas de promoção e prevenção) parecem prosseguir um bem comum, existindo a crença
de que poupam dinheiro.
Contudo isso não é verdade. Rose32 menciona uma situação paradoxal: “uma medida preventiva que traga grandes benefícios à comunidade pode trazer muito pouco ao indivíduo”. Afinal temos que admitir, como já anteriormente
referido, que os efeitos das ações coletivas, como as da saúde
pública, são medidas estatísticas. Não existe garantia de que
todas as medidas preventivas sejam efetivas. Em Portugal
temos um programa nacional de rastreio de cancro do colo do
útero, do cancro da mama e do cólon que presume, à semelhança de todos os outros programas, a adesão dos indiví-
OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA AUTONOMIA, BENEFICÊNCIA, E JUSTIÇA NOS RASTREIOS
M. ISABEL PEREIRA DOS SANTOS
–53–
duos, não prevendo a recusa informada da parte das pessoas
que a eles se submetem, nem garantindo a existência de condições idênticas para a sua realização a todas as pessoas às
quais estes programas se destinam.
5 – Rastreios
5.1 – Os princípios da beneficência e da utilidade
Nos rastreios, os benefícios devem exceder os riscos (beneficência) e na utilização dos recursos públicos deve dar-se
prioridade a intervenções que permitam mais benefícios (utilidade), para mais pessoas33.
O rastreio oncológico, por exemplo, olha para as lesões
malignas ou pré-malignas antes de a doença ter tido oportunidade de se manifestar. O objetivo do rastreio é detetar indivíduos ainda na fase pré-sintomática da doença de forma a
oferecer-lhes diagnóstico e um tratamento que melhore o
prognóstico. Assim, o rastreio é uma atividade sistemática de
identificação de uma doença assintomática ou de fatores de
risco, tendo em vista a diminuição da mortalidade. Trata-se
de dar mais anos à vida, ou seja, viver mais anos e viver melhor.
As pessoas que obtêm resultados normais num programa de rastreio devem, em princípio, sentir-se aliviadas por
não apresentarem a doença. São considerados efeitos negativos laterais os resultados falsos positivos (pessoas com testes
positivos, mas sem doença), a ansiedade desnecessária, os inconvenientes de exames adicionais, a maçada e a preocupação criados pelos programas de rastreio. Mas mais graves ainda serão os falsos negativos (pessoas com doença mas com
testes negativos) que dão uma segurança errada e tranquilidade, convencendo-se que tudo está bem quando não está.
Os princípios que justificam o rastreio populacional definidos
em 1968 por Wilson e Jungner34 enfatizam: 1) a importância
do problema para a saúde pública; 2) a disponibilidade de
um teste efetivo de rastreio; 3) a disponibilidade de tratamento para prevenir a doença no tempo de latência; 4) os cus-
–54–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
tos. Nessa altura, detectar a doença numa fase pré-clínica não
era comum, mas hoje existe um vasto número de doenças que
podem ser identificadas precocemente, mesmo na fase prépatológica, frequentemente usando técnicas de genética molecular33.
O Número Necessário para Tratar (nnt) é o indicador
que permite conhecer a eficácia de uma terapêutica ou de
qualquer intervenção em saúde. Esta medida permite estimar
quantas pessoas precisam receber um dado tratamento para
existir benefício e pode ser comparada com os efeitos adversos ou com outros tipos alternativos de atuação, possibilitando desta forma uma análise do custo-benefício dessa intervenção. Fazer rastreios não é benéfico para todas as pessoas.
Rastrear pode levar a um grande número de intervenções
inúteis e desconfortáveis para um grande número de pessoas
para que exista beneficência para poucas. Os falsos positivos,
confirmados como falsos por posteriores testes, também conduzem a um diagnóstico excessivo (sobrediagnóstico), ou
seja, ao diagnóstico de doença que não evoluiria e que não
causaria sintomas ou doença35. De acordo com um artigo recente do Journal of National Cancer Institute, que sumaria a evidência atualmente disponível sobre o diagnóstico nos programas de rastreio, a magnitude de “sobrediagnóstico” é de
cerca de 25% nos cancros da mama detetados por mamografia, de 50% nos cancros do pulmão detetados por rx do tórax
ou por análise da expetoração e de 60% nos cancros da próstata detetados por antigénio prostático específico (psa)34, 36.
Os benefícios e os malefícios das intervenções de rastreio
são assimétricos porque não se referem às mesmas pessoas.
Estas assimetrias vão contra os princípios da beneficência e
da utilidade. O número necessário para rastrear no caso do
rastreio do cancro da mama, dependendo do grupo etário, vai
de 2.500 a 20.00037,38. Isto significa que, em pelo menos 2.500
mulheres que se submetem ao rastreio para identificar uma
fração com uma lesão potencialmente maligna, haverá uma
que será salva pela atividade de rastreio. O efeito do teste de
rastreio nas pessoas assintomáticas depende da prevalência
da condição a ser rastreada na população assintomática. Por
OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA AUTONOMIA, BENEFICÊNCIA, E JUSTIÇA NOS RASTREIOS
M. ISABEL PEREIRA DOS SANTOS
–55–
isso, o teste de rastreio tem uma diferente efetividade nos diferentes grupos etários e não é oferecido aos grupos etários
em que existe uma baixa prevalência de doença39,40.
De acordo com os dados do recente relatório do estudo
The European Randomized Screening Study for Prostate Cancer 41,
o rastreio do cancro da próstata poderá reduzir o risco de
morrer em 20%. Uma estimativa otimista, considerando o ensaio americano Prostate, Lung, Colorectal and Ovarian Cancer
Screening – plco trial42. Mas o que este número quer dizer é
que a redução de risco absoluto é de 0,7 por 1.000 em 10 anos,
o que nos dá o valor de 1.428 como número necessário para
rastrear para salvar uma vida. Uma outra forma de estimar o
impacto deste tipo de rastreio será dizer que é necessário tratar 48 tumores para prevenir uma morte. Isto significa que
1.399 pessoas serão submetidas a rastreio sem qualquer benefício e que 47 sofrerão das complicações relacionadas com
a prostatectomia sem verdadeiro ganho na sobrevivência. Se
considerarmos que a esperança de vida difere entre grupos
etários, o número necessário para rastrear, para evitar uma
morte por esta causa por ano (ou um ano de vida ajustado à
qualidade – qaly), pode ser superior nas pessoas com mais
anos (acima dos 70 anos), apesar da maior prevalência desta
neoplasia.
5.2 – Autonomia, Consentimento informado e
conflito de interesses
O consentimento informado personifica o princípio ético fundamental de respeito pelas pessoas, da sua autonomia,
dos seus direitos e da capacidade para se tomarem decisões
informadas.
Entre 1967 e 1971, a palavra “risco” aparecia em 0,1% dos
resumos das revistas médicas indexadas na medline. Entre
1987 e 1991, a mesma palavra já aparecia em 4,5% das revistas. No New England Journal of Medicine, este número cresceu
de 0,2 para 10,3%. O conceito de risco tem vindo a ocupar um
lugar central no pensamento médico e tem alimentado o “negócio” da saúde40.
Embora toda a intervenção em saúde tenha o seu custo,
–56–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
os programas de rastreio são, como já referido, apresentados
como não tendo preço, como só tendo ganhos tal é o seu bem
máximo. A retórica usada é a de que mais vale prevenir do
que remediar e do empoderamento dos cidadãos, apelando à
sua responsabilidade para fazerem tudo o que estiver ao seu
alcance para evitarem a doença. O medo de ser diferente, de
sofrer e da morte motiva as pessoas a confiar e a perceber
como benéficos todos os rastreios, uma espécie “de seguro
contra todos os riscos vestido de ciência”. Infelizmente, este
“seguro” tem muitas linhas escritas em letras muito pequeninas, que raramente são lidas ou que nunca são dadas a ler.
Muitos procedimentos “preventivos” fazem parte de um negócio e manipulam este medo à custa da comunicação da redução do risco relativo, subtraindo informação sobre os danos colaterais, já referidos, e assim reduzindo a autonomia
dos indivíduos.
As intervenções que visam proteger e promover a saúde
de um grupo, reduzindo a taxa de mortalidade ou morbilidade, pretendem fazê-lo, como já referido, quer diminuindo
os efeitos adversos negativos quer os custos em termos de
despesa. Mesmo que os benefícios de uma intervenção em
termos populacionais – aumento dos anos de vida vividos
com qualidade, redução da mortalidade global – sejam superiores aos possíveis malefícios, pode ser perfeitamente razoável que um indivíduo faça uma avaliação diferente dos
benefícios para si próprio. Algumas pessoas podem só ver inconveniências e podem sentir-se inseguras sobre os benefícios
que o programa lhes traga, enquanto indivíduos, por exemplo relativamente ao rastreio do cancro do colo do útero. Em
termos de saúde pública podem existir conflitos entre a proteção da saúde pública e o bem-estar dos indivíduos43.
Em Portugal, nos Cuidados de Saúde Primários (csp), a
Administração Central do Sistema de Saúde (acss) e as Administrações Regionais de Saúde (ars) contratualizam com os
Agrupamentos dos Centros de Saúde (aces) e estes, por sua
vez, contratualizam com as suas unidades de saúde um conjunto de atividades de saúde cuja eficiência é medida através
de indicadores de realização, metas que os clínicos devem
OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA AUTONOMIA, BENEFICÊNCIA, E JUSTIÇA NOS RASTREIOS
M. ISABEL PEREIRA DOS SANTOS
–57–
atingir. Estas incluem um conjunto de atividades preventivas,
entre as quais se encontram o rastreio do cancro da mama ou
do colo do útero. O atingimento dessas metas permite às
equipas aceder a incentivos financeiros, sem que isto seja do
conhecimento da população44. De acordo com o código deontológico e os princípios éticos da profissão, assume-se que os
médicos atuam no melhor interesse dos seus pacientes. Ora,
quando estes são compensados financeiramente pelos resultados obtidos nas atividades preventivas pode acontecer que
pressionem os seus utentes para que consigam alcançar as taxas de participação desejadas, sem que de forma clara expliquem as vantagens e os inconvenientes das mesmas ou o seu
interesse particular.
Quando as pessoas se submetem a um rastreio têm o conhecimento suficiente para entender a situação à qual se estão a submeter? São capazes de entender os riscos? A resposta é negativa, se atendermos à forma como é publicitado o
rastreio através de mamografia. Informar sobre dados probabilísticos é difícil e por isso é prática comum dizer às pessoas que a medicina, hoje, aconselha um procedimento da
medicina preventiva porque reduz o risco de morte por uma
dada causa específica numa dada percentagem. No entanto,
este tipo de informação, na maioria das vezes, dá uma visão
deturpada dos reais benefícios. As pessoas que desejam ou
são chamadas a efetuar um rastreio deviam saber a redução
de risco absoluto que essa prática ocasiona. Esta informação
é indispensável para a tomada de decisão, sendo que em diversas circunstâncias lhes deveria ser solicitado consentimento informado para que fossem executadas muitas destas
intervenções. Não parece ser muito racional pedir só às pessoas doentes, aquando de uma intervenção médica, o seu
consentimento informado e não fazer esse pedido às pessoas
saudáveis quando elas se submetem a procedimentos dos
quais lhes pode advir algum dano.
5.3 – Justiça, equidade e prestação de contas
O rastreio pretende identificar as pessoas com doença assintomática ou com fatores de risco, com o intuito de instau-
–58–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
rar um tratamento atempado que modifique favoravelmente
o prognóstico ou de conhecer as pessoas expostas a fatores de
risco que aumentam a possibilidade de uma determinada patologia, para que as intervenções preventivas reduzam a sua
incidência. A bondade deste propósito não é, no entanto, suficiente para se conseguir um resultado benéfico em termos
de custo-efetividade. Para avaliar se o seu resultado é benéfico, em termos de segurança e equidade, é necessário valorizarem-se as consequências da sua aplicação e o seu impacto sobre a saúde das pessoas e sobre a organização dos serviços de saúde.
Existe uma enorme diversidade de rastreios, o que permite estimar um grande impacto da sua aplicação. As mudanças no estado de saúde das populações dependem de
muitos fatores, sendo a maioria alheia à saúde. Por isso, convém determinar a efetividade e a segurança dos rastreios
mais frequentemente realizados. A prestação de contas é fundamental para preservar o direito dos cidadãos a poderem escolher e a participarem nas decisões, em particular no que diz
respeito à distribuição de recursos ou à forma como estes são
alocados na saúde. Dar mais tempo à medicina preventiva ou
mais tempo à medicina curativa? Separar ou integrar procedimentos? Efetuar diagnósticos precoces de acordo com o risco individual ou fazê-los de forma sistemática e cega?
Nas atividades de rastreio nem os clínicos, ou as unidades onde atuam, nem os utentes têm idênticas oportunidades.
Sob o ponto de vista do princípio da equidade será uma obrigação ética procurar cumprir este desiderato. Por isso, é preciso salientar que as atividades de rastreio não se limitam
nem à identificação da população alvo, nem à efetuação de
um teste. A atividade de rastreio é uma cadeia com vários elos
e ligações. O processo de rastreio começa com a identificação
e recrutamento das pessoas elegíveis, continua com a aplicação do teste, com a avaliação dos que têm resultados positivos e depois com o tratamento das pessoas que têm doença e
o seu seguimento (Follow up). O sucesso dos programas de
rastreio decorre dos resultados intermédios alcançados (a longo prazo) e não só da identificação das pessoas potencial-
OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DA AUTONOMIA, BENEFICÊNCIA, E JUSTIÇA NOS RASTREIOS
M. ISABEL PEREIRA DOS SANTOS
–59–
mente com doença, o que significa que todas as tarefas em
cada um dos elos e ligações/transições foram efetuados45.
Sabemos que a percentagem de pessoas detetadas e a
percentagem de pessoas que chegam ao tratamento têm diversas variações, devido à forma como o teste é aplicado, aos
fatores ligados aos doentes e aos prestadores, à região do país
onde a pessoa se encontra, à capacidade e conhecimento que
o seu médico tem dos corredores e atores do sistema.
No recrutamento é preciso considerar que o acesso aos
testes pode ser demorado (caso da mamografia, rectosigmoscopia ou colonoscopia). O utente tem que se dirigir a outro prestador para marcar o teste e o tempo que medeia entre
a prescrição do teste e a sua execução pode ir até um ou dois
meses, ou mesmo mais tempo. Na fase de deteção temos ainda outros problemas ligados à disponibilidade de recursos, à
qualidade da aplicação dos testes e à qualidade de leitura e
interpretação dos resultados. Existem várias pessoas sem
médico de família atribuído ou que vivem em zonas do país
com acesso dificultado a vários dos testes preconizados nos
programas de rastreio oncológico. Depois, temos o problema
da qualidade da execução, da leitura e da interpretação dos
testes. E, por último, o caso das citologias perdidas quando
estas são efetuadas por médicos que atuam em locais sem
protocolo com uma instituição de referência para o envio e receção das mesmas. O passo mais importante e crítico deste
processo é, no entanto, o tratamento. O tratamento está disponível em tempo útil? É aceitável para os médicos e para os
doentes?
6 – Conclusão
Assume-se que mais vale prevenir do que remediar e
que cada indivíduo beneficiará de todas as ofertas e recomendações. Contudo, isto não é verdade. A prática da saúde
pública e dos programas direcionados para prevenir, de forma sistemática, a doença levantam problemas éticos diferentes dos que ocorrem na prática clínica usual onde é a pessoa,
–60–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
doente ou não, que procura e solicita cuidados por sua iniciativa. Em geral, a iniciativa dos rastreios parte dos serviços
de saúde e dos profissionais e dirige-se maioritariamente a
populações saudáveis. Para qualquer atividade de rastreio
deve proceder-se à análise dos princípios éticos da autonomia, beneficência e justiça. Se algum destes princípios éticos
não se encontrar cumprido, a atividade de prestação deste
serviço público deve ser repensada. A persuasão à participação deve ser feita mediante disponibilização de toda a informação relevante. O conteúdo desta informação deve ser claro quanto aos benefícios e quanto aos malefícios ou riscos potenciais.
As orientações clínicas emanadas pelos serviços públicos
devem ser suportadas em forte evidência cientifica tendo-se
em particular atenção o conteúdo e a forma como a informação é dada aos profissionais de saúde e à população em geral.•
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Por uma bioética útil
João Ramalho-Santos*
Falar de Bioética: Temas e Intervenientes
Discutir Bioética inclui inevitavelmente dois assuntos
primordiais, interligados: de que se fala e porquê; e quem
fala. São dois pressupostos que explicam, não só a riqueza de
discursos, como o papel da Bioética em criar diálogos verdadeiramente transdisciplinares, estejam para isso disponíveis
interlocutores.
Os temas relacionados com Bioética explicam também o
seu interesse e impacto, e variam entre abordagens de cariz
mais especulativo, com maior ou menor grau de potencial
aplicabilidade, mas estimulantes ou polémicas; a questões de
vital importância para a atividade diária dos cidadãos. Num
extremo poderão estar, por exemplo, tópicos como a clonagem ou a modificação genética/biotecnológica de seres humanos; no outro o estabelecimento de regras ou prioridades
quanto à prestação de cuidados básicos e experimentais de
saúde no espaço público.
O potencial da Bioética está pois também fortemente relacionado com o que implica em termos de Cidadania. Qualquer pessoa com um mínimo de inserção num espaço comunitário deverá, simultaneamente, sentir a necessidade e ter a
capacidade de entender a maioria das questões bioéticas importantes. Mais do que isso deve poder formular sobre elas
*Centro de Neurociências e Biologia Celular e Departamento de Ciências
da Vida, Universidade de Coimbra
–66–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
opiniões, que serão mais ou menos convergentes, mais ou
menos divergentes, consoante os casos específicos. O registo
pode ser tão diverso como uma consulta pública, um debate
alargado, o resultado de uma atividade profissional, ou uma
simples conversa privada. E tanto poderemos estar a falar de
questões mobilizadoras que impliquem consequências globais, tal como a tomada de decisões de âmbito legislativo ou
legal; como de opiniões sobre escolhas pessoais.
Ou seja, quando se fala de Bioética, e ao contrário do que
sucede noutras áreas, é difícil negar o direito à participação.
Não se infira daqui que todos os interlocutores estejam necessariamente aptos a discutir todas as questões a fundo, ou
a ter opiniões igualmente fundamentadas, alicerçadas em bases ou experiências comparáveis. Terão, no fundo, diferentes
graus de “literacia” sobre os diferentes aspetos envolvidos.
Mas há um claro imperativo, por exemplo, em questões que
envolvem a dignidade humana, os direitos de utentes, os deveres de profissionais nas áreas das Ciências da Saúde e da
Vida, ou a administração de recursos nestas áreas, que tem
necessariamente de ser transversal. O facto de temas bioéticos
poderem ser discutidos de maneira sofisticada a partir da
análise de objetos culturais ubíquos, como filmes ou séries de
televisão, é um outro sinal desse estado de coisas (Shapshay,
2009). Até porque o mesmo não é regra quando se pensa na
abordagem de outros discursos (médicos, científicos, jurídicos, económicos, filosóficos) nos mesmos objetos, onde predominam generalizações e simplificações.
A variabilidade de temas de índole bioética é ainda potenciada pela variedade de intervenientes, com diferentes tipos de formações e, sobretudo, de discurso. Algo que por vezes não é totalmente claro, mormente em instituições bioéticas formais, como as que foram formadas no âmbito dos cuidados de saúde, historicamente pioneiras ao nível da diálise,
cuidados intensivos, transplantes de órgãos (e consequente
escolha de recipientes) ou fertilização in vitro, nos anos 196070 (Andre, 2002; Kuhse & Singer, 2006). Embora haja hoje formação específica, esta baseia-se sobretudo em pós-graduações, ou em interesses trabalhados no decurso de uma ativi-
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
–67–
dade pessoal ou profissional, que pode incluir (por ordem alfabética) Antropólogos, Ativistas, Enfermeiros, Filósofos, Investigadores, Jornalistas, Juristas, Médicos, Pacientes, Políticos, Psicólogos, Sociólogos, Técnicos, ou Utentes, com diversas subespecialidades passíveis de categorização adicional.
Sem esquecer ainda outras formações de índole pessoal, religiosa ou sociocultural, que aumentam a diversidade (Walters
& Cole-Turner, 2003; cnecv, 2013).
A integração de discursos promovida pela bioética pode
também condicionar o estrito alcance disciplinar, no sentido
em que nem sempre os critérios técnicos e formais de uma
dada disciplina serão diretamente aceites numa comunidade
mais alargada, sobretudo num contexto de maior intervenção
social. Uma das missões de um discurso bioético consequente e com aplicação real será pois, para além de garantir a correta definição de conceitos e uma pluralidade de opiniões relevantes, trabalhar no sentido de impedir que a riqueza de
abordagens se transforme numa cacofonia inconsequente,
considerando até que as mesmas palavras podem por vezes
identificar conceitos completamente distintos consoante a formação de base dos intervenientes (Andre, 2002), e que há analogias correntes que não traduzem com exatidão a realidade
subjacente; como, por exemplo, equacionar a atividade de sequências de dna com um programa de computador, quando
as interações biológicas envolvidas são bastante menos lineares do que a ideia que se tem normalmente de um processamento informático (Oyama, 2000).
Ciência: Resistência e Integração no discurso bioético
Historicamente a relação entre Ciência e Sociedade nunca foi linear, pautada por um misto de incompreensão e desinteresse. No entanto, sobretudo a partir do final do século
xx, surgiu uma polarização em dois extremos. De um lado era
expressa a necessidade absoluta de total liberdade por parte
dos investigadores de modo a permitir o avanço do conhecimento, com apenas a verdade científica como guia. Tal liber-
–68–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
dade seria expressa, quer em termos de (não) justificar o seu
trabalho ou prestar contas que não aos seus pares; quer quanto à (ausência de) reflexão sobre as potenciais consequências
de quaisquer descobertas (a famosa clivagem, artificial, entre
“ciência” e “tecnologia”). Do outro lado ganhava adeptos a
noção de que o conhecimento científico é, também ele, uma
construção cultural e social, sensível portanto a pressões, desde logo com o financiamento disponível e os recursos técnicos a limitarem, na prática, o que se pode investigar, por
exemplo. Um processo que pode não ter apenas uma suposta verdade abstrata como guia (Santos, 1992; Collins & Pinch,
1993; Sokal & Bricmont, 1998; Labinger & Collins, 2001). Muitos cientistas aderiam à primeira destas abordagens, reagindo à segunda como sendo uma intromissão intolerável, exemplificada na frase atribuída a Richard Feynman: “a filosofia
da ciência é tão útil para os cientistas, como a ornitologia é
útil aos pássaros”.
No entanto, ambos os extremos têm méritos inquestionáveis, e a evolução recente implica que uma separação clara de universos e paradigmas não será aceitável no futuro.
Assim, tentativas de formular logicamente o pensamento
científico (Haack, 2003) tendem a esbarrar na ideia que a evolução da Ciência teve lugar precisamente porque nunca foi espartilhada desse modo (a não ser a posteriori). Na verdade, foram até produzidos conhecimentos científicos que são contraintuitivos em relação ao senso comum (“ilógicos”), o que
configura um contexto de descoberta e validação no essencial
não-democrático (Wolpert, 1993). Embora a Antropologia
possa oferecer outro tipo de contextualizações, o movimento
das galáxias, o papel de um agente patogénico, ou o efeito de
uma mutação grave no genoma não serão influenciáveis pela
opinião que a maioria dos indivíduos de uma dada sociedade tenha sobre esses assuntos. Ou, como num famoso aforismo, não acreditar na lei da gravidade não significa que não se
caia. No entanto é bom lembrar que esse enquadramento
pode ser crucial na implementação de políticas públicas com
contornos sociais (planos de vacinação, estratégias preventivas e terapêuticas, utilização de recursos naturais), onde se
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
–69–
poderá ter de entrar em linha de conta com abordagens correntes na população que não são necessariamente assentes
em validações científicas, de modo a conseguir por em prática ações concretas no terreno. A mera imposição de medidas
que não levem em conta esses aspetos tenderá a ser contraproducente.
Por outro lado, a produção de conhecimento ligado a
tecnologias agropecuárias (como os organismos geneticamente modificados, ou o uso de antibióticos e hormonas em
grandes explorações animais), ou biomédicas (como a introdução de novos instrumentos, tecnologias, intervenções e
substâncias) não se limitam a trabalho científico validado,
mas têm consequências ao nível da gestão de recursos naturais, de alterações ao meio ambiente e de comercialização (patentes, concursos, marketing), na qual a eficiência, a relação
custo-benefício ou os efeitos secundários a diversos níveis podem não ser as principais preocupações dos agentes envolvidos, com os interesses de companhias, e de profissionais com
claros conflitos de interesse, a poderem subverter o que se
pretende seja uma avaliação transparente (Krimsky, 2004;
Kassirer, 2006; Conway & Oreskes, 2010).
Com a racionalização de alguns recursos, o fim da separação ciência-tecnologia, e o maior foco em investigação científica designada como “aplicada” ou “translacional” (pense o
que se pensar destas opções, e seus motivos) parece evidente que os dois modos de abordar o conhecimento científico terão de ser conciliáveis, e uma ciência mais próxima da sociedade terá de trazer forçosamente mais interações. Nessa medida, a intervenção da Bioética pode ter um papel que a Sociologia e Filosofia da Ciência nunca alcançaram verdadeiramente em décadas anteriores, uma vez que, estando mais
próxima da atividade diária e dos interesses diretos dos cidadãos, implica a intervenção de maior número de elementos
da comunidade.
É importante notar que houve uma clara evolução no
modo como o conhecimento científico é socialmente integrado. Se fazer uma cultura de células a partir de uma amostra
de um paciente, e a sua posterior utilização para outros fins
–70–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
que não o diagnóstico sem qualquer aviso ao próprio ou aos
familiares, era algo perfeitamente natural em 1951, quando
uma das linhas celulares mais utilizadas do mundo (as células HeLa) foi estabelecida a partir de um tumor cervical da
paciente Henrietta Lacks (Skloot, 2010), hoje há uma maior
sensibilidade em relação a essas questões, e noções de privacidade e proteção dos direitos individuais em bases de dados
ou biobancos têm um outro tipo de enquadramento, não só
ético como legal (Silva, 2008; cnecv, 2012).
Noutra perspetiva, a maior visibilidade social de questões científicas com relevância bioética resulta por vezes em
simplificação com potenciais consequências. Por exemplo, na
abordagem das bases genéticas de diferentes doenças, em que
os exemplos pedagogicamente mais simples de entender, até
do ponto de vista mecanístico, são aqueles em que uma alteração perfeitamente identificada no genoma se traduz num
fenótipo claramente definido (como os casos da anemia falciforme e da hemofilia familiar, não por acaso recorrentes em
livros de texto). Embora seja louváveis os esforços de geneticistas empenhados, continua por vezes a passar a ideia que
este tipo de correlação linear causa-efeito existe em muitos
outros casos, quando há uma grande variabilidade, nem todas as doenças têm uma base genética clara, e é preciso entrar
em linha de conta com diversos fatores e diferentes graus de
susceptibilidade e penetração. É na moderação destes debates que a Bioética deve desempenhar um papel. A questão é
escolher esses debates, não só em termos de conteúdo, mas
em termos dos momentos apropriados e úteis.
Clonagem, pluripotência, estaminalidade e ruído
Uma característica preocupante de algum discurso bioético é a procura sistemática de temas sensacionalistas, indevidamente enquadrados. Não que alguns destes temas não
sejam merecedores de atenção, ou que os bioeticistas envolvidos não tenham todo o direito de os abordar, mesmo que o
motivo principal esteja mais relacionado com chamar a aten-
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
–71–
ção, ou garantir um nicho em termos de carreira. Mas este
tipo de temas exige particular rigor, uma vez que o risco é
descredibilizar todo o discurso bioético, já que é também nestas ocasiões que os profissionais envolvidos estão particularmente atentos a incorreções e simplificações no discurso, nulificando argumentações menos conseguidas. A Bioética
deve evitar por isso a tentação de dois extremos: o discurso
histérico, sensacionalista e oco; e o discurso superficial, inconsequente e redondo que se destina a cumprir diretivas relacionadas com a obrigatoriedade de haver reflexão bioética
numa dada temática, e a ter um efeito tranquilizador.
Um exemplo paradigmático relaciona-se com o ruído em
torno da clonagem de mamíferos a partir de células somáticas adultas, técnica de que foi pioneira a ovelha Dolly (Wilmut et al., 1997; Ramalho-Santos, 2004). Teoricamente este resultado significava que seria possível reproduzir geneticamente qualquer organismo adulto, e as ramificações dessa
possibilidade foram de imediato discutidas do ponto de vista bioético. Os exemplos mais conhecidos serão as reflexões
sobre a natureza ético-legal do embrião clonado (idêntica, ou
não, à de um embrião “normal”), ou sobre expectativas indevidas que seriam colocadas num potencial indivíduo clonado, de quem poderia ser “esperado” que tivesse as mesmas
“qualidades” do “original”, sendo-lhe negado um futuro
aberto. Intelectualmente estimulantes em abstrato, estas discussões ignoravam aspetos essenciais para qualquer observador com conhecimento dos princípios científicos em causa,
e que tivesse tido a possibilidade de analisar criticamente os
resultados publicados na literatura. Por exemplo, a importância do ambiente e do epigenoma em termos do desenvolvimento, que quase garantia uma não-identidade entre clones
(tal como gémeos idênticos não são totalmente iguais). Ou
ainda a extrema ineficiência global da técnica de clonagem
que, aliada à impossibilidade (ética, legal e prática) de obter
oócitos humanos de boa qualidade em grandes quantidades
assegurava a impraticabilidade técnica real de qualquer projeto a este nível. Em suma, a possibilidade de sucesso da tecnologia de clonagem aplicada a humanos era ínfima, algo que
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
um leitor interessado nunca seria capaz de deduzir do imenso volume de trabalhos publicados no âmbito da bioética sobre este assunto, que quase pressupunham um sucesso iminente, e em larga escala, da técnica. A verdade é que se assistiu a um amontoar de literatura inútil do ponto de vista prático, e que serviu para menorizar o alcance do discurso bioético fora do círculo estrito dos seus cultores (Ramalho-Santos,
2007, 2011; Carvalho & Ramalho-Santos, 2013).
Por outras palavras, e para fazer analogias igualmente
absurdas: podemos sem dúvida discutir de forma empenhada a importância de preservar os ecossistemas de Marte após
colonizarmos esse planeta, presumindo que um dia o faremos, e que haverá ecossistemas endógenos a preservar. Mas
é esta uma discussão que vale mesmo a pena ter nesta altura?
Ou não será melhor adiá-la até haver, pelo menos, uma possibilidade real de lá conseguirmos chegar? Será útil passar
leis que ajudem à conservação do Yéti ou da Criatura do Lago
Ness sem que a existência destes seres seja, ao menos, uma
probabilidade razoável? Ou, estando preparados para diferentes desafios hipotéticos, não deveremos antes adequar o
esforço dedicado a estas reflexões ao seu grau de probabilidade, e privilegiar temas de facto candentes, apesar de não
tão espetaculares e, porventura, muito mais difíceis porque
têm consequências práticas reais, e implicam a necessidade
de decisões concretas?
A polémica em torno de células estaminais pluripotentes
humanas teve contornos semelhantes no sentido em que a
maior parte desta discussão gravitou em torno do estatuto do
embrião (Carvalho & Ramalho-Santos, 2013). As células pluripotentes poderão ter algum interesse biotecnológico ou em
termos de medicina regenerativa porquanto podem ser cultivadas de forma ilimitada em laboratório, e dar origem a qualquer tipo celular que existe no organismo, podendo ser por
isso utilizadas em testes toxicológicos, ou talvez mesmo para
repor tipos celulares que tenham sido eliminados por alguma
patologia degenerativa. São as únicas células com esse potencial, e de início a única possibilidade de as obter estava relacionada com a destruição de embriões no estádio de blas-
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
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tocisto, com remoção das células do pluriblasto. Caso o embrião tivesse permanecido intacto essas células dariam origem a todas as células do organismo, removidas no seu contexto e colocadas em cultura propagam-se indefinidamente,
retendo a propriedade de pluripotência.
Apesar de o estatuto ético do embrião pré-implantatório
humano variar consoante o contexto cultural e religioso, no
ocidente a discussão fixou-se sobretudo no paradigma católico que tende a considerar este embrião com um estatuto
mais elevado do que o que sucede noutros contextos religiosos, equivalente, no fundo, a um ser humano, algo que não
sucede, por exemplo, nas religiões judaica ou muçulmana, ou
mesmo em diferentes correntes de catolicismo protestante
(Walters & Cole-Turner, 2003). A espécie de falso “ovo de Colombo” em que se tornou o desafio de obter células estaminais pluripotentes sem violar esse estatuto do embrião deu resultado a alguns dos mais ridículos esforços científicos de que
há memória, culminando na proposta de modificação de embriões de modo a que estes não fossem viáveis em relação ao
desenvolvimento uterino e, portanto, paradoxalmente deixassem de ser considerados embriões na verdadeira acessão
da palavra (Meissner & Jaenisch, 2006; Carvalho & RamalhoSantos, 2013). Ao serem levados a sério (tanto por revistas
científicas, como bioéticas, como pelos media em geral) nenhum destes trabalhos fez avançar minimamente a área, a
não ser para criar um ruído que satisfizesse outros interesses,
não científicos, nem certamente éticos.
Por outro lado, o discurso bioético continua ainda a dar
algum crédito à possibilidade de células estaminais retiradas
de um organismo humano adulto (hematopoiéticas, testiculares ou mesenquimais) poderem adquirir espontaneamente
em cultura características pluripotentes, que normalmente
não têm (Jiang et al., 2002; Conrad et al., 2008; Kossack et al.,
2009). Apesar de essa capacidade nunca ter sido comprovada
independentemente (Ko et al., 2010), nem sequer reproduzida pelos próprios investigadores que a descreveram em primeiro lugar, as citações a esta literatura mantêm-se nalguns
quadrantes, como alternativa ao uso de embriões. Isto não é
–74–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
nada de novo na História da Ciência, onde a natureza idealizada da linguagem faz com que haja uma grande relutância
em admitir erros, enganos ou fraudes, e, por isso, onde vários
trabalhos desacreditados permanecem em circulação, podendo ser citados por quem não domine o discurso científico, ou seja intelectualmente desonesto. De facto, uma questão
fundamental que é muitas vezes ignorada pelo discurso bioético relaciona-se com a fidelidade da informação disponível
(Ramalho-Santos, 2007, 2011).
Em grande medida a discussão sobre o uso de embriões
com o propósito específico de obter células pluripotentes tornou-se irrelevante (ou muito menos relevante) quando surgiu
a possibilidade de criar este tipo celular em laboratório a partir de células de um indivíduo adulto, mediante manipulação
genética, as chamadas células pluripotentes induzidas, ou células ips (Takahashi et al., 2007). A discussão bioética inicial
centrou-se no facto de a obtenção destas células não necessitar da utilização de embriões, e ser portanto uma tecnologia
mais eticamente “limpa” que pode, em muitos casos, substituir com vantagem ensaios que propunham a utilização de
embriões, como veio de resto a suceder com aplicações preliminares em modelos animais na área da Medicina Regenerativa (Gilbert, 2013; Carvalho & Ramalho-Santos, 2013). Após
a caracterização inicial das células ips foram descritas várias
metodologias para as obter e diferenciar em células para diferentes tipos de aplicações, mesmo sem recorrer a manipulação genética, ou com uma manipulação mínima (Hussein &
Nagy, 2012; Sancho-Martinez et al., 2012). Na verdade, resultados recentes sugerem que há mesmo a possibilidade de
mudar o fenótipo de células somáticas para células pluripotentes mediante alterações ao meio em que as células são cultivadas, com um mínimo de intervenção (Obokata et al.,
2014a, b). No entanto, e caso estes resultados sejam reprodutíveis, a verdade é que não representam um salto paradigmático em relação às células ips, apenas um mecanismo distinto para atingir um mesmo efeito. E, na verdade, tudo aponta para que os resultados constituam um artefacto, com vários
investigadores a declararem não conseguir repetir a desco-
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
–75–
berta inicial (Cyranoski, 2014, ver também tentativas – malsucedidas – de reprodução dos resultados em http://www.
ipscell.com/stap-new-data/). Parece pois estar a preparar-se
(mais uma vez) a lição que: a) muitos investigadores tentarão
reproduzir quaisquer descobertas potencialmente relevantes;
b) caso os resultados sejam negativos nem sempre são publicitados de forma tão abrangente como a descoberta inicial; c)
o “tempo de vida” de literatura original bombástica mas cientificamente dúbia tende a ser mais elevado do que a sua relevância, com potenciais riscos para o discurso bioético.
É interessante verificar que muitas vezes esquecida nesta reflexão foi o simples facto de as células ips levantarem outros tipos de problemas éticos a necessitar de reflexão, porventura mais complexos que os levantados pelo uso de embriões em investigação científica. Isto no sentido em que, apesar de não derivarem de embriões, estas células até podem
dar origem a embriões, quer por potencialmente poderem gerar gâmetas in vitro (e, portanto, embriões), quer porque pode
ser possível produzir seres vivos quiméricos, misturando células ips de vários dadores como distintos contribuidores genéticos para formar um único indivíduo de forma não-canónica, desde que as células utilizadas sejam do mesmo sexo, de
modo a evitar problemas ao nível da determinação sexual
(Ramalho-Santos, 2011). A conclusão aparente que fica ao
analisar a evolução do discurso bioético nesta área é que destruir embriões em laboratório foi considerado eticamente
muito mais problemático do que criá-los a partir de células
não-embrionárias.
Este fio narrativo conduz-nos a um outro fenómeno muito interessante neste contexto, que se poderia designar como
“Efeito da Impossibilidade”. Por regra o discurso científico
privilegia um tom positivo, de tal modo que é muito pouco
provável que se publiquem trabalhos de alto impacto onde
que se refere a impossibilidade de realizar algo. Primeiro,
porque a própria noção de progresso científico vai contra
uma formulação deste género, depois porque (como o elementar exemplo de Popper demonstra, e a História da Ciência ensina) as impossibilidades de hoje poderão ser solucio-
–76–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
nadas amanhã, e é sempre mais prudente falar em “improbabilidade”, não tanto em “impossibilidade”. No entanto, revistas científicas de topo aceitaram trabalhos em que se faz
uma referência clara à impossibilidade de clonar primatas (Simerly et al., 2003), ou de criar primatas através do método
das quimeras usando células ips (Tachibana et al., 2012).
Como referido, ambas as técnicas podem ser aplicadas noutros animais, como murganhos, e no segundo caso é possível
gerar com relativa facilidade (maior do que com clonagem)
animais adultos saudáveis a partir de células ips. Dada a polémica com o potencial uso destas técnicas em humanos, a
publicação destes trabalhos (realizados com macacos Rhesus)
não pode ser equacionada com um interesse científico no sentido estrito. O objetivo claro é aqui adicionar a uma proibição
ética e legal (generalizada em relação a ambos os procedimentos em humanos) uma impossibilidade prática.
É certo que nenhum dos artigos referidos realizou um
número de tentativas sistemáticas convincentes, embora se
possa sempre discutir quantas tentativas são necessárias para
provar que não se consegue fazer alguma coisa. Seja como for,
já passaram suficientes anos sobre o nascimento da ovelha
“Dolly” para haver a quase certeza de que a clonagem humana foi tentada várias vezes, sem sucesso. Embora não se
pretenda dar publicidade a essas iniciativas, a primeira parte da afirmação deriva das declarações de interesse manifestadas por diversos indivíduos e organizações, considerando
igualmente os recursos técnicos, científicos e financeiros à sua
disposição, bem como com a noção de que, à semelhança dos
chamados paraísos fiscais, haverá “paraísos médico-científicos” menos constrangidos pela lei e pela ética. A segunda parte da afirmação assenta na certeza de que qualquer sucesso
assinalável teria obrigatoriamente de ser publicitado e demonstrado de forma inequívoca e continuada de modo a ser
útil aos seus autores, como sucedeu em termos da clonagem
de animais de estimação (Shin et al., 2002; Lee et al., 2005).
Neste caso, e se descontarmos óbvias campanhas de desinformação e “marketing”, o silêncio é mesmo o melhor indicador de que a clonagem em humanos não será provável com
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
–77–
a mesma metodologia que gerou a ovelha “Dolly”. No entanto, o mesmo não pode ainda ser dito com igual segurança
do potencial uso reprodutivo de células ips que, em humanos,
existem apenas desde 2007. Até porque, e considerando a relativa simplicidade técnica inicial envolvida, o número de laboratórios a trabalhar com estas células é hoje muito superior
ao número ao dos que, no pico de interesse na área, trabalharam em clonagem (Ramalho-Santos, 2011).
Por um discurso bioético útil
Uma constante na evolução do conhecimento científico
com relevância bioética tem sido a repetição de temas. Por
exemplo, debates sobre a natureza da vida ou sobre a a legitimidade da sua manipulação realizados aquando do epicentro das polémicas sobre clonagem são, em grande medida,
adaptações e extensões de discursos anteriores, nomeadamente sobre Técnicas de Procriação Medicamente Assistida
(Ramalho-Santos, 2007). E que foram, por sua vez, mais tarde expandidos para o uso de células ips, embora de forma
menos aprofundada.
Por outro lado, as armadilhas em que caiu o discurso
bioético sobre clonagem e estudo do embrião humano, em
termos de discussão mal fundamentada do ponto de vista
científico e que tende a gerar mais ruído e sensacionalismo do
que perspetivas úteis, são comuns a outros debates contemporâneos em que se abordam mudanças potenciais no ser humano e aquilo que podem significar, como sejam os referentes a terapia génica, nanotecnologia, robótica ou neurociências. No último caso a aplicação de farmacologia moduladora de comportamentos, aliada a uma cada vez melhor compreensão dos circuitos neuronais que medeiam esses mesmos
comportamentos, pode ser uma área particularmente sensível
e mediática a curto prazo. E não há pois qualquer razão para
não abordar esses novos desafios de um modo mais útil do
que o que sucedeu no passado.
Uma componente essencial nesse esforço passa por au-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
mentar a reflexão Bioética contínua nas diversas áreas relevantes, nos diferentes passos da formação dos seus futuros
intervenientes. E o fulcro não devem ser apenas as implicações disciplinares em cada caso, mas desde logo também o
modo como diferentes disciplinas terão de interagir para elaborar um discurso bioético socialmente relevante que seja inteligível. Este diálogo interdisciplinar será sempre mais complexo, só podendo alicerçar-se em vontades mútuas, mas
também na admissão de que haverá que adquirir em cada
caso um conhecimento específico sólido, que reflita uma posterior capacidade para aceitar factos, e apenas discutir dúvidas, normas ou implementações, que devem ser os verdadeiros objetos do discurso bioético.
Por outro lado, há que distinguir, não entre uma Bioética de “primeira” ou de “segunda”, mas entre uma Bioética de
cariz prático e imediato, e uma Bioética mais especulativa,
que projeta no futuro com diferentes graus de probabilidade,
e saber dosear o esforço de discussão de acordo com aquilo
que são objetivos muito distintos em cada caso.
A Bioética tem o dever de estar preparada para reagir,
imediata e eficazmente, a desafios. Mas não deve cair na tentação de criar problemas artificiais, para depois garantir ser
chamada a resolvê-los. Por ter de se alicerçar em conhecimentos definidos por outras áreas a Bioética tem de perceber
que aqui reside a sua credibilidade enquanto discurso; de
modo a não ser apenas entendida como ruído que assombra
novas descobertas, como discurso vago que apenas sobrevive por ser “obrigatório”, ou, pior ainda, como força de bloqueio que limita o progresso e promove medos irracionais,
uma via sem saída para onde por vezes é empurrada. Caso
resista a estas armadilhas, a Bioética terá o potencial para se
consolidar em definitivo como um dos poucos discursos
transdisciplinares com capacidade integradora, e com aplicação real na gestão adequada de diferentes tipos de esperanças e perplexidades, sejam elas mais ou menos prováveis.•
POR UMA BIOÉTICA ÚTIL | JOÃO RAMALHO-SANTOS
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–81–
Tecnologias de “Nova Geração” para
Sequenciação de Genomas Completos:
políticas públicas para testes genéticos
relacionados com a saúde
Jorge Sequeiros
Dos genes aos genomas
Desde a descoberta do dna como material da hereditariedade (1944)1, a descoberta da estrutura em dupla hélice do
dna (1953)2 e a descodificação do “código genético”
(1961)3,4,5, até às publicações da primeira sequência do genoma humano6,7, as descobertas e inovações na área da genética têm sido enormes. Ao mesmo tempo, as aplicações e as implicações destas descobertas e novas tecnologias em termos
de saúde e doença humana não têm cessado de nos interrogar e levantar questões eminentemente éticas e de direitos humanos.
Ao contrário da física, por exemplo, apesar de todas as
suas descobertas de grande impacto, a genética é sentida
como algo de muito mais próximo de cada um de nós, de
mais íntimo e, ao mesmo tempo, algo que pensamos poder
entender muito melhor. Por isso, o eco das descobertas genéticas no público em geral, e nos meios de comunicação em
particular, é tão grande.
Assim está a acontecer também com a chamada “sequenciação de nova geração”, que permite hoje já sequenciar
–82–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
genomas inteiros em poucos dias ou horas, e cujo preço e rapidez não param de baixar8.
O programa de sequenciação do genoma humano (o
conjunto das 3x109 pares de bases, a sucessão das 4 letras – A,
T, C e G – que compõem o código genético), iniciou-se oficialmente em 1990 e terminou em 2013, com um custo total de
2,7 mil milhões de dólares norte-americanos (usd); ou seja,
dois anos mais cedo e menos 300 milhões de usd que o projetado. Mas persistiam ainda algumas falhas, alguns erros e
pequenas regiões que não conseguiam ser cobertas pelas técnicas então utilizadas.
Em setembro de 2007, uma empresa liderada por Sam
Levy publica o que diz ser “o primeiro genoma completo” de
um ser humano – o do próprio Craig Venter9, o geneticista
que liderou a empresa Celera Genomics e que concorreu com
Francis Collins e o seu Programa Público do Genoma Humano (hgp). O hgp e a Celera haviam publicado os seus resultados no mesmo dia (15 de fevereiro de 2001), na Nature6 e na
Science7, respetivamente.
Ainda em 2007, foram necessários apenas dois meses,
menos de um milhão de dólares e um pequeno grupo de cientistas para sequenciarem o genoma completo de James Watson10,11. Isto só foi possível devido ao uso, pela primeira vez,
de novas tecnologias de sequenciação genómica (sequenciação
massiva paralela), chamadas de “nova geração”.
Diversos outros projetos se iniciaram com as novas técnicas de sequenciação massiva, para analisar genomas completos, por exemplo para estudos de variação genética humana. Por exemplo, em 2010, a arcebispo Desmond Tutu, de
origem bantu, teve o seu genoma sequenciado, como parte de
um projeto de diversidade genética humana, juntamente com
quatro outros sul-africanos de origem khoisan (bosquímanos)12.
Por outro lado, rapidamente se tornou moda que os ricos
e poderosos quisessem ter o seu genoma completo sequenciado. Nos chamados “genomas de celebridades” já sequenciados, lembrando certos programas televisivos, incluem-se
os de Ozzy Osbourne, Larry King, Glen Close (a primeira
TECNOLOGIAS DE “NOVA GERAÇÃO” PARA SEQUENCIAÇÃO DE GENOMAS COMPLETOS: POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
–83–
mulher), Steven Hawking ou o chefe iakota Sitting Bull, entre várias dezenas de outros.
Muitos geneticistas se preocuparam e denunciaram que
sequenciar os ricos e famosos era um mau uso da genética.
Kathy Hudson, à data diretora do Public Policy Center (em
Washington), da Johns Hopkins University, declarou mesmo
que isto é “quase como uma genómica recreacional, ou o
equivalente a um ‘whole-body scan’, para aqueles que têm
uma curiosidade sem limites e dinheiro para a pagar”14. Além
disso, e sobretudo, ao revelar e publicar em linha o seu genoma, essa pessoa estará também a fornecer informação genética sobre os seus familiares (nomeadamente, metade dos
genes dos seus progenitores e dos seus filhos/as, etc.), incluindo variantes genéticas que podem causar ou predispor
a doenças atuais ou futuras, e, eventualmente, traços físicos e
comportamentais, etc.
A “sequenciação de nova geração”
(NGS) veio para ficar
Com o decorrer do tempo, os aparelhos de “next-generation sequencing” (ngs)8 têm vindo a tornar-se cada vez
mais pequenos, menos caros e mais poderosos, isto é, com a
capacidade de gerar cada vez mais informação em menos
tempo. Em 2013, custavam já “apenas” entre 50 a 600 mil dólares.
Segundo o National Human Genome Research Institute
(nhgri), o preço de sequenciar um genoma completo atingiu
os 10 mil usd em 2011 e continua a baixar desde então15, e é
cada vez mais perto de 1.000 usd (o objetivo traçado há alguns anos). É possível, já hoje, encontrar na internet companhias que vendem a sequenciação completa, diretamente ao
público, por 1,5 mil dólares16. A “23andMe”, antes de ser travada pela Food and Drug Admninistration (fda) dos eua, iniciou a oferta da sequenciação do exoma completo (parte codificante do genoma) por 999 usd, aos que já eram seus clientes17. Segundo algumas previsões, em 2020, o preço de se-
–84–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
quenciar um genoma inteiro poderá estar já abaixo de um dólar (e cada vez mais perto de um cêntimo, o preço de sequenciação de um único dos 3x109 pares de bases do hgp, em
2001...).
Existem ainda grandes limitações analíticas e, sobretudo,
de interpretação dos dados (com ferramentas de bioinformática) e o achado de uma mutação necessita ainda ser confirmado pela sequenciação tradicional (dita de Sanger, o seu inventor). Por outro lado, a nova tecnologia tem outras limitações, nomeadamente na análise de certas regiões do dna
(como as altamente repetitivas) ou para o estudo de doenças
por repetições de oligonucleotídeos (repetições de 3 ou mais
pares de bases) ou de grandes rearranjos genómicos (duplicações, deleções, inversões, etc.).
De qualquer modo, não há já, neste momento, a mínima
dúvida que a “ngs” veio para ficar, sobretudo devido ao seu
custo e à sua enorme capacidade de produção (mesmo que
outras técnicas próprias da genética molecular continuem seguramente a ser necessárias, quer em alternativa, quer como
complementares).
A aplicação da ngs resume-se essencialmente a três propósitos diferentes: (1) sequenciação do genoma completo (ou
seja, todas os três mil milhões de pares de bases); (2) a sequenciação do exoma completo (ou seja, apenas as regiões codificantes do genoma, que levam à produção de aminoácidos
e proteínas, e constituem 3-4% de todo o genoma); ou (3) painéis de genes, previamente selecionados, sobretudo para o
diagnóstico de doenças genéticas muito heterogéneas (muitos
genes e mutações potencialmente implicados).
A “sequenciação de nova geração” em investigação
As primeiras grandes aplicações da “ngs” foram, sobretudo na última década, para investigação, desde a descoberta de novos genes para doenças hereditárias (raras), ao estudo de variantes de susceptibilidade potencialmente associadas a doenças comuns (“genome-wide association studies”,
TECNOLOGIAS DE “NOVA GERAÇÃO” PARA SEQUENCIAÇÃO DE GENOMAS COMPLETOS: POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
–85–
gwas), e para estudos da diversidade genómica humana ou
de genómica comparada entre espécies.
Muitos novos genes e mutações (patogénicas) têm vindo
a ser encontrados nos últimos anos, agora que o genoma
pode ser “varrido” de uma ponta à outra, e as revistas da especialidade são saturadas por relatos de novas variantes genéticas que conferem predisposição para doenças comuns da
vida adulta (genes de susceptibilidade). Aumentou também
muito o conhecimento científico sobre a estrutura genética
das populações humanas, suas diferenças e semelhanças.
Um dos grandes projetos recentes é o “1.000 Genomes
Project”18, uma colaboração internacional para se produzir
uma catálogo extenso da variação genética humana, desde
polimorfismos a mutações, incluindo informação sobre haplótipos (conjunto de variantes ligadas entre si num mesmo
cromossoma homólogo), mas também para investigação biomédica, incluindo novas variantes de suscetibilidade genética a doenças ou à resposta a tratamentos medicamentosos. O
projeto prossegue e pretende agora sequenciar os genomas de
cerca de 2.500 pessoas, de 25 populações diversas. Tal como
com o hgp, os seus resultados serão acessíveis livre e gratuitamente a todos os investigadores em todo o mundo.
Também a sequenciação de genomas arcaicos de hominídeos como os Neandertais19 ou de seus parentes também
extintos, como os Denosovianos20, a partir de pequeníssimas
quantidades de material biológico, têm permitido conhecer
melhor a diversidade genética existente nessas épocas, a evolução humana e a nossa coexistência e relações com eles, a
partir da percentagem de DNA que com eles partilhamos.
A sequenciação do genoma das células
derivadas de Henrietta Lacks
A 15 de março de 2013, investigadores do embl (the European Molecular Biology Laboratory, www.embl.de), Heidelberga, anunciaram que haviam sequenciado o genoma das
famosas células Hela21,22. Estas células foram derivadas de
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um cancro do colo do útero de Henrietta Lacks23, uma mulher afro-americana que residia nos arredores de Baltimore e
que, em janeiro de 1951, recorreu ao Johns Hopkins Hospital
(um dos raros que nessa altura atendia também americanos
de origem africana). No serviço onde foi observada, foram retiradas células desse tumor (sem o seu conhecimento), as
quais vieram a dar origem, no laboratório, à primeira linha
celular imortalizada in vitro. O nome da doente só seria revelado numa revista de ginecologia, em 1971 (os investigadores
tentaram ainda antes fazer crer que a doente se chamava Helen Lane ou Helen Larson).
Esta linha celular é ainda hoje a mais utilizada na investigação em todo o mundo, estando presentes em quase todos
os laboratórios de biologia molecular e celular. Foi usando estas células que Jonas Salk desenvolveu, nos anos cinquenta,
a vacina anti-poliomielite. Foi nestas células que, em 1956, foi
determinado pela primeira vez o número correto de cromossomas humanos. Células desta linha foram levadas ao espaço pela primeira vez, para excluir possíveis efeitos da ausência de gravidade. Estima-se que foram produzidos mais de 75
mil artigos científicos com estudos efetuados em células
HeLa. Fizeram-se numerosos ensaios terapêuticos e até negócios multibilionários com esses resultados.
No entanto, os familiares de Henrietta Lacks nunca tiveram qualquer compensação financeira ou outra, a não ser
o reconhecimento do nome da sua mãe e avó, que se tornou
num mito da comunidade afro-americana23. Apesar de alguns protestos, a família (que permaneceu pobre como antes)
nunca se opôs à utilização dessas células.
Um novo paradigma do processo
de consentimento informado
Novo protesto surgiu, contudo, quando os familiares
souberam que o genoma completo de Henrietta Lacks estava
publicado em linha e acessível a qualquer um, sem terem sido
previamente consultados. É que eles partilham seguramente
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PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
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com ela um número significativo de genes (dependendo do
seu grau de parentesco), alguns dos quais poderão denunciar
doenças genéticas já presentes ou que possam vir a desenvolver-se no futuro, pelo que poderão ser objeto de discriminação (no emprego, seguros, educação, adoção).
Foi tal a “tempestade ética”24 que se seguiu, que os investigadores alemães Lars Steinmeck e a sua equipa retiraram
a informação já em linha, algo sem precedentes assinaláveis.
De tudo isto, resultaria que Francis Collins, atual Diretor
dos National Institutes of Health (nih) dos eua, e Kathy Hudson, agora Deputy Director for Science, Outreach and Policy dos
NIH, se encontraram com os Lacks para discutir o que poderia ser feito com os dados do genoma da linha celular da sua
matriarca.
Assim, em 8 de agosto, Hudson e Collins25 anunciaram
que haviam alcançado um acordo, em que a família tinha o
direito de endossar ou não essa informação, em análise caso
a caso e sujeita a aprovação de um comité, que inclui membros da família. Este acordo veio abrir um precedente importante e dar origem aquilo que poderá ser um novo paradigma de processo de consentimento informado para situações
semelhantes. Ou seja, de meros “sujeitos” à investigação, os
doentes e familiares passaram a ter voz ativa, transformando-se em verdadeiros participantes da investigação.
O esbatimento da fronteira entre
investigação e cuidados de saúde
Como este caso da sequenciação das células HeLa tão
bem demonstra, com a ngs diluiu-se ou desfez-se mesmo a
barreira entre a investigação e as aplicações clínicas. Uma das
regras de ouro (nem sempre respeitada e por vezes até contestada), é que resultados saídos da investigação (básica ou
clínica) não devem ser entregues aos doentes ou sujeitos da
investigação, sem validação clínica. Isto porque a investigação não obedece às mesmas regras estritas de qualidade que
o contexto de diagnóstico ou intervenção clínica precisa ter
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
(um erro em investigação não tem consequências tão graves
como um erro na sua aplicação clínica).
A translação da investigação para a clínica implica procedimentos próprios, que incluem a avaliação de novas tecnologias de saúde (apreciação da sua validade analítica e das suas
validade e utilidade clínicas, para além das potenciais implicações éticas sociais e legais da sua aplicação). Um resultado
obtido em contexto de investigação necessita de validação e
replicação em contexto clínico, estudos na população específica onde a aplicação vai ser feita (fundamental em genética
humana) e tempo para adaptação à prática clínica26,27.
Esbatimento da fronteira entre
biobancos e bases de dados genéticos
Muitos países têm desenvolvido grandes esforços para o
desenvolvimento de bancos de produtos biológicos de grande dimensão (ou mesmo tendencialmente de toda a população). Estes são instrumentos importantíssimos para investigação (genética e outra) e tem sido alvo de numerosas recomendações internacionais (como as da ocde28), regulamentação ou mesmo legislação nacional.
Uma das questões mais debatidas, no entanto, é a do
consentimento alargado para todo o tipo de investigação (e
não de projetos, doenças ou objetivos específicos). Outra, tem
sido o armazenamento e proteção dos produtos biológicos,
por um lado, e da informação derivada dessa investigação,
por outro.
Tratando–se da informação de genomas completos, desaparece a diferença entre essas proteções. Uma vez o genoma sequenciado, o armazenamento de dna e material biológico de onde foi extraído deixa de ter utilidade. A questão fica
centrada na sequência do dna, na informação genética.
No entanto, tratando-se de grandes projetos (como o dos
“mil genomas” do uk) as necessidades de armazenamento da
informação, a nível informático, podem ser tremendas. Dada
a progressiva baixa de custos da sequenciação e os custos da
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PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
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conservação informática de enormes volumes de informação
genética (para estudos ou aplicações clínicas posteriores),
pode ficar mais barato descartar o material biológico, ou até
a informação genómica não utilizada, e sequenciar de novo
esses genomas, se e quando necessário.
Privacidade e confidencialidade e fim da
anonimização irreversível dos dados
Outro aspeto importante da sequenciação de genomas
(ou exomas) completos para a investigação, é que cada genoma humano, sendo único, qualquer amostra biológica ou dados genéticos armazenados, mesmo desprovidos de qualquer
identificação (anonimizados), podem potencialmente ser ligados ao sujeito (mediante a análise de nova amostra, colhida de novo ou já existente noutro local).
Assim, a privacidade das pessoas e a confidencialidade
dos dados terão de ser reforçados, pois deixará de poder falar-se, de facto, de anonimização irreversível.
Aplicações da NGS à prática clínica
Todas as novas tecnologias, sobretudo as mais prometedoras e potencialmente lucrativas, tendem a queimar etapas
e a entrar de imediato (ou demasiado precocemente) nos cuidados de saúde. A ngs não é exceção e é já hoje utilizada em
vários laboratórios clínicos, para sequenciação de exomas ou
genomas completos, sem que a sua avaliação como tecnologia de saúde tenha sido feita.
Esse tem sido o caso sobretudo de novas variantes do
DNA descritas como associadas a doenças humanas. A identificação dessas variantes tem vindo a ser comercializadas,
por vezes por venda direta através da internet, sem demonstração da sua validade, nem da sua relevância clínica. Tal
como descrito no Parecer nº 56/cnecv/2008 do cnecv29 e no
relatório que lhe serviu de base, a descoberta de novas va-
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riantes de susceptibilidade tem constituído um avanço extraordinário na compreensão de certas doenças, a nível dos
seus mecanismos fisiopatológicos, para melhor conhecimento da sua epidemiologia e diferenças de frequência em populações diversas.
No entanto, têm sido escassas aquelas que demonstraram algum significado e valor preditivo clínico (a maioria são
variantes usadas em farmacogenética, sobretudo para estratificação de doentes para prognóstico ou escolha de tratamento citostático). A questão principal é a etiologia multifactorial da vasta maioria das doenças comuns, sendo que cada
um dos factores, conhecidos ou suspeitos, genéticos ou ambientais, tem um impacto muito pequeno e, portanto, não
têm, em regra, qualquer valor preditivo a nível individual30.
Sobrevalorização dos testes genéticos de
suscetibilidades a doenças comuns
No entanto, sendo comuns, são estas doenças que mais
facilmente despertam o entusiasmo de cientistas (básicos e
clínicos) e interesses comerciais, para mais rapidamente se ultrapassarem as diversas fases entre as bancadas do laboratório e os cuidados de saúde. Muitas são as que de imediato
passam a aplicações clínicas, disponibilizadas por laboratórios públicos e privados (muitas vezes até através da venda
direta ao público), derrubando a barreira entre a investigação
e a clínica.
Alguns têm por isso chamado a estes testes genéticos
(que vão da pesquisa de ancestralidade, à nutrigenómica e
outras aplicações em saúde), “genética recreacional”31 ou
“horóscopos genéticos”32. Não se pode deixar de enfatizar, no
entanto, que deixar o doente (ou o consumidor) com um rol de
dados que não consegue valorizar, ou que por vezes interpreta até de forma antagónica, pode produzir ansiedade e levar precisamente aos comportamentos e à manutenção ou
aquisição de estilos de vida de risco que, à partida, se pretendiam modificar. A receita é, de qualquer modo, quase sem-
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PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
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pre a mesma: melhorar a alimentação, excluir ou diminuir hábitos alcoólicos e tabágicos, prevenir o stress, fazer exercício,
evitar o sedentarismo (prescrição geral para todos os cidadãos, tenham ou não feitos esses testes genéticos, tenham ou
não essas ou outras variantes de suscetibilidade). Ou seja, não
só não há benefícios evidentes, porque o seu valor preditivo
é baixo ou nulo, como há gastos desnecessários e pode haver
até prejuízos potenciais para a sua saúde.
Esta foi uma das razões principais que levou recentemente a fda (Food and Drug Administration, www.fda.gov)
a proibir a “23andMe”17 de continuar a vender testes genéticos diretamente ao consumidor (depois de terem sido vendidos já meio milhão de testes)33, já depois de outras tentativas
de regulamentação nos Estados de Nova Iorque e da Califórnia, e do gao (Government Accountability Office)34.
Esbatimento da diferença entre
testes diagnósticos e testes preditivos
Um teste genético pode ser aplicado a qualquer idade
(neonatal, crianças e adolescentes, adultos mais jovens ou
mais idosos), durante a gravidez (diagnóstico pré-natal) ou
mesmo antes da implantação do zigoto no útero (diagnóstico genético pré-implantação), a pessoas individuais (pré-sintomáticos para doenças dominantes, de portador para doenças recessivas, de suscetibilidade para doenças comuns ou de
farmacogenética para resposta a medicamentos), ou a toda a
população ou grupo populacional determinado (rastreio genético)35.
Todos estes contextos são muito diferentes entre si, apesar de o ensaio analítico ser o mesmo, e têm por isso indicações médicas e validade e utilidade clínicas diversas para o
mesmo teste genético35. Cada teste (para cada doença, cada
gene e cada contexto) terá pois de ser avaliado em termos de
tecnologias de saúde.
No entanto, uma das diferenças principais em termos do
carácter sensível da informação genética é entre um teste diag-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
nóstico (para confirmação ou exclusão de um diagnóstico clínico numa pessoa já doente) ou um teste preditivo em pessoas
saudáveis, que podem ser familiares em risco de virem a ser
afetados com uma doença hereditária de início tardio (ou até
muito tardio), pais ou familiares saudáveis de pessoas com
doenças recessivas, ou pessoas que poderão vir a ser afetadas
com doenças comuns.
Porém, ao sequenciar e fornecer a informação de um genoma ou exoma inteiro, teremos acesso, simultaneamente, a
todos estes tipos de informação, diagnóstica e preditiva (incluindo para doenças que se poderão vir a manifestar mais
tarde ou nunca), o que implica questões éticas fundamentais
e importantes cuidados a ter36,37.
Questões éticas da introdução da
NGS em cuidados de saúde
Sendo que a sua aplicação na investigação tem dado resultados inquestionáveis, as aplicações clínicas da NGS são
ainda controversas e matéria de grande debate ético.
As implicações éticas, legais e sociais da sequenciação
dita de “nova geração” de (1) genomas ou de (2) exomas inteiros não são muito diferentes (à parte a quantidade de dados obtidos), pelo que serão tratadas em simultâneo. Já bem
diversa é a utilização da ngs para (3) painéis de genes em
doenças geneticamente muito heterogéneas, onde são utilizados filtros (ferramentas bioinformáticas) para extrair do genoma sequenciado apenas a informação genética previamente definida, considerada relevante para cada situação clínica.
A posição do American College of Medical Genetics and
Genomics (acmg)39 foi a de que a sequenciação clínica do
exoma/genoma, fornece a oportunidade de identificar e reportar achados “incidentais” ou secundários, não relacionados com a indicação médica primária, mas de valor médico
para os cuidados ao doente. Assim, recomendam que sejam
sempre procuradas e reportadas mutações específicas numa
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PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
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lista pré-determinada de genes, independentemente da idade do
doente. Ao mesmo tempo, o acmg reconhece que “não há ainda dados suficientes sobre a sua utilidade clínica, para apoiar
por completo” as suas próprias recomendações.
Significativamente diferentes são as recomendações da
European Society of Human Genetics (eshg)36. Nos próprios
eua, têm surgido numerosas posições críticas39,40 do documento do acmg, por abandonar princípios bem estabelecidos
como a autonomia do doente e o consentimento informado,
e por aproveitar a sequenciação do genoma com finalidades
diagnósticas numa oportunidade para rastrear todo o exoma/genoma.
A eshg36 sugere maior prudência nas aplicações da ngs,
afirmando que estes testes necessitam de justificação em termos de necessidade e de proporcionalidade. Alargar o âmbito de
um teste diagnóstico viola o critério da necessidade e impor
testes adicionais aos doentes que procuram uma resposta
para o problema clínico que os afeta transgride a sua autonomia. Por isso, a eshg favorece apenas a utilização de painéis de genes dirigidos à doença em questão.
Por outro lado, sequenciar todo o exoma/genoma (se se
tornar mais barato que testar um certo número de genes), trará de qualquer modo dados não-esperados e não solicitados,
pelo que não lhes poderemos chamar dados “incidentais”.
A eshg36 chama ainda a atenção para que variantes normais, variantes genéticas de significado patogénico desconhecido e variantes com pouca ou nenhuma utilidade clínica
não devem ser pesquisadas, nem reportadas. Esta posição vai
de encontro à que é assumida no Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo41 do Conselho da Europa sobre Testes Genéticos para Fins de Saúde42, de que estes testes genéticos devem “apenas ser efetuados após a sua utilidade clínica ter
sido provada e sob supervisão médica individualizada”.
A eshg36 recomenda ainda que sejam elaborados protocolos para guiar o relatório de achados não solicitados, que
guias para o consentimento informado (necessariamente
muito complexo nestas situações) comecem desde já a ser desenvolvidas e que os clínicos devem estar atentos para o po-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
tencial cruzamento entre investigação e aplicações clínicas. A
eshg refere ainda que são necessárias recomendações para
testes em menores por sequenciação do exoma/genoma, sobre quais os tipos de achados a reportar, devendo ser pesados
benefícios e riscos, de modo a equilibrar a autonomia e interesses da criança com os direitos dos pais e a necessidade de
informação, e que sejam no melhor interesse da família. Recomenda-se ainda que sejam desenvolvidos esforços internacionais para a manutenção de bases de dados sustentáveis
com informação fenotípica e genotípica de variantes cientificamente validadas. Finalmente, a eshg36 recomenda a educação em genética dos profissionais de saúde e o envolvimento da sociedade em geral em todo este debate.
Políticas públicas e testes genéticos na Europa
As novas tecnologias de sequenciação vêm agudizar criticamente a necessidade de regulamentação dos testes genéticos, particularmente para fins de saúde. Um dos princípios
fundamentais para essa regulação é a definição de teste genético e dos seus contextos de utilização possíveis35,43,44. Outro
é a avaliação de tecnologias de saúde para testes genéticos45,
primeiro desenvolvida nos Centers for Disease Control and
Prevention (cdc, em Atlanta, GA, eua) e mais conhecida
como a roda acce46 (validade analítica, validade clínica, utilidade clínica e aspetos éticos, legais e sociais), a qual tem já
sofrido desenvolvimentos posteriores47. Foi primeiro aplicada no Reino Unido, pela uk Genetics Network – os “Gene
Dossiers”48, e está agora a ser implementada na Europa pelo
EuroGentest e a eshg – os “Clinical Utility Gene Cards”49, publicados numa secção específica do European Journal of Human Genetics e mantidos nos seus arquivos em linha50.
Estes instrumentos estão assim à disposição das autoridades de saúde que queiram regular os testes genéticos, por
exemplo pagando ou reembolsando apenas, no sistema nacional de saúde, aqueles que têm validade e utilidade clínica
comprovadas (como já é feito no Reino Unido).
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O EuroGentest (www.eurogentest.org) é uma rede de excelência do 6º e 7º Programas Quadro (EuroGentest2), da Comissão Europeia, visando a harmonização e a promoção da
qualidade dos testes genéticos na Europa. Muitos dos seus
principais objetivos têm vindo a ser continuados e prosseguidos pela ESHG.
Recentemente, formou-se o European Board of Medical
Genetics (ebmg, www.eshg.org), que está já a fazer a acreditação dos programas nacionais e a credenciação a nível europeu dos profissionais de genética médica: (1) médicos geneticistas, (2) profissionais (não-médicos) de aconselhamento
genético e (3) geneticistas laboratoriais.
Um instrumento fundamental para garantir a qualidade
dos testes genéticos e manter a confiança do público é o controle externo de qualidade (como através da European Molecular Genetics Network, emqn51) e da sua acreditação, como
pela norma iso 15189 (a mais indicada e exigente para laboratórios clínicos), e pelo licenciamento pelas entidades de
saúde dos laboratórios que cumpram aqueles requisitos. A
acreditação dos laboratórios de genética médica é recomendada especificamente pela ocde52 aos governos e agências de
regulação como “o procedimento eficaz de garantir a sua qualidade”. Muitos países exigem já que só laboratórios acreditados possam disponibilizar testes genéticos no âmbito do
sns.
Testes genéticos e doenças raras
Outra forma de regular a prática da genética médica e
dos testes genéticos tem sido pela via das doenças raras. Na
Europa, “doença rara” é definida como aquela que afeta menos de uma em cada 2.000 pessoas; apesar de (individualmente) raras, são mais de 8 mil doenças que afetam no seu
conjunto 6-8% da população; 80% são de etiologia genética. A
orphanet (www.orpha.net) reúne, num único sítio, informação credível, cientificamente validada, sobre doenças raras
e medicamentos órfãos, e mantem (com a eshg) um diretório
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
dos laboratórios acreditados ou que fazem controle de qualidade externo para cada doença.
O Conselho Europeu (ue)53, em 2009, recomendou que
em todos os Estados-Membros fossem “elaborados e adotados um plano ou estratégia tão cedo quanto possível, de preferência antes do final de 2013 o mais tardar, com o objetivo
de guiar e estruturar ações relevantes no campo das doenças
raras no quadro dos seus sistemas de saúde e social”.
A Diretiva Europeia para os ivds54, que está em revi55
são , vai aumentar a classificação de risco dos testes genéticos
e virá obrigar os laboratórios de genética médica a usar kits
comerciais com marca CE ou que todos aqueles que façam testes in house (“home-brews”), disponibilizados fora da própria
instituição onde são realizados, sejam acreditados pelo organismo nacional competente (em Portugal, o ipac – Instituto
Português de Acreditação56).
Políticas públicas, testes genéticos e
doenças raras em Portugal
Portugal possui uma especialidade de genética médica
reconhecida pela Ordem dos Médicos, já desde 1999 (ao contrário do que acontece ainda com outros países europeus
como a Espanha, a Bélgica, a Grécia e outros). A especialidade médica também já foi reconhecida a nível europeu. Portugal possui ainda um dos cinco programas europeus de formação de profissionais de aconselhamento genético acreditados pelo ebmg; também o programa português para a especialidade de genética laboratorial clínica foi já aprovado
pelo ebmg. Estas duas últimas profissões estão em vias de reconhecimento pela Comissão Europeia, para certificação posterior (a nível europeu) dos profissionais pelo ebmg.
Apesar de ter aprovado uma das primeiras leis anti-discriminação genética (Lei 12/2005, “Lei da Informação Genética”)57 – apresentada e aprovada na generalidade no Parlamento ainda em 2002 (embora não tenha chegado à aprovação na especialidade, por queda do governo de então) – Por-
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PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
–97–
tugal não fez ainda a regulamentação dessa lei, nem publicou
ainda a portaria de licenciamento dos laboratórios de genética clínica (cujas propostas de diplomas foram elaboradas e revistas por grupos de peritos, há muitos anos), e que deveriam
fazer, respetivamente: a regulação da oferta dos testes genéticos e da sua qualidade, e a regulação dos biobancos e bases
de dados genéticos; e o licenciamento dos laboratórios de genética médica. Além de leis gerais sobre biotecnologia ou de
proteção de dados, apenas foram ainda aprovadas leis específicas sobre testes genéticos na Áustria (1995, revista em
2005), Portugal (2005), Suécia (2006), Suíça (2007), eua (2008),
Alemanha (2009) e República Checa (2012)58.
Em Portugal, o Plano Nacional das Doenças Raras
(pndr)59 foi elaborado e publicado em novembro de 2008
(ainda antes da Recomendação do Conselho Europeu e logo
a seguir à França); em 2010, é publicado um documento da
Rede Nacional de Centro de Referência para Doenças Raras
(crdr)60. No entanto, nem as principais medidas do pndr foram ainda adotadas, nem os crdr (e sua Rede) foram ainda
criados.
Ao contrário de muitos outros países, não existe ainda
um Registo Nacional de Doenças Raras, instrumento importantíssimo para a investigação e o planeamento de cuidados
de saúde nas doenças raras. Portugal não aderiu ainda ao “International Rare Diseases Research Consortium” (irdirc,
www.irdirc.org), o qual tem sido um instrumento fundamental para o financiamento da organização e da investigação em doenças raras.
A orphanet-Portugal (www.orpha.net/national/pt-pt)
faz o levantamento e atualização dos recursos existentes no
país (centros especializados, laboratórios de qualidade verificada, testes genéticos executados no país, profissionais de
saúde envolvidos, registos de doenças raras, associações de
doentes e medicamentos órfãos aprovados pelo infarmed e
disponíveis em Portugal), além de criar, traduzir e divulgar
informação sobre doenças raras para profissionais de saúde,
bem como para doentes e familiares e público em geral.
–98–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Os principais desafios e necessidades
As tecnologias de “nova geração” para sequenciação de
exomas ou genomas completos, sendo cada vez mais acessíveis, mais baratas e mais utilizadas para fins clínicos, vêm
ampliar agora imensamente e agravar as questões profissionais e os desafios éticos, legais e sociais na execução de testes
genéticos, sobretudo para fins de saúde, e tornar ainda mais
necessárias e urgentes as medidas de regulação, há muito
adiadas.
Sem regulação eficaz, cada vez mais testes desnecessários ou sem utilidade clínica serão executados (com muito
maior dispêndio dos recursos já escassos). Cada vez mais testes serão enviados para o estrangeiro (sem garantia de qualidade ou mesmo do local onde são feitos – são muitas vezes
subcontratados a intermediários, que os subcontratam de
novo), quando já são executados no país. E cada vez mais a
NGS será usada para sequenciar exomas, genomas ou mesmo
painéis de genes sem validade e utilidade clínica comprovadas, ultrapassando indicações e a prescrição médicas individualizada, bem como o aconselhamento genético apropriado,
inclusivamente por venda direta ao consumidor.
A regulamentação da Lei 12/2005, a portaria de licenciamento dos laboratórios de genética médica (com propostas
já elaborados e pareceres obtidos) e a ratificação do Protocolo Adicional, de 2008, do Conselho da Europa sobre Testes
Genéticos para Fins de Saúde, são fundamentais e urgentes
para a regulação dos testes genéticos, e que aguardam apenas
a oportunidade e a vontade política necessárias e indispensáveis.•
TECNOLOGIAS DE “NOVA GERAÇÃO” PARA SEQUENCIAÇÃO DE GENOMAS COMPLETOS: POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA TESTES GENÉTICOS RELACIONADOS COM A SAÚDE | JORGE SEQUEIROS
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–105–
Apreciação bioética da prática e das
políticas públicas sobre
terapêuticas não convencionais
José Germano de Sousa
1. As Terapêuticas não convencionais,
também ditas Medicinas Alternativas
As práticas com intenção terapêutica denominadas na
legislação portuguesa como Terapêuticas Não Convencionais
(tnc), também conhecidas como Medicinas Alternativas, englobam na sua quase totalidade terapias que, embora pretendam constituir alternativa à medicina, baseiam-se em filosofias esotéricas sem base científica, não demonstram evidência da sua eficácia clínica e rondam por vezes o charlatanismo. Ressalve-se que algumas práticas manipulatórias
músculo-esqueléticas próprias da osteopatia e da quiropráxia, foram em alguns casos demonstradas úteis pela medicina científica1, pese embora o absurdo das teorias sobre a etiologia da doença que estiveram na sua origem2.
1. A Medicina científica é depreciativamente designada por Alopática (de
állos “diferente” e páthos “sofrimento”), pelos homeopatas, querendo com
isso significar que trata os doentes com substâncias que tem uma acção que
contraria os sintomas que apresentam.
2. Em 1873 o “endireita” americano ANDREW TAYLOR STILL viu 3 dos
seus filhos morrerem com meningite, na qual um dos sintomas é a rigidez
da coluna cervical. Insatisfeito com a Medicina de então que deixara morrer os seus filhos, desenvolveu a teoria de que todas as doenças se deveriam
a problemas nos músculos e articulações, que, se resolvidas, devolveriam
a saúde a toda a gente! Estava lançada a osteopatia. Na mesma altura o comerciante DANIEL DAVID PALMER inventou a quiropráxia. Esta corren-
–106–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Entre as tnc avultam a “Medicina Tradicional Chinesa”
(mtc) ou “Medicina Oriental”, a Homeopatia e a Naturopatia. A mtc integra um conjunto de práticas tradicionais de medicina popular envolvidos numa filosofia mística baseada na
ideia de que uma energia vital somática (chi ou qi) circula em
12 canais (os meridianos) com ramos ligados aos órgãos, alguns deles nem sequer existentes. Não se baseia em nenhum
conceito científico de fisiologia, bioquímica ou nutrição. A
doença seria devida a um desequilíbrio ou interrupção do fluxo da energia vital, sendo em especial a acupunctura, o uso
de várias ervas e o Qigong3, as armas terapêuticas que restaurariam esse fluxo. A mtc surgiu numa sociedade que rejeitava qualquer tipo de dissecação humana pelo que desenvolveu um modelo de anatomia humana imaginário. Assim
e por exemplo, tal como o ano tem 365 dias, o corpo humano
teria 365 partes distintas a que corresponderiam pontos bem
determinados na pele (os 365 pontos originais evoluíram actualmente para 2.000). A inserção de agulhas finas de aço nesses pontos seria curativa pois permitiria equilibrar o Chi. Os
acupuncturistas modernos perceberam que não era possível
validar a existência de meridianos ou de chi pelo que procuraram desenvolver uma teoria científica que explicasse algumas situações em que aparentemente a acupunctura funcionava. Alguns estudos demonstraram que a acupunctura libertava endorfinas pelo cérebro as quais teriam um efeito
analgésico. As situações que melhor responderiam à acupunctura seriam a dor crónica (costas e pescoço), dores musculares, úlceras, cólon irritável, hiper e hipotensão, frigidez,
impotência, paralisias várias, surdez, toxicomanias (tabaco
incluído). Todas estas pretensões terapêuticas são na sua quase totalidade resultantes apenas de observações individuais
ou de estudos defeituosos do ponto de vista metodológico)
te utilizando conceitos metafísicos e não fundamentados do ponto de vista científico, pretendia também curar todas as doenças pela correcção dos
defeitos de posicionamento das vértebras apontando as subluxações das articulações vertebrais (que não se sabe bem o que sejam) como responsáveis
por todas as doenças!
3. Exercício ou terapêutica que se pretende restauradora do Chi que envolve técnicas de respiração, movimentos fluidos e posturas imitando posições animais, técnicas de meditação e relaxamento.
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
–107–
não ultrapassam o mero efeito placebo quando submetidas ao
rigor do método científico, sendo duvidosa a evidência da eficácia terapêutica da acupunctura. A prová-lo os resultados e
conclusões de inúmeras meta-análises e ensaios clínicos dos
quais aqui se dá conta de uma pequena parte, sendo impossível referir todos: Melzack e Katz4 em 1984 demonstram a
que acupunctura auricular “não é um processo terapêutico
efectivo no tratamento da dor crónica”. Em 1985 Ballegaard
e colaboradores5 provam a ineficácia da acupunctura no tratamento da dor associada à pancreatite crónica. Riet et all6 em
1990 publicam uma meta-análise de 51 estudos clínicos controlados sobre acupunctura e dor crónica e concluem que a
eficácia da acupunctura no tratamento da dor crónica não é
superior ao placebo. Os mesmos autores, numa meta-análise
de 22 estudos clínicos controlados, sobre a eficácia da acupunctura em três campos de dependência (tabaco, heroína e
álcool), chegam à conclusão que a eficácia da acupunctura
nestas dependências não é suportada pela investigação clínica7. Em 1991 Kleijnen et all8 provam que “as pretensões de
que a acupunctura é efectiva no tratamento da asma não se
baseiam nos resultados de ensaios clínicos bem executados”.
Gunilla Gosman-Hedstrom9 e colaboradores, em 1998, demonstram que, ao contrário do que vários artigos chineses
mal estruturados pretendiam, o tratamento do avc por acu4. Melzack R, Katz J. Auriculotherapy fails to relieve chronic pain. A controlled
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–108–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
punctura era ineficaz na melhoria qualidade de vida e na capacidade de execução das actividades diárias destes doentes.
White e colaboradores10 numa meta análise sobre técnicas de
acupunctura para cessação do tabagismo não consideram que
a acupunctura obtenha qualquer resultado positivo neste
campo. Em 2000 Park e colaboradores11 concluem que a acupunctura não demonstrou ser eficaz no tratamento do tinitus.
Os mesmos autores12 concluem também que não há evidência que a mesma seja efectiva no tratamento do avc. Sze e
col.13 chegam à mesma conclusão. Lee e col.14 verificaram que
o efeito analgésico sobre a dor cancerosa era inexistente. Mesmo Kah Bik Cheong15 e colaboradores, da Escola de Medicina Tradicional Chinesa, da Universidade Médica do Sul em
Guangzhou ao fazerem em 2013 uma meta análise da eficácia
da acupunctura na prevenção e tratamento da náusea e vómito pos-operatório concluem apenas que a acupunctura
pode ser benéfica (não avaliam porém o efeito placebo) e que
a “evidência justifica futuros ensaios de elevada qualidade”.
Outras revisões sobre acupunctura e impotência, acupunctura e fertilização “in vitro” apresentam conclusões negativas.
O mesmo acontece com a D. Parkinson, Esclerose Lateral
Amiotrófica, Alzheimer, etc, etc16. No entanto uma meta-aná10. White AR, Resch K-L, Edzard E. A meta-analysis of acupuncture techniques
for smoking cessation. Tob Control 1999;8:393-397.
11. Park J, White AR, Ernst E. Efficacy of acupuncture as a treatment for tinnitus: a systematic review. Arch Otolaryngl Head Neck surg. 2000 Apr,126(4):
489-92.
12. Park J, Hopwood V, White AR, Ernst E. Effectiveness of acupuncture for
stroke: a systematic review. J Neurol. 2001 Jul; 248(7):558-63.
13. Sze FK, Wong E, Or KK, Lau J, Woo J. Does acupuncture improve motor recovery after stroke? A meta-analysis of randomized controlled trials. Stroke. 2002
Nov;33(11):2604-19.
14. Lee H, Schmidt K, Ernst E. Acupuncture for the relief of cancer-related
pain—a systematic review. Eur J Pain. 2005 Aug;9(4):437-44.
15. Kah Bik Cheong, Ji-ping Zhang, Yong Huang, Zhang-jin Zhang. The Effectiveness of Acupuncture in Prevention and Treatment of Postoperative Nausea
and Vomiting – A Systematic Review and Meta-Analysis. Plos One; December
13, 2013.
16. Em 1972, o Presidente dos Estados Unidos Richard Nixon assistiu na
China a cirurgias cuja anestesia era conseguida exclusivamente por acupunctura. Tudo não passou de um golpe de propaganda do regime maoísta que os jornalistas americanos engoliram como algo de extraordinário,
verdadeiros de “milagres de una ciência milenária”. Mais tarde, médicos de
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
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lise sobre o tratamento da cor crónica do joelho conclui pela
eficácia desta técnica em relação ao placebo17. Já antes um estudo semelhante concluía de forma positiva para a acupunctura18. Um outro de 2010 atribui ao efeito placebo alguns resultados estatisticamente positivos19. Do mesmo modo algumas meta análises recentes concluem pela existência de algum efeito analgésico na dor crónica, superior ao efeito placebo20,21,22. Mais tarde e em relação à acupunctura, a om tendo em linha de conta a existência de alguma possibilidade de
uma eventual efeito analgésico da acupunctura nas dores de
origem músculo esquelética decidiu criar a Competência em
Acupunctura permitindo aos médicos interessados a aquisição de conhecimentos sobre essa terapia, abordá-la cientificamente e simultaneamente evitar que a mesma fosse usada
como panaceia universal e aplicada indiscriminadamente a
todas as doenças ou sintomas.
Quanto à Homeopatia (do grego Homoios “similar” e
pathos “sofrimento”), é esta baseada nas elucubrações do médico alemão Samuel Hahnemann (1755-1843) que ao recusar
a teoria galénica dos humores vigente na época e as respectiShanghai, confessaram que os pacientes tinham sido previamente anestesiados com um anestésico injectável. Note-se a este propósito que no ocidente se têm levado a efeito pequenas cirurgias em doentes hipnotizados
que quando “acordam” dizem não ter sentido dor.
17. White A, Foster NE, Cummings M, Barlas P. Acupuncture treatment for
chronic knee pain: a systematic review. Rheumatology (Oxford). 2007 Mar;
46(3):384-90.
18. Ezzo J, Hadhazy V, Birch S, Lao L, Kaplan G, Hochberg M, Berman B.
Acupuncture for osteoarthritis of the knee: a systematic review. B.Arthritis
Rheum. 2001 Apr;44(4):819-25.
19. Manheimer E, Cheng K, Linde K, Lao L, Yoo J, Wieland S, van der Windt
DA, Berman BM, Bouter LM. Acupuncture for peripheral joint osteoarthritis.
Cochrane Database Syst Rev. 2010 Jan 20;(1): CD001977.
20. Kwon YD, Pittler MH, Ernst E. Acupuncture for peripheral joint osteoarthritis: a systematic review and meta-analysis. Rheumatology (Oxford). 2006
Nov;45(11):1331-7.
21. Madsen MV, Gøtzsche PC, Hróbjartsson A. Acupuncture treatment for
pain: systematic review of randomised clinical trials with acupuncture, placebo
acupuncture, and no acupuncture groups. BMJ. 2009 Jan 27;338: a311
22. Vickers AJ, Cronin AM, Maschino AC, Lewith G, MacPherson H, Foster NE, Sherman KJ, Witt CM, Linde K; Acupuncture Trialists’ Collaboration. Acupuncture for chronic pain: individual patient data meta-analysis. Arch
Intern Med. 2012 Oct 22;172(19):1444-53.
–110–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
vas terapêuticas (sangrias, purgas e clisteres e a administração de algumas mezinhas muito tóxicas) inventa um sistema
tão ineficaz como o outro. Após ter tomado chá de casca de
chinchona (rica em quinino) terá tido sintomas semelhantes
aos da malária23. A partir daí constrói a primeira lei do seu
sistema, a lei dos semelhantes: Simila similibus curentur, isto é,
o semelhante cura o semelhante, ou seja todas as substâncias
que em dose tóxica causam, num indivíduo saudável, sintomas semelhantes aos encontrados em determinada doença,
serão eficazes no tratamento de doentes com sintomas semelhantes. Porém, a necessidade de diminuir os efeitos tóxicos
resultantes da aplicação da lei dos semelhantes levou Hahnemann a diluir essas substâncias infinitesimalmente, agitando energicamente após cada diluição, pois acreditava que
quanto mais diluídas fossem as diluições e mais agitadas
mais efectivos se tornavam. Ora, em Química, está comprovada a existência de um limite de diluições a partir do qual o
produto inicial desaparece. Esse limite é dado pelo Número
de Avogrado. Este número corresponde ao número de átomos existente em qualquer molécula grama de uma substância, o qual é finito e constante, átomos esses que desaparecem
da diluição se esta ultrapassa esse número (6,022 141x1023).
Como explicar então que os produtos homeopáticos com diluições acima de d24 (1x1024) possam ser eficazes?24 Só com
muita imaginação esotérica! Assim e, por exemplo, confrontados com este facto científico irrefutável os homeopatas mais
uma vez recorreram à imaginação. Partindo de uma experiência científica levada a efeito pelo imunologista francês Be-
23. Sintomas que nunca foram reproduzidos em quem fez a mesma experiência, designadamente o médico americano Oliver Wendell Jones Senior
que em 1842 publicou o ensaio Homeopathy and its kindred delusions, demolidor para a homeopatia.
24. Um simples cálculo demonstra que para receber uma molécula da substância diluída 1x1030, o doente deveria consumir 30.000 litros da solução
homeopática. Imagine-se a água que o paciente deverá tomar para ingerir
a tal molécula considerando que muitos “medicamentos” homeopáticos
têm diluições que vão até um extremo de 1x10400
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
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neveniste25 que inicialmente publicada na Nature, se revelou
ser uma fraude e foi posteriormente desmascarada pelo próprio editor da revista, James Maddox e pelo ilusionista James
Randi, teorizaram a existência da memória da água. Segundo
esta teoria as moléculas de água ficariam com a memória das
substâncias que por ela teriam passado, mesmo quando nem
um átomo das mesmas exista nessa água! O que é, do ponto
de vista científico insustentável pois a água líquida não retém
redes ordenadas de moléculas mais do que uma fracção de
um nanosegundo!
A este propósito vale a pena recordar a ironia que, já no
século xix, um grande médico português, o Professor Sousa
Martins, dispensava à homeopatia quando recomendava aos
homeopatas que alimentassem os seus doentes com “Caldo
de frango homeopático”: – “Encha-se um tacho grande com
água. Faça-se incidir sobre a água a sombra de um frango durante 10 minutos. De seguida agite-se bem. Dilua-se uma colher de sopa dessa água mil vezes. Dessa diluição torne-se a
diluir outra colher mil vezes. Repita-se mais oito vezes. De seguida alimente-se o doente com o caldo final resultante com
a recomendação de não abusar...”26
Um artigo muito citado, nos meios homeopáticos, publicado em 1998 na “Lancet”27, pretendeu comprovar a eficácia da homeopatia. Não só não consegue cabalmente diferenciar os efeitos clínicos pretendidos, do efeito placebo como
se soube ter sido publicado nesta prestigiada revista inglesa
graças à influência do Príncipe Carlos, patrono desta modalidade. Em contrapartida um extenso estudo sobre os eventuais efeitos clínicos da homeopatia com 110 ensaios homeo-
25. E. Davenas, F. Beauvais, J. Amara, M. Oberbaum, B. Robinzon, A. Miadonnai, A. Tedeschi, B. Pomeranz, P. Fortner, P. Belon, J. Sainte-Laudy,
B. Poitevin & J. Benveniste. Human basophil degranulation triggered by very dilute antiserum against IgE. Nature 333, 816 – 818 (30 June 1988)
26. Em Medicinas Alternativas – Posição da Ordem dos Médicos frente às
propostas de lei do PS e BE em apreciação na generalidade na Comissão
Parlamentar de Saúde – Relator: Germano de Sousa. Lisboa, Maio 2001
27. Klaus Linde, Nicola Clausius, Gilbert Ramirez, Dieter Melchart, Prof
Florian Eitel, Larry V Hedges, Wayne B Jonas. Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? A meta-analysis of placebo-controlled trials, The Lancet, Volume 350, Issue 9081, Pages 834 – 843, 20 September 1997
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
páticos controlados comparados com 110 ensaios utilizando
terapêuticas da medicina científica28 conclui da ineficácia clínica da homeopatia. Muitos outros estudos parcelares sobre
a eficácia da homeopatia29-30-31, etc. e muitas outras metaanálises sobre o efeito da homeopatia são definitivos quanto
à inexistência de efeito curativo real desta terapêutica alternativa32.
Por sua vez a naturopatia é um sistema dito “médico”
que se pretende global, com raízes na Alemanha do século xix
e que proclama ajudar o corpo a curar-se a si mesmo, usando
dietas especiais e terapêuticas alternativas tais como a homeopatia, acupunctura, ervanária, terapêuticas manuais, aromaterapia, iridologia, etc. Se nada há a opor contra o velho
princípo hipocrático da “vis medicatrix naturae”, não se podem
aceitar terapêuticas que se revelam ineficazes quando passam
pelo crivo do método científico, como é o caso da acupunctura e ainda menos se aceitam práticas que rondam o charlatanismo como é o caso da homeopatia ou da aromaterapia, da
iridologia, da auriculoterapia, florais de Bach, etc. etc. Muito
menos é aceitável qualquer acto dito alternativo que possa ser
lesivo para os doentes quer directa, quer indirectamente por
omissão de terapêutica efectiva.
Quando em 1959 Charles Snow no livro de ensaios inti-
28. Shang A, Huwiler-Müntener K, Nartey L, Jüni P, Dörig S, Sterne JA,
Pewsner D, Egger M. Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects?
Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy, Lancet. 2005 Aug 27-Sep 2;366(9487):726-32.
29. Ernst E, Pittler MH. Efficacy of homeopathic arnica: a systematic review of
placebo-controlled clinical trials, Arch Surg. 1998 Nov; 133(11): 1187-90.
30. Ernst E. Homeopathy for eczema: a systematic review of controlled clinical
trials, Br J Dermatol. 2012 Jun;166(6):1170-2.
31. Milazzo S, Russell N Ernst E, Efficacy of homeopathic therapy in cancer
treatment, Eur J Cancer. 2006 Feb; 42(3): 282-9
32. A Cochrane Collaboration realizou uma revisão sistemática de vários
tratamentos homeopáticos (asma, demência, influenza, efeitos adversos
das terapêuticas oncológicas, déficit de atenção com hiperactividade. Apenas um, referente aos efeitos secund´ários da radio e quimioterapia concluiu que os resultados encontrados pareciam apontar para alguma positividade mas que eram preliminares e precisavam ser replicados. Todos os
outros deram resultados negativos em relação à eficácia da homeopatia.
(Cochrane Library at http://mrw.interscience.wiley.com/cochrane/cochrane_search_fs.html)
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
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tulado “Duas Culturas”33, questionou a cultura dita humanística por estar completamente afastada da cultura científica, jamais suspeitaria que nos últimos 20 anos do século e nas
primeiras décadas do século xxi se assistisse ao recrudescer
destas falsas ciências médicas, ditas alternativas, às quais e
apesar da epistemologia e dos ensinamentos de Popper,
Kuhn e Bachelard, a iliteracia científica permitiu dar foros de
cidadania. Quando as pessoas, mesmo que possuidoras de
um grau universitário, têm uma ideia confusa do que são moléculas, células, bactérias, genes, dna, oncogenes, metabolismo e, acima de tudo, não conhecem o que são o pensamento
e o método científicos, a investigação e o modo como ela é
aplicada, etc., facilmente admitem energias desconhecidas da
Física e dos físicos, cristais que curam, aromas que afastam a
doença, curas miraculosas do cancro, pó de pénis de tigre
para a cura da impotência, a memória da água das mezinhas
homeopáticas, a cura pela imposição das mãos e os diagnósticos feitos à base de filosofias orientais ou quejandas. Tudo
isto é mais agradável do que qualquer chata e comprovada
certeza científica da Medicina. E tudo isto, designadamente o
divórcio entre as duas culturas e a iliteracia científica, está na
base do desenvolvimento e aceitação social e legal destas
pseudo medicinas, inclusive por organismos dominados pelo
multiculturalismo e pela filosofia pós-moderna, como é o
caso da unesco34
2. A importância social da
preparação científica do médico
A defesa da saúde dos cidadãos é uma obrigação dos Estados de direito e das sociedades democráticas modernas.
Essa obrigação consubstancia-se na exigência de rigor na qualidade dos serviços de saúde prestados à comunidade, bem
como na vigilância e protecção desses mesmos cidadãos fren33. Charles Percy Snow, As duas culturas, Editorial Presença. Lisboa 1955
34. Unesco Report of the IBC on Traditional Medicine Systems and their
ethical implications. Paris, 8 February 2013
–114–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
te a práticas não científicas e lesivas, por acção ou omissão, da
sua integridade e do seu direito a uma saúde de qualidade.
Para tal essas sociedades consideraram ser necessário
exigir aos profissionais da arte de curar, ou seja aos médicos,
longos anos de formação científica e treino técnico e profissional, bem como um comportamento ético irrepreensível.
Assim, encarregaram as Universidades dessa formação,
exigindo que nela condensassem e integrassem todas as ciências básicas e específicas necessárias ao conhecimento do funcionamento normal do corpo e da mente humanas, das suas
alterações e doenças, de todos os processos e métodos de as
diagnosticar correctamente e de todos os métodos terapêuticos mais eficazes e adequados à cura dessas doenças. A partir deste corpo de saberes, as Faculdades de Medicina, durante 6 anos, formam e graduam licenciados, assim garantindo que os cidadãos podem confiar na sua preparação científica.
Aos hospitais e ao seu corpo de médicos seniores, cabe
por sua vez o treino técnico e profissional dos jovens médicos.
Após a entrada para o Internato da Especialidade escolhida
praticam medicina em geral durante um ano (ano comum a
todas as especialidades) transitando de seguida para a prática específica da área escolhida onde durante 4, 5 ou mais anos
aperfeiçoam e especializam os seus conhecimentos.
Por sua vez, a Ordem dos Médicos, associação profissional a que obrigatoriamente pertencem, vela para que a sua
formação seja a mais adequada, tanto mais que será a responsável pela avaliação final do seu treino, atribuindo-lhe ou
não o título de especialista, conforme o resultado dessa avaliação. Depois, no uso das funções que lhe foram atribuídas
pelo Estado, assegura e regula o seu comportamento profissional, ético e deontológico.
Todo este rigor científico e este esforço são obrigatórios
para que alguém possa ser considerado responsável pela saúde dos cidadãos que a ele se confiam. Tudo isto é necessário
para que alguém possa ser considerado suficientemente capaz para fazer diagnósticos e prognósticos ou para executar
ou prescrever terapêuticas que contribuam para o bem-estar
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
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físico e mental do indivíduo doente. Tudo isto lhe exige a sociedade e o Estado, o qual se obriga a defender o cidadão
doente, inclusive o que é levado a acreditar em diagnósticos
fantasiosos, promessas de curas fáceis ou até miraculosas, e
aceita seguir pseudo tratamentos que mesmo quando inócuos, impedem ou atrasam o tratamento mais adequado às
sua queixas35.
3. As Leis que aprovaram e regulam as TNC
Apesar do esforço desenvolvido, então, pela Ordem dos
Médicos no sentido de esclarecer os deputados de todos os
partidos políticos com assento no Parlamento da inexistência
de bases científicas e de evidência clínica das terapêuticas
“não convencionais ou alternativas”, em 15 de Julho de 2003
o parlamento português aprovou por unanimidade a Lei nº
45/2003 – Lei do Enquadramento Base das Terapêuticas Não
Convencionais (tnc)36. Esta Lei, resultante da revisão de um
conjunto de projectos apresentados inicialmente em 1999 pelo
be e depois pelo ps, pretendia dar foros de cidadania e regulamentar seis sistemas de terapêuticas alternativas37: acupunctura, homeopatia, osteopatia, quiroprática, naturopatia
e fitoterapia. No seu artigo 8º criava uma Comissão Técnica
Consultiva com o objectivo de “estudar e propor os parâmetros gerais de regulamentação do exercício das terapêuticas
não convencionais”, competindo ao “Governo regulamentar
as competências, o funcionamento e a composição da comissão”. Constituída em Maio de 200438, foram necessários quase quatro anos para essa Comissão terminar as suas funções.
As razões para tal demora, radicaram na dificuldade de os re-
35. Em Medicinas Alternativas – Posição da Ordem dos Médicos frente às
propostas de lei do PS e BE em apreciação na generalidade na Comissão
Parlamentar de Saúde – Relator: Germano de Sousa. Lisboa, Maio 2001
36. Publicada depois em Diário da República a 22 de Agosto de 2003
37. Também designadas por Medicinas não convencionais, Medicinas alternativas e Pseudo-medicinas
38. DR, I Série -A, nº 193, p. 5391)
–116–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
presentantes das diversas tnc se entenderem no que respeitava a exigências de formação e qualidade. Concluídos os trabalhos foram estes submetidos à Direcção Geral de Saúde
(dgs), que colocou os textos finais em discussão pública. No
entanto as tnc só vieram a ser regulamentadas em Setembro
de 2013, ou seja 10 anos depois, o que foi muito conveniente
para vários grupos dos seus praticantes que preferiam manter um estatuto marginal a verem-se confrontados com qualquer regulamento condicionante da sua prática, por ínfimo
que fosse. Por absurdo que pareça cada grupo de tnc chegou
a reivindicar a constituição da sua própria Ordem profissional de modo a criarem as suas próprias regras de auto-regulação e não se submeterem às regras mínimas de certificação
e de defesa do direito de quem os procura a uma escolha informada e a uma ética de defesa do bem estar do utilizador,
regras que a Ordem dos Médicos conseguiu introduzir na feitura da Lei, para além de moderar os exageros propostos pelo
be que até queria ver comparticipados pelo Estado os produtos utilizados pelas tnc.
Interessantemente, o que deveria ter sido apenas uma
simples regulamentação prevista como tal na Lei 45/2003,
transformou-se na prática num instrumento legal que revia e
alterava a Lei da qual decorria. Na realidade a Lei 71/2013 de
2 de Setembro, não só acrescenta uma nova tnc: a Medicina
Tradicional Chinesa, assim mesmo designada e não como Terapêutica Tradicional Chinesa, e ao contrário da Lei anterior,
omissa a esse respeito, admite (art.º 1º) o exercício das tnc no
sector público e usa o termo “direcção clínica” para adjectivar
o profissional do sector responsável pelos locais de prestação
de tnc o que poderá induzir em erro os utilizadores quanto
às reais habilitações dos profissionais em causa.
De qualquer forma a partir de Setembro de 2013 as tnc,
graças ao entendimento unânime da mais alta instância legislativa, passaram a integrar o todo das políticas públicas
definidas para a saúde.
Por isso qualquer legislação que autorize a quem não
passar pelo crivo das Escolas médicas e portanto sem preparação científica adequada, ser considerado apto a fazer diag-
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
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nósticos de forma autónoma, e aplicar terapêuticas altamente discutíveis, deve ser escrutinada do ponto de vista ético.
4. Apreciação bioética da
Legislação e da prática das TNC
Do ponto de vista ético deverão estas práticas clinicamente ineficazes, baseadas em teorias e sistemas e filosofias
esotéricas e teorias absurdas sem sustentação científica, serem
aceites e reconhecidas pelo Parlamento de uma sociedade que
se quer moderna e progressiva? Argumentar-se-á naturalmente que no respeito do princípio da autonomia os cidadãos
têm direito à livre escolha das terapêuticas (ou pseudo-terapêuticas) e dos terapeutas que entenderem, direito esse salvaguardado pela Lei 45/2003, que no nº1 do seu art. 13º, considera que “os cidadãos têm direito a escolher livremente as
terapêuticas que entenderem”.. Porém o nº2 do mesmo artigo ao aparentemente defender o consentimento informado
(“Os profissionais das terapêuticas não convencionais só podem praticar actos com o consentimento informado do utilizador”), deixa essa informação ao cuidado dos enviesamentos e crenças dos próprios prestadores de cuidados. É certo
que a Lei 71/2013 veio, no nº 4 do seu art.º 9, dispor que “Os
profissionais das terapêuticas não convencionais não podem
alegar falsamente que os actos que praticam são capazes de
curar doenças, disfunções e malformações”. Deveria no entanto referir a obrigação de ser prestada unicamente a informação que decorre da evidência científica existente. Doutro
modo os prestadores dessas terapêuticas refugiam-se em observações individuais e ensaios mal desenhados e mal executados e sem valor quando submetidos ao rigor do método
científico. Como se a lei permitisse estender o manto diáfano
da fantasia sobre a luz da ciência e com isso ficasse aliviada
a consciência ética dos legisladores. Acresce que, embora a
Lei 71/2013 proíba a comercialização de produtos próprios
dessas terapêuticas nos locais onde é feita a prestação das
mesmas, uma e outra Lei são omissas relativamente ao dever
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
ético que o farmacêutico ou o dispensador dos mesmos tem
de informar os utilizadores da sua composição, eficácia (ou
falta dela) e dos seus eventuais efeitos secundários, tão frequentes nas mezinhas fitoterapêuticas.
E o princípio da não maleficência? Respeitarão as tnc o
hipocrático dever de “primum non nocere”? Se, como na homeopatia e na acupunctura é implausível, pela sua ineficácia,
temer que este princípio seja infringido, pois apenas os seus
efeitos placebo poderão eventualmente ser aparentes, já se
não poderá dizer o mesmo de alguns medicamentos fitoterápicos. Muitas das ervas e produtos vegetais que os praticantes da fitoterapia utilizam ou não têm real eficácia clínica ou
têm efeitos e acções que não foram ainda estudados ou demonstrados e que em muitos casos são nocivos para o utilizador39. Acresce que os praticantes das tnc infringem também gravemente o principio da não maleficência quando,
pela falta de formação médica suficiente, não reconhecem situações clínicas de real gravidade e prescrevem as suas ineficazes “terapêuticas”, induzindo no doente uma falsa segurança que se revela muitas vezes fatal ou altamente lesiva
para este, pois não recorre à medicina científica ou fá-lo muito tardiamente. E se esta situação é eticamente inaceitável
mais grave é a posição sustentada por alguns praticantes de
tnc que convencem os doentes que os seus métodos lhes curarão o cancro deste ou daquele órgão, a sida, ou os convencem a recusarem aos seus filhos a vacinação contra inúmeras
doenças infecciosas, invocando imaginários horrores que teriam como causa as vacinas, etc.
Quanto ao princípio da beneficência, este supõe que o
médico possui uma formação e os conhecimentos que o doente necessita e como tal são eticamente obrigados a prestar cuidados baseados na melhor evidência científica e de eficácia
demonstrada. Do mesmo modo, o “soi disant” terapeuta al39. Se por um lado uma grande proporção de acontecimentos indesejáveis
é devida a falsificações, impurezas e falta de controle da qualidade, em
muitos produtos fitoterapeuticos têm sido demonstrada a existência de
substâncias tóxicas e cancerígenas bem como a interferência nos níveis
plasmáticos de vários medicamentos por activação ou inibição do citocromo-P450
APRECIAÇÃO BIOÉTICA DA PRÁTICA E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE TERAPEUTICAS NÃO CONVENCIONAIS
JOSÉ GERMANO DE SOUSA
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ternativo terá a mesmo mandato ético, sendo obrigado ao respeito pelo princípio da beneficência em relação a quem o procura buscando cura para os seus males. Tudo seria perfeito se
não se desse o facto iniludível de, à luz da evidência científica, as “terapêuticas” utilizadas serem ineficazes não possuindo enquanto tal nenhuma característica que permita ao
terapeuta arvorar a sua acção como beneficente. Poder-se-á
argumentar que o efeito placebo, demonstrado existir em várias das tnc, é benéfico. No entanto convém não esquecer que
esse efeito placebo é, em muitos casos, muito dispendioso havendo alternativas bem menos custosas40. Vejam-se os elevados preços a que são vendidas os produtos homeopáticos,
embora nada mais sejam, na quase totalidade dos casos que
água ou uma solução alcoólica. Ademais, o efeito placebo é
apenas psicológico não existindo correspondência clínica e fisiológica real, tal como foi demonstrado por Hróbjartsson e
Gøtzsche41, ou por Kaptchuk e col42.
5. Conclusão
Independentemente do absurdo das teorias que as sustentam, a apreciação bioética das tnc, deve ser baseada numa
visão utilitarista, isto é, em função da demonstração científica da sua eficácia clínica em determinadas patologias e apenas nessas, tal como foi já referido a propósito da acupunctura e das técnicas de manipulação osteopática e quiropática
executam, na minoração de sintomas específicos músculo esqueléticos. Assim e concretamente nessas situações, desde
que os tratamentos executados sejam executadas como con40. Quando jovem médico prescrevi muitas vezes, em casos de evidente hipocondria ou sintomas de ordem psico-somática, um placebo barato: pérolas de Micapannis. Estas eram cuidadosamente feitas nas farmácias e
nada mais eram do que pequenas bolinhas de pão envolvidas em açúcar.
41. Asbjørn Hróbjartsson, M.D., and Peter C. Gøtzsche, M.D. Is the Placebo
Powerless? — An Analysis of Clinical Trials Comparing Placebo with No Treatment.. N Engl J Med 2001; 344:1594-1602 May 24, 2001
42. Wechsler ME, Kelley JM, Boyd IO, Dutile S, Marigowda G, Kirsch I, Israel E, & Kaptchuk TJ (2011). Active albuterol or placebo, sham acupuncture, or
no intervention in asthma. N Engl J M, 365 (2), 119-26
–120–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
sequência de um diagnóstico e prescrição médicas, a sua utilização é, do ponto de vista bioético positiva. Desse modo e ao
contrário do que a legislação propugna, a profissão de acupunctor, osteopata ou quiropata deve ser regulada e praticada como profissão complementar da Medicina e não como
profissão autónoma. Quanto às restantes tnc, pela sua ineficácia clínica não se recomenda a sua prática nem considera
eticamente útil a existência de leis permissivas, antes se recomendando medidas restritivas da sua existência.•
–121–
Responsabilidade e poder nas
políticas e nos cuidados de saúde:
a participação como imperativo
Lucília Nunes
I.
Numa conversa ocasional, de café, de corredor, uma das
perguntas frequentes que fazemos uns aos outros, quando
nos encontramos, parece ser sobre a saúde ou o estado geral
– assume formas diversas desde «como tens andado?», a
«como estás?», «como vais?» ou «está tudo bem?». Verdade
que nem sempre pensamos que ao fazer a pergunta, que pode
ser por polidez ou manifestação de delicadeza, o foco da nossa atenção é o bem estar do Outro. E se as respostas variam
também, entre o “vamos andando”, “vai-se indo”, “tudo
bem” ou se abre a porta à narrativa de algum episódio pessoal, a mútua preocupação humana com a saúde nem é dispicienda, nem superficial.
A saúde é reconhecida como uma das dimensões da qualidade de vida e recurso para o desenvolvimento pessoal, social, cultural e económico. E podemos chegar a esta primeira
ideia por dois caminhos: a partir da dignidade humana e a
partir das capacidades humanas (e eventualmente por outras
abordagens, mas preferimos estas).
Vejamos que cada pessoa é única, insubstituível, dotada
de dignidade; dito de outra forma, a dignidade humana é ine-
–122–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
rente à pessoa, como se afirma desde Kant1, considerando que
a pessoa tem valor absoluto e é um fim em si mesma. Estamos
antes da linguagem dos direitos (como será o direito ao respeito pela dignidade humana, que é da esfera do jurídico)
pois a dignidade humana é anterior, antecede e fundamenta
os direitos humanos, como afirma Habermas, sendo que aos
direitos (no seu conjunto e na relação entre si) cabe “satisfazer politicamente a promessa moral de respeitar a dignidade
humana”2. Apreciamos esta relação interna entre dignidade
humana e direitos humanos, também enquanto modo de
ponderar a construção de ordens políticas mais justas3. A ideia de
respeitar a dignidade humana se constitui como uma promessa moral que se materializa nas leis4, nas políticas e nas
práticas.
Da dignidade humana deduzimos habitualmente a proteção da vida e, a partir desta, inclusa e inerente, a proteção
da saúde. Pode assim pensar-se que o desiderato do mais elevado nível de saúde constitui tanto uma questão de justiça e de
humanismo como uma obrigação dos Estados. Por isso, requer-se que o Estado assegure e assuma a proteção do direito a cuidados de saúde. Compreende-se que, para uma plena
realização da existência humana no que respeita à esfera da
saúde, é relevante tanto a criação de condições como a sua
efetivação. Por isso, o acesso a cuidados e a informação de
1. Refere-se expressamente o imperativo categórico “Age de tal maneira
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como
meio” – Kant (1986) Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa:
Edições 70. p. 69.
2. Habermas, Jürgen (2010) La idea de dignidad humana y la utopía realista de
los derechos humanos, Anales de la Cátedra Francisco Suárez, 44, 105-121.
“los derechos fundamentales sólo podrán satisfacer políticamente la promesa moral de respetar la dignidad humana de cada uno, si actúan conjuntamente y de manera equilibrada en todas sus categorías” (itálicos no original)
p.110.
3. “Solo través desta relación interna entre dignidad humana y derechos
humanos se elabora aquella conexión explosiva de la moral al derecho,
como el medio con el que se debe emprender la construcción de órdenes
políticos más justos”. Idem, p.121.
4. A Constituição da República Portuguesa consagra repetidamente a dignidade humana, desde o artigo 1º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Cf. VII Revisão
Constitucional, 2005.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–123–
saúde não têm apenas relação com o enquadramento jurídico do país mas dependem substancialmente da vontade política, ou seja, das políticas de saúde e da forma como os processos e as práticas de cuidados são desenvolvidas.
Noutra abordagem, a condição humana diz respeito às
características da existência do ser humano num determinado espaço, como seja, a vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra, como afirmou5 Hannah
Arendt. Somos seres humanos, diferentes uns dos outros, colocados face à pluralidade na ação e as condições da nossa
existência, ainda que nos condicionem, não nos determinam
em absoluto.
Os seres humanos têm um conjunto de capacidades básicas que, numa espécie de inventário das componentes interrelacionadas para uma vida realmente humana, Nussbaum6 identificou; a sua teoria do florescimento humano é,
5. Arendt, Hannah (2001) A condição humana, Lisboa: Relógio d’Água Editores, p.17: “a condição humana compreende algo mais que as condições
nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados:
tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente
uma condição de sua existência.”
6. Nussbaum, Martha (2000) Women and human development: the capabilities
approach, New York: Cambridge University Press. Cada pessoa nasce com
uma base necessária para se desenvolver: estas capacidades são designadas
básicas; complementarmente, sobre as básicas, cada pessoa desenvolve condições internas que requerem ambiente educativo mais estruturado: a estas capacidades, considera internas; na relação destas com as condições externas, emergem as capacidades combinadas. Nussbaum listou dez capacidades básicas: (1) Vida. Ser capaz de viver uma vida de duração normal; não morrer prematuramente – é condição de existência, diríamos; tal como o direito
à vida é o mais essencial dos direitos; (2) a saúde do corpo – Saúde corpórea.
Ser capaz de ter boa saúde, inclusive a saúde reprodutiva; ser apropriadamente nutrido; ter abrigo adequado; (3) a integridade do corpo que inclui a liberdade
de movimento, a segurança e as oportunidades de satisfação e escolha – Integridade corpórea. Ser capaz de mover-se livremente de um lugar a outro; estar seguro contra a violência, inclusive a sexual; ter oportunidades de satisfação sexual
e de escolha quanto a reprodução; (4) Ser capaz de usar os sentidos; ser capaz de
imaginar, pensar, e raciocinar — e fazer essas coisas de um modo informado e culto, com uma educação adequada; ser capaz de usar imaginação e pensamento em relação ao experienciado, e produzir trabalhos expressivos e eventos da sua própria
escolha; ser capaz de usar o próprio pensamento, protegido por liberdades e garantias de expressão, por respeito tanto político como artístico, relativo ao discurso e
à liberdade de culto; ser capaz de ter experiências agradáveis e evitar dor que não
beneficia; (5) as emoções incluem a vinculação e o desenvolvimento emocional – Ser capaz de ter vinculação a coisas e pessoas fora de nós; ser capaz de
amar aqueles que nos amam e gostam muito de nós; ser capaz de afligir-se e enlutar-se na sua ausência, ser capaz de experimentar desejo, gratidão, e raiva justificada; não ter o seu desenvolvimento emocional interdito por medo ou inquietude;
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
explicitamente, firmada na lista de capacidades humanas básicas
e está muito vinculada à ideia de justiça social, até por identificar os requisitos de uma vida entendida como plenamente humana. Na senda deste pensamento, marca-se o objetivo
social e político de promover o desenvolvimento das capacidades humanas para todos os cidadãos do mundo, ou seja,
um limiar mínimo para uma vida digna. Todas as capacidades, embora interrelacionadas, são distintas e chave para o
florescimento humano pois que as dez representam um enquadramento de bem estar e viver, quer do ponto de vista físico, como mental, emocional, social e ambiental.
Se preferirmos uma abordagem mais ampla das capacidades, podemos escolher a teoria de Amartya Sen, que distingue entre funcionamento7 como aquisição da pessoa, o que
consegue fazer ou ser, e capacidade, enquanto habilidade
para atingir um certo funcionamento – do que decorre que as
capacidades emergem da aplicação de todas as utilizações
possíveis dos recursos ao dispôr e reflectem as oportunidades
reais que a pessoa tem de escolher entre estilos de vida possíveis para si. Por isso, “as capacidades são os potenciais funcionamentos das pessoas. Funcionamento diz respeito ao ser
e fazer (...) todas as capacidades, juntas, correspondem à li-
(6) a razão prática – Ser capaz de formar um conceito de bem e ocupar-se na reflexão crítica relativa ao planeamento da própria vida (isto implica a proteção da liberdade da consciência); (7) a capacidade de associação – Ser capaz de viver para
e em relação a outros, reconhecer e mostrar preocupação com os assuntos de outros
seres humanos, ocupar-se em várias formas da interação social; ser capaz de imaginar a situação do outro e ter compaixão daquela situação; ter a capacidade tanto
para justiça como para amizade; ser tratado como um ser digno cujo valor é igual
ao de outros; (8) a relação com outras espécies, – Ser capaz de viver com preocupação para e em relação a animais, plantas, e ao mundo da natureza; (9) brincar – Ser capaz de rir, jogar, gostar de actividades recreativas; (10) controle sobre o próprio ambiente – Ser capaz de viver a própria vida, com as suas proximidades e contextos – em duas dimensões: (A) Político, ser capaz de participar efetivamente em escolhas políticas que governam a vida; ter os direitos de participação política, liberdade de discurso e de associação. (B) Material, ser capaz de manter propriedade (tanto terra como mercadorias móveis); ter o direito de procurar emprego numa base igual a outros.
7. Um exemplo claro é o da alimentação – uma pessoa alcança funcionamento ao alimentar-se adequadamente, com um conjunto de produtos (por
exemplo, pão, esparguete, arroz, batatas) dependendo de fatores pessoais
e sociais (em que se incluem idade, sexo, metabolismo, saúde, conhecimento nutricional, educação, condições climáticas, etc). Assim, funcionamento está associado à utilização que faz dos recursos de que dispõe.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
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berdade para levar a vida que a pessoa tem razões para valorizar”8. Esta ideia da “razão para valorar” abre espaço para
cada um examinar as suas motivações e refletir sobre um estilo de vida específico para si. Sen9 defendeu que o importante não era listar as capacidades mas que as pessoas tivessem a oportunidade de participar nas decisões de quais as capacidades que deviam ser escolhidas, sem ser por elites políticas ou religiosas ou grupos de especialistas, nacionais ou estrangeiros. Assim, o maior enfoque de Sen tem sido na construção em democracia e na importância da discussão e participação pública.
II.
Na sequência do ponto anterior, temos claro que a saúde é fundamental para a realização dos projetos de vida e, por
isso, o acesso a cuidados de saúde é um direito humano. Na
base de todos os direitos, está o essencial “direito a ter direitos”, de Hannah Arendt, ou, de outra forma, entendemos os
direitos humanos como implicação moral do princípio de um
limiar mínimo para todos.
Não obstante muitas vozes terem discutido a definição,
até pela sua longevidade, mantenhamos o entendimento da
saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfer-
8. Robeyns, Ingrid (2003) Sen’s capability approach and gender inequality: selecting relevant capabilities, Feminist Economics. 9 (2–3), p. 61–92. cit p. 62:
“Capabilities are people’s potential functionings. Functionings are beings
and doings. The difference between a functioning and a capability is similar to the difference between an achievement and the freedom to achieve
something, or between an outcome and an opportunity. All capabilities together correspond to the overall freedom to lead the life that a person has
reason to value.”
9. Sen, Amartya K. (1999) Development as Freedom, Oxford: Oxford University Press; (2009) The idea of justice, Cambridge: The Belknap Press. Ver também Clarck, David A. (2006) The Capability Approach: Its Development, Critiques and Recent Advances, Poverty Research Group, Institute for Development Policy and Management, University of Manchester.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
midade”10. Este estado de completo bem-estar nas suas várias dimensões potencia que cada pessoa possa fazer face à vida, tecer projetos, trabalhar de forma profícua, contribuir positivamente para a sua comunidade, adaptar-se e ser feliz. O que
nos interpelaria mais concretamente a centrar-nos no bem estar11 pois que é a partir dele que a saúde se define.
Assim, a saúde é considerada como bem pessoal e recurso individual, que influencia a qualidade de vida12 e pode
também ser encarada como resultado de um conjunto de condições e de estilos de vida, sendo determinada por múltiplos
fatores (aos quais se tem designado por determinantes de saúde). Daí, que tenha surgido a aspiração do melhor nível de saúde para todos13 – contudo, esta universalidade intencional depara-se com particulares complexos, perfis dinâmicos de necessidades individuais, associadas ao ciclo e processos de
vida, ao envelhecimento, ao aumento das doenças crónicas,
num ambiente que exerce sobre nós fortes influências, desde
a economia à cultura, da vida dos grupos às condições de trabalho.
Entendendo que os ganhos em saúde são “resultados positivos em indicadores da saúde, e incluem referências sobre
a respetiva evolução”14 é expectável que se traduzam por
10. Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, International Health Conference, Nova Iorque; assinada a 22 de julho de 1946,
entrada em vigor a 7 de abril de 1948: “Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of disease or
infirmity.”
11. Veja-se Alexandre, Klein (2012) Le bien-être : notion scientifique ou problème éthique?, Grison, B., (dir.) Bien-être ou être bien, Paris, L’Harmattan, p.
11-44.
12. Entende-se por qualidade de vida “a percepção do indivíduo sobre a
sua posição na vida, dentro do contexto dos sistemas de cultura e valores
nos quais está inserido e em relação aos seus objectivos, expectativas, padrões e preocupações” (WHOQOL Group, 1994, p. 28). A definição parece
estar consensualizada, representando uma perspectiva transcultural, multidimensional, que considera a influência da saúde física e psicológica, do
nível de independência, das relações sociais, das crenças pessoais e relações
com o meio (WHOQOL Group, 1993, 1998).
13. Na Declaração de Alma-Ata (1978) assumiu-se a saúde como um direito humano fundamental. Atingir o mais alto nível de saúde em todas as nações corresponde à mais importante meta social a nível mundial.
14. Portugal. Plano Nacional de Saúde 2012-2016. 4.1.Objetivo para o Sistema de Saúde – Obter Ganhos em Saúde, p.2.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
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“ganhos em anos de vida, pela redução de episódios de doença ou encurtamento da sua duração, pela diminuição das situações de incapacidade temporária ou permanente, pelo
aumento da funcionalidade física e psicossocial e, ainda, pela
redução do sofrimento evitável e melhoria da qualidade de
vida relacionada ou condicionada pela saúde”15. Naturalmente, os ganhos em saúde dependem da capacidade de intervir, seja prevenindo, controlando ou resolvendo os fatores
causais, quando conhecidos – e, por consequência, os ganhos
em saúde dependem também da gestão do conhecimento, da
identificação acurada das necessidades em saúde e da correta alocação dos recursos existentes.
Muitos estudos suportam a teorização de que a desigualdade está fortemente associada a mortalidade, esperança média de vida e à variação de outros indicadores, sendo
que a maior parte dos estudos reconhece que os modos de organização dos sistemas e a distribuição dos recursos afetam
fortemente o acesso.
Estaremos genericamente todos de acordo que a saúde
“é importante para o bem-estar das pessoas e da sociedade,
mas uma população saudável é também uma condição fundamental para a produtividade e a prosperidade económicas”16; e igualmente parece consensual que as políticas de
saúde têm de assentar em princípios e valores claros – aliás,
na nossa realidade o que nem falta são enunciados de direitos ou textos sobre a situação de saúde, o que (sendo um indicador relevante) é diferente de implementar sistemas de
saúde que efetivamente assegurem “a universalidade, o acesso a cuidados de qualidade, a equidade e a solidariedade”17,
reduzindo as desigualdades na saúde.
As reformas no sistema de saúde têm apontado a acessibilidade e a equidade como eixos centrais, sendo o acesso
aos cuidados de saúde tido como “um dos determinantes da
saúde (...) interligado de modo dinâmico com os determi15. Idem, p.2.
16. Comissão das Comunidades Europeias (2007). Livro branco. Juntos para
a saúde: uma abordagem estratégica para a UE (2008-2013), p. 5.
17. Idem, p. 3.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
nantes sociais, com a literacia, com as atitudes perante os serviços de saúde e estado de saúde”18, fatores estes que se cruzam com as características do sistema de prestação de cuidados e influenciam a utilização dos cuidados de saúde.
Considerando que um dos pilares fundamentais da política de saúde é o acesso aos cuidados, parece evidente que,
ao nível mais elementar, este acesso depende da oferta de cuidados, ou seja, da disponibilidade de cuidados de saúde para
as pessoas lhes poderem aceder; e esta disponibilidade relaciona-se diretamente com a organização dos serviços e a existência de (mais ou menos) barreiras à utilização bem como a
adequação da resposta às necessidades dos cidadãos. Neste
sentido, é “indissociável da questão de equidade do sistema
de saúde”19.
A premissa de base, veiculada pela oms, é que todas as
pessoas devem poder atingir o seu potencial máximo de saúde, sendo a equidade em saúde definida como “a ausência de diferenças evitáveis, injustas e passíveis de modificação do estado de saúde de grupos populacionais de contextos sociais,
geográficos ou demográficos diversos”20.
III.
Qualquer que seja a abordagem que façamos à área dos
cuidados de saúde, é indissociável a questão dos valores e
dos princípios tidos como relevantes numa sociedade livre e
plural, cuja finalidade é a justiça social. A igualdade entre os
cidadãos, base da democracia, tornou-se “princípio inalienável nos governos constitucionais”21, possuindo o “enorme
poder de igualizar o que por natureza e origem é diferente”22.
18. Furtado, Cláudia; Pereira, João (2010) Equidade e Acesso aos Cuidados de
Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa.p.
8.
19. Idem, p. 4.
20. Plano Nacional de Saúde 2011-2016. Estratégias para a Saúde. p.2.
21. Arendt, Hannah (2003) Responsibility and Judgment, Org. Jerome Kohn.
New York: Schocken Books, p. 200.
22. Idem, p. 200.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
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Mas a igualdade, tão fortemente vincada na afirmação que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”23, é restrita (à dignidade e aos direitos) pois é a
diferença entre nós que nos torna humanos. Cada um de nós
é singular e a pluralidade caracteriza o nosso mundo comum.
É de justiça dar a cada um o que é seu, lhe é devido24, diferenciando de acordo com a singularidade.
Ora, isto é muito mais difícil do que possa parecer e torna-se particularmente complexo quando a sociedade é mais
heterogénea, em tempos de crise e austeridade, de perda de
qualidade de vida no geral e de maiores diferenças entre as
classes sociais. Aspetos que verdadeiramente nos alarmam,
quando pensamos no acréscimo de dificuldades em promover o acesso a cuidados de saúde, sendo que as experiências
recentes (e não apenas entre nós) demonstram que as pessoas
tendem a diferir a vigilância, a protecção da saúde e, até, o
tratamento da doença quando teêm menos recursos. E a ficar
mais doentes, num círculo que liga pobreza e doença.
Pensando a justiça como equidade, a partir de Rawls e da
ideia da sociedade como um “sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo”25, encontramos como seu objeto “a
forma pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a
divisão dos benefícios da cooperação em sociedade”26. Desta forma, a concepção da justiça tem de fornecer um padrão
de avaliação dos aspectos distributivos da sociedade, considerando a cooperação social e o “carácter intergeracional”.
Uma sociedade justa deve ser fundamentada de tal modo que
as pessoas possam conviver com as suas diferenças, enquanto pessoas livres e iguais, que possam viver bem.
É curioso que, em Rawls, o conceito de justo é anterior ao
de bem e tem primazia; é por escolha racional que ordenamos
23. Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo I.
24. Ferreira da Cunha, Paulo (2007) A Justiça como Virtude e o Direito, Revista
Internacional dHumanitats, 13.
25. Rawls, John (1997) O Liberalismo Político. Lisboa: Editorial Presença,
p.42.
26. Ibidem, p. 30.
–130–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
e classificamos as alternativas, tendo em conta o potencial nefasto das consequências. Se quisermos, ordenamos “as alternativas em função das piores de entre as respectivas consequências: e devemos adoptar a alternativa cuja pior consequência seja superior a cada um das piores consequências das
outras”27. Esta escolha, em termos pessoais, também parece
racional – escolhemos o que nos prejudica menos.
A proposta dos princípios – da liberdade igual e da diferença equitativa – a serem escolhidos para a realização da
justiça como equidade, em Rawls, tem o sentido de “um empreendimento de natureza cooperativa que visa obter vantagens mútuas para os participantes”28. Assim, o Estado mais
justo será o que torna máxima a posição do mais desfavorecido e a “injustiça é, então, simplesmente constituída pelas
desigualdades que não beneficiam todos”29.
Trazendo esta ideia para a saúde, claro que há desigualdades inevitáveis, quer de ordem natural, quer decorrentes
das contingências sociais – por isso, uma sociedade justa tenderá a procurar retificar os elementos não igualitários, quer
pela igualdade mais equitativa das oportunidades, quer por
colocar, em primeiro lugar, os mais desfavorecidos. Se olharmos a perspetiva de Donald Dworkin, “seja qual for o caráter e a magnitude do dano que ameaça um estranho, a minha
responsabilidade de evitar esse dano é maior quando posso
fazê-lo com menor risco ou interferência na minha própria
vida”30.
Evocando a questão da responsabilidade e papel social,
comprometemo-nos uns com os outros, em sociedade, e os
desdobramentos dos princípios de justiça têm de ser encontrados numa discussão real, ao nível do que Arendt designa
como o espaço público.
27. Ibid., p. 132.
28. Rawls, John (1993) Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Editorial Presença. p.85.
29. Idem, p. 93.
30. Dworkin, Donald (2012) Justiça para ouriços, Lisboa: Editora Almedina.
p. 284.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–131–
IV.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o contributo da ética para a saúde pública inclui a análise de assuntos-chave, entre os quais a “participação, transparência e
responsabilidade”31. E em torno deste eixo continuemos a reflexão.
A participação constitui-se como central em todos os aspetos das políticas e dos cuidados de saúde, quer por permitir aproximar as dimensões do acesso32 ao real das necessidades, quer por introduzir mecanismos de avaliação, quer
por potenciar a literacia em saúde.
Esta é uma ideia cara à bioética, da importância da participação e a relevância de vivências participativas e deliberativas. Todavia, muitos autores referem que as intenções de
convocar a sociedade civil têm sido difíceis e pouco frutíferas
– as pessoas parecem tender a afastar-se do espaço público e
a dedicarem-se ao espaço privado e aos interesses pessoais, o
que nos faz vincar a necessidade de reinventar e robustecer o
envolvimento político da sociedade civil. Dito de outra forma, “os cidadãos não devem ser tratados como membros de
uma orquestra ou accionistas”33 pois a dignidade das pessoas
requer que tenham um papel relevante na sua própria governação, considerando também a dimensão de autonomia
política e social.
Entendemos que a participação política dos cidadãos nos
assuntos que lhes dizem respeito constitui modo de desen31. Coleman, Carl; Bouësseau, Marie-Charlotte; Reis, Andreas (2010) The
contribution of ethics to public health, Bulletin of World Health Organization.
http://www.who.int/bulletin/volumes/86/8/08-055954/en/index.html.
Traduzimos accountability por responsabilidade, implicando disponibilidade para a devida prestação de contas.
32. A literatura sobre o acesso define-o como sendo constituído por cinco
dimensões: a disponibilidade (relaciona-se com a existência de uma oferta
adequada de serviços que possibilite utilizar os cuidados de saúde), a proximidade (a relação entre a localização da oferta e a localização dos utentes), custos (considerando todos os incorridos no consumo de serviços de
saúde), qualidade (inclui a qualidade e organização dos serviços) e aceitação (avaliando se a prestação de cuidados de saúde corresponde às necessidades e expectativas dos utentes). Cf. Estudo do Acesso aos Cuidados
Primários do SNS, da Entidade Reguladora da Saúde, 2009.
33. Dworkin, Donald (2012) Justiça para ouriços, p. 395.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
volver o poder. Pensamos, com Hannah Arendt, que na vida
politicamente organizada “ser livre e agir são uma mesma
coisa”34 – assim, poder e liberdade, na esfera política, são a
mesma coisa, no que diz respeito ao poder-em-comum, caracterizado pela pluralidade e concertação (que é diferente do
poder-dominação, exercido de forma assimétrica, de um
agente sobre um receptor). Arendt afirmou repetidamente
que o poder é a “capacidade do homem para agir e agir de
forma concertada”35, pelo que só é efetivo com a adesão de
outros; o poder pertence ao grupo e só sobrevive na medida
em que o grupo permanece. Afirmar que alguém está “no poder” tem sentido metafórico; significa que a investidura de
poder vem de um certo número de pessoas que autorizam a
atuar em seu nome. Se o suporte do grupo desaparece, o poder desvanece-se (por isso, a tirania representa o grau máximo de violência e mínimo de poder).
Consideramos importante atender a esta característica
do poder, de “existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparecer no instante em que eles se dispersam”36.
Dito de outra forma, só existe poder “onde uma acção em comum é regrada por um laço institucional reconhecido”37,
pelo que o poder procede da capacidade de agir em comum, no
domínio do político. E percebemos que não obstante algum
descrédito da política, as pessoas se juntam, se agregam, e
dão voz ao que entendem ser bem comum.
A política diz respeito à comunidade e à reciprocidade
de seres diferentes que, a partir de um caos de diferenças, se
organizam em comunidades essenciais e determinadas – e fazemo-lo considerando a nossa igualdade relativa e abstraindo
da diversidade relativa. Muitas vezes ouvimos dizer mal da
política, considerando-a um conjunto de enganos ou mentiras
34. Arendt, Hannah (2001) Entre o passado e o futuro, 5ª ed. S.Paulo: Editora
Perspectiva. p. 199.
35. Ibid., p. 144 (“Le pouvoir correspond à l’aptitude de l’homme à agir, et
á agir de façon concertée.”).
36. Arendt, Hannah (2001) A condição humana, Lisboa: Relógio d’Água Editores. p. 251.
37. Ibid., p.18.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
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ao serviço de interesses ou ideologias, mas este caminho de
preconceito e afastamento leva à fuga para a impotência38; tornar-se indiferente à política (ou maldizê-la, que parece um
traço mais comum) “equivale a renunciar ao pensamento e ao
julgamento, à luta para renovar de novo o mundo humano”39. Apenas pela participação na ação e no discurso podemos revigorar a esfera pública, o mundo de relações entre nós
que a política representa.
Todavia, como é sabido e vivido atualmente, os tempos
de necessidade e de crise reduzem a capacidade individual
de participar. O que nos coloca, a todos, uma inquietação
acrescida que nos deve mover a procurar formas de promover a participação quando as necessidades individuais obscurecem o sentido do todo. Ainda assim, a área da saúde colhe, pela sua natureza, o interesse dos cidadãos e deverá ser,
por isso mesmo, potenciada a sua participação. Dois exemplos breves em que relevamos a necessidade vital da participação. Se se calcula40 que mais de 90% dos problemas relacionados com saúde se podem resolver ao nível dos cuidados
de saúde primários, se existem fortes indícios41 de que o acesso a cuidados de saúde primários abrangentes melhora os resultados de saúde da população, é incompreensível a sobrecarga de solicitações aos cuidados de saúde diferenciados –
portanto, tanto quanto modificar a política e mais do que apenas fechar urgências hospitalares, é muitíssimo importante
prover recursos para alterar os processos de distribuição de
cuidados, visando fortalecer a proximidade. O outro exemplo
está associado à importância de promover a desinstituciona38. Arendt, Hannah (1995) Qu’est-ce que la politique?, Paris: Éditions du
Seuil, p. 49 (“ consiste dans la fuite dans l’impuissance, dans le vœu désespéré d’être avant tout débarrassé de la capacité d’agir” ).
39. Idem, p. 33 (“le devenir-indifférent à la politique, l’espoir effrayant de
se débarrasser de la politique, qui équivaut à renoncer à la pensée et au jugement, á la lutte pour rendre à nouveau le monde humain.”)
40. Grande, N.R. (2000) Cuidados de Saúde Primários: Pedra Angular dos Sistemas de Saúde, ISEE-UP Departamento de Clínica Geral, pp. 77-87.
41. Beasley, J.W. et al. (2007), Global Health and Primary Care Research, Journal of the American Board of Family Medicine, 20, pp. 518-526; Montegut,
A.J., (2007), To Achieve “Health for all” we must shift the world’s paradigm to
“Primary Care Access for All”, Journal of the American Board of Family Medicine,20, pp. 514-517.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
lização das pessoas com doença mental, fechando hospitais
psiquiátricos, sendo que não parece razoável proceder a encerramento de instituições sem estarem criadas redes de
apoio na comunidade para acolher as pessoas que saem dessas instituições. Mesmo quando a vontade política se encontra ao serviço de uma ideia de melhoria, a ausência de participação dos profissionais e dos cidadãos aumenta sinergicamente a probabilidade das coisas não correrem bem.
Uma organização territorial dos cuidados de saúde,
como a que existe em Portugal, que inclui a rede de cuidados
de saúde primários, cuidados pré-hospitalares, rede hospitalar, rede nacional de cuidados continuados integrados, rede
nacional de cuidados continuados de saúde mental, serviços
convencionados, recursos privados e sociais, requer, necessariamente, a participação de todos para a decisão, a implementação e a avaliação global, sob pena da pulverização e
fragmentação – e por todos entendemos os órgãos políticos,
entidades e grupos profissionais, associações de utentes, indivíduos, grupos e comunidades.
Ainda que pareça elementar, constate-se que a distância
entre definir políticas e implementar processos com a resposta às necessidades reais pode, por si só, criar iniquidades
e desajustes críticos para a saúde dos cidadãos. Os níveis político, organizacional, dos profissionais de saúde e o nível individual, dos cidadãos, têem de dialogar e relacionar-se de
modo próximo, sob pena de se poder desconsiderar quer as
necessidades da população em geral, quer a vulnerabilidade
de grupos (desfavorecidos, migrantes, minorias étnicas, adolescentes, grávidas, idosos, etc.). É pela participação social e
política que os cidadãos também podem desenvolver as capacidades de tomar decisões, colaborar nas deliberações,
compreender efetivamente a autonomia, no confronto com os
conflitos, dificuldades e discordâncias.
Vale a pena equacionar que há casos em que as pessoas
não participam na vida pública porque tomaram a decisão
pessoal de não participar ou decidiram usar a não participação como forma de resistência ou porque, simplesmente, estão totalmente ocupados a sobreviver. De acordo com Arendt,
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–135–
pode haver situações extremas em que a responsabilidade
pelo mundo, que é primariamente política, não pode ser assumida porque supõe um mínimo de poder político; assim, a
impotência ou a completa incapacidade é uma justificação válida, na admissão da impotência42. Pensando na situação
atual, de crise e dificuldade, o sentido da impotência pode
ameaçar efetivamente os processos de participação e da capacitação associada.
V.
As políticas e os cuidados de saúde, nos seus diferentes
níveis, enquanto sistema de saúde, visam um objetivo último,
a saber, “melhorar o nível de saúde de todos os cidadãos”43.
Portanto, temos aqui uma preocupação universal (todos os
cidadãos) e, em termos éticos, facilmente se evoca o bem comum, que é de cada um e de todos os membros de uma comunidade. Sobre estes conceitos (bem pessoal e bem comum)
já muito se escreveu, sendo que o que se pode salientar é mais
da relação entre ambos do que da formulação específica de
cada um. Para Reale, o bem comum “é a medida histórica da
justiça ou a justiça em plena concreção histórico-social”44.
Consideremos que o sentido do bem comum agrega o que uma
sociedade protege tendo em vista promover o desenvolvimento humano e o bem-estar social – daí, que se compreenda que, para alguns autores, ao princípio ético do bem comum
corresponda o princípio jurídico do interesse público.
42. Arendt, Hannah (2003) Responsibility and Judgment, New York: Schocken
Books. p. 45 (“admission of one’s impotence that a last remnant of strength
and even power can still be preserved even under desperate conditions”).
43. Portugal. Plano Nacional de Saúde 2012-2016. 4.1.Objetivo para o Sistema de Saúde – Obter Ganhos em Saúde, p. 2. Disponivel em
http://pns.dgs.pt/files/2012/02/OSS1.pdf
44. Reale, Miguel (2002) Filosofia do Direito, 19ª edição São Paulo: Saraiva.
p.707.
–136–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
A relação entre bem pessoal e bem comum apresenta, em
termos políticos, duas45 correntes opostas: uma, que considera que a ordem social justa será o resultado da satisfação do
bem do indivíduo, e a outra, que defende que o bem do todo
é condição da felicidade de cada um. Como habitualmente,
quando temos duas posições antagónicas num determinado
tópico, emerge uma terceira posição que procura, por via de
regra, proceder à superação – aqui, trata-se da teoria que considera que não existe possibilidade de uma combinação dos
egoísmos individuais nem uma subordinação individual feliz à satisfação comum; reconhece-se existir uma tensão entre
valores, pessoais e sociais, pelo que se procura conjugar o que
interessa a cada um e o que diz respeito ao todo, uma síntese
que se pretende harmoniosa entre o interesse público e os direitos individuais. Tenha-se em conta que “se uma sociedade
justa exige um forte sentido de comunidade, tem de se arranjar maneira de incutir nos cidadãos uma preocupação com
o bem comum”46.
Fala-se hoje, com alguma persistência, de bens públicos
com dimensão global, enquanto bens que “tendem para a
universalidade, no sentido que possam beneficiar todos os
países, grupos populacionais e gerações”47 – os benefícios
destes bens estendem-se a um conjunto alargado de populações, atendendo às necessidades do tempo presente sem pôr
em perigo as gerações futuras. Ou seja, os bens públicos contribuem para aumentar as possibilidades e as oportunidades
de cada pessoa viver a vida que escolhe(r) viver.
Alguns exemplos do nosso quotidiano: o bem público do
conhecimento científico, concretizado nas vacinas, potenciou
45. De cada uma, de acordo com as premissas, resulta um diferente papel
do Estado na sociedade. Por exemplo, o pensamento individualista supõe
que se cada um cuidar do seu bem e do seu interesse, cuidará do bem e interesse coletivo – pelo que daqui decorre a tese de que o Estado deverá ocupar-se da tutela das liberdades individuais, já que a felicidade de cada um
tem como consequência a de todos.
46. Sandel, Michael J. (2009) Justiça. Fazemos o que devemos?, Lisboa: Editorial Presença. p. 273.
47. Deneulin, Séverine; Townsend, Nicholas (2006) Public goods, global public goods and the common good, WeD – Wellbeing in Developing Countries.
Working Paper 18.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–137–
que milhões de pessoas tivessem a sua vida protegida de algumas doenças; ou, noutro exemplo, uma linha telefónica de
serviço público que disponibiliza um aconselhamento rápido
e qualificado na saúde, dota os cidadãos de ferramentas importantes para o auto-cuidado e atenua o recurso aos serviços
de urgência, permitindo o melhor funcionamento do sistema
público no seu conjunto; ou, noutro caso, um serviço de emergência gratuito e eficaz no terreno, de suporte imediato de
vida ou de emergência e reanimação, a que todos possam aceder rapidamente é um bem público que procura preservar a
vida ou reduzir as sequelas.
VI.
Há elementos importantes das políticas e das práticas, de
natureza ideológica, que emergem nos discursos. Quando
olhamos para as últimas décadas, percebemos que os discursos da saúde têm mudado, ao tempo em que se foram alterando os eixos centrais nas políticas. Em todas as etapas históricas foi expressa a consciência de que os recursos são finitos e
é preciso fazer escolhas, daqui decorre que nas escolhas se
evidenciam quer os valores protegidos quer as ideologias prevalecentes.
Em meados do século passado, para a organização dos
serviços de assistência social, entendia-se que se devia proceder a hierarquização das necessidades48, de modo a satisfazerem-se as mais urgentes, as relacionadas com as crianças,
a família e o tratamento dos doentes. Por esta altura, os discursos centravam-se nas medidas de defesa da saúde – o desenvolvimento da medicina preventiva ou social, pela divulgação dos preceitos de higiene individual e colectiva.
48. Decreto-lei nº 35:108 – Diário do Govêrno. I Série. 7 de Novembro de
1945, pp. 899-920. “deverá proceder-se à graduação das necessidades em
ordem a satisfazer as mais urgentes e importantes. Figuram entre as primeiras aquelas cuja insatisfação possa comprometer a vida das crianças, a
saúde física e moral das famílias, o mínimo necessário à existência humana e o tratamento dos doentes; entre as segundas, a necessidade de defender o mais precioso dos bens – a saúde – e através dela proteger a maior
fonte de riqueza das nações – o trabalho humano” (p. 899).
–138–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Umas décadas depois, os discursos sobre a prevenção da
doença trouxeram a apologia da capacidade de intervir na redução de riscos e de estabelecer ações preventivas49 – tenhamos em conta que a prevenção assenta no conhecimento e na
gestão do risco (para prevenir, existem conhecimentos sobre
os fatores causais, dados objetivos e orientações clínicas).
Num breve comentário, a prática das últimas décadas, na generalidade e não obstante o enorme volume de trabalho dos
profissionais, demonstra alguma penúria de resultados da
designada educação para a saúde. Eventualmente, o enfoque na
mudança de “hábitos de vida”, em termos individuais, bem
como a normatividade associada parece ter assentado na
crença que a pessoa muda o comportamento se e quando lhe
dizem para os mudar, sem outro suporte de contexto – provavelmente, escasseia uma articulação concertada entre as
políticas bem como uma capacitação dos cidadãos, numa
perspetiva mais coletiva de saúde.
Hoje, os discursos de promoção da saúde assentam reconhecidamente, nos eixos da autonomia das pessoas e da sua
responsabilidade de proteger a sua saúde bem como na defesa de políticas públicas intersectoriais – e, neste sentido, tanto se articula entre sectores como se dá uma atenção cada vez
maior às chamadas intervenções psicoeducativas.
A maior amplitude da promoção da saúde (em relação à
prevenção da doença) e o seu foco na saúde e bem-estar alargou
as políticas de saúde às condições de vida e de trabalho, requerendo abordagem intersectorial sem deixar de ter um
maior desenvolvimento no campo próprio da saúde. Dito de
outra forma, defende-se hoje que as ações dos sistemas de
saúde devem estar articuladas com outros sistemas e políticas, como a educação, o ambiente, o trabalho. Mais, que existem domínios em que os Estados da União Europeia “não podem actuar sozinhos de modo eficaz, tornando-se indispensável uma colaboração a nível comunitário. Entre esses do49. É preventivo o que se destina a evitar, a reduzir a incidência e prevalência de uma doença ou fenómeno. Os alicerces do discurso preventivo
são epidemiológicos e os projetos de prevenção (e de educação para a saúde) estruturam-se a partir da informação científica e das recomendações
para a “mudança de comportamentos e hábitos de vida”.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–139–
mínios são de referir as grandes ameaças para a saúde e as
questões com impacto transfronteiriço ou internacional,
como as pandemias e o bioterrorismo (...). Para cumprir esta
função, é necessário desenvolver um trabalho transectorial.”50
E se, por um lado, a multiplicidade de atores constitui
enriquecimento, pode, por outro lado, aumentar o risco de
dispersão – de onde se extrairia uma maior dificuldade em
operacionalizar projetos com muitos intervenientes, em obter
consistência em processos ou estratégias demasiado abrangentes – pelo que se destaca a necessidade de um plano orientador, de processos de implementação e de avaliação, de forma consistente e continuada. Em termos concretos, também
da difusão do conhecimento e da disseminação de informação, numa aliança com os meios de comunicação e redes sociais.
Qualquer discurso de promoção da saúde inclui a intencionalidade dos sujeitos, os seus valores e escolhas, ainda que
devesse ser dado enfoque a uma concepção equilibrada, que
evite uma nosologia da saúde – ou seja, uma visão fundada em
critérios clínicos, associada a sintomas e a uma classificação
das doenças – e uma medicalização da vida (isto porque alguns
fenómenos aparecem classificados como problemas médicos,
seja a tristeza, as condutas de oposição ou a hiperatividade).
Três aspetos nos parecem relevantes para fechar este
ponto – primeiro, pensar saúde e promover políticas de saúde não dispensa de incluir discursos e práticas consistentes,
sustentáveis e cientificamente suportadas na saúde (estamos
aqui a querer dizer que muitos discursos e práticas sobre saúde se circunscrevem, frequentemente, à doença, deformando
o uso da palavra e a ideia de saúde); segundo, as políticas de
saúde precisam de ser harmoniosas com as necessidades dos
cidadãos (por isso, ponderando os riscos de uma lógica de
mercado e da redução até à extinção do papel do Estado); finalmente, as experiências de sentir-se saudável, adoecer, estar doente, viver a cronicidade das situações, têm elevada
50. Livro branco Juntos para a saúde: uma abordagem estratégica para a UE
(2008-2013), p.2.
–140–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
subjetividade e profunda relação existencial com a percepção
de saúde de cada pessoa. Assim, será importante que se exija foco na saúde, clareza na decisão política e a consideração
dos elementos subjetivos (que tantas vezes se procura traduzir em dados objetivos, em conceitos de raiz mecanicista,
num discurso apenas científico), no respeito pela singularidade individual.
A saúde, frequentemente caracterizada pela situação da
pessoa face à norma, apresenta-se reportada a algo precário,
como “capacidade de gerir as ameaças, os perigos, as disfunções e, de entre estas, as doenças”51. Ricœur referiu uma “noção insolente de saúde” pela tendência em transformar a norma em sentido da média numa norma em sentido ideal e, por
isso, à doença não restaria senão o perfil de impotência, de incapacidade – do que decorre uma “depreciação unívoca do
patológico”52.
Consideramos que, efetivamente, uma das características do nosso tempo foi a apropriação médica do conceito de
saúde (por vezes, designada medicalização da saúde) e a existência de pouco espaço de manobra para os que se apresentam como desvios à norma. Percebe-se socialmente alguma
ocultação dos desvios patológicos ou considerados como tal,
relevando com particular acuidade para a área da saúde mental por ser mais permeável aos preconceitos e estereotipos
mas também nas áreas de infecto-contagiosas ou na oncologia. Na psiquiatria, a vulnerabilidade do doente é elevada,
mesmo que abrigada sob a estruturação de uma relação terapêutica; até porque as assimetrias desta mesma relação são
potencialmente agudizadas pela perda de autonomia. O estigma e a exclusão afectam várias áreas da doença e da incapacidade.
Podemos evocar a vulnerabilidade e considerar a “diferença entre o normal e o patológico como fonte de respeito”53,
51. Ricœur, Paul (2001) Le Juste 2, Paris: Ed. Esprit. p.218.
52. Ibid., p.219.
53. Título do primeiro exercício, em Le Juste 2. Ricœur considera duas leituras do normal: enquanto norma associada a uma média estatística e como
ideal, num sentido múltiplo.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–141–
sendo que promover a saúde não poderá tornar-se num regrar da vida e a área das políticas e práticas de cuidados de
saúde mantem-se em tensão entre a visão de vida de cada
pessoa e uma estruturação científica (potencialmente redutora) do saudável e do patológico.
E aqui, quando procuramos uma visão holística, muitas
vezes caímos na tentação analítica – veja-se o exemplo do conhecido conceito de “pessoa como ser bio-psico-social-cultural e espiritual” que, aspirando ao todo, apresenta uma fórmula analítica e fragmentar; pois que, pensando bem, é um
contra-senso que, para defender uma perspetiva global, se
adicionem as partes do bio, psico, social, cultural e espiritual,
como se assim pudéssemos atingir o todo.
E se promover a saúde pode ser uma espécie de finalidade que recobre tensões (teóricas, filosóficas, procedimentais, práticas), reconheça-se a tensão entre políticas e práticas,
entre o que se considera dever-ser e o que é – por exemplo, o
discurso do consentimento como corolário da autonomia,
corre seriamente o risco de se tornar uma tarefa administrativa e ato rotineiro; o respeito pela autonomia da pessoa tem
de fazer-se acompanhar de iniciativas de capacitação, para
termos uma verdadeira aliança entre a noção teórica e a praxis vivida da inclusão das pessoas na tomada de decisão sobre si.
VII.
No nosso último tópico, foquemos na responsabilidade,
enquanto como princípio fundamental e orientador da ação.
Reconhecemos que o uso da palavra é corrente, que tem sentidos pulverizados na linguagem do quotidiano e, para efeitos deste texto, entendamos responsabilidade como a capacidade e a obrigação de agir em consonância com o que se prometeu ou comprometeu, comunicando de forma transparente e assumindo as consequências na prestação de contas.
Na verdade, o conceito de responsabilidade tem níveis e,
como ensinou Ricœur, o nível mais elementar é o da imputa-
–142–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
bilidade, em que os atos e consequências são atribuídos a um
autor, pois a imputação permite colocar na conta de alguém
uma falta, como verdadeiro autor de uma ação (do ponto de
vista prático, realcemos a capacidade para, relativa ao discernimento e à possibilidade de ser imputável); num nível ético
mais profundo, a responsabilidade torna-se referência para a
pessoa, radica-se na convicção. Somos responsáveis pelo que
realizámos ontem e pelo impacto amanhã, também em ligação à capacidade, ou seja, encontramos a noção de ser-capaz
muito próxima da de estar preparado para responder, para
prestar contas e para ser julgado. Espera-se que a pessoa responda pelos seus actos, “como sendo o mesmo que ontem
agiu, hoje deve prestar contas e amanhã arcar com as consequências”.54
É responsável aquele que age pois que deve e pode – “a
posse do poder de agir”55 designa um facto primitivo, um
«eu posso» que se liga à iniciativa, à mudança no mundo. Por
isso, a responsabilidade de alguém pode ser ajuizada no sentido do seu agir – seja ação ou não-ação – e das consequências
do que decidiu.
Em sentido político e da ação no mundo humano, existe responsabilidade associada quer ao desempenho de um
cargo, quer ao lugar de cada um na sociedade.
Tenhamos em conta o sentido projetivo por Hans Jonas,
remetendo-nos para “um futuro real previsível como dimensão aberta da nossa responsabilidade”56, ou seja, estabelecendo-se relação expressa entre responsabilidade e cuidado
com o futuro, distinguindo da imputabilidade (pois, no limite, o autor da ação pode já não existir quando as consequências de longo prazo se manifestarem) – diria Ricoeur que
“considera-se responsável, sente-se efectivamente responsável, aquele a quem é confiada a guarda de algo perecível”57
54. Ibid., p.153-4.
55. Ricœur, Paul (1997) O Justo ou a essência da Justiça, Lisboa: Instituto Piaget. p.48.
56. Jonas, Hans (1995) Le Principe Responsabilité. Une éthique pour la civilisation technologique, 3ª ed. Paris: Flammarion. p.26.
57. Ricœur, Paul. (1996) Leituras 2. A região dos filósofos, S. Paulo: Edições Loyola. p. 230.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–143–
Neste ponto, especifique-se a responsabilidade dos profissionais de saúde, dotados de auto-regulação, que delineiam o seu papel à luz do mandato social da própria profissão – a sua responsabilidade converge com o sentido que Ricœur lhe deu, de que a “verdadeira responsabilidade não é
senão a que se exerce a respeito de alguém ou alguma coisa
frágil, que nos será confiada”.58
Os profissionais de saúde situam-se na charneira das dimensões profissional, política e pública, pois o seu compromisso assenta na exigência de uma missão que lhes é socialmente confiada, delineia-se “como ter a cargo uma certa zona
de eficácia”59 e sabem-se responsáveis pelos cuidados que
prestam e pelo que realizam, para com a sociedade e para
com cada pessoa ao seu cuidado. Na expressão mais elevada
de autonomia, aos prescrever os seus deveres, os enfermeiros,
por exemplo, adoptaram como princípios orientadores da sua
ação a “responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade, o respeito pelos direitos humanos na relação
com os clientes, a excelência do exercício na profissão em geral e na relação com outras profissões”.60
Aos profissionais de saúde incumbe agir, baseados no
poder-capacidade, no enquadramento das legis artis, de modo
responsável face ao encargo confiado, com centralidade num
cuidado equitativo. Se pensarmos na obrigação política e dos
governantes, em sentido amplo, de garantir a todos as condições e recursos que permitam desenvolver e exercer as capacidades humanas (como começámos este texto), o papel
das políticas públicas na promoção e disponibilidade de condições (materiais e institucionais) na saúde transforma essa
obrigação em imperativo político. E diríamos que à socieda58. “L’auteur (Hans Jonas) y montre que la véritable responsabilité n’est autre que celle qu’on exerce à l’endroit de quelqu’un ou quelque chose de fragile, qui nous serait confié”. Aeschlimann, J-C – Entretien. In Éthique et responsabilité. Paul Ricœur, p.25.
59. “Etre responsable, en ce sens, ce n’est pas simplement pouvoir se désigner comme l’agent d’une action déjà commise, mais comme l’être en
charge d’une certaine zone d’efficacité, où la fidélité à la parole donnée est
mise à l’épreuve.” (Ibid., p.31).
60. Lei nº 111/2009 de 16 de setembro, Procede à primeira alteração ao Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 104/98,
de 21 de Abril, artigo 78º, nº 3.
–144–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
de tanto cabe monitorizar a qualidade dos cuidados de saúde como exigir as adequadas condições de exercício para os
profissionais de saúde.
Distinguimos planos diversos de responsabilidade: a esfera individual de pessoas concretas, a esfera profissional e a
esfera política, ligada ao sistema e aos governantes que assumem responsabilidades enquanto corpos políticos. Em todos
os planos, tenha-se a compreensão de que as ações hoje realizadas afetam o futuro, de um modo que podemos não ser
capazes de calcular.
Por um lado, todos somos chamados a uma cidadania
ativa – que supõe que as pessoas e as organizações assumam
a responsabilidade de desenvolvimento mútuo e tanto se materializa na participação política e pública, como em intervenções de associativismo, voluntariado e filantropia -, por
outro lado, as políticas, procedimentos e práticas de saúde requerem obrigatoriamente a participação e a responsabilidade
de todos, pelo seu impacto direto, imediato assim como a médio e longo prazo, no acesso das pessoas a cuidados de saúde. Reconhece-se que muitos aspetos das consequências podem ser difusos; ainda assim, não podem formular-se com
“vamos ver”, “o que tiver de ser, será” ou “eles é que sabem”;
o primeiro, por apontar ao acaso, o segundo, por se tornar fatalismo, inevitabilidade de reverter; o terceiro por deslocar a
ação para fora de cada um.
Um serviço de saúde dirigido a todos, que em tempos
difíceis se torna mais vital para os mais desfavorecidos, não
pode ignorar o conflito entre os efeitos intencionais, previsíveis e intencionados de uma ação e os efeitos e danos colaterais (no sentido expresso de secundários). Se quisermos, tratase de uma décalage que é preciso ter em conta, entre os efeitos
previstos, que até podem ser indiscutiveis na sua bondade, e
os efeitos perversos. É da responsabilidade de quem concebe,
propõe e implementa políticas de saúde explicitar as probabilidades desta décalage, na arbitragem entre uma perspetiva
de curto prazo e uma visão de longo prazo, recusando o imediatismo que negligencia o futuro e favorecendo uma lógica
de sustentabilidade que o proteja.
RESPONSABILIDADE E PODER NAS POLÍTICAS E NOS CUIDADOS DE SAÚDE:
A PARTICIPAÇÃO COMO IMPERATIVO | LUCÍLIA NUNES
–145–
No nosso tempo, os desafios exacerbaram-se, quer os relacionados com a gestão, o financiamento, a sustentabilidade
do serviço nacional de saúde, quer com a distribuição de recursos e com as necessidades das pessoas – “o envelhecimento demográfico, as alterações do padrão epidemiológico,
o aumento progressivo da esperança média de vida e, consequentemente, dos anos de vida sem saúde e do aumento da
dependência funcional significam necessidades adicionais de
cuidados”61 Eventualmente, as principais preocupações do
encontro da bioética e das políticas públicas na saúde podem
bem ser a capacitação dos cidadãos, a promoção da literacia
em saúde, a efetividade de uma participação pública esclarecida, ainda que para tal seja necessário repensar pressupostos, reformar agentes políticos e desacreditar arautos do imediatismo, da desigualdade e do individualismo social e político. Todos estamos convocados, nos diversos papéis e aos diferentes níveis de ação, podendo conceber-se que “a única
coisa importante é discernir com justiça o intolerável de hoje
e reconhecer a minha dívida em relação às causas mais importantes do que eu mesmo que me requisitam”62. A participação e responsabilidade, nestas matérias, são verdadeiramente imperativas.•
61. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde 2011-2016, Cuidados Hospitalares. p. 26.
62. Ricœur, Paul (1996) Leituras 2. A região dos filósofo,. S. Paulo: Edições Loyola. p. 162.
–147–
Outras ciências, outras vidas – A abelha
melífera e alguns dos seus ensinamentos
Raquel Teixeira de Sousaa & Maria de Sousaa,b
Preâmbulo
“And now you ask in your heart,
“How shall we distinguish that
which is good in pleasure from
that which is not good?” Go to
your fields and your gardens, and
you shall learn that it is the pleasure of the bee to gather honey of
the flower, But it is also the pleasure of the flower to yield its honey
to the bee. For to the bee a flower is
a fountain of life, And to the flower a bee is a messenger of love,
And to both, bee and flower, the
giving and the receiving of pleasure is a need and an ecstasy.?”
– Kahlil Gibran
Porque demos nomes às coisas, porque batizámos de conhecimento o que acontece, parecemos e sentimo-nos por vezes padrinhos na Evolução. Com o hubris de padrinhos achamos que temos a liberdade de dominar com a mesma força
com que criámos ou que julgámos que criámos. Criámos o conhecimento mas não desenvolvemos com o mesmo vigor o
a. Programa Doutoral GABBA, Universidade do Porto
b. Conselheira do CNECV
–148–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
amor e o sentido de responsabilidade das coisas a que demos
nomes e sobre as quais vertemos alguma luz e o saber que
pouco sabemos.
A Bioética acaba por se impor como disciplina exatamente para compensar as maiores deficiências de sermos humanos entre flores, sobreiros, insectos e outras generosas fontes de subsistência. De acordo com Leopoldo e Silva (usp)
“Cada profissão tem o seu código de conduta, que se supõe serem
normas éticas que o profissional deve respeitar no seu trabalho. Algo
que não se pode deixar de observar é que as éticas aplicadas surgem
num momento de falência da Ética. Elas cumprem, cada uma num
universo restrito, o papel que deveria ser o da Ética, simplesmente,
se tivéssemos conservado a capacidade de pensar eticamente. Ou
seja, a proliferação de éticas aplicadas é consequência, ou sintoma,
da crise que atravessa a civilização, e que de certo modo é resultado
do próprio progresso científico”. Neste capítulo escolhemos a cadeia flor, abelha, polinização, produção industrial do mel,
cuja sobrevivência, como veremos, está ameaçada pelo uso de
pesticidas, da falta de cuidado com outras vidas de que se julga, por ignorância, não depender a vida humana. O trabalho
aqui exposto pretende ajudar-nos a refletir e sistematizar alguns fatos sobre outras vidas para além da nossa própria
existência e perceber as vantagens e desvantagens dessa coexistência. O século xx, primeiro em consequência das duas
guerras mundiais e mais tarde como resultado da explosão de
uma liberdade sinónimo de uma criatividade que chegou a
todos no mundo ocidental, viu-nos inaugurar uma revolução
tecnológica diferente da que tinha presidido à revolução industrial. A revolução tecnológica que presidiu à revolução industrial mudou sobretudo o acesso a espaços distantes, embora o telefone já os tenha de algum modo aproximado; e os
antibióticos já tinham de algum modo influenciado equilíbrios biológicos. A revolução tecnológica que estamos a viver
mudou o acesso ao tempo.Com os avanços na genética molecular em Biologia não está só a mudar equilíbrios entre seres diferentes, está a poder mudar mesmo seres vivos.
A internet, a astronáutica, a fibra óptica, a computação,
o gps, os animais e plantas transgénicos, etc... trazem-nos tan-
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
–149–
to de fantástico e de inovador como de preocupante. Em menos de uma hora conseguimos ir de um lado do mundo ao
outro, monitorizamos cada gesto, cada informação em diferentes partes do mundo com uma satisfação em que só o tempo parece real. Já não sofremos com determinadas doenças
infecciosas propagadas por más condições de sanidade e higiene, águas contaminadas e alimentos contaminados se nascemos no sítio certo na hora certa. Mas cerca de 768 milhões
de pessoas no mundo ainda não têm acesso a fonte de água
segura, ou seja, aproximadamente 1 em cada 10 pessoas da
população mundial1. A cada momento, aproximadamente
metade das pessoas em países em desenvolvimento sofrem
de uma ou mais doenças associadas a água contaminada ou
falta de saneamento básico2. Dessas, cerca de 700.000 são
crianças que morrem todos os anos (~ 2.000 por dia) só de
problemas intestinais3.
A Bioética é um termo introduzido pela primeira vez
pelo pastor alemão Fritz Jahr (1927) e desde então tem assumido várias formas: “Eu proponho o termo Bioética como forma
de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir
uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”4. O que hoje sabemos da
abelha.
A abelha
A abelha, Apis mellifera ou “abelha transportadora de
mel”, cujo nome foi atribuído por Carol von Linné em 1758 é
um insecto social, incansável e extraordinário do ponto de
vista biológico, ecológico e económico por muitas razões. São
companheiros das formigas e das vespas na mesma ordem taxonómica, Ordem Hymenoptera. O sistema social advém de
três características essenciais: os adultos vivem em grupos e
demonstram um comportamento de cooperação, cuidando
da criação comunitária; demonstram divisão de tarefas reprodutivas evoluindo de abelhas fêmea funcionalmente estéreis para apenas uma abelha-rainha fértil; gerações sobre-
–150–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Figura 1. Fenótipos de
abelha. Várias abelhasobreira em torno da abelha-rainha.
Fonte: Zee Honey Goods © 2013
poníveis que permitem entreajuda entre abelhas mais experientes e juvenis5 São indivíduos geneticamente muito próximos que vivem em colónias densamente populadas, podendo atingir os 80.000 indivíduos durante o verão e cerca de
20.000 durante o inverno6. Numa mesma colónia existe apenas uma abelha com capacidade reprodutiva, a abelha-rainha, cuja única tarefa na sociedade é propagar a espécie, sendo capaz de colocar 2.000 ovos por dia. Segundo Ryszard Maleszka (anu) “As rainhas são produzidas, não nascem simplesmente, e a formula mágica responsável chama-se geleia
real”7 (Fig.1).
O ciclo de vida da abelha varia em tempo dependendo
se é uma abelha-rainha (16 dias, desde o ovo ao nascimento),
abelha-obreira (21 dias) ou abelha-macho ou zangão (24 dias),
mas todos passam pelas mesmas etapas de desenvolvimento:
ovo, larva, pupa e adulto. Estes insetos organizam-se em grupos especializados em diferentes tarefas, característica descrita como polietismo temporal (revisto em ref.8). Este método de divisão de trabalho é demonstrado pela maioria das colónias de insetos sociais, onde o tipo de tarefa (casta) está
normalmente associado à idade do indivíduo. Sendo assim,
estas “vidas” organizam-se de duas formas diferentes durante o ano: na primavera e verão, a divisão de tarefas é aplicada de forma a aumentar a taxa de crescimento da colónia e
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
DIVISÃO DE TAREFAS
ABELHA RAÍNHA
FÊMEA
REPRODUTORA
CONSTRUÇÃO/
/REPARAÇÃO DE FAVOS
abelhas 12–21 dias
–151–
ABELHA MACHO
ACASALAMENTO
x
DEFESA DA
COLMEIA
RECOLETORAS
abelhas >21 dias
Figura 2. Sociedade
da abelha melífera e
polietismo.
LIMPEZA DA COLMEIA
abelhas 0–4 dias
CUIDAR DA CRIAÇÃO
abelhas 4–12 dias
SOCIEDADE ABELHA MELÍFERA
Fonte: Zee Honey Goods ©
2014
da recolha e acumulação de recursos para a colmeia; no outono e inverno o objetivo é assegurar a sobrevivência dos indivíduos – não existindo uma divisão de tarefas muito especializada, as abelhas-obreiras tornam-se generalistas. Existem
quatro castas principais: limpeza da colmeia, cuidadoras,
meia-idade (construção e manutenção, processamento do
néctar, defesa) e recolectoras (procura de recursos alimentares para a colmeia como, recolha de néctar e pólen das flores)
(Fig. 2). Esta especialização não é estanque, e de acordo com
as necessidades da colónia e estímulos ambientais podem
apresentar plasticidade no comportamento e alterar o tipo de
tarefa que desempenham em determinada altura9.
A especialização de funções, espaço e tempo dentro de
uma mesma colónia levou Johannes Mehring (1815–1878),
um dos pioneiros da apicultura moderna, a extrapolar o conceito de animal vertebrado ao conjunto de abelhas dentro de
uma colónia, que constitui um único organismo. As abelhasobreiras representariam os órgãos do organismo necessários
para a manutenção e digestão, enquanto que a abelha-rainha
e a abelha-macho representariam os órgãos genitais feminino
e masculino, respectivamente. Na mesma linha de pensamento o biólogo americano William Morton Wheeler
(1865–1937) atribuiu o termo “superorganismo” em 1911 a organismos com este tipo particular de organização. Podemos
ir ainda um pouco mais além, para um conceito mais rebus-
–152–
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cado e virtual equiparando uma colónia de abelhas, não apenas a um vertebrado, mas a um mamífero6. Como características virtualmente comparáveis temos a baixa taxa de reprodução; a produção de alimento (glândulas específicas) para
nutrir as crias; um ambiente interno protetor (útero nos mamíferos e “útero social” dentro da colmeia, os favos) e uma
temperatura interna controlada (37º C nos mamíferos e 33º C
dentro da colmeia).
Com quem se relacionam as abelhas na sua azáfama diária fora da colmeia? Com as flores. A abelha desempenha um
papel vital no ciclo reprodutor de plantas com flor. O néctar
floral (fonte energética) e o pólen (fonte proteica) são as únicas fontes de alimento que ela consegue digerir, sendo totalmente dependente das flores que visita. Ao longo da evolução, abelha e flor desenvolveram e aperfeiçoaram mecanismos para sobreviver lado a lado em harmonia. As plantas encontraram diferentes mecanismos para assegurar a sua reprodução, uma vez que sendo sésseis, dependem dos outros
indivíduos da comunidade para “entregar a mercadoria”. O
pólen, minúsculos grãos produzidos nas anteras são o elemento reprodutor masculino, onde se encontra o gâmeta
masculino que irá fecundar o óvulo, alojado no estigma da
parte feminina da planta, e dar origem à semente. A polinização, transferência de pólen dos órgãos masculinos para a
estrutura feminina, é então a estratégia reprodutiva destas
plantas. Esta estratégia pode ser designada por autopolinização, polinização anemófila (através do vento), hidrófila
(através da água) ou entomófila (através de insectos ou outros
animais). As abelhas, e outros insectos, pássaros e mamíferos,
tornam este método de polinização num dos mais específicos
e eficientes, sendo usado por cerca de 80% das plantas com
flor. As capacidades intrínsecas à biologia de um insecto
como a abelha tornam-na no agente polinizador mais eficiente. Por dia, uma abelha-recolectora visita cerca de 1.500
flores (normalmente a mesma flor até acabar o néctar) para
recolher um carregamento de pólen que corresponde a cerca
de 15 mg, metade da quantidade do néctar que ela traz também para colmeia. Sendo que existem cerca de 50.000 abelhas-
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
–153–
SOL
FLORES
Figura 3. A “pista de waggle dance”
contem informações sobre a direção e
distância de uma fonte de alimento à
colmeia. Na escuridão do interior da
colmeia, a direção da dança da abelha
relaciona-se com a direção à fonte de
alimento e está associada à posição
do sol, alterando ao longo do dia. A
duração da dança relaciona-se, por
sua vez, com a distância dessa fonte
de alimento à colmeia; quanto mais
longa, mais distante.
COLMEIA
Fonte: Zee Honey Goods © 2014
obreiras por colónia na época de floração, são necessários cerca de 2 milhões de visitas por colónia para armazenar 30 Kg
de pólen necessários para criar os juvenis, e 4 milhões de viagens para recolher néctar suficiente para transformar em reservas de inverno (mel). Por colónia são efectuadas cerca de
45.000 viagens por dia, sendo que em cada voo individual
uma abelha percorre 10 Km ida e volta, colectivamente uma
colónia percorre até 450.000 Km por dia10. Sem a flor a abelha
não sobrevive por falta de alimento; sem o insecto polinizador, a flor não propaga a espécie.
Outra característica que as abelhas desenvolveram e que
lhes permite deter o título de “super polinizador” é o seu sofisticado sistema de comunicação. Como conseguem saber
que flores visitar e onde, e depois regressar à colmeia e transmitir a informação? A “waggle dance” é um mecanismo consistente de comunicação e de geolocalizição descrita pela primeira vez por Karl von Frisch (prémio Nobel da Medicina e
Fisiologia com Konrad Lorenz e Nicola Tinbergen em 1973).
Para mostrar a direção do local de uma boa fonte de alimento baseiam-se no compasso solar. Um vector dentro da colmeia indica a localização da fonte de alimento em relação à
posição do sol. Quando as flores estão na direção ao sol, a
abelha-recolectora inicia a “waggle dance” em direção ao
topo da colmeia, ou em direção à parte de baixo da colmeia,
se a fonte de alimento estiver na direção oposta à do sol, com-
–154–
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Figura 4. Hierarquia dos animais
explorados pelo Homem mais rentáveis na Europa. Por ordem decrescente: bovino, suíno, abelha,
galinha. Adaptado (6).
pensando o movimento do sol ao longo do dia6 (Fig. 3). As árvores e plantas, em geral, não necessitam apenas das abelhas
para a sua própria reprodução, mas para todo o sistema no
qual existem. Quanto maior a quantidade de espécies de fruto e sementes num sistema, maior a biodiversidade e maior a
capacidade de gerar vida. Por todas estas características, as
abelhas são pilares no ecossistema, na agricultura, pelo serviço eficaz de polinização que nos prestam e, finalmente, no
nosso prato, pela variedade e quantidade de vegetais e frutas
e outros produtos que nos proporcionam. As abelhas assumem, assim, o terceiro lugar como animal “domesticado”
mais relevante na Europa (Fig. 4).
A abelha e o homem: uma longa história
Não é de hoje que as abelhas e o Homem partilham relativamente o mesmo espaço lado a lado. Pela sua capacidade de recolha eficaz de pólen e néctar, têm fornecido ao Homem quer alimento, quer vegetais, mas fornecem-nos diretamente alimento como o mel e polinização de extensos terrenos de exploração agrícola.
O fóssil de abelha mais antigo data de há 100 milhões de
anos em Myanmar (Birmânia) incrustado num pedaço de âmbar. Esta primeira abelha era mais pequena e idêntica a uma
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RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
–155–
Figura 5. Caça ao mel, pintura rupestre na Cueva de la Araña, Espanha, datada de aproximadamente 6000 anos a.c. Adaptado de
(11).
vespa, predadora de outros insectos, mas coberta igualmente de pelos que capturavam pólen. Ao longo da evolução esta
abelha, que parece ter optado por uma alimentação vegetariana à base de pólen e do doce néctar floral, está espalhada
pelo mundo, existindo cerca de 25.000 espécies hoje em dia.
Pinturas rupestres encontradas na Cueva de la Araña (Valencia, Espanha) sugerem que os primeiros contactos do Homem com abelhas e caça ao mel remonta à Idade da Pedra
(Fig. 5). Recipientes contendo mel com 3000 anos foram encontrados junto de restos mumificados de um faraó. Portanto, o mel extraído das colmeias não servia apenas como fonte de alimento mas também para tornar mais agradável o
pós-vida com o “doce dos deuses”. Um papiro registou que
quando Re, o primeiro dos deuses egípcios, chorou, as suas
lágrimas “transformaram-se numa abelha”, ocupando-se ele
próprio das flores de cada planta e, dessa forma, a cera foi
criada assim como o mel. Os egípcios acreditavam, então, que
o mel era uma substância divina e curativa digna de oferecer
a Min, deusa da fertilidade.
Na Mitologia Grega, o mel era considerado quer o alimento dos deuses, quer o ingrediente para o amor e que teria sido Zeus, o deus dos deuses, a dar o ferrão à abelha. Aristóteles, escreveu extensivamente sobre o comportamento de
abelhas, hierarquia e extração de mel nos seus trabalhos de
–156–
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Figura 6. A evolução do design das colmeias ao longo da história. Da esquerda para a direita, colmeias: de estrume, lama e palha; de palha; Langstroth moderna. Adaptado de (11).
história natural. Apesar da simbologia religiosa e espiritual,
a apicultura era encarada, também de uma forma mais terrena: valor comercial e potencial exploratório. Por sua vez, na
cultura Hindu, o mel assumiu diversas aplicações terapêuticas e conotação espiritual. Em textos com cerca de 4.000 anos
do Vedas (“conhecimento”) e Ayurveda (“conhecimento da
vida”) foi descrito como “elixir da imortalidade”. Os Romanos e os Astecas eram praticantes de apicultura, usando o mel
como “moeda de troca”, como alimento, como medicamento.10, 11
Desde a caça selvagem ao mel, o Homem foi aprendendo a respeitar o animal e a desenvolver metodologias mais
eficientes na extração de mel, de forma a evitar a destruição
da colónia a cada extração, e aumentar a produção de mel.
Passou a acondicionar as colmeias naturais em cestos de palha, recipientes de barro cozido ou ainda de lama e estrume
(Fig. 6). Mas foi em meados do séc. xix que a apicultura se revolucionou pela utilização de um novo conceito de colmeia
com quadros móveis, possibilitando a remoção apenas dos
quadros com mel, minimizando a manipulação da criação.
Como símbolo da apicultura moderna, podemos referir o apicultor americano Lorenzo Langstroth (1851) que patenteou
este tipo de design das colmeias e evidenciou o potencial económico e profissional desta atividade (Fig. 6).
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
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–157–
Mel: onde sem saber um adoçante
é uma boa prática de bioética
Mel é um adoçante natural produzido pela abelha melífera europeia (Apis mellifera) ( Diretiva 2001/110/ce do Conselho da União Europeia (ue), 20 de Dezembro, ponto 1, anexo I), que recolhe o néctar da parte feminina de plantas com
flor. Posteriormente, transforma o néctar por conversão enzimática (invertases) e desidrata-o (para evitar a fermentação)
e armazena-o nos favos, onde irá amadurecer até ser consumido. Este produto é normalmente consumido na sua forma
natural, não processada (cristalizado, líquido ou em favos). O
mel foi desde sempre o adoçante por excelência até ao estabelecimento do cultivo de cana-de-açúcar e uso de açúcar refinado na Europa. O consumo de mel tem aumentado nos últimos anos devido, em parte, à alteração do nosso estilo de
vida em geral: maior exigência pela qualidade e apreço por
produtos naturais.
Uma equipa sueca demonstrou que o mel produzido localmente tem menos impacto ecológico que outro tipo de
adoçantes. A energia necessária para produzir cerca de 450 g
de chocolate é o equivalente à energia incorporada na mesma
quantidade de gasolina. O mel produzido localmente necessita de muito menos energia para produzir e fornecer cerca de
450 g de produto final. A cana-de-açúcar e a beterraba necessitam de maiores quantidades de fertilizante, pesticidas e de
irrigação que qualquer outro tipo de plantação, o que desgasta e contamina o solo, bem como gastos energéticos acrescidos12. Por exemplo, os agricultores de cana-de-açúcar australianos usam cerca de 40% do total de água de irrigação em
Queensland. Por seu turno, os apicultores praticamente não
deixam rasto nos agroecossistemas, pois o mel acaba por ser
um subproduto da polinização de plantações agrícolas ou de
plantas silvestres. Apenas fornecem às colmeias alimento sob
a forma de pasta de açúcar “candy” durante o inverno e o tratamento, normalmente duas vezes ao ano, para o controlo de
um ácaro parasita, Varroa destructor. Para além disto, o mel
não requer processo de refinação nem secagem, apenas cen-
–158–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
trifugação e filtragem (processo mecânico ou manual). Sendo
produzido localmente, não requer também gastos energéticos
no transporte que, muitas vezes, compete com o custo de
produção/processamento do produto. Reunidas estas condições, e corroborando o estudo podemos referir que a produção deste adoçante natural gera um menor impacto no ambiente, é eco-friendly. A ação destes produtores de mel (as abelhas) é, portanto, sustentável, natural, equilibrada e não causa transtorno aos outros seres desse ecossistema contribuindo para a biodiversidade, e não só.
O mercado do mel no mundo: política pública
europeia
A União Europeia (ue) é responsável por cerca de 20 a
25% do consumo mundial de mel, cuja comercialização rendeu a nível mundial cerca de 737.509 € (1.000.000 us$)13, 14.
Mas os principais produtores de mel a nível mundial são a
China, os Estados Unidos da América, a Argentina, a Turquia
e a Ucrânia, segundo a fao (Fig. 7).
Da fortuita e tosca caça às colmeias até ao estabelecimento da atividade apícola profissional e industrial, integrada no sector primário (agricultura), e do longo historial de
consumo de mel pela sociedade humana, torna-se evidente
que o mercado do mel, e “subprodutos” da mera existência
das suas produtoras, tem um forte impacto na nossa economia.
O comércio e produção global de mel tem aumentado
lenta e gradualmente entre 2005 e 2011 (Fig. 7). Em 2011, a
produção mundial resultou em 1.636.000 toneladas de mel de
acordo com a fao15. A China é o nº 1, produzindo 404.604 t,
27,3% da produção mundial em 201114, 15, 16, 17, 18 (Fig. 7). Sendo que a Ásia é, de facto, a região com maior produção e com
um aumento mais significativo neste sector desde 200015 (Fig.
8). No que respeita à União Europeia, onde o nosso mercado
nacional está inserido, é considerado um importante produtor de mel quer em termos de quantidade quer em qualida-
–159–
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RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
Produção de mel
450
400
350
300
250
200
150
100
50
0
Argentin
China
Turkey
Ukraine
USA
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
milhares
de
toneladas
Comércio de mel
2000
world
import
1500
world
export
1000
500
0
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
milhões
de US$
Figura 7 – Evolução da produção de mel dos principais países mais relevantes
do sector (2006-2011) (em cima) e Comércio mundial de mel entre 2000 e
2011 (em baixo). Fonte: FAOSTAT 2014 (15).
Evolução da produção mundial de mel
800
700
600
500
400
300
200
milhares
de
toneladas
Africa
Americas
Asia
Europe
European Union
Figura 8 – Evolução da produção mundial de mel entre
1990 e 2011. Fonte: FAOSTAT 2014 (15).
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
0
Oceania
–160–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
de. Em 2011 a ue teve uma produção de 197.191 t (13,3%) (eurostat), sendo considerado o mercado com maior consumo
per capita no mundo. Dentro dos Estados Membros, os três
maiores produtores em 2011 foram a Espanha (30.844 t), Alemanha (23.433 t) e Roménia (21.887 t)13, 15, 16, 17, 18. Os Países
em Desenvolvimento também têm quota de mercado na produção de mel, pois juntos suprem 41% do total e importações
da ue, sendo a Argentina o principal fornecedor. Em África,
o principal produtor de mel é a Etiópia, que em 5 anos (20052010) aumentou a produção em 26%14, 15.
No que respeita ao mercado de importações e exportações, a União Europeia e os Estados Unidos da América são
os maiores importadores de mel a nível mundial. A ue importou 149.248 t, principalmente da China (43% do total) e da
Argentina em 2012. Os Estados membros que mais exportam
são a Alemanha e a Espanha que, juntos, contabilizam mais
de metade do total de exportações da ue14, 15. A União Europeia é um mercado deficitário, dado o desequilíbrio estrutural entre a oferta e a procura, recorrendo a importações habituais de mais de metade do mel consumido. Apesar da Europa ter embargado as importações da China durante 2002 e
2004, por ter detectado resíduos de antibióticos em amostras
de mel chinês, a China recuperou e tem liderado o mercado
de exportações de mel nos últimos anos (100.000 t em 2011)16.
Sem a grande produtividade das culturas devido aos serviços de polinização das colmeias comerciais, os preços dos
alimentos aumentariam, o sector agrícola rapidamente perderia competitividade e a segurança e diversidade do abastecimento alimentar diminuiria.
A ue acredita que o desenvolvimento e investimento na
apicultura irá contribuir para o crescimento sustentável do
sector, as colónias vão continuar a proporcionar serviços de
polinização eficazes e irão fomentar o desenvolvimento das
áreas rurais. Neste sentido, a ue adoptou o Regulamento
917/2004 que estabelece regras para implementação de medidas que melhorem as condições de produção e marketing
do mel na ue. Este objetivo é alcançado através de programas
apícolas nacionais que incluam apoio técnico e especializado
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
–161–
no campo, controlo da varroose, racionalização da transumância (movimentação de colmeias de um local para outro),
analises físico-químicas ao mel, suprimentos de colmeias e investigação aplicada ao sector apícola e produtos derivados.
Em 2008, foi disponibilizado cerca de 28 milhões € para programas apícolas dos Estados Membros16, 17, 18. Além disso, a
ue apoia o modo de produção de mel biológico de acordo
com o Regulamento no. 834/2007 do Conselho da ue, de 28
de Junho, ponto 1. Todavia, acaba por ser contraditória, uma
vez que também apoia indústrias químicas cuja atividade não
é favorável à prática de apicultura biológica. As indústrias
agrícolas super-intensivas estão espalhadas por toda a Europa, existindo apenas pequenas manchas florestais intactas favoráveis à pratica de mel biológico. Nesse sentido, os países
africanos estão a aproveitar a falta de industrialização/urbanização para fomentarem as suas produções biológicas. Pois
para ser possível estabelecer um apiário para produção orgânica, as colmeias têm de estar localizadas num raio de, pelo
menos, 3 km da indústria ou campo agrícola onde usam pesticidas e insecticidas.
A realidade do mel em Portugal
Portugal tem boas condições edafoclimáticas e uma flora silvestre diversa e abundante para a produção de mel17, 18.
A abelha produtora de mel é da espécie Apis mellifera iberiensis20, subespécie da abelha europeia. A produção de mel em
Portugal engloba milhares de apicultores, sendo considerada
um mercado nacional interessante, nomeadamente a nível regional. Em 2013 existiam cerca de 17.000 apicultores registados, com um conjunto total de 38.000 apiários e 562.000 colónias (2004-2010)13. A produção média anual aproxima-se dos
25 milhões € (2003). Os méis mais predominantes em Portugal são rosmaninho, laranjeira, eucalipto, girassol, urze, dependendo da localização17, 18. Mais de 90% dos produtores
nacionais não são profissionais (<150 colmeias), sendo a dimensão média do apicultor Português de 34 colmeias/api-
–162–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Número de colmeias por apicultor (Portugal, 2013)
Algarve
125,2
125
100
75
50
25
0
Norte
30,4
Centro
21,8
LVT
32,2
Alentejo
58,4
Açores
15,3
Madeira
13,1
Produção de mel anual (Portugal)
8000
7800
7600
7400
7200
7000
6600
6400
6200
2008
2009
2010
2011
2012
toneladas
Figura 9 – Número de colmeias por apicultor em Portugal (2013) e produção
de mel anual em Portugal (2008-2012). Fonte: DGAV 2013 em (18, 19).
cultor, 58% do total de colmeias17, 18. O Algarve e o Alentejo
constituem as regiões do Continente com menor número de
apicultores, mas onde se encontram os apiários com maior dimensão (Fig. 9). A produção nacional de mel entre 2008 e 2011
mostrou-se crescente, sofrendo uma quebra entre 2011 e 2012
(Fig.9). O consumo per capita é inferior a 1 kg por habitante
(~600 g/habitante/ano), sendo a sua utilização interna sobretudo destinada ao consumo humano. Já a nossa balança
comercial apresenta uma grande instabilidade: tendo atingido em 2009 um deficit de aproximadamente 1.500.000 €, em
2010 apresentava um saldo positivo de quase 1.700.000 € e
em 2012 cerca de 300.000 €13.
O recurso ao modo de produção biológico na apicultura
tem vindo a aumentar em Portugal. Entre 1995 e 2006 a área
agrícola Europeia destacada para este tipo de produção aumentou cerca de 23% (de 1 para 6.000.000 ha) da área agrícola mundial e a 4% do total da área europeia. Portugal apre-
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
–163–
sentou em 2006, 269.000 ha em agricultura, modo de produção biológico, correspondendo a 7,3% de toda a área agrícola nacional18, 19. O nosso país ocupa a 7ª posição a nível Europeu e a 17ª a nível mundial, onde se destaca a Austrália com
11.000.000 ha em utilização. Porém, a oferta de produtos biológicos ainda é inferior à procura.
O mel não é um bem de consumo comercializado na bolsa de valores. O seu preço varia dependendo de um conjunto de factores como os custos de produção, o clima, o tipo de
vegetação e o rendimento por colmeia. Sabemos que a maior
parte das importações de mel para os países desenvolvidos,
que têm a sua balança comercial deficitária, provêm de países
em desenvolvimento ou subdesenvolvidos como Argentina,
Etiópia, Brasil, México, Índia, Chile, Angola. Criar mais oportunidades de produção em modo biológico, incentivar o comercio justo e evitar uma exploração abusiva dos recursos
como o solo, água, abelhas, ecossistemas rurais é vital para a
nossa própria sustentabilidade. Pensamos intuitivamente que
é necessário fazer alguma coisa para evitar a ruptura dos
ecossistemas, a poluição, a desarmonia, mas se repensarmos
que todas estas consequências são fruto da nossa ação e construir, então talvez seja mais “ético” não fazermos mesmo
nada. A Natureza é resiliente. Talvez baste que não acrescentemos mais nada de material a esta Terra.
Polinização: um serviço comunitário
e de valor acrescentado
Sem polinização, a diversidade de árvores de fruto e outras plantas silvestres diminui; a biodisponibilidade de plantas silvestres é reduzida, o pasto para os animais herbívoros
silvestres diminui; ao diminuir a população de animais herbívoros por escassez de alimento, a biodisponibilidade de
alimento natural para os animais no topo da cadeia, os carnívoros, por sua vez, também se reduz e, eventualmente a cadeia poderá colapsar. Por outro lado, e como já foi referido
neste trabalho, sem polinizadores de “colmeias cativas”, a
–164–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
produtividade agrícola diminui, o preço dos legumes e frutos
que entram diretamente na nossa dieta, aumenta, assim como
os lacticínios e a carne, pois as pastagens para alimentar os
animais de pecuária, também aumentaria, inflacionando todo
o custo da cadeia de produção. A existência destes polinizadores sustenta, no fundo, toda estas cadeias de necessidades.
O que é então a polinização neste contexto? É o processo que a humanidade manipula para aumentar a produtividade das culturas e o lucro do crescimento das culturas. Algumas culturas não seriam, simplesmente, rentáveis sem o
apoio dos apicultores que movimentam as colmeias de um
lado para o outros para suprir as necessidades da agricultura durante as diferentes épocas de floração das culturas. Assim, as abelhas são vitais para a polinização de cerca de 90
plantações no mundo inteiro, e o seu declínio poderá originar
uma quebra no sistema de produção alimentar, como na
quantidade e variedade de vegetais, frutos, pastagem para
gado, sementes, avelã, nozes, etc.21. O conjunto das milhares
de visitas feitas por dia a cada flor por cada individuo da colmeia, no final, pode resultar num aumento muito significativo de produção agrícola.
Polinização é quase sinónimo de agricultura que, por sua
vez, é praticamente sinónimo de fonte de alimento. O aumento da produção agrícola nos Estados Unidos em 2010 foi
avaliado em mais de 19 biliões de us$ como resultado da polinização por abelhas. Para além de produzirem mel, as abelhas produzem vários outros produtos (Fig. 10) e ajudam a
polinizar plantações, jardins e habitats naturais. A usda fez
uma estimativa indicando que 80% da polinização de plantações agrícolas é feita por abelhas. Aproximadamente, um
terço da dieta humana total deriva direta ou indiretamente de
plantas polinizadas por insectos (frutas, legumes e outros vegetais).
As amendoeiras e respectivo produto, as amêndoas, dependem inteiramente da polinização por abelhas de mel.
Mais de 80% da produção mundial de amêndoa é feita na Califórnia. Para polinizar aproximadamente 740.000 ha de
amendoeiras é necessário mais de 1 milhão de colónias de
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–165–
Figura 10. Esquema exemplificativo dos subprodutos resultantes
do trabalho da Apis mellifera
abelhas melíferas22, 23. Muitas outras plantações dependem
da polinização por abelhas melíferas. Algumas dessas plantações incluem maçãs, abacates, cerejas, pepinos, kiwi, melões
e outros vegetais. A produção da maior parte de produtos de
carne e lacticínios nos eua depende de plantações polinizados
por insectos. As abelhas são um dos polinizadores usados em
campos de alfafa (ou luzerna) para produção de sementes na
Califórnia.
Políticas públicas: porque então estão
a desaparecer as abelhas e o que fazer
Desde 2006 que apicultores em todo o mundo têm observado um decréscimo, por vezes, massivo, de colmeias viáveis existentes nos seus apiários. A primeira grande manifestação deste desaparecimento foi designado por Colony Colapse Disorder (ccd). Só em 2007 nos eua foram contabilizadas
perdas na ordem dos 30 a 70% dos stocks de abelhas. Estimase que só a economia Europeia, sem contabilizar o valor dos
serviços de polinização, sofreu uma quebra de cerca de
400.000.000 € por ano devido ao declínio repentino da abelha
europeia10, 21.
O ccd não é a causa (ainda desconhecida), mas sim um
conjunto de sintomas provocados possivelmente por uma
combinação de factores como propagação de doenças, má nutrição, praticas negligentes na manipulação das colmeias, alterações de habitat e clima. As atenções têm estado, no en-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
tanto, mais voltadas para o uso indiscriminado de pesticidas
nos campos agrícolas10, 21, 24. Vários estudos têm relatado os
efeitos de pesticidas de uma classe particular de insecticidas,
os neonicotinóides (ex: imidaclopride, tiametoxan, clotianidine, tiaclopride). Muitos destes químicos foram introduzidos no mercado no inicio do séc. xxi e considerados uma categoria bastante eficaz na eliminação de pestes agrícolas por
características como: biodegradável, largo espectro de ação,
dosagens muito baixas e grande seletividade para os receptores nicotínicos de insectos. Curiosamente, foi por volta dessa altura que os apicultores começaram a testemunhar a ampla perda de colónias. Sabe-se agora que este tipo de inseticida sistémico move-se através da planta, desde o local de aplicação até às estruturas mais externas como rebentos, caule, folhas e flores e é extremamente tóxico para as abelhas e outros
polinizadores de culturas (efeitos letais ou sub-letais)21. Sobre
os insecticidas sistémicos já Rachel Carson referiu que “O
mundo dos insecticidas sistémicos é um mundo estranho...É um
mundo...onde um insecto pode morrer devido aos vapores emanados
de uma planta na qual nunca tocou; onde uma abelha pode transportar néctar venenoso que levará consigo para dentro da colmeia e,
de um momento para o outro, produzir mel venenoso.”25.
Ao contrario da maioria dos pesticidas tradicionais que
são aplicados à superfície da planta, os neonicotinóides são
muitas vezes utilizados para revestir sementes que absorvem
o produto e dispersam-no por todas as partes da planta, incluindo néctar e pólen, tornando-o disponível para os polinizadores. Por exemplo, praticamente todas as sementes de milho plantadas no Norte da América, excepto 0,2% usado para
produção biológica, é revestido com neonicotinóides21. Por si
só não afectará os insectos polinizadores, pois sendo um cereal, o meio de polinização utilizado é o vento, mas contaminará o ambiente já que há um grande excedente do pesticida
que não permanece na planta exposta. O carácter persistente
dos neonicotinóides conduzem ao aumento da contaminação
das águas de superfície, das águas subterrâneas (são hidrossolúveis) e dos solos, pilares desta cadeia de necessidades, colocando em risco todas as outras espécies, vidas, que habitam
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
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esses ecossistema. Entre os vários estudos sobre o efeito de
neonicotinóides em abelhas, foi verificado que a exposição a
doses sub-letais na colmeia afecta o sistema imunitário da
abelha tornando-a mais susceptível a patogéneos como a infeção por Nosema26 e que quer a sobrevivência quer o sistema
de navegação ficam comprometidos por exposição a doses
não letais de tiametoxan24. Por todos estes esforços, no sentido de fundamentar e encontrar evidências concretas dos efeitos destes pesticidas nos polinizadores, em Abril de 2013,
após um relatório da autoridade Europeia para a Segurança
Alimentar (efsa), referindo que estas substâncias colocam em
“risco grave” as abelhas essenciais à agricultura e ecossistemas naturais, a União Europeia tomou medidas preventivas
para proteger as abelhas e outros polinizadores dos efeitos
adversos dos neonicotinóides, estabelecendo 2 anos de restrição ao uso de clotianidin, imidaclopride e tiametoxan em
cultivos atrativos a abelhas. Antes desta moratória, países
como a Alemanha, Grécia, Itália, França, Eslovénia e Áustria
já teriam tomado medidas para suspender e restringir o uso
dos neonicotinóides independentemente. Assim, a revolução
tecnológica e progresso científico em que temos vivido pode
colocar sérios entraves à identidade e sobrevivência de outras
vidas tão fácil e rapidamente que mal nos apercebemos. As
políticas públicas deverão ter em atenção a importação/exportação de espécies animais e vegetais como um atentado às
barreiras ecológicas naturais.
O solo e a água: a base e o berço
A limitação do número de palavras a que temos que obedecer não nos permitirá considerar a importância do solo e da
água como pilares silenciosos das vidas de que falamos. Mencionando-os significa que o leitor, o político, o cientista, o
bioeticista não os deverão esquecer.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Conclusão
“A man is ethical only when life, as such, is sacred to him,
that of plants and animals as that of his fellow men, and
when he devotes himself helpfully to all life that is in need
of help”.
– Albert Schweitzer.
Se houvesse dentro de cada um de nós uma percentagem
significativa de Schweitzer, a Bioética não seria talvez necessária como disciplina, nem Conselhos Nacionais ou internacionais da mesma, nem grandes congressos nacionais e internacionais, nem gabinetes de imagem para nos venderem,
nem gabinetes de logística para organizarem encontros em
partes geralmente exóticas do mundo. Seria um outro mundo, mais próximo do das abelhas melíferas em que as políticas públicas se preocupariam com a Vida de todos os seres vivos.
De flor em flor, tratando cada dia e cada hora como uma
flor, transmitiríamos mensagens de pólen puro de um dia
para o outro, de uma hora para a outra, e ao fim dos anos, ao
fim de cada dia teríamos contribuído para adoçar e alimentar
o mundo sem que ninguém desse por isso.
Mas precisamente porque neste mundo ninguém dá pela
importância dos que contribuem para as políticas públicas
sem muito clamor, ou gabinetes de imagem ou logística para
vender os seus produtos, é que os podem destruir sem sequer
darem por isso. A história dos pesticidas é interessante. A dispersão de pesticidas em grandes superfícies de plantações, a
pobreza das monoculturas para as abelhas e as borboletas, a
pureza da água, a riqueza do solo como fonte de muitas vidas, só começam a ser notadas quando atingem as pessoas,
quando estudos epidemiológicos indiciam que as irritações
de pele, ou a diminuição da fertilidade, ou alguns sintomas
neurológicos, podem ter a ver com essa dispersão, com a contaminação da água, com a desertificação do solo.
As abelhas não são encaradas com o carinho ou sentimento especial reservado a animais de companhia. A relação
OUTRAS CIÊNCIAS, OUTRAS VIDAS – A ABELHA MELÍFERA E ALGUNS DOS SEUS ENSINAMENTOS
RAQUEL TEIXEIRA DE SOUSA & MARIA DE SOUSA
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Homem/abelha tem sido uma troca comercial unilateral revelando um grande desequilíbrio a nosso favor; as colmeias
e as abelhas têm sido muito mais generosas para nós que as
políticas públicas para as defender e proteger. Esperemos que
este capítulo corrija um pouco esse desequilíbrio não nos deixando esquecer que as abelhas não estão apenas a lutar pela
sua sobrevivência, mas estão também a lutar pela nossa.
Esperamos que com esta modesta contribuição de outras
vidas e outras mortes sem testamento, que quem nos ler, se
venha a perguntar se há em si um ser ético à la Schweitzer, ou
se passou a ser imperativo haver Conselhos Nacionais de Ética para não o deixar adormecer.•
Referências
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2. UNDP: Human Development Report, 2006 http://hdr.undp.org/en/media/HDR06-complete.pdf page 45
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5. Wilson, E. O., The Insect Societies, Cambridge, MA. Belknap Press of Harvard University Press, 1971
6. Jurgen Tautz,. The Buzz about Bees, Biology of a Superorganism. Heidelberg. Springer, 2008
7. Maleszka R., Epigenetic integration of environmental and genomic signals in
honey bees, Epigenetics 3:4, 188-192, 2008
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12. Carlsson-Kanyama, A., M. P. Ekström and H. Shanahan, Food and life
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13. CBI, Centre for the Promotion of Imports from developing countries,
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pp.1-32, 2009
14. CIAFS, Capacity to Improve Agriculture and Food Security. The world market survey; market survey #01, USAID 2012
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
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17. GAPA, Grupo Acompanhamento do Plano Apícola, 2010, Programa Apícola Nacional – Triénio de 2011-2013
18. GAPA, Grupo Acompanhamento do Plano Apícola, 2010, Programa Apícola Nacional – Triénio de 2013-2016
19. Instituto Nacional de Estatistica, Portugal 2013 http://www.ine.pt/
20. Souza, Pinto, Moura, Baptista, & Carvalho, 2010; Souza, L., Pinto, M.,
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22. USDA/NASS, California Almond Acreage Report, April 30, 2010
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24. Henry, M, Béguin, M, Requier, F, Rollin, O, Odoux, JF, Aupinel, P, Aptel, J, Tchamitchian, J, Decourtye, A., A Common Pesticide Decreases Foraging
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25. Rachel Carson, Silent Spring, First Mariner Books, 1962
26. Pettis JS, van Engelsdorp D, Johnson J, Dively G., Pesticide exposure in honey bees results in increased levels of the gut pathogen Nosema, Naturwissenschaften 99: 153– 158, 2012
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Ensaios Clínicos:
o Regulamento europeu
M. Patrão Neves
A investigação biomédica envolvendo seres humanos, e
especificamente os ensaios clínicos, constitui uma das temáticas originárias da bioética e indubitavelmente a mais decisiva do seu surgimento, além de ser também aquela que determinou a elaboração das primeiras normas ético-jurídicas –
Código de Nuremberga, em 1947, e o Belmont Report, em
1978 –, sendo ainda o único domínio de acção em que a reflexão ética ganhou uma efectiva preponderância na medida
em que a sua apreciação se tornou vinculativa no que se refere à autorização para a realização dos ensaios clínicos.
Neste contexto, não surpreenderá certamente que também as instituições europeias legítimas para o efeito tenham
tomado a iniciativa de se pronunciar sobre os ensaios clínicos,
o que têm vindo a fazer desde muito cedo e até ao presente,
primeiramente através de Directivas e mais recentemente
através de uma proposta inédita de Regulamento. Esta alteração do estatuto jurídico do pronunciamento da Comissão
Europeia sobre os ensaios clínicos não é ingénua, mas antes
se inscreve nos objectivos desde há muito perseguidos nesta
matéria, reforçando-os. Com efeito, o Regulamento é estabelecido uniforme e obrigatoriamente para todos os EstadosMembros da União, enquanto a Directiva carece de transpo-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
sição para o direito de cada Estado-Membro, num processo
que permite que o texto seja adaptado à realidade da comunidade nacional em causa e, assim sendo, que não se aplique
igualmente em todos os Estados-Membros.
A orientação geral e o sentido da evolução dos pronunciamentos da Comissão Europeia sobre os ensaios clínicos –
a qual detém o poder de iniciativa no contexto das instituições europeias –, a par dos objectivos da Proposta de Regulamento e dos meios a implementar para os alcançar constituirão as temáticas centrais do presente texto.
1. As Directivas europeias
A Comissão Europeia apresentou três Directivas, entre
as quais algumas que não obstante incidirem sobre temáticas
específicas distintas dos ensaios clínicos se lhes reportam
efectivamente, estabelecendo, no seu conjunto, quer a obrigatoriedade de ensaios clínicos prévia à comercialização de
um fármaco, quer um quadro legal para a autorização da sua
realização.
A Directiva 65/65/cee do Conselho, de 26 de Janeiro de
1965, “relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, respeitantes às especialidades farmacêuticas” foi a primeira que se pronunciou especificamente sobre os ensaios clínicos, os quais contempla no seu
artigo 4º, número 8, enunciando que toda a “concessão de autorização de colocação no mercado” de uma especialidade
farmacêutica deve ser acompanhada pela informação acerca
dos resultados dos ensaios clínicos. Estabelece assim, indirecta mas formalmente, a exigência de ensaios clínicos para
colocação no mercado de uma nova especialidade farmacêutica se bem que, nas alíneas a) e b) do mesmo número do artigo 8º, se permita, sob determinadas condições, a substituição da apresentação dos resultados dos ensaios clínicos por
documentação bibliográfica.
Segue-se a Directiva 75/318/cee do Conselho, de 20 de
Maio de 1975, “relativa à aproximação das legislações dos Es-
ENSAIOS CLÍNICOS: O REGULAMENTO EUROPEU | M. PATRÃO NEVES
–173–
tados-Membros respeitantes às normas e protocolos analíticos, tóxico-farmacológicos e clínicos em matéria de ensaios de
especialidades farmacêuticas” que, reportando-se à anterior
Directiva citada, explicita inequivocamente que as normas e
protocolos para a execução de ensaios nas especialidades farmacêuticas são essenciais para a qualidade dos mesmos, os
quais, se seguirem “regras comuns para a condução dos ensaios, a constituição dos processos e a instrução dos pedidos”,
em qualquer país que venham a ser realizados, tornarão viável também a circulação das especialidades farmacêuticas.
Em 2001, a Comissão Europeia apresenta a Directiva
2001/20/ce do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de
Abril, “relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à aplicação de boas práticas clínicas na condução
dos ensaios clínicos de medicamentos para uso humano” que
estabelece “disposições específicas relativas à realização de
ensaios clínicos” no respeito de “requisitos de qualidade, em
termos éticos e científicos”. Contrariamente às anteriores Directivas, esta incide especificamente sobre os ensaios clínicos,
não surpreendendo por isso que seja também aquela que, de
forma mais completa e detalhada, aborda a diversidade de
questões envolvidas nos ensaios clínicos, sendo ainda aquela que apresenta um mais extenso pronunciamento de natureza ética.
A Directiva 2001/20/ce começa por reiterar a necessidade dos “pedidos de autorização de colocação de um medicamento no mercado serem acompanhados por um processo
contendo informações e documentos relativos aos resultados
dos testes e ensaios clínicos efectuados sobre esse produto”,
expressa na Directiva 65/65/cee, e de se “instituirem regras
uniformes quanto à constituição desses processos e à respectiva apresentação”, já indicada na Directiva 75//318/cee.
Desta forma, a Directiva de 2001 vem claramente na esteira
das anteriores reforçando, e por isso também evidenciando,
a orientação que se vinha já explicitando nos seus traços mais
marcantes. Primeiramente o de uma intensificação da harmonização de requisitos e de procedimentos para a autoriza-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
ção de um ensaio clínico, o que se resume no objectivo de
“aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes às normas e protocolos analíticos, tóxico-farmacológicos e clínicos em matéria de ensaios de medicamentos”, instituindo “regras uniformes quanto à constituição desses processos e à respectiva apresentação” (Considerando 1). Um segundo traço igualmente característico dos pronunciamentos
europeus sobre ensaios clínicos é o da crescente centralização:
“a formulação de um parecer único por cada Estado-Membro
interessado diminui o prazo até ao início de um ensaio” (Considerando 8). Ambos os aspectos se encontram ilustrados no
artigo 7º da Directiva em que é estabelecida a exigência de um
“parecer único”, por Estado-Membro, sendo que, para ensaios clínicos multicêntricos efectuados em vários EstadosMembros simultaneamente, haverá tantos pareceres únicos
quantos os Estados-Membros envolvidos.
Entretanto, a Directiva 2001/20/ce vai muito mais longe do que as anteriores no que se refere a preocupações éticas
e às correspondentes medidas a implementar para garantir o
bem-estar dos sujeitos e o respeito pela dignidade de cada
pessoa. Assim, esta Directiva, na sua exigência de “parecer
único”, tendo em vista aumentar a rapidez e garantir uma decisão uniforme sobre os ensaios em cada um dos vários Estados-Membros, determina a criação de um “comité de ética”
nacional para apreciação das propostas de ensaios clínicos.
Ou seja, tendo podido optar por um organismo nacional de
natureza técnica opta por um de natureza ética. Este constitui o contexto ideal para as melhorias importantes em termos
de segurança e solidez ética e de fiabilidade de resultados,
com um elevado nível de protecção da pessoa, que esta Directiva proporciona, nomeadamente: a enunciação de “princípios de base”, éticos, para a execução de ensaios clínicos;
protecção dos participantes por uma avaliação de risco, controlada pelos comités de ética e autoridades nacionais competentes, sem negligenciar a protecção de dados pessoais;
protecção acrescida para as pessoas incapazes de darem consentimento; introdução da obrigatoriedade de um seguro/indemnização.
ENSAIOS CLÍNICOS: O REGULAMENTO EUROPEU | M. PATRÃO NEVES
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Brevemente, podemos afirmar que a Directiva de 2001
prolonga e reforça o anteriormente estabelecido e introduz
preocupações éticas anteriormente ausentes. Assim sendo, a
leitura comparativa das três Diretivas europeias com impacto significativo em matéria de ensaios clínicos, evidencia uma
inequívoca coerência entre elas sendo que a sua sequência
cronológica vai traçando uma mesma orientação que se aprofunda.
2. A Proposta de Regulamento da Comissão Europeia
Em 2012, a 17 de Julho, a Comissão Europeia apresenta
uma “Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do
Conselho relativo a ensaios clínicos de medicamentos para
uso humano e que revoga a Directiva 2001/20/ce”, a qual
consideramos vir na esteira dos seus anteriores pronunciamentos sobre a matéria e em rigorosa coerência com os mesmos, evidenciando simultaneamente uma radicalização das
orientações que vinham sendo traçadas.
Com efeito, desde logo, a opção da Comissão Europeia
pela forma jurídica de Regulamento, em detrimento da de Directiva, corresponde já ao reforço quer da harmonização dos
critérios, quer da centralização dos procedimentos. Paralelamente, a Comissão explicita os principais objectivos a alcançar através deste Regulamento como sendo a facilitação da
realização de ensaios clínicos no espaço europeu e, assim
também, a dinamização de um mercado interno de medicamentos. Estes desideratos já vinham estando presentes nas
Directivas citadas, em particular na de 2001, mas não inequivocamente estabelecidos como metas a atingir através do Regulamento em elaboração que tem, assumidamente, “como
objetivo a realização de um mercado interno no que diz respeito aos ensaios clínicos e aos medicamentos para uso humano, tomando como base um nível elevado de proteção da
saúde. Ao mesmo tempo, o presente regulamento define normas elevadas de qualidade e de segurança dos medicamentos para responder às preocupações comuns de segurança re-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
lativas a esses produtos. Ambos os objetivos são visados em
simultâneo. Ambos estão ligados de forma indissociável e nenhum deles é secundário em relação ao outro.” (Proposta de
Regulamento, Considerando 64)
De uma forma sistematizada podemos dizer que estes
objectivos foram efectivamente procurados pela Comissão
Europeia quer num plano formal, a nível jurídico, ao propor
um “regulamento” para ser implementado da mesma forma
em todos os Estados-Membros, não se sujeitando a requisitos
ou particularidades nacionais adicionais introduzidas no processo de transposição, e garantindo uma aplicação uniforme;
quer num plano material, ao nível dos conteúdos ou orientações, ao estabelecer um conjunto de condições atraentes à realização de ensaios clínicos no espaço da União Europeia de
forma a contribuir para aumentar o número actual de ensaios
clínicos em curso.
Especificando estes dois planos de intervenção, acrescentaríamos que, no plano formal, a Comissão Europeia investe na harmonização da legislação em todos os EstadosMembros e na simplificação das disposições legislativas que
se aplicam aos ensaios clínicos. No plano material o investimento centra-se na facilitação dos processos administrativos
e na descentralização de competências de natureza ética em
oposição à centralização do processo de decisão para realização dos ensaios clínicos e até de redução quer de intervenientes no processo de apreciação, quer de variáveis a considerar.
Assim, no que se refere à harmonização, e entre as propostas de maior impacto, destaca-se a autorização única para
a realização de um ensaio clínico em vários Estados-Membros, com um único promotor responsável, devendo os dados
produzidos serem aceites em toda a União Europeia. Aliás,
também ao nível dos medicamentos utilizados nos ensaios
clínicos e dos produtos farmacêuticos colocados no mercado,
incluindo a autorização de introdução no mercado, devem estar sujeitos a um mesmo e único processo nos diversos Estados-Membros.
A desejada simplificação dever-se-á efectivar através do
ENSAIOS CLÍNICOS: O REGULAMENTO EUROPEU | M. PATRÃO NEVES
–177–
proposto novo procedimento de autorização: portal único
gratuito para os promotores, denotando claramente o intuito
de atrair a realização de ensaios clínicos no espaço europeu;
sistema de avaliação flexível e rápido, com uma avaliação
controlada pelos Estados-Membros (a “exclusão qualificada”
por parte dos Estado-Membros dar-se-ia apenas em “certos
casos bem definidos”); prazos claros e um princípio de aprovação tácita; um procedimento rápido para alargar um ensaio
clínico a Estados-Membros adicionais; sendo que a alteração
de um ensaio já aprovado só carece de autorização se tiver repercussões significativas.
Já no que classificamos no plano material, a facilitação
evidencia-se, por exemplo, através da racionalização, simplificação e modernização das regras de comunicação de informações de segurança, nomeadamente através da exclusão da
notificação de acontecimentos adversos ao promotor por parte do investigador, se tal estiver previsto no protocolo e a facilitação dos relatórios anuais, podendo-se dispensar alguns.
Entretanto, para além dos aspectos mais relevantes agora meramente apontados os quais, indo mais longe do que o
proposto em qualquer das Directivas anteriores, se mantêm
numa linha de coerência com os anteriores pronunciamentos,
importa sublinhar muito particularmente o descentramento
de competências europeias para competências nacionais e/ou
locais que agora se propõe com a curiosidade de não só se
apresentar “contra corrente” como de incidir também apenas
sobre aspectos de natureza ética. Referimo-nos especificamente: à responsabilidade por danos sofridos que se propõe
passe a ser da competência nacional e independente do promotor do ensaio; ao seguro/indemnização obrigatório que,
quando não houver risco adicional à prática clínica ou este
seja negligenciável, dispensará à previsão de uma compensação específica, sendo que, se houver um risco adicional,
será o Estado-Membro a dever dispor de um mecanismo nacional de indemnização; a que acrescentaríamos ainda como
incumbência nacional o processo de obtenção do consentimento esclarecido e como responsabilidade local a adequação
do centro de ensaio clínico.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
O reforço quer da harmonização, quer da centralização
justifica-se indirectamente pelo teor das críticas que a própria
Comissão Europeia dirige à Directiva 2001/20/ce como estando na base de uma descida de 25% no número de pedidos
de autorização de ensaios clínicos entre 2007 e 2011 (de 5.000
para 3.800), sobretudo devido a excesso de burocracia que
terá também provocado o aumento: dos custos dos ensaios
pela necessidade “do dobro de recursos humanos (107%)
para o tratamento do processo de autorização”, isto é, custos
sobretudo administrativos, mas também com seguros, os
quais que terão sofrido um aumento de 800% e do “período
médio decorrido até ao lançamento de um ensaio clínico” em
“90%, atingindo 152 dias.” Ora se, como já tivemos oportunidade de sublinhar, a Directiva 2001/20/ce tinha sobretudo
desenvolvido os requisitos éticos prévios à realização de um
ensaio clínico, parecem agora ser principalmente estes os
perspectivados entraves à concretização de um mercado único.
Com efeito, importa sublinhar que esta Proposta de Regulamento sobre Ensaios Clínicos é bastante exaustiva no que
se refere ao estabelecimento (harmonizado) de elevadas normas de qualidade e segurança de medicamentos (utilizados
nos ensaios clínicos e comercializados a partir dos ensaios clínicos), ao nível quer da robustez e fiabilidade dos dados produzidos, quer da garantia da qualidade e segurança (e eficácia) dos medicamentos administrados. Porém, é bastante
omissa no que se refere a exigências éticas para a realização
de ensaios clínicos, as quais se restringem praticamente à exigência de consentimento esclarecido, e atribui muitas responsabilidades em matéria de fiscalização e compensações
aos Estados-Membros (segundo o princípio da subsidiariedade). Consideramos que o facto mais significativo desta secundarização das preocupações éticas em prol da promoção
de um mercado único europeu de ensaios clínicos e de medicamentos é ilustrada pela total desvalorização das comissões
de ética, antes obrigatórias e de pronunciamento vinculativo
e agora efectivamente facultativas uma vez que “o regulamento proposto não regula nem harmoniza o funcionamen-
ENSAIOS CLÍNICOS: O REGULAMENTO EUROPEU | M. PATRÃO NEVES
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to concreto dos comités de ética, não impõe uma cooperação
sistemática a nível operacional entre os comités de ética na ue,
nem limita o âmbito da avaliação a efectuar por estes comités
a assuntos estritamente éticos”, ficando tudo isto entregue à
prerrogativa dos Estados-Membros.
Em síntese, a explicitação, sem precedentes, dos interesses económicos associados à realização de ensaios clínicos e
o objectivo inequívoco de aumentar o seu número no espaço
europeu foram programados na presente Proposta de Regulamento a partir da redução deliberada das exigências éticas,
simultânea e lamentavelmente relegadas para a prerrogativa
dos Estados-Membros.
3. O Regulamento europeu
relativo a Ensaios Clínicos
A Proposta de Regulamento, de iniciativa da Comissão
Europeia, seguiu os trâmites normais na União Europeia, em
particular após o Tratado de Lisboa que exige que não só o
Conselho Europeu, mas também o Parlamento Europeu apreciem a Proposta e redijam os seus respectivos relatórios os
quais são posteriormente sujeitos a um processo de conciliação, entre o Conselho e o Parlamento e com a presença da Comissão – designado “trílogo” –, para elaboração de um documento único, ou seja, o futuro “Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a ensaios clínicos de
medicamentos para uso humano e que revoga a Directiva
2001/20/ce”, que deverá conhecer a sua versão final no mês
de Abril de 2014.
No caso da Proposta de Regulamento da Comissão Europeia, a apreciação do Conselho e do Parlamento, bastante
críticas, vieram a ser determinantes para a sua alteração muito significativa, quer no que se refere ao reforço da autoridade dos Estados-Membros, antes diluída na centralização dos
procedimentos na Comissão Europeia, quer no reforço dos
requisitos éticos, antes esbatidos na descentralização para os
Estados-Membros.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
O Conselho Europeu, constituído pelos respectivos Ministros da totalidade dos Estados-Membros, dirigiu naturalmente o seu empenho para afirmação para a autoridade dos
próprios Estados-Membros em matéria de ensaios clínicos
realizados no seu respectivo espaço nacional, e muito particularmente em contrariar a possibilidade de uma decisão central acerca da qualidade do ensaio clínico, nomeadamente do
Estado-Membro responsável, escolhido pelo promotor, inviabilizar a tomada de decisão por cada Estado-Membro.
O Parlamento Europeu, verdadeiramente representativo
dos cidadãos europeus que elegem os seus membros por escrutínio directo, empenhou-se principalmente em alterar as
disposições éticas (ou colmatar a ausência das mesmas) da
Proposta de Regulamento que suscitavam sérias preocupações sobretudo no que se reportava aos dois únicos temas
abordados: comissões de ética e consentimento informado.
No que se refere às comissões de ética, a Proposta de Regulamento previa que o seu parecer, até então de natureza
vinculativa e requisito prévio a toda e qualquer autorização
para ensaios clínicos, deixasse de o ser, pelo que também as
comissões de ética deixariam de ser obrigatórias, tal como se
evidencia na sua Exposição de motivos, 3.2 Procedimento de
autorização e dossiê de autorização:
[…] O regulamento proposto não define o organismo ou organismos ao(s) qual(ais) compete, dentro de um EstadoMembro, aprovar (ou não) um ensaio clínico. Por conseguinte, o regulamento proposto não regula nem harmoniza
o funcionamento concreto dos comités de ética […].
Neste contexto, o regulamento proposto mantém, no entanto, que todos os pedidos relativos a ensaios clínicos devem
ser avaliados conjuntamente por um número razoável de
pessoas independentes que disponham coletivamente das
qualificações e experiência necessárias em todos os domínios
relevantes e representem igualmente o ponto de vista de leigos.
Podemos admitir que a descrição desta necessária avaliação conjunta prefigura a já tradicional “comissão de ética”.
ENSAIOS CLÍNICOS: O REGULAMENTO EUROPEU | M. PATRÃO NEVES
–181–
Em todo o caso, a omissão evidente e deliberada desta não é
inconsequente e aponta inequivocamente para uma desvalorização deste organismo.
Entretanto, o acordo obtido no trílogo, em Dezembro de
2013, veio a introduzir a menção à necessidade de comissões
de ética, cujo envolvimento nos ensaios clínicos competirá ao
Estado-Membro organizar. As comissões de ética são definidas, no artigo 2º do texto do acordo, como:
[…] um organismo independente num Estado-Membro, estabelecido de acordo com o direito nacional e com o poder de
emitir pareceres no âmbito deste Regulamento, tomando em
consideração o ponto de vista de leigos, em particular de pacientes e de organizações de pacientes.
O artigo 4º confirma a necessária intervenção da comissão de ética na apreciação de ensaios clínicos na afirmação de
que
Um ensaio clínico deve ser sujeito a uma apreciação científica e ética […]. A apreciação ética será realizada por uma
comissão de ética independente […].
Os ensaios clínicos devem pois ser revistos sob uma
perspectiva ética antes de serem autorizados, uma vez que
quer os requisitos éticos, quer os científicos são reconhecidos
como constituindo uma boa prática clínica. A apreciação ética, por comissões de ética, torna-se um pré-requisito para a
autorização do ensaio clínico e este parecer torna-se vinculativo, tal como afirma o ponto 3º do artigo 8º:
Um Estado-Membro implicado recusará a aprovação do ensaio clínico se discordar […] ou quando a comissão de ética
apresentou um parecer negativo o qual, de acordo com o direito nacional, é válido para todo o Estado-Membro.
No que se refere ao tema do consentimento informado,
importa sublinhar que era o único de natureza ética considerado na Proposta de Regulamento, constituindo o seu capítulo V, sob a designação “Protecção dos sujeitos do ensaio e
consentimento esclarecido”. Previa-se então a obtenção de
–182–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
consentimento informado por parte do participante nos ensaios ou do seu representante legal, quando estes se realizassem em sujeitos incapazes e em menores, apresentando o texto uma formulação geral correcta.
O texto do acordo obtido no trílogo veio desenvolver
muito significativamente este capítulo V e a secção dos “considerandos” que se lhe reporta, no sentido de reforçar a protecção dos participantes nos ensaios. Assim, passou a afirmar
que a obtenção prévia do consentimento informado passa
pela realização de uma entrevista para apresentação da informação devida, de forma detalhada, numa linguagem clara e com oportunidade de colocar questões, devendo-se confirmar a boa compreensão da informação transmitida e conceder tempo para ponderar a decisão tomada, não deixando
de se dedicar atenção especial às necessidades individuais
das pessoas ou de populações específicas, bem como aos métodos utilizados para transmitir a informação. Ou seja, assume-se tacitamente que a obtenção do consentimento é um
processo ético e não um acto jurídico. Além disso, são consideradas situações específicas que podem afectar uma tomada de decisão verdadeiramente livre, sem qualquer influência ou coacção, incluindo a de natureza financeira, prevendose requisitos adicionais de protecção no caso de menores, e
pessoas incapacitadas e sempre ponderando o menor encargo possível. Ainda no que se refere a menores e a pessoas incapacitadas para dar o consentimento sublinhou-se que os
benefícios directos devem superar os riscos e encargos, tendose ainda especificado o dever de envolver o menor capaz de
assentimento. Aliás, verificou-se igualmente um alargamento da população vulnerável considerada, incluindo-se, por
exemplo, as mulheres grávidas e as que estão a amamentar.
A Proposta de Regulamento, ainda no âmbito do consentimento informado, apresentava a particularidade, absolutamente inédita, de introduzir a possibilidade de prescindir
do consentimento informado em situações de urgência médica consideradas oportunas para iniciar um ensaio clínico. O
texto do acordo introduz importantes medidas de protecção
acrescida como sejam: a existência de justificação científica
ENSAIOS CLÍNICOS: O REGULAMENTO EUROPEU | M. PATRÃO NEVES
–183–
para considerar que a pessoa numa situação de urgência, integrada num ensaio clínico sem capacidade de consentir, deverá obter relevantes benefícios directos e que apenas poderá impor um risco ou encargo mínimos quando comparados
com o tratamento-padrão.
Impõe-se, pois, concluir que o acordo obtido no trílogo
melhorou significativamente a proposta inicial do Regulamento da Comissão, sobretudo no que se refere aos requisitos de natureza ética, recuperando o valor das comissões de
ética, na sua exigência de apreciação prévia e vinculativa dos
ensaios clínicos, desenvolvendo e especificando medidas de
proteção dos participantes nos ensaios clínicos no âmbito do
processo de obtenção do consentimento informado. Não obstante, consideramos não se dever subestimar a Proposta de
Regulamento de Comissão Europeia, no que foi revista, por
evidenciar objetivos e estratégias reais que correspondem a
orientações efectivas que tenderão a reaparecer. Esta interpretação, aliás, ganha força na consideração de que a orientação dos pronunciamentos europeus sobre ensaios clínicos
se mantém coerente ao longo das décadas, ainda que num
acentuar progressivo dos seus traços dominantes – a harmonização e a uniformização, a centralização e a facilitação – os
quais tenderão a secundarizar as exigências éticas, no que só
pode ser considerado como um retrocesso na implementação
dos direitos humanos no âmbito da biomedicina. É esta tendência, hoje evidenciada, que importa contrariar em prol da
preponderância da integridade pessoal em detrimento de um
ultrapassado valor absoluto da ciência, da valorização da dignidade humana perante quaisquer interesses económicos.•
–185–
Reflexão bioética sobre o
projeto de lei da “coadoção”
Rita Lobo Xavier
Sumário:
1. Espaço para a reflexão bioética
2. Valores éticos em presença
3. O momento de ponderação ética na produção das
normas legais
4. Maternidade, paternidade, titularidade e exercício
das responsabilidades parentais na lei portuguesa
5. O instituto da adoção plena na lei portuguesa vigente
6. Excecionalidade do regime de “coadoção” proposto
7. A proteção dos direitos da criança
8. Conclusão
1. Espaço para a reflexão bioética
O Projeto de Lei n.º 278/xii, apresentado pelo Partido
Socialista1, propõe-se estabelecer um regime jurídico, designado por coadoção, que permita a uma pessoa adotar plenamente o filho, biológico ou adotado, do cônjuge do mesmo
1. Projeto de Lei n.º 278/XII/1.ª (PS) – “Consagra a possibilidade de coadoção
pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e procede à 23.ª alteração ao Código do Registo Civil”).
–186–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
sexo ou do companheiro do mesmo sexo com quem viva em
união de facto2.
Este projeto suscita muitas questões de natureza jurídica, designadamente, no plano do respeito pela dignidade da
pessoa humana e pelos seus direitos fundamentais, quanto
aos limites da intervenção do Estado no contexto da constituição de relações jurídicas familiares e sobre o reconhecimento jurídico de situações de facto deliberadamente criadas
contra as orientações das leis vigentes.
As questões subjacentes têm inegável relevância ética,
sendo também evidente a importância da reflexão bioética no
âmbito dos processos legislativos que visam emitir normas
jurídicas que afetem a vida da pessoa humana e a sua existência. A produção dessas normas pressupõe a procura do
bem da pessoa, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em conta a sua particular natureza. Lembro alguns pareceres do cnecv em que foi valorizada a maternidade e a paternidade, a sua íntima correlação e o seu significado para o desenvolvimento da criança e para a sociedade em
geral, bem como a responsabilidade do Estado relativamente às condições do seu exercício3; ou em que foi salientada, a
propósito da determinação dos beneficiários das técnicas de
pma, a estreita relação entre a maternidade e a paternidade e
a sua relevância no âmbito do direito ao desenvolvimento integral da personalidade do/a filho/a; em que foram formuladas objeções éticas a normas legais cujo resultado seja a negação do direito de ter pai e mãe; em que foi proclamada a in2. No que diz respeito à denominação escolhida para este regime – coadoção – saliento que, além de enganadora, é errada. O projeto visa permitir a
adoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo daquele que é titular das responsabilidades parentais relativamente ao adotando, quer na hipótese de tal titularidade ter como fonte o parentesco de origem biológica
quer resulte de adoção singular. Em nenhuma destas hipóteses se trata de
“coadoção”: a adoção do filho biológico pelo companheiro não é “coadoção”, pois só este adota; a adoção da criança já adotada singularmente também não o é: duas adoções singulares sucessivas não fazem uma “coadoção”.
3. Cfr. Parecer sobre as Condições do exercício da Maternidade e da Paternidade na Sociedade Portuguesa (36/CNECV/2001). Aí é salientado o significado da maternidade e da paternidade, bem como a necessidade da sua
valorização em atenção à sua importância na transmissão de novas vidas
humanas e do seu acompanhamento num projeto integral.
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
–187–
sustentabilidade ética de decisões que sujeitem um/a filho/a
a uma situação de desigualdade decorrente das circunstâncias concretas que deram início à sua vida; em que foram sublinhados os direitos à identidade pessoal e de acesso às origens4.
Nesses pareceres, bem como em muitas das declarações
a eles anexas, foram apreciadas questões éticas e jurídicas que
relevam igualmente no presente contexto, como sejam a questão de saber se a complementaridade sexual que está na origem da conceção dos seres humanos e que perdura na maternidade e paternidade deve acompanhar a sua gestação e
socialização, qual a correlação entre a maternidade e a paternidade e qual a sua importância, inclusivamente simbólica,
para a construção da identidade pessoal de cada ser humano.
2. Valores éticos em presença
2.1. O projeto de lei sobre que incide a minha reflexão diz
respeito à adoção de crianças, sendo reconhecida a sua situação de especial vulnerabilidade. A primeira preocupação ética será assim a procura do maior bem para a criança. As considerações primordiais serão o respeito pela dignidade da
criança, a promoção dos seus direitos fundamentais e a particular proteção requerida pela sua especial vulnerabilidade.
Será eticamente aceitável que a lei equipare à filiação natural
a relação que porventura se estabeleça entre uma criança e o
cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo do seu progenitor
ou adotante?
O resultado final do regime em análise será o de permitir que, em relação a algumas crianças, sejam constituídas relações equiparadas às da filiação – parentesco no primeiro
grau da linha reta – com duas pessoas do mesmo sexo. Tais
4. Cfr. Parecer sobre Reprodução Medicamente Assistida (3/CNECV/93);
Parecer sobre o Projeto de Proposta de Lei relativa à Procriação Medicamente Assistida (23/CNECV/97) e declarações de voto; Parecer sobre a
Procriação Medicamente Assistida (44/CNECV/2004) e declarações de
voto; Parecer sobre Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição (63/CNECV/2012) e Declaração Conjunta em anexo.
–188–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
relações integrarão o assento de nascimento da criança, do
qual constará uma informação diversa da que é evidenciada
para a generalidade dos cidadãos, para quem continuará a ser
identificado um pai e uma mãe, ou apenas um dos progenitores. Este resultado apela à discussão sobre o direito de cada
criança à vida familiar, bem como a questão de saber se esse
direito envolve, ou não, o direito a ter um pai e uma mãe. Está
ainda presente a questão de saber se uma criança terá o direito a ser adotada em termos equivalentes aos da filiação natural, tendo em conta também os seus direitos à identidade
pessoal e ao desenvolvimento pessoal.
Na comunidade humana, cada indivíduo sabe que foi
gerado por um homem e por uma mulher, independentemente das circunstâncias em que ocorreu o seu desenvolvimento depois do nascimento. A lenta evolução na valorização
das duas dimensões da filiação pelas sociedades atuais aponta para a conveniência da associação da ligação biológica aos
cuidados e proteção, mas sem desprezar tal ligação, sendo o
acesso às origens reconhecido como um direito. Por outro
lado, se a mãe e o pai não devem ser reduzidos a meras figuras abstratas, nem a meras presenças físicas, parece também
não dever esquecer-se a importância da representação social,
cultural e simbólica da maternidade e da paternidade.
Estará portanto em causa não apenas um conflito entre
os direitos e os interesses dos adultos e os direitos e interesses das crianças, mas entre distintos direitos que se reconhecem às próprias crianças. O critério fundamental a ter em conta parece ser o da proteção dos direitos à identidade pessoal,
ao desenvolvimento pessoal e ao respeito pela vida familiar5.
Estes direitos devem ser especialmente protegidos pelo Estado no caso de crianças que foram adotadas, uma vez que o
Estado se responsabilizou diretamente pela constituição da
5. Sobre estes direitos, na perspetiva jurídico-constitucional, cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, TomoI, 2ª Edição,
Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 607-616. Cfr. igualmente, na dimensão
mais jurídico-civilística, Paulo Mota Pinto, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Portugal-Brasil ano 2000, Coimbra, Coimbra Editora,
1999, Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito
Civil, Tomo III, Parte geral, Coimbra, Almedina, 2004, p. 80-81.
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
–189–
relação de adoção. No caso particular em que a situação diga
respeito a crianças já adotadas singularmente, serão de ter
ainda em consideração as dificuldades associadas à perturbação na identidade pessoal nesse contexto.
2.2. A constituição da relação de adoção implica uma
atuação do Estado, através do exercício dos diferentes poderes-funções constitucionalmente instituídos: a Assembleia da
República aprova o enquadramento jurídico (função legislativa), mas a relação de adoção será constituída por sentença
judicial (função jurisdicional), subsequente a um procedimento desenvolvido nos organismos de Segurança Social
(função administrativa)6.
Na medida em que se requer a intervenção do Estado no
campo da ordenação jurídica da comunidade familiar, interferindo nos princípios constitutivos da sociedade humana,
não estará apenas em causa a consideração dos direitos no
plano individual. Emergem também as questões da solidariedade e da promoção do bem comum, da repercussão deste regime excecional na conceção de família e filiação, e da
criação deliberada de situações de desigualdade relativamente às crianças abrangidas.
A argumentação desenvolvida como justificação do projeto reduz-se à descrição de casos dramáticos a reclamar um
regime de exceção. Surge assim a questão de saber se uma
eventual omissão legislativa poderá afetar outros direitos das
crianças carecidos de proteção. No entanto, não podem deixar de ser ponderadas as soluções e os instrumentos jurídicos
mais adequados e proporcionados ao fim a prosseguir, para
além da proposta da “coadoção”.
As situações apresentadas como carecidas de proteção,
tal como descritas, parecem ter origem em atuações propositadamente contrárias às orientações normativas neste âmbito. Este dado conduz à questão de saber se o Estado deve ser
6. Para uma descrição do processo de adoção, cfr. por todos, cfr. Pereira
Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. II, Direito
da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da filiação. Adoção, 2006, Coimbra, Coimbra Editora, p. 273 e ss.
–190–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
levado a instituir regimes excecionais para os cidadãos que
deliberadamente criaram determinadas situações contornando ou desrespeitando proibições legais.
2.3. O processo desencadear-se-ia por iniciativa do pai
ou da mãe da criança, que legalmente é titular em exclusivo
das responsabilidades parentais, e o regime proposto traduzir-se-ia afinal na extensão dessas responsabilidades ao respetivo companheiro ou ao cônjuge, o que implicaria, do ponto de vista substancial, uma limitação voluntária ou um ato
de disposição das mesmas. Surge a questão de saber se ser pai
ou ser mãe de um filho/a integra o direito de dispor desse estatuto, concretamente, se inclui o poder de estender tal estatuto a outra pessoa. Por outro lado, cabe perguntar se a autodeterminação do pai ou da mãe não estará limitada pelos
direitos do filho/a, direitos esses que não dependem das circunstâncias de facto da vida do pai ou da mãe, das suas opções de vida, ou do ambiente em que está inserido/a. A questão será mais evidente no caso da criança já adotada. O facto
de uma criança ser adotada não lhe retira os seus direitos
fundamentais: pelo contrário, existe um especial cuidado durante o processo de adoção para verificação das condições em
que a criança vai ser integrada, obrigando-se o adotante a respeitá-los. As preferências e opções de vida do adotante não
podem determinar o destino do filho com desrespeito dos
seus direitos fundamentais.
Noutro plano, não será de considerar que o pai ou a mãe
têm o dever de assegurar o desenvolvimento do/a filho/a,
propiciando-lhe a melhor vida possível? De facto, o regime
proposto criará uma diferença, no plano da titularidade das
responsabilidades parentais, entre as crianças “coadotadas” e
as outras crianças, apenas em atenção às preferências e circunstâncias de vida dos adultos que as cuidam. Será aceitável a criação desta desigualdade, sabendo-se que, lamentavelmente, a desigualdade potencia a discriminação e a estigmatização? Não será que o regime proposto aumentará a vulnerabilidade das crianças por ele abrangidas?
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
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3. O momento de ponderação ética
na produção das normas legais
As normas jurídicas que integram os textos legais nos Estados democráticos incorporam o resultado da ponderação
dos interesses e valores em conflito, ambicionando orientar o
comportamento dos cidadãos na vida em comunidade. Contudo, no nosso sistema jurídico, a sua intencionalidade prático-normativa manifesta-se de forma geral e abstrata, o que
pressupõe que aquela ponderação seja realizada, ela também,
em termos de generalidade e abstração, e que o juízo ético-social objetivado seja verdadeiramente cumprido no momento
da sua aplicação às situações concretas7. Isto é particularmente evidente no campo das normas que têm como destinatárias as crianças, na medida em que as normas legais estabelecem critérios gerais de atuação a realizar nos casos da
7. As tentativas de divisão das ordens jurídicas em famílias ou sistemas de
Direitos surgem sobretudo a propósito da comparação de Direitos, sendo
o Direito português normalmente inserido no sistema ocidental e, dentro
deste, no subsistema romano-germânico (também designado por continental ou de Civil Law), por oposição ao anglo-americano. Estes dois subsistemas são diferenciados sobretudo por dois elementos distintivos: o valor da lei, por um lado, o common law e a importância da jurisprudência, por
outro. Cfr., por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2001, p. 132-149. Na divisão das
grandes famílias jurídicas proposta por FERREIRA DE ALMEIDA, a ordem
jurídica portuguesa pertence à família romano-germânica, de raiz europeia
(Introdução ao Direito Comparado, Direito Comparado. Ensino e Método, Lisboa,
Ed. Cosmos, 2000, 29 e s.
Pode dizer-se que o sistema jurídico que o Direito português integra tem
origem no Direito Romano, sobretudo o Direito plasmado no Código de
Justiniano, depois interpretado pelos glosadores a partir do século XI e sistematizado em codificações a partir do Seculo XVIII. Tentando caraterizar
este sistema, de uma forma necessariamente simplificada e muito superficial, direi que, do ponto de vista conceptual e de funcionamento, se apoia
sobretudo em normas jurídicas positivadas através de atos legislativos. As
normas escritas são formuladas em termos gerais e abstratos, muitas vezes
por meio de princípios gerais, e integram os artigos das leis, frequentemente objeto de codificação. São essas normas que vão ser aplicadas pelos
juízes nos casos concretos. Este sistema pode contrapor-se ao sistema do
common law que se baseia nas decisões dos juízes nos casos concretos. O sistema do common law tem uma grande complexidade, mas pode afirmar-se
que o Direito é criado ou aperfeiçoado pelos juízes que decidem cada caso
olhando para as decisões adotadas para casos anteriores (precedentes).
Nesse sistema, quando não existe um precedente, os juízes criam o Direito a aplicar, estabelecendo aí um precedente. Pode afirmar-se também que
neste sistema as normas gerais são inferidas a partir das decisões judiciais
a respeito dos casos concretos.
–192–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
vida, de acordo com o “interesse superior da criança” concreta. O juízo sobre qual é o melhor bem para a criança está
objetivado na norma legal; mas deverá ser realizado para
cada criança, na sua situação, nas suas circunstâncias concretas. Exemplificando: a lei pressupõe que as responsabilidades
parentais devem ser exercidas por ambos os progenitores, de
comum acordo; mas, pode acontecer que, chamado a intervir,
o juiz decida que, no superior interesse de uma concreta
criança, apenas um dos progenitores exerça, em exclusivo, as
responsabilidades parentais.
A argumentação jurídica não deve assim desenvolver-se
apenas, como acontece na exposição de motivos do projeto,
no plano da descrição de casos concretos, reais ou imaginados. Em primeiro lugar, importa realizar uma ponderação ético-jurídica no plano geral e abstrato, embora sem perder de
vista a realidade a que a normas se destinam.
4. Maternidade, paternidade, titularidade e exercício
das responsabilidades parentais na lei portuguesa8
A regulação legal da relação de filiação não pode deixar
de partir da realidade antropológica fundamental que lhe está
subjacente: os seres humanos são gerados por um homem e
por uma mulher. Não pode também deixar de aceitar a dimensão normativa da própria natureza humana (no plano do
dever-ser), no sentido de incluir um princípio de orientação ao
bem do ser humano, à sua realização como pessoa, também
no contexto das relações familiares. Poderei afirmar que corresponde à natureza da pessoa humana que os filhos pequenos sejam cuidados pelos seus progenitores; assim, também
poderia afirmar que é “natural” que os pais cuidem dos seus
filhos pequenos. A referência a “natural”, porém, não reporta a um fenómeno “espontâneo” ou a um fenómeno “estatis8. Sobre este tema cfr. Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Direito da Família, Lisboa, AAFDUL, 1991, p. 339; Maria Clara Sottomayor, Exercício do poder paternal, 2ª Edição, Publicações Universidade Católica, Porto 2003, p. 17
e ss; Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de Divórcio, 5ª Edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 17 e ss.
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
–193–
ticamente comprovado e comprovável”, mas a um princípio de
orientação ao bem do ser humano, que permite fundar esta afirmação: é bom que os pais cuidem dos seus filhos pequenos,
porque esse cuidado é próprio da natureza humana, é um elemento constitutivo da maternidade e da paternidade; ou seja,
faz parte da natureza de ser pai e de ser mãe cuidar do filho
pequeno, faz parte do que deve ser um pai e uma mãe. E esta
compreensão permite reconhecer a juridicidade constitutiva
ou intrínseca da relação familiar de maternidade e de paternidade: tendo em vista o bem da pessoa humana e da sociedade, deve ser assim. Deste ponto de vista, a validade da lei
positiva que regula a relação paterno/materno-filial procede
do reconhecimento deste dever-ser.
O sistema legal relativo ao estabelecimento da filiação
realiza a transformação da realidade factual – isto é, os factos
biológicos da paternidade e da maternidade – em realidade
jurídica. O estabelecimento da filiação ocorre paradigmaticamente por ocasião do registo de nascimento, estando orientado para que não haja registos de nascimento omissos quanto à paternidade e à maternidade. A declaração de nascimento no registo civil é um momento importante neste sistema por ser ocasião de identificação do pai e da mãe.
Na lei portuguesa, os menores de dezoito anos estão sujeitos às responsabilidades parentais, e os titulares dessas responsabilidades são, em princípio, o pai e a mãe. Sobre o pai
e a mãe recaem assim deveres jurídicos de cuidado, sustento
e educação, que devem ser exercidos no interesse do filho/a,
em atenção às suas necessidades como pessoa humana em
desenvolvimento. Quando a lei aponta duas pessoas como titulares das responsabilidades parentais não o faz por acaso,
mas porque na geração de um filho estão sempre envolvidos
um homem e uma mulher, não se tratando de um trio fixado
aleatoriamente. Na verdade, a lei reconhece a correlação entre paternidade e maternidade, que não são abordados como
conceitos autónomos e de repartição aleatória.
As responsabilidades parentais são irrenunciáveis, intransmissíveis, imprescritíveis, indisponíveis. Em regra, a titularidade das responsabilidades parentais coincide com o
–194–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
exercício das mesmas, muito embora os titulares possam delegar ou ser inibidos do seu exercício. A constituição da relação de adoção plena extingue o vínculo de filiação e integra
o adotado na família do adotante, passando este a ser o titular das responsabilidades parentais.
5. O instituto da adoção plena
na lei portuguesa vigente9
A adoção plena é uma construção legal e é possível que
lhe sejam dados o conteúdo e efeitos exigidos pela sua finalidade em cada momento histórico. A adoção tem uma fisionomia própria na lei portuguesa vigente. Depois de ter desaparecido em Portugal a partir do final do século xvi, este instituto recuperou algum relevo no início do século xx e reapareceu no atual Código Civil de 1966. A partir de então, apesar
das muitas alterações legislativas sofridas, a sua finalidade é
a proteção da infância, através do estabelecimento de um vínculo jurídico semelhante ao da filiação natural para as crianças em relação às quais não está estabelecida. Para realizar a
integração do adotado na família dos adotantes, assemelhando-o a um filho deles nascido, quebram-se os laços com
a família de origem e procede-se ao averbamento da adoção
no seu registo de nascimento, indicando os adotantes como
pai e mãe. O campo de aplicação da adoção plena, inicialmente muito circunscrito, foi sendo progressivamente alargado, quer quanto aos adotantes – permitindo-se a adoção
plena singular a pessoa não casada, por exemplo -, quer
9. Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, A Adoção, Constituição da relação adotiva, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, separata do Vol. XIX, Coimbra, 1973; Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira,
ob. cit. p. 264 e ss; Heinrich Hörster, “Evoluções legislativas no Direito da
Família depois da Reforma de 1977”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, v. I (Direito da Família e das Sucessões), Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 63 e ss; Eliana Gersão, “Adoção
– Mudar o quê?”, ibidem p,. 833 e ss. Rui Epifânio e Armando Leandro,
“Adoção – sentido e alcance da evolução legislativa”, ibidem, p. 851 e ss;
Maria Clara Sottomayor, “A nova lei da adoção” in Direito e Justiça, vol.
XVIII (2004), tomo 2, p. 241 e ss, e “A adoção singular nas representações
sociais e no direito” in Lex Familiae, Ano I, n.º1, p. 41-50.
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
–195–
quanto aos adotados – disciplinando-se a situação de declaração judicial de abandono para dispensar o consentimento
dos pais, para dar outro exemplo. Esta é a finalidade fundamental do instituto da adoção: visa constituir uma relação semelhante à da filiação natural, no interesse do adotado. Para
tanto, é organizado um processo por entidades integradas na
Administração estadual, destinado a averiguar as reais vantagens da constituição da adoção para o adotado, e a idoneidade da pessoa e motivações do adotante. Para além destes
aspetos, os fins de natureza pública estão ainda patentes no
caráter constitutivo da sentença e na natureza da intervenção
do Tribunal. A adoção não está ao serviço da vontade do adotante, não tem uma natureza contratual, mas publicística.
A lei portuguesa admite a adoção plena por uma só pessoa – adoção singular – desde 1977. A constituição da relação
de adoção (singular) supõe uma decisão judicial que atesta
que uma só pessoa pode assegurar a qualidade da relação parental – como mãe, se for mulher, como pai, se for homem –
tal como é exigido pelo interesse da criança. A possibilidade
de a lei permitir a adoção singular não contraria por si mesma o paradigma da estrutura bi-parental mãe/pai. A esta modalidade subjaz a ideia de que pode bastar um deles, pai ou
mãe, conforme o adotante for homem ou mulher.
A lei prevê a adoção do enteado como um regime particular a que não subjazem as razões da adoção em sentido
próprio; na verdade, não está em causa a proteção da criança órfã ou abandonada, pois ela tem um progenitor vivo e a
constituição da relação de adoção mantém as relações de parentesco com os familiares da parte do progenitor falecido. O
interesse prosseguido será aqui o de reconhecer a promover
a unificação do agregado, na pressuposição de que tal corresponderá ao interesse do filho/a do cônjuge do adotante.
6. Excecionalidade do regime de “coadoção” proposto
Como se viu, o resultado final do regime em análise será
o de permitir que, em relação a algumas crianças, sejam cons-
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
tituídas relações equiparadas às da filiação com duas pessoas
do mesmo sexo.
A adoção plena conjunta por duas pessoas do mesmo
sexo não é admitida na Lei n.º 9/2010, de 31 de Maio, que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, nem na
Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adota medidas de proteção
das uniões de facto. A Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, que regula a utilização de técnicas de procriação medidamente assistida, exige que os beneficiários das mesmas sejam um homem e uma mulher, casados ou vivendo em união de facto.
No plano do registo civil, a constituição da relação de adoção
implica a feitura de um novo assento de nascimento, onde
atualmente se devem fazer as menções de paternidade e de
maternidade. No campo da regulação do exercício das responsabilidades parentais, cada vez mais se sublinha a importância da presença do pai e da mãe na vida de uma criança, sendo a regra a do exercício conjunto.
A aprovação do projeto representaria uma enorme violência sobre o sistema jurídico, na medida em que admite que
uma lei avulsa crie uma espécie de enclave abrangido por um
regime particular, em manifesta contradição com os princípios substanciais de solução decorrentes do regime geral que
regula as questões da mesma natureza, quebrando o postulado da sua unidade. O postulado da unidade do sistema jurídico é um dos pilares em que assenta o Estado de Direito,
pressupondo que as normas jurídicas não devem ser contraditórias nem desconexas entre si.
O projeto contempla também a hipótese de a criança ter
sido adotada por um dos cônjuges ou companheiros/as. Tendo havido uma adoção singular e não sendo legalmente permitida a adoção conjunta por duas pessoas do mesmo sexo,
o regime proposto viria admitir que por via de duas adoções
singulares sucessivas fosse atingido o resultado não permitido pela adoção conjunta simultânea. É manifesto que o projeto põe em causa a unidade do sistema jurídico e, inclusivamente, a própria ideia de sistema, na medida em que vem
proteger situações resultantes da violação das normas que o
integram.
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
–197–
Sublinhe-se ainda que, no final de contas, se pretende
que a a lei venha tutelar a vontade do titular das responsabilidades parentais no sentido de partilhar a titularidade com o
seu cônjuge ou companheiro, o que quebra o princípio da intransmissibilidade que já foi referido. Dir-se-á que para ser
decretada a adoção do filho do cônjuge ou do companheiro
do mesmo sexo, não bastará a prova do casamento ou da
união de facto, sendo necessário um processo destinado a
ajuizar da idoneidade do adotante e das reais vantagens para
o adotado. Contudo, no caso de ter havido previamente uma
adoção singular, não restam dúvidas de que a sentença envolveu a decisão de que o adotante poderia assegurar sozinho a qualidade da relação parental, não se descortinando razões pelas quais deverá ser aberto outro processo de adoção
sobre a mesma criança. As únicas razões serão as que se prendem com o interesse dos adultos, não com o da criança. Além
disso, o princípio de que não deve haver duas adoções sobre
a mesma pessoa seria posto em causa10.
7. A proteção dos direitos da criança
O regime proposto assenta na suposição da necessidade
de dar resposta a situações carecidas de tutela. A exposição de
10. Dir-se-á que haverá uma exceção a esse princípio quando os adotantes
forem casados um com o outro, como admite o artigo 1975.º do Código Civil, in fine. Esta norma tem de ser enquadrada no contexto da adoção do filho do cônjuge, em que não ser verifica uma adoção em sentido próprio,
uma vez que não estará em causa uma criança órfã ou abandonada, como
se viu atrás, mas a unificação do agregado. A adoção do enteado tem de ser
entendida no contexto em que surgiu, isto é, em estreita ligação com a geração de filhos por um homem e uma mulher, e em que o paradigma era a
filiação resultante do casamento. A adoção por parte do padrasto ou da madrasta, numa primeira versão, referia-se à adoção do filho ilegítimo de um
dos adotantes, era realizada pelos dois – pelo progenitor biológico e pelo
padrasto ou madrasta-, constituindo uma forma de legitimação de filhos
ilegítimos. Acresce que foi só em 1977 que o adotado passou a integrar, com
todos os seus ascendentes, a família do adotante. No caso de ser o padrasto ou a madrasta a adotar, mantêm-se as relações com os respetivos parentes naturais (cfr. art. 1986.º, n.º2 CC), o que indicia que parece ficar completamente fora do horizonte da norma a possibilidade de a exceção da
adoção pelo cônjuge abranger a hipótese de uma segunda adoção singular
subsequente a outra adoção singular. No entanto, sabemos que esta não
tem sido a prática uniforme.
–198–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
motivos refere-se a “situações que já existem” e a “famílias
que já existem”: invoca-se a realidade de crianças que, de facto, já vivem com dois adultos do mesmo sexo e tratam a ambos por mães, ou por pais, conforme se trate de duas mulheres ou de dois homens; no entanto, apenas um deles é titular
das responsabilidades parentais.
A origem de tais situações “que já existem” e que supostamente careceriam de enquadramento legal adequado
poderá estar na filiação biológica, na presença de um assento de nascimento omisso quanto à paternidade ou quanto à
maternidade11; mas também poderão ter surgido de uma
adoção singular, em que o candidato a adotante e os serviços
administrativos e judiciais do Estado entenderam criar a situação de monoparentalidade; podem ter origem num recurso monoparental a procriação medicamente assistida
(pma) realizada no estrangeiro, uma vez que a lei portuguesa apenas reconhece casais como beneficiários de pma. Também poderá existir algum par de homens autor de um projeto parental bem-sucedido com ajuda de uma mulher gestadora, o que também não é atualmente permitido pela lei portuguesa, e que quererão estabelecer juridicamente a paternidade em relação a ambos. Se existem estas situações, muitas
terão sido criadas em fraude à lei, mas podem ser agora apresentadas como “casos reais consumados” carecidos de proteção jurídica. Muitos destes casos terão sido deliberadamente
criados contra as orientações da lei; tratar-se-á de pessoas que
usaram a lei ou prescindiram dela para criar as situações de
monoparentalidade e agora reivindicam a tutela legal.
Acontece que semelhantes situações já têm enquadramento legal, o que torna muito duvidoso que a solução pro11. Concluo que para os autores do projeto de lei estará sempre em causa
uma situação de filiação estabelecida apenas relativamente a um dos progenitores, sendo o assento de nascimento omisso quanto ao outro, uma vez
que, segundo o artigo 2.º, n.º 3, do articulado proposto “Não pode ser requerida a coadoção se existir um segundo vínculo de filiação estabelecido em relação ao
menor”. A referência ao outro vínculo como “um segundo vínculo” inculca a ideia de que a filiação é constituída por dois vínculos, um primeiro e
um segundo, sejam eles quais forem. De facto, a filiação reporta-se à maternidade e à paternidade, pelo que o texto seria mais claro e rigoroso se estabelecesse que “…só pode ser requerida se a filiação for omissa quanto a
um dos vínculos”.
REFLEXÃO BIOÉTICA SOBRE O PROJETO DE LEI DA “COADOÇÃO” | RITA LOBO XAVIER
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posta seja necessária para a proteção dos direitos das crianças
envolvidas. Na verdade, o progenitor ou adotante pode, para
o caso do seu falecimento, indicar no seu testamento o cônjuge ou companheiro como tutor da criança; mesmo não o fazendo, é possível que o companheiro sobrevivo seja nomeado tutor se se tratar de pessoa que de facto cuidou do filho do
falecido, podendo subsequentemente vir a adotá-lo. Para efeitos de partilha dos cuidados de saúde e educação, pode haver delegação do exercício das responsabilidades parentais.
Finalmente, lembro que as circunstâncias de facto da
vida dos adultos não têm porque se traduzir em vínculos com
as crianças; e que nem todas as situações de facto vividas pelas crianças podem ter tradução jurídica ou merecer proteção.
Todos nós conhecemos situações de crianças obrigadas a separarem-se dos cônjuges ou namorados dos pais ou mães, a
quem estavam vinculados afetivamente, por causa de um divórcio ou de uma rutura definitiva. Não existem instrumentos legais que protejam as crianças dos efeitos das relações
afetivas, por vezes precárias e fugazes, que o seu progenitor
vai estabelecendo no exercício dos seus próprios direitos e liberdades.
8. Conclusão
No plano da reflexão bioética, e à luz dos direitos e dos
interesses das crianças, não é possível concluir em abstrato
pela justificação do projeto de diploma, tendo em conta a potencial impacto negativo que pode ter a criação de uma situação de diferença e de desigualdade na construção da sua
identidade e desenvolvimento. Na verdade, a tentativa de
construção de situações familiares diferentes, com vista a produzir mudanças na realidade social, de forma a alcançar a
dissociação do trio mãe-pai-filho/a, desprezando a complementaridade sexual que está na origem da conceção dos seres humanos e que deve acompanhar a sua gestação e socialização, pode ter consequências não benéficas não só para as
crianças envolvidas, mas para toda a comunidade humana. O
–200–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
projeto parece ignorar a correlação entre a maternidade e a
paternidade e a sua importância, inclusivamente simbólica,
para a construção da identidade pessoal de cada ser humano.
O critério fundamental nesta questão é a proteção dos
direitos de cada criança a uma família, à identidade pessoal
e ao desenvolvimento pessoal. Estes direitos devem ser especialmente protegidos pelo Estado, sobretudo no caso de
crianças que foram adotadas, em que o Estado se responsabilizou diretamente na constituição dessa relação. O Estado
está obrigado a proteger os direitos das crianças e, concretamente, não deve participar na criação de situações de desigualdade. A aceitação de comportamentos e estilos de vida
não deve conduzir ao abandono de princípios éticos fundamentais de atuação do Estado.
É muito duvidoso que a solução proposta seja necessária
para a proteção dos direitos das crianças que viriam a ser
abrangidas pelo regime. Muito pelo contrário: a proposta implica restrições aos direitos fundamentais de cada criança, sobretudo quanto ao direito à identidade pessoal e ao direito a
constituir relações de filiação, e originará situações de desigualdade relativamente às crianças que não ficarão abrangidas pelo regime.
Não é verosímil que este regime traga benefícios para
cada uma das crianças que viriam a ser abrangidas, nem para
as crianças portuguesas em geral. Aliás, a simples hipótese de
este regime poder afetar negativamente uma única criança,
sendo certo que cada criança reage de modo único, deve levar à sua rejeição.•
Porto, fevereiro de 2014
–201–
O bem da pessoa e o bem comum
no pano de fundo da teoria da justiça
Michel Renaud
As considerações que se seguem têm intencionalmente
um carácter geral e teórico. Destinam-se a fornecer um enquadramento aos problemas concretos que dizem respeito à
saúde pública. Dado que se trata de saúde humana e que esta
constitui ao mesmo tempo um bem pessoal e um bem comum, entendeu-se que seria pertinente reflectir sobre as relações entre o bem da pessoa e o bem comum. Esta formulação junta três conceitos, a pessoa, o bem, o «comum», antes da
sua respectiva junção. Verifica-se então uma tensão, uma oposição, e muitas vezes um conflito entre o bem pessoal e o bem
comum. Analisaremos brevemente estes conceitos, evidentemente sem preocupação de exaustividade. A primeira parte
centrar-se-á nos conceitos subjacentes à questão da saúde pública, nomeadamente os de bem pessoal e de bem comum. A
segunda parte esboçará, num fresco rápido, o modo como algumas das teorias contemporâneas da justiça tornam particularmente complexa esta relação, o que leva inevitavelmente a uma fragmentação das respostas concretas na aplicação
do critério da justiça às questões da saúde pública. Nesta análise, contudo, não entraremos no campo dessas aplicações,
que deviam dar origem a um outro estudo.
–202–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Primeira parte.
Os conceitos de bem pessoal e de bem comum.
1. A pessoa, em primeiro lugar. Não se trata de indicar a
multiplicidade das definições que a história do pensamento
ocidental já enunciou em vista a compreender a diferença entre uma pessoa e uma coisa. Sublinhemos apenas que este assunto está de novo tão actual como complexo. Para um pensamento que já não se apoia na noção de substância, herdada
de Aristóteles e desenvolvida por uma filosofia mais do que
milenar, a distinção entre coisa e pessoa exige uma nova conceptualização filosófica, como o comprova toda a problemática sobre o começo da pessoa no tempo e o seu fim. Qualquer
que seja a definição aceite quanto à pessoa, há vários aspectos que não podem ser esquecidos.
Para definir a pessoa é preciso partir da realidade da pessoa adulta, saudável e em relação com outras pessoas. Se não
fosse o caso, entraríamos em dificuldades e contradições, não
raras vezes presentes nos debates públicos. Por exemplo, a
criança é criança em relação ao adulto que ainda não é, mas
para o qual tende o seu desenvolvimento biológico e mental;
é portanto a referência implícita ao ser adulto que permite determinar o que é a criança. Se tal não fosse o caso, então o
adulto seria definido como uma antiga criança, sendo o conceito de criança o pólo de referência em função do qual a pessoa do adulto seria compreendida. Do mesmo modo, o doente é um ser humano ao qual falta uma certa dimensão da saúde, o que mostra que a saúde é o eixo a partir do qual se define a doença; nestes termos, a doença é uma falta de saúde;
afirmar o contrário – a saúde é a ausência de doença – faz da
doença o pólo primordial a compreender para ter acesso à definição da saúde: a saúde seria uma doença da doença; noutros termos, o pólo de referência seria a doença e não a saúde. É portanto um artifício da medicina – aliás, artifício útil
para a posição de um diagnóstico, mas filosoficamente errado – considerar a saúde apenas como um estado no qual não
há doenças. Desse raciocínio conclui-se que, quando se fala
da pessoa humana é a pessoa considerada como realizada no
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
–203–
seu estado adulto e saudável que deve ser tomada como pólo
de referência para a reflexão.
2. A relação com o outro. Um dos traços fundamentais
da pessoa humana, traço analisado sob múltiplas facetas nas
várias correntes da fenomenologia do século XX, consiste na
abertura ao outro, ao outro ser humano. A pessoa humana
não pode ser considerada como se existisse num isolamento
biológico, social, cultural, político, espiritual. Esta abertura ao
outro faz parte da definição da pessoa, ainda que esta viva
num isolamento concreto aparentemente total. Noutros termos, o ser humano é um ser de relação, de relação com as outras pessoas, antes de ser um ser de relação com as coisas e os
elementos da natureza. A relação com o outro não é portanto
uma característica que se acrescenta à identidade de cada ser
humano, mas faz constitutivamente parte dele, qualquer que
seja o seu grau de isolamento ou de inserção social. Quando
se tratar do bem da pessoa, não se poderá restringir este bem
ao bem da pessoa individual, considerada enquanto cortada
das suas relações com os outros. Ou mais exactamente, o bem
da pessoa não é um bem particular, um bem que não tem
nada que ver com os outros. Se a pessoa «solipsista» não existe, também não pode haver um «solipsismo» do bem da pessoa humana. Quando está em questão o bem comum, é preciso saber que já a pessoa individual, considerada nela mesma, inclui a relação com o outro.
Esta relação com o outro pode assumir várias formas, entre as quais retemos aqui as da pluralidade e da totalidade.
Em primeiro lugar, a pluralidade. Não posso conhecer «pessoalmente» todos os habitantes de uma grande cidade, a fortiori, de uma comunidade nacional. A pluralidade, no sentido que a relaciona com a definição da pessoa humana, significa que a abertura ao outro é concretamente vivida como abertura ao grupo necessariamente limitado das pessoas que fazem parte do respectivo ambiente familiar, profissional, social, cultural, isto é, das pessoas com as quais cada um está,
esteve ou estará efectivamente em relação. A pluralidade im-
–204–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
plica assim, além da realização concreta da abertura ao outro,
a limitação efectiva desta abertura.
A relação com a totalidade dos outros, das outras pessoas, existirá concretamente? Tudo depende do sentido que se
dá ao termo «concreto». É evidente que não é possível ter
uma relação concreta e vivida com todas as pessoas do mundo, do nosso país ou da nossa região. Apenas nos grupos
muito limitados pode dizer-se que se conhece toda a gente,
que se tem uma relação com todos. Este exemplo mostra que
o conceito de totalidade se fragmenta em vários níveis ou
subgrupos; temos por exemplo um grupo desportivo, uma
empresa, um partido político, os membros do Parlamento, os
crentes de uma religião, os membros de uma paróquia ou de
uma célula associativa, etc. Contudo, o sentido primordial da
totalidade abrange a totalidade dos seres humanos actualmente vivos e, progressivamente, os vários níveisque se destacam no pano de fundo deste universo.
Tendo isso em conta, verifica-se então que é pela mediação das instituições que cada um de nós tem uma relação com
a totalidade dos seres humanos. Na preciosa análise de Paul
Ricoeur1, a relação que tenho com as pessoas que não conheço pessoalmente e que nunca virei a conhecer passa pela mediação das instituições. Enquanto membros da uma nação, de
um Estado, cada uma tem uma relação mediata com «todos»
os membros desta instituição. É neste sentido que se deve
aliás entender a rica expressão segundo a qual somos «cidadãos do mundo»; não se trata evidentemente de um mundo
de que iremos conhecer todos os membros, mas de um mundo com o qual, além da interdependência, estamos ligados
através da solidariedade, solidariedade de natureza institucional e de cariz ético. Ou, tal como se vai dizer, uma solidariedade ética enquanto institucional.
3. O bem. O segundo conceito anunciado é o bem. O que
é o bem? Percebe-se que se trata de uma questão filosófica da
maior importância, a propósito da qual só se deve aqui refe1 Paul RICOEUR, Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1990, cap. 9, p. 291
e seguintes.
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
–205–
rir algumas características. O primeiro problema reside na necessidade de compreender a relação entre o bem, no singular,
e os bens, no plural. Esta questão preocupou a filosofia desde os seus primeiros mais altos representantes, nomeadamente Platão e Aristóteles. Para Platão, todos os bens particulares se hierarquizam de modo piramidal, mas de tal maneira que existe, no topo da pirâmide, o Bem, bem único e
considerado como divino. É a existência deste Bem supremo
que, em virtude da participação, circula entre todos os bens
particulares, unificando-os. Aristóteles, porém, abre a sua Ética mostrando que não é possível passar da multiplicidade do
bem para a sua unidade. O bem, com efeito, refere-se a cada
espécie de actividade: o bem para o corpo é a saúde, o feno
será o bem para o cavalo, a educação será um bem para a
alma ou o espírito, etc. Noutros termos, não é possível unificar todos os bem particulares, uma vez que cada actividade
prossegue o seu bem específico. O que vale a pena sublinhar
é a permanência desta problemática no decurso dos séculos.
Hoje em dia, voltamos a encontrar uma oposição homóloga,
que reterá a nossa atenção.
Qual é contudo a relação entre o bem em geral e o bem
moral? Notemos que esta pergunta está aquém da diferença
entre a ética e a moral. O bem moral diz respeito ao agir humano, ao passo que os bens no plural foram tradicionalmente considerados como bens no sentido ontológico, isto é realidades que suscitam a nossa atracção e que põem em movimento a nossa acção. Relativamente a esses bens, o bem ético-moral aparece como um bem mais elevado, um bem que
atravessa todos os nossos actos, isto é, como uma espécie de
bem ao quadrado. Deste modo as nossas acções prosseguem
bens particulares, procuram alcançar bens determinados, mas
todas elas devem ser atravessadas pelo bem ético-moral. É o
que queremos dizer ao falarmos do bem da acção, ou da acção boa, que prossegue determinados bens (bens materiais,
honras, realizações profissionais, etc.). Tal é o bem ético e moral: ele transforma a pessoa que procura determinados bens
materiais, culturais, espirituais, etc. Aliás, é deste modo que
percebemos também o que é o mal moral: ele consiste em pro-
–206–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
curar mal realidades que em si são bens materiais, culturais,
espirituais ou outros. O mal moral provém de uma acção má,
na medida em que, nesta acção, a procura de um bem ou de
bens no plural não é transversalmente pautada pelo bem moral: em termos simples, a acção moralmente má é portanto
uma “má” procura de um “bem”, assim como, simetricamente, o bem da acção boa é uma boa procura de bens ou de
um bem. É aquilo que Kant quis dizer quando afirmava que
não há nada de melhor que uma vontade boa, independentemente daquilo que é o objecto imediato do agir. Não se
pode portanto confundir o bem como vontade boa e os bens
que esta vontade prossegue.
4. O agir com múltiplos decisores. Voltando ao bem da
pessoa, em que sentido se fala do bem? A mesma pergunta
terá que ser feita a propósito do bem comum. De que espécie
de bem falamos? Do bem ético-moral que atravessa todas as
acções ou de um determinado objectivo que se pode enunciar?
É aqui que se cruzam as problemáticas da unicidade do
bem e da sua multiplicidade. Podemos dizer que o bem ético-moral é único e que é ele que transforma interiormente a
vontade da pessoa que age. Em contrapartida, os bens concretos que vale a pena prosseguir são múltiplos, em quantidade indefinida. Mas uma nova dificuldade vem complicar a
posição do problema. Hoje em dia, existe uma multiplicidade de acções que dependem não de um único agente, mas de
uma multiplicidade deles. Por exemplo, uma decisão a tomar
pelos membros de uma Comissão de Ética é uma decisão colegial, ainda que haja pareceres contrários. Do mesmo modo,
uma equipa de investigação implica a realização de um projecto no qual estão comprometidos vários agentes. Isso mostra que a reflexão ética, que procura o bem ético do agente,
não pode, nesses casos, limitar-se à consideração do bem ético-moral de um único agente, isto é de cada agente que fala
como um «eu» em primeira pessoa.
A mesma coisa pode dizer-se de outro modo. O bem ético-moral transforma a pessoa que o realiza; mas esta trans-
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
–207–
formação supõe a presença de uma intenção subjectiva, que
se exprime na vontade pessoal de «fazer o bem». No entanto, quando estamos na presença de vários agentes que discutem entre eles qual é a melhor acção a realizar, nenhum deles
tem acesso à intenção profunda dos outros; apenas temos
acesso ao que se transmite na discussão. Noutros termos, a
discussão de um Comité ou uma qualquer Comissão de Ética que procura a melhor maneira de tomar uma decisão relativamente a um determinado problema não se faz no conhecimento das intenções e motivações interiores dos membros
do grupo de discussão. Como se coloca então a questão do
bem moral num grupo que dialoga em vista à chegar a uma
«boa» decisão?
5. A discussão plural sobre o conteúdo do bem. Vale a
pena retomar nesta perspectiva a questão colocada acima sobre a relação entre a unidade do bem e a pluralidade dos
bens. Dissemos que a diferença entre uma posição platónica
sobre a unicidade do bem e a visão aristotélica da pluralidade dos bens é retomada hoje num patamar diferente. É contudo no contexto de uma discussão plural sobre a busca do
bem (discussão que se realiza, por exemplo, num grupo de reflexão ou num Comité de Ética) que se situa esta oposição,
que se poderia ilustrar com alguns autores contemporâneos.
Por um lado temos a Theory of Justice, de John Rawls (1970).
Esta tese, como é sabido, considera que é impossível comparar os bens concretos a distribuir (os bens, assim como os deveres, os encargos e as honras, as vantagens e desvantagens
sociais). Retira-se desta impossibilidade a necessidade de
buscar o bem num nível mais formal; não se pode dizer que
Rawls esteja na esteira imediata de Platão, mas longinquamente, existe algo de homólogo entre o empreendimento de
Rawls e a reflexão de Platão: é a necessidade de encontrar de
modo concertado a unidade do bem. Segundo Rawls, dado
que nunca será possível encontrar um acordo sobre a hierarquização dos bens, encargos e privilégios a distribuir, o único acordo possível tem que ser procurado no plano da discussão, isto é, não sobre a natureza dos bens, mas sobre as re-
–208–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
gras do diálogo ou da discussão acerca dos bens. Não é necessário repetir aqui os dois grandes princípios de Rawls que
lhe permitem considerar como possível uma «justa» busca do
bem, mas apenas notar que a discussão sobre o bem só pode
ter êxito graças ao acordo sobre as próprias regras de discussão. Tudo se passa como se a unidade do bem se tivesse deslocado para um acordo universal sobre as regras da discussão. É na base destes pressupostos que se pode compreender
hoje a «ética de discussão», de que J. Habermas se tornou um
dos eminentes porta-vozes. No espírito de Rawls, a reflexão
sobre a justiça é portanto a maneira de instaurar o bem moral nas sociedades democráticas.
Os críticos de Rawls denunciaram contudo o formalismo
desta solução, embora reconhecendo a qualidade da sua reflexão sobre o justo, em vista a instaurar a justiça na sociedade. Será possível fazer totalmente abstracção da natureza dos
vários bens e encargos que estão em causa na necessidade de
uma distribuição justa? A crítica de Paul Ricoeur mostra que
não se pode, no fim de contas, fugir a um acordo mínimo sobre determinados pressupostos, por exemplo, o pressuposto
segundo o qual os parceiros de diálogo querem todos deixarse guiar pelo carácter racional dos seus interesses. Por outro
lado, o livro de Michael Walzer, Esferas da justiça (Spheres of
Justice. A defense of Pluralism anda Equality, 1983) aparece como
representante de uma corrente cujos pressupostos se opõem
simetricamente aos de Rawls. Não se pode, para Walzer, ignorar a profunda diferença dos bens e encargos de que trata
a justiça. A trajectória de Walzer consiste então em procurar
uma forma de igualdade que seja idêntica à justiça, não uma
simples igualdade equitativa, por assim dizer, aritmética, mas
uma igualdade destinada primordialmente a abolir toda a
forma de dominação injustificável. A segunda parte desta
análise terá que desenvolver esta problemática.
6. A justiça. A discussão sobre a justiça tem que ver com
as instituições. Com efeito, «a justiça é a virtude primordial
das instituições». Esta afirmação deve ser vista à luz da definição da ética segundo Paul Ricoeur. A sua definição da éti-
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
–209–
ca aparece-nos como a melhor e mais rigorosa: a ética é «a procura da vida boa, com e para com os outros, em instituições justas».
De certo modo os três momentos desta definição abrangem
respectivamente 1) as relações de cada pessoa para consigo,
na «procura da vida boa», (que retoma o «viver bem» da ética aristotélica), 2) as relações com as pessoas conhecidas (isto
é, com as pessoas que correspondem ao conceito de «pluralidade» acima referido), e 3) as relações que cada um mantém
com todos os outros (o que evoca o conceito de «totalidade»).
Sendo a justiça o bem específico das instituições, ela é de natureza ética antes de se tornar jurídica e política. Contudo, o
bem ético e moral incorpora a justiça, mas não se limita a ela.
Na definição de Paul Ricoeur, o respeito é, com efeito, a atitude ética primordial das relações com os outros (com os outros
de que fala o segundo membro da definição: «com e para com
os outros»), ao passo que a «estima por si» caracteriza o respeito ético e moral de cada um para consigo. Esta definição
mereceria muitos comentários, que não se enquadram porém
nos limites desta apresentação.
7. O bem comum. O bem comum deve ser, antes de mais
nada, entendido à luz do princípio da justiça. Ele não pode
ser confundido nem com a soma aritmética dos bens individuais, nem como os bens da maioria das pessoas. A dificuldade consiste então em delimitar a natureza do bem comum
relativamente ao bem pessoal. É aqui que se desenvolvem
tensões e oposições. A primeira questão consiste em saber
quem determina o conteúdo do bem pessoal e do bem comum. A esse respeito impõem-se várias observações. Tal
como já foi sublinhado, o bem pessoal não coincide com o
bem estritamente individual, uma vez que o conceito de pessoa já inclui a abertura ao outro. Em segundo lugar, o bem
pessoal não é necessariamente o bem de uma pessoa singular,
mas é muitas vezes um bem partilhado por uma multiplicidade de pessoas, embora não necessariamente pela totalidade. Em terceiro lugar, o bem pessoal não é necessariamente a
mesma coisa que o bem ético da procura da vida boa; tantas
vezes, com efeito, o desejo de ter e o desejo de poder apare-
–210–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
cem como a busca de um bem pessoal cuja procura não corresponde ao bem da «procura da vida boa». Em quarto lugar,
associamos em geral o conceito de autonomia à possibilidade de escolher o que é, para cada um, o melhor bem. Aqui
surge contudo uma nova possibilidade de confusão entre a
autonomia como princípio ético e a autonomia entendida
como exercício do livre arbítrio.
Do ponto de vista ético, é a pessoa singular ou individual
que é portadora do sentido ético da sua existência, existência
que, como foi dito, não se fecha sobre si própria. Se a existência possui um sentido, este não pode ser assumido por
imposição ou constrangimento externo, sem a anuência do
ser pessoal. Quando se fala da autonomia como princípio
bioético, é habitualmente a autonomia como livre disposição
do poder de decisão que está em causa. Mas a autonomia entendida como condição de possibilidade do sentido ético da
existência requer um conteúdo ético, sob pena – como Kant
mostrou adequadamente – de se reduzir ao capricho individual. Esta observação mostra já que o conceito filosófico de
autonomia não se identifica exactamente com a autonomia na
sua tematização anglo-saxónica, que a define exclusivamente como livre disposição de si próprio.
Entre o bem pessoal entendido no seu sentido ético e o
bem comum, governado pela instauração da justiça ética, não
deve em princípio haver conflito. Com efeito, a justiça faz integralmente parte do sentido ético da existência pessoal, individual; reciprocamente, a vivência ética pessoal não se pode
fechar à procura colectiva de justiça. É contudo no debate entre as decisões concretas que surgem os conflitos; é então que
bem pessoal e bem comum entram tantas vezes em linha de
choque e que surge a necessidade de decisões difíceis. Em
princípio, «querer como o meu bem aquilo que é bom para todos pode ter com efeito renunciar a um bem pessoal esperado, se se verifica nefasto para outros» (C. Perrotin). É quando a busca do bem comum impõe sacrifícios individuais que
surgem conflitos, ou, em sentido contrário, quando a prossecução de objectivos individuais põe em risco determinados
aspectos do bem comum.
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
–211–
8. A decisão sobre o conteúdo do bem comum. Mas
quem determina o conteúdo do bem comum? Não será essa,
em último lugar, a tarefa das instâncias políticas? Deste ponto de vista, ética e política entram num diálogo difícil; com
efeito, as finalidades da comunidade política e do Estado são
outras que não as da existência ética singular e pessoal. Assim, a justiça como virtude ética e a determinação política do
conteúdo da justiça não se sobrepõem; se tal fosse o caso, com
efeito, impor-se-ia a ideia de uma identidade imediata entre
ética e política, ideia contudo gravemente errada. A determinação do conteúdo concreto do bem comum depende portanto em último lugar das instâncias políticas, as quais devem
também respeitar os valores éticos fundamentais. Notemos
que os regimes políticos totalitários se caracterizam pelo facto de quererem impor a todos os seus «sujeitos» o conteúdo
concreto da sua pretendida busca ética do bem. A articulação
entre ética e política aparece, desde então, como particularmente complexa e verificamos que esta complexidade é muitas vezes ignorada pelas próprias instâncias políticas encarregadas com a tarefa de determinar os conteúdos concretos
do bem comum.
9. O problema do bem comum no campo da saúde pública. A saúde pública é um caso privilegiado que está no cruzamento entre o bem pessoal e o bem comum. Sabemos que
o conceito «público», na medida em que se opõe ao «privado»
não designa a mesma coisa que o «comum» do bem comum.
Não é fácil delimitar as fronteiras do privado e do público;
uma das características da cultura contemporânea consiste
precisamente no apagamento dessas fronteiras, principalmente sob o impacto dos Mass Media e, em particular, da televisão. Esta tem nas suas tarefas o dever de contribuir para
o desenvolvimento de uma «opinião pública»; mas o termo
«opinião» remete para a vida privada, ao passo que «público»
é aquilo que é partilhado de modo comum. Por outro lado,
sabemos que aquilo que é propriedade pública não significa
que o seu uso não possa ser privado; existem bens do Estado
que são propriedade pública, embora entregues à ocupação
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privada (por exemplo, um palácio presidencial). Em resumo,
o bem comum pode ser considerado na sua dimensão privada ou pública. É por isso que a saúde pública invade também
a esfera da vida privada assim como a vida pública, o que
gera conflitos múltiplos cuja solução exige um longo exercício de sabedoria prática. O problema do bem comum no campo da saúde supõe que se consiga determinar os limites da
autonomia pessoal em função dos imperativos provindos do
bem comum inerente à saúde pública. E, reciprocamente, será
necessário mostrar a partir de que nível de intervenção a saúde pública não pode interferir com a autonomia pessoal.
Ora, tais questões geraram uma multiplicidade de respostas, em função das diferentes posições filosóficas quanto
à compreensão da justiça. É deste modo oportuno abrir o processo destas respostas, principalmente centradas nas principais teorias contemporâneas que se confrontam com a justiça.
Segunda parte. Teorias contemporâneas sobre a
justiça com incidência sobre a saúde pública.
Antes de entrar na apresentação de algumas das principais teorias contemporâneas sobre a justiça, convém recapitular, de modo ligeiramente diferente, o resultado das considerações anteriores.
A maneira de compreender o bem comum assim como a
tarefa de o promover activamente depende da teoria filosófica que lhe está subjacente, assim como do horizonte especulativo no fundo do qual se destaca. Desde o princípio da época contemporânea vigorou o ideal sócio-político da liberdade,
da igualdade e da solidariedade. Estes valores tomaram várias formas, como se vê nos ideais da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Sabe-se, contudo, com o
desenrolar desta revolução, tal como na base de inúmeros casos descritos na história dos povos e das instituições, que os
ideais mais nobres podem dar origem às maiores barbaridades. A razão provém do facto de que as relações entre a ver-
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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dade e a liberdade foram sempre complexas: o dogmatismo
pode transformar-se em totalitarismo e perseguição dos dissidentes, ao passo que a liberdade pode degenerar em relativismo ético e egoísmo indiferente à sorte das outras pessoas.
Na verdade, o termo «solidariedade» é mais adequado à
realidade das relações sociais que o ideal de fraternidade;
esta, com efeito, é de natureza dialogal e próxima, ao passo
que as relações sociais se estabelecem pela constituição de um
circuito longo que, se fosse assimilado à natureza da fraternidade, provocaria «curtos-circuitos». A solidariedade exprime e simultaneamente gera a coesão da comunidade. Mas
existem múltiplas formas e realizações da comunidade, desde as comunidades de tipo familiar – tendo-se em conta a
evolução da compreensão da família no decurso dos séculos
– passando pelas comunidades profissionais e sociais em geral, até à comunidade política. Também a comunidade política se declina no plural, uma vez que ela assume igualmente uma multiplicidade de formas, desde a dos municípios até
à da comunidade mundial.
Cada forma de vida humana prossegue um bem específico; em cada um dos seus patamares, a comunidade humana constitui-se à volta do seu bem, que da forma mais geral e
formal, se apresenta como bem comum. Por definição o bem
comum implica a presença de uma multiplicidade de membros, alheios uns aos outros, cuja relação de alteridade se afirma não como separação de tipo solipsista, mas precisamente
como possibilidade e base de uma relação. Logicamente, com
efeito, a alteridade nunca pode ser total: o outro, a outra pessoa, enquanto outra, entra numa relação comigo e connosco
logo que seja encarada e conhecida como «outra». A sua identidade concreta – dissemos na primeira parte – não precisa de
ser conhecida para que se estabeleça uma relação de alteridade. Em contrapartida, com eventuais seres extraterrestres
auto-conscientes não temos nenhuma relação, enquanto não
for confirmada a sua existência. Numa palavra, o bem comum assume uma forma geral, na medida em que formalmente se constitui como bem da comunidade; quanto ao seu
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conteúdo, o bem comum recebe da respectiva comunidade a
sua especificidade.
A justiça constitui-se então como a qualidade transversal
dos actos singulares ou colectivos, que, de perto ou de longe,
afectam o bem comum. A determinação do justo diz respeito
conjuntamente à forma do bem comum, assim como ao seu
conteúdo particularizado. Contudo verificamos que existem
teorias que se debruçam mais sobre um destes dois aspectos,
a forma ou o conteúdo do justo. As várias teorias sobre a justiça incidem portanto no modo como se estabelecem os critérios que permitem dar-lhe uma existência institucional correcta, quer de modo formal, quer do ponto de vista dos conteúdos dos valores visados. Por outro lado, a etimologia do
alemão (das Recht) mostra a ligação entre o justo e o recto, o
direito; por sua parte, o étimo ius, iúris do latim (do qual provêm as palavras justo e justiça) «deve ter significado na origem uma “fórmula religiosa que tem força de lei”»; assim, a
raiz do termo justiça estava etimologicamente relacionada
com a lei. Contudo, o problema principal concerne a compreensão do modo como se pode instaurar a justiça nas relações humanas.
Nos últimos três ou mesmo quatro séculos a reflexão sobre a justiça deu origem a várias teorias. Reteremos, sem
preocupação de exaustividade, apenas algumas delas, nomeadamente o utilitarismo, a igualdade liberal, o libertarismo, o comunitarismo, assim como a recente teoria avançada
por Amartya Sen. Esta breve apresentação tem como objectivo mostrar que a determinação dos critérios da justiça é compreendida de modo diferente em função da teoria que se
adopta, o que tem inevitáveis repercussões sobre a maneira
de entender o acesso aos cuidados de saúde.
1. A maximização da utilidade no utilitarismo. Em primeiro lugar, o utilitarismo, que reconhece em Jeremy Bentham o seu primeiro porta-voz e em John Stuart Mill um dos
seus mais dignos representantes. Na formulação de Catherine Audard, «o utilitarismo é uma teoria moral que permite
coordenar de modo preciso a avaliação e a acção morais. Pos-
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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sui três dimensões essenciais: um critério do bem e do mal
(welfarismo), um imperativo moral: maximizar este bem (prescriptivismo), uma regra de avaliação da acção moral graças a
este critério (consequencialismo)». Segundo a enunciação utilitarista mais frequente, o critério da acção moral reside na obtenção da maior satisfação e felicidade para a maior quantidade de pessoas. É de notar que esta corrente, ainda hoje
adoptada em muitíssimas universidades principalmente do
mundo anglo-saxónico, deu origem a uma vasta quantidade
de obras, livros e artigos, que ofereceram reformulações, análises explicativas, precisões e estudos de casos. Um dos benefícios desta teoria reside no facto de não pressupor, como
critério primordial, o conhecimento das intenções dos agentes, o que facilita a capacidade de avaliação moral dos actos.
O critério quer ser, com efeito, mais objectivo e acessível a todos. Segue daí que este critério diz respeito à avaliação das
consequências do agir, do ponto da formulação da finalidade
principal: maximizar a felicidade ou o bem-estar para a maior
quantidade de seres humanos. São deste modo os resultados
do agir que permitem determinar a sua bondade. As objecções mais frequentemente apresentadas são contudo pesadas:
qual será a comparação possível entre as diferentes maneiras
de entender a felicidade e o bem-estar? Serão estes dois termos coextensivos? Como determinar o critério para comparar graus de felicidade, referindo-os a determinadas pessoas?
Em seguida, a introdução de um objectivo qualitativo combinado com um factor quantitativo aumenta a dificuldade de
avaliação dos critérios da acção utilitarista. A dificuldade consiste tanto em avaliar quantitativamente os graus de bem-estar e de felicidade, como em determinar qualitativamente a
natureza dos grupos de pessoas que devem beneficiar da acção utilitária. Finalmente, o aspecto da teoria utilitarista mais
criticado, e que está no centro do pensamento de John Rawls,
diz respeito àquilo que, com René Girard, se pode caracterizar como «princípio sacrificial»: cedo ou tarde, a teoria utilitarista da justiça acaba por prejudicar os direitos de determinadas minorias em proveito dos interesses da maioria quantitativa dos membros de uma determinada comunidade. Com
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efeito, os interesses dos mais fracos ou menos performantes
membros da comunidade travam a maximização dos resultados correspondendo aos desejos da maioria. Se por exemplo, uma determinada camada de jovens não aproveita devidamente nem o ensino nem as instalações da sua escola, a lógica utilitarista exigiria que uma tal escola fosse prejudicada
na altura da atribuição dos respectivos subsídios; deslocar-seia então estes subsídios para as escolas apresentando bons resultados e bom aproveitamento por parte dos alunos. Esta situação acabaria por lesar aquilo que se considera como os direitos fundamentais das pessoas. No fim de contas, há sempre pessoas que a lógica utilitarista acaba por «sacrificar» em
proveito do maior bem comum.
O século XX conheceu várias formas novas de utilitarismo (por exemplo, Harsanyi, Hare) que tentaram responder às
dificuldades habitualmente levantadas. Tratava-se de ligar a
possibilidade de uma avaliação quantitativa com a prescritividade universal. Para este efeito, a questão dos estados de felicidade ou de prazer cedeu o passo à questão das preferências, como se se dissesse que o que dá mais felicidade é aquilo que se prefere. Para não cair contudo numa ética meramente individual, o que seria o caso se todos os indivíduos
devessem seguir as suas preferências, o utilitarismo virou-se
para a questão da regra, nomeadamente uma regra de utilidade. Mas verifica-se que a regra está, ela própria, subordinada à busca do bem melhor. Deste modo, pode-se dizer que
o utilitarismo é, com certeza, uma doutrina de natureza teleológica – por oposição às teorias deontológicas (Kant,
Rawls) – que tenta articular, como todas as grandes teorias
éticas, uma «racionalidade prudencial» com «normas universais» (C. Audard). Mas as críticas acima apresentadas parecem perdurar na medida em que, no fim de contas, o utilitarismo não consegue justificar a comparação de valores diferentes, nem a diferença, na aplicação do princípio de utilidade, entre grupos de pessoas e pessoas singulares.
É por isso que na promoção do bem comum e da justiça
o utilitarismo encontra sérias dificuldades, quando se trata de
resolver questões concretas. Embora todas as teorias éticas
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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não consigam a priori resolver as questões levantadas pela
busca da sabedoria prudencial, o utilitarismo parece ultimamente recorrer a um certo pragmatismo na solução dos problemas particulares, pragmatismo que pretende superar a
oposição entre crenças ou valores opostos. Deste modo, contudo, nas suas aplicações concretas, o pragmatismo acaba por
abandonar o campo da reflexão teórica em virtude de uma intuição apoiada no senso comum. Todavia, sabemos que senso comum não é necessariamente o «bom senso» e ainda menos o resultado de uma sistematização racional.
Podemos concluir que a questão da articulação da liberdade individual com o bem comum será difícil de resolver na
base de uma ética utilitarista. Tudo vai depender do privilégio dado à pessoa singular ou à comunidade, em vista a maximizar as suas preferências. Em geral esta maximização fará
entrar em consideração o bem superior da maior quantidade
de pessoas, com o risco de prejudicar os direitos dos indivíduos singulares.
2. A teoria da igualdade liberal. A ética do bem comum
deve conciliar dois princípios básicos: a liberdade e a igualdade. Numa síntese bastante caricatural, diz-se habitualmente que, na cultura dos Estados Unidos, a liberdade está
numa posição prioritária face à igualdade, ao passo que a
acentuação da igualdade caracteriza as sociais-democracias
europeias. Esta visão simplista deve ser corrigida; consideramos que esta correcção encontra o seu apoio primordial na
Teoria da Justiça de John Rawls (1971). Rawls parte do princípio da liberdade como primeiro valor. Daí segue que ele não
propõe uma definição do conteúdo do bem, mas confere a
prioridade ao justo, uma vez que se trata de fazer respeitar a
liberdade de cada ser humano, isto é, a igualdade entre todos.
Deste modo, é a justiça que «deve» garantir a cada pessoa o
exercício da sua liberdade. Esta insistência primordial sobre
o «dever» de justiça coloca Rawls na linha do pensamento
deontológico, por oposição à dimensão teleológica do bem.
Noutros termos, a justiça não se deduz de uma determinada
compreensão do bem – como foi e é o caso nas teorias teleo-
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lógicas –, mas, em sentido contrário, é o bem que se compreende a partir da justiça. É preciso, contudo, mostrar como
a justiça deve intervir. Dois princípios fundamentais são então enunciados por Rawls. «A primeira apresentação dos dois
princípios é a seguinte: em primeiro lugar, cada pessoa deve ter um
direito igual ao sistema mais extenso de liberdades de base para todos, que seja compatível com o mesmo sistema para os outros. Em
segundo lugar, as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de tal modo que, conjuntamente, a) se possa razoavelmente esperar que existam em proveito de cada um e b) que estejam
ligadas a posições e a funções abertas a todos». Os dois princípios
em conjunto, sendo o segundo composto de duas partes complementares, devem fornecer a articulação entre liberdade e
igualdade.
Uma vez que não se pressupõe uma concepção da vida
boa antes da justiça, a determinação dos modos de viver e dos
critérios de escolha para as decisões a tomar será feita mediante a discussão. A ética da discussão surge como consequência da dimensão deontológica na qual se move a reflexão
de Rawls. Mais ainda: da discussão apenas pode sair uma espécie de contrato entre os membros, isto é, entre todos os
membros de uma comunidade política. É por isso que a teoria de Rawls se apresenta no horizonte do neo-contratualismo
contemporâneo. Se não se trata, porém, de repetir a ficção do
contrato social de Rousseau; como organizar então a discussão que deve estar na base do contrato originário? Notemos
que a resposta tem que chegar antes do exercício da própria
discussão, em vista a tornar esta eficaz quanto ao estabelecimento do consenso. O método de Rawls aparece como destinado a fornecer aqui as condições de possibilidade da discussão, a qual poderá permitir discussões ulteriores. A resposta surge então na ficção do véu originário, divisada por
Rawls em 1971 (tese que será ulteriormente quase abandonada pelo próprio). A ficção pode ser condensada em poucas
palavras: é preciso distribuir os papéis sociais que irão ser
afectados a cada cidadão, relativamente aos prémios, às tarefas, trabalhos, honras e obrigações, tendo cada um destes a
sua respectiva importância. Como evitar uma injustiça nesta
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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distribuição? Para este efeito, vamos supor que ninguém conhece à partida aquilo que vai receber (eventualmente servidão vitalícia, ou pensão vitalícia sem trabalhar, isenção de impostos ou impostos excessivos, etc.). Nesta ignorância, significada pela ficção do véu originário, como irão as pessoas
comportar-se? A resposta fornece, segundo Rawls, o método
para descobrir os alicerces de uma sociedade justa. Os parceiros da discussão, que são agentes racionais, vão pensar que
é melhor atribuir direitos fundamentais iguais a todos; em
caso contrário, cada um sentir-se-ia ameaçado de ser a vítima
aleatória de uma distribuição gratuita que pudesse lesar gravemente os seus interesses. Porém, dado que os seres humanos não nascem com as mesmas aptidões, haverá sempre
uma diferença entre eles, o que prejudica a sua igualdade de
base. É por isso que o segundo princípio aceita uma desigualdade na distribuição, mas, tal como se afirma na primeira parte deste segundo princípio, o objectivo desta desigualdade legítima consiste em trabalhar para a sua própria atenuação; por exemplo, é aceitável que o primeiro-ministro tenha um vencimento largamente superior à média dos cidadãos, apenas porque o seu trabalho deve contribuir para a
instauração de uma sociedade mais justa, com um maior respeito pela igualdade de base. Assim, o primeiro princípio centra-se na liberdade, ao passo que o segundo lhe coordena
uma compreensão saudável da igualdade.
É evidente que esta discussão primordial que se realiza
sob o véu de ignorância constitui uma ficção, exactamente
como a ficção do contrato social de Rousseau, mas ela tem o
mérito de poder fundamentar a busca concreta da justiça em
princípios universalmente aceites. Estes princípios permanecem formais, e intervêm como condições de possibilidade a
priori das discussões concretas e das repartições efectivas dos
bens e encargos no seio da sociedade. Neste sentido, interpretados à luz da terminologia kantiana, estes princípios são
transcendentais, isto é, – em conformidade com a definição
do transcendental kantiano – relativos às condições de possibilidade a priori do funcionamento das distribuições justas e
de uma justa compreensão do bem comum.
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A teoria inicial de Rawls suscitou uma multiplicidade de
análises e de observações críticas. Uma delas, tal como se
pode ler em Paul Ricoeur, consiste em dizer que os intervenientes da discussão inicial são supostos agir racionalmente,
em função dos seus interesses superiores. Mas em determinada altura, Rawls concede que eles podem não agir de forma totalmente racional e que, portanto, devem ser considerados como entrando na discussão com «convicções bem fundamentadas». Ora, o que serão tais «convicções bem avaliadas» senão precisamente convicções sobre a compreensão da
vida boa, ainda que em termos gerais? É com esta argumentação, aliás, que Paul Ricoeur reconhece a impossibilidade de
manter um discurso puramente deontológico e formal sobre
a ética, discurso que, por princípio, faça abstracção de uma
certa convicção sobre a natureza concreta dos bens, por parte dos parceiros da discussão. A esse respeito, sabe-se que
Rawls, nas décadas ulteriores, alterou bastante a sua posição
sobre o véu de ignorância, nervo central da sua concepção
deontológica da ética. Mas limitamo-nos aqui à primeira
apresentação da sua teoria.
Do ponto de vista da problemática do bem comum, o
pensamento de Rawls aparece como modelo de uma teoria de
igualdade liberal, isto é, de um liberalismo mitigado pela
preocupação de respeitar o direito à igualdade inicial entre todos os cidadãos, assim como à busca do restabelecimento de
uma igualdade, em todos os espaços nos quais ela não existe. Mas é sempre a partir da liberdade individual que a problemática da justiça e do bem comum é abordada e tratada.
3. As correntes do «libertarianismo». Não será necessário parar longamente numa corrente da justiça e do bem comum conhecida como o libertarianismo. Contudo, não se pode
prescindir de lhe deixar um certo lugar nas nossas considerações porque a controvérsia à qual deu origem é a dos libertarianos versus os comunitarianos. O mentor dos libertarianos
foi Robert Nozick (Anarchy, State and Utopia, 1974). De certo
modo, trata-se de um liberalismo exacerbado, com as suas
aplicações e consequências na economia do mercado. Mas é
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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interessante notar que Nozick parte também de uma forte interligação entre liberdade e igualdade. Contudo, esta igualdade é apenas uma maneira de reforçar a liberdade: todos os
seres humanos são igualmente livres de poderem usufruir,
com um direito exclusivo, do seu trabalho e, em geral, do desenvolvimento das suas capacidades. Segundo Will Kymlicka, «a teoria dos direitos de propriedade de Nozick repousa
sobre três princípios fundamentais: 1. Um princípio de transferência: o que é adquirido justamente pode ser livremente
transferido. 2. Um princípio de aquisição inicial justa, que explica o modo como, na origem, os indivíduos chegaram a deter bens que podem ser transferidos em conformidade com o
princípio precedente. 3. Um princípio de correcção das injustiças, que explica como dispor dos haveres injustamente adquiridos ou injustamente transferidos». Não se poderia estar
mais longe das teorias do bem comum.
Paradoxalmente Nozick pretende partir de uma situação
de igualdade inicial: cada um é proprietário das suas aptidões
e dos produtos realizados com o exercício das suas aptidões.
Ele não ignora a desigualdade das aptidões, mas dado que
considera como absoluto o direito que, à partida, cada um
tem sobre as suas aptidões, ninguém, nem sequer o Estado,
poderá obrigar os indivíduos a prescindir de uma parte desse direito em proveito de uma repartição mais equilibrada do
bem comum. Percebe-se que o libertarianismo tem no capitalismo absoluto a sua lógica consequência. Um dos argumentos principais que leva Nozick a considerar como absoluto o direito de propriedade é a natureza da relação que cada
um tem com o seu corpo: esta relação com o próprio corpo
deve ser pensada em termos de propriedade; trata-se de um
direito de propriedade primordial, que se estende aos bens
produzidos. Por exemplo, a reforma da saúde do Presidente
Barack Obama não pode senão suscitar a violenta oposição da
teoria dos libertarianos.
Em nosso entender, considerar que a relação que cada
um mantém com o seu corpo consiste no exercício de um direito de propriedade é, do ponto de vista da antropologia filosófica, um erro, uma vez que pressupõe metodologica-
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mente uma dualidade inicial – o sujeito da propriedade e o
objecto dela – para, logo a seguir, identificar estes dois termos,
mas de uma maneira sofística: a relação do corpo com o seu
proprietário é assimilada à relação que os bens possuídos
mantêm com o seu dono. Esta assimilação do corpo a um bem
exterior possuído é inaceitável na perspectiva da fenomenologia e da hermenêutica contemporânea. Por isso mesmo, não
se pode considerar como idênticas as relações que cada um
mantém com o próprio corpo e com os bens produzidos.
Na verdade, em virtude do seu forte unilateralismo, não
é tanto a teoria libertariana que suscita os desafios mais candentes, mas, sim, o diálogo entre o pensamento liberal e a corrente designada como «comunitarismo».
4. O comunitarismo. A preocupação pela comunidade
não está ausente de nenhuma corrente sociopolítica. Todas as
grandes filosofias desenvolveram o seu pensamento sobre a
origem e a função da comunidade humana. Contudo, a multiplicidade de comunidades possíveis já mostra que não é
simples determinar a extensão destas, a sua natureza, a sua
função e os seus limites: comunidade étnica, racial, nacional,
social e civil, profissional, partidária e política, religiosa, académica, etc. Como também comenta Will Kymlicka, o pensamento liberal, de que, como foi sublinhado, John Rawls é um
dos mais eminentes representantes, faz derivar a compreensão da comunidade a partir da liberdade e da igualdade. Daí
surge uma questão: será possível fazer, de certo modo, o caminho oposto, isto é, ver brotar a reflexão sobre a liberdade e
a igualdade a partir da análise da comunidade? Neste caso,
porém, que tipo de mutação a liberdade e a autonomia humana conhecerão? O diálogo entre o pensamento liberal e o
comunitarismo situa-se, tal como já se percebe, no coração
das relações entre a autonomia e a inserção humana na comunidade.
No século xix, e também no século xx, o marxismo conferiu uma forma bastante característica à teoria da comunidade. O que, contudo, marca esta teoria reside na ligação indelével que se estabeleceu entre a existência da comunidade
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e a visão do bem que esta impunha. Face ao pensamento liberal, que se caracteriza principalmente pela neutralidade do
Estado do ponto de vista das diferentes compreensões do sentido da existência humana, o comunitarismo marxista não podia nem pode ser neutro: a teoria da história obedece à lógica científica de uma dialéctica materialista, sem que seja possível abrir a compreensão do progresso da sociedade a outras
interpretações hermenêuticas. Noto que a hermenêutica dos
sentidos da existência e da história não é compatível com a
visão da comunidade marxista. Além disso, como se sabe, o
marxismo exige a revolução como meio de instauração da ditadura do proletariado. É por isso que, em desacordo com estas teses, os representantes do comunitarismo americano se
orientam numa linha bem diferente.
Existe todavia um ponto essencial que separa do pensamento liberal estes representantes, nos quais se destacam
«Michael Sandel, Michael Walzer, Alasdair McIntyre e Charles Taylor»2: o conteúdo de sentido da existência não pode estar totalmente reenviado para a liberdade e a autonomia de
cada ser humano. Noutros termos, o que constitui o elo de ligação entre os membros e mantém a comunidade coesa tem
que ser determinado e aceite por todos. Tentemos em poucos
passos condensar os principais pontos de divergência do comunitarismo e do pensamento liberal.
Em primeiro lugar, os comunitarianos consideram que
os liberais se baseiam numa visão fixista da natureza humana, ao avaliarem esta como universal. É, por exemplo, o caso
de Rawls, que determina os critérios universais da justiça, critérios que se aplicam a todas as sociedades, de tal maneira
que constituem o padrão de referência que permite medir o
grau de justiça presente numa determinada sociedade. Em
sentido contrário, os comunitarianos insistem no contexto
concreto dos usos e costumes da cada comunidade, do seu
2 Cfr Will KYMLICKA, Contemporary Political Philosophy: an Introduction,
Oxford, University Press, 1992. No espaço reservado a esta breve estudo
não cabe a apresentação das teses de Michael L. Sandel, nomeadamente no
seu livro O liberalismo e os limites da justiça (Lisboa, Fundação Gulbenkian,
2005; trad. por Carlos Pacheco Amaral de Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge, Cambridge University Press, 1982 (1ª ed. ), 1998 (2ª ed.)).
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«espírito particular», como teria dito Hegel na linha do Volksgeist. Não é, aliás, por acaso, que os comunitarianos, de preferência a Marx, encontram em Hegel – na teoria hegeliana da
vida ética (ou eticidade, Sittlichkeit) – o seu apoio primordial:
por oposição a uma moral formal, desligada da sua inserção
numa tradição cultural concreta, os comunitarianos consideram que a comunidade deve ser apreendida sempre na especificidade das suas tradições, por definição específicas e contingentes. É nestas tradições que se situa o conteúdo de sentido no qual a coesão da comunidade se vive. De certo modo,
Amartya Sen retomará este argumento, considerando que a
justiça presidindo ao bem comum se deve estabelecer não em
princípios universais, formais e por isso inaplicáveis, mas em
correspondência com as situações concretas vividas na comunidade. De todo o modo, a comunidade, segundo a corrente comunitariana, deve ser pensada em função das finalidades concretas que lhe dão a sua consistência.
Em segundo lugar, estes fins são vividos pelos membros,
o que constitui um referencial que, eventualmente, limita a
autonomia; com efeito, os membros não podem retirar-se da
comunidade quando discordam destes fins. Todavia permanece a questão do grau de constrangimento com o qual estes
fins devem ser impostos ou assumidos pelos membros. Mas
é a presença destas finalidades que, por um lado, faz entrar o
comunitarismo na família das teorias teleológicas do bem
comum e, por outro, faz compreender a recusa da neutralidade do Estado quanto à determinação do bem, uma vez que
é na comunidade que se vive a finalidade primordial da existência.
Em terceiro lugar, os comunitarianos partilham em geral
a tese segundo a qual a comunidade se situa no campo da política: o âmago da comunidade é de natureza política. Poderíamos comentar dizendo que o Estado Providência, que assume todas as tarefas da educação escolar, todas as responsabilidades para a saúde, todas as garantias para o sistema de
pensão, obedece de perto ou de longe à lógica do comunitarismo, uma vez que faz entrar na comunidade política o exercício das funções que poderiam ser deixadas à livre iniciati-
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va dos cidadãos. Nos termos de Kymlicka, «os comunitarianos distinguem raras vezes as actividades colectivas das actividades políticas».
As objecções do pensamento liberal ao comunitarismo
incidem também nestes três campos de argumentos. Começando pelo terceiro – a natureza essencialmente política da
comunidade – verifica-se que o comunitarismo não faz suficientemente a diferença entre os níveis de comunidade: não
terá a sociedade civil precisamente a tarefa de organizar actividades colectivas a um nível inferior ao do Estado? «Por que
é que uma tal participação deveria ser organizada pelo Estado mais do que pela livre associação dos indivíduos?» No
prolongamento desta objecção entrevê-se um problema
igualmente importante: qual será o tamanho das comunidades políticas? Limitar-se-ão às comunidades nacionais, linguísticas, culturais, transnacionais?
Lembremos que a questão do bem comum constitui para
nós o pano de fundo desta problemática. Quando se fala do
bem comum, de que unidade comunitária se fala? Do bem comum nacional, do bem comum das comunidades infra-estatais e das comunidades organizadas pela sociedade civil ou,
de modo simétrico, das comunidades supra-estatais? Além
disso, os níveis diferentes do bem comum podem apresentar
zonas de conflito, como o comprova a vida diária; quem será
então o árbitro de tais conflitos?
Quanto ao segundo argumento, o das finalidades impostas aos membros na teoria comunitária, subsiste em nosso entender uma certa indeterminação: de que finalidades ou
fins se trata? Pode-se falar de «modos de vida», em vez de finalidades. O pensamento liberal objecta então que o comunitarismo acaba por impor determinados modos de vida; a
grande objecção que se perfila nessa altura é a marginalização
de modos de vida minoritários (por exemplo, o dos imigrantes). É por isso que o pensamento liberal apoiava a libertação
dos grupos minoritários, eventualmente marginais. O comunitarismo imporia o modo de vida da maioria dos membros
e não respeitaria os direitos das minorias. Este argumento
tem o seu peso. Mas não será que se poderia conciliar as te-
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ses em presença? Quando se afirma que o comunitarismo impõe um limite à autonomia das pessoas, é preciso reconhecer
que o próprio pensamento liberal aceita também um limite à
autonomia: a minha liberdade de acção não pode prejudicar
a liberdade dos outros. A questão consiste então em determinar o grau de finalidades ou de «modos de vida» que o comunitarismo acarreta. Tal como afirmámos na primeira parte, é verdade que o Estado não pode impor uma determinada visão do bem, sendo compreendido este como o sentido
supremo da existência. Não pertence portanto à comunidade
impor, por exemplo, uma crença religiosa ou uma visão ateia
da existência. Mas para as questões que dizem respeito à justiça, podemos afirmar que mesmo o pensamento liberal, tal
como se verificou com John Rawls, repousa sobre elementos
inerentes a determinados conteúdos de valor. É portanto excessivo dizer que a neutralidade do Estado não lhe permite
impor determinados valores éticos além das preferências dos
cidadãos, assim como excessivo seria a afirmação simétrica
que afastaria os comunitarianos sob o pretexto de que limitam a priori a autonomia individual pelo facto de impor traços de valores ou finalidades comuns a título de cimento da
comunidade. Talvez uma justa determinação dos níveis destas finalidades pudesse constituir um elemento de encontro
entre estas teses.
Em último lugar, convém retomar a oposição entre uma
visão universalista da justiça, tal como a pressupõe o pensamento liberal, e a teoria que apreende a sociedade no seio das
suas tradições vividas. Este argumento voltará a aparecer na
discussão da teoria da justiça de Amartya Sen. A objecção do
pensamento liberal é simples e forte: o relativismo total das
tradições levará a um certo conformismo dos valores, como se
estes fossem dignos e aceitáveis pelo simples motivo de que
são vividos por uma comunidade histórica. A objecção divide-se em dois momentos: por um lado, podiam surgir situações de nacionalismo exacerbado ou de racismo, aceites pela
maioria da comunidade, que se julgaria éticas pelo simples
facto de existirem. Kymlicka refere o caso da escravatura, o
qual teria sido deste modo aceitável enquanto correspon-
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
–227–
dendo às tradições de uma determinada comunidade. Não se
pode portanto tão facilmente fazer o curto-circuito passando
por cima da universalidade dos valores. Por outro lado, não
se pode negar – e nenhuma das teorias o ignora – que é preciso organizar «fóruns de discussão» sobre os valores vividos
na comunidade. Na verdade, segundo Kymlicka, «liberais e
comunitarianos não se opõem sobre a necessidade de práticas
e de fóruns comunitários. O seu desacordo incide no papel do
Estado na avaliação e na protecção destas práticas».
Acrescentar-se-á também que todas as filosofias, assim
como todas as teorias políticas, são confrontadas com a necessidade de articular a universalidade com a particularidade, isto é, no caso concreto, a universalidade dos valores com
a sua vivência nas tradições concretas da comunidade. Não é
portanto de estranhar que a crítica dos liberais aos comunitarianos se converta numa crítica simétrica feita por estes
àqueles: se os ideais da liberdade e da igualdade fossem por
si próprios capazes de gerar a coesão da comunidade, por que
é que as nações não abandonariam as suas oposições, por que
é que não poderia surgir um estado universal, baseado na liberdade e na igualdade de todos?
5. «A ideia de justiça» de Amartya Sen. Não se pode acabar este rápido percurso das teorias da justiça sem evocar o
grande tratado de Amartya Sen sobre a justiça. Tratar-se-á
aqui mais de uma evocação do que da análise geral das ideias
deste livro – A ideia de justiça3 –, o que reservamos para um
outro estudo. Discípulo, amigo e colega de John Rawls,
Amartya Sen, nascido em Novembro de 1933, obteve o prémio Nobel de economia em 1998 pela sua teoria sobre o bemestar (welfare) e o desenvolvimento humano. Autor de numerosos livros desde 1970, ele foi sobretudo conhecido a partir
de 1982 pelo seu estudo sobre «pobreza e fome». O que nos
interessa aqui é o facto de Amartya Sen, no seu grande livro
de 2009, A ideia de justiça, ser um dos maiores críticos da
3 Amartya SEN, The Idea of Justice, London, Penguins Books, 2009; utilisámos a tradução francesa: L´idée de justice (trad. fr. por Paul Chemla), Paris,
Flammarion, 2010.
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Theory of Justice, de John Rawls. Com efeito, Amartya Sen considera que está errada a tese de Rawls segundo a qual a teoria filosófica da justiça deve estabelecer-se ao nível procedimental, isto é, na elaboração das condições de possibilidade
da discussão mediante as quais se alcançam as regras formais
de uma distribuição e repartição justas no seio da sociedade
política. O corolário desta tese de Rawls era, tal como foi referido, o abandono metodológico de uma discussão directa
sobre a natureza dos bens, deveres e direitos, objectos de uma
repartição justa.
Um exemplo interessante, entre outros, pode ilustrar
parcialmente esta problemática4. Amartya Sen imagina três
rapazes discutindo a quem vai ser dada uma flauta. Uma discussão surge então entre eles; o primeiro diz que a flauta lhe
deve ser concedida, porque ele é o único capaz de tocar flauta; o segundo diz que se lhe deve atribuir a flauta, porque ele
é o único dos três que não tem brinquedos, ao passo que os
dois outros possuem muitos deles; o terceiro afirma que a
flauta deve pertencer-lhe porque foi ele que a construiu… O
autor aproveita este exemplo simples para mostrar que a discussão não chega necessariamente a um acordo; com efeito,
segundo a tese filosófica à qual se recorrerá (na articulação do
binómio liberdade-igualidade), a decisão será diferente. O libertarianismo dará a flauta ao terceiro, o comunitarista inclinar-se-á para o segundo, mas o utilitarista hesitará entre o primeiro e o segundo, provavelmente com uma preferência para
o primeiro. Assim, este exemplo mostra que a determinação
dos critérios formais de uma distribuição justa não chega necessariamente – e mesmo, em geral não chega – a uma regra
de distribuição universalmente aceite, conclui Amartya Sen
contra Rawls.
É preciso portanto enraizar a teoria da justiça noutros pilares. Ao «institucionalismo transcendental» de Rawls, Sen
opõe uma visão baseada na «comparação das situações
reais»5. Noutros termos, a teoria de Rawls procura uma regra
que possa a priori, isto é, antes de ser aplicada à análise das
4 Idem, p. 38-40.
5 Idem, p. 32.
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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situações reais, chegar a um consenso universal sobre as regras
de distribuição justa. Segundo Sen, a posição de Rawls significa que se parte de uma compreensão ideal da justiça, para
ulteriormente medir, relativamente ao ideal, as situações concretas. Ora, Sen propõe o caminho inverso: é preciso analisar
desde o início as situações reais para que os progressos concretos sejam discerníveis. «Todo o exercício da razão prática,
em vista a uma escolha real exige um quadro de comparações
dos graus de justiça que permita esta escolha entre opções
realizáveis, e não a identificação de uma situação perfeita, insuperável e talvez inacessível: é o problema da não-necessidade da busca de uma solução transcendental»6. A consequência desta inversão de perspectivas – que lembra longinquamente a passagem de Platão para Aristóteles – reside na decisão de tomar em consideração os casos concretos, os bens e
valores concretos (por exemplo, na avaliação dos graus de
probreza e das melhorias possíveis). Mas a teoria de Rawls
propunha-se escapar à dificuldade da impossível comparação entre situações e bens concretos, para evitar a injustiça
provindo de uma falta de imparcialidade e impossibilitando
a realização da equidade. Como resolve Sen esta dificuldade,
aparentemente inultrapassável?
Um dos elementos principais da resposta situa-se no
conceito de «capabilidade»7, longamente discutido na terceira parte da obra («Os materiais da justiça»). O binómio liberdade-equidade exige uma determinação mais apurada da liberdade, o que passa pela noção de capabilidade. Num sentido diferente do de Paul Ricoeur – o qual organiza, em 1990,
a sua antropológica filosófica e a sua ética mediante a explicitação dos quatro sentidos do «homo capax» –, Sen considera que a liberdade não se merde directamente pela observação das realizações objectivas, mas que estas devem passar
pelo prisma das capabilidades.
Duas breves citações da mesma página8 ajudam a com6 Idem, p. 34.
7 «Capabilities»; conservamos a tradução literal, tal como se fez em todas
traduções deste livro.
8 Idem, p. 285.
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preender o desafio desta teoria: «a abordagem pelas capabilidades indica uma base informacional sobre a qual devemos concentrar-nos para avaliar e comparar as vantagens individuais
globais»; «a abordagem pelas capabilidades é um método de
ordem geral que orienta a atenção para a informação sobre as
vantagens individuais, avaliadas em termos de possibilidades e não em função de um “projecto” específico sobre a boa
maneira de organizar a sociedade». Por exemplo, uma pessoa
que ganhou muito dinheiro, mas que é ou se tornou paralisada não pode ser declarada como tendo uma vida objectivamente bem conseguida do ponto de vista das suas «capabilidades»; eventualmente preferiria uma vida financeiramente muito mais modesta e não ter este handicap.
A consideração das capabilidades na discussão acerca da
justiça na sociedade impede deste modo que nos fixemos exclusivamente sobre os meios, considerados de fora, isto é, quase objectivamente, como o que é susceptível de estabelecer as
condições de equidade entre as pessoas (por exemplo, a equidade não se realiza através do meio que são as remunerações
financeiras). Sen propõe que, em vez de uma atenção sobre os
meios – o que era, no entender dele, o caso de Rawls –, reintroduzamos a análise dos fins da vida, isto é, dos projectos
existenciais pela virtude dos quais cada um pode viver a existência que considera para ele a melhor. «Compreender que os
meios de uma vida humana satisfatória não são, por si próprios, os fins do bem-viver ajuda a alargar nitidamente o campo da avaliação. E é ali que começa a utilidade da perspectiva das capabilidades». Esta compreensão da liberdade recupera a consideração das finalidades existenciais que cada pessoa considera como podendo estar legitimamente ao seu alcance. O progresso da justiça numa dada sociedade consiste
então, não em fixar um projecto ideal global, mas em melhorar as circunstâncias concretas que bloqueiam as capabilidades humanas – por exemplo, pela luta contra a pobreza em
determinadas zonas habitacionais, bem como contra as discriminações sociais, raciais, etc.
Paramos aqui a nossa evocação das ideias de Amartya
Sen, dado que o nosso objectivo principal consiste em traçar
O BEM DA PESSOA E O BEM COMUM NO PANO DE FUNDO DA TEORIA DA JUSTIÇA | MICHEL RENAUD
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as grandes linhas de um quadro geral das teorias que tentaram renovar a complexa questão da justiça na sociedade. Deixamos também fora de consideração numerosos autores importantes, principalmente Michael Sandel e Martha Nussbaum, que mereceriam um estudo particular.
O bem da pessoa e o bem comum tecem relações dialécticas, que, por isso mesmo, reenviam permanentemente umas
para as outras. Afectam a existência nas suas múltiplas dimensões, ética, social, económica, jurídica e política e mesmo
religiosa. A solução dos inevitáveis conflitos que surgem e
surgiram sempre exige um senso apurado de sabedoria prática. As aplicações destas relações e destes conflitos ao mundo da saúde constituem um campo de primeira importância,
que tem a justiça como eixo principal. Todas as soluções propostas pressupõem uma determinada compreensão da justiça, o que torna necessário a explicitação das diferentes teorias
subjacentes aos debates sobre «o justo».•
Elementos bibliograficos
Will KYMLICKA, Contemporary Political Philosophy. An Introduction (Second
Edition), New York, Oxford University Press, 2002.
Robert NOZICK, Anarchy, State and Utopia, New York, Basic Books, 1974;
2013 (Com prefácio de Thomas Nagel).
John RAWLS, A Theory of Justice, Harvard, Harvard University Press, 1971,
Revised Edition: 1975, 1999.
John RAWLS, Justice as fairness. A restatement, Harvard, Harvard University
Press, 2001.
Michel RENAUD, «L´implication réciproque de l´éthique et du politique»,
em Ghislaine FLORIVAL (ed.), Figures de finitude. Études d´anthropologie philosophique, T. 2, Paris – Louvain-la Neuve, Vrin – Peeters, 1988 (p. 158-193)
Michel RENAUD, «A pertinência do conceito de identidade pessoal para
a investigação biomédica», em Paula MARTINHO DA SILVA (Coord.), Investigação biomédica. Reflexões éticas, Lisboa, Gradiva, 2008, p. 265-293.
Paul RICOEUR, Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1990.
Paul RICOEUR, Le juste, Paris, Editions Esprit, 1995.
Paul RICOEUR, Le juste 2, Paris, Editions Esprit, 2001.
Michael J. SANDEL, Liberalism and the Limits of Justice, Cambrige, Cambridge University Press, 1982; 1988 (2ª ed.).
Michael J. SANDEL, Justice. What´s the Right Thing to Do?,
Amartya SEN, The Idea of Justice, Londres, Penguin Books, 2009.
–233–
Ciência, Ética e o mito da imortalidade
Rosalvo Almeida
Declaração em 30 de janeiro de 2014: não reconheço
conflitos de interesses pessoais no conteúdo do artigo;
fui correlator do Parecer n.º 64/cnecv/2012 referido
no texto.
O interesse crescente da comunidade científica pelos temas das neurociências tem-se traduzido, nos últimos anos,
por um igualmente crescente interesse por parte da opinião
pública.
Os progressos nesta área consistem essencialmente num
conhecimento mais profundo do modo de funcionamento do
cérebro e das relações entre os fenómenos mentais e as suas
bases biológicas. São exemplo do estudo dessa problemática,
assaz complexa, o trabalho e as publicações1 de António Damásio, e as intervenções concretas em resultado da investigação são uma realidade nos nossos dias.
No campo da intervenção médica aplicada a doentes afetados por patologias do sistema nervoso tem-se assistido a
um progressivo aumento da capacidade de utilizar tecnologias avançadas, cujos resultados são reconhecidamente beneficentes. A neurocirurgia, em cooperação com a neurofisiologia e outras ciências, tem demonstrado uma eficiência
imensa, como é o caso paradigmático da ablação de zonas cerebrais epileptogénicas, conseguindo curas ou francas reduções na frequência de crises epiléticas em pessoas cujos tra-
1. Damásio, António, 2010, O Livro da Consciência, Trad. Luís Oliveira Santos. Lisboa, Temas e Debates, Círculo de Leitores
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
tamentos medicamentosos se mostravam ineficazes ou, muitas vezes, geradores de efeitos secundários muito penosos.
Do mesmo modo, verificaram-se progressos significativos no campo da farmacologia com o que se conseguiu modificar de modo muito notório, a nível global, o panorama da
saúde mental no que concerne à redução de internamentos
em fases agudas e à menor institucionalização nas fases crónicas de diversas patologias.
Os exemplos citados, pelo seu próprio caráter, não suscitam questões éticas especiais. Sendo certo, contudo, que em
muitos casos as pessoas afetadas por doenças neurológicas ou
psiquiátricas se encontram incapazes de se autodeterminar e,
consequentemente, de consentir livre e esclarecidamente nas
intervenções neurocirúrgicas para retirada de lesões ou nas
prescrições psicofarmacológicas para controlo de sintomas,
pelo que prevalece o princípio da beneficência e supre-se a
não-aplicação plena do princípio de respeito pela autonomia.
Outros progressos científicos e tecnológicos têm ocorrido nas últimas décadas, embora esteja ainda por demonstrar
uma eficácia tão grande como a desejada ou esperada. É o
caso das aplicações de próteses ou implantes biónicos. A implantação de equipamentos eletrónicos que permitem reconhecer, a nível cerebral, estímulos visuais ou que permitem
movimentos de membros paralisados após uma ordem
mental, são exemplos de algo que hoje se pode afirmar como
real e que o futuro certamente confirmará. Também a nanotecnologia permite, ou permitirá a breve prazo, que certos
medicamentos sejam construídos de modo personalizado
e/ou com eficácia adaptada constantemente por sensores introduzidos no corpo.
A principal questão ética que se tem levantado é a da
possibilidade de criação de um ser humano cujos componentes físicos são sucessivamente substituídos por equipamentos artificiais, transformando-se em qualquer coisa que
temos dificuldade em reconhecer como boa2.
Outro campo de aplicação das tecnologias neurocientífi2. Changeux, Jean-Pierre, 1991, O homem neuronal, 2.ª ed. Trad. Artur Jorge
Pires Monteiro, Lisboa, Publicações Dom Quixote
CIÊNCIA, ÉTICA E O MITO DA IMORTALIDADE | ROSALVO ALMEIDA
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cas que se encontra em desenvolvimento crescente é o da estimulação cerebral profunda. A colocação de elétrodos na proximidade de certos núcleos cerebrais, ligados a equipamentos
implantados sob a pele, capazes de produzir estímulos elétricos, reguláveis em frequência e intensidade, consegue modular determinadas funções e obter resultados muito interessantes em certas formas da Doença de Parkinson e de outras perturbações do movimento3. Equipamentos similares
têm sido utilizados para tratar estados depressivos muito
graves e quadros obsessivo-compulsivos resistentes aos fármacos4. Também há notícia de projetos de aplicação da estimulação cerebral profunda com a finalidade de condicionar
comportamentos, como por exemplo em certas toxicodependências5.
Ainda que a estimulação cerebral profunda seja uma intervenção reversível, a sua utilização em casos de doença
mental grave, com o objetivo de condicionar comportamentos, levanta questões éticas que merecem estudo cuidadoso,
tendo em vista a história da psicocirurgia do princípio do século XX6.
Por outro lado, os benefícios conseguidos no campo das
perturbações do movimento (pese embora a possibilidade de
ocorrência de efeitos secundários desconfortáveis ou, por vezes, insuportáveis) são hoje largamente reconhecidos, ainda
que levantem delicados problemas na aplicação do consentimento informado. Importa, também, que se discuta, à luz do
princípio da justiça, a grande questão do acesso a equipa-
3. St George RJ, Nutt JG, Burchiel KJ, Horak FB. A meta-regression of the longterm effects of deep brain stimulation on balance and gait in PD, Neurology. 2010
Oct 5;75(14):1292-9
4. Glannon W, Consent to deep brain stimulation for neurological and psychiatric disorders, J Clin Ethics. 2010 Summer;21(2):104-11.
5. Heinze HJ, Heldmann M, Voges J, Hinrichs H, Marco-Pallares J, Hopf JM,
Müller UJ, Galazky I, Sturm V, Bogerts B, Münte TF, Counteracting incentive sensitization in severe alcohol dependence using deep brain stimulation of the
nucleus accumbens: clinical and basic science aspects, Front Hum Neurosci.2009; 3:22
6. Wind JJ, Anderson de: From prefrontal leukotomy to deep brain stimulation:
the historical transformation of psychosurgery and the emergence of neuroethics.
Neurosurg Focus. 2008;25(1):E10
–236–
CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
mentos altamente dispendiosos e produzidos ou comercializados em regime de quase monopólio à escala mundial.
Se juntarmos a esta possibilidade tecnológica de interferir nos comportamentos humanos as numerosas aplicações
no âmbito cardiológico e ortopédico, reconhecemos estar perante um mundo novo. Um mundo tão interessante como
fonte de deslumbramentos potencialmente danosos.
Na verdade todos os dias vemos anunciada a “cura” do
cancro ou do Alzheimer, embora raramente se refira o tempo
que falta para que isso se verifique. Não é só o público leigo
que é levado a pensar que, com medicamentos cada vez mais
eficazes, com medidas preventivas cada vez mais específicas,
com implantação de dispositivos e próteses cada vez mais sofisticados, com uma longevidade cada vez mais consolidada
em dados estatísticos fiáveis, a ocorrência de morte é cada vez
mais um sinal de falhanço. Esta falácia repete-se, infelizmente, nos media numa narrativa que não só gera sentimentos de
culpabilidade como acentua tendências maléficas para um
desempenho profissional pretensamente defensivo. A observação, por parte de prestadores e por parte de utilizadores de
serviços de saúde, de padrões de comportamento condicionados por expectativas irrealistas é, para agravar, perturbada
por recursos cada vez menos disponíveis. Deste modo, com
o acréscimo do tempo de vida e o decréscimo dos meios para
lhes dar qualidade, enfrentamos uma contradição geradora
de conflitos e de problemas éticos.
Não cremos que haja soluções mágicas para esta problemática. Não basta a definição cuidadosa de modelos de decisão eticamente sustentados. Veja-se o caso do “racionamento”
da prescrição de medicamentos tão caros quanto inovadores.
Perante a dificuldade resultante do crescente aumento de custos e da assustadora diminuição de recursos públicos, o
cnecv foi instado em 2012 a pronunciar-se sobre uma medida adotada por um grupo de hospitais. O Parecer7 definiu os
7. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Parecer sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos. Parecer n.º
64/CNECV/2012, disponível em http:// www.cnecv.pt/ admin/ files/
data/ docs/ 1348745574_Parecer%2064_2012%20CNECV%20Medicamentos%20SNS.pdf
CIÊNCIA, ÉTICA E O MITO DA IMORTALIDADE | ROSALVO ALMEIDA
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critérios que considerou necessários para um justo processo
de decisão: transparência com declaração de interesses, previsibilidade, publicidade, confirmação científica, independência responsável, possibilidade de exceção fundamentada.
Pondo de parte polémicas de cariz corporativo e algo demagógicas, pode-se afirmar que o modelo proposto foi globalmente bem acolhido tanto por decisores hospitalares como
por comentadores independentes. Contudo tal modelo está
longe de ser seguido pela generalidade das administrações.
Verificou-se mesmo que os critérios utilizados pelos hospitais
que deram origem ao pedido de parecer estavam em contradição absoluta com o modelo proposto.
Enunciar dificuldades não significa retirar validade à redação de documentos de orientação corretos e exaustivos. Às
políticas públicas cabe o difícil papel de transpor o essencial
das recomendações feitas de boa-fé para medidas eficazes e
justas – tarefa especialmente relevante e imperiosa em tempos como os que vivemos, onde infelizmente parece que tratar de assuntos relacionados com a morte não está na lista das
prioridades.
Deixar ao livre arbítrio dos mercados8 e à despudorada
influência das pressões mediáticas o encontrar da justa medida para a satisfação das necessidades, independentemente
das possibilidades de cada um, é algo que deve merecer a
nossa atenção crítica, principalmente através da formação de
uma opinião pública decente.
Bom seria que, além de apelos à parcimónia9 e de normas de orientação consensualizadas10, se avançasse entre nós
para um programa nacional de formação e reflexão participada dedicado às questões da vida longa em tempos de crise.
8. Papa Francisco. Evangelli Gaudium. 2013. Disponível em
http://www.agencia.ecclesia.pt/dlds/bo/EVANGELIIGAUDIUMPapaFrancisco2013CEP.pdf
9. Tilburt, JC and Cassel, CK. Why the ethics of parsimonious medicine is not
the ethics of rationing. JAMA. 2013 Jun 5;309(21):2212.
10. Nuffield Council on Bioethics. Novel Neurotechnologies: intervening in the
brain. June 2013. Disponível em http://www.nuffieldbioethics.org/neurotechnology
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CNECV | BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Em conclusão, consideramos globalmente positiva a
evolução do conhecimento e a aplicação dos progressos tecnológicos na área da neurociências e outras, mas, no entanto,
importa manter em alerta os diversos intervenientes (dirigentes políticos, profissionais de saúde, cientistas, investigadores, membros de comissões de ética, jornalistas, etc.) face às
questões apenas afloradas neste despretensioso texto.•
Nota: A regra ortográfica usada foi prerrogativa de cada autor.