Poder em pane

Transcrição

Poder em pane
Poder em pane
12/07/2011
*Artigo publicado no Jornal Folha de S. Paulo, edição do dia 12 de julho de 2011
No último domingo, um dos jornais de maior tiragem no Reino Unido deixou de circular. Criado há 168
anos, o tabloide "News of the World" fechou as portas depois de descoberta a maneira peculiar com que
conseguia seus furos de reportagem.
Especializado em escândalos políticos ou de alcova, destruição de reputações, furos sensacionalistas, o
jornal contratava, desde há muito, um detetive particular para grampear e ter acesso a telefones de
políticos, celebridades e mesmo gente comum.
Por trás do jornal estão as marcas de seu dono, Rupert Murdoch. Proprietário do maior conglomerado de
mídia do mundo, a News Corporation, Murdoch representa o jornalismo em seu processo de degradação.
Seus canais de comunicação, como a rede de TV Fox News, conseguiram impor o modelo de um
jornalismo a serviço das opiniões mais conservadoras, repetidas com a sutileza de quem está em guerra
contra qualquer sombra de divergência.
Sua figura representa, ao mesmo tempo, a oligopolização do mercado de mídia e a imposição de uma
agenda caricata de debate. Basta lembrarmos do nível dos argumentos dos ditos "âncoras" da Fox News.
Basta lembrarmos também de como um dos editores do "News of the World" acabou parando na
campanha do atual primeiro-ministro britânico David Cameron.
Que um de seus jornais seja pego aplicando táticas fora de qualquer padrão mínimo de respeito à
privacidade, eis algo que não deve nos estranhar. Murdoch tornou a produção de notícias setor de uma
luta política onde reina a seletividade do escândalo.
Todos, em algum momento, fizeram algo que não gostariam de mostrar na esfera pública. Mas cabe ao
jornal decidir quem vai ser exposto e quem será conservado, quem vai para a primeira página e quem vai
para a nota do canto.
A lei "dois pesos, duas medidas" transforma-se em uma regra, adequando-se às exigências de uma
sociedade do espetáculo.
Nesse sentido, o fechamento do "News of the World" deveria servir para uma autorreflexão da imprensa
mundial. Muito já se disse a respeito da imprensa como quarto poder, mas o que acontece quando esse
poder entra em pane?
Pode-se dizer que quem empenha sua credibilidade a serviço da luta política acaba por pagar um preço
alto, como nesse caso. Mas quanto tempo é necessário esperar para que a conta seja paga?
Durante anos, o jornal de Murdoch usou da invasão criminosa da privacidade para influenciar a pauta dos
escândalos. Mesmo descoberto, o estrago já foi feito.
A população tem o direito de perguntar se não existiria outros veículos que agem como o tabloide de
Murdoch.
*Vladimir Satafle é professor no departamento de filosofia da USP.
Autor: Vladimir Satafle