POLÍTICA NA INTERNET E CONTROLE DIGITAL
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POLÍTICA NA INTERNET E CONTROLE DIGITAL
414 Esta obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional ISSN 2175-9596 SISTEMAS DE VIGILÂNCIA EM PROCESSOS FOTOGRÁFICOS HÍBRIDOS Surveillance Devices Applied in Artistic Photographic Processes Adriel Martins Visotoa (a) Mestrando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unicamp, Campinas, São Paulo – Brasil, e-mail: [email protected] Resumo O trabalho apresentado a seguir consiste essencialmente na exposição de duas séries fotográficas: ''Reality Show (Me)'' e ''O Quarto de Narciso'', produzidas entre os anos de 2013 e 2015, consequência de minha pesquisa de mestrado intitulada provisoriamente de ''Poéticas Invasivas – O Voyeurismo na Fotografia Contemporânea'', que vem sendo desenvolvida na linha de pesquisa de Poéticas Visuais no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Em ambas as séries, me aproprio de dispositivos de vigilância para captura de imagens intimas e pessoais, com o intuito de criar narrativas documentais permeadas de conteúdo autobiográfico e confessional. Procuro demonstrar no presente artigo a origem desta produção, apontando os motivos que me moveram para sua realização, a reflexão teórica e conceitual que permeia o tema central desta pesquisa, e as referências artísticas que dialogam com estas séries de imagens, capazes de potencializarem seus sentidos a partir de seus toques e cruzamentos. Palavras chaves: fotografia contemporânea, vigilância, voyeurismo, exibicionismo. Abstract The present work consists essentially in the presentation of two photographic series, ''Reality Show (Me)'' and ''O Quarto de Narciso'', both made between 2013 and 2015, result of my master research, entitled provisionally ''Poéticas Invasivas – O Voyeurismo na Fotografia Contemporânea'' which has been developed in Visual Arts Program at the Instituto de Artes, from Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), with scholarship granted by Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). In both series, I appropriate of surveillance devices to capture intimate and personal images, in order to create documentary narratives crossed by autobiographical and confessional content. In this 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios. 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil, p. 414429. ISSN 2175-9596 VISOTO, Adriel. 415 article, I will try to show the origin of this works, pointing the reasons that lead me to make it, the conceptual issues that permeates the focus of this research, and the artistic references that dialogue with these series of images, able to enhance their meanings from their relations and connections. Keywords: contemporary photography, surveillance, voyeurism, exhibitionism. CONTEXTO Em minha prática artística, a exposição de situações e experiências pessoais, circunscritas num domínio íntimo e doméstico, tem se constituído como o grande foco de interesse e mote de criação. Neste sentido, a maneira como a privacidade vem sendo ora invadida e difundida como mecanismo de controle, ora ofertada como produto de construções identitárias, se tornaram frutos de uma inquietação latente, e que ao meu ver, as questões presentes nestas formas heterogêneas de exposição, poderiam ser articuladas através da fotografia, encontrando no território de minhas experiências pessoais e poéticas um espaço propício para serem operadas. Nas séries de obras que serão apresentadas a seguir, procuro unir num mesmo trabalho estas duas condições mencionadas anteriormente, aquela em que um sujeito opta por expor deliberadamente a sua própria intimidade, e a outra onde seu direito a privacidade é violado pelos inúmeros dispositivos e mecanismos de vigilância e controle que o circundam. Para a realização dos respectivos trabalhos, instalei no interior minha residência dispositivos cctv1 e espelhos convexos, deslocando tais aparatos do espaço público para o ambiente doméstico, permitindo assim, elevá-los a uma potência extrema, destituindo-os ironicamente da funcionalidade lógica e objetiva com que são empregados nos espaços institucionais e no território urbano, passando a funcionarem como ferramentas para a documentação do cotidiano doméstico por meio de imagens poéticas, permeadas de conteúdo íntimo e afetivo. Espetáculos Privados Pela manhã, já a algum tempo, a primeira ação que realizo após abrir os olhos é a de apanhar meu celular. Ainda sonolento acesso as redes sociais, e antes mesmo de tomar meu café, posso observar o que um amigo X comeu em sua primeira refeição, o local onde ocorreu seu petit 1 Sigla utilizada para Closed-circuit television, que se refere a um sistema de vigilância onde câmeras transmitem as imagens do espaço que capturam em tempo real. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 416 dejeuner, quem o acompanhava, e por fim o comprovo através do documento fotográfico exibido, que representa em ângulo panorâmico o alimento em questão. Avanço na barra de rolagem e obtenho em primeira mão, dados fiéis de como andam as férias daquele colega Y de trabalho que embarcou numa viagem para a Tailândia na semana anterior. Verifico os mapas dos locais por onde passou, as fotografias dos mesmos, as imagens de seu passaporte, bilhetes... E se houver algum interesse somado à mínima paciência, leio os textos por ele escritos que compõem este diário multimídia de viagem. Senão, continuo descendo pela barra de rolagem, rumo a uma profundeza abissal, infinita, coletando e descartando informações sobre o que um grupo Z de amigos tem pensado sobre cinema, política, comportamento, religião, refrigerantes diets, loções hidratantes, etc. Até eu perceber que já estou atrasado e ainda não me levantei. Após me erguer da cama, escovar os dentes, me vestir, passar meu café, fotografá-lo e postá-lo em uma rede social qualquer, estou pronto para sair de casa. Ao atravessar o corredor do prédio, aceno sarcasticamente para o porteiro pela câmera de vigilância que se encontra acima de mim, presa na parte superior da parede. Se esquecer de fazê-lo, não há problema algum, ainda passarei pela câmera do elevador, do saguão do edifício, do estacionamento, de sua saída, e finalmente a da rua. Assim o dia se move, entre janelas virtuais, espelhos convexos, feixes, vãos, frestas, e câmeras. E ao final de uma longa jornada de trabalho, já posso voltar para a casa, e depois de um bom banho deitar no sofá da sala, ligar a TV, me informar sobre quem era o sujeito anônimo que acompanhava a atriz protagonista da novela das nove em sua tarde na praia, ou mudar de canal, e espiar como andam as coisas entre aqueles indivíduos confinados numa casa, ou talvez numa fazenda, na busca pelo prêmio de um, dois, três, ou sei lá quantos milhões de reais. As situações cotidianas por mim narradas acima, e que poderiam ser aplicadas ao dia-a-dia de grande parte dos indivíduos nos dias de hoje, demonstram que a invasão da privacidade, bem como a sua exposição deliberada, se tornaram a realidade de um tempo em que as fronteiras entre os espaços público e privado parecem estar cada vez mais diluídas. Basta olhar a nossa volta, e já não é preciso retomar Foucault2 para constatar que nos tornamos de fato a sociedade da 2 Em ´´Vigiar e Punir`` (Foucault, M. (1999). Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes.), o autor se tornou referente em seus estudos sobre os modernos meios de confinamento, e modelos disciplinares, usados pelas instituições de poder como forma de manipulação e controle dos indivíduos. Mesmo sendo sua tese de grande relevância, e nos oferecendo dados 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 417 vigilância, até mesmo pelo fato de que sua tese não possui o alcance necessário para se identificar a que ponto chegaria os mecanismos por ele abordados. E, também ao afirmar que o que caracteriza este corpo social é a vigilância ao invés do espetáculo como coloca Guy Debord 3, Foucault parece contrapor duas condições que no fundo estão intimamente associadas, funcionando numa espécie de relação mutualística. Creio que nos situamos numa sociedade caracterizada (no que se refere a este contexto) pela espetacularização da vigilância, onde os dispositivos se configuram como agentes intermediários de determinada cena, e em determinado território. Nos encontramos cumprindo funções geminadas, colocados numa posição onde somos vigiados ao mesmo tempo em que também nos é incumbida a missão de vigiar ao outro (Bruno & Lins, 2010. p. 213). Somos simultaneamente atores e espectadores deste espetáculo. Interessa-me pensar este contexto a partir do conceito de vigilância líquida, no qual Bauman em diálogo com David Lyon mapeia as formas de vigilância na contemporaneidade, apontando suas implicações políticas, econômicas, sociais, e culturais. A importância de sua tese reside numa atualização dos estudos sobre os meios de vigilância, que avançam no sentido de não tratá-la apenas através de uma lógica panóptica4, onde o poder se localiza centralizado. Nos dias de hoje, este diagrama ao qual Foucault recorre na elaboração de sua tese, mostra-se insuficiente para a compreensão das novas formas de controle social (Bauman e Lyon, 2014. P. 56), que se manifesta através de uma complexa e multifacetada rede, envolvendo interesses, necessidades, e desejos das mais diversas ordens, e através de múltiplos agentes. Mas estaríamos no auge desta sociedade? Ou ainda seríamos capazes de elevar tais dispositivos a uma potência maior, próxima daquele modelo distópico e fictício criado por George Orwell em seu romance 1984? Onde numa comunidade regida por um governo ditador, onipresente e onisciente, os cidadãos são vigiados por todo o tempo em suas ações íntimas e rituais cotidianos, fundamentais para a reconstrução deste processo, acredito que a vigilância contemporânea carece de outras fontes e abordagens para sua compreensão. ´´A Sociedade do Espetáculo``, consiste num conceito cunhado por Guy Debord, no qual aborda o uso da imagem enquanto ferramenta de poder e controle nas modernas sociedades de consumo (Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.). 3 O conceito de panóptico se refere ao modelo arquitetônico criado pelo jurista inglês Jeremy Bentham, que tinha como fundamento base uma construção circular que continha em seu centro uma torre de observação, de onde seria possível observar todo o interior do prédio, todas as unidades. Empregado normalmente como forma de arquitetura prisional, o panóptico nasceu da necessidade de vigilância e controle dos indivíduos. 4 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 418 e conscientes desta invasão controlam suas próprias atitudes a fim de se adequarem às normas vigentes, estipuladas pelo ''Grande Irmão''. Na verdade, tudo indica que não estamos tão longe de tal condição. Para além da literatura, as artes visuais também procuram refletir sobre estas questões dentro de seu território, e por meio de seus próprios códigos. Antes de apresentar o corpo de obras proposto, acredito ser importante salientar que o papel que a vigilância vem ocupando no mundo contemporâneo, seja como forma de segurança, de conduta normativa, ou até mesmo na economia dos desejos e prazeres, tem sido abordado por um número considerável de artistas, que se dedicam a investigação de questões poéticas, políticas e estéticas em torno da vigilância e seus dispositivos. Desta forma, utilizam as mais diversas linguagens para darem corpo a suas ideias e aos conceitos que operam. Vigilâncias Fotográficas Mesmo sendo a vigilância um tema extenso e abrangente, capaz de ser articulado por meio de uma diversidade de linguagens e processos criativos, é inevitável que aqueles que atuam nesse campo acabam se inclinando principalmente para o uso da fotografia e do vídeo em suas respectivas obras, afinal, os próprios mecanismos de vigilância derivam muitas vezes destes meios. A relevância desta produção, que se dedica a tratar da vigilância através da fotografia, pode ser constatada com base numa série de exposições, publicações, e eventos que buscam reunir autores com distintas abordagens acerca do tema. Um exímio exemplo disso é a exposição ''Exposed: Voyeurism, Surveillance, and the Camera'', realizada inicialmente na Tate Modern em Londres, sob curadoria de Sandra Phillips. Na mostra ocorrida no ano de 2010, a curadora agrupa obras fotográficas (em sua grande maioria) de artistas como Bruce Nauman, Jonathan Olley, Laurie Long, Merry Alpern, Shizuka Yokomizo, Sophie Calle, Thomas Demand, Thomas Ruff, entre outros. Autores de diferentes interesses, linguagens, e nacionalidades, mas que possuem em comum o uso invasivo do dispositivo fotográfico nas peças apresentadas. É importante esclarecer antes também, que o emprego da fotografia nestas obras distancia-se de um uso tradicional ou purista da técnica, ela esbarra em outras linguagens artísticas, flerta com demais categorias e disciplinas. Ela vai de encontro ao modo como uma ampla parcela de artistas 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 419 nos dias de hoje, vem empregando o dispositivo fotográfico em seus trabalhos, de modo mais abrangente, interdisciplinar. Na contemporaneidade, tais práticas foram abordadas por diversos autores no campo da crítica e filosofia da arte sob diferentes conceitos. Photographie Plasticienne (Baqué, 2004), Fotografia Expandida (Fernandes, 2004), e Fotografia Contaminada (Chiarelli, 1994), são alguns exemplos das possíveis denominações utilizadas para se referirem a experiências híbridas envolvendo a fotografia, que mesmo carregando especificidades e caminhos distintos, estão no fundo sugerindo que em muito da produção fotográfica contemporânea, a linguagem encontra-se ampliada e liquefeita. O seu entendimento através destes conceitos é necessário para que possamos acessar alguns sentidos das obras no interior de seus processos criativos, para além do objeto finalizado, que em muitos casos não representam potencialmente as questões intrínsecas aos trabalhos. Nas obras que adentrarei a seguir, o dispositivo fotográfico se constitui como uma ferramenta que possibilita o resultado final da obra. Ou seja, o produto deste processo se dá por meio da fotografia. Contudo, para a sua construção foram utilizados mecanismos videográficos, operações performáticas, e até mesmo algum pensamento formal que esbarra nos fundamentos do desenho e da pintura. Os atributos estéticos desta fotografia não nos remetem diretamente a ela, à sua técnica, nos transporta antes disso para outros dispositivos. Dispositivos aos quais já me referi anteriormente, e que não se constituem apenas como um meio pela quais situações são representadas, como demonstrarei a seguir, são também eles próprios representados nas imagens que capturam. Reality Show (Me) ''Segurança e Descrição'', era o que dizia o slogan de um kit de vigilância cctv por mim adquirido ao fim do ano passado. Não creio que tais qualidades realmente possam ser atribuídas a este dispositivo, mas por hora apenas me contentei com elas. Ansioso para a instalação dos aparatos, os retirei da caixa de papelão, li com atenção o manual de instruções e logo apanhei as ferramentas, e me pus a fixá-los no ambiente. Após presos no canto superior de parede contrária a cama, o olho eletrônico instalado ansiava por ser aberto. Incluídos no computador: drives, programas e conectores, a imagem do meu quarto brotava na tela. Instalação concluída com 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 420 sucesso. Agora só bastava apertar um botão, e tudo o que ocorresse naquele ambiente poderia ser registrado e armazenado em um arquivo de vídeo. O espetáculo estava montado. A série de fotografias reunidas sob o título de ''Reality Show (Me)'', derivam desta estrutura, onde os dispositivos são deslocados de seu ambiente habitual e introduzidos no interior de um espaço doméstico, prontos para capturarem todo e qualquer tipo de situação por mim vivenciada ali. Ainda que se trate de aparatos de vigilância, tidos consensualmente como invasivos, a sua permanência em minha residência não foi imposta, pois escolhi conscientemente me submeter a esta condição, a esta exposição. Figura 01 Adriel Visoto: Imagem da série Reality Show (Me). Impressão fine art sobre papel algodão, dimensões variadas. 2014. Durante meses capturei meu dia a dia por meio do referido dispositivo, e em paralelo a este diário visual, mantive um diário manuscrito, para que pudesse me auxiliar no processo de edição do trabalho. A quantidade de material registrada era extensa e nesse sentido, essas páginas me ajudaram na busca pelas imagens que representavam os acontecimentos que mais me interessavam, elas me guiaram nesta jornada arqueológica, enquanto remexia nos arquivos da minha própria vida. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 421 Figura 2 Adriel Visoto: Imagens da série Reality Show (Me). Impressão fine art sobre papel algodão, dimensões variadas. 2014. A apropriação e o deslocamento de sistemas de vigilância cctv para a construção de narrativas que versam sobre o próprio sujeito que as produz, anunciando a seu modo conteúdos pessoais e afetivos, são estratégias que podem ser observados também nas obras de outros artistas contemporâneos. Há aqueles que constroem tais relatos visuais atuando a partir de um circuito já fixado no espaço público, como é o caso de alguns trabalhos específicos de artistas como Jill Magid e Emily Jacir, e outros onde se realiza a mesma operação por mim efetuada, transportando os aparatos e os alojando num ambiente privado, ação que caracteriza algumas experiências videográficas de Bruce Nawman. ''Evidence Locker'', obra criada em 2004 pela artista americana Jill Magid, consiste numa instalação multimídia, composta de vídeos, fotografias, textos, e objetos, onde constrói um inventário de situações vivenciadas no território urbano da cidade de Liverpool, no período de trinta em um dias. As imagens presentes foram capturadas pelo circuito de câmeras da polícia de Merseyde, nelas, Magid pode ser reconhecida principalmente pela roupa que veste, um casaco de inverno em um tom intenso de vermelho. As gravações foram requeridas pela artista através de formulários escritos por ela, de forma poética e terna, semelhantes a uma carta de amor. Estes requerimentos endereçados a polícia foram reunidos no diário que também compõe a instalação, recebendo o nome de ''One Cycle of Memory in the City of L'', onde retrata suas experiências vividas na cidade, e a relação mantida com a polícia de Liverpool para a concretização de sua obra. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 422 Figura 3 Jill Magrid: Evidence Locker: instalação multimedia, dimensões variáveis. 2004. Semelhante ao método que Jill Magid utiliza para a construção de seus vídeos, Emily Jacir também captura sua imagem através de circuitos de câmeras instalados no espaço público. No gesto performático que durou um mês, a artista palestina visita uma praça na cidade de Linz, na Austria, sempre no mesmo horário, registrando sua presença no espaço naquele determinado momento. O resultado de tal ação consiste na obra intitulada ''Linz Diary'', série de stills fotográficos associados a um relato textual em forma de diário, sendo este localizado no rodapé da página, descrevendo experiências e sensações que viveu durante sua permanência naquele local. Figura 4 Emily Jacir: Linz diary (detalhe). [s.d.], 2003. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 423 Outro artista que já nos anos sessenta se dedicou à práticas envolvendo cctv, foi Bruce Nauman. Seus trabalhos deste gênero se desdobram em duas formas distintas de emprego dos dispositivos de vigilância. Em alguns casos cria instalações em que interfere no espaço expositivo, o delimitando com barreiras físicas, onde instala câmeras de monitoramento e televisores que jogam com o espectador, sua circulação no ambiente, e sua representação nas telas dos monitores. Exemplos disso, são as obras ''Going Around the Corner Piece'' e ''Live Taped Video Corridor''. Mas há também aqueles onde capta ações e performances em seu estúdio com os mesmos aparatos, como ocorre em ''Office Edit I (Fat Chance John Cage) Mapping the Studio'' ou ''Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square'', trazendo posteriormente para o espaço expositivo imagens de um ambiente íntimo e geralmente inacessível da prática artística, o do ateliê. Um lugar onde o público não tem acesso, pois o que se move normalmente para um museu ou galeria são os objetos, e não as imagens do contexto onde foram produzidos. Figura 5 Bruce Nauman: Office Edit I (Fat Chance John Cage) Mapping the Studio (video still), [s.d.], 2001. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 424 Tanto nas instalações de Jill Magid e Bruce Nauman, como nas fotografias de Emily Jacir, ainda que se trate de processos íntimos em alguma medida, revelando relações afetivas dos artistas com os espaços que vivenciam, nota-se claramente uma fronteira entre o espaço da arte e o da vida. Há toda uma estrutura operacional e performática que já prevê estes limites e os considera. Em ''Reality Show (Me)'' a minha intenção é realmente a de avançar nestas barreiras, levar os dispositivos a uma radicalidade onde possam captar o que há de mais reservado em minhas vivências, colocando as próprias experiências pessoais como objeto artístico. Os rituais cotidianos, o sono, os encontros, o sexo, os afetos, tudo pode se constituir como material para este trabalho que ainda se encontra em aberto. Minha intenção ao selecionar frames do vídeo, fotografá-los, e exibi-los como uma sequência de imagens estáticas, não é a de privilegiar algum tema, nem mesmo de privar o público de alguns momentos de minha vida, ou censurá-lo, mas de criar uma narrativa capaz de oferecer uma leitura sensível e poética sobre estas vivências. Uma narrativa que mesmo exibida numa sequência que intencionalmente não corresponda à ordem cronológica dos acontecimentos, possua em seu interior alguma fidelidade autobiográfica. Figura 6 Adriel Visoto: Imagens da série Reality Show (Me). Impressão fine art sobre papel algodão, dimensões variadas. 2014. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 425 A captura e exibição de cenas consideradas privadas, que passam anteriormente por um processo de edição onde é possível se alterar o sentido dos acontecimentos referem-se também aos métodos utilizados nos reality shows televisivos 5. Esses se relacionam diretamente com a série, sendo um ponto referencial e operacional de sua produção, articulando como questões centrais, enunciados muito próximos daqueles presentes no gênero televisivo, que de acordo com Suzana Kilpp se constituem principalmente como a vigilância, a transparência e o voyeurismo (Kilpp, 2010. p.38). O título da obra, além de fazer referência ao gênero televisivo, evocando a estrutura de uma casa filmada constantemente, procura articular seus sentidos e implicações em correspondência com aqueles presentes no gênero em questão. ''Reality Show (Me)'' reporta-se também ao processo de construção do trabalho, e a quem este espetáculo se refere, possibilitando identificar que no fundo se trata de um show apresentado, dirigido, produzido, editado, distribuído e exibido pelo mesmo sujeito, por eu mesmo. No decorrer deste período, convivendo com um olhar eletrônico que me vigiava constantemente, acabo por entender que o motor desta obra na verdade situa-se numa espécie de prazer em se colocar visível. É preciso entender a origem desta série a partir de uma necessidade pessoal e subjetiva, de um desejo quase exibicionista, de conceder minha própria imagem aos olhos do outro, de construir minha efígie e identidade através destes jogos de visibilidade. Este prazer escópico6, que emerge de relações instauradas a partir dos atos de ver e ser visto, é algo que se situa no interior de meu processo criativo, se encontrando presente em grande parte das obras por mim desenvolvidas. O próximo trabalho que será apresentado, também se relaciona com este desejo, e que se efetiva por meio de aparatos e estratégias da mesma ordem, no entanto, possui implicações próprias, às quais irei me dedicar na sequência. Refiro-me mais especificamente aos realities shows que seguem um modelo onde os participantes são inseridos numa casa equipada com dispositivos de vigilância em todos os cômodos, de modo que são filmados incessantemente por estas câmeras. Exemplos deste gênero no Brasil são: Big Brother Brasil, Casa dos Artistas, e A Fazenda. 6 O prazer escópico está relacionado aqui ao conceito psicanalítico de pulsão escópica, desenvolvido e denominado deste modo por Lacan (1985, p.74), mas que já havia sido tratado também por Freud (2002, p. 17). O conceito de pulsão escópica, trata essencialmente das manifestações do desejo e do prazer através do olhar. É constituído de uma natureza dupla, onde o prazer se revela tanto no ato de olhar, como no de ser olhado. É de onde derivam também os conceitos de voyeurismo e exibicionismo. 5 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 426 O Quarto de Narciso Outro trabalho desenvolvido durante a pesquisa, e que também desloca para dentro da casa dispositivos que possuem a finalidade de vigilância dos espaços públicos, foi a série ''O Quarto de Narciso''. Neste trabalho, porém, ao invés de usar um circuito eletrônico de câmeras, criei uma estrutura baseada num sistema ótico. Para esse, foi instalado no quarto um espelho redondo e convexo, que possuía as dimensões de 30 centímetros de diâmetro. Do lado oposto ao espelho, e apontando para ele, localizava-se uma câmera fotográfica digital fixada sobre um tripé. Através dela eu registrava o seu reflexo ao longo dos dias entre ações triviais e cotidianas. Embora existam ainda algumas notáveis semelhanças entre esta obra com ''Reality Show (Me)'', o método utilizado para obtenção de imagens instaura em si diferenças significativas. Pois como eu deveria acionar a câmera para que esta capturasse a cena, ou seja, estava consciente do ato em que a fotografia era tirada, meu corpo de alguma forma se moldava, se construía para aquela situação. Barthes (1984. p. 22) já colocara que a consciência da presença da câmera é um fator determinante para a pose do sujeito. Neste sentido, as imagens que compõem esta sequência são construções encenadas, elas se contrapõem aquelas geradas de modo mais espontâneo pelos dispositivos eletrônicos de cctv. Figura 7 Adriel Visoto: Imagens da série: O Quarto de Narciso. Impressão fine art sobre papel algodão, 20 x 20 cm. 2014. Esta sequência de imagens, no entanto, não se caracteriza como uma narrativa fictícia, mesmo que se aproprie de tais artifícios para a sua construção. Ainda que posando para a fotografia, 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 427 estou a representar situações vividas, dentro de um espaço doméstico real, e contendo objetos de fato pessoais. É possível neste sentido se estabelecer uma relação, sob alguns pontos, com o gênero literário da autoficção7. Nele, um autor reconstrói a sua própria biografia por meio de um romance, onde altera os personagens, a ordem dos acontecimentos, os detalhes dos fatos, os locais, etc. Por mais que os aspectos deste conceito se refiram diretamente à literatura, seria concebível aplicá-lo também à fotografia. Afinal, na forma como a tenho utilizado, há uma intercessão de situações reais, com outras em maior ou menor grau encenadas, fazendo com que esta narrativa seja permeada de ambiguidades no que toca seu caráter autobiográfico, não sendo estritamente fiel a realidade dos fatos. Cabe ao espectador a função de reconstruir esta história, a partir de seus fragmentos reais ou fictícios. Acredito que resida na pose fotográfica um aspecto da autoficção, uma aspiração de como gostaríamos de ser vistos, representados, impressos e eternizados naquele pedaço de papel. Do mesmo modo que um escritor reconstrói suas experiências por meio das palavras, na pose, um sujeito busca também se reconstruir através da imagem. Ademais, há na pose uma satisfação igualmente escópica, aliada a uma noção de vaidade. ''O Quarto de Narciso'' não se refere então somente ao espelho convexo por onde as imagens são refletidas e geradas, mas se refere a própria fotografia, tomada como um reflexo narcisista do homem e de seu olhar. Este seu aspecto, mesmo que não seja uma condição estritamente contemporânea, são os novos dispositivos, redes, e tecnologias que tem permitido a sua efetivação. A exposição pactuada e deliberada da privacidade, deriva do desejo e necessidade que se manifesta universalmente por meio do olhar escópico. Uma observação que me levou a realizar este trabalho, e que atesta isso, consiste na proliferação das redes sociais, blogs, vlogs, e webcams no ambiente virtual, que segundo a socióloga Paula Síbilia ''(...) transformaram a tela de qualquer computador em uma janela sempre aberta e “ligada” a dezenas de pessoas ao mesmo tempo.'' (Sibilia, 2008. pág.12). Nestas molduras, os sujeitos também se constroem e se expõem constantemente por meio de seus autorretratos e textos confessionais, oferecendo a própria intimidade e subjetividade como produtos de suas respectivas construções subjetivas e identitárias. 7 A autoficção surge a partir do romance Fils de Serge Doubrovsky, no qual se vê desafiado por Philippe Lejeune em seu livro O Pacto Autobiográfico, a escrever uma ficção que se baseasse na biografia do autor. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 428 ''O Quarto de Narciso'' não é um trabalho que se distancia portanto deste contexto virtual, na verdade, as razões que levam os sujeitos a se exibirem desta forma, é também o motivo que faz com que eu me mostre assim. Mas, é importante ressaltar que na internet os interesses por trás dos ambientes que possibilitam essas ações são estritamente econômicos, visam em primeira instância o lucro. Em contraposição, no meu trabalho essas estratégias confessionais correspondem a um prazer em me colocar visível, em compartilhar um segredo com o outro por meio de uma ação poética, de um objeto estético. De satisfazer meu ego através da imagem. No mito de Narciso, ao se apaixonar por sua própria imagem refletida na água, dirigindo-se assim a sua destruição, sua morte se dá por afogamento, ou seja, pela água, pelo líquido que invade e preenche os seus pulmões. É esta liquidez que me interessa sobre vários aspetos neste trabalho. A liquidez da vigilância proposta por Bauman, a liquidez da fotografia que vaza a câmera, que escorre para compartimentos para além da moldura, e por fim a liquidez deste lago no qual Narciso se afoga. Este lago de imagens íntimas, e de vaidades replicadas exaustivamente. É este lago no qual estou pronto para mergulhar, e me afogar a qualquer instante em minha própria representação. REFERÊNCIAS Barthes, R. (1984). A câmera clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Bauman, Z. (2013). Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar. Bentham, J. (2000). O Panóptico. Org. E trad. por Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Bruno, F., & Kanashiro, M., & Firmino, R. (Orgs.). (2010). Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Editora Sulina. Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. Foucault, M. (1999). Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil VISOTO, Adriel. 429 Freud, S. (2002). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago. Kilpp, S. (2010). A traição das imagens: espelhos, câmeras e imagens especulares em reality shows. Porto Alegre: Entremeios. Lacan, J. (1985). Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Lejeune, P. (2008). O pacto autobiográfico: De Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG. Sibilia, P. (2008). O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Phillips, S. (ed.). (2010). Exposed: voyeurism, surveillance and the camera. London: Tate Galery Publishing. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil