POLÍTICA NA INTERNET E CONTROLE DIGITAL

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POLÍTICA NA INTERNET E CONTROLE DIGITAL
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ISSN 2175-9596
SISTEMAS DE VIGILÂNCIA EM PROCESSOS FOTOGRÁFICOS
HÍBRIDOS
Surveillance Devices Applied in Artistic Photographic Processes
Adriel Martins Visotoa
(a)
Mestrando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unicamp, Campinas, São Paulo – Brasil, e-mail:
[email protected]
Resumo
O trabalho apresentado a seguir consiste essencialmente na exposição de duas séries fotográficas: ''Reality
Show (Me)'' e ''O Quarto de Narciso'', produzidas entre os anos de 2013 e 2015, consequência de minha
pesquisa de mestrado intitulada provisoriamente de ''Poéticas Invasivas – O Voyeurismo na Fotografia
Contemporânea'', que vem sendo desenvolvida na linha de pesquisa de Poéticas Visuais no Instituto de
Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP). Em ambas as séries, me aproprio de dispositivos de vigilância para
captura de imagens intimas e pessoais, com o intuito de criar narrativas documentais permeadas de
conteúdo autobiográfico e confessional. Procuro demonstrar no presente artigo a origem desta produção,
apontando os motivos que me moveram para sua realização, a reflexão teórica e conceitual que permeia o
tema central desta pesquisa, e as referências artísticas que dialogam com estas séries de imagens, capazes
de potencializarem seus sentidos a partir de seus toques e cruzamentos.
Palavras chaves: fotografia contemporânea, vigilância, voyeurismo, exibicionismo.
Abstract
The present work consists essentially in the presentation of two photographic series, ''Reality Show (Me)''
and ''O Quarto de Narciso'', both made between 2013 and 2015, result of my master research, entitled
provisionally ''Poéticas Invasivas – O Voyeurismo na Fotografia Contemporânea'' which has been
developed in Visual Arts Program at the Instituto de Artes, from Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), with scholarship granted by Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP). In both series, I appropriate of surveillance devices to capture intimate and personal images,
in order to create documentary narratives crossed by autobiographical and confessional content. In this
3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios. 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil, p. 414429. ISSN 2175-9596
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article, I will try to show the origin of this works, pointing the reasons that lead me to make it, the
conceptual issues that permeates the focus of this research, and the artistic references that dialogue with
these series of images, able to enhance their meanings from their relations and connections.
Keywords: contemporary photography, surveillance, voyeurism, exhibitionism.
CONTEXTO
Em minha prática artística, a exposição de situações e experiências pessoais, circunscritas num
domínio íntimo e doméstico, tem se constituído como o grande foco de interesse e mote de
criação. Neste sentido, a maneira como a privacidade vem sendo ora invadida e difundida como
mecanismo de controle, ora ofertada como produto de construções identitárias, se tornaram frutos
de uma inquietação latente, e que ao meu ver, as questões presentes nestas formas heterogêneas
de exposição, poderiam ser articuladas através da fotografia, encontrando no território de minhas
experiências pessoais e poéticas um espaço propício para serem operadas.
Nas séries de obras que serão apresentadas a seguir, procuro unir num mesmo trabalho estas duas
condições mencionadas anteriormente, aquela em que um sujeito opta por expor deliberadamente
a sua própria intimidade, e a outra onde seu direito a privacidade é violado pelos inúmeros
dispositivos e mecanismos de vigilância e controle que o circundam.
Para a realização dos respectivos trabalhos, instalei no interior minha residência dispositivos
cctv1 e espelhos convexos, deslocando tais aparatos do espaço público para o ambiente
doméstico, permitindo assim, elevá-los a uma potência extrema, destituindo-os ironicamente da
funcionalidade lógica e objetiva com que são empregados nos espaços institucionais e no
território urbano, passando a funcionarem como ferramentas para a documentação do cotidiano
doméstico por meio de imagens poéticas, permeadas de conteúdo íntimo e afetivo.
Espetáculos Privados
Pela manhã, já a algum tempo, a primeira ação que realizo após abrir os olhos é a de apanhar meu
celular. Ainda sonolento acesso as redes sociais, e antes mesmo de tomar meu café, posso
observar o que um amigo X comeu em sua primeira refeição, o local onde ocorreu seu petit
1
Sigla utilizada para Closed-circuit television, que se refere a um sistema de vigilância onde câmeras transmitem as
imagens do espaço que capturam em tempo real.
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dejeuner, quem o acompanhava, e por fim o comprovo através do documento fotográfico exibido,
que representa em ângulo panorâmico o alimento em questão. Avanço na barra de rolagem e
obtenho em primeira mão, dados fiéis de como andam as férias daquele colega Y de trabalho que
embarcou numa viagem para a Tailândia na semana anterior. Verifico os mapas dos locais por
onde passou, as fotografias dos mesmos, as imagens de seu passaporte, bilhetes... E se houver
algum interesse somado à mínima paciência, leio os textos por ele escritos que compõem este
diário multimídia de viagem. Senão, continuo descendo pela barra de rolagem, rumo a uma
profundeza abissal, infinita, coletando e descartando informações sobre o que um grupo Z de
amigos tem pensado sobre cinema, política, comportamento, religião, refrigerantes diets, loções
hidratantes, etc. Até eu perceber que já estou atrasado e ainda não me levantei.
Após me erguer da cama, escovar os dentes, me vestir, passar meu café, fotografá-lo e postá-lo
em uma rede social qualquer, estou pronto para sair de casa. Ao atravessar o corredor do prédio,
aceno sarcasticamente para o porteiro pela câmera de vigilância que se encontra acima de mim,
presa na parte superior da parede. Se esquecer de fazê-lo, não há problema algum, ainda passarei
pela câmera do elevador, do saguão do edifício, do estacionamento, de sua saída, e finalmente a
da rua.
Assim o dia se move, entre janelas virtuais, espelhos convexos, feixes, vãos, frestas, e câmeras. E
ao final de uma longa jornada de trabalho, já posso voltar para a casa, e depois de um bom banho
deitar no sofá da sala, ligar a TV, me informar sobre quem era o sujeito anônimo que
acompanhava a atriz protagonista da novela das nove em sua tarde na praia, ou mudar de canal, e
espiar como andam as coisas entre aqueles indivíduos confinados numa casa, ou talvez numa
fazenda, na busca pelo prêmio de um, dois, três, ou sei lá quantos milhões de reais.
As situações cotidianas por mim narradas acima, e que poderiam ser aplicadas ao dia-a-dia de
grande parte dos indivíduos nos dias de hoje, demonstram que a invasão da privacidade, bem
como a sua exposição deliberada, se tornaram a realidade de um tempo em que as fronteiras entre
os espaços público e privado parecem estar cada vez mais diluídas. Basta olhar a nossa volta, e já
não é preciso retomar Foucault2 para constatar que nos tornamos de fato a sociedade da
2
Em ´´Vigiar e Punir`` (Foucault, M. (1999). Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes.), o autor se tornou referente em seus
estudos sobre os modernos meios de confinamento, e modelos disciplinares, usados pelas instituições de poder como
forma de manipulação e controle dos indivíduos. Mesmo sendo sua tese de grande relevância, e nos oferecendo dados
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vigilância, até mesmo pelo fato de que sua tese não possui o alcance necessário para se identificar
a que ponto chegaria os mecanismos por ele abordados. E, também ao afirmar que o que
caracteriza este corpo social é a vigilância ao invés do espetáculo como coloca Guy Debord 3,
Foucault parece contrapor duas condições que no fundo estão intimamente associadas,
funcionando numa espécie de relação mutualística.
Creio que nos situamos numa sociedade caracterizada (no que se refere a este contexto) pela
espetacularização da vigilância, onde os dispositivos se configuram como agentes intermediários
de determinada cena, e em determinado território. Nos encontramos cumprindo funções
geminadas, colocados numa posição onde somos vigiados ao mesmo tempo em que também nos
é incumbida a missão de vigiar ao outro (Bruno & Lins, 2010. p. 213). Somos simultaneamente
atores e espectadores deste espetáculo.
Interessa-me pensar este contexto a partir do conceito de vigilância líquida, no qual Bauman em
diálogo com David Lyon mapeia as formas de vigilância na contemporaneidade, apontando suas
implicações políticas, econômicas, sociais, e culturais. A importância de sua tese reside numa
atualização dos estudos sobre os meios de vigilância, que avançam no sentido de não tratá-la
apenas através de uma lógica panóptica4, onde o poder se localiza centralizado. Nos dias de hoje,
este diagrama ao qual Foucault recorre na elaboração de sua tese, mostra-se insuficiente para a
compreensão das novas formas de controle social (Bauman e Lyon, 2014. P. 56), que se
manifesta através de uma complexa e multifacetada rede, envolvendo interesses, necessidades, e
desejos das mais diversas ordens, e através de múltiplos agentes.
Mas estaríamos no auge desta sociedade? Ou ainda seríamos capazes de elevar tais dispositivos a
uma potência maior, próxima daquele modelo distópico e fictício criado por George Orwell em
seu romance 1984? Onde numa comunidade regida por um governo ditador, onipresente e
onisciente, os cidadãos são vigiados por todo o tempo em suas ações íntimas e rituais cotidianos,
fundamentais para a reconstrução deste processo, acredito que a vigilância contemporânea carece de outras fontes e
abordagens para sua compreensão.
´´A Sociedade do Espetáculo``, consiste num conceito cunhado por Guy Debord, no qual aborda o uso da imagem
enquanto ferramenta de poder e controle nas modernas sociedades de consumo (Debord, G. (1997). A sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.).
3
O conceito de panóptico se refere ao modelo arquitetônico criado pelo jurista inglês Jeremy Bentham, que tinha como
fundamento base uma construção circular que continha em seu centro uma torre de observação, de onde seria possível
observar todo o interior do prédio, todas as unidades. Empregado normalmente como forma de arquitetura prisional, o
panóptico nasceu da necessidade de vigilância e controle dos indivíduos.
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e conscientes desta invasão controlam suas próprias atitudes a fim de se adequarem às normas
vigentes, estipuladas pelo ''Grande Irmão''. Na verdade, tudo indica que não estamos tão longe de
tal condição.
Para além da literatura, as artes visuais também procuram refletir sobre estas questões dentro de
seu território, e por meio de seus próprios códigos. Antes de apresentar o corpo de obras
proposto, acredito ser importante salientar que o papel que a vigilância vem ocupando no mundo
contemporâneo, seja como forma de segurança, de conduta normativa, ou até mesmo na
economia dos desejos e prazeres, tem sido abordado por um número considerável de artistas, que
se dedicam a investigação de questões poéticas, políticas e estéticas em torno da vigilância e seus
dispositivos. Desta forma, utilizam as mais diversas linguagens para darem corpo a suas ideias e
aos conceitos que operam.
Vigilâncias Fotográficas
Mesmo sendo a vigilância um tema extenso e abrangente, capaz de ser articulado por meio de
uma diversidade de linguagens e processos criativos, é inevitável que aqueles que atuam nesse
campo acabam se inclinando principalmente para o uso da fotografia e do vídeo em suas
respectivas obras, afinal, os próprios mecanismos de vigilância derivam muitas vezes destes
meios.
A relevância desta produção, que se dedica a tratar da vigilância através da fotografia, pode ser
constatada com base numa série de exposições, publicações, e eventos que buscam reunir autores
com distintas abordagens acerca do tema. Um exímio exemplo disso é a exposição ''Exposed:
Voyeurism, Surveillance, and the Camera'', realizada inicialmente na Tate Modern em Londres,
sob curadoria de Sandra Phillips. Na mostra ocorrida no ano de 2010, a curadora agrupa obras
fotográficas (em sua grande maioria) de artistas como Bruce Nauman, Jonathan Olley, Laurie
Long, Merry Alpern, Shizuka Yokomizo, Sophie Calle, Thomas Demand, Thomas Ruff, entre
outros. Autores de diferentes interesses, linguagens, e nacionalidades, mas que possuem em
comum o uso invasivo do dispositivo fotográfico nas peças apresentadas.
É importante esclarecer antes também, que o emprego da fotografia nestas obras distancia-se de
um uso tradicional ou purista da técnica, ela esbarra em outras linguagens artísticas, flerta com
demais categorias e disciplinas. Ela vai de encontro ao modo como uma ampla parcela de artistas
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nos dias de hoje, vem empregando o dispositivo fotográfico em seus trabalhos, de modo mais
abrangente, interdisciplinar.
Na contemporaneidade, tais práticas foram abordadas por diversos autores no campo da crítica e
filosofia da arte sob diferentes conceitos. Photographie Plasticienne (Baqué, 2004), Fotografia
Expandida (Fernandes, 2004), e Fotografia Contaminada (Chiarelli, 1994), são alguns exemplos
das possíveis denominações utilizadas para se referirem a experiências híbridas envolvendo a
fotografia, que mesmo carregando especificidades e caminhos distintos, estão no fundo sugerindo
que em muito da produção fotográfica contemporânea, a linguagem encontra-se ampliada e
liquefeita. O seu entendimento através destes conceitos é necessário para que possamos acessar
alguns sentidos das obras no interior de seus processos criativos, para além do objeto finalizado,
que em muitos casos não representam potencialmente as questões intrínsecas aos trabalhos.
Nas obras que adentrarei a seguir, o dispositivo fotográfico se constitui como uma ferramenta que
possibilita o resultado final da obra. Ou seja, o produto deste processo se dá por meio da
fotografia. Contudo, para a sua construção foram utilizados mecanismos videográficos, operações
performáticas, e até mesmo algum pensamento formal que esbarra nos fundamentos do desenho e
da pintura. Os atributos estéticos desta fotografia não nos remetem diretamente a ela, à sua
técnica, nos transporta antes disso para outros dispositivos. Dispositivos aos quais já me referi
anteriormente, e que não se constituem apenas como um meio pela quais situações são
representadas, como demonstrarei a seguir, são também eles próprios representados nas imagens
que capturam.
Reality Show (Me)
''Segurança e Descrição'', era o que dizia o slogan de um kit de vigilância cctv por mim adquirido
ao fim do ano passado. Não creio que tais qualidades realmente possam ser atribuídas a este
dispositivo, mas por hora apenas me contentei com elas. Ansioso para a instalação dos aparatos,
os retirei da caixa de papelão, li com atenção o manual de instruções e logo apanhei as
ferramentas, e me pus a fixá-los no ambiente. Após presos no canto superior de parede contrária a
cama, o olho eletrônico instalado ansiava por ser aberto. Incluídos no computador: drives,
programas e conectores, a imagem do meu quarto brotava na tela. Instalação concluída com
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sucesso. Agora só bastava apertar um botão, e tudo o que ocorresse naquele ambiente poderia ser
registrado e armazenado em um arquivo de vídeo. O espetáculo estava montado.
A série de fotografias reunidas sob o título de ''Reality Show (Me)'', derivam desta estrutura, onde
os dispositivos são deslocados de seu ambiente habitual e introduzidos no interior de um espaço
doméstico, prontos para capturarem todo e qualquer tipo de situação por mim vivenciada ali.
Ainda que se trate de aparatos de vigilância, tidos consensualmente como invasivos, a sua
permanência em minha residência não foi imposta, pois escolhi conscientemente me submeter a
esta condição, a esta exposição.
Figura 01
Adriel Visoto: Imagem da série Reality Show (Me). Impressão fine art sobre papel algodão,
dimensões variadas. 2014.
Durante meses capturei meu dia a dia por meio do referido dispositivo, e em paralelo a este diário
visual, mantive um diário manuscrito, para que pudesse me auxiliar no processo de edição do
trabalho. A quantidade de material registrada era extensa e nesse sentido, essas páginas me
ajudaram na busca pelas imagens que representavam os acontecimentos que mais me
interessavam, elas me guiaram nesta jornada arqueológica, enquanto remexia nos arquivos da
minha própria vida.
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Figura 2
Adriel Visoto: Imagens da série Reality Show (Me). Impressão fine art sobre papel algodão,
dimensões variadas. 2014.
A apropriação e o deslocamento de sistemas de vigilância cctv para a construção de narrativas
que versam sobre o próprio sujeito que as produz, anunciando a seu modo conteúdos pessoais e
afetivos, são estratégias que podem ser observados também nas obras de outros artistas
contemporâneos. Há aqueles que constroem tais relatos visuais atuando a partir de um circuito já
fixado no espaço público, como é o caso de alguns trabalhos específicos de artistas como Jill
Magid e Emily Jacir, e outros onde se realiza a mesma operação por mim efetuada, transportando
os aparatos e os alojando num ambiente privado, ação que caracteriza algumas experiências
videográficas de Bruce Nawman.
''Evidence Locker'', obra criada em 2004 pela artista americana Jill Magid, consiste numa
instalação multimídia, composta de vídeos, fotografias, textos, e objetos, onde constrói um
inventário de situações vivenciadas no território urbano da cidade de Liverpool, no período de
trinta em um dias. As imagens presentes foram capturadas pelo circuito de câmeras da polícia de
Merseyde, nelas, Magid pode ser reconhecida principalmente pela roupa que veste, um casaco de
inverno em um tom intenso de vermelho. As gravações foram requeridas pela artista através de
formulários escritos por ela, de forma poética e terna, semelhantes a uma carta de amor. Estes
requerimentos endereçados a polícia foram reunidos no diário que também compõe a instalação,
recebendo o nome de ''One Cycle of Memory in the City of L'', onde retrata suas experiências
vividas na cidade, e a relação mantida com a polícia de Liverpool para a concretização de sua
obra.
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Figura 3
Jill Magrid: Evidence Locker: instalação multimedia, dimensões variáveis. 2004.
Semelhante ao método que Jill Magid utiliza para a construção de seus vídeos, Emily Jacir
também captura sua imagem através de circuitos de câmeras instalados no espaço público. No
gesto performático que durou um mês, a artista palestina visita uma praça na cidade de Linz, na
Austria, sempre no mesmo horário, registrando sua presença no espaço naquele determinado
momento. O resultado de tal ação consiste na obra intitulada ''Linz Diary'', série de stills
fotográficos associados a um relato textual em forma de diário, sendo este localizado no rodapé
da página, descrevendo experiências e sensações que viveu durante sua permanência naquele
local.
Figura 4
Emily Jacir: Linz diary (detalhe). [s.d.], 2003.
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Outro artista que já nos anos sessenta se dedicou à práticas envolvendo cctv, foi Bruce Nauman.
Seus trabalhos deste gênero se desdobram em duas formas distintas de emprego dos dispositivos
de vigilância. Em alguns casos cria instalações em que interfere no espaço expositivo, o
delimitando com barreiras físicas, onde instala câmeras de monitoramento e televisores que
jogam com o espectador, sua circulação no ambiente, e sua representação nas telas dos monitores.
Exemplos disso, são as obras ''Going Around the Corner Piece'' e ''Live Taped Video Corridor''.
Mas há também aqueles onde capta ações e performances em seu estúdio com os mesmos
aparatos, como ocorre em ''Office Edit I (Fat Chance John Cage) Mapping the Studio'' ou
''Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square'', trazendo
posteriormente para o espaço expositivo imagens de um ambiente íntimo e geralmente
inacessível da prática artística, o do ateliê. Um lugar onde o público não tem acesso, pois o que se
move normalmente para um museu ou galeria são os objetos, e não as imagens do contexto onde
foram produzidos.
Figura 5
Bruce Nauman: Office Edit I (Fat Chance John Cage) Mapping the Studio (video still), [s.d.],
2001.
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Tanto nas instalações de Jill Magid e Bruce Nauman, como nas fotografias de Emily Jacir, ainda
que se trate de processos íntimos em alguma medida, revelando relações afetivas dos artistas com
os espaços que vivenciam, nota-se claramente uma fronteira entre o espaço da arte e o da vida.
Há toda uma estrutura operacional e performática que já prevê estes limites e os considera. Em
''Reality Show (Me)'' a minha intenção é realmente a de avançar nestas barreiras, levar os
dispositivos a uma radicalidade onde possam captar o que há de mais reservado em minhas
vivências, colocando as próprias experiências pessoais como objeto artístico.
Os rituais cotidianos, o sono, os encontros, o sexo, os afetos, tudo pode se constituir como
material para este trabalho que ainda se encontra em aberto. Minha intenção ao selecionar frames
do vídeo, fotografá-los, e exibi-los como uma sequência de imagens estáticas, não é a de
privilegiar algum tema, nem mesmo de privar o público de alguns momentos de minha vida, ou
censurá-lo, mas de criar uma narrativa capaz de oferecer uma leitura sensível e poética sobre
estas vivências. Uma narrativa que mesmo exibida numa sequência que intencionalmente não
corresponda à ordem cronológica dos acontecimentos, possua em seu interior alguma fidelidade
autobiográfica.
Figura 6
Adriel Visoto: Imagens da série Reality Show (Me). Impressão fine art sobre papel algodão,
dimensões variadas. 2014.
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A captura e exibição de cenas consideradas privadas, que passam anteriormente por um processo
de edição onde é possível se alterar o sentido dos acontecimentos referem-se também aos
métodos utilizados nos reality shows televisivos 5. Esses se relacionam diretamente com a série,
sendo um ponto referencial e operacional de sua produção, articulando como questões centrais,
enunciados muito próximos daqueles presentes no gênero televisivo, que de acordo com Suzana
Kilpp se constituem principalmente como a vigilância, a transparência e o voyeurismo (Kilpp,
2010. p.38).
O título da obra, além de fazer referência ao gênero televisivo, evocando a estrutura de uma casa
filmada constantemente, procura articular seus sentidos e implicações em correspondência com
aqueles presentes no gênero em questão. ''Reality Show (Me)'' reporta-se também ao processo de
construção do trabalho, e a quem este espetáculo se refere, possibilitando identificar que no fundo
se trata de um show apresentado, dirigido, produzido, editado, distribuído e exibido pelo mesmo
sujeito, por eu mesmo.
No decorrer deste período, convivendo com um olhar eletrônico que me vigiava constantemente,
acabo por entender que o motor desta obra na verdade situa-se numa espécie de prazer em se
colocar visível. É preciso entender a origem desta série a partir de uma necessidade pessoal e
subjetiva, de um desejo quase exibicionista, de conceder minha própria imagem aos olhos do
outro, de construir minha efígie e identidade através destes jogos de visibilidade.
Este prazer escópico6, que emerge de relações instauradas a partir dos atos de ver e ser visto, é
algo que se situa no interior de meu processo criativo, se encontrando presente em grande parte
das obras por mim desenvolvidas. O próximo trabalho que será apresentado, também se relaciona
com este desejo, e que se efetiva por meio de aparatos e estratégias da mesma ordem, no entanto,
possui implicações próprias, às quais irei me dedicar na sequência.
Refiro-me mais especificamente aos realities shows que seguem um modelo onde os participantes são inseridos numa
casa equipada com dispositivos de vigilância em todos os cômodos, de modo que são filmados incessantemente por estas
câmeras. Exemplos deste gênero no Brasil são: Big Brother Brasil, Casa dos Artistas, e A Fazenda.
6 O prazer escópico está relacionado aqui ao conceito psicanalítico de pulsão escópica, desenvolvido e denominado deste
modo por Lacan (1985, p.74), mas que já havia sido tratado também por Freud (2002, p. 17). O conceito de pulsão
escópica, trata essencialmente das manifestações do desejo e do prazer através do olhar. É constituído de uma natureza
dupla, onde o prazer se revela tanto no ato de olhar, como no de ser olhado. É de onde derivam também os conceitos de
voyeurismo e exibicionismo.
5
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O Quarto de Narciso
Outro trabalho desenvolvido durante a pesquisa, e que também desloca para dentro da casa
dispositivos que possuem a finalidade de vigilância dos espaços públicos, foi a série ''O Quarto de
Narciso''. Neste trabalho, porém, ao invés de usar um circuito eletrônico de câmeras, criei uma
estrutura baseada num sistema ótico. Para esse, foi instalado no quarto um espelho redondo e
convexo, que possuía as dimensões de 30 centímetros de diâmetro. Do lado oposto ao espelho, e
apontando para ele, localizava-se uma câmera fotográfica digital fixada sobre um tripé. Através
dela eu registrava o seu reflexo ao longo dos dias entre ações triviais e cotidianas.
Embora existam ainda algumas notáveis semelhanças entre esta obra com ''Reality Show (Me)'', o
método utilizado para obtenção de imagens instaura em si diferenças significativas. Pois como eu
deveria acionar a câmera para que esta capturasse a cena, ou seja, estava consciente do ato em
que a fotografia era tirada, meu corpo de alguma forma se moldava, se construía para aquela
situação. Barthes (1984. p. 22) já colocara que a consciência da presença da câmera é um fator
determinante para a pose do sujeito. Neste sentido, as imagens que compõem esta sequência são
construções encenadas, elas se contrapõem aquelas geradas de modo mais espontâneo pelos
dispositivos eletrônicos de cctv.
Figura 7
Adriel Visoto: Imagens da série: O Quarto de Narciso. Impressão fine art sobre papel algodão, 20
x 20 cm. 2014.
Esta sequência de imagens, no entanto, não se caracteriza como uma narrativa fictícia, mesmo
que se aproprie de tais artifícios para a sua construção. Ainda que posando para a fotografia,
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estou a representar situações vividas, dentro de um espaço doméstico real, e contendo objetos de
fato pessoais. É possível neste sentido se estabelecer uma relação, sob alguns pontos, com o
gênero literário da autoficção7. Nele, um autor reconstrói a sua própria biografia por meio de um
romance, onde altera os personagens, a ordem dos acontecimentos, os detalhes dos fatos, os
locais, etc. Por mais que os aspectos deste conceito se refiram diretamente à literatura, seria
concebível aplicá-lo também à fotografia. Afinal, na forma como a tenho utilizado, há uma
intercessão de situações reais, com outras em maior ou menor grau encenadas, fazendo com que
esta narrativa seja permeada de ambiguidades no que toca seu caráter autobiográfico, não sendo
estritamente fiel a realidade dos fatos. Cabe ao espectador a função de reconstruir esta história, a
partir de seus fragmentos reais ou fictícios.
Acredito que resida na pose fotográfica um aspecto da autoficção, uma aspiração de como
gostaríamos de ser vistos, representados, impressos e eternizados naquele pedaço de papel. Do
mesmo modo que um escritor reconstrói suas experiências por meio das palavras, na pose, um
sujeito busca também se reconstruir através da imagem. Ademais, há na pose uma satisfação
igualmente escópica, aliada a uma noção de vaidade. ''O Quarto de Narciso'' não se refere então
somente ao espelho convexo por onde as imagens são refletidas e geradas, mas se refere a própria
fotografia, tomada como um reflexo narcisista do homem e de seu olhar. Este seu aspecto,
mesmo que não seja uma condição estritamente contemporânea, são os novos dispositivos, redes,
e tecnologias que tem permitido a sua efetivação.
A exposição pactuada e deliberada da privacidade, deriva do desejo e necessidade que se
manifesta universalmente por meio do olhar escópico. Uma observação que me levou a realizar
este trabalho, e que atesta isso, consiste na proliferação das redes sociais, blogs, vlogs, e
webcams no ambiente virtual, que segundo a socióloga Paula Síbilia ''(...) transformaram a tela de
qualquer computador em uma janela sempre aberta e “ligada” a dezenas de pessoas ao mesmo
tempo.'' (Sibilia, 2008. pág.12). Nestas molduras, os sujeitos também se constroem e se expõem
constantemente por meio de seus autorretratos e textos confessionais, oferecendo a própria
intimidade e subjetividade como produtos de suas respectivas construções subjetivas e
identitárias.
7
A autoficção surge a partir do romance Fils de Serge Doubrovsky, no qual se vê desafiado por Philippe Lejeune em
seu livro O Pacto Autobiográfico, a escrever uma ficção que se baseasse na biografia do autor.
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''O Quarto de Narciso'' não é um trabalho que se distancia portanto deste contexto virtual, na
verdade, as razões que levam os sujeitos a se exibirem desta forma, é também o motivo que faz
com que eu me mostre assim. Mas, é importante ressaltar que na internet os interesses por trás
dos ambientes que possibilitam essas ações são estritamente econômicos, visam em primeira
instância o lucro. Em contraposição, no meu trabalho essas estratégias confessionais
correspondem a um prazer em me colocar visível, em compartilhar um segredo com o outro por
meio de uma ação poética, de um objeto estético. De satisfazer meu ego através da imagem.
No mito de Narciso, ao se apaixonar por sua própria imagem refletida na água, dirigindo-se assim
a sua destruição, sua morte se dá por afogamento, ou seja, pela água, pelo líquido que invade e
preenche os seus pulmões. É esta liquidez que me interessa sobre vários aspetos neste trabalho. A
liquidez da vigilância proposta por Bauman, a liquidez da fotografia que vaza a câmera, que
escorre para compartimentos para além da moldura, e por fim a liquidez deste lago no qual
Narciso se afoga. Este lago de imagens íntimas, e de vaidades replicadas exaustivamente. É este
lago no qual estou pronto para mergulhar, e me afogar a qualquer instante em minha própria
representação.
REFERÊNCIAS
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Bauman, Z. (2013). Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
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3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios
13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil
VISOTO, Adriel.
429
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