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2008
Silvana Oliveira
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização
por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.
O48
Oliveira, Silvana. / Realismo na Literatura Brasileira. /
Silvana Oliveira. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2008.
204 p.
ISBN: 978-85-387-0139-2
1. Literatura brasileira. 2. Realismo. 3. Machado de Assis. 4.
Romance. 5. Crítica e interpretação. I. Título.
CDD 869.07
Capa:
Crédito: IESDE Brasil S. A.
Todos os direitos reservados.
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Silvana Oliveira
Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do
Paraná – UFPR. Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
– UEPG.
Sumário
O Realismo e os períodos literários precedentes........... 11
O Romantismo e os precedentes do Realismo................................................................ 11
Romantismo e Realismo: conceitos paralelos.................................................................. 13
Autores do Romantismo e precedentes realistas........................................................... 14
Continuidade e ruptura entre o Romantismo e o Realismo....................................... 17
O século XIX e o ideário realista........................................... 27
O século XIX: filosofia e sociedade....................................................................................... 27
O Realismo na Europa: principais autores e influências............................................... 28
O Realismo em Portugal: principais autores e influências.......................................... 33
A proposta estética do Realismo europeu........................................................................ 35
O ideário realista no Brasil...................................................... 41
A transição do Romantismo para o Realismo no Brasil................................................ 41
Memórias de um Sargento de Milícias................................................................................... 42
O Realismo e o Naturalismo no Brasil................................ 57
O Realismo e o Naturalismo: relações possíveis.............................................................. 57
A obra de Aluísio Azevedo...................................................................................................... 59
O Cortiço........................................................................................................................................ 61
Análise dos elementos da narrativa.................................................................................... 62
Machado de Assis e o Realismo brasileiro........................ 73
Machado de Assis e os seus romances românticos....................................................... 73
Machado de Assis: um crítico do Realismo....................................................................... 75
Machado de Assis e Eça de Queirós: aproximação e oposição.................................. 76
Machado de Assis e o conto brasileiro.............................. 85
A tradição do conto na literatura brasileira...................................................................... 85
Os principais contos de Machado de Assis....................................................................... 86
Missa do Galo............................................................................................................................... 87
Teoria do medalhão................................................................................................................... 91
Conclusão...................................................................................................................................... 93
Memórias Póstumas e o
realismo psicológico machadiano....................................103
A crítica ao Realismo presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas.................103
A proposta de leitura presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas................106
Estratégias narrativas em Memórias Póstumas de Brás Cubas...................................108
A crítica social em Memórias Póstumas de Brás Cubas.................................................111
Dom Casmurro e a temática do adultério feminino....119
A temática do adultério feminino no Realismo.............................................................119
O narrador em Dom Casmurro.............................................................................................121
A representação da mulher em Dom Casmurro............................................................125
Quincas Borba e o jogo social..............................................131
A denúncia social no Realismo............................................................................................131
A denúncia social em Quincas Borba.................................................................................132
O tema da loucura em Quincas Borba...............................................................................134
Análise dos elementos da narrativa..................................................................................136
A crítica literária e a obra de Machado de Assis...........145
A crítica sociológica.................................................................................................................145
Outras abordagens..................................................................................................................147
O valor atribuído à obra de Machado de Assis pela crítica literária.......................150
O legado de Machado de Assis para a literatura brasileira.......................................152
O Realismo em autores posteriores..................................157
A relação entre realidade e literatura após o Realismo..............................................157
Euclides da Cunha....................................................................................................................158
Lima Barreto...............................................................................................................................161
O Realismo e o cinema..........................................................173
Adaptações cinematográficas.............................................................................................174
As releituras literárias de Dom Casmurro.........................................................................176
Machado de Assis como personagem de ficção...........................................................179
Gabarito......................................................................................187
Referências.................................................................................193
Apresentação
Este material que apresentamos a você é uma série de reflexões sobre o
período literário que costumamos chamar de Realismo. As considerações que
você encontrará aqui articulam a noção de Realismo na literatura universal à
produção literária no Brasil, de modo a compreender como se manifestaram na
literatura brasileira as influências das produções europeias e também como os
autores brasileiros do período romperam com alguns modelos preestabelecidos
pela literatura na Europa e pelos projetos nacionalistas do Romantismo.
Falar sobre o Realismo é falar sobre um período histórico mais ou menos
curto, compreendido entre 1860 (aproximadamente) e o início do século XX.
Trata-se de um período de transição, localizado historicamente logo em seguida à grande revolução cultural que foi o Romantismo (de fins do século XVIII até
meados do século XIX) e antes das mudanças de perspectiva na arte e na literatura propostas pelo Modernismo, iniciado nas primeiras décadas do século XX.
No Brasil, o período realista, compreendido como momento histórico
e cultural, revelou-nos autores de grande importância para a sedimentação e
a integração de uma literatura nacional. É o caso de Manuel Antônio de Almeida e Aluísio Azevedo. Além deles, convém destacar a relevância alcançada por
Joaquim Maria Machado de Assis, considerado hoje um dos maiores escritores
da língua portuguesa, citado em grandes antologias da literatura universal por
críticos renomados como Harold Bloom, por exemplo.
Estudaremos aqui a produção de cada um dos autores que escreveram no
período do Realismo brasileiro, buscando a relação entre a obra desses escritores
e os princípios de realização artística propostos pelo Realismo europeu.
Com este material, você terá uma ótima oportunidade para conhecer e
aprofundar seus conhecimentos sobre obras e autores da maior importância no
cenário da literatura brasileira. Além de conhecer a produção desses autores, você
poderá, ainda, perceber como o que eles escreveram no século XIX continua influenciando e inspirando autores contemporâneos nas mais variadas manifestações artísticas, como adaptações literárias – na forma de paródia e estilização –,
teatro, cinema e televisão.
Esperamos que o estudo deste material seja de grande valia para o seu
crescimento pessoal e profissional!
Bons estudos.
Prof. Dra. Silvana Oliveira
O Realismo e os períodos
literários precedentes
Quando pensamos em períodos literários, estamos tomando como
princípio uma categoria didática que nos serve para organizar a produção
literária no tempo, ou seja, dentro de uma perspectiva histórica que atribui
sentido de continuidade à literatura e também esclarece os momentos de
ruptura nos projetos literários vigentes no momento.
É importante ter clareza de que a organização da produção literária em
períodos ou estilos de época é uma estratégia didática que facilita o estudo
e organiza o pensamento, mas não deve jamais servir como uma camisade-força para a abordagem da produção de cada momento, pois os autores de literatura não dispõem dessa categorização antes de escreverem e,
portanto, em muitos casos é preciso levar em conta as diferenças entre o
que um autor de fato produz e as características do período em que ele escreve. É comum encontrarmos discrepâncias nessa equação. Por exemplo,
o escritor Joaquim Maria Machado de Assis escreve no período que conhecemos como Realismo e, entretanto, ele foi sempre um grande crítico dos
preceitos e proposições do Realismo, ultrapassando em muito o projeto estético e artístico desse período. O mesmo vai acontecer com outros autores
que, mesmo escrevendo no momento em que a literatura de modo geral
atende às características e orientações de uma certa estética ou estilo, vão
além dela e propõem outros modos de expressão artística. Por isso mesmo
é que os Estudos Literários devem se pautar, antes de tudo, pela leitura e
a análise dos textos produzidos pelos autores que deram consistência a
determinado período da historiografia literária.
O Romantismo e os precedentes do Realismo
Uma das consciências mais consensuais dentro dos Estudos Literários
é a de que o Romantismo foi a grande revolução dos últimos séculos na
literatura e de que a sua repercussão é bastante estendida no tempo, a
ponto de sentirmos seus efeitos ainda hoje, em pleno século XXI.
É difícil precisar no tempo e no espaço o início do Romantismo. De
modo geral, afirma-se que o primeiro romance romântico é o livro Os So-
Realismo na Literatura Brasileira
frimentos do Jovem Werther, ou simplesmente Werther, de Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832), publicado na Alemanha em 1774. A Alemanha e a Inglaterra levam o crédito por apresentarem os primeiros textos românticos, e a França
tem o crédito de ter popularizado o Romantismo e levado suas influências para
toda a Europa e também para as Américas.
A revolução romântica deve ser compreendida no contexto das grandes
transformações sociais e culturais dos séculos XVIII e XIX na Europa e no resto
do mundo.
A Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX)
determinaram as mudanças que deram lugar a novas sensibilidades e novas
formas de expressão – como o romance, por exemplo.
A invenção do romance como modalidade narrativa é a grande herança que
o Romantismo legou ao Realismo, que também se configurou em um momento
de produção literária bastante profuso em narrativas
Trazendo temáticas bastante ligadas às características do momento – como a
experiência amorosa e suas contrariedades ou o amor à pátria –, o romance romântico estabeleceu os recursos de formalização do gênero romanesco. Esses recursos
foram largamente utilizados pelo Realismo e também serviram de base para a exploração de novas estratégias de representação da realidade propostas pelo Realismo.
Os recursos de que aqui estamos falando são justamente os que darão singularidade e originalidade ao gênero romance. Nas palavras de Alfredo Bosi, temos
o seguinte sobre esse aspecto:
Na França, a partir de 1820, e na Alemanha e na Inglaterra, desde os fins do século XVIII, uma
nova escritura substituíra os códigos clássicos em nome da liberdade criadora do sujeito. As
liberações fizeram-se em várias frentes. Caiu primeiro a mitologia grega [...]. Com as ficções
clássicas foi-se também o paisagismo árcade que cedeu lugar ao pitoresco e à cor local. [...] A
epopeia, expressão heroica já em crise no século XVIII, é substituída pelo poema político e pelo
romance histórico, livre das peias de organização interna que marcavam a narrativa em verso.
[...] O romance foi, a partir do Romantismo, um excelente índice dos interesses da sociedade
culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância no século XIX se compararia, hoje, à do cinema
e da televisão. (BOSI, 1994, p. 96)
É nesse sentido que podemos entender que a grande conquista do Romantismo se deu na liberdade de expressão, nunca antes experimentada. Essa liberdade se manifestou de modo muito significativo na modalidade narrativa que
passamos a conhecer como romance.
O Realismo muito se beneficiou dessa conquista, pois a liberdade de expressão
proposta pelos românticos abriu espaço para que os artistas que vieram em segui12
O Realismo e os períodos literários precedentes
da, a partir da segunda metade do século XIX, radicalizassem suas propostas de
expressão da realidade e propusessem o romance realista como uma novidade.
Romantismo e Realismo: conceitos paralelos
Embora alguns manuais de literatura insistam em estabelecer uma grande
ruptura entre as propostas estéticas do Romantismo e do Realismo, acreditamos
que é possível considerar que há um movimento de continuidade entre esses
dois importantes momentos da história literária.
Continuidade principalmente no sentido de implementar a representação
e o vínculo com a realidade histórica e política nos romances. O Romantismo
conquistou o direito de registrar e debater os grandes momentos da história
nacional dos países em que floresceu; o Realismo, a seu modo, amplificou esse
interesse e trouxe a reflexão sobre a realidade social e política para o centro das
narrativas realistas. É nessa medida que apontamos a continuidade entre um
movimento e outro. Embora no desenvolvimento e na expansão do Romantismo tenha havido uma espontaneidade criativa muito diversificada, há alguns
conceitos e práticas que se tornaram marca própria do movimento, e podemos
sintetizá-los da seguinte forma:
popularização da literatura, principalmente por meio da leitura de romances;
temáticas associadas à experiência do homem comum e não mais apenas
os nobres;
relação entre história e literatura por meio dos romances históricos;
o desenvolvimento de uma sensibilidade para a realidade das ruas e das
pessoas simples, tanto na prosa quanto no verso.
Todas essas características ou marcas foram acolhidas pelo Realismo e capitalizadas no sentido em que o Realismo é um movimento organizado a priori,
ou seja, diferentemente da espontaneidade do Romantismo, o Realismo contou
com autores e intelectuais dispostos a propor um ideário formal para a orientação da prática literária. Isso se deu por meio da redação de documentos e pela
organização de encontros cuja finalidade era justamente discutir e propor uma
nova estética para a literatura.
No caso do Realismo francês, importa citar o texto O Romance Experimental
(1880), de Émile Zola. Esse texto é considerado o manifesto do Realismo francês
13
Realismo na Literatura Brasileira
e serviu de norte para um grande número de autores, de várias nacionalidades,
interessados em seguir os passos do mestre francês.
No Realismo português, um evento com a mesma intenção de regrar e orientar o movimento foi as Conferências do Cassino Lisbonense, realizadas em 1871,
em Lisboa. Nessas conferências, discutiu-se justamente o que se deveria esperar
do movimento Realista.
O que percebemos a partir desse paralelo entre Romantismo e Realismo é
que os realistas se propuseram a sistematizar algumas conquistas dos artistas
românticos e assim o fizeram, contribuindo para que o Romantismo também
permanecesse entre nós.
Autores do Romantismo e precedentes realistas
Alguns autores do Romantismo europeu e do Romantismo brasileiro poderão nos ajudar a compreender o processo de transição para o Realismo, tanto na
Europa como no Brasil. Nosso objetivo aqui é observar como algumas temáticas
e estratégias narrativas presentes na obra desses autores estabeleceram caminhos que o Realismo seguirá mais tarde.
Victor Hugo
Grande expoente do Romantismo francês, Victor-Marie Hugo (1802-1885)
foi influente tanto com os textos literários que produziu quanto com suas
posições políticas. Foi um grande crítico do estado de coisas na França do século
XIX; questionava o papel da burguesia e pregava reformas que garantissem que
a riqueza produzida fosse colocada a serviço da produção de bens e recursos
para a sociedade. Produziu obras em todos os gêneros literários, desde a poesia,
passando pelo romance e pelo conto e chegando até a textos de teatro. No
romance, destacou-se com Nossa Senhora de Paris (1831, popularizado como O
Corcunda de Notre Dame) e Os Miseráveis (1862). Nesses dois romances, a temática toca em pontos capitais da sociedade da época, como a influência do clero,
a relação entre diferentes classes sociais, a perseguição aos pobres e a exclusão
dos menos favorecidos.
O retrato da França do século XIX nas obras de Victor Hugo pode ser considerado extremamente realista, pois é possível conhecer as ruas de Paris, bem
como seus subterrâneos, de modo surpreendentemente detalhado por meio da
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O Realismo e os períodos literários precedentes
leitura das páginas de Nossa Senhora de Paris ou de qualquer outro dos romances do autor.
A preocupação em retratar fielmente o cenário em que ocorrerá a ação
é uma das estratégias narrativas que depois se tornarão caras aos autores do
Realismo.
Honoré de Balzac
Ao lado de Victor Hugo, Honoré de Balzac (1799-1850) personifica o Romantismo francês em sua essência humana, pois a ele interessou retratar com
fidelidade a face do homem comum do seu tempo. Sustentam-se lendas de
que, a distância, Balzac perseguia pessoas pelas ruas, de modo a lhes registrar
os modos, as conversas, o modo de ser. Tais lendas justificam a qualificação de
hiper-realismo que algumas de suas figuras receberão ao longo do tempo.
Balzac começa a produzir sua obra sob a regência do Romantismo, mas sua
vocação natural pelo retrato da realidade em suas minúcias o faz um verdadeiro
antecessor das técnicas realistas, que desejavam retratar a realidade como um
inventário material.
Os seus romances estabelecem com detalhamento quase fotográfico o cenário da ação, a narrativa sempre se inicia após o cenário ser explorado em todos
os seus aspectos pelo narrador, que só então coloca as personagens em cena, de
modo a valorizar ao máximo a relação das personagens com o espaço da ação.
Essa técnica descritiva se tornará um dos grandes méritos dos autores realistas.
Da vasta obra do autor, destacam-se, sobretudo, o conjunto de romances que
compõem A Comédia Humana (1842).
Camilo Castelo Branco
Romântico tardio e renitente, Camilo Castelo Branco (1825-1890) é um dos
grandes nomes do Romantismo português. Foi o primeiro autor da literatura
portuguesa a viver daquilo que escrevia. Seus romances – ou novelas, como ele
as chamava – tinham público cativo. Embora tenha sido um dos críticos mais
mordazes do Realismo, em seus textos, Camilo Castelo Branco já utilizava muitos
dos recursos que acabaram por enriquecer a narrativa realista – a interlocução
com o leitor é um desses recursos. Mesmo com a temática ultra-romântica que
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Realismo na Literatura Brasileira
marcava seus textos, Camilo costumava rechear seus romances com reflexões
metalinguísticas em que a consciência sobre a realidade da escritura revela um
autor bastante consciente do processo de elaboração textual. A ironia, a metalinguagem e a intertextualidade são estratégias muito presentes em seus textos
e revelam um escritor que já dominava as técnicas que depois se tornariam próprias do Realismo.
Entre seus numerosos romances destacam-se Amor de Perdição (1862); Coração, Cabeça e Estômago (1862) e Amor de Salvação (1864).
José de Alencar
José Martiniano de Alencar (1829-1877) pode ser considerado uma síntese
do romance romântico brasileiro. Sua obra abarcou desde o romance indianista,
passando pelo romance rural, pelo romance urbano, alcançando até o romance
histórico.
A síntese da sua obra revela que Alencar não só recebeu os influxos do
romance europeu como traduziu para a realidade brasileira as principais características dessa modalidade narrativa.
O próprio José de Alencar traçou um panorama retrospectivo de sua obra no
prefácio do livro Sonhos d’Ouro, demonstrando a perfeita consciência do papel
que ele representa no cenário da literatura brasileira. Para melhor visualizarmos
a perspectiva do autor sobre a própria obra, transcrevemos abaixo as suas palavras e o inventário de sua produção:
O período orgânico desta literatura (a brasileira) conta já três fases.
A primitiva, que se pode chamar aborígene, são as lendas e mitos da terra selvagem e
conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo [...].
Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que
venceram na terra da pátria a mãe fecunda – alma mater – e não enxergaram nela apenas o
chão onde pisam.
O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana [...]
A ele pertencem O Guarani e As Minas de Prata. [...]
A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda
não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto
nacional [...].
O Tronco do Ipê, o Til e O Gaúcho vieram dali, embora, no primeiro sobretudo, se note já, devido
à proximidade da corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se
modifica e se repassa do espírito forasteiro. [...]
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O Realismo e os períodos literários precedentes
Dessa luta entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira, são reflexos Lucíola, Diva, A
Pata da Pazela, e tu, livrinho, que aí vais correr mundo com o rótulo Sonhos d’Ouro (Benção
Paterna). (apud ,BOSI, 1994, p. 136)
O autor mostra que sua obra perpassa os vários períodos da literatura brasileira marcando cada um desses períodos com um ou mais títulos de grande
relevância para o cenário nacional.
Alencar, como poucos autores, está muito à vontade tanto com temas contemporâneos à sua escritura como temas remotos no tempo. Nota-se, entretanto, uma certa predileção por temas distantes no tempo: seus romances indianistas revelam-se verdadeiras obras-primas de interpretação e representação do
Brasil dos primeiros tempos.
O realismo de Alencar está, sobretudo, no modo como ele procurou revelar a
natureza e os costumes brasileiros. Já nos romances urbanos, vemos uma preocupação reiterada em constituir uma época em todo seu detalhamento cultural
e social.
Nas palavras de Alfredo Bosi encontramos ainda alguma reflexão sobre o
realismo de Alencar:
De que realismo se trata aqui? É melhor falar no gosto do pitoresco ou na curiosidade do
pormenor brilhante, destinados romanticamente a criar um halo de “diferença” em torno dos
protagonistas. Mas, descontada a intenção, Alencar, ao descrever a natureza e os ambientes
internos, é tão preciso como qualquer prosador do fim do século. (BOSI, 1994, p. 140)
Assim, é possível apontar também em José de Alencar o procedimento descritivo como um precedente importante que será aproveitado e continuado
pelas narrativas do Realismo. Embora possamos dizer que a descrição romântica
atendia mais ao aspecto emocional dos cenários, esse cuidado já denota a preocupação realista que se faz presente nos autores do Romantismo.
Continuidade e ruptura
entre o Romantismo e o Realismo
Tanto na Europa como no Brasil, o posicionamento crítico e a matriz criativa
do Romantismo tiveram profunda relação com o sentimento de nacionalismo.
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Realismo na Literatura Brasileira
Na Europa, interessava resgatar certa identidade nacional vinculada aos
novos valores burgueses, que buscavam superar o tradicionalismo aristocrata.
No Brasil, o nacionalismo era a tradução do desejo de emancipação política e
cultural da metrópole portuguesa. Isso acabou se manifestando na invenção do
herói nacional na figura do índio, que seria o autêntico brasileiro, desvinculado
da influência do português.
Esse interesse nacionalista acabou por limitar um pouco a temática romântica, gerando críticas posteriores sobre a ênfase dada a temas locais e o pouco
interesse por assuntos universais.
Entretanto, a partir de 1860 a poesia social de Castro Alves (1847-1871) e a
ficção urbana de José de Alencar começaram a denotar um Brasil em crise com
seu ideal nacionalista. A consciência amena em relação às crises nacionais passou
para um estágio mais agudo.
Bosi (1994, p. 163) relaciona essa crise à extinção do tráfico de negros, que
levou à decadência da economia açucareira; ao deslocar-se do eixo de prestígio para o sul e aos novos anseios das classes médias urbanas. As ideias liberais e republicanas, junto com o abolicionismo, pintaram um quadro que exigia
mudanças também na concepção artística.
Foi justamente na arte que se deu uma ruptura mental com o regime escravocrata e as instituições políticas que o sustentavam. O Realismo veio responder
à necessidade de se fixar a preocupação social como marca da literatura, e havia
uma urgência de que a literatura representasse ação diante da realidade.
Em termos formais, o Realismo manteve e expandiu as conquistas do Romantismo. Se tomarmos um romance romântico, por exemplo, veremos pouca diferença em relação a um romance realista no que diz respeito às estratégias narrativas, a composição de personagens. A diferença ou a ruptura está na função
creditada à literatura. Para os realistas, a literatura precisava definir-se por uma
ação direta nos problemas sociais – a interpretação e a análise da sociedade passavam a servir de escopo para a transformação que se esperava alcançar nessa
sociedade.
O grande paradoxo realista está, entretanto, em propor a mudança da sociedade por meio da intervenção da literatura de modo muito direto. O programa
de ação do Realismo pretendia responder aos anseios da sociedade de modo
muito rápido e a “receita” para isso acabava sendo muito simplificada.
18
O Realismo e os períodos literários precedentes
É justamente nessa medida que é possível dizer que o Romantismo representa maior intervenção na sociedade, embora não tivesse se proposto formalmente a realizar essa intervenção. A presença de gente comum, dramas humanos
ordinários e a realidade social, aspectos verificáveis no Romantismo, são de certo
modo o que era desejado formalmente pelos realistas.
Entretanto, houve – tanto no Brasil como na Europa – um interesse muito
grande em deixar muito claro, por meio de documentos, manifestos e reuniões
formais, quais eram os interesses dos realistas, e se perdeu algum tempo em
seguir modelos e regras para realizar-se uma literatura que, em certa medida, o
Romantismo espontaneamente já realizava.
Ao estudarmos o Realismo, precisamos ter em mente que não é possível desvinculá-lo totalmente do momento precendente – o Romantismo – e nem dos
momentos posteriores, que acabaram por recuperar elementos propostos pelo
Realismo em diferentes contextos.
Assim, é possível dizer que o estudo do Realismo deve ser feito sempre tendo
em mente a obra dos autores que produziram nesse momento histórico e estético e também o contexto maior da realidade social, política e cultural do país.
Textos complementares
Vamos ler os prefácios da segunda e da quinta edição do romance Amor de
Perdição, de Camilo Castelo Branco. Os prefácios são do próprio autor e nos revelam muito do que ele pensava sobre o Romantismo, movimento do qual afirmava fazer parte, e do Realismo, a Ideia Novíssima, que o autor afirma rejeitar
por ser pouco decente.
Prefácio da segunda edição
(CASTELO BRANCO, 1996, p. 17)
Nas Memórias do Cárcere, referindo-me ao romance que novamente se
imprime, escrevi estas linhas:
“O romance, escrito em seguimento daquele (O Romance de um Homem
Rico), foi o Amor de Perdição. Desde menino, ouvia eu contar a triste história
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Realismo na Literatura Brasileira
de meu tio paterno Simão António Botelho. Minha tia, irmã dele, solicitada por minha curiosidade, estava sempre pronta a repetir o facto aligado1
à sua mocidade. Lembrou-me naturalmente, na cadeia, muitas vezes, meu
tio, que ali deveria estar inscrito no livro das entradas no cárcere e no das
saídas para o degredo. Folheei os livros desde os de 1800, e achei a notícia com pouca fadiga, e alvoroços de contentamento, como se em minha
alçada estivesse adornar-lhe a memória como recompensa das suas trágicas
e afrontosas dores em vida tão breve. Sabia eu que em casa de minha irmã
estavam acantoados uns maços de papéis antigos, tendentes a esclarecer a
nebulosa história de meu tio. Pedi aos contemporâneos que o conheceram
notícias e miudezas, a fim de entrar de consciência naquele trabalho. Escrevi
o romance em 15 dias, os mais atormentados de minha vida. Tão horrorizada
tenho deles a memória, que nunca mais abrirei o Amor de Perdição, nem lhe
passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras, se é que não saiu tolhiço2 incorrigível da primeira. Não sei se lá digo que meu tio Simão chorava, e
menos sei se o leitor chorou com ele. De mim lhe juro que...”
Vão passados quase dois anos, depois que protestei não mais abrir este
romance. No decurso de dois anos tive de afrontar-me com uns infortúnios
menos vulgares que a privação da liberdade, e esqueci os horrores dos
outros, a ponto de os recordar sem espanto, e simplesmente como fuzis
indispensáveis nesta minha cadeia, em que já me vou retorcendo e saboreando com infernal deleitação. Abri o livro, como se o tivesse escrito nos dias
mais festivos da minha mocidade; se bem que eu falo em dias de mocidade
por me dizer a minha certidão de idade que eu já fui moço; que, no tocante
a festas de juventude, estou agora esperando que elas venham no outono,
e é de crer que venham, acamaradas com o reumatismo e gota.
Este livro, cujo êxito se me antolhava mau, quando eu o ia escrevendo,
teve uma recepção de primazia sobre todos os seus irmãos. Movia-me à desconfiança o ser ele triste, sem interpolação de risos, sombrio, e rematado
por catástrofe de confranger o ânimo dos leitores, que se interessam na boa
sorte de uns, e no castigo de outros personagens. Em honra e louvor das
pessoas que estimaram o meu livro, confessarei agradavelmente que julguei
mal delas. Não aprovo a qualificação; mas a crítica escrita conformou-se com
a opinião da maioria, que antepõe o Amor de Perdição ao Romance de um
Homem Rico e às Estrelas Propícias.
1
2
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Aligado: vinculado.
Tolhiço: com defeito; de qualidade inferior.
O Realismo e os períodos literários precedentes
É grande parte neste favorável, embora insustentável, juízo, a rapidez
das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do
enredo, ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das locuções. Isto, enquanto a mim, não se estribar em outras recomendações mais sólidas deve ter uma voga muito pouco duradoura.
Estou quase convencido de que o romance, tendendo a apelar da iníqua
sentença que o condena a fulgir e apagar-se, tem de firmar sua duração
em alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza
do dizer. E dou mais pelo segundo merecimento; que a alma está sobejamente estudada e desvelada nas literaturas antigas, em nome e por amor
das quais muita gente abomina o romance moderno, e jura morrer sem ter
lido o melhor do mais apregoado autor. Dou-me por suspeito nesta questão.
Graças a Deus, ainda não escrevi duas linhas a meu favor, nem sequer nas
locais do jornalismo. Até escrupulizo em dizer que devem ler-se romances,
não vão cuidar que eu recomendo os meus.
É certo que tenho querido imprimir em alguns de meus livros o cunho
da utilidade com o valor da linguagem sã e ajeitada à expressão de ideias,
que pareciam estranhas, como de feito eram, e não se nos deparam nos
escritos dos Sousas, Lucenas e Bernardes.3 Em verdade, foi isto mirar muito
longe com vista muito curta; assim mesmo, fiz o que pude; e neste livro direi
que fiz menos do que podia. Nos 15 atormentados dias em que o escrevi,
faleceu-me o vagar e contenção que requer o acepilhar e brunir períodos. O
que eu queria era afogar as horas, e afogar talvez a necessidade de vender
o meu tempo, as minhas meditações silenciosas, e o direito de me espreguiçar como toda a gente, e o prazer ainda de ser tão lustroso na linguagem,
quanto, em diversas circunstâncias, podia ser.
O que então não fiz, também agora o não faço, senão em pouquíssimo
e muito de corrida. O livro agradou como está. Seria desacerto e ingratidão
demudar sensivelmente, quer na essência, quer na compostura, o que, tal
qual é, foi bem recebido.
Porto, Setembro de 1863.
Camilo Castelo Branco
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Sousas, Lucenas e Bernardes: escritores portugueses nos quais Camilo quer se espelhar.
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Realismo na Literatura Brasileira
Prefácio da quinta edição
(CASTELO BRANCO, 1996, p. 19)
Publiquei, há 22 anos, o romance Onde Está a Felicidade? Pouco depois,
Alexandre Herculano, republicando as Lendas e Narrativas, escrevia na
“Advertência”: “...Nestes 15 ou 20 anos, criou-se uma literatura, e pode dizer-se
que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e Narrativas
até o livro Onde Está a Felicidade? que vasto espaço transposto?”
Se comparo o Amor de Perdição, cuja quinta edição me parece um êxito
fenomenal e extralusitano, com O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio,
confesso, voluntariamente resignado, que para o esplendor destes dois
livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso
de 16 anos. O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno, é
um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas
ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não
cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de
suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no
seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau
foi isso. Mas, agora, como indenização, faz rir: tornou-se cômico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o ranço das velhas histórias do
Trancoso e do padre Teodoro de Almeida.
E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara
com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas
que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.
Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela, quando
as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire4 da gramática e
da decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor
antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas.
Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados
para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo,
enflorava-se a pústula,5 agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e
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5
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Desaire: escândalo, espanto, inconformismo.
Pústula: ferida gangrenada.
O Realismo e os períodos literários precedentes
vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar6 num espelho fiel.
Pois que estou a dobrar o cabo tormentório da morte, já não verei onde
vai desaguar este enxurro que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito
de uma grande evolução-rigolboche. A lógica diz isto; mas a Providência,
que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa.
Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XX,
talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta quinta edição do Amor de Perdição quase esgotada.
S. Miguel de Seide,
8 de Fevereiro de 1879.
Camilo Castelo Branco
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Narcisar-se: ver a si mesmo em objetos exteriores, como o livro que se lê, por exemplo.
Estudos literários
1. Assinale a alternativa que melhor explica o significado da expressão período
literário.
a) Seleção de algumas obras de diferentes épocas históricas para fins de
estudo.
b) Organização da produção de uma certa época histórica de acordo com
características comuns.
c) Organização da produção de uma época tendo por base as diferenças
propostas pelos autores do momento.
d) Seleção de obras cujas temáticas se mantenham em voga durante mais
de um século.
2. Uma das principais proposições do Romantismo no campo da narrativa literária foi
a) a novela de cavalaria.
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Realismo na Literatura Brasileira
b) o conto fantástico.
c) o romance.
d) o relato de viagens.
3. Discorra brevemente sobre as características da modalidade narrativa
conhecida como romance, considerada a grande inovação do Romantismo.
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O Realismo e os períodos literários precedentes
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Realismo na Literatura Brasileira
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