Entrevista com o Prof. Eugène Enriquez

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Entrevista com o Prof. Eugène Enriquez
Entrevista com Eugène Enriquez+ - O Ato de Escrever
Entrevistadores: Teresa Cristina Carreteiro++ e José Newton de Araujo+++
PERGUNTA: Gostaríamos de conversar com você sobre a escrita. Para começar a abordar esse tema queríamos
saber um pouco sobre as suas idéias sobre o ato de escrever. O que você pensa?
EUGÈNE ENRIQUEZ: Acho que escrever é ter idéias, ver qual a coerência entre idéias diferentes, entre os
diferentes argumentos que apresentamos, testar a pertinência da interpretação da realidade da qual falamos; mas acho que
escrever também nos permite inventar. O que gostaria de dizer é que existe uma dinâmica na escrita e que à medida que
escrevemos há associações de palavras que se formam, revelam nossas idéias e novas associações, ou seja, permitem achar
novos caminhos para a pesquisa.
Eu não acho que escrever seja simples transposição do que temos em mente. O que temos em mente, o que
pensamos é uma coisa, mas escrever nos obriga a precisar e argumentar, o que faz com que exista uma diferença
considerável entre o que pensamos antes de escrever e o que pensamos depois ou durante o ato de escrever.
PERGUNTA: Bom, então para você escrever é, se podemos dize-lo assim, um ato de criação?
E. ENRIQUEZ: Certamente, e mais, permite colocar em relação palavras e conceitos, e faz surgir associações
dessas palavras. Para dar um exemplo, que é muito poético, foi o poeta André Breton que disse que “as palavras fazem
amor”, e eu acho que é verdade, ou seja, da mesma forma que o ser humano faz amor e isso pode gerar filhos, as associações
de palavras permitem evocar novas idéias, e, além disso, me parece que algumas palavras têm uma força de evocação e
através do que existe e podemos ligar uma palavra podemos ter, não somente, idéias e caminhos novos, mas uma descrição
da realidade. Por exemplo, se tomarmos uma palavra tão utilizada como outrem (AUTRUI), podemos dizer qual o sentido de
outrem em mim mesmo; o que existe de outrem em mim; o que é existir/ser para outrem; etc. Existe a partir de uma simples
palavra um efeito, uma espécie de irradiação de se pensar de forma flutuante através desta palavra e que permite construir
uma filosofia em torno do que é a existência de outrem e/ou o que é o conhecimento de outrem.
PERGUNTA: O que você está dizendo me leva a pensar em uma diferença entre a escrita como ato de criação e a
escrita enquanto copiar ou redizer, pois não podemos dizer que todo ato de escrever seja uma criação. Existem pessoas que
escrevem e dizem coisas novas, interessantes e fazem disto um ato de amor entre as palavras, e outras que nos perguntamos
onde está a novidade? Nestas escritas encontramos principalmente a cópia e o redizer.
E. ENRIQUEZ: Sim, e isto é uma prova de que existe efetivamente uma diferença na concepção de escrita e
também da linguagem enquanto estritamente operatória e instrumental (e do pensamento operatório e instrumental). As
palavras vão nos dizer exatamente (e nada além do que) o que queremos que elas nos digam. Existe a possibilidade das
palavras formarem outras palavras e, por outro lado existe a possibilidade de uma única significação. No entanto, se
estivermos uma concepção da linguagem e da escrita expressiva, pode existir um efeito dado à palavra, efeito de que as
palavras sejam acompanhadas de outras palavras e que não sejam em si mesmas unívocas. Nós podemos explorar sempre o
conjunto de suas significações e assim efetivamente exprimir não somente alguma coisa que já tenhamos sentido, mais
continuar a exprimir algo que faça uma grande diferença entre a linguagem estritamente operatória, e a linguagem do tipo
expressivo.
Poderíamos também dizer, como o fazem os lingüistas, que a linguagem tem um lado performativo, ou seja, o que é
de alguma forma um ato em si, e na medida em que é um ato, todo ato subentende conseqüências. E sobre as palavras, não
somente as que foram faladas, mas também as que foram escritas, não tem forçosamente as conseqüências que tenhamos
pensado, mas também uma série de outras conseqüências.
PERGUNTA: Bom, e nesse ato de escrever como poderíamos compreender a ansiedade que é produzida, que
aparece no momento em que estamos escrevendo?
E. ENRIQUEZ: Bem se a escrita fosse vista simplesmente como a colocação em palavras do pensamento, eu diria
que assim teríamos ignorado quase toda a angústia e que se trataria apenas da colocação na forma escrita. A ansiedade
apareceria em como faze-lo pouco a pouco. Seria uma boa questão de execução, mas se pensarmos que existe, por exemplo,
angústia diante de uma folha em branco? Alguns podem nunca terminar uma página, mas sempre começar uma outra página.
A angústia vincula-se ao fato que a página em branco remete ao sentimento de estar diante de sua própria ausência e falta;
quero dizer com isso que se trata de lidar com as próprias dificuldades em conceitualizar e avançar, e assim se perguntar se o
que vai ser dito será fiel ao que pensamos, ou se não vai trair o que pensamos, ou além do que pensamos, e de certa forma de
irmos tão longe e não chegarmos a formular de maneira adequada o que pensamos. E mais, se dizemos que as palavras tem
sentido em si mesmas, a escolha de uma relação à outra não é inocente, quer dizer que a escolha pode nos levar a modos de
pensamento ou formas de construção novas.
Eugene Enriquez. Tem doutorado de estado na França em Sociologia, Professor emérito da Universidade de Paris 7,
Departamento de sociologia. `Psicossocioologo. Membro fundador da Centre international et de recherche en
Psychosociologie (CIRFIP), co- redator da reista do CIRFIP. Autor de vários livros e artigos. Os livros traduzidos para o
português são: Da horda ao estado, Rio de Janeiro, Jorge Zahar editores, 1989; A organização em análise, Rio de Janeiro,
Ed. Vozes 1995.
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Professora Titular do Programa de Pos graduação em Psicologia da UFF, Pesquisadora do CNPq, Membro do Espaço
brasileiro de estudos psicanalíticos. Membro do Centre international et de recherche en Psychosociologie (CIRFIP),
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Professor da PUC-MG, Pesquisador do CNPq, Membro do Centre international et de recherche en Psychosociologie
(CIRFIP).
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PERGUNTA: Existe o problema do que vai ser escrito e o público que vai ler, e como vai ser vistas esta ou aquela
questão, não é?
E. ENRIQUEZ: Sim existe o problema que é evocado por André Green, de que nós escrevemos para o ausente.
Quando falamos, o fazemos com alguém enquanto que quando escrevemos não sabemos para quem escrevemos, e assim a
representação que podemos ter de quem vai nos ler é muito importante e pode nos causar medo. Se temos um alvo, se
pensarmos num determinado público não teremos tanta angustia ao escrever. Diríamos: eis aqui o tema desse público e aqui
as palavras que devemos lhes dizer. Mas se escrevemos para um público variado, por exemplo, um colega de outro país que
não precisa necessariamente pensar da mesma forma que você, para um outro, para estudantes, ou mesmo outras pessoas,
essa multiplicidade de públicos faz com que seja muito angustiante escrever. Não sabemos como vai ser recebido o que
estamos dizendo. Quando fazemos uma conferencia, ao fim de um certo tempo percebemos se o que estamos dizendo agrada
ou não, mas quando escrevemos somos definitivamente confrontados com esse público ausente, que é ao mesmo tempo
muito presente. Também nos confrontamos com a representação que temos de nós mesmos. Podemos sempre justificar
quando falamos algo, mas não podemos justificar o escrito, mesmo que seja revisado, uma vez publicado testemunha de uma
certa posição de que somos. Assim, de certa forma a escrita nos enclausura dentro de um personagem que escreveu algo em
um dado momento... Por exemplo, uma situação que foi contada sobre uma vez Foucault veio a Recife, onde ele falava sobre
“À vontade de Saber”, a “História da Sexualidade”, etc, etc, e onde havia várias pessoas que gostariam de lhe fazer perguntas
sobre “As palavras e as coisas” e Foucault lhes disse: - Bom, “As palavras e as coisas” é Foucault, mas de alguns anos atrás e
do qual não tenho vontade de falar.
Assim nos confrontamos também com as imagens que fizemos e nos fixamos, e nas quais acreditamos, enquanto ele
talvez não acreditasse mais ou acreditasse ainda, mas não com a importância de quando havia escrito pela primeira vez.
Ficamos presos a uma série de imagens, de fantasmas que ultrapassamos. O ato de escrever deveria abrir novos caminhos,
perspectivas, mas às vezes temos outros problemas e não conseguimos mais escrever tão bem, ou ainda quando um texto
condensa o fundamental e as pessoas não conseguem ir além do que está escrito. Em certo momento você diz algo bom, mas
o que diz depois é menos importante.
PERGUNTA: È interessante... Parece existir alguma coisa ambígua, ao mesmo tempo em que a escrita mostra a
criatividade mostra também um limite?
E. ENRIQUEZ: Sim, certamente. Mostra também o receio de não poder mais estar a altura, de não fazer algo tão
bom quanto das outras vezes. O receio de não dizer mais coisas tão importantes como as que já havíamos dito, pensado. E
existe também o fato de que a criatividade se mostre num novo objeto, mais feio que o antigo. Existe sempre este medo; por
exemplo, sabemos que os grandes escritores não gostam quando dizemos: _ “Ah isso que você escreveu é interessante!,” ,
porque isso se refere a algo que foi escrito há muito tempo, há alguns anos. Eles se irritam, se aborrecem pois o escritor
gostaria que disséssemos sempre que sua última obra é mais importante.
Na maioria das entrevistas quando perguntamos: qual a obra que o senhor prefere? – eles riem e dizem: naturalmente a que acabei de escrever! Mesmo que saibam que não é verdade. Mais isso nos mostra que estamos mantendo
uma criatividade contínua. Na realidade existem ciclos, momentos onde alguém escreve coisas importantes, e outros onde
essa criatividade pode não surgir. Eu diria que a maior angústia surge quando nos sentimos no fim de um período de
exploração de algumas idéias que tínhamos desenvolvido e percebemos que outras coisas devem surgir e ainda não sabemos
o que é essa outra coisa ou quando virá.
PERGUNTA: É um momento no qual o fantasia pode ser tanto vivida como positiva ou uma causa perdida?
E. ENRIQUEZ: Sim, poderíamos tomar o exemplo de Foucault que citei. Pensar efetivamente no silencio de
Foucault durante 10 anos depois do primeiro volume da Historia da Sexualidade e o fato de que quando ele continuou, ou
seja, o segundo e o terceiro volume, ele mesmo diz que se ele parou de escrever por tanto tempo foi porque ele reformulou
completamente (e é uma pena que tenha morrido) o paradigma a partir do qual havia trabalhado. Foi difícil para ele
justamente por ser alguém muito conhecido se lançar novamente no desconhecido. O que ele era não o satisfazia mais, e
assim ele encontra outra forma de trabalhar.
PERGUNTA: É uma coisa que acho cada vez mais difícil nos dias atuais. Existe uma certa pressão para a produção
escrita?
E. ENRIQUEZ: Certamente sim, quanto mais somos obrigados a produzir, mais produzimos textos fáceis, ou seja,
estamos num meio de exploração do que já sabemos, mesmo que existam alguns elementos criativos a mais. Não podemos
fazer alguma coisa verdadeiramente nova.
PERGUNTA: Você falou em textos fáceis, eu gostaria que precisasse um pouco melhor o que quer dizer fáceis para
você?
E. ENRIQUEZ: Fáceis eu diria por serem uma reprise, uma retomada, um desenvolvimento de idéias que já estão
bem constituídas e que não necessitam de um esforço, um esforço a mais do pensamento.
Pode ser que, quando produzimos demais, ocorre um efeito de vulgarização da forma de pensar, esta se torna menos
criativa. Quando produzimos demais acabamos entrando num ciclo operatório e também temos tendência a dizer o que já
havíamos dito, mesmo que em outras palavras, a estarmos contentes com o que já dissemos, e assim de certo modo ocorre
inconstetavelmente uma baixa de criatividade.
PERGUNTA: Bom, estamos no fim das perguntas sobre a ansiedade, o pensamento na escrita, mas como é que
podemos falar sobre a escrita e o prazer?
E. ENRIQUEZ: Muitas pessoas quando escrevem tem muito prazer em fazê-lo, bom, é o que elas dizem. Isto quer
dizer que existe uma certa exploração, nas palavras que se ligam a outras palavras, pensamentos com pensamento. Existe
efetivamente o prazer de um pensamento que se desenvolve, se afirma, se constrói e assim através dessa escrita existe de
uma certa possibilidade do indivíduo se elevar acima dele mesmo. E depois, quando relemos dizemos que é interessante o
que escrevemos.
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Um exemplo externo, e eu diria divertido, é o de Tostoi, que ao final de sua vida pedia a seus seguidores para
relerem passagens de seu livro “Guerra e Paz” e que dizia após ter escutado tudo o que ele havia escrito há tanto tempo:
“Como é belo isso!”
Bom, existe efetivamente durante a escrita alguma coisa que é da ordem do prazer de ser, de sair de você. Através
dele espera-se um impacto sobre os outros que vão nos ler e podem dizer: sim, é interessante.
Um prazer eu diria, de criar criando, como na noção marxista - o homem se produz, produzindo. O homem cria,
criando. Mas depende muito do criador, não vai haver um mínimo de expressão, do desejo de escrever, senão seria
totalmente masoquista. Mas para certos criadores o prazer é predominante, para outros o que predomina é a angústia. Se
tomarmos exemplos literários, Baudelaire dizia que ele escrevia sobre a lágrima, uma lágrima de sangue, e Victor Hugo
sempre escreveu sobre a esperança e poderia escrever vinte, trinta, cem versos durante o dia, o que seria impossível para
Baudelaire. V. Hugo era uma espécie de tufão.
Para mim seria mais difícil essa noção do prazer, eu sentiria mais medo e angústia que prazer. Eu tenho muito
prazer em reler um texto quando ele está terminado, mas freqüentemente menos prazer quando estou escrevendo.
Na verdade todos dizem que eu escrevo rápido, mas isso não é verdade. Tenho muita angústia diante de uma página
em branco, etc, etc, nem todas as vezes acho o que escrevi é bom. Mas outros autores têm realmente esse prazer. Eu diria que
para alguns é uma tarefa normal, quer dizer, a expressão é uma espécie de obrigação.
Eu lembro de alguns que escrevem todas as manhas durante uma ou duas horas de modo sistemático, todo dia, para
que pensamento esteja sempre em movimento e para que haja menos angústia. Não porque tenha um prazer enorme, mais é
uma tarefa honrosa que deve ser feita.
Era Valéry quem dizia que a inspiração se coloca na hora sobre a mesa de trabalho, não existe outra forma. O
primeiro verso é dado por Deus, e os outros resultado do trabalho. É uma tarefa, e mais que isso, é uma tarefa adorável como
toda tarefa. Ao invés de fabricarmos ferramentas, nós fabricamos palavras. Perde-se a angústia, o prazer (não o grande
prazer), mais eu diria que é um contentamento da expressão.
PERGUNTA: Seria esta a escrita cotidiana?
E. ENRIQUEZ: Sim, mais a escrita é cotidiana , menos temos angústia e menos prazer, menos gozo. Pois não é
nada de excepcional, é o trabalho que fazemos tranqüilamente e o resultado é como o prazer de um artesão que todos os dias
pega seus instrumentos e que não está tão angustiado porque ele sabe o que fazer e ao mesmo tempo, uma mesa não será
como outra mesa. Existe um aspecto inventivo, mas ele não é suficiente.
PERGUNTA: Eu gostaria de falar sobre um outro aspecto do seu trabalho. Você trabalha com alunos do DESS
(especialização), do mestrado e doutorado. Como é a relação com alunos de diferentes níveis?
E. ENRIQUEZ: Bom, é muito difícil distinguir todos esses níveis, mas eu diria que no sentido da expectativa do
trabalho do aluno, do que ele vai fazer, é um desejo global. É que ele seja capaz de argumentar seu pensamento tendo um
certo número de referencias, de livros, de conhecimento, etc, mais podendo apresentar sua própria reflexão mesmo que ela
não seja muito original, mas que o faça de forma coerente e se por acaso não existe essa coerência, que ele possa mostrar as
razões pelas quais ele se encontra nessa ambigüidade, que pensa duas coisas ao mesmo tempo e porque não chega a se
decidir.
Penso que deve mostrar coerência mesmo que se sinta em contradição e possa assim explicar suas contradições.
Por outro lado, o que desejo também é que ele possa falar em nome próprio, quer dizer, ligar o afeto vivido, da
referência a si mesmo não somente pra contar alguma coisa, mas para dizer como ele se situa, se coloca em relação a esta
questão, em que pode mudar.
Não é simplesmente um trabalho de colocação de idéias, mas um trabalho onde a pessoa se situa em relação ao
problema que ela trata.
À medida que progredimos no curso o que pretendemos é cada vez mais ver a originalidade no pensamento, quero
dizer, que ele possa explorar, ir a fundo em problemas limitados, definidos, e aí justamente se aprofundar. No entanto,
quando estamos no começo do curso o que pretendo, o que quero é que possa precisar uma questão a partir de um certo
número de autores, que possa colocar em relação esses autores, relacionar esses autores a algumas pesquisas que já foram
realizadas, por fim, ser capaz de fazer um balanço provisório sobre uma certa questão.
Em um mestrado1 seria isso que esperaria, já em um DESS (mestrado profissional) seria começar a mostrar sua
própria capacidade de pesquisa, de fazer hipóteses, de trabalha-las mais longamente. E em um doutorado seria, não somente
ter as hipóteses, de formulá-las, de ter o local para a pesquisa, mas poder confrontar-se com os resultados.
PERGUNTA: O DESS (especialização - mestrado profissional) para vocês franceses é após o mestrado?
E. ENRIQUEZ: Sim, exatamente. Falar sobre uma questão é ser capaz de definir uma metodologia, problemática e
também coloca-la em andamento, fazer a pesquisa, obter resultados, ver o interesse desses e a conclusão desses
resultados.Eu diria para os estudantes que para poder argumentar, é também preciso poder ser capaz de ver os argumentos
contra, de maneira a produzir textos que não sejam líricos. E preciso ter um pensamento coerente ou ter contradições
expressas de forma coerente.
PERGUNTA: Quer dizer que de uma certa forma, que o pensamento não seja um dogma, mais um ato de pesquisa?
E. ENRIQUEZ: Certamente.
PERGUNTA: Estamos chegando ao fim da entrevista. Você gostaria de dizer alguma coisa sobre sua escrita?
E. ENRIQUEZ: O que posso dizer em relação a minha própria escrita é que eu não aconselharia minha forma de
escrever aos estudantes.
PERGUNTA: Como é sua forma de escrever?
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N.T. O mestrado (maitrise) na França não equivale ao mestrado brasileiro. Lá, trata-se do último ano de graduação, quando
é feita uma monografia.
3
E. ENRIQUEZ: Quando eu escrevo ou quando tento escrever alguma coisa relativamente nova, faço de forma
associativa, como me expressei no exemplo de outrem; penso numa noção central e toda uma série de noções que se
articulam mais ou menos em torno dela, e através disso vejo os resultados. Faço leituras, vou aos textos, tomo novamente
notas, vou aos livros, etc; o que faz com que tenha uma forma de escrever que parece extremamente construida e, que na
realidade se constrói pouco a pouco. Eu diria que esse modo de escrever é relativamente adulto, ou seja, não é meu primeiro
modo de escrever.
Eu não aconselharia pessoas que já escrevem há muito tempo, e já tem o hábito de apresentar as coisas de forma
coerente a se deixarem levar por esse tipo de associação. Corre-se o risco de se deixar levar e de jamais ter um pensamento
coerente. Eu diria que esse é mais o meu modo de escrever atual, diferente de como era há trinta anos.
PERGUNTA: Existe aí uma coisa interessante, uma idéia que é basicamente uma escrita adulta. Quer dizer que
podemos pensar em estado de desenvolvimento da escrita até chegar a escrita adulta?
E. ENRIQUEZ: Sim, eu não tenho uma teoria sobre isso, mas poderíamos trabalhar sobre esse plano. Uma escrita
adulta é aquela que, de modo paradoxal é a expressão das primeiras dúvidas e das primeiras emoções da infância. Dito de
outra maneira, ela está próxima da experiência, da mais intima vivencia, das emoções, dos temores, assim que dos prazeres.
Ela é atravessada e suportada pelo imaginário. No meu caso, quando escrevi meus primeiro textos, repeti certos códigos
admitidos pelo psicossociólogos, eu me referia aos mesmos autores, utilizava as mesmas noções, adotava um modo de
pensar da profissão. Mas, na verdade, isto não é original. São escritos textos claros, sólidos, que são bem recebidos pela
comunidade científica. Mas não se assume risco, pois o pensamento não toma nenhum caminho enviesado. Auxilia-se a
edificar o que outros autores, mais inovadores, já construíram. Esta maneira de escrever (ou de falar, ou de pintar ou ainda de
compor músicas) é típica (existem algumas exceções particularmente talentosos!) de todos os iniciantes que querem ser
reconhecidos pelo seu grupo de pertencimento e, de todos aqueles que, tendo ficado mais velhos, querem conduzir
sabiamente uma carreira acadêmica. Na pintura, Mondrian, Manet no início são inovadores, na música Janacek não o é. E os
primeiro versos de Valéry ou de Breton não são muito interessantes, mesmo sendo bem feitos.
Uma escrita adulta não teme se aproximar do abismo. Ela se lança por caminhos inexplorados. Ela é repleta de
dúvidas, de meandros e também de afirmações. O pintor Nicolas de Stael diz: só há 2 coisas válidas na arte: a fulgurância da
autoridade e a fulgurância da hesitação. A escrita adulta é o testemunho de um pensamento que quer chegar ou a um
impasse ou a caminhos novos. Ela é contra os cânones do academicismo e, por isto, pode ser violentamente rejeitada.
Quando em 1967 eu escrevi “A noção do poder”, e eu introduzi os conceitos da psicanálise para
explorar o problema do poder, eu fui o único na França a escolher esta via. E eu fui violentamente criticado. Atualmente
vários outros sociólogos tomaram o mesmo caminho. Isto se tornou habitual. Utilizar a psicanálise no campo social faz parte
do que Kuln chama “o paradigma normal”. O que não ocorria nos anos 60.
Deste modo uma escrita adulta é uma escrita arriscada, que pode se “consumir”, mas que guarda
nela faculdades de inventividade, de jovialidade e o deslumbramento da infância (não esqueçamos o verso de Woodworth,
tão admirado por Freud: “A criança é o pai do adulto”). Ela vincula entre si coisas, que a priori, não parecem vinculáveis. Ela
manifesta um pensamento “diagonal” (R. Caillois já falava de ciências “diagonais”). Esta escrita pode não ser aceita durante
um longo tempo, mas ela traz uma novidade para o avanço tanto das ciências, como das artes.
ENTREVISTADORES: Nós te agradecemos pela entrevista e pelo conjunto de idéias expostas.
Entrevista traduzida por Teresa Cristina Carreteiro e revisada por José Newton Garcia de Araujo
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