Eu não faltaria a um Seminário por nada nesse

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Eu não faltaria a um Seminário por nada nesse
Segunda-feira, 21 de novembro de 2O11 23h00 [GMT+ 1]
NÚMERO
95
Eu não faltaria a um Seminário por nada nesse mundo— PHILIPPE SOLLERS
Nós venceremos porque não temos outra escolha — AGNÈS AFLALO
www.lacanquotidien.fr
Concetto spaziale, Attese de Lucio Fontana.
“É ao escrever que encontro
alguma coisa. É um fato, ao menos
para mim. O que não quer dizer que se
não escrevesse não encontraria nada.
Mas enfim, talvez não me
desse conta de algo.” Jacques Lacan.
O Seminário – Livro XIX -...ou pire.
▪ NOTÍCIAS DE QUEBEC ▪
▪ lacanquotidien.fr ▪
▪ CORREIO ▪
▪ A SEGUIR ▪
CRÔNICA
▪ ATALHOS por Aurélie Pfauwadel
Nada se opõe à noite
À LA UNE
« Encontro com a história »
por Agnès Aflalo
______________________________________________________________________________
▪ POSIÇÕES
▪
Encontro com a história
por Agnès Aflalo
La guerre sans l’aimer de BHL
Você pode saber
Quem, um dia, não quis saber o que teria feito se estivesse presente no momento crucial
da ascensão do fascismo na Europa, e depois na Segunda Guerra mundial? Olhar
alhures ou fazer face ao acontecimento sem desviar o olhar? Se esconder atrás da
ignorância ou consentir em saber para tirar disso as justas conseqüências? A esta
questão que pode nos assombrar, Bernard-Henri Lévy decidiu responder com um
engajamento ininterrupto, que pode ser assim interpretado: “ você pode saber, se o
desejar”. Uma vez decidido que a democracia é a causa a defender, a filosofia é elevada
à dignidade de uma política responsável: fazer seu lugar no real e não deixar a última
palavra à fatalidade. É o que tornou possível o Acontecimento líbio. Pela primeira vez,
com efeito, o direito de ingerência não é mais uma utopia, mas sim uma realização
concreta. Começou em Benghazi.
Benghazi ou o desejo em ato
Se BHL pode dizer de seu engajamento na Líbia, que é o Acontecimento, o encontro
maior de sua vida intelectual e política, é porque viveu, pela primeira vez, uma vitória em
marcha. De fato, seus atos tiveram como conseqüência evitar o massacre anunciado do
povo líbio, primeiro em Benghazi, e depois mais além.
Como todos os engajamentos que contam, este último de BHL é o de uma escolha
forçada:” a ordem antiga das coisas não deixa escolha...Khadafi e sua corja encerraram o
povo líbio na única alternativa da ditadura e do djihadismo”.
O detonador foi a cena de caça na Líbia em 21 de fevereiro de 2011. No aeroporto do
Cairo, onde estivera por uns dias no coração da revolução egípcia, viu na televisão
imagens da Líbia em que aviões metralhavam a população sem defesa. Estimam-se de
600 a 2000 mortes. A morte administrada em massa não o deixa mais em paz. É a causa
de seu primeiro ato: decide saber o que acontece na Líbia.
As imagens do massacre fazem surgir a lembrança de outro engajamento e de outros
aviões. Trinta anos antes, BHL respondeu ao apelo de Malraux para lutar pelos Bengalis e
impedir a primeira tentativa de genocídio após Auschwitz. Sabe-se também que um
amigo do pai o ajudou a encontrar Malraux, passando-se por seu companheiro da
esquadrilha Espanha.
Após o instante de ver, o retorno de uma lembrança o divide e marca o momento de
concluir. Uma manhã, ao despertar, uma frase se impõe para ele: “Não esperamos
Bernard-Henri Lévy para inventar o Testamento de Deus.” O nome daquele que a
pronunciou retorna então carregada dos véus do recalcamento que suscitam a dúvida.
Depois, a verdade se impõe. É exatamente um jovem beduíno numa tenda, Kadhafi, que
se tornou o guia da Revolução líbia, quem a disse. A frase é então corrigida: “Não
esperamos Bernard-Henri Lévy para inventar o monoteísmo.” O mal-estar provocado
deve-se muito à cólera para provocar o humor. BHL leva isso em conta e decide então ir
para a Líbia. Após o instante da morte sem compreender, é o momento da guerra sem o
amar (c´est le moment de la guerre sans l´aimer). O tempo para compreender começa em
seguida, quando BHL decide extrair um saber daquilo que o afeta, para ele e para alguns
outros. Um desejo decidido, mas não sem uma ética da responsabilidade.
Deus é inconsciente e Lacan pessimista
O que compreendeu nesse instante senão o que o faz duvidar e o divide? Desde sempre,
a insondável decisão do ser o levou a endossar o hábito do cidadão responsável, filho do
século XX. A crítica maldosa não mudará nada disso. A elegância não é marca de uma
vestimenta, e sim da coragem do ato. O retorno da mesma vestimenta sóbria não se opõe
somente àquela mais frívola e cambiante das mulheres. Abriga também o esplendor de
uma posição e a carga de um tormento. É por se fazer reconhecer como o mensageiro do
anjo da História, que a vestimenta irradia sua presença. Mas é também esse hábito
endossado que garante o retorno do mesmo e o leva a estar sempre em movimento e em
todo lugar, exceto no deserto. O deserto é o lugar da exceção, pois é lá somente que
cessa enfim “o demônio de fazer.” Lá somente ele experimenta a satisfação da
embriagues. Como o herói trágico avançando frente à morte, o deserto lhe asseguraria,
como a cada um que aí sucumbe, a mumificação esparramando a degradação do
cadáver, outra figura do cadáver ao avesso.
A vertigem que afeta os que fazem a guerra sem o amar só chega à primeira morte. Com
a exaltação do deserto, a segunda morte será enfim alcançada. Não é o deserto que
marca o destino trágico de homens admirados e que o fascinam, como o avô amado, ou o
filósofo engajado, André Zirnheld, de quem seu pai lhe falou muito cedo? E como se
desfazer do destino que faz com que “ não saibamos ser nós mesmos, senão sendo a
sombra de nossos Pais?” Para BHL, a solução se encontra na ação de um roteiro que lhe
faça destino.
Para interrogar esse nó que encerra Deus, BHL toma a mão de Levinas. No entanto os
sonhos e outros “encontros misteriosos da memória” se impõem com a idéia de que Deus
é inconsciente. A verdade desse real, assim formulado por Lacan, se impõe para ele,
fazendo-o duvidar ao mesmo tempo. Com efeito, como pensar a democracia sem
interrogar o mestre divino e suas prescrições de libido? Conjugar Deus e a democracia
passa, portanto, pela questão sobre os monoteísmos. A dúvida metódica o faz então
vislumbrar duas soluções: pessimista e otimista. O pessimista, o lacaniano nele, diz, com
efeito, que a revolução volta sempre ao ponto de partida. Mas, o incurável da esperança
quer crer no desejo de democracia em cada ser humano, porque tem o poder de repor a
história em marcha. Se aceita-se que o desejo
é, também ele, lacaniano, então
entendemos o uso que um intelectual poderia fazer da dúvida: o álibi de uma covardia
paralisante, e que exalta o outro tanto mais se liga a um saber estéril que expulsa o real.
Para BHL, ao contrário, é o trampolim que o impulsiona à frente de um destino de
combatente que não tem nada de antigo. A aposta no desejo não faz dele um intelectual
lacaniano?
O encontro do homem da pena e do homem do poder
Vencer a tirania necessita uma nota a mais à Servidão Voluntária. Da mesma forma, BHL
contribui com isso desmascarando o que nomeou tão bem como ”o ridículo do tirano.”
Uma vez admitido ser o cômico grotesco que o venceu, o semblante é atravessado e o
tirano aparece como é: um humano tão deplorável quanto o pai UBU.
A série de engajamentos constrói um roteiro do qual BHL destaca os diferentes
momentos. Busca primeiro encontrar aquele que a situação de insurreição transformou
“na pessoa mais importante da terra.” Depois, e mesmo que desconfiado, ele se faz
surpreender e se engana. Um traço permite então identificar o chefe: o olhar de solidão
daquele que afronta a tirania de mãos vazias. Ele deve então se fazer reconhecer por ele
como o mensageiro que lhe falta e apostar que saberá inventar as palavras que acertarão
o alvo. Ainda esta vez, será a repetição do Gueto de Varsóvia que o Ocidente não deixará
cair uma segunda vez. Com sua oferta, consegue criar a demanda de Mustafá Abdeljalil
de que a França reconheça o Conselho Nacional de transição formado naquele mesmo
dia. Para conseguir o ato judicial para impedir o massacre anunciado, ele deve então ser
reconhecido por outro mestre, desta vez detentor do poder.
Decide então apelar ao presidente da República. As dores de cabeça que tem nesse
momento assinalam a tensão que toma conta também de seu corpo, sem, no entanto,
erotizar o tempo que se eterniza e retarda o momento do ato. Os dois homens, sem
dúvida, se conhecem, mas não estão do mesmo lado político. Porem, BHL aposta ainda
no desejo de bem dizer para se fazer ouvir. E as palavras “o sangue manchará a bandeira
francesa”, que o surpreendem também, fazem ressoar a causa justa.
É preciso fazer justiça ao escritor por saber restituir com precisão a prudente coragem do
homem de poder que é o destinatário dessa mensagem. Este também decide
imediatamente que a democracia é a causa a defender e que ele não será o presidente
que deixará o povo líbio morrer. Quaisquer que sejam as críticas a esse presidente, temos
que reconhecer a coragem desta decisão tomada e assumida até as últimas
conseqüências. Um homem político digno desse nome não é aquele que não recua em
tomar decisões, sendo responsável por elas?
Retorno ao pai: uma mulher para além da guerra
O Acontecimento líbio é uma exceção na série de engajamentos precedentes. A história
que começou com um caminhão de distribuidor de legumes, continua com um telefone um
pouco estragado e termina com a história da bandeira. Cada página é a ocasião de dizer
da força de um desejo decidido e o que ele pode conquistar quando não sucumbe à
monstruosa captura do Deus obscuro. Ao contrário de sua irmã, para BHL não é uma
questão de conversão. É muito mais uma decisão de passar a vida a serviço da
democracia para que ela possa vencer a guerra em todos os lugares, inclusive no Oriente
Médio.
A última viagem à Líbia é a ocasião de extrair um pedaço de saber novo. Ele sabe, no
entanto, que caminha sobre as marcas de um pai heróico. Não é porque ele tinha também
a força de não querer agradar ninguém, que escapa à servidão ordinária e providencial de
massacres extraordinários? Mas, a força de BHL não é de demonstrar em ato que essa
morte em massa produzida pela ciência e pelo capitalismo não é inelutável, que ela não
sobrevive quando o poder assume ocupar a função política?
A primeira lição de La guerre sans l´aimer é que é possível reinventar uma política
responsável, com a condição de dar lugar ao desejo. A criação da democracia deve então
também levar em conta a erotização do tempo lógico de cada povo. A segunda lição que
podemos ter do Acontecimento é a escolha do destino do homem de desejo. BHL
consente também em saber que, além do engajamento na segunda guerra, seu pai tinha
feito outro: casar-se com a mulher desejada se voltasse da guerra. Não é o que o faz
voltar vivo, por ser já aí a guerra sem o amar? De uma mulher à guerra e retorno, o circulo
do desejo se fecha. No intermédio, a democracia o arrebata. É excepcional que um
intelectual decida ser amigo do real. É, sem dúvida, o que aproxima BHL de Lacan. Esse
livro dá uma lição de responsabilidade. Ela merece então ser elevada a um paradigma e
ser transmitida a muitos.
Escola da Causa Freudiana
A Regra do Jogo – Lacan Cotidiano
*
Em 23 de novembro de 2011, de 21h00 ás 24h00
no cinema Saint-German –des- Prés
Conversa com Bernard-Henri Lévy
As Guerras do Século XXI
Soberania e Ingerência
Os Impérios e as Nacionalidades
por ocasião da publicação de seu livro
La Guerre sans l´aimer-Journal d´um écrivain
au coeur du printemps arabe.
A Conversa conduzida por Jacques-Alain Miller
contará com a participação de
Alexandre Adler, Blandine Kriegel, Eric Laurent, Anaelle LebovitsQuenehen, Jean-Claude Milner e Hubert Védrine.
22, rue Guillaume-Apollinaire, Paris 6e
Acolhimento a partir de 20h30 ; início às 21h 00
ENTRADA LIVRE
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▪ CRÔNICA ▪
Atalhos
Por Aurélie Pfauwadel
Nada se opõe à noite
“Afinal, que procuro senão a aproximação da dor de minha mãe, explorando seu
contorno, as dobras secretas, a sombra trazida?” (pag. 47) A narrativa de Delphine de
Vigan abre-se sobre o suicídio de sua mãe Lucile, em 2008, aos 62 anos. Nada se opõe
à noite é um romance autobiográfico (1), grande sucesso do momento, com Limonov,
de Emmanuel Carrère. A autora quer oferecer a Lucile um “destino de personagem”, um
“caixão de papel”, para prestar homenagem à excentricidade singular desta mulher tão
bela e tão frágil – sua foto na capa deixa transparecer esta mescla de beleza e ausência
que atraiu tantas pessoas.
É, antes de tudo, um romance cheio da vida da família numerosa de Lucile, com seus
pais, Liane e Georges, e seus oito irmãos e irmãs, dos quais acompanhamos a infância,
na Paris dos anos 50, e depois, a passagem à idade adulta, com o movimento hippie.
Essa família turbulenta, com seus caprichos, suas refeições acolhedoras, e suas casas de
veraneio estonteantes, suas disputas e alegrias barulhentas, possui sua cota de figuras
notáveis. Liane, matriarca da família Poirier, que teve os vários filhos que queria, não por
isso deixou de ser uma mulher muito original para a época. Georges é um personagem
complexo, no centro do drama: carismático, empreendedor, não se chega a odiá-lo
completamente, conforme o retrato que faz dele Delphine de Vigan. Cada um dos filhos
tem também sua densidade própria.
O romance é finamente construído sobre o modelo mesmo desta família: primeiro inicia o
leitor no funcionamento desta inenarrável tribo e na mitologia familiar ( à qual se quer crer
e aderir), e depois, desvela progressivamente a incrível capacidade desta família de
foracluir, de onde explodirão os diversos dramas que a sacudirão. A autora quer explorar o
mito, mas também seu avesso: as mortes violentas, os lutos, as loucuras ordinárias e
extraordinárias de uns e outros.
O suicídio de Lucile ecoa outros e faz número. Através da
escrita, a autora busca a origem do sofrimento de sua
mãe, “como se existisse um momento preciso em que
o âmago de sua pessoa tivesse sido rasgado de forma
definitiva e irreparável”(pag. 85). Segue-se a existência
bizarra de Lucile, sempre no detalhe: menina manequim, muito bonita, que queria ser
invisível para escapar a todos esses olhares (muito reais) que a oprimiam; mãe aos
dezoito anos, leva uma vida boêmia e inventiva com suas duas filhas e seus
companheiros, e nos anos 70, fuma muita maconha para apaziguar suas angústias. Vem
o momento em que a narrativa muda: um acontecimento desencadeador leva Lucile à
loucura, depois ao alcoolismo. “Bipolar”, “sopros delirantes”: o diagnóstico cai como uma
adaga. Dez anos de terreno movediço em que a super dosagem de neurolépticos reduz
Lucile a ser somente a sombra de si mesma, um fantasma mudo e estranho à vida. Muito
próxima do abismo, Lucile tem um renascimento, ao encontrar enfim um médico que
percebe “a exata medida de seu desastre interior” (pag. 355).
31 de janeiro de 1980: dia em que Delphine foi expulsa da infância, dia do primeiro delírio
de sua mãe.É desse momento de desarvoramento e de exílio que a autora data sua
necessidade de escrever: “houve nesse momento um confronto brutal entre o real e a
ficção (aquela que minha mãe inventou) e para mim o início de uma necessidade
imperiosa de escrever para que as coisas tivessem uma consistência, encontrassem uma
forma de estabilidade, para que algo se opusesse à vertigem.” (2)
Para minha grande surpresa, o nome de Lacan aparece de repente, ao virar uma
página. Ela escreve que, nesse 31 de janeiro, Lucile teria ido ao consultório de Lacan,
exigindo vê-lo. “No momento em que o psicanalista saiu de seu consultório e se
surpreendeu com sua presença, ela se jogou sobre ele e arrancou seus óculos, gritando: ´
Eu os tenho, eu os tenho!´ Lacan bate em seu rosto, a secretária vem imobilizá-la no
chão, antes que os dois a ponham para fora, sem nenhuma assistência .” (pag. 275) Anos
mais tarde, Delphine de Vigam perguntou a sua mãe se esse relato era verdadeiro. “Ela
me garantiu que sim. No fim de sua vida, Lacan recebia pacientes de dez em dez
minutos, cobrando somas astronômicas, e, sofrendo de um câncer que não tratava, não
fazia muito caso deles. Não mais que de uma mulher que surgiu em seu consultório em
plena crise de delírio. Eis o que Lucile me disse. Nunca verifiquei essa versão. Eu
acreditei nela.” (pag. 276)
Que decepção que este romance – do qual, aliás, gostei bastante – que é sucesso nas
livrarias, se faça assim o eco distante do “argumento do atentado à integridade física e
moral“ de Lacan no fim de sua vida (Agnès Aflalo, LQ 92, sobre o processo contra ER, e
a tentativa de “hold up”, que o ensino de Lacan teve novamente). É preciso reconhecer
que trata-se aí de uma opinião em parte passada no “disque ourcourant’ sobre Lacan, a
mesmo título que a avidez do ganho, e outra idéias recebidas, que o último Diable
probablement
“Pouquoi Lacan” propõe analisar. Quanto a ER, é uma lógica
imaginária do “ou eu ou ele” que está em jogo: ou é ela que não entende nada do último
ensino de Lacan, ou é ele que “delirava” (palavra que se encontra sob sua pena); o que
se traduz hoje por: ou bem meu Lacan, ou bem o de Miller. ER fez a única escolha que
lhe permite ser: ser “Elisabeth Roudinesco, a grande especialista do ensino de Lacan”,
que se crê assim apta a julgar o estado físico e mental do velho senhor. De uma maneira
geral, as pessoas tem um grande júbilo em dizer de um psi que ele é “louco”,
principalmente se trata-se do maior teórico das psicoses.
Quanto a Delphine de Vigan é outra coisa: ela tem algumas razões para
requerer dos psis que ela julga responsáveis (e, sem dúvida, não
completamente sem razão), por sua incompetência, em relação ao estado
abominável em que sua mãe ficou durante dez anos. Ela inscreve Lacan na
série dos que a deixaram cair. Nada a leva a anular essa versão: ela
prefere acreditar em sua mãe, de quem reconhece, no entanto, estar naquele dia ”em
plena crise de delírio” ( sabemos não ser raro que sujeitos paranóicos acusem o Outro
perseguidor de ser louco). Lucile, perseguida pelo olhar, se joga sobre os óculos de
Lacan, e acusa em seguida, sem dúvida num discurso invertido, aquele que ela vigiava de
lhe ter feito “un oeil au beurre noir”.
É certo que Delphine de Vigan faz Lacan sem saber: ela propõe uma teoria da
verdade mentirosa. Nada mais lacaniano. Na esperança de estabelecer a verdade sobre
sua mãe, ela vasculhou, conduziu sua enquete, e recolheu um material disperso ( os
escritos de Lucile, horas de gravação deixadas por Georges, velhos filmes, testemunhos
dos irmãos, dos amigos, relatórios de polícia...) “Sem dúvida, eu esperava que dessa
estranha matéria se extrairia uma verdade. Mas a verdade não existia. Eu só tinha
pedaços esparsos, e o fato mesmo de ordená-los já constituía uma ficção. O que quer
que eu escreva, estarei na fábula.” (pag. 47) A partir do momento que contamos, diz ela,
mesmo buscando estar o mais próximo do que se passou, estamos na ficção. Entre a
verdade e a fábula, abre-se o espaço da literatura. A autora renuncia a cernir Lucile em
si : esse romance é sua verdade sobre Lucile, e tenta dizer o mistério que essa mãe
sempre foi para sua filha.
(1) Editado por JC Lattès, outubro de 2011, 437 pags. 19 euros.
(2) Entrevista de Delphine de Vigan sobre “Rien ne s´oppose à la nuit”, Chroniquedelarentréelittéraire.com
▪ NOTÍCIAS
DE QUEBEC ▪
Nossa colega Anne Béraud, de Montreal, nos envia a carta a seguir, de
sua iniciativa, e assinada por mais de 150 profissionais.
A propósito do projeto de regulamentação da licença de psicoterapeuta.
Ao Presidente de l´Office des Profesions du Québec
Montreal, 10 de novembro de 2011
Senhor
Perguntamo-nos, e o fazemos compartilhar nossa inquietação, no âmbito do Projeto de
regulamentação da licença de psicoterapeuta, a respeito do ponto 3 da Seção III “ Das
obrigações de formação contínua”, pag. 4447 da Gazette Officielle du Québec, de 5 de
outubro de 2011, ano 143, n.o 40.
Está indicado:
“3. O médico ou psicólogo que exerce a psicoterapia e o titular da licença de
psicoterapeuta, devem acumular ao menos 90 horas de formação continua em
psicoterapia em um período de 5 anos.
O médico deve escolher as atividades de formação contínua entre aquelas previstas no
programa de formação continua em psicoterapia adotado pelo Collège des Médicins du
Québec.
O psicólogo e o titular da licença de psicoterapeuta devem escolher as atividades de
formação contínua entre aquelas previstas no programa de formação contínua em
psicoterapia adotado pela Ordre des Psychologues du Québec.”
Assim, nada está preciso a respeito do “programa de atividades de formação contínua em
psicoterapia” adotado pelo Collège des Médicins nem pela Ordre des Psychologues de
Quebec, tampouco quanto ao processo de implantação desse programa. O quadro que
baliza a escolha dessas atividades de formação contínua não é claro nesse ponto. A partir
de quais critérios, quais imperativos, se basearão o Collège des Médicins e a Ordre des
Psychologues de Quebec, para adotar as atividades que serão reconhecidas como de
formação contínua em psicoterapia? Deploramos que a Ordre des Psychologues e o
Collège des Médicins detenham o monopólio das atividades desta formação.
Exercendo a Psicanálise, nossa prática profissional foi incluída na Lei 21. Pedimos agora
que nossas atividades de formação contínua, próprias à Psicanálise, sejam reconhecidas
e levadas em conta. Os psicanalistas dispõem de seus lugares específicos de formação
(Associações locais e internacionais, Escolas, Sociedades, Institutos) que dispensam
formações apropriadas ao exercício da Psicanálise. A formação de psicanalista,
necessitando uma formação permanente por definição, não deve ser redobrada por uma
formação contínua dispensada pela Ordre des Psychologues de Quebec.
Os psicoterapeutas de orientação psicanalítica, bem como os estudantes que querem se
orientar pela Psicanálise, estão igualmente preocupados com o que será creditado pela
OPQ como formação contínua aceitável, e desejam, eles também, ter acesso às
formações especificamente ligadas à Psicanálise.
Assim, face ao teor desse artigo do regulamento, e frente ao risco de que o programa de
atividades de formação contínua adotado pela OPQ (a quem o regulamento dá toda
liberdade) se revele muito restritivo, inclusive pouco pertinente para nossa prática de
psicanalista e de psicoterapeuta de orientação psicanalítica, pedimos o seguinte: 1- que,
antes que o Governo aprove esse projeto de regulamentação, tenhamos acesso àquilo
que o Office des Professions de Quebec, o Collège des Médicins e a OPQ considerem
como a formação contínua aceitável; e 2- que obtenhamos a garantia de que as
formações psicanalíticas sejam reconhecidas como formação contínua.
Consideramos que esses pedidos não contrariam, em absoluto, a Lei 21 que, no ponto
187.3.1, pag. 10 indica:
“O Office, por regulamento, determina:
(...)
O quadro das obrigações de formação contínua que o médico ou o psicólogo que
exercem a psicoterapia, ou que o titular da licença de psicoterapeuta deve seguir,
segundo as modalidades fixadas pelo Conselho de administração do Collège des
Médicins de Quebec e da Ordre professionnel des Psychologues de Quebec, as sanções
decorrentes da falta de segui-las e também os casos de dispensa.”
Agradecendo a atenção a ser dada a este ponto crucial, rogamos, senhor presidente, que
receba nossas respeitosas saudações.
(segue-se a lista de assinaturas)
___________________________________________________________
▪ lacanquotidien.fr ▪
▪ Babel Espanhol - Indignados
Insônia por Anna Aromi
Quero lhes falar dos indignados. Este é o nome que os meios de comunicação deram aos participantes do
movimento do 15-M. Estes cidadãos que tiveram o mérito, não menor, de devolver o uso e a memória às
praças deste país, recordando-lhes que, não por casualidade, nasceram ágora, forum, praça do povo.
Mas, não apenas isto, estes cidadãos lograram também vivificar esta famosa e tão
maltratada “memória histórica”, a partir de situar-se nela, na história. E o fizeram,
convocados por um mal estar, por um impossível de suportar, que elevaram à categoria
de sintoma. (…) Ler o artigo.
Babel Italiano - Eu sou Li
Eu sou Li por Céline Menghi
Brincamos com o equívoco no título do filme de Andrea Segre: Eu sou Li [Eu estou ali].
Se acentuarmos o "i", podemos imaginar alguém que, indicando um lugar preciso, diga:
eu estou ali. Se, ao contrário, retirarmos o acento, podemos evocar o li da língua chinesa.
O equívoco libera do sentido único e abre a diversas significações. É o que acontece na
história de Shun Li, uma história líquida, é o caso de dizer li-quida, como muitas
histórias de imigrantes. (…) Ler o artigo.
▪ Babel Italiano - O véu negro do pastor de Romeo Castellucci
Ou o indizível como evento de corpo por Francesca Carmignani
Começa. Um rumor ensurdecedor de máquina: para Castellucci “a pura função”, o puro
fazer. No limite do suportável, tende a provocar um evento de corpo em quem assiste,
"sensações que tocam os centros nervosos do espectador". Não voz, mas barulho. Um
barulho prototípico e distorcido, som que não chega nem à alíngua, visto a ausência de
significante. Depois, às aparições dos cadáveres do homem com o véu e do animal
quadrúpede, segue o corpo de uma mulher e, ao fundo, desta vez, uma voz, sem
palavras, gemidos femininos. Indistinguíveis se são de prazer ou sofrimento, portanto o
auge do gozo. Love song é o único significante presente, saindo das cortinas e destinado
a desaparecer na fumaça, denunciando o engano da palavra amor. (…) Ler o artigo.
▪ CORREIO
▪
Jacques-Alain Miller em Lille - Sequências . “Há uma frase de Lacan que constituiu
para mim um verdadeiro guia de seu ensino: “As verdades são como sólidos.” Que quer
dizer sólidos? As verdades não são como superfícies. Não estamos na lógica da
representação, nem da contemplação, onde podemos ver a verdade toda, de uma vez.
Isso quer dizer que para vê-las, precisamos de tempo, o tempo para lhes dar a volta. E o
saber leva tempo. As verdades sólidas tem mais a ver com a experiência.”
Pergunta da platéia: ”Com que Lacan gozava?”
Resposta de JAM: “Lacan não praticava o preceito da sabedoria antiga: Ne quid nimis,
nada a mais. Ele estava do lado do mais. Ele transbordava. Mas ao mesmo tempo,
respeitava os limites. Sabia portanto como não ir tão longe. Se teve algum acidente, não
esmagou ninguém. Morreu em sua cama.”
Propostas relatadas por Jean-Claude Encalado.
Michèle Manceaux nos manda esta informação:
Síria: As mulheres, essas heroínas...
Na Síria, mulheres e homens desejosos de justiça, de democracia e de igualdade lutam
pacificamente contra o despotismo desde março de 2011. Uma particularidade de sua
revolução é a presença marcante de mulheres em seus comitês de coordenação e ações
de sustentação culturais e artísticas. Mas, elas pagam um preço alto por isso: a repressão
insustentável do regime local, que se abate sobre todos os cidadãos, as visam
particularmente: tortura, execuções, violações...
As mulheres são igualmente usadas como “armas de guerra” para pressionar seus
familiares ou incitar os homens próximos a se renderem ou capitularem.
Para lhes testemunhar nossa solidariedade, o FFM – Fonds pour les Femmes em
Méditerranée - Associação Souria Houria, com o apoio de Fatima Lalem (Adjointe au
Maire de Paris, encarregada de igualdade Homens/Mulheres) convidam a todos para um
debate:
Qual lugar para as mulheres na revolução síria?
29 de novembro, as 19h30
Mairie do 3.o arrondissement
2, rue Eugène Spuller, 75003 Paris. Métro Arts et Métiers, Temple
Com a presença de
Samar Yazbek, escritora e romancista, Basma Kodmani, pesquisadora, Diretora do Arab
Iniciative Reform e membro do CNS – Conselho Nacional Sírio. Moderadora: Nadia
Aissaoui, socióloga e membro do Conselho do FFM.
Moderadora: Nadia Aissaoui, sociologue et membre du Conseil d’administration du Fonds
pour les Femmes en Méditerranée
O debate será em francês. A intervenção de Mme Samar Yazbek será em árabe com tradução
para o francês. Para as inscrições, favor enviar e-mail
para : [email protected] http://www.facebook.com/event.php?eid=272318579470390#
Victor Rodriguez – Cacofonia!
O vento de Autan sopra em Toulouse este sábado à noite e nos arredores do teatro
Garonne, um dispositivo policial imponente está instalado. Da praça Esquirol à praça
Saint-Cyprien, há grupos de guardas móveis super equipados, tipo Exterminador. Pois
aqui, como em Paris, Rennes e Villeneuve d´Ascq, o Instituto Civitas e FJC (France
Jeunesse Civitas), se manifesta contra o espetáculo de Rodrigo Garcia, “Golgota Picnic” e
o de Roméo Castellucci.
A preocupação é visível no diretor do teatro Garonne, Jacky Ohayon, andando na calçada
com seu celular em grandes passadas. A alguns metros, a multidão de “contramanifestantes”, dos partidos de esquerda e de várias organizações de defesa dos direitos
do homem, se aglomera na porta do teatro. Panfletos a favor do aborto e do uso de
preservativos são distribuídos. Um alto-falante faz ouvir a música “On lâche rien”.
Rapidamente, toda a avenida do Château d´Eau é invadida por um cortejo compacto, bem
decidido a “ne rien lâcher”.(“não deixar barato”).
Na pont Neuf, do outro lado da Garonne, uma faixa, com o slogan, que não pode ser mais
claro, diz: “a França é cristã e deve continuar assim”. Os símbolos também estão lá: a
cruz, as bandeiras com as insígnias da Ação Francesa. Tudo ao som cadenciado dos
tambores em azul real. O grande clássico? Sim, mas bem formados nas técnicas da
internet 2.0, se julgamos pelos ataques por e-mail que as direções dos teatros sofreram
nos últimos meses. Lê-se, nos blogs das organizações fundamentalistas cristãs, entre
outras mensagens: “essas manifestações são autorizadas”, e pensamos, por dois
segundos antes de nos retomarmos, “o contexto eleitoral, sem dúvida”, garante? Não,
decididamente!
Se os rostos dos manifestantes contra a “cathofobia” estão sorridentes, eu não posso
deixar de achar esse desfile sinistro e lúgubre. Eu nunca tinha visto até então, esses
símbolos se manifestarem em Toulouse, ou em outro lugar. Esse sábado á noite, esses
símbolos de outro tempo mexeram, de fato! Um pouco como se fotos de livros de histórias
fossem animadas. “É da época,” me diz Jacky Ohayon. É verdade. Mas, de qual época?
Ou melhor, pois vemos bem a manobra desse integrismo, revirando como uma luva a
“liberdade de expressão” em reação, que pretende restaurar a arte “verdadeira”(para
ficarmos só na questão da arte...), a que leva ao bem e ao belo. É assim que uma jovem
me aborda com um dos slogans da noite: ”A arte leva o espírito ao belo”. Não, senhora, a
arte leva hoje ao objeto, e é, sem dúvida, o que dá seu valor para esclarecer a condição
do falasser no século XXI.
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▪ A SEGUIR ▪
▪ Dossier « Inventions + Institutions »
À paraître mercredi prochain : « Une initiative pas tout à fait comme les autres : l’Institut
Hospitalier Soins Études d’Aubervilliers (I.H.S.E.A) », par Yves-Claude Stavy.
Lacan Quotidien
Publicado por navarin éditeur
INFORMA E REFLETE 7 DIAS EM 7 A OPINIÃO ESCLARECIDA
▪ comitê de direção
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Tradução: Cássia M. R. Guardado
Colaboração: Mª Cristina Maia Fernandes (espanhol) e Mª do Carmo Dias Batista
(italiano)

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