entre o coração e a razão

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entre o coração e a razão
HUmbOlDT 106
A EDUCAÇÃO —
ENTRE O CORAÇÃO
E A RAZÃO
UmA pUbliCAÇÃO DO GOEThE-INsTITUT
Humboldt 158 / A EDUCAÇÃO – ENTRE O CORAÇÃO E A RAZÃO
Editorial Ulrike Prinz e Isabel Rith-Magni 3
Guillermo Hoyos O ideal da formação humanista 5
Jorge Volpi A máquina de emoções 7
Cristina Peri Rossi O gozo integral 9
Matthias Kross Meu cérebro sente? 11
Ute Frevert Como educar o coração 15
Juan Antonio Flores Martos Turbulências do desejo e da emoção 18
Wolfgang Frühwald De quanto saber precisamos? 21
Janna Degener Falar mais de um idioma nos torna inteligentes? 25
Manfred Spitzer Educação sem sistema 28
Sérgio Branco Razão e sensibilidade na sala de aula 33
Rilo Chmielorz Oxford em Madri 36
Rosa Tennenbaum Formação do belo caráter 39
Marcelo da Veiga Quanto espírito é necessário na educação? 43
Victoria Eglau “Nossa orquestra é um tesouro” 46
Sibylle Lewitscharoff Formação cultural 49
Rike Bolte Leituras em domicílio e outras pontes para a alfabetização 52
Ulrike Prinz MARIPOSA, ou o poder transformador da arte 55
Wolfgang Behrens Confissões íntimas 57
Ricardo Bada Mafalda vai à escola 59
Björn Kuhligk E Rito Ramón Aroche transversalia 61
Miguel Giusti Cultura da tolerância. Cultura do reconhecimento 64
Mariangela Giaimo Antígona oriental 67
Guillermo Calderón Terremoto em Düsseldorf 70
Frieder Reininghaus Tributo ao rei asteca 72
Mark Münzel Prototexto no armário 75
Anne Huffschmid “Ver e crer” 78
Berthold Zilly ENTREMUNDOS 80
EXPEDIENTE 82
Humboldt 106
Goethe-Institut 2012
Mark Münzel
Panorama
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Prototexto no armário
Uma contribuição à busca dos mitos genuínos
no ano que lembra os irmãos Grimm
Klara Lidén, Sem título, Poster Painting, 2010. Cortesia da artista e de Galerie Neu (Berlim)
Certa vez um pai deu de herança a seus filhos casacas que
sempre estavam na medida certa, bastando para isso apenas
que se observasse exatamente o corte. Mas eis que as velhas
casacas em pouco parecem fora de moda aos filhos. Por fim
cada um deles tranca sua casaca no armário para de então em
diante se vestir de acordo com a moda, conforme melhor lhe
aprouvesse, e só a tira de lá quando quer invocar a autoridade
do pai. É sabido que com essa sátira publicada em 1704,
Jonathan Swift se refere à invocação da palavra bíblica sem
uma literalidade exata. Aleida Assmann (1997) também a lê
como testemunho de um temor moderno desde então crescente
de perder a herança original dos ancestrais. Nós sabemos que
perdemos o prototexto.
De modo semelhante procuramos, também em fábulas e mitos,
a autenticidade no entanto há tempo desvanecida. Escrituras
sagradas, mitos envolvidos pela aura do sagrado e fábulas
profanas se assemelham nesse ponto: uma vez que são ancestrais,
são veneradas, mas também necessitam de constante renovação.
Mark Münzel
Prototexto no armário
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Goethe-Institut 2012
Antes dos irmãos Grimm Em 1697 o escritor francês Charles
Perrault publicou seus Contes de ma mère l‘Oye, que teria ouvido
da tradição popular. Ele os adequou ao gosto da época, e assim
Le Petit Chaperon Rouge (Chapeuzinho vermelho) era lido no
século XVII como a sedução de uma camponesinha por parte de
um nobre. A edição de Perrault de 1964 menciona antecessores
de várias das fábulas em obras ainda muito mais antigas, como
por exemplo Cendrillon (A gata borralheira), que teria sua origem
no poeta napolitano Giambattista Basile.
Entre 1760 e 1765 surgiram as canções do bardo gaélico
Ossian, do século III. Quando mais tarde se percebeu que elas
eram em sua maior parte do poeta escocês James Macpherson,
do século XVIII, já haviam ocasionado uma moda de poesia
ancestral. Seu estilo (analisado pelo historiador da música
James Mulholland em 2009) se adequa à corrente literária do
sentimentalismo inglês que imperava à época e que precedeu
o movimento alemão Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto).
Este é o segredo do sucesso do poeta: ele está em consonância
com a tendência atual, mas sugere originalidade, e muda de
modo aparentemente espontâneo da forma passada para o
presente ou intercala exclamações.
Ossian deixou o Goethe do Sturm und Drang impressionado:
Werther lê seus versos a Carlota. Goethe passou a prestar
atenção em Ossian por indicação de Johann Gottfried Herder,
que se interessava por canções populares e fábulas. Herder
não dava importância ao caráter genuíno e primevo, mas
escreveu ele mesmo novas fábulas no estilo das antigas. Nisso
foi seguido por outros poetas do princípio do século XIX (mas,
ao contrário do que aconteceu com Macpherson-“Ossian”, eles
se revelavam em sua condição de autores): Clemens Brentano,
Achim von Arnim (foi por intermédio deles que os irmãos Grimm
começaram a se entusiasmar pela poesia popular), Goethe,
Adelbert von Chamisso. Nesse contexto, os irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm publicaram, entre 1812 e 1815, seus “contos
infantis e domésticos”, não criados, mas sim reunidos por eles e
hoje conhecidos como “os contos de Grimm”.
As pessoas que lhes contavam as fábulas eram, em parte,
elas mesmas colecionadoras cultas de fábulas (conforme
Bernhard Lauer, especialista nos irmãos Grimm, deixa claro). A
mais importante entre elas foi Dorothea Viehmann, uma cidadã
burguesa empobrecida, de origem francesa, que na condição
de calvinista fiel à Bíblia estava vinculada a uma cultura mais
livresca, e que deve ter repassado aos irmãos Grimm algumas
das fábulas do livro de Perrault.
Estas insinuam um tom popularesco – provavelmente
também em razão de uma consciente elaboração literária.
Existiam então meios estilísticos de evocar o ancestral, em
palavras ou nas ruínas artificiais muito apreciadas na época. O
fato de um poeta retrabalhar antigos textos parecia antes um
enobrecimento do que uma falsificação. Não se estabelecia
ainda fronteiras nítidas em relação à beletrística. Apenas na
segunda metade do século XIX é que começou a se exigir aos
poucos uma fidelidade maior ao texto.
não da era ancestral oral, mas sim a partir de sua reprodução
literária, na maior parte das vezes feita na Antiguidade tardia.
E justamente na mais antiga fonte dos mitos gregos, Hesíodo, a
investigação crítica encontrou influências especialmente nítidas
da literatura do Oriente Médio. “Zeus e os deuses restantes
jamais voltaram a se recuperar completamente de Homero”,
escreveu Jacob Burckhardt – mas não conhecemos fontes mais
autênticas. Dependendo do objetivo, os mitos eram escolhidos e
modificados: raramente um poeta antigo narra um mito inteiro,
escreve Carlos García Gual (1999), especialista espanhol em
Grécia antiga, pois ele pressupõe que seus ouvintes já conhecem
o mito, e quer apenas lembrar dele a fim de em seguida destacar
o que lhe interessa especialmente no momento. Paradoxalmente,
deduz-se muitas vezes do fato de conhecermos o mito apenas
a partir de versões individuais e variáveis que antes disso ele
era coletivo e invariável, de modo que sua transformação foi um
acréscimo posterior.
A beletrística nos antigos mitos Transmitir a tradição
significa revisá-la. Conhecemos até mesmo os antigos mitos
Panorama
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Depois dos irmãos Grimm a busca da distância Na
época em que os contos de Grimm se tornaram populares na
Europa, viajantes se puseram a caminho para encontrar histórias
semelhantes também fora da Europa. Essa pesquisa seguiu dois
quadros de busca tipicamente europeus: as fábulas e sagas que
haviam sido acabadas de ser coletadas (especialmente influentes
nesse sentido foram os contos de Grimm) e os antigos mitos, que
já há muito serviam de fonte sempre renovada para a literatura.
Esperava-se então encontrar histórias tradicionais genuínas
e ancestrais, contadas adiante coletivamente de geração em
geração, ou seja, o contrário da literatura escrita artificial e
refinada individualmente que caracterizava o presente. Mas
mais uma vez não se encontrou o prototexto.
Embora várias sociedades fora da Europa não possuíssem
uma cultura escrita até o século XX, já no princípio da pesquisa
etnológica dos mitos, no século XIX, muitos povos marginais,
inclusive, já haviam tido contato com sociedades possuidoras
de escrita. E os pesquisadores raramente eram os primeiros
entre aqueles povos, seu ponto de partida eram por exemplo
as estações missionárias. Os habitantes destas no princípio não
costumavam ler romances europeus, mas mantinham contato
com missionários e comerciantes, que usavam componentes
da cultura escrita (como citações e histórias bíblicas, parábolas
e provérbios) – sem contar os índios norte-americanos de
formação escrita como George Hunt, o contador de mitos
e colaborador do etnólogo Franz Boas: ainda que fosse um
kwakwaka’wakw, mas filho de um inglês e de uma tlingit, ele se
situava (mais ainda do que a contadora de fábulas dos irmãos
Grimm, Dorothea Viehmann, que se encontrava entre a origem
francesa e o nascimento alemão) entre diferentes culturas. Além
disso, os mitos podiam ser registrados apenas após ter sido
superada a barreira linguística, portanto depois de um contato
mais estendido, e a pesquisa muitas vezes se apoiava em
cultural brokers, que sabiam redigir longos textos a mão ou ditálos ao microfone mais tarde. Isso não quer dizer que os textos
registrados não representassem mitos indígenas, mas sim que
neles o que é “autêntico” e o que é “literário” mal pode continuar
sendo distinguido.
Mark Münzel
Prototexto no armário
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Etnólogos fazem relatos acerca da flexibilidade dos mitos
a partir de numerosas sociedades não europeias. Vivenciei um
exemplo evidente para “a language of argument, not a chorus
of harmony” (“uma linguagem de argumento, não um coro
de harmonia”, Edmund Leach 1968) em 1968, na aldeia dos
Kamayurá, no Brasil Central, onde há anos se costumava contar
mitos a etnólogos, mas não como dessa vez, quando justamente
uma mulher contou sobre a mulher ancestral que foi a primeira
a ensinar a relação sexual aos homens. Ousada, ela contou sua
história enfrentando os homens, que procuravam perturbá-la
fazendo caretas e dando gargalhadas. Ela destacava de modo
cada vez mais zombeteiro a compreensão lenta do homem, que
só bem mais tarde entendeu o que era de fato importante no
amor; sua versão era uma resposta aos homens em torno dela.
dizer espontâneo – isso não passa de uma ilusão!
Pesquisadores não colecionam mitos inventados, mas por
certo mitos transformados. É claro que eles já existiam antes,
mas não na forma em que são apresentados nas narrações
iniciadas pelo pesquisador, conforme o antropólogo espanhol
Manuel Gutiérrez Estévez (2003) deixa claro. O pesquisador
sentase por assim dizer ante um depósito no qual conteúdos
míticos estão armazenados como matéria bruta, que o contador
de mitos retira em seguida e conta como mitos. Em outras
situações, a forma bruta é transformada de modo diferente,
por exemplo em um ritual, um ensinamento às crianças ou em
artesanato. Isso lembra a adequação multifacetada que García
Gual destaca nos mitos antigos.
Desde sempre aqueles que transmitiram mitos e fábulas
também os transformaram. Retoques da moda, no entanto, não
representavam uma suspensão do respeito (ao contrário do que
acontece na sátira de Swift). A alegria de narrar tipicamente
humana acrescenta sempre algo novo a mitos e fábulas. Os
irmãos Grimm não foram apenas colecionadores de fábulas, mas
também seus habilidosos revisores e reorganizadores. <
As dificuldades da literalidade
Ainda que os
pesquisadores já a partir do século XIX cada vez mais
tenham colocado o bom estilo em segundo plano diante da
reprodução literal de textos registrados, eles mal dominavam
a língua indígena antes do século XX, e por isso dependiam de
intérpretes. Estes inseriam seu próprio estilo e muitas vezes
também seus próprios conteúdos nas narrativas.
Em 1876, Couto de Magalhães publicou narrativas de
índios da Amazônia que ele havia registrado com todo o
cuidado filológico em língua geral. Esta era uma língua muito
espraiada na região do Amazonas, embora nem sempre a língua
materna, mas em parte apenas língua franca entre os índios do
Amazonas e os colonizadores. Algumas das histórias de antemão
já eram traduções, portanto, e provavelmente já adequadas
estilisticamente com liberdade, de acordo com o modo como
se achava que o pesquisador queria ouvi-las. Embora este
então tenha traduzido os textos literalmente, acabaram sendo
inseridas nele também suas próprias noções. E assim ele, que
em seu entusiasmo romântico tardio via o mundo dos índios
da Amazônia próximo da Idade Média romantizada, traduziu
determinada palavra por “vassalo”, que de resto normalmente
era traduzida por “escravo” – provavelmente porque ele próprio
preferia pensar na devota Idade Média a pensar na época das
pouco devotas caças a escravos. Ele também retocou o estilo
ao, por exemplo, evitar repetições de palavras com as quais se
queria representar conscientemente a monotonia (por exemplo
durante uma viagem). Com isso, ele não pretendia, ao contrário
de Ossian, sugerir uma oralidade ancestral, mas sim convencer os
leitores beletristicamente instruídos da alta qualidade dos textos.
Apagando fronteiras Quando gravamos fábulas e mitos
“autênticos”, não seguramos nosso microfone discretamente
junto ao fogo do acampamento ante o qual os antigos contam
espontaneamente, mas sim gravamos os mesmos mitos em uma
situação de exceção criada por nós: colocamos o contador de
mitos diante de nosso microfone, depois de encontrarmos um
lugar acusticamente adequado, na maior parte das vezes um
pouco longe do movimento. Este lugar é, muitas vezes, a própria
cabana do pesquisador, hoje em dia não raramente inclusive seu
escritório. A iniciativa de contar mitos na maior parte dos casos
parte do pesquisador. Gravar um mito intocado e por assim
Panorama
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O presente texto se baseia em um texto anterior que em
2010 foi editado na publicação em homenagem a Peter Gerber
(publicação em CD, Völkerkundemuseum da Universidade de
Zurique). O texto foi retrabalhado e adaptado pelo próprio autor.
Copyright:
Goethe-Institut e. V., Humboldt Redaktion
Dezembro 2012
Autor:
Mark Münzel, etnólogo, estudou Etnologia, Antropología Cultural
da Europa e Romanística em Frankfurt do Meno, Paris, Coimbra
(Portugal) e Recife (Brasil). Entre 1989 e 2008 foi professor
universitário em Marburg. Dedicou muitos anos à pesquisa das
sociedades indígenas do Brasil, Paraguai, Peru e Equador.
Tradução do alemão:
Marcelo Backes
Informações adicionais sobre a ilustração:
Klara Lidén (1979, Estocolmo), artista sueca estabelecida
atualmente em Berlim, trabalha com instalação, performance e
vídeo. Para seus Poster Paintings, ela cola pedaços de cartazes
uns sobre os outros. Desses achados urbanos, surge assim um
“arquivo ilegível da cidade camuflado de quadro monocromático”
(monopol). Essas esculturas em relevo surgidas da superposição
de camadas coladas são, segundo a crítica de arte Elke Buhr,
“símbolos de uma história que deve ser preservada mas não
é visível”; desse modo oferecem uma referência visual às
questões colocadas por Mark Münzel a respeito do prototexto,
sua legibilidade e a possibilidade de ser reconstruído.
Humboldt 106
Goethe-Institut 2012
A educação –
entre o coração e a razão
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EXPEDIENTE
Redação:
Isabel Rith-Magni
Ulrike Prinz
© Goethe-Institut
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do Goethe-Institut
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Revisão de textos:
Laís Helena Kalka
Arte gráfica:
QWER:
Michael Gais
Iris Utikal
Marcos Tonon
ISBN 0018-7615
2012/Número 106/Ano 53
Para cualquier pregunta sobre las suscripciones,
diríjase por favor a [email protected]
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Os artigos nem sempre expressam nem coincidem
plenamente com a opinião da redação.
Capa:
Pablo García López (*1977) “PET Soul Butterflies”, 2009
Cortesia do artista (http://pablogarcialopez.com)
Pablo García Lopez (1977, Madri) estudou Biologia e doutorouse em Neurologia em Madri. Obteve o título de Master of Fine
Arts no Maryland Institute College of Art. Em sua série PET, ele
remete a Ramón y Cajal (1852–1934), neurologista, patologista
e histologista espanhol segundo o qual “todo homem pode ser,
se assim se propuser, escultor de seu próprio cérebro” (1923), e
para quem os neurônios eram “borboletas da alma”: “Como os
entomologistas na procura das borboletas brilhantes e coloridas, minha atenção é captada, no jardim florido da substância
cinzenta, por células com formas delicadas e elegantes, as misteriosas borboletas da alma, cujo bater de asas poderá um dia –
quem sabe? – esclarecer os segredos da vida mental” (1923).