LEIA O 1º CAPíTULO

Transcrição

LEIA O 1º CAPíTULO
Chamava-se Solar da Fossa – Solar, para os íntimos. Alguns desses
moradores, nem todos ao mesmo tempo, eram Caetano Veloso,
Gal Costa, Paulo Coelho, Paulinho da Viola, Paulo Leminski, Tim
Maia, Maria Gladys, Betty Faria, Ítala Nandi, Antônio Pitanga, Zé Kéti,
Gutemberg Guarabyra, Abel Silva, Cláudio Marzo, Mauro Mendonça,
Naná Vasconcelos, Adelzon Alves, Darlene Glória – a lista não precisaria
ter fim. Nenhum outro endereço no Rio, em qualquer época, concentrou tanta gente que, um dia, atuaria de forma tão decisiva na cultura.
Nenhum outro endereço no Rio, em qualquer época, concentrou tanta gente
que, um dia, atuaria de forma tão decisiva na cultura. Não que eles já fossem
o que logo se tornariam. Ao contrário, estavam quase todos apenas
começando – e é isso que torna a história ainda
mais excitante.
Toninho Vaz
Alguém precisava
resgatar essa história
Solar
Fossa
da
Toninho Vaz
ara melhor entender e apreciar o
fenômeno da contracultura brasileira, o Solar deveria ir para a lâmina do microscópio.” Essa tarefa foi brilhantemente cumprida
pelo autor deste livro, Toninho Vaz, escritor,
jornalista e ele próprio uma das figuras que
contribuíram para a consolidação da imagem
do Solar enquanto símbolo da vanguarda e da
efervescência cultural e política dos anos 1960.
Um território de liberdade,
impertinências, ideias e ousadias
A pensão de 85 apartamentos localizada em
Prefácio de Ruy Castro
artistas plásticos – loucos, cabeludos e “desbun-
Botafogo, no Rio de Janeiro, foi o endereço e
o abrigo de poetas, compositores, jornalistas,
dados” que vinham de todos os cantos do país
Ruy Castro
e encontravam ali o jardim ideal para plantar
suas “folhas de sonho” e materializar verdadeiras obras de arte. O local, que hoje é ocupado
por um dos maiores shopping centers da cidade,
foi a sede de um verdadeiro caldeirão cultural
e o cenário de inúmeras histórias engraçadas,
românticas e muito polêmicas.
Mais de quarenta anos depois, Toninho oferece
TONINHO VAZ
nestas páginas imagens inéditas e relatos de
personalidades como Caetano Veloso, Abel Silva,
nasceu em Curitiba, em 1947. Trabalhou em impor-
Maria Gladys, José Wilker, Darlene Glória, entre
tantes jornais, revistas e emissoras de tv do país.
outras, que divertem o leitor ao mesmo tempo
É autor das biografias de dois grandes poetas brasileiros – Paulo Leminski e Torquato Neto – entre
ISBN 978-85-0000-000-0
em que resgatam a memória de um dos períodos
mais importantes da história do Brasil.
outros livros.
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Os anos loucos
A vertigem do Universo
O ano de 1968 foi um divisor de águas – não apenas no Solar, mas no
mundo ocidental. Um fenômeno político urbano que tanto podia agitar
as ruas do Rio de Janeiro, São Paulo ou Praga. Em todos os lugares onde
havia um estudante e um sindicato ativo, respirava-se um clima de revolução civil, com o espocar de greves, protestos e conflitos. Em Paris,
a situação não era diferente. O líder estudantil Daniel Cohn-Bandit,
à frente de uma turba enfurecida, pregava “a imaginação no poder”,
uma vanguarda que tinha seu apreço no valor da própria juventude.
O questionamento de velhos códigos (herança da Segunda Guerra) era
uma tendência mundial. A Guerra do Vietnã, com a inédita cobertura
da televisão, ampliava os clamores por paz e justiça no mundo.
No dia 16 de março, tropas americanas promoviam o famoso
massacre de My Lai, matando 507 pessoas, a maioria crianças e velhos que foram fuzilados e amontoados numa vala comum. Nos EUA,
os assassinatos de Martin Luther King, em 4 de abril, e do senador
Robert Kennedy, em junho, além da insurreição do movimento Black
Power, teriam a ressonância necessária para elevar a temperatura política e social.
No caso brasileiro, quatro anos de ditadura não tinham sido suficientes para definir um caminho (democrático) a seguir e não havia
sinais de abrandamento. Pelo contrário, os direitos civis continuavam
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caindo feito pinos de boliche e os militares se encastelavam no poder
graças a uma sucessão de atos institucionais que engessavam politicamente a nação. O recrudescimento estava para acontecer. Nesse
sentido, o Solar, por abrigar muitos profissionais ativos em diversas
áreas, podia ser considerado um termômetro da política. A julgar pelo
movimento de entra e sai e pelas reuniões acaloradas em alguns apartamentos, estamos falando de um Rio 40 graus. Resumindo, 1968 era o
Ano do Macaco, no horóscopo chinês, mas para muita gente foi também um ano do cão.
Esta era a realidade no país quando o capixaba Rogério Coimbra
alugou um quarto com banheiro no Solar. Aos 21 anos, estava estudando Administração de Empresa na Fundação Getúlio Vargas, onde
fazia política como membro do diretório estudantil. Não teve muita
sorte com a nova morada: foi parar na ala de baixo, na Lapa, quase
ao lado da tal oficina mecânica que, segundo ele, “fazia um barulho
infernal”. Ele morava sozinho e, certa vez, recebeu a visita da mãe,
que passou para conhecer e avaliar o local onde o filho estava morando: “Foi incrível! Minha mãe teve um derrame no olho enquanto
conhecia as instalações do Solar. Foi muito desagradável.” Rogério,
que tinha a atriz Ítala Nandi como musa e objeto de desejo, guarda a
lembrança da convivência com alguns vizinhos ilustres:
Tive o prazer de conversar algumas vezes com o Zé Kéti, que morava no andar de cima. Convivi também com Hélio Oiticica, que
aparecia para encontrar os amigos baianos. Posso incluir nessa lista o Rogério Duarte, de quem herdei alguns discos e a namorada,
Ângela de Andrade, com a qual me relacionei mesmo depois de ter
saído do Solar. Outra amizade nascida nestes dias foi com o Ruy
Castro, que, como eu, gostava de música e de jazz em particular.
Tenho até hoje um disco do Clifford Brown/Max Roach Quintet que
ele me emprestou e eu nunca devolvi.
Além de pessoas interessantes e excêntricas, Rogério garante ter
descoberto no Solar um arsenal de estimulantes, muito além do álco104
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ol e das drogas, pois o principal estímulo vinha de companheiros que
não perdiam um segundo da vida:
Foi no Solar que desabrochou meu potencial de amor e sedução.
Naquele momento acontecia uma mudança brusca dentro de mim,
enquanto o Brasil mudava a vida de seus cidadãos. Ainda hoje lembro a reação quando usei a expressão “bicho” para designar um
colega da Fundação Getúlio Vargas.
Em 28 de março, o cenário político, que já era sombrio desde
1964, entrou em ebulição com a morte do estudante Edson Luís de
Lima Souto, durante manifestação no restaurante Calabouço – o favorito de dez entre dez estudantes pobres. Uma bala disparada pela polícia acertou em cheio o peito do garoto, cujo cadáver foi carregado por
militantes até a Assembleia Legislativa, onde ficaria exposto como
mártir. Seu corpo inerte, a camisa ensanguentada e o policiamento ostensivo na área sugeriam inflamados discursos das lideranças
estudantis.
O pianista Leonardo Luz estava em seu apartamento no Solar
quando alguém chegou trazendo a notícia da morte do garoto e da
confusão que se instalara na cidade:
Naquele momento havia um tom de gravidade no ar. As pessoas chegavam no Solar confabulando... Estava claro que a sociedade civil, os
manifestantes de rua e, principalmente, os estudantes iriam reagir.
À noite, no Solar, houve várias reuniões para avaliar a situação e
todos se inquietavam. Este talvez tenha sido o momento que a atitude
revolucionária mais se aproximou das práticas daquela geração. Todos
formavam uma turba de poetas revoltados, Vladimir Palmeira, José
Dirceu, Travassos, mitos de uma geração que ora pisava em chapa
quente.
Na semana seguinte, durante a missa de sétimo dia de Edson
Luís, na Candelária, aconteceram novos e acirrados confrontos entre
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polícia e estudantes. Os garotos adotavam táticas bizarras para desequilibrar os cavalos da brigada, espalhando bolinhas de gude pelo
asfalto. Muita correria e feridos durante o balé de arremessos e golpes
baixos... Uma faixa denunciava: “Os velhos no poder, os jovens no
caixão.”
Não eram poucos os moradores do Solar que participavam das
escaramuças. É certo que os irmãos Duarte, Rogério e Ronaldo, que
pouco antes tinham deixado o Solar para viver em Ipanema, seriam
presos ao tentar entrar na igreja. Eles seriam levados à Vila Militar de
Realengo e submetidos a várias sessões de tortura durante oito dias.
Em suas memórias, Rogério registrou:
Estive numa cela onde havia dezenas de placas de papelão presas
num suporte de pau com o clássico desenho da caveira e as iniciais
E.M., Esquadrão da Morte. Essas placas eram sempre encontradas
nos presuntos desovados na Baixada Fluminense. Era uma típica
cela de morte. Encontrei na parede inscrições com o nome de alguns que tinham passado por ali. Lembro-me de um nome na parede, Roma 45, famoso bandido na época, apagado pelo Esquadrão.
O Esquadrão da Morte, como se sabe, era um grupo especial da
polícia carioca com licença para matar, supostamente, bandidos que
ameaçavam a sociedade. Eram os 12 Homens de Ouro, liderados por
Mariel Mariscot e conhecidos pela truculência e ferocidade.
Naquela mesma tarde, em visita à cidade gaúcha de Pelotas, um
circunspecto presidente Costa e Silva faria um forte pronunciamento
“à mocidade das escolas”, tentando encontrar o que chamava de “iden106
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Os jornalistas Antônio Castor, Paulo Romeu e Edinho Rezende no jardim do Solar
tificação com a juventude”. Os ânimos estavam exaltados e tudo fazia
crer que não haveria refresco para as crianças nos próximos meses.
Foi motivado por esta expectativa que o jornal Última Hora resolveu despachar de Brasília um jornalista extra para ajudar na cobertura dos acontecimentos. Na avaliação dos editores, o Rio estava “pegando fogo” e merecia o investimento. Foi assim que Paulo Romeu,
um mineiro de 21 anos (casualmente também de Caratinga), chegou
à cidade para se fi xar, primeiro, num apartamento no Jardim de Alah
e, logo depois, no Solar da Fossa:
Cheguei ao Rio e encontrei o Edison Rezende, o Edinho, também
jornalista, meu amigo de Belo Horizonte. Ele morava na casa de
uma tia, em Botafogo, mas também decidiu passar para o Solar. Então, alugamos um apartamento maior na parte de baixo do casarão.
Edinho, um mineiro clássico, com quase tudo ressabiado, foi junto para ver e... ficou. Ele ocuparia uma cama logo na entrada do aposento, que seria dividido por um armário de três portas. Era mais um
repórter d’O Globo a morar no Solar, que eles na intimidade chamavam de “sucursal”. Edinho afirma:
Ficamos mais de um ano ali, sempre fazendo as refeições no bandejão do jornal. O Solar era bonito e divertido; a qualquer hora que
você chegasse tinha alguém para conversar.
Em maio de 1968, chegava o carioca Frederico Mendonça de
Oliveira, o Fredera, que foi morar no apartamento 73, de José Roberto
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Bertrami, na parte de cima. Ele era guitarrista, mas para aproveitar
uma vaga no trio de Bossa Nova do Canecão, com Robertinho Silva
e Bertrami, transformou-se temporariamente em baixista. Fredera
lembra-se da vizinhança incômoda do boliche e da gafieira que explodia ao som de Luiz Gonzaga:
Morei mais de um ano no Solar e pude conviver com gente muito interessante ou, pelo menos, exótica. Havia um francês, funcionário
da Embaixada, que era casado com uma negra, cantora lírica. Lembro-me também do jogador Samarone, ex-Fluminense, então no Flamengo, e do ator Marcelo Baraúna, que tinha chegado de Curitiba.
Entre os moradores mais antigos ainda havia remanescentes da
turma de 66. Zé Kéti era visto com mais frequência no apartamento
da passista do Salgueiro e, portanto, continuava se parecendo com um
morador antigo. Abel Silva já fazia parte da comunidade criativa e preparava seu livro de estreia, O afogado. Adelzon Alves e Paulo Diniz (agora circulando com um Karmann Ghia azul com capota cinza, resultado das boas vendas de “O chorão”) receberiam para uma temporada
de seis dias o jovem paranaense Wilson Bueno, que chegava de cabelos curtos, terninho e gravata. Bueno tinha promessa de emprego na
Rádio Globo, por parte dos conterrâneos Telmo Wambier e Adelzon,
e chegava disposto a seguir carreira como jornalista e escritor. Ele
lembra que tinha uma carta de recomendação assinada pelo jornalista
José Augusto Ribeiro, na época diretor da revista Fatos & Fotos:
Entre idas e vindas, fiquei quase quatro anos no Solar. Depois de
ficar seis dias com o Adelzon, fui morar no bairro da Lapa, na rua
Taylor e, quando voltei ao Solar, passei alguns dias com o Marcelo
Baraúna antes de alugar um apartamento com o Carlinhos Pipa,
um maluco que eu conhecera numa vaga em Copacabana.
Como representantes da ala gay do Solar, Bueno e Carlinhos Pipa
entrariam para a história ao serem severamente punidos por dona
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Jurema por mau comportamento. Ou melhor, apenas Bueno seria punido “sem mérito”, segundo ele, que recorda o episódio:
O apartamento era um entra e sai de garotos de programa. O Carlinhos, que não está vivo para dar sua versão, costumava chegar
com quatro ou cinco de cada vez. Certo dia a Jurema me chamou e
disse que aquele comportamento não era permitido na pensão. Eu
argumentei que era obra do Carlinhos Pipa, mas ela observou que a
reclamação partira dele, que se sentia ameaçado pelas minhas companhias. Eu fiquei estupefato, mas fui protegido pela Margot, uma
executiva de Relações Públicas, também moradora, que fez a minha
defesa. No fi nal, fui morar com a Margot por mais um tempo.
Agora, os visitantes mais frequentes eram outros: Arlindo Rodrigues, o carnavalesco, que aparecia para trabalhar com Pamplona nas
alegorias; Toquinho, o violonista, que vinha de São Paulo para curtir
o Rio e namorar a Ítala Nandi; Fausto Wolff, o jornalista, que seria
visto nos corredores procurando por determinada atriz; e Miriam
Batucada, a cantora cheia de bossa e amigos no casarão. O cineasta
Leon Hirszman, que morava num dos prédios da Lauro Müller, em
frente ao Solar, era presença constante. Leon, aliás, fazia parte de um
grupo de discussão política (uma célula do Partidão) que atraía para
o Solar intelectuais como Ferreira Gullar e Chico de Assis. Gilberto
Macedo, que tinha feito um belo documentário sobre o craque do
Botafogo, Heleno de Freitas, e o jornalista Flávio Moreira da Costa,
tanto podiam estar em rodas políticas quanto ouvindo as cantorias de
Nelson Cavaquinho, um ídolo da boêmia.
Na mesma época chegou de Caratinga a bela Graça Salgado, namorada de Vagn, que agora ocupava sozinho um apartamento no andar
de cima. Era um cômodo pequeno e sem banheiro ou cozinha, apesar
de possuir um fogareiro de duas bocas para emergências. Na maioria
das vezes, durante o dia, Vagn almoçava na pensão de dona Anita, no
final do corredor. Outras vezes – menos do que pretendia – reservava um dinheiro extra do salário para ir a um restaurante comer seu
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prato favorito: strogonoff. O cartunista estava na pindaíba e, por esta
razão, Graça não seria exatamente uma moradora do Solar, pois manteria uma base em Copacabana, onde dividia um apartamento com o
irmão, João Lopes Salgado, futuro guerrilheiro e militante do MR-8:
Para mim era inimaginável viver num quarto sem banheiro. As
coisas estavam difíceis, o Vagn trabalhava no Correio da Manhã, mas
o pouco dinheiro que entrava acabava rápido... Ele foi despejado algumas vezes do Solar e, numa dessas vezes, conseguiu uma barraca
e foi dormir na praia da Urca. Eu fui lá visitá-lo. Dois dias depois a
dona Lourdes aceitou alongar o prazo para o pagamento do aluguel
e ele voltou.
A jornalista Vera Sastre, colega de Vagn nas redações, lembra-se
muito bem das dificuldades financeiras do amigo:
Fui muitas vezes ao Solar e me lembro da figura da dona Jurema,
de tanto ela aparecer para cobrar os aluguéis atrasados do Vagn.
Mas eu tinha outros amigos lá: Jorge Pinheiro, Antônio Castor, Ruy
Castro...
Maria da Graça, que Vagn – com uma pitada de humor – chamava
de Salgado, chegava para completar o grupo de Caratinga que inaugurava a fase mineira do Solar, substituindo a fase baiana. E, como
se não bastasse todo o romantismo do velho casarão, que ainda se
mantinha numa redoma de criatividade e glamour, eles viveriam um
momento especial de suas vidas:
Eu e Vagn perdemos a virgindade no Solar. Foi um passo importante, pois era uma questão de honra não ser mais virgem, as mulheres falavam muito nisso. Eu tinha uma amiga de Caratinga, cunhada de um dos rapazes, que era indignada por ainda ser virgem. No
Solar havia um clima avançado nos comportamentos, muita liberdade, e uma noite aconteceu...
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A iniciação de Graça na vida sexual iria gerar efeitos paralelos e
funcionar como elemento de provocação para as moças de Caratinga.
A tal amiga, que lutava por um romance, fugaz que fosse, estava inclinada a aceitar a presença de um tal de Jorge Barbicha, jornalista,
que ouviu de Vagn a seguinte sugestão: “Por que o Jorge não dorme
aqui e come logo a Cristina e resolvemos o problema dessa virgindade?” Foi durante uma viagem a Caratinga, para visitar a família,
que Graça recebeu de Vagn esta carta, escrita no Solar e carregada de
sentimento:
Salgado/saudade
São três da madrugada e às seis os carros vão começar a passar aos
montes pelo Túnel Novo. Agora está quieto e a cama está quente,
mas é você, meu amor, que não tem hora e nem demora, que me
assalta sem mais avisos: sou o homem da saudade e me angustio
nessa longa espera. Quando você vem com o seu sorriso e os seus
cabelos? Quando você vem para tirar de mim todo esse carinho que
venho guardando há tanto tempo? Oh, você vem?
Já fumei todos os meus cigarros, já escondi na última gaveta o disco
do João Gilberto, mas você é inevitável. Vem, pois, amor. Vem.
Vou derramar minhas tintas, quebrar os espelhos, rasgar todos estes livros e sair cantando pela grama do solar: vem. Amanhã mesmo subirei na cabeça do Redentor e gritarei tão alto assim:
VEM!
Pois nada aqui tem graça mais. Pois esta é a pior de todas as cidades. Só quando você vier é que tudo voltará a ser colorido, salgado
saudade.
Não vou te falar mais. Sou sozinho demais, e converso com as pessoas como se estivesse falando a fantasmas, e nem mais sou eu mesmo direito. Pois a hora de você chegar já passou. Você deixou passar
para crescer mais ainda a minha saudade? Mas ela já é do tamanho
desta cidade. Estou te esperando tanto,
meu amor.
Seu Vagner só.
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E quem seria o morador, igualmente passional, que enquadrava
as marcas de amor deixadas nos lençóis depois de uma noitada caliente
com determinada musa no Solar? No dia seguinte, assim que a moça
partia, munido de uma tesoura, o romântico punha-se a recortar mais
uma peça do mosaico, danificando o lençol e construindo um mural
em homenagem ao amor. Ou, de outro ponto de vista, uma arte conceitual em hiper-realismo, quase uma instalação de porra. O autor da
bizarra obra feita de pano e esperma era Carlos Marques, que ainda
hoje, quarenta anos depois, prefere preservar o nome da homenageada: “Foi uma paixão louca que resultou na obsessão de colar os pedaços de lençóis na parede do meu quarto. Para mim era poesia pura.”
Outro momento igualmente inspirado, testemunhado por Abel
Silva, foi o advento de uma letra de música de Paulinho da Viola, que
hoje faz parte do memorial do Solar. Lembra Abel: “Paulinho mostrou
a letra e eu achei difícil aquilo dar samba... Era um monólogo disfarçado de diálogo.”
Olá, como vai?
Eu vou indo e você, tudo bem?
(...)
Por favor telefone
eu preciso beber alguma coisa, rapidamente...
Pra semana...
O sinal...
Eu procuro você.
Vai abrir, vai abrir...
Prometo, não esqueço...
Por favor, não esqueça, não esqueça...
Adeus... adeus...
Num primeiro momento, Abel se mostrou indiferente, mas, depois, quando Paulinho apresentou uma melodia aplicada à letra, tudo
se iluminou: “Em questão de minutos ‘Sinal fechado’ já era sucesso
dentro do quarto.”
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A proximidade com compositores já consagrados, com perfis defi nidos no cenário artístico, estimulou em Abel seu lado musical e
poético. Ele, que regularmente fazia exercícios de violão e prosa,
e raramente se aventurava nos versos, iria compor uma inusitada
parceria com o maranhense João do Vale, o homem de “Carcará”,
a grande herança do show Opinião. Na canção “Eu chego lá”, criada certa noite no Solar, em meio a uma cachaçada, Abel receberia
curiosamente o crédito como autor da melodia e João do Vale, autor
da letra:
Eu chego lá
Queira ou não queira
Eu chego lá
Se eu não chegar a ver
Vai nascer de mim quem tem pra ver...
Depois de consumada a criação, que seria gravada por Odete Lara
em vinil, os dois saíram do Solar, atravessaram o túnel e foram comer
alguma coisa num botequim em Copacabana. Na memória de Abel,
que ainda era estudante, ficaria a densidade de vida de um homem de
natureza política autêntica como João do Vale:
No meio do jantar, quando pedimos dois pratos, ficou claro que eu
não estava gostando do aspecto da comida. Eu mexia com o garfo e
não comia... João mandou colocar numa quentinha e, já na rua, ofereceu para um homem que dormia sobre um burro sem rabo, um
cidadão da rua. O homem comeu com sofreguidão... João ponderou
que a fome é dramática, coisa séria... E eu, aos 20 anos, aprendia
mais uma.
Com o bamba Jair do Cavaquinho, companheiro de Paulinho da
Viola no grupo A Voz do Morro, Abel fecharia parceria como letrista
em “Ana”, que seria gravada anos depois pelo sambista Zuzuca:
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A noite é tão linda
Mas vai se acabar
Ana, chegou a hora
Eu vou-me embora...
Abel estava iniciando o caminho que iria percorrer daqui pra
frente: o de compositor popular.
Foi, digamos, uma overdose de amor materno que levou o jornalista Ronaldo de Souza Reis a aceitar a sugestão de colegas da
Rádio Globo para se mudar para o Solar. Ele fazia parte da equipe
do noticiário O seu redator chefe, era fi lho único e morava com a mãe
em Niterói:
Minha mudança para o Solar teve um episódio constrangedor, pois
minha mãe ligou para dona Jurema pedindo para ela cuidar de
mim. Foi estranho, uma vez que eu já tinha 28 anos e dona Jurema
ficou sem entender aquilo.
Na condição de ex-vice-presidente da Federação dos Estudantes
Secundaristas (FES) de Niterói, por duas gestões, Ronaldo participava
de reuniões da base do Partido Comunista, mesmo sem ser filiado.
Quarenta anos depois, ele acredita ter adquirido o distanciamento
suficiente para avaliar aquele momento:
Eu peguei o fi m da melhor fase do Solar e o começo da decadência,
que de resto seria apenas o retrato do país que se preparava para
entrar em seu período mais agudo de repressão.
Foi também em meados do ano que o ator baiano Otoniel Serra,
mergulhado até o pescoço em produções de cinema underground, chegava recomendado não se sabe por quem:
Eu já conhecia o Solar antes mesmo de acertar com dona Jurema
o aluguel de um apartamento no andar de baixo. Houve um mo114
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mento em que todo mundo conhecia o Solar da Fossa, ninguém
necessariamente precisava indicar. Quando cheguei à pensão, por
coincidência, começaram as ameaças de despejo.
Primeiro foi um boato. Alguém veio da rua com a notícia de que
a pensão Santa Teresinha seria despejada muito em breve por uma
ordem judicial. Na portaria, entre os funcionários, ninguém falava
sobre o assunto – e quando falava era para jogar panos quentes. “Eles
querem, mas os advogados do dr. Fred vão recorrer.”
Apesar das ameaças, a festa continuava de arromba. Nas noites de luz
e som muitos ex-moradores apareciam para rever os amigos dos quais,
na verdade, nunca se afastaram. Como resume Maria Gladys: “Naquelas
festas só tinha gente interessante”. Graça Salgado lembra-se de uma festa
onde o anfitrião recebeu seus convidados dentro de um caixão de defunto. Estava na moda. A criatividade induzia a produção de happenigs, como
ficaram conhecidas as interferências espaciais onde artistas ou grupos
improvisavam uma dramatização em espaços públicos ou teatrais.
Preparava-se, então, o espírito que iria dominar a Era de Aquarius,
cuja viga mestra seria o musical Hair, que, depois de fazer sucesso num
teatro alternativo dos EUA, o Public Theatre, estreava na Broadway
para se transformar em ícone do movimento pacifista. “Make love,
not war”, diziam os militantes da nova onda; “Black is beautiful”, replicavam os negrões americanos discriminados pelas políticas raciais.
Estava em marcha a insurreição da igualdade e da fantasia, na esteira
da utopia por um mundo sem establishment:
When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars
Then peace will guide the planets
and love will steer the stars
(coro)
This is the glory of the age of Aquarius
Age of Aquarius…
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Aliás, o último romance de Aldous Huxley, o utópico A ilha,
escrito em 1962, era best-seller no Solar naquele momento. Nele, o
autor voltava a falar dos estados extraordinários da mente, da experiência com drogas e outros agentes sensoriais (meditação oriental), numa mensagem de amor e confiança na humanidade. Era um
livro pacifista, e este era o destino que se imaginava também para
o Solar: tornar-se para sempre uma ilha de tranquilidade, com
equilíbrio pleno de sua sociedade. Naquela época ouvia-se muito
dos anarquistas casuais a máxima do estado de espírito carioca,
verdadeiro guia de vida: “aqui todos mandam e ninguém obedece”.
Mas a realidade seria diferente. E o mês de junho seria farto em
realidade. No dia 6, em São Paulo, durante encontro com estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Caetano, Gil, Torquato
e os poetas Augusto de Campos e Décio Pignatari seriam hostilizados com vaias e bombinhas de estalo. No Rio, a Passeata dos Cem
Mil, realizada no Centro, teria como escudo de primeira fila Chico
Buarque, Caetano, Gil, Nana Caymmi, Zé Celso, Edu Lobo, Ítala Nandi
e Torquato Neto. Se fosse uma escola de samba, seria uma ala em
homenagem ao Solar da Fossa. Mas era uma reunião de resistentes,
uma reação da sociedade civil (alguns segmentos da Igreja, inclusive)
que exigiam a volta do Estado democrático e o fim do regime militar.
Como bem definiria o jornalista Elio Gaspari, à guisa de classificação,
“depois de envergonhada, a ditadura agora estava escancarada”.
Antônio Castor, militante das frentes de esquerda, lembra-se de
estar em Recife no dia da Passeada dos Cem Mil, participando de manifestação idêntica programada como evento nacional. Houve muita tensão, mas no final tudo correu sem nenhum problema. Semanas depois,
a articulação de duas frentes operárias, em Contagem (MG) e Osasco
(SP), provocaria a ira e uma reação violenta do governo militar. Estava
em marcha o período mais duro e sangrento dos anos de repressão.
No dia 5 de julho, uma notificação oficial da 22ª Vara Cível assinada pelo oficial de Justiça Roberto Moreira e endereçada a Frederico
C. Mello finalmente chegava ao Solar, determinando um prazo de
trinta dias para o imóvel ser desocupado. Era a popular ação de despe116
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jo. Dona Jurema providenciara uma cópia do documento para alguns
moradores, permitindo que eles acompanhassem o desenrolar dos
acontecimentos. Houve muita agitação, pois qualquer decisão afetaria a vida de todos. O mais inquieto e preocupado era Adelzon Alves,
que propunha resistência e exigia explicações. Para dona Jurema, era
uma questão de honra: “Eu e Frederico sempre nos defendemos judicialmente e conseguimos protelar a decisão por algum tempo.”
Certo dia, sem que ninguém conseguisse evitar, dona Jurema
entrou em estado de choque como consequência do desaparecimento do porquinho que criava no quintal. Foi constrangedor. Uma investigação rápida, feita a partir das marcas de lama das patas do
suíno, que saiam do Solar e desciam a rua Lauro Müller, permitiu
a elucidação do caso. Todos os rastros levavam ao Canecão, onde a
perícia de dona Jurema concluiu que se deu o sequestro. Um desaparecimento defi nitivo, pois o bichinho nunca mais foi encontrado.
Desolada, dona Jurema era só lamentação: “Eu não gostei nem um
pouco do desaparecimento do leitão. Se bem me lembro, minha reação foi de raiva.”
Foi em meados de julho que o jovem Paulo Martins, um carioca de Copacabana, brigou com a família e decidiu procurar um lugar para morar. Na época, aos 19 anos, trabalhava como assistente
do cineasta Paulo Cesar Sarraceni, que lhe deu a ideia de alugar um
quarto no Solar da Fossa. Quem intermediou e ajudou nos trâmites,
conversando com dona Jurema e pavimentando o terreno, foi Ronaldo
Abreu, morador da pensão e um craque do make up, vulgarmente conhecido como maquiagem, a serviço do cinema nacional. Depois de
um pequeno período de espera, a oportunidade finalmente surgiu
quando um apartamento pequeno, na ala de cima, ficou desocupado.
Paulo Martins recorda:
Fiquei um tempo no quarto de número 80, sem banheiro e cuja
janela dava para um terreno na rua do túnel. Depois a dona Jurema
me ofereceu algo melhor, o quarto 67, com banheiro e vista para
a rua Lauro Müller, onde fiquei até o fi nal de 1969. Foi um período
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muito importante na minha vida, pois representou a conquista da
minha liberdade. Lembro-me de ter encontrado no Solar, além da
grande amiga Silvia Escorel, o Guarabyra e o Luiz Carlos Lacerda,
que também trabalhava com cinema. Foi um período de muita turbulência política.
Em São Paulo, na noite da quinta-feira de 18 de julho, o elenco da
peça Roda viva, de Chico Buarque, dirigida por Zé Celso, fora agredido, e o teatro Ruth Escobar depredado, em ação assumida pelo grupo
Comando de Caça aos Comunistas, o CCC. Os três minutos de tensão e
violência resultaram em equipamentos danificados, um contrarregra
ferido e 19 atores agredidos, inclusive Ítala Nandi. Era mais do que
uma evidência: era a indicação concreta de que a direita estava recrudescendo em nome da família, tradição e propriedade. O estilingue
estava perdendo para a baioneta.
A tensão atingiria o clímax semanas depois, durante o III Festival
Internacional da Canção, no Maracanãzinho, cujas eliminatórias começaram em setembro. Ao entrar no palco com os Mutantes (vestidos
de paletó e gravata, como as bandas inglesas) para defender “É proibido proibir” (referência a um slogan do movimento estudantil francês), Caetano seria vaiado e agredido com tomates por uma plateia
irascível e determinada. Ele reagiria com um discurso inflamado:
Então, essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês
têm coragem de aplaudir este ano um tipo de música que vocês não
teriam coragem de aplaudir no ano passado? São a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que
morreu ontem? Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada.
E terminava furioso: “O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto!”
Superado o terremoto das vaias, quem levou o primeiro prêmio
foi “Sabiá”, parceria de Chico com Tom, deixando em segundo a fa118
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vorita do público: “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo
Vandré, que seria mais conhecida pelo refrão:
Vem vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Por outro lado, a música de Caetano, quase inaudível, deixava
no ar um discurso mais direto e incisivo, com o auxílio luxuoso das
guitarras que ajudavam a confundir a leitura:
Eu digo não
Eu digo não ao não
Eu digo é proibido proibir
É proibido proibir
Durante todo o tempo da apresentação, longe dali, num pensionato feminino da rua da Passagem, Abel, Rogério Duarte e Duda
Mendonça acompanhavam atentamente o discurso inflamado, com o
ouvido colado ao rádio. Eles ficaram apreensivos no início, mas logo
vibraram com a bravura do amigo e, quando tudo terminou, foram
tomar um chope no Cervantes, na avenida Prado Júnior, para lavar a
alma e comentar o assunto. Em pouco tempo, as vaias já tinham sido
elegantemente transformadas em troféus.
A essa altura, nos bastidores, sentindo-se prejudicados pela organização do Festival, a cargo de Augusto Marzagão e da TV Globo,
alguns músicos aprovaram a ideia de Carlos Marques de fundir os
troféus recebidos, o famoso Galo de Ouro, para moldar um Troféu
Protesto de Ouro, que deveria ser entregue a todos os músicos na
cerimônia oficial. Um artista, amigo de todos, seria encarregado de
criar uma escultura para fi nalizar a operação. Carlos explica por que,
depois de algumas conversas, nada aconteceu:
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O Chico Buarque achou despropositado, uma ideia muito louca, e
conseguiu brecar tudo. Só o Caetano aprovou até o fi m. A gente estava percebendo que o Marzagão e a TV Globo estavam sacaneando
os compositores para puxar o saco dos generais.
Este momento coincidiu com o lançamento do disco Tropicália ou
Panis et Circenses, coordenado por Caetano, mas com característica coletiva mostrando o trabalho de Gil, Gal, Nara Leão, Tom Zé, Torquato,
Rogério Duprat e Os Mutantes. A capa, aproveitando uma foto do grupo em trajes e poses exóticas, saudava o movimento tropicalista na
arte de Rogério Duarte. Ou Tropicália, como preferiam Hélio Oiticica
e Torquato Neto, para evitar o “ismo”. A faixa “Panis et circenses”,
escrita por Caetano, trazia uma referência ao Solar da Fossa, naquilo
que seria interpretado pelos rapazes como “a folha da cannabis”:
Mandei plantar folhas de sonho
No jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas na sala de jantar
São as pessoas na sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Uma outra Realidade, a revista, sucesso nas bancas, em sua edição
de setembro publicaria artigo assinado pelo jornalista Dirceu Soares,
que considerava aquele vinil o mais importante lançamento do ano
no Brasil. “Em todas as faixas mostra que, em matéria de música,
letra, mensagem, arranjo e originalidade, o grupo tropicalista está à
frente de todos os outros compositores brasileiros.” Estava deflagrado
o movimento que seria breve e fugaz como a esperança de paz e amor
num país abençoado por Deus e bonito por natureza – mas governado
por um general.
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Por sugestão de colegas jornalistas, o repórter Telmo Wambier,
recém-chegado de Curitiba, alugou um apartamento no andar de baixo, onde já morava Jeferson Siqueira, diretor da Rádio Globo e reconhecido intelectual de esquerda. Mesmo sem ser fanático, Wambier
participou de uma pequena célula comunista com base no Solar, embora suas inclinações o conduzissem mais para os assuntos da comunidade alternativa do que para a luta política. Nesse sentido, suas
melhores lembranças estão relacionadas às idas à praia depois do trabalho, quando todos se encontravam no Solar para trocar de roupa e
se atirar nas águas do Leme:
A turma da madrugada, incluindo o Adelzon, costumava chegar
nas areias do Leme às 6 horas da manhã. Era um ritual muito legal,
mas que, na verdade, durou pouco. A repressão tratou de acabar
com a brincadeira.
Wambier, que tinha um irmão chamado Manoel, também funcionário da Rádio Globo e integrante do grupo comunista, registra
como o sonho deu sinais de que estava para acabar:
Houve um momento em que a coisa começou a endurecer e a Polícia fi nalmente apareceu no Solar. A notícia vazou antes, acho que
por conta da dona Jurema, e tivemos tempo de nos prevenir. Eu e
o Jeferson enchemos uma mala de livros considerados subversivos
e, na calada da noite, enterramos no jardim do Solar. Tinha Marx,
Engels, Lênin... Hoje posso dizer que, sobre o melhor pensamento
socialista da história da Humanidade, nasceu o maior templo de
consumo do Rio de Janeiro, que foi aquele shopping. São os paradoxos da vida.
Dias antes, dona Jurema fora chamada para uma conversa na delegacia de polícia, na rua Bambina, onde um hóspede inadimplente queixara-se do arresto de alguns pertences pela administração da
pensão. Ela lembra-se de ter respondido à curiosidade do delegado
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até que este se dispôs a fazer uma visita para conhecer o lugar, já tão
badalado em toda a cidade:
Eu avisei aos moradores que o delegado iria fazer uma visita no dia
seguinte. Curiosamente, dois ou três rapazes fizeram as malas e
saíram quando anoiteceu. Houve muita conversa entre eles. No dia
seguinte, o delegado apareceu, olhou, gostou do que viu e manifestou o desejo de alugar um dos apartamentos disponíveis.
Era um jogo de cena, ameaça nunca concretizada, mas de forte
efeito moral e prático, pois nos dias seguintes todos comentavam inquietos pelos corredores: “Sujou!” Antônio Castor seria um dos que se
afastariam nessas circunstâncias, com a mala embaixo do braço. Nas
ruas, os confrontos entre estudantes e polícia acirravam os ânimos.
Telmo lembra-se do dia em que, encurralado pela polícia durante uma
batalha em Copacabana, foi esconder-se, com a conivência da atriz
Tereza Raquel, nos camarins do Teatro de Arena. Um episódio que
seria, por vários motivos, inesquecível para ele, um rapaz de 21 anos:
Fiquei embaixo da cama e, por milagre, vi a Tereza Raquel trocar
de roupa. Ela era sensacional, um mulherão... Depois saí do teatro de braços dados com ela e sem a barba que eu tinha quando
entrei. No lado de fora estava um corredor de PMs, mostrando
que a barra estava mesmo pesada. Mas a estratégia funcionou e
conseguimos passar.
Carlos Marques, que nunca foi militante de carteirinha, chegou
a abrigar em seu apartamento um personagem importante da resistência, que retornava de um período em Cuba, onde se engajara na
luta armada: Marcos Lins, pernambucano ligado a Miguel Arraes. O
guerrilheiro, com funções de estrategista, dormiu três noites do Solar
e, ao final de uma maratona exaustiva de reuniões, saiu decepcionado
por não conseguir cooptar novas militâncias. Carlos explica:
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O Marcos queria intensificar imediatamente a luta armada e propunha a criação de um aparelho que seria instalado no Solar. Nesse
ponto discordamos e nos separamos sem brigas, mas com decepções e melancolias. Três dias depois, na Manchete, o doutor Adolpho
[Bloch] me chamou para uma conversa na qual revelava detalhes
sobre os três dias do Marcos no meu apartamento do Solar. Naquele
momento, um informante da empresa, coronel do Serviço Nacional
de Informações (SNI), avisou que seria decretada a minha prisão
imediatamente. Podia ser apenas uma ameaça, mas eu aceitei o
conselho dele e sumi de circulação.
O termômetro político estava no alto e os ânimos, acirrados. Paulo
Romeu lembra que, certa vez, antes de uma passeata, o grupo mineiro decidiria passar rapidamente na casa do cartunista Henfil, na rua
Machado de Assis, no Flamengo. Eram dias conturbados e, diante da
movimentação e da adrenalina, Henfil destilava sua verve irônica e
rascante, aconselhando os conterrâneos:
Vocês não devem ir a passeatas, vocês são muito mineiros, muito
caipiras. Vocês vão correr para o lado errado, tenho certeza; vão
cair no meio da polícia e levar porrada até ficarem tortos.
Outro que chegava com a intenção de manter no Solar uma segunda casa, onde pudesse ficar à vontade com sua turma, era o estudante
Ronaldo Bastos, ainda esboçando um caminho nas letras, como poeta
e compositor. Ele iria dividir um apartamento, no andar de baixo, com
Sérgio Rubens Torres, que também circulava entre a música e o movimento político estudantil. No Solar, Ronaldo ficou amigo de Nelson
Ângelo e Ricardo Vilas, passaporte perfeito para aterrissar como parceiro no Clube da Esquina, movimento que acontecia em Belo Horizonte e
reunia Milton Nascimento, Fernando Brant, Márcio e Lô Borges.
Ronaldo lembra-se de uma festa, na casa do maestro Erlon Chaves,
que reuniu a fina flor da nova MPB. Ele fora apresentado aos seus futuros parceiros:
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Estava todo mundo: Edu, Francis Hime, Dori Caymmi... Foi a primeira vez que eu ouvi o Milton tocar. E pude ver também o espanto
que isso causou no ambiente. Fiquei amigo dele e nos tornamos
parceiros rapidamente.
Em outubro, dois eventos significativos. Primeiro: o congresso clandestino da UNE, numa fazenda em Ibiúna (SP), que terminaria com a prisão de centenas de estudantes, inclusive os líderes
Vladimir Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos e Jean Marc Von der
Weid. A primeira lição que os líderes do movimento tiraram do episódio foi a de que é impossível fazer encontros clandestinos com a
participação de 920 pessoas. Em segundo lugar, nascia na TV Tupi o
programa semanal Divino, maravilhoso, com roteiro de Caetano e Gil,
que seria o estopim da prisão e do exílio deles, dois meses depois.
No dia 13, primado pela falta de sorte, houve outra baixa na ala
cultural: morria o poeta Manuel Bandeira, nosso enviado especial
a Pasárgada.
Para resumir, vamos dizer que 1968 foi também o ano de lançamento do primeiro disco dos Mutantes e da banda tropicalista
do maestro Rogério Duprat . Em junho, o programa Jovem Guarda
sairia do ar depois de consolidar o sucesso dos cabeludos que dominavam as paradas de sucesso. Numa manifestação puramente
carioca, Nonato Buzar, Regininha e José Roberto Bertrami , entre
outros, apresentavam uma vertente da tropicália, com temperos
de Copacabana: a Turma da Pilantragem. O baterista do grupo,
o bonitão Vitor Manga , sobrinho do diretor de cinema Carlos
Manga (autor de nobres chanchadas da Atlântica), também iria
morar no Solar.
O filme O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, chegava
às telas como ícone da contracultura – e, portanto, diferenciado do
Cinema Novo. Sganzerla era casado com a atriz Helena Ignês, estrela
do filme, loura, bonita e ex-mulher de Glauber Rocha, que começava
a rodar O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que tinha o Solar
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da Fossa como base e moradia para vários técnicos da equipe. A partir
dali, um ônibus do tipo jardineira, o popular lotação, ficaria estacionado em frente ao Solar, identificado com palavras pintadas escandalosamente no para-choque: “Dragão da Maldade.”
O “Dragão da Maldade” iria consolidar a grife do Cinema Novo
enquanto linguagem cinematográfica e destacar Glauber Rocha como
um dos cineastas mais criativos do Ocidente. O baiano encantava a
nova inteligência com tiradas do tipo “para fazer um bom filme basta
uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Seu trabalho chamaria atenção de alguns monstros sagrados do cinema europeu, como
Godard e Antonioni.
A turma do cinema, aliás, ganhou um novo reforço com a chegada de Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, que ocupou um apartamento
na parte de baixo, com janela para a rua. Bigode era assistente de
direção de Nelson Pereira dos Santos e já tinha realizado dois curtas-metragens: O enfeitiçado, sobre o romancista Lúcio Cardoso, autor de
Crônica da casa assassinada, e Ângelo Agostini, sobre o grande chargista
do Império. No Solar, Bigode encontrou muitos amigos:
Lá estavam Gilberto Macedo, ligado à militância política e ao cinema, que depois iria embora para o México, e Maria Gladys, que agora morava com o pai, seu Armando, e o fi lho. Dona Jurema cuidava
de tudo e o clima libertário ainda pairava no ar.
Bigode chegou para ficar cerca de dois anos, sempre ocupando
o mesmo apartamento, que durante alguns dias serviu como locação para o filme A máscara da traição, de Roberto Pires, com Tarcísio
Meira, Cláudio Marzo e Glória Menezes. Cláudio interpretava um desenhista que também fazia máscaras, sendo uma delas o seu próprio
disfarce de Tarcísio Meira. Várias cenas do filme foram rodadas em
frente ao Solar, que naqueles dias ficou agitado – uma agitação que
atingiu o clímax com a prisão de Bigode, quando ele se preparava
para encontrar alguns companheiros do Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário (PCBR) num ponto do Leblon. Levado para as depen125
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dências do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações –
Centro de Operações de Defesa Interna), seria submetido a sessões de
tortura e terror. Seu relato:
Naquela época eu estava casado com a Helô [Heloênia Mazarelli],
que hoje mora nos Estados Unidos. Este casamento coincidiu com a
minha prisão. No fi nal do terror, quase perdi a vida, e o casamento
acabou, com a Helô amargando uma gravidez frustrada.
Era o mesmo sentimento que assombrava o xará de Bigode, Luiz
Carlos Saldanha, e Silvia Escorel, também ligados ao cinema, que chegavam de uma temporada europeia tentando controlar um casamento à deriva. Eles alugariam um apartamento na parte de baixo do
casarão, mas nem o bom astral do lugar conseguiu operar um milagre
naquele momento, segundo avalia Silvia:
Lembro-me bem do Saldanha conversando horas e horas com
Rogério Duarte e Glauber, conversas intermináveis, mirabolantes, impossíveis de acompanhar, pelo menos para mim. Separamo-nos ali.
No total, Silvia ficou dois meses no Solar, e Saldanha prolongaria
mais um pouco sua temporada antes de ir embora, mudar de vida,
mas não de profissão.
A conjuntura nacional, em estado de efervescência, era debatida
em vários fóruns pela sociedade civil. Quando outubro chegou, não
apenas Paris estava em chamas, mas o Rio de Janeiro também. Nesse
clima tenso aconteceu o último dos grandes festivais de música na TV
Record, quando tropicalistas e ativistas da MPB entraram em choque.
A disputa levou o júri a dividir o primeiro prêmio entre “Bem-vinda”,
de Chico Buarque, e “São Paulo, meu amor”, de Tom Zé. A parceria de
Caetano e Gil (àquela altura separado de Nana e namorando Sandra
Gadelha, irmã de Dedé) em “Divino, maravilhoso”, na interpretação
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de Gal Costa, ficou em 3º lugar, e “2001 - Astronauta libertado”, de
Tom Zé e Rita Lee, em 4º lugar.
O sucesso de Vandré no festival anterior teve como consequência a criação e montagem de um show para a turnê nacional de
“Caminhando” (“Pra não dizer que não falei de flores”), que deveria
começar pelo Teatro Opinião, no Rio. Ao escolher os músicos que
iriam participar da excursão, Vandré chamou Nelson Ângelo, Naná
Vasconcelos, Geraldinho Azevedo e Franklin da Flauta. Ao contrário
do que acontecera na apresentação do Maracanãzinho, quando estava
sozinho ao violão, Vandré agora tinha uma banda a acompanhá-lo. Na
memória de Nelson, apesar do embalo profissional que o momento
sugeria, na esteira de grande sucesso, tudo parecia em torvelinho,
uma vertigem do universo:
Nós viajamos muito pelo Brasil – pelo interior de São Paulo, sobretudo. Eu passava no meu apartamento do Solar cada vez mais rapidamente – ficava um ou dois dias e logo voltava para a estrada. O
Vandré, que estava no auge do sucesso, fazia discursos inflamados,
políticos. Dava para perceber que a chapa estava quente e que algo
estava para acontecer. Quando chegamos a Goiânia, no meio da
turnê, veio a notícia ruim: os militares tinham baixado o Ato Institucional nº 5. A gente ouviu a notícia pelo rádio do Ford Galaxie, do
Vandré. Ele enlouqueceu.
No jogo com a repressão, o golpe final contra os já esfarrapados
princípios democráticos seria desferido no dia 13 de dezembro –
por coincidência, no mesmo dia que em que dez humoristas (Millôr
Fernandes, Stanislaw Ponte Preta , Fortuna , Leon Eliachar, Ziraldo,
Jaguar, Claudius, Zélio, Henfil e Vagn , com coordenação deste último) lançavam o livro coletivo de cartuns, 10 em Humor. Com uma
única assinatura, o marechal Costa e Silva fechava o Congresso e
investia-se do poder de cassar mandatos e suspender direitos políticos. Uma das medidas mais pungentes seria a suspensão do habeas-corpus, fato que agravaria a situação dos presos políticos sem
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f lagrante delito: os suspeitos permaneceriam no cárcere conforme
a arbitrariedade do governo. Começava a temporada de caça aos
subversivos, o equivalente à fabulosa caça às bruxas. Diferente dos
demais atos baixados até então, o AI-5 não possuía prazo de vigência e poderia ser eterno* – como os diamantes e as paixões de
Vinicius de Morais.
A imprensa, já amordaçada, repercutia a notícia com ironias ao
lado da manchete principal, como na matéria do Jornal do Brasil do
dia seguinte, que vinha acompanhada das condições metereológicas:
Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por
tempo ilimitado.
Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país
está sendo varrido por fortes ventos.
No dia 27 de dezembro, como resultado de uma investigação
policial pelos palcos da vida, Caetano e Gil foram presos em São
Paulo e encaminhados à Vila Militar de Deodoro, no Rio. Era, por
tudo e para todos, uma agressão que atingia em cheio a comunidade do Solar. Dois dias antes, no programa Divino, maravilhoso,
Caetano cantara a melancólica “Boas festas”, do compositor suicida
Assis Valente, enquanto apontava para a própria cabeça um revólver calibre 38:
*
Durante os dez anos de vigência do AI-5, foram cassados 273 mandatos parlamentares,
sendo 162 estaduais e 111 federais. O ato foi acionado 579 vezes, punindo 145 funcionários
públicos, 142 militares e 102 policiais, além de 28 funcionários do Poder Judiciário, de juízes
a promotores. Para banir oposicionistas, foi empregado 80 vezes. Mais de 500 fi lmes, 400
peças de teatro e 200 livros foram censurados. Tudo em nome da segurança nacional. O presidente Ernesto Geisel, que promovia a abertura e iniciava a volta ao estado democrático,
prometeu revogá-lo – e cumpriu, a 31 de dezembro de 1978. Mas, antes disso, também fez
uso dele várias vezes. [N. do A.]
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Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se tem felicidade
Pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Era muita ironia às vésperas do Natal. O programa caiu nas malhas da Censura Federal e foi retirado do ar em poucas semanas.
Como diziam todos: a bruxa estava solta.
Àquela altura, Torquato Neto e Hélio Oiticica já estavam exilados em Londres, e Chico Buarque, em Roma. Vandré tomava o rumo
de Paris. A tropa de choque, formada por guerrilheiros anônimos e
clandestinos de um modo geral, foi parar no Chile e outros países
latino-americanos.
O formigueiro estava em polvorosa e, para resumir, vamos dizer
que a partir daquele momento estar vivo, em qualquer circunstância,
era obra do acaso. A opção era ficar em casa fazendo tricô. Assim,
nos meses que se seguiram, muitos brasileiros foram mortos; alguns,
presos; outros, exilados; e outros ainda escolheram o caminho do sol
e foram fumar baseados na Califórnia ou na Bahia. Estava nascendo
em âmbito nacional a geração Arembepe. A desarticulação das organizações políticas ou paramilitares, se considerarmos as atividades
da guerrilha, seria o passo seguinte da faxina militar. O AI-5 oferecia
legalidade jurídica à repressão máxima.
No futuro, esse momento político iria sugerir ao professor americano Christopher Dunn, estudioso da onda tropicalista e autor do livro Brutality Garden, Tropicalia and Emergence of a Brazilian Counterculture,
a visão do Brasil como um jardim de brutalidades, um paraíso em
chamas. Na opinião de Dunn, o recrudescimento do regime militar
“trouxe à tona valores sociais e culturais arcaicos e reacionários”.
Fazia-se reafirmar posturas superadas, como o patriotismo fácil, o
catolicismo tradicional, a família patriarcal e, fi nalmente, um vigoroso sentimento anticomunista. Como objetivos emergentes do regime
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militar, estavam a eliminação da esquerda e a desmobilização social
e política da sociedade.
A partir dali, qualquer atitude ou atividade cultural promovida
longe da chancela oficial do governo, sem o selo das forças armadas,
seria chamada de contracultura. Entrava em cena uma nova juventude, um novo estado de espírito, uma nova arte. Em muitos casos, os
rapazes optariam em fugir pelos furos do vício, e as ofertas mais triviais no mercado das urbes eram o “cheirinho da loló”, a maconha, a
anfetamina e – a partir daquele momento, em grande escala – o LSD,
cujos efeitos se confundiam com uma arte psicodélica com predominância de cores, borrões e imagens difusas. O pó (cocaína) começava
a aparecer.
A linguagem passaria a ser uma camuflagem oficial de magrinhos
e cabeludos que iriam criar novas palavras e conceitos para o mundo paralelo e imediato: barato, vagau, bagulho, malaco, bicho, berro,
bode, barbante, cano, larica – para ficar apenas em palavras que seriam, anos depois, absorvidas e oficializadas pelo Dicionário Aurélio.
Assim, quando um malaco ia comprar um bagulho no Vidigal, podia
levar um “galo” (50 gramas/cruzeiro) ou uma “perna” (100 gramas/
cruzeiro). A estratégia do underground, no final dos anos 1960, visava
exclusivamente à sobrevivência da tribo.
Aquele período, sem nenhuma ironia, coincidiu com a chegada ao
Solar de um... circo, que iria se instalar no terreno onde outras vezes
funcionara um estacionamento. Um circo de verdade. Era o Grande
Circo Romano, que fechara um contrato de seis meses com Jurema
Cavalcanti, em nome de Frederico Mello. A chegada do circo, com
tudo que se possa imaginar, trouxe uma adicional inquietação ao pensionato. Como num passe de mágica – ou num filme de Fellini –, subitamente, os corredores da pensão estavam povoados por palhaços,
trapezistas, bailarinas e anões. Sem falar de leões, macacos e elefantes, notáveis por suas manifestações sonoras durante as madrugadas.
Além da anarquia e desordem que o momento sugeria, havia também um cheiro de apocalipse no ar. Não por acaso, a última imagem
do ano mostra Ruy Castro, por volta de meia-noite do dia 31, tocando
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em várias festas do Solar o dramático poema sinfônico “Assim falou
Zaratustra”, de Richard Strauss, tema do filme 2001: uma odisseia no
espaço, de Stanley Kubrick. Ruy andava com o vinil pelos corredores
levando o mantra improvisado a todas as vitrolas disponíveis.
O Solar estava iluminado naquela noite, portas e janelas abertas,
as pessoas flutuando pelos corredores, se saudando umas às outras:
“Feliz Ano Novo!”
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Durvalina Martins Mariano, Nininha Patinadora
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