pos-combate
Transcrição
pos-combate
O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai, com surpreendente sinceridade, o resgate do corpo de seu irmão Joseph, que fora enterrado às pressas d u r a n t e a g u e r r a 1. Nos quatro anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, o Serviço de Registro de Túmulos dos Estados Unidos (AGRS, na sigla em inglês) assumiu a desoladora missão de recuperar os corpos dos soldados mortos, de acordo com o desejo de suas famílias, enterrá-los em cemitérios militares norte -americanos ou transportá-los de volta aos Estados Unidos para cerimônias privadas. O tenente David Arthur Thompson, de 27 anos, era secretário-executivo do comandante do AGRS e estava pessoalmente envolvido na identificação de tropas abatidas na Europa. O trabalho, no entanto, tornou -se particularmente pessoal quando organizou o resgate do corpo de seu próprio irmão, Joseph, que fora morto durante a guerra. Em um relato compreensivelmente emocionado, mas extremamente franco, Thompson explica em detalhes a seu pai como foi feita a remoção do corpo de seu irmão, bem como quais os objetos pessoais que encontrou entre os despojos. (Esta carta apresenta uma descrição particularmente intensa e pode chocar alguns leitores. No entanto, em meio a expressões mais pungentes de pesar e fé, ela nos permite compreender melhor o modo como Thompson lidou com a morte de um querido membro de sua família e camaradas de armas.) 24 de maio de 1919 Querido pai, Eu pretendia escrever à mamãe, mas não posso contar a ela o tanto que posso fazê-lo a você. Após ler esta carta , você pode explicar a ela o que julgar necessário. 1 Extraído de Andrew Carroll (comp.) – Cartas do Front — relatos emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007, pp.329-334. Há pouco, transportei o corpo de Joe de uma cova na floresta para um lote no Cemitério Norte -Americano em Romagne, na França. Tive eu mesmo que supervisionar o trabalho por causa do pequeno número de ofic iais. Fiz, portanto, o reconhecimento do corpo. Um trabalho que eu, como o senhor deve imaginar, preferia a morte a cumpri -lo, mas que precisava ser feito. Serei bastante franco em meu relato e sei que poderei magoá -lo, porém sei que o senhor gostaria de s aber. Estou muito contente por ter sido eu a realizar isso, e não o senhor ou a mamãe, pois isso os deixaria transtornados. Com os três rapazes de cor designados para integrar minha unidade e com uma caminhonete Dodge, atravessei 60 quilômetros pelas colin as. Em alguns momentos, a estrada estava tão ruim que tínhamos que cruzar os campos e, em um determinado ponto, tivemos que construir uma pequena ponte sobre um trecho onde a estrada fora destruída . Deixamos Romagne às 7h30 e ao meio -dia chegamos à cova na floresta Harmont. Fiz os rapazes de cor escavarem o local da cova até que chegássemos ao corpo, ou pudéssemos ver suas roupas. Vi primeiro seus pés e pernas, e então o resto do corpo, da forma como tombara. Ele estava vestido com roupas novas, portava sua capa de chuva, bem como todo o equipamento, com exceção do rifle e do capacete. Como eu esperava, não havia um caixão, mas simplesmente um cobertor sobre seu corpo, e algumas tábuas soltas por cima . Removemos o cobertor, as tábuas etc. e é claro que o cor po encontrava -se bastante decomposto. A cabeça fora arrancara do corpo por uma alta carga explosiva, mas o que restava do crânio jazia ali. O rosto fora completamente destruído. Então, desabotoei o casaco e encontrei, ao redor do pescoço, a outra placa de identificação, que bastava para certificar de quem se tratava. Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco e o levamos para dentro do carro. Removemos, então, o corpo de Carl Coombs, tal qual fizéramos com o de Joe. O corpo de Coombs t ambém se encontrava em avançado estado de decomposição e era um sujeito bem pesado de carregar. O odor de ambos era terrível e tive de esquecer por um momento quem eram. Usava luvas de borracha, mas mal conseguia tocar os corpos sem arrancar-lhes a carne d os ossos. Por isso, tive de trabalhar com vagar e cuidado. Quando os dois corpos estavam no carro, dirigimos de volta para Romagne, seguindo por um caminho por trás das fronteiras alemãs. Chegamos ao cemitério de Romagne por vol ta das 5h da tarde. Ali entreguei os dois corpos aos coveiros que estavam presentes. Fiz com que retirassem as roupas e as vasculhassem, obtendo bons resultados. Na roupa dele encontrei: a última carta que o senhor enviou, um canivete, uma caneta -tinteiro, um diário, o testamento, o livro dos Salmos, outro livro com anotações referentes a toda correspondência que ele recebera e enviara , alguns pequenos retratos que recebera de casa, cerca de dez francos em dinheiro, dois relógios, o dele e outro alemão, algumas moedas alemãs e carões -postais alemães. O diário é muito interessante e o livro dos Salmos, maravilhoso, o que demonstra que morreu com a alma imaculada. Esse pequeno livro é conhecido como “O salmo do pastor” e lhe foi presenteado por Emily M. Rogers. Nele, Joe escreveu a pequena oração que se segue: “rogo a Vós, oh, Deus, que eu tenha beleza interior. É essa a minha súplica mais ardente. A maioria de nós, creio eu, reverá suas casas e seus amigos. Se assim for, quantos amaldiçoarão cada bebida que tomaram, cada praga que lançaram, cada vergonha que aqui cometeram e que, em casa, não teriam feito. “isso põe em risco minhas divisas, minha disciplina, minha popularidade e meu progresso. Essas quatro coisas são temporárias. A pureza interior é permanente e é maior que todas as coisa s mundanas. “esta guerra não durará muito. Tenho uma chance em 30 de sobreviver. O que é um ano de serviço comparado à indulgência, digamos, 50 anos e um ano de serviço; e uma consciência limpa pelos outros 50 anos? De qualquer modo, depois, antes, agora, ou em qualquer ocasião, desprezo tudo o que não é divino. Meu verdadeiro eu interior ressente diante de tudo isso. “em segundo lugar, em nome do amor de mãe, pai, parentes, e tantos amigos, eu desprezo tudo o que não é divino. Em nome do amor de Deus que manteve todos bem e saudáveis em casa, no campo de treinamento, no mar, e que me manteve em perfeita saúde desde minha chegada, por essa razão eu desprezo tudo o que Deus despreza.” Isso não é maravilhoso, pai? Gostaria que contasse isso ao dr. Day. Há muitos outros versos menores, todos de grande interesse. No último dia do diário, escrito em 14 de outubro, quando partia de Verdun para Harmont, ele escreveu o seguinte: “Oh, é difícil deslumbrar a paz quando as bombas do inimigo estão estourando ao nosso re dor. „Paz.‟ Oh! Rogo a Deus que ela venha antes do amanhecer, e que as preces de minha mãe sejam atendidas. “há todo tipo de relato desalentador a respeito do trabalho que temos pela frente. Enviei uma carta de natal para casa, e notícias para Art. Sinto -me bem e ok esta noite. A tempestade parece ter se dissipado às 2h30 da manhã. Os velhos camaradas franceses levam o gás bastante a sério.” O pobre garoto rogou por paz e Deus a concedeu a ele, pai. Quão feliz estou que Deus o tenha atendido tão prontamente. Ele estava preparado para morrer, e nada sofreu. Fico feliz ao pensar nisso, mas somente Deus sabe quanto sinto a falta dele. Eu o amava muito. Pai, essas coisas são extremamente valiosas para o senhor. Vou preservá -las cuidadosamente; embora já estejam em péssimas condições, graças à umidade do solo e do corpo. Estão igualmente sujas e malcheirosas. Limpei tudo com gasolina e, em um ou dois dias, estarão ok. Levarei tudo isso para mamãe, todas as coisas. Peço a vocês, porém, que as mantenham n a família, depois que os senhores partirem para se juntar ao pobre Joe. Atravessei um verdadeiro inferno para consegui -las, e, depois do senhor e da mamãe, elas pertencem a mim. Joe agora descansa ao lado de Carl Coombs no cemitério Romagne, na companhia de outros 35 mil. É um belo local e tornou -se nosso Monumento Nacional na França. Rogo para que permitam que o corpo dele permaneça aqui para descansar em paz . Sei que ele apreciaria que assim fosse. Agora ele se encontra sepultado em um caixão; e, no Dia d a Memória 2, seu túmulo receberá uma bela decoração. O general Pershing lá estará para prestar seus respeitos aos homens que lutaram sob suas ordens e será uma bela cerimônia. Agradeço a Deus por tudo que conquistei. Fui muito bem recompensado por cada minu to que aqui passei. Aguardo, em breve, uma promoção e, na proxima semana, me desligarei de minha companhia para me tornar um oficial ajudante. Esperamos terminar nossos afazeres aqui dentro dos próximos meses. Então, todos voltaremos para casa. A maior par te do trabalho agora é da artilharia e pouco se faz com armas leves. Tirei muitas fotos. Entreguei -as ao fotógrafo do campo ontem, e as terei de volta em uma semana. Por sorte, quando olhava em minha mala na noite passada, encontrei vários mapas de Romagne , então poderei lhes mostrar exatamente onde se localiza o cemitério. Quanto mais tempo permaneço aqui, mais percebo o cuidado que dedicam a nossos cemitérios, e estou convencido de que nosso Joe deveria permanecer aqui. Remover o seu corpo foi uma experiê ncia e tanto, e foi tão custoso que espero que o senhor permita que ele permaneça aqui como parte do grande monumento à contribuição do nosso país à Guerra Mundial. 2 Toda ultima segunda-feira de maio, em memória aos soldados mortos na guerra (N.E). Iniciou -se na França uma campanha para que cada moça se torne responsável por um túmulo, ou um conjunto de túmulos. Há uma jovem que cuidará de ambos, ou seja, do de Joe e do de Carl Boombs. Ela é a única moça que visitou, até agora, o túmulo dos dois. Foi até lá com dificuldade e sob grande risco. Apenas porque desejava Sr responsável pelos túmulos depois de nossa partida. Ela escreveu à mamãe, e fala e escreve muito bem em inglês. Sei que mamãe ficará contente em lhe escrever nos anos que virão. Sempre que ela tiver tempo e condições de ir até lá, o fará de bom grado. Ela está lendo o diário de Joe, o livro dos Salmos e lhes digo que isso já é suficiente para causar uma boa impressão. Todos aqui têm sido ótimos amigos para mim. Sei que mamãe ficará satisfeita de ter essas coisas. A visão da caligrafia de Joe significará mais para ela do que o pr óprio corpo dele. Por favor, agora, deixem-no descansar em paz. Sinto que fiz tudo o que estava ao meu alcance. A localização do túmulo é: seção 9, lote 3, túmulo 155. Joe está sepultado na extremidade Nordeste. Escreva logo, pai. Meu amor a todos. Seu filho, Art. Um ano depois, o corpo de Joseph Thompson foi exumado e levado aos Estados Unidos, onde foi sepultado no lote da família em Watertown, em Massachusetts. David Thompson permaneceu na França até 1923 e, mais tarde, colaborou com o Serviço de Registro de Túmulos dos Estados Unidos na escolha do ‗soldado desconhecido‖ no Cemitério Nacional de Arlington. Lila Oliver escreve a uma amiga contando -lhe sobre as atitudes dos soldados feridos que ela desenha como artista voluntária da USO3 Além dos estimados 25 milhões de soldados mortos durante a Segunda Guerra Mundial, milhões de outros ficaram para sempre incapacitados. Embora tenham voltado vivos para casa, enfrentaram um difícil período de reabilitação que, muitas vezes, incluía exaustivas sessões de fisioterapia e numerosas cirurgias, especialmente nos casos de cegueira, paralisia, queimaduras graves e amputações de membros. Confinados a uma cama de hospital durante dias, semanas ou meses seguidos, longe de amigos e entes queridos, esses homens tinham de superar o tédio constante. Lila Oliver, uma jovem de 22 anos que se formara no Philadelphia College of Art, reconhecia que não havia nada que pudesse fazer para aliviar o sofrimento físico daqueles jovens feridos, mas, por meio de seu talento, procurava ao menos oferecer-lhes momentos mais agradáveis. Em 1943, ela se inscreveu como voluntária na ―Unidade de Desenho‖ da USO, que percorria hospitais militares por todo o país para fazer retratos dos soldados. Em uma carta endereçada à sua amiga Terry, Lila responde sobre se os pacientes a p r e c i a v a m o u n ã o s e u t r a b a l h o 4. Acredito que pouco reconheçam seu valor artístico e, do meu ponto de vista, eu diria que nada sabem. Pouco se importavam com uma linha delicada e sensível. Por outro lado, saúdam minha chegad a ao hospital para desenhá -los. Acham que essa é uma “excelente” idéia e apreciam a semelhança dos desenhos, uma vez que eu os retrato de uniforme, quando na realidade se encontram vestidos de pijamas. Minha tirada favorita é: “Sabe, já vesti mais soldados do que qualquer um aqui”, sempre arranca algumas risadas. É para isso que estou aqui, 3 As United Service Ortanizations (USO) eram instituições civis sem fins lucrativos q ofereciam serviços de apoio psicológico e recreativo aos membros doExército norte-americano (N.T.) 4 Extraído de Andrew Carroll (comp.) – Cartas do Front — relatos emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007, pp.335-339. não para ser “artista”, mas... para dar aos rapazes um motivo a mais de descontração e para fazê -los esquecer de que estão doentes e, até mesmo, bajulá -los um pouco. Quase todos eles me confidenciam: “Sabe, esta é a primeira vez que alguém faz o meu retrato — espero que eu não faça o carvão se quebrar...” Oliver também se comovia com o modo pelo qual os homens lidavam com o sofrimento. Em uma carta enviada logo após a guerra a Terry, cujo marido, Allan, estava em serviço, Lila comentou as diferentes atitudes nas várias alas do hospital. Ela estava especialmente encantada com um jovem soldado, que atuava como médico, antes de ser baleado em combate. Querida Terry, O tempo voa. Meu trabalho, a fotografia, a cantina, as idas ao hospital local para desenhar, tudo conspira para me manter ocupada. Que longa aquela carta. Mais dessas, por favor. Com certeza estás pensando em Allan quando me perguntas se os rapazes mudaram mu ito. Engraçado — mas acho que não mudaram. Alguns, depois de passarem por experiências suficientes para toda uma vida, estão mais velhos, têm até cabelos brancos. Embora um pouco mais velhos, têm um entusiasmo maior em relação à vida. Parece contraditório? Mas não é. Eles viram coisas demais, por isso estão mais velhos, mas aquilo pelo qual passaram faz com que apreciem cada dia e cada hora. Para ser sincera, nunca antes tinha visto esses rapazes aqui, mas, entre meus modelos, estão os tipos de pessoas que já conhecia. Há os estudantes e os pés -de-valsa, o espertinho, o festeiro, o universitário bajulador, o queridinho de todos, o pessimista e o otimista (mais deste último) e até mesmo o filhoinho da mamãe manteve sua individualidade. Me perguntas se acredit o que os rapazes estejam voltando para casa mudados e diferentes e, para dizer a verdade, não acho que isso aconteça; eles têm novas idéias, uma aparência mais madura , o que é suficiente para levar a sério uma vida mais estável, mas estou convicta de que, ao voltar, a maioria dos soldados mantém, em essência, a mesma estrutura de caráter que demonstravam quando se apresentaram ao serviço. Suponho que haja quem discorde. De fato, a reação das famílias logo após a chegada dos rapazes cria tantos problemas qua nto aqueles que eles já traziam consigo. Não desejam que os tratemos de modo especial, mas que os deixemos em paz. Não esqueceram como é estar em casa, nem como se comportar entre civis. Desde o momento da partida, guardaram cuidadosamente todas as pequenas lembranças que puderam reunir. Esses garotos não esqueceram. Ainda cederiam seu lugar em um bonde a uma senhora tão prestativamente quanto qualquer outro que não tenha abandonado a cidade, sem necessidade de aulas, livros de instruções ou dez lições fáce is para se tornar um civil. A maioria deles não consegue compreender por que as pessoas pensam que eles precisam de conselhos em relação a como se comportar em sua primeira licença nos Estados Unidos. Isso foram eles que me disseram. Os incapacitados? Dese jam ser tratados de forma sincera e honesta. A maioria dos rapazes tem mais coragem do que eu julgava possível. Se não nos compadecermos ou virarmos o rosto com olhares compridos e tristes, eles ficarão bem. Precisam de uma oportunidade. Digo que não devem os ter pena deles; mas não disse que não devamos ajudá -los; ainda mais certo é que não devemos nos esquecer deles. Como poderíamos compensar a perda de uma perna aos 20 anos de idade? Desenhei, no último domingo, um jovem da força médica, paciente de um dos hospitais de Atlantic City. Seus dois companheiros de quarto foram recentemente transferidos e ele se encontrava sozinho. Foi por isso que me mandaram até lá. Era um rapaz de uma admirável disposição e brilhantes cabelos ruivos, com um tufo espetado no a lto da cabeça. Este garoto passava por uma série de neurocirurgias. Ele me contou como fora ser médico no teatro de guerra europeu. “Passamos a maior parte do tempo atrás das linhas. Então, quando os rapazes são atingidos , uau, é preciso ir até lá para aju dá-los e resgatá-los. Se as coisas pioram ainda mais, entramos em combate. E sempre há aquele que faz algo estúpido e acaba se machucando. Então, precisamos arriscar nosso pescoço para arrastá-lo de lá. Claro que juramos que nunca mais faremos isso — afinal, não é nossa culpa se esses sujeitos correm riscos de modo tão estúpido! Mas, na ocasião seguinte, vamos ao seu encontro desgraçadamente, fazemos tudo outra vez.” Ele me contou como fora atingido. “Atacávamos um ninho de metralhadoras e havia muito fogo. Arrastei-me para ajudar alguns homens. Próximo dali, um alemão fora ferido e, por isso, avancei vagarosamente para prestar -lhe os primeiros socorros. Ele estava muito mal. Os boches me viram e cessaram o fogo. Esperaram até que eu finalizasse o curativo daquele sujeito e, então, abriram fogo contra mim — acertaram-me na perna! Naturalmente, nossos rapazes ficaram loucos de raiva, pois testemunharam tudo. Pegaram o grupo todo, e os poucos alemães que restaram foram postos para marchar com as mãos para o a lto, enquanto nós aguardávamos por aquele que atirara em mim. Ele foi o último a sair. Então, todos os rapazes gritaram juntos para mim: „Ei, veja isso, garoto!‟ , e, juntos, deram cabo dele. Tomamos os outros como prisioneiros.” Quando terminei o desenho , ele o aprovou e me disse seu nome. Era Goldblatt. “Mas pode me chamar de Goldy.” Esta também foi uma carta comprida. Fizeste uma pergunta que me toca profundamente. Meu dente de siso está despontando — em cima, à direita. Dói quando mastigo e limita minh a mastigação. Sequer posso apreciar um bom bocejo. Mas estou com sono. Hora de dormir. Com amor, Lila. Olwyn Green escreve uma carta final de amor para o seu marido Charlie, que serviu tanto na Segunda G u e r r a M u n d i a l q u a n t o n a G u e r r a d a C o r e i a 5. Independentemente do seu ente querido ter desaparecido para sempre ou regressar para casa uma pessoa visivelmente diferente, as esposas, os familiares e os amigos dos homens e mulheres que serviram nas forças Armadas frequentemente precisam cicatrizar suas próprias feridas no pós-guerra e enfrentar também um período de adaptação. Nascido em 26 de dezembro de 1919, em South Grafton, na Austrália, Charlie Green uniu-se à milícia aos 16 anos e partiu para lutar na Segunda Guerra Mundial, inicialmente c omo oficial de infantaria e, em seguida, como comandante de um batalhão inteiro. Sua jovem esposa Olwyn aguardava com grande expectativa sua volta para casa, após anos de uma espera angustiante. A relação entre eles permaneceu forte e amorosa, mas quando Charlie voltou para casa sua esposa descobriu que ele já não era o mesmo. O homem que escrevera cartas apaixonadas durante a guerra era agora taciturno e, muitas vezes, parecia pouco à vontade no convívio com outras pessoas. O comandante de batalhão que recebera uma Condecoração por Serviços Distintos atormentava -se com a ideia de ter uma fazenda. Ele estava perdido. Sentia falta da amizade de seus antigos camaradas e do sentimento de vida e morte associado às missões. Em junho de 1950, rompeu a Guerra da Co reia e, para espanto de sua esposa, Charlie estava ansioso para participar dos combates. ―Está na hora de soltar os cavalos‖, explicava ele. Em setembro, foi designado oficial -comandante do 3º Batalhão do Regimento Real australiano. Em 12 de setembro, a caminho da Coreia, Charlie enviou a primeira carta para casa: ―O problema não é tão ruim quanto possas imaginar. Na verdade, assemelha-se mais a uma guerra civil e, com a nossa unidade, temos pouco com o que nos preocuparmos.‖ Apenas duas semanas depois, ele se encontrava na Coreia e o carinho que tantas vezes manifestara em suas cartas da Segunda Guerra Mundial reapareceu. ―Como estás, minha querida, e também, é claro, minha pequena?‖, escreveu Charlie em 27 de outubro, referindo-se à sua filha Anthea, de 3 anos. 5 Extraído de Andrew Carroll (comp.) – Cartas do Front — relatos emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007, pp.339-342. Espero que estejam tão felizes quanto for possível. Temos ainda outros 30km a percorrer até nosso objetivo final e, depois disso, a coisa deve terminar. ...Deus te abençoe, meu amor, e mantenha -se bem. Te amo mais do que nunca e espero que possamos estar juntos novamente em breve. Antes de Olwyn receber a carta, o carteiro local veio de bicicleta até sua casa, em Grafton, trazendo um envelope cor de-rosa. Ela permaneceu congelada nos degraus em frente à casa. ―Lamento informar que seu marido, o tene nte-coronel Charles Hercules Green, 2/37504‖, começava o telegrama, ―foi ferido na Coreia, sofrendo ferimentos de metralha...‖ Embora houvesse motivo para esperança — ele estava ―apenas‖ ferido — , Olwyn sabia que seus piores temores haviam se concretizado. Por volta da meia-noite do dia seguinte, depois de uma angustiante espera, ela recebeu a notificação de que seu marido havia, de fato, morrido durante um ataque da artilharia chinesa. Ele tinha 30 anos. Décadas depois, Olwyn Green sentou -se e reviveu seu antigo relacionamento, por meio de todas as cartas que ele lhe enviara e que, até aquele momento, não havia relido. Em 1992, morando e Sydney, Olwyn Green escreveu uma última carta ao marido: Sydney, 1992 Meu amado Charlie, Faz muito tempo que não lhe escrevo. Não achava que você receberia qualquer mensagem. Agora já não tenho tanta certeza. Veja só, tenho revisitado o passado. Revi sua vida antes de nos conhecermos. Adorei fazer isso. Um retrato seu quando bebê me lembra muito Anthea, quando ela estava crescendo. Tenho pensado muito sobre o tempo curto, mas feliz, que passamos juntos. Os velhos tempos foram maravilhosos, não foram? Parece que foi ontem e que você estava aqui presen te. Então sonhei contigo. Por isso achei que precisava escrever. Acho que aprendi bastante, meu querido. Não há motivo para questionar ou lamentar o passado. Tudo passou. Por anos, me preocupei com o que nos aconteceu. Uma coisa já não me amedronta mais. É o tempo. O tempo não existe. Cometemos um grande erro ao medi-lo em minutos e anos, ou em passado e futuro. Nosso casamento foi para a vida inteira. Algumas ocasiões assustadoras em que olhei para o futuro me fizeram perceber que talvez, de vez em quando, nos é permitido um vislumbre do infinito. Acho que é o medo que nos impede de ver o futuro — ou de vê-lo de forma adequada. Faz 40 anos que não vejo você, mas esse tempo parece ter desaparecido. Ultimamente, parei de ter o pesadelo no qual você aparecia muito distante e não conseguia entrar em contato comigo. Odiava esse sonho, que sempre se repetia. Nunca consegui entendê-lo. Como disse, outra noite sonhei com você. Foi um sonho bem diferente. Você veio para perto de mim . Então, uma luz estranha e muito brilhante iluminou a sua face esquerda, de modo que eu podia ver seus olhos. A luz revelava lágrimas, e isso me acordou. Não posso suportar imaginá -lo chorando. Por favor, não chore. As lágrimas — minhas ou suas — não mais são necessárias. Não precisamos mais chorar. O que compartilhamos foi belo demais para que choremos. E, embora, em um certo sentido, tenhamos falhado, Deus sabe que tentamos. Não sou mais jovem, Charlie. Tenho rugas e cabelos grisalhos. Aquela beleza juvenil que você me pediu para manter desapareceu. No entanto, ainda tenho bastante energia. Precisei dela para cuidar de nossos netos. Sinto agora uma certa maturidade. Não sinto mais aquelas dores no corpo que tanto me incomodavam ao pensar em você. Na verdade, o modo como me sinto traz sempre a lembrança de uma linha que tu me enviaste da Coreia: “Estação de névoa e delicada fertilidade .” É exatamente assim que me sinto. Você se lembra de como eu gostava de poesia? Não posso impedir que ela me invada o pensamento. Foi assim que escolhemos o nome de Anthea 6. Trabalhei e economizei o suficiente para garantir uma certa tranqüilidade. Agora, posso aproveitar os dias de outono. Sinto-me feliz e, sim, sinto-me rica, embora jamais tenha conseguido preencher o vazio que você me deixou. Não era um vazio. Sempre houve seu amor para me amparar. Espero ansiosamente o dia em que nossos dois netos sejam homens feitos. Eles são belos meninos. O mais novo é a cara de Anthea quando ela era pequena, tanto na aparência quanto na determinação de trilhar seu próprio caminho de vida. O caminho de Anthea sofreu muitos desvios antes que ela descobrisse quem era verdadeiramente. Sua filha tem a sua força. O mais velho, dizem alguns, se parece comigo. Na aparência, é como você — bonito. Em todas aquelas centenas de cartas que lhe escrevi, eu sempre lhe disse quanto o amava. Mas talvez não tenha dito que você é o melhor ser hum ano que jamais conheci. 6 Nome de origem grega, relacionado à floração, primavera. Fique em paz e lembre-se de que sempre te amei. Sua querida esposa, Olwyin.