pos-combate

Transcrição

pos-combate
O tenente David Arthur Thompson narra a seu pai,
com surpreendente sinceridade, o resgate do corpo de
seu irmão Joseph, que fora enterrado às pressas
d u r a n t e a g u e r r a 1.
Nos quatro anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, o
Serviço de Registro de Túmulos dos Estados Unidos (AGRS, na
sigla em inglês) assumiu a desoladora missão de recuperar os
corpos dos soldados mortos, de acordo com o desejo de suas
famílias, enterrá-los em cemitérios militares norte -americanos
ou transportá-los de volta aos Estados Unidos para cerimônias
privadas. O tenente David Arthur Thompson, de 27 anos, era
secretário-executivo
do
comandante
do
AGRS
e
estava
pessoalmente envolvido na identificação de tropas abatidas na
Europa. O trabalho, no entanto, tornou -se particularmente
pessoal quando organizou o resgate do corpo de seu próprio
irmão, Joseph, que fora morto durante a guerra. Em um relato
compreensivelmente emocionado, mas extremamente franco,
Thompson explica em detalhes a seu pai como foi feita a
remoção do corpo de seu irmão, bem como quais os objetos
pessoais que encontrou entre os despojos. (Esta carta apresenta
uma descrição particularmente intensa e pode chocar alguns
leitores. No entanto, em meio a expressões mais pungentes de
pesar e fé, ela nos permite compreender melhor o modo como
Thompson lidou com a morte de um querido membro de sua
família e camaradas de armas.)
24 de maio de 1919
Querido pai,
Eu pretendia escrever à mamãe, mas não posso contar a ela o tanto
que posso fazê-lo a você. Após ler esta carta , você pode explicar a ela o que julgar
necessário.
1
Extraído de Andrew Carroll (comp.) – Cartas do Front — relatos
emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007,
pp.329-334.
Há pouco, transportei o corpo de Joe de uma cova na floresta para
um lote no Cemitério Norte -Americano em Romagne, na França. Tive eu mesmo
que supervisionar o trabalho por causa do pequeno número de ofic iais. Fiz,
portanto, o reconhecimento do corpo. Um trabalho que eu, como o senhor deve
imaginar, preferia a morte a cumpri -lo, mas que precisava ser feito.
Serei bastante franco em meu relato e sei que poderei magoá -lo,
porém sei que o senhor gostaria de s aber. Estou muito contente por ter sido eu a
realizar isso, e não o senhor ou a mamãe, pois isso os deixaria transtornados.
Com os três rapazes de cor designados para integrar minha unidade e
com uma caminhonete Dodge, atravessei 60 quilômetros pelas colin as. Em alguns
momentos, a estrada estava tão ruim que tínhamos que cruzar os campos e, em um
determinado ponto, tivemos que construir uma pequena ponte sobre um trecho onde
a estrada fora destruída .
Deixamos Romagne às 7h30 e ao meio -dia chegamos à cova na
floresta Harmont. Fiz os rapazes de cor escavarem o local da cova até que
chegássemos ao corpo, ou pudéssemos ver suas roupas. Vi primeiro seus pés e
pernas, e então o resto do corpo, da forma como tombara.
Ele estava vestido com roupas novas, portava sua capa de chuva,
bem como todo o equipamento, com exceção do rifle e do capacete. Como eu
esperava, não havia um caixão, mas simplesmente um cobertor sobre seu corpo, e
algumas tábuas soltas por cima .
Removemos o cobertor, as tábuas etc. e é claro que o cor po
encontrava -se bastante decomposto. A cabeça fora arrancara do corpo por uma alta
carga explosiva, mas o que restava do crânio jazia ali. O rosto fora completamente
destruído. Então, desabotoei o casaco e encontrei, ao redor do pescoço, a outra
placa de identificação, que bastava para certificar de quem se tratava.
Em seguida, o coloquei em um caixão que havíamos trazido conosco
e o levamos para dentro do carro. Removemos, então, o corpo de Carl Coombs, tal
qual fizéramos com o de Joe. O corpo de Coombs t ambém se encontrava em
avançado estado de decomposição e era um sujeito bem pesado de carregar.
O odor de ambos era terrível e tive de esquecer por um momento
quem eram. Usava luvas de borracha, mas mal conseguia tocar os corpos sem
arrancar-lhes a carne d os ossos. Por isso, tive de trabalhar com vagar e cuidado.
Quando os dois corpos estavam no carro, dirigimos de volta para
Romagne, seguindo por um caminho por trás das fronteiras alemãs. Chegamos ao
cemitério de Romagne por vol ta das 5h da tarde.
Ali entreguei os dois corpos aos coveiros que estavam presentes. Fiz
com que retirassem as roupas e as vasculhassem, obtendo bons resultados.
Na roupa dele encontrei: a última carta que o senhor enviou, um
canivete, uma caneta -tinteiro, um diário, o testamento, o livro dos Salmos, outro
livro com anotações referentes a toda correspondência que ele recebera e enviara ,
alguns pequenos retratos que recebera de casa, cerca de dez francos em dinheiro,
dois relógios, o dele e outro alemão, algumas moedas alemãs e carões -postais
alemães.
O diário é muito interessante e o livro dos Salmos, maravilhoso, o
que demonstra que morreu com a alma imaculada. Esse pequeno livro é conhecido
como “O salmo do pastor” e lhe foi presenteado por Emily M. Rogers. Nele, Joe
escreveu a pequena oração que se segue:
“rogo a Vós, oh, Deus, que eu tenha beleza interior. É essa a
minha súplica mais ardente. A maioria de nós, creio eu, reverá suas casas e seus
amigos. Se assim for, quantos amaldiçoarão cada bebida que tomaram, cada praga
que lançaram, cada vergonha que aqui cometeram e que, em casa, não teriam feito.
“isso põe em risco minhas divisas, minha disciplina, minha
popularidade e meu progresso. Essas quatro coisas são temporárias. A pureza
interior é permanente e é maior que todas as coisa s mundanas.
“esta guerra não durará muito. Tenho uma chance em 30 de
sobreviver. O que é um ano de serviço comparado à indulgência, digamos, 50 anos e
um ano de serviço; e uma consciência limpa pelos outros 50 anos? De qualquer
modo, depois, antes, agora, ou em qualquer ocasião, desprezo tudo o que não é
divino. Meu verdadeiro eu interior ressente diante de tudo isso.
“em segundo lugar, em nome do amor de mãe, pai, parentes, e tantos
amigos, eu desprezo tudo o que não é divino. Em nome do amor de Deus que
manteve todos bem e saudáveis em casa, no campo de treinamento, no mar, e que me
manteve em perfeita saúde desde minha chegada, por essa razão eu desprezo tudo o
que Deus despreza.”
Isso não é maravilhoso, pai? Gostaria que contasse isso ao dr. Day.
Há muitos outros versos menores, todos de grande interesse. No último dia do
diário, escrito em 14 de outubro, quando partia de Verdun para Harmont, ele
escreveu o seguinte:
“Oh, é difícil deslumbrar a paz quando as bombas do inimigo estão
estourando ao nosso re dor. „Paz.‟ Oh! Rogo a Deus que ela venha antes do
amanhecer, e que as preces de minha mãe sejam atendidas.
“há todo tipo de relato desalentador a respeito do trabalho que temos
pela frente. Enviei uma carta de natal para casa, e notícias para Art. Sinto -me
bem e ok esta noite. A tempestade parece ter se dissipado às 2h30 da manhã. Os
velhos camaradas franceses levam o gás bastante a sério.”
O pobre garoto rogou por paz e Deus a concedeu a ele, pai. Quão
feliz estou que Deus o tenha atendido tão prontamente. Ele estava preparado para
morrer, e nada sofreu. Fico feliz ao pensar nisso, mas somente Deus sabe quanto
sinto a falta dele. Eu o amava muito.
Pai, essas coisas são extremamente valiosas para o senhor. Vou
preservá -las cuidadosamente; embora já estejam em péssimas condições, graças à
umidade do solo e do corpo. Estão igualmente sujas e malcheirosas. Limpei tudo
com gasolina e, em um ou dois dias, estarão ok.
Levarei tudo isso para mamãe, todas as coisas. Peço a vocês, porém,
que as mantenham n a família, depois que os senhores partirem para se juntar ao
pobre Joe. Atravessei um verdadeiro inferno para consegui -las, e, depois do senhor e
da mamãe, elas pertencem a mim.
Joe agora descansa ao lado de Carl Coombs no cemitério Romagne,
na companhia de outros 35 mil. É um belo local e tornou -se nosso Monumento
Nacional na França. Rogo para que permitam que o corpo dele permaneça aqui
para descansar em paz . Sei que ele apreciaria que assim fosse.
Agora ele se encontra sepultado em um caixão; e, no Dia d a
Memória 2, seu túmulo receberá uma bela decoração. O general Pershing lá estará
para prestar seus respeitos aos homens que lutaram sob suas ordens e será uma
bela cerimônia.
Agradeço a Deus por tudo que conquistei. Fui muito bem
recompensado por cada minu to que aqui passei. Aguardo, em breve, uma promoção
e, na proxima semana, me desligarei de minha companhia para me tornar um
oficial ajudante.
Esperamos terminar nossos afazeres aqui dentro dos próximos meses.
Então, todos voltaremos para casa. A maior par te do trabalho agora é da
artilharia e pouco se faz com armas leves.
Tirei muitas fotos. Entreguei -as ao fotógrafo do campo ontem, e as
terei de volta em uma semana. Por sorte, quando olhava em minha mala na noite
passada, encontrei vários mapas de Romagne , então poderei lhes mostrar
exatamente onde se localiza o cemitério.
Quanto mais tempo permaneço aqui, mais percebo o cuidado que
dedicam a nossos cemitérios, e estou convencido de que nosso Joe deveria permanecer
aqui.
Remover o seu corpo foi uma experiê ncia e tanto, e foi tão custoso
que espero que o senhor permita que ele permaneça aqui como parte do grande
monumento à contribuição do nosso país à Guerra Mundial.
2
Toda ultima segunda-feira de maio, em memória aos soldados mortos na
guerra (N.E).
Iniciou -se na França uma campanha para que cada moça se torne
responsável por um túmulo, ou um conjunto de túmulos. Há uma jovem que cuidará
de ambos, ou seja, do de Joe e do de Carl Boombs.
Ela é a única moça que visitou, até agora, o túmulo dos dois. Foi
até lá com dificuldade e sob grande risco. Apenas porque desejava Sr responsável
pelos túmulos depois de nossa partida. Ela escreveu à mamãe, e fala e escreve muito
bem em inglês. Sei que mamãe ficará contente em lhe escrever nos anos que virão.
Sempre que ela tiver tempo e condições de ir até lá, o fará de bom grado.
Ela está lendo o diário de Joe, o livro dos Salmos e lhes digo que
isso já é suficiente para causar uma boa impressão. Todos aqui têm sido ótimos
amigos para mim.
Sei que mamãe ficará satisfeita de ter essas coisas. A visão da
caligrafia de Joe significará mais para ela do que o pr óprio corpo dele. Por favor,
agora, deixem-no descansar em paz.
Sinto que fiz tudo o que estava ao meu alcance. A localização do
túmulo é: seção 9, lote 3, túmulo 155. Joe está sepultado na extremidade Nordeste.
Escreva logo, pai. Meu amor a todos.
Seu filho,
Art.
Um ano depois, o corpo de Joseph Thompson foi exumado e
levado aos Estados Unidos, onde foi sepultado no lote da
família em Watertown, em Massachusetts. David Thompson
permaneceu na França até 1923 e, mais tarde, colaborou com o
Serviço de Registro de Túmulos dos Estados Unidos na escolha
do ‗soldado desconhecido‖ no Cemitério Nacional de Arlington.
Lila Oliver escreve a uma amiga contando -lhe sobre
as atitudes dos soldados feridos que ela desenha
como artista voluntária da USO3
Além dos estimados 25 milhões de soldados mortos durante a
Segunda Guerra Mundial, milhões de outros ficaram para sempre
incapacitados. Embora tenham voltado vivos para casa,
enfrentaram um difícil período de reabilitação que, muitas
vezes, incluía exaustivas sessões de fisioterapia e numerosas
cirurgias, especialmente nos casos de cegueira, paralisia,
queimaduras graves e amputações de membros. Confinados a
uma cama de hospital durante dias, semanas ou meses seguidos,
longe de amigos e entes queridos, esses homens tinham de
superar o tédio constante. Lila Oliver, uma jovem de 22 anos
que se formara no Philadelphia College of Art, reconhecia que
não havia nada que pudesse fazer para aliviar o sofrimento
físico daqueles jovens feridos, mas, por meio de seu talento,
procurava ao menos oferecer-lhes momentos mais agradáveis.
Em 1943, ela se inscreveu como voluntária na ―Unidade de
Desenho‖ da USO, que percorria hospitais militares por todo o
país para fazer retratos dos soldados. Em uma carta endereçada
à sua amiga Terry, Lila responde sobre se os pacientes
a p r e c i a v a m o u n ã o s e u t r a b a l h o 4.
Acredito que pouco reconheçam seu valor artístico e, do meu ponto de
vista, eu diria que nada sabem. Pouco se importavam com uma linha delicada e
sensível. Por outro lado, saúdam minha chegad a ao hospital para desenhá -los.
Acham que essa é uma “excelente” idéia e apreciam a semelhança dos desenhos,
uma vez que eu os retrato de uniforme, quando na realidade se encontram vestidos
de pijamas. Minha tirada favorita é: “Sabe, já vesti mais soldados do que
qualquer um aqui”, sempre arranca algumas risadas. É para isso que estou aqui,
3
As United Service Ortanizations (USO) eram instituições civis sem fins
lucrativos q ofereciam serviços de apoio psicológico e recreativo aos
membros doExército norte-americano (N.T.)
4
Extraído de Andrew Carroll (comp.) – Cartas do Front — relatos
emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007,
pp.335-339.
não para ser “artista”, mas... para dar aos rapazes um motivo a mais de
descontração e para fazê -los esquecer de que estão doentes e, até mesmo, bajulá -los
um pouco. Quase todos eles me confidenciam: “Sabe, esta é a primeira vez que
alguém faz o meu retrato — espero que eu não faça o carvão se quebrar...”
Oliver também se comovia com o modo pelo qual os homens
lidavam com o sofrimento. Em uma carta enviada logo após a
guerra a Terry, cujo marido, Allan, estava em serviço, Lila
comentou as diferentes atitudes nas várias alas do hospital. Ela
estava especialmente encantada com um jovem soldado, que
atuava como médico, antes de ser baleado em combate.
Querida Terry,
O tempo voa. Meu trabalho, a fotografia, a cantina, as idas ao
hospital local para desenhar, tudo conspira para me manter ocupada.
Que longa aquela carta. Mais dessas, por favor. Com certeza estás
pensando em Allan quando me perguntas se os rapazes mudaram mu ito. Engraçado
— mas acho que não mudaram. Alguns, depois de passarem por experiências
suficientes para toda uma vida, estão mais velhos, têm até cabelos brancos. Embora
um pouco mais velhos, têm um entusiasmo maior em relação à vida. Parece
contraditório? Mas não é. Eles viram coisas demais, por isso estão mais velhos,
mas aquilo pelo qual passaram faz com que apreciem cada dia e cada hora. Para
ser sincera, nunca antes tinha visto esses rapazes aqui, mas, entre meus modelos,
estão os tipos de pessoas que já conhecia. Há os estudantes e os pés -de-valsa, o
espertinho, o festeiro, o universitário bajulador, o queridinho de todos, o pessimista
e o otimista (mais deste último) e até mesmo o filhoinho da mamãe manteve sua
individualidade.
Me perguntas se acredit o que os rapazes estejam voltando para casa
mudados e diferentes e, para dizer a verdade, não acho que isso aconteça; eles têm
novas idéias, uma aparência mais madura , o que é suficiente para levar a sério
uma vida mais estável, mas estou convicta de que, ao voltar, a maioria dos
soldados mantém, em essência, a mesma estrutura de caráter que demonstravam
quando se apresentaram ao serviço. Suponho que haja quem discorde. De fato, a
reação das famílias logo após a chegada dos rapazes cria tantos problemas qua nto
aqueles que eles já traziam consigo. Não desejam que os tratemos de modo especial,
mas que os deixemos em paz. Não esqueceram como é estar em casa, nem como se
comportar entre civis. Desde o momento da partida, guardaram cuidadosamente
todas as pequenas lembranças que puderam reunir. Esses garotos não esqueceram.
Ainda cederiam seu lugar em um bonde a uma senhora tão prestativamente quanto
qualquer outro que não tenha abandonado a cidade, sem necessidade de aulas,
livros de instruções ou dez lições fáce is para se tornar um civil. A maioria deles
não consegue compreender por que as pessoas pensam que eles precisam de conselhos
em relação a como se comportar em sua primeira licença nos Estados Unidos. Isso
foram eles que me disseram.
Os incapacitados? Dese jam ser tratados de forma sincera e honesta.
A maioria dos rapazes tem mais coragem do que eu julgava possível. Se não nos
compadecermos ou virarmos o rosto com olhares compridos e tristes, eles ficarão
bem. Precisam de uma oportunidade. Digo que não devem os ter pena deles; mas não
disse que não devamos ajudá -los; ainda mais certo é que não devemos nos esquecer
deles. Como poderíamos compensar a perda de uma perna aos 20 anos de idade?
Desenhei, no último domingo, um jovem da força médica, paciente de
um dos hospitais de Atlantic City. Seus dois companheiros de quarto foram
recentemente transferidos e ele se encontrava sozinho. Foi por isso que me
mandaram até lá. Era um rapaz de uma admirável disposição e brilhantes cabelos
ruivos, com um tufo espetado no a lto da cabeça. Este garoto passava por uma série
de neurocirurgias. Ele me contou como fora ser médico no teatro de guerra europeu.
“Passamos a maior parte do tempo atrás das linhas. Então, quando
os rapazes são atingidos , uau, é preciso ir até lá para aju dá-los e resgatá-los. Se as
coisas pioram ainda mais, entramos em combate. E sempre há aquele que faz algo
estúpido e acaba se machucando. Então, precisamos arriscar nosso pescoço para
arrastá-lo de lá. Claro que juramos que nunca mais faremos isso — afinal, não é
nossa culpa se esses sujeitos correm riscos de modo tão estúpido! Mas, na ocasião
seguinte, vamos ao seu encontro desgraçadamente, fazemos tudo outra vez.”
Ele me contou como fora atingido.
“Atacávamos um ninho de metralhadoras e havia muito fogo.
Arrastei-me para ajudar alguns homens. Próximo dali, um alemão fora ferido e,
por isso, avancei vagarosamente para prestar -lhe os primeiros socorros. Ele estava
muito mal. Os boches me viram e cessaram o fogo. Esperaram até que eu
finalizasse o curativo daquele sujeito e, então, abriram fogo contra mim —
acertaram-me na perna! Naturalmente, nossos rapazes ficaram loucos de raiva,
pois testemunharam tudo. Pegaram o grupo todo, e os poucos alemães que restaram
foram postos para marchar com as mãos para o a lto, enquanto nós aguardávamos
por aquele que atirara em mim. Ele foi o último a sair. Então, todos os rapazes
gritaram juntos para mim: „Ei, veja isso, garoto!‟ , e, juntos, deram cabo dele.
Tomamos os outros como prisioneiros.”
Quando terminei o desenho , ele o aprovou e me disse seu nome. Era
Goldblatt. “Mas pode me chamar de Goldy.”
Esta também foi uma carta comprida. Fizeste uma pergunta que me
toca profundamente.
Meu dente de siso está despontando — em cima, à direita. Dói
quando mastigo e limita minh a mastigação. Sequer posso apreciar um bom bocejo.
Mas estou com sono. Hora de dormir.
Com amor,
Lila.
Olwyn Green escreve uma carta final de amor para o
seu marido Charlie, que serviu tanto na Segunda
G u e r r a M u n d i a l q u a n t o n a G u e r r a d a C o r e i a 5.
Independentemente do seu ente querido ter desaparecido para
sempre ou regressar para casa uma pessoa visivelmente
diferente, as esposas, os familiares e os amigos dos homens e
mulheres que serviram nas forças Armadas frequentemente
precisam cicatrizar suas próprias feridas no pós-guerra e
enfrentar também um período de adaptação. Nascido em 26 de
dezembro de 1919, em South Grafton, na Austrália, Charlie
Green uniu-se à milícia aos 16 anos e partiu para lutar na
Segunda
Guerra
Mundial,
inicialmente
c omo
oficial
de
infantaria e, em seguida, como comandante de um batalhão
inteiro. Sua jovem esposa Olwyn aguardava com grande
expectativa sua volta para casa, após anos de uma espera
angustiante. A relação entre eles permaneceu forte e amorosa,
mas quando Charlie voltou para casa sua esposa descobriu que
ele já não era o mesmo. O homem que escrevera cartas
apaixonadas durante a guerra era agora taciturno e, muitas
vezes, parecia pouco à vontade no convívio com outras pessoas.
O comandante de batalhão que recebera uma Condecoração por
Serviços Distintos atormentava -se com a ideia de ter uma
fazenda. Ele estava perdido. Sentia falta da amizade de seus
antigos camaradas e do sentimento de vida e morte associado às
missões. Em junho de 1950, rompeu a Guerra da Co reia e, para
espanto de sua esposa, Charlie estava ansioso para participar
dos combates. ―Está na hora de soltar os cavalos‖, explicava
ele. Em setembro, foi designado oficial -comandante do 3º
Batalhão do Regimento Real australiano. Em 12 de setembro, a
caminho da Coreia, Charlie enviou a primeira carta para casa:
―O problema não é tão ruim quanto possas imaginar. Na
verdade, assemelha-se mais a uma guerra civil e, com a nossa
unidade, temos pouco com o que nos preocuparmos.‖ Apenas
duas semanas depois, ele se encontrava na Coreia e o carinho
que tantas vezes manifestara em suas cartas da Segunda Guerra
Mundial reapareceu. ―Como estás, minha querida, e também, é
claro, minha pequena?‖, escreveu Charlie em 27 de outubro,
referindo-se à sua filha Anthea, de 3 anos.
5
Extraído de Andrew Carroll (comp.) – Cartas do Front — relatos
emocionantes da vida na guerra, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 2007,
pp.339-342.
Espero que estejam tão felizes quanto for possível. Temos ainda
outros 30km a percorrer até nosso objetivo final e, depois disso, a coisa deve
terminar. ...Deus te abençoe, meu amor, e mantenha -se bem. Te amo mais do que
nunca e espero que possamos estar juntos novamente em breve.
Antes de Olwyn receber a carta, o carteiro local veio de
bicicleta até sua casa, em Grafton, trazendo um envelope cor de-rosa. Ela permaneceu congelada nos degraus em frente à
casa. ―Lamento informar que seu marido, o tene nte-coronel
Charles Hercules Green, 2/37504‖, começava o telegrama, ―foi
ferido na Coreia, sofrendo ferimentos de metralha...‖ Embora
houvesse motivo para esperança — ele estava ―apenas‖ ferido —
, Olwyn sabia que seus piores temores haviam se concretizado.
Por volta da meia-noite do dia seguinte, depois de uma
angustiante espera, ela recebeu a notificação de que seu marido
havia, de fato, morrido durante um ataque da artilharia chinesa.
Ele tinha 30 anos. Décadas depois, Olwyn Green sentou -se e
reviveu seu antigo relacionamento, por meio de todas as cartas
que ele lhe enviara e que, até aquele momento, não havia relido.
Em 1992, morando e Sydney, Olwyn Green escreveu uma última
carta ao marido:
Sydney, 1992
Meu amado Charlie,
Faz muito tempo que não lhe escrevo. Não achava que você receberia
qualquer mensagem. Agora já não tenho tanta certeza.
Veja só, tenho revisitado o passado. Revi sua vida antes de nos
conhecermos. Adorei fazer isso. Um retrato seu quando bebê me lembra muito
Anthea, quando ela estava crescendo. Tenho pensado muito sobre o tempo curto,
mas feliz, que passamos juntos. Os velhos tempos foram maravilhosos, não foram?
Parece que foi ontem e que você estava aqui presen te. Então sonhei contigo. Por
isso achei que precisava escrever.
Acho que aprendi bastante, meu querido.
Não há motivo para
questionar ou lamentar o passado. Tudo passou. Por anos, me preocupei com o que
nos aconteceu. Uma coisa já não me amedronta mais. É o tempo. O tempo não
existe. Cometemos um grande erro ao medi-lo em minutos e anos, ou em passado e
futuro. Nosso casamento foi para a vida inteira. Algumas ocasiões assustadoras em
que olhei para o futuro me fizeram perceber que talvez, de vez em quando, nos é
permitido um vislumbre do infinito. Acho que é o medo que nos impede de ver o
futuro — ou de vê-lo de forma adequada. Faz 40 anos que não vejo você, mas esse
tempo parece ter desaparecido.
Ultimamente, parei de ter o pesadelo no qual você aparecia muito
distante e não conseguia entrar em contato comigo. Odiava esse sonho, que sempre
se repetia. Nunca consegui entendê-lo.
Como disse, outra noite sonhei com você. Foi um sonho bem
diferente. Você veio para perto de mim . Então, uma luz estranha e muito brilhante
iluminou a sua face esquerda, de modo que eu podia ver seus olhos. A luz revelava
lágrimas, e isso me acordou. Não posso suportar imaginá -lo chorando. Por favor,
não chore. As lágrimas — minhas ou suas — não mais são necessárias. Não
precisamos mais chorar. O que compartilhamos foi belo demais para que choremos.
E, embora, em um certo sentido, tenhamos falhado, Deus sabe que tentamos.
Não sou mais jovem, Charlie. Tenho rugas e cabelos grisalhos.
Aquela beleza juvenil que você me pediu para manter desapareceu. No entanto,
ainda tenho bastante energia. Precisei dela para cuidar de nossos netos.
Sinto agora uma certa maturidade. Não sinto mais aquelas dores no
corpo que tanto me incomodavam ao pensar em você. Na verdade, o modo como me
sinto traz sempre a lembrança de uma linha que tu me enviaste da Coreia:
“Estação de névoa e delicada fertilidade .” É exatamente assim que me sinto. Você
se lembra de como eu gostava de poesia? Não posso impedir que ela me invada o
pensamento. Foi assim que escolhemos o nome de Anthea 6.
Trabalhei e economizei o suficiente para garantir uma certa
tranqüilidade. Agora, posso aproveitar os dias de outono. Sinto-me feliz e, sim,
sinto-me rica, embora jamais tenha conseguido preencher o vazio que você me
deixou. Não era um vazio. Sempre houve seu amor para me amparar.
Espero ansiosamente o dia em que nossos dois netos sejam homens
feitos. Eles são belos meninos. O mais novo é a cara de Anthea quando ela era
pequena, tanto na aparência quanto na determinação de trilhar seu próprio
caminho de vida. O caminho de Anthea sofreu muitos desvios antes que ela
descobrisse quem era verdadeiramente. Sua filha tem a sua força. O mais velho,
dizem alguns, se parece comigo. Na aparência, é como você — bonito.
Em todas aquelas centenas de cartas que lhe escrevi, eu sempre lhe
disse quanto o amava. Mas talvez não tenha dito que você é o melhor ser hum ano
que jamais conheci.
6
Nome de origem grega, relacionado à floração, primavera.
Fique em paz e lembre-se de que sempre te amei.
Sua querida esposa,
Olwyin.