filosofia contemporânea
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filosofia contemporânea
filosofia contemporânea carlos joão correia 2014-2015 1ºSemestre Paul Ricœur. L’Identité Narrative. 1986. Esprit (1988) 7/8. 295-304 hipótese: identidade pessoal “O quadro conceptual que proponho submeter à prova de análise repousa sobre a diferença fundamental que faço entre dois usos principais do conceito de identidade: a identidade como mesmidade (latim idem, inglês same, alemão gleich) e a identidade como si-próprio [soi] (latim ipse, inglês self, alemão selbst). A ipseidade não é a mesmidade. A minha tese é que muitas dificuldades que obscurecem a questão da identidade pessoal resultam da falta de distinção entre os dois usos do termo identidade. Iremos ver que a confusão não é sem razão, na medida em que as duas problemáticas se recobrem num certo ponto. A determinação desta zona de recobrimento será, a este respeito, da maior importância.” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 108-109 zona de confusão “Dito isto, o si [soi] encontra-se em intersecção com o mesmo num ponto preciso, precisamente a permanência no tempo. É, com efeito, legítimo interrogar-se sobre o tipo de permanência que convém a um si [soi], quer a tomemos, na linha de atribuição, por um carácter, definido por uma certa constância das suas disposições, quer lhe reconheçamos, na linha da imputação, a forma de fidelidade a si próprio que se manifesta na maneira de manter as suas promessas. E contudo, por mais próxima em aparência, que esta manutenção de si próprio [...] esteja da permanência no tempo do idem, trata-se de duas significações que se recobrem sem se identificar.” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 111 zona de confusão e paradoxos da identidade pessoal “O problema que nos ocupará, a partir de agora, procede precisamente da sobreposição entre as duas problemáticas, a qual se produz desde que tratamos da questão da permanência no tempo. A minha tese, desde logo, é dupla: a primeira é que a maioria das dificuldades que ocupam a discussão contemporânea sobre a identidade pessoal resulta da confusão entre duas interpretações da permanência no tempo; a segunda é que a noção de identidade narrativa oferece uma solução às aporias referentes à identidade pessoal.” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 111-112 1984 Derek Parfit “O que faz a força da obra de Parfit é que ele extrai todas as consequências de uma metodologia que só autoriza uma descrição impessoal dos factos provenientes, seja de um critério psicológico, seja de um critério corporal da identidade . Segundo a visão que ele chama «reducionista» e que é sua, «o facto da identidade pessoal através do tempo consiste apenas em atender a certos factos particulares tais como eles podem ser descritos sem pressupor a identidade da pessoa ou sem sustentar explicitamente que as experiências na vida desta pessoa são possuídas por ela, ou mesmo sem pretender explicitamente que esta pessoa exista. Podese descrever estes factos de uma maneira impessoal» (210).” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 112 A identidade pessoal não é o que importa “Nós não somos entidades que existem separadamente, i.e. para lá dos nossos cérebros e corpos, assim como dos vários acontecimentos [events] físicos e mentais inter-relacionados. A nossa existência apenas envolve a existência dos nossos cérebros e corpos, o fazer as nossas acções, assim como pensar os nossos pensamentos. […] A identidade pessoal não é o que importa.” Derek Parfit: Reason and Persons: 216-217 Derek Parfit “Se a conexão, seja psíquica, seja física, é a única coisa importante sobre a identidade, então diz Parfit, a identidade pessoal não é o que importa. Esta asserção audaciosa tem implicações morais importantes, a saber, a renúncia ao princípio moral da identidade própria e a adopção de uma espécie de apagamento quase budista da identidade. Mas, perguntarei, a quem a identidade deixa de importar? Quem é intimidado a despojar-se da asserção de si senão o si que foi colocado entre parênteses em nome da metodologia impessoal?” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 113 Derek Parfit “Mas tenho uma razão mais importante para tomar a sério o livro de Parfit. Esta razão refere o uso sistemático que é feito dos puzzlingcases - ou casos embaraçantes -, extraídos essencialmente da ficção científica, introduzida fortemente neste domínio de investigação. É o recurso a estes casos imaginários que nos conduzirá de seguida à interpretação narrativa da identidade que oponho à solução de Parfit. Proporei, em particular, uma confrontação entre os puzzlingcases da ficção científica e os casos embaraçantes propostos pela ficção literária na minha elaboração da noção de identidade narrativa. Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 113 Derek Parfit “Os casos embaraçantes [puzzling-cases] provêm [sont posés], no essencial, de uma tecnologia imaginária aplicada ao cérebro. A maioria destas experiências são, por agora, irrealizáveis; elas permanecerão talvez para sempre; o essencial é que elas sejam concebíveis. Três espécies de experimentação são imaginadas: transplantação do cérebro, bissecção do cérebro e - caso ainda mais notável - fabricação de uma réplica exacta do cérebro.” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 113 Robert J. White O Príncipe e o Sapateiro “Assim, sem qualquer dificuldade, podemos ser capazes de compreender a mesma pessoa aquando da ressurreição, embora num corpo não exactamente igual na estrutura ou nas partes que ele tinha neste mundo (…). Se a alma de um príncipe, transportando consigo a consciência da vida passada de príncipe, penetrar e habitar o corpo de um sapateiro, mal este tenha sido abandonado pela sua própria alma, todos poderíamos verificar que ele seria a mesma pessoa que o príncipe, apenas responsável pelas acções do príncipe; mas quem é que diria que era o mesmo ser humano [do que o príncipe]? Também o corpo contribui para a feitura do ser humano e, para toda a gente, suponho eu, determinaria o ser humano neste caso, pelo que a alma, comportando todos os pensamentos principescos não constituiria outro ser humano e o sapateiro continuaria a ser o mesmo para todos excepto para si próprio.” John Locke. An Essay 2.27.15 [17] “Considere-se, por exemplo, esta hipótese médica: realiza-se uma separação dos dois hemisférios que constituem o cérebro de uma pessoa, transplantando-os em seguida para crânios distintos: que sentido tem a afirmação de que existe uma identidade pessoal se a pessoa primitiva deu origem a duas outras pessoas diferentes? E se hipoteticamente as duas novas pessoas constituídas não forem realmente distintas, a não ser em termos espácio-corporais que sentido tem afirmar-se a identidade pessoal como uma propriedade proporcional a cada ser humano? Esta experiência de pensamento, este puzzling case, nas palavras do autor, certamente mirabolante, mas conceptualmente admissível – afinal, no passado, foi prática médica comum a cisão do corpo caloso que une os dois hemisférios – permite criar a suspeita na nossa crença tão enraizada de identidade. Com efeito, segundo Parfit, o que esta experiência de pensamento faz sobressair é a indeterminação súbita da unicidade de uma experiência pessoal, isto é, a sua identidade” Carlos João Correia. Sentimento de Si e Identidade Pessoal: 101 “Procurar sustentar uma identidade pessoal seria, segundo a sua [de Parfit] visão, tão sensato como perguntarmo-nos se em face de uma linha geométrica bifurcada, as duas linhas criadas seriam idênticas ou não à primeira. Ou então, se se preferir uma analogia biológica, seria o mesmo, para Parfit, se nos perguntássemos se as amibas derivadas da sua natural bisecção reprodutiva são ou não a mesma do que aquela que esteve na sua origem. Segundo o filósofo inglês, quando nos confrontamos com este tipo de dilemas as nossas respostas são em parte positivas, em parte negativas, o que mostra, segundo ele, o carácter vago e impreciso da questão posicionada. ” Carlos João Correia. Sentimento de Si e Identidade Pessoal: 102 “Replicantes” “Suponhamos que a minha réplica é enviada sobre a superfície de qualquer planeta e que eu próprio sou «teletransportado» ao encontro da minha réplica. Suponhamos ainda que durante a viagem o meu cérebro é destruído e que eu não me encontre com a minha réplica, ou ainda que só o meu coração é danificado e que eu encontre a minha réplica intacta, a qual me prometeria tomar conta da minha família e da minha obra após a minha morte. A questão é de saber se, num caso ou noutro, eu sobrevivo na minha réplica. Como se vê, a função desses casos embaraçantes é de criar uma situação tal que seja impossível decidir se sobrevivo ou não. O choque de retorno da indizibilidade da resposta é de minar a crença que a identidade, seja no sentido numérico, seja no sentido da permanência no tempo, deva sempre ser determinada; se a resposta é indecidível, diz Parfit, é porque a própria questão é vazia; chega então a conclusão: a identidade não é o que importa” Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 113 A síndrome da Torre Eiffel A síndrome da Torre Eiffel (i) "Imaginemos que, num belo dia, os lisboetas [les Lyonnais] decidem construir na Praça dos Restauradores [place Bellecour] uma torre que se assemelha traço por traço com a torre Eiffel. Para realizar este projecto ambicioso, decide‑se reencontrar os planos originais de Gustave Eiffel e de produzir a partir deles uma torre com a mesma escala, como o mesmo número e o mesmo género de traves de ferro, dispostas umas em relação às outras do mesmo modo do que acontece na torre Eiffel. Para levar a semelhança o mais longe possível, decide-se fabricar traves de ferro segundo as técnicas, os procedimentos e os métodos em uso em 1889 [...]. Encontramos, assim, duas torres Eiffel, a de Paris e a de Lisboa e, até aí, o risco de confusão é relativamente limitado: estas duas torres são simultaneamente numericamente diferentes e qualitativamente idênticas. Imaginemos agora que durante uma violenta tempestade a torre Eiffel de Paris desaba. ➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩➩ A síndrome da Torre Eiffel (ii) “Imaginemos, em seguida, que os lisboetas oferecem por sua vez a sua torre Eiffel aos parisienses para os consolar desta perda. Decidese assim deslocar a torre Eiffel lisboeta da Praça dos Restauradores ao Champ-de-Mars, na localização exacta da antiga torre Eiffel. E é aqui que o risco de confusão aparece. Na medida em que só subsiste uma única torre Eiffel, a ilusão de óptica pode iniciar-se e corre-se o risco de considerar esta torre Eiffel como a torre Eiffel, ou dito de outra forma de tomar a réplica pelo original [...]. Da mesma forma que ao folhearmos um livro sobre Piero della Francesca acreditamos estar a admirar a sua obra autêntica, os turistas em Paris acabariam por considerar que eles visitam a torre Eiffel embora não se tratando dela. É importante não esquecer este ponto, pois numerosas teorias sobre a identidade pessoal sofrem precisamente do que se poderia chamar a síndroma da torre Eiffel, isto é, desta passagem intempestiva e como insensível da identidade qualitativa à identidade numérica." Stéphane Ferret. Le philosophe et son scalpel. Paris: Minuit. 1993, 14‑15