O currículo "Dentes de Sabre" (2)

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O currículo "Dentes de Sabre" (2)
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O currículo "Dentes de Sabre" (2)
BENJAMIN, H. (1977). The curriculum: context, design and development.
Edinburgh: Oliver and Boyd in association with The Open University Press.
Era de se supor que tudo teria ido bem para sempre com este bom sistema
educativo, se as condições de vida daquela comunidade tivessem permanecido as mesmas
para sempre. Mas as condições mudaram, e a vida que outrora tinha sido tão segura e feliz,
no vale do reino das cavernas, tornou-se insegura e atribulada.
Aproximava-se um novo período de glaciação naquela parte do mundo. Um
grande glaciar desceu da montanha vizinha. Ano após ano, foi-se aproximando da
nascente do rio que passava através do vale da tribo, até que, com o tempo, atingiu a
corrente e começou a derreter na água. A sujidade e as pedras que o glaciar apanhara na
sua longa viagem foram lançados no curso da água. A água tornou-se lamacenta. O que
outrora fora uma corrente cristalina, em que facilmente se podia ver até ao fundo, era
agora uma corrente de água leitosa que nada permitia ver.
Imediatamente, a vida da comunidade mudou num aspecto muito importante. Já
não era possível apanhar peixe à mão. Não se conseguia enxergar o peixe na água
lamacenta. Além disso havia alguns anos que o peixe se tinha tornado mais ágil e
inteligente. O peixe estúpido, pesadão e arrojado, que de início existia em grande
quantidade, foi apanhado à mão de geração em geração, até que ficaram apenas os peixes
de inteligência e agilidade superiores, que agora se escondiam na água lamacenta debaixo
dos blocos glaciares recentemente depositados, medindo as mãos do mais conhecedor e
treinado dos apanhadores de peixe. Por muito boa que tivesse sido a educação em
APANHA-DE-PEIXE dos homens da tribo, eles não conseguiam apanhar peixe, quando o
não havia para apanhar.
As águas da fusão da camada de gelo que se aproximava também tornaram a
região mais húmida. O terreno tornou-se pantanoso, mesmo bastante longe das margens do
rio. Os estúpidos cavalos peludos, com apenas cinco ou seis palmos de altura eram
ambiciosos. Todos eles tinham desejos de se tornarem animais poderosos e agressivos, em
lugar de pequenos e tímidos. Sonhavam com um dia longínquo em que os seus
descendentes teriam 16 palmos de altura, pesariam mais de meia tonelada e seriam
capazes de atirar com os seus potenciais cavaleiros à terra. Sabiam que nunca poderiam
atingir esses objectivos numa região húmida e pantanosa, por isso foram em direcção às
planícies secas e vastas, longe dos campos de caça paleolíticos. Os seus lugares foram
tomados por pequenos antílopes, que desceram com a camada de gelo. Eram tão tímidos e
velozes e tinham um sentido tão agudo do perigo que ninguém conseguia aproximar-se
deles o suficiente para lhes darem cacetadas.
Os caceteiros-de-cavalos melhor treinados da tribo nada conseguiam na caça ao
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antílope. Uma educação para dar-cacetadas-nos-cavalos do tipo mais elevado não
conseguia quaisquer resultados, quando não havia cavalos em que dar cacetadas.
Finalmente, para completar a ruptura da vida e da educação paleolíticas, a recente
humidade acentuada do ar provocou pneumonia nos tigres de dentes de sabre, uma doença
a que aqueles animais são particularmente sensíveis e da qual a maior parte deles
sucumbiu. Uns quantos espécimes, escanzelados, dirigiram-se para o sul, para o deserto.
Já não havia, pois, tigres para afugentar e as melhores técnicas de o fazer tornaram-se
meros exercícios académicos, bons em si mesmos, talvez, mas inúteis para a segurança da
tribo. Surgira, entretanto, um perigo ainda maior, pois, com o gelo, vieram ursos ferozes
que não tinham medo do fogo, andavam pelos caminhos de noite e de dia, e que não era
possível afugentar pelos métodos mais avançados, desenvolvidos nos cursos de
AFUGENTAMENTO-DE-TIGRES das escolas.
A comunidade estava agora numa situação muito difícil. Não havia carne nem
peixe para alimentação, nem peles para agasalho, nem qualquer segurança contra a morte
que se passeava pelos caminhos de dia e de noite. Tinha de se fazer uma adaptação a esta
situação difícil, imediatamente, se a tribo não quisesse caminhar para a sua própria
extinção.
Felizmente para a tribo, havia homens da cepa de NOVO-PUNHO, homens de
habilidade para fazerem coisas e de ousadia para pensarem. Um deles, com o estômago
colado às costas, quedou-se junto do rio, tentando encontrar uma maneira qualquer de
conseguir peixe para comer. Depois de ter tentado várias vezes naquele dia a técnica
antiga sem resultado, acabou por rejeitá-la em profundo desespero e procurou em volta
algo de novo que lhe permitisse sacar peixe do rio. Havia umas quantas trepadeiras fortes,
mas esguias, penduradas das árvores ao longo da margem. Puxou-as para baixo e começou
a prendê-las umas às outras, mais ou menos sem objectivo. À medida que foi trabalhando,
foi tendo uma ideia do que podia fazer para matar a fome dele e da família, o que o aliviou
um pouco. Trabalhou mais depressa e inteligentemente. Por fim, ali a tinha - uma rede,
uma tosca rede de pesca. Chamou um companheiro a quem explicou o utensílio. Numa
hora, de lago em lago, apanharam mais peixe - o tal peixe inteligente na água lamacenta do que toda a tribo num dos melhores dias da apanha-de-peixe-à-mão.
Outro membro inteligente da tribo vagueava esfomeado pelas florestas. Tentara a
técnica da cacetada-nos-cavalos com os antílopes, mas depressa se convencera da sua
futilidade. Ele sabia que quem acreditasse na aprendizagem escolar para matar a fome
morreria. Tal como o inventor da rede de pesca, pôs de lado o que aprendera na escola e
procurou novos caminhos. Vergou uma árvore nova, forte e flexível, sobre um trilho de
antílope, pendurou dela uma trepadeira em forma de laço e fixou toda a armadilha de
forma tão engenhosa que um animal que passasse soltaria um engate e seria apanhado sem
possibilidades de fuga, quando a árvore se endireitasse de repente. Com uma série dessas
armadilhas podia conseguir, numa só noite, mais carne e peles do que uma dúzia de
caceteiros-de-cavalos, nos velhos tempos, numa semana.
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Um terceiro homem da tribo decidiu enfrentar o problema dos ursos ferozes,
esquecendo também o que lhe tinham ensinado na escola e começando a pensar de forma
radical e directa. Como resultado, cavou um poço fundo num trilho de urso, cobriu-o com
ramos de modo a que um urso passasse sobre ele sem suspeitas, caísse lá no fundo e
permanecesse aprisionado até que os homens da tribo chegassem e acabassem com ele
com paus e pedras à vontade. O inventor mostrou aos seus amigos como se cavariam e
camuflariam outros poços até que todos os trilhos em redor da comunidade ficaram
dotados deles. A tribo passou a ter mais segurança do que antes e, além disso, um
fornecimento suplementar de carne e peles.
Divulgadas as invenções, todos os membros da tribo se empenharam em
familiarizar-se com os novos modos de vida. Fabricaram redes de pesca, montaram
armadilhas para antílopes e ursos. A tribo estava ocupada e próspera.
Uns quantos, que iam usando a cabeça enquanto trabalhavam, faziam perguntas e
criticavam mesmo a Escola. "Estas novas actividades de FABRICO-E-LANÇAMENTODE-REDES-DE-PESCA, de ARMADILHAGEM e de ESCAVAÇÃO-DE-COVAS são
indispensáveis à vida moderna. Por que é que não podem ser ensinadas na Escola?"
A maioria segura e moderada replicou, de imediato, a esta pergunta simplória,
acentuando que, ali, estavam na lida de preservar a vida e a felicidade da tribo, e que
aquelas actividades nada tinham que ver com a Escola. Não se tratava de recitar lições e
que o melhor seria esquecerem as matérias escolares se quisessem sobreviver.
Os radicais persistiram na sua argumentação. "O USO-E-FABRICO-DE-REDESDE-PESCA,
a
CONSTRUÇÃO-E-OPERAÇÃO-DE-ARMADILHAS-PARAANTÍLOPES, a CAÇA-E-ABATE-DE-URSOS", salientavam eles, "requerem inteligência
e destreza - coisas que queremos ver desenvolvidas nas escolas. São também actividades
que precisamos de conhecer. Por que é que as escolas não as podem ensinar?"
Os anciãos sábios que controlavam a Escola sorriam indulgentemente a esta
sugestão: "Isso não seria EDUCAÇÃO. Seria mero treino e o currículo, com as disciplinas
que tem, está demasiado povoado. Não lhe podemos acrescentar essas modas e futilidades.
Só de pensar nisso, o corpo do grande NOVO-PUNHO, fundador do nosso sistema
educativo paleolítico, daria voltas no túmulo. O que nós precisamos de dar aos nossos
jovens é bases mais firmes no que é fundamental. Mesmo os graduados das escolas
secundárias não conhecem, de forma completa, hoje em dia, a arte da APANHA-DEPEIXE, brandem os cacetetes-para-cavalos de forma horrorosa e, quanto à velha ciência de
AFUGENTAMENTO-DE-TIGRES, bem, mesmo aos professores, parece faltar-lhes uma
real devoção pela matéria, coisa que nós, mais velhos, tínhamos na nossa juventude e
nunca perdemos."
"Mas, com os diabos", explodiu um dos radicais, "como é que qualquer pessoa de
bom senso pode estar interessada em actividades tão inúteis?"
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"Não seja tolo", disse um dos sábios anciãos, sorrindo muitíssimo indulgente.
"Nós não ensinamos a APANHA-DE-PEIXE, para se apanhar peixe: ensinamo-la para
desenvolver uma agilidade generalizada, que nunca pode ser desenvolvida pelo mero
treino. Não ensinamos CACETADA-NOS-CAVALOS, para abatê-los; ensinamo-la para
desenvolver uma força generalizada no aluno que ele nunca conseguirá obter de uma coisa
tão prosaica e especializada como MONTAGEM-DE-ARMADILHAS-PARAANTÍLOPES. Não ensinamos AFUGENTAMENTO-DE-TIGRES, para afugentar tigres;
ensinamo-lo com o propósito de dar aquela nobre coragem que permanece em todas as
situações da vida e que nunca poderia vir de uma actividade tão rudimentar como o
ABATE-DE-URSOS."
Todos os radicais se calaram perante esta afirmação, todos excepto o mais radical
de todos. Ele sentia-se humilhado, é certo, mas era tão radical que fez um último protesto.
"Mas - mas, de qualquer modo", sugeriu ele, "terá de admitir que os tempos
mudaram. Não poderiam, por favor, experimentar essas outras actividades mais actuais?
Pode ser que tenham algum valor educativo, apesar de tudo."
Mesmo os seus companheiros radicais sentiram que as coisas estavam a ir
demasiado longe. Os sábios anciãos estavam indignados. Os seus sorrisos indulgentes
desapareceram. "Se você mesmo tivesse educação", disseram severamente, "saberia que a
essência da verdadeira Educação é a intemporalidade. É algo que resiste através de
condições em mudança, como uma rocha sólida permanecendo firme, sem arredar
milímetro, no meio duma corrente tumultuosa. Devia saber que há algumas verdades
eternas e que o currículo "dentes-de-sabre" é uma delas!"

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