Caderno 04

Transcrição

Caderno 04
98
99
100
Krishen Jit, no debate Evolução Cultural
e a Dinâmica da Identidade e Tradição
101
“O reconhecimento da diversidade indígena tem incentivado uma
profusão de discursos contraditórios a respeito do que é tradição
cultural”
Antropólogos e lingüistas dirão que saberes tradicionais só
têm vitalidade quando continuam sendo transmitidos em
acordo aos contextos, as formas de enunciação e a
transmissão, próprios de cada uma dessas sociedades.
(...) nas aldeias, o acesso ao saberes tradicionais se tornou
cada vez mais restrito dadas às profundas transformações,
nos modos, nos ritmos da vida cotidiana, ritual, nas condições
adequadas ao filosofar e a possibilidade de transmitir
oralmente riquíssimas experiências e conhecimento.
Considero, no entanto, viáveis ações educativas que tenham
como meta consolidar os interesses dos mais velhos em
perpetuar e em transmitir suas experiências às gerações
mais jovens. Difundir fora de casa é de fato essencial para
que essas comunidades possam se reconhecer como
efetivos detentores de patrimônio e materiais diversificados.
O reconhecimento da diversidade indígena tem incentivado
uma profusão de discursos contraditórios a respeito do que
é tradição cultural e, como talvez poderão ver em qualquer
consulta à mídia, jornais etc., permitirá a vocês concluírem
rapidamente que a maior parte desses discursos retoma
velhas idéias a respeito de autenticidade, de aculturação,
uma série de noções que a antropologia já jogou fora.
Antropologicamente, resgatar uma cultura é um equívoco
profundo, isso absolutamente não faz sentido.
Dominique Gallois no debate Procurando
uma Identidade Cultural
102
“você que é sem nome,”
A idéia de identidade — e mais ainda, sua vivência — está
no
centro
de
inúmeros
desafios
e
paradoxos
contemporâneos. Se por um lado há uma tendência
mundializada de homogeneizar tudo, apagando diferenças e
memórias definidoras do que somos e fomos, por outro, há
um recrudescimento de atitudes fundamentalistas e
acentuando conflitos. Como escapar desse falso dilema?
Como valorizar a percepção de que os textos identitários —
que atravessam nossos corpos e mentes — produzem
significação ao longo de interações significantes com outras
pessoas, grupos e sociedades, não podendo ser fixados em
apenas um eixo? Como construir autonomia a partir dessas
interações? Como interagem os processos de criação e de
pertencimento?
Identidade e Autonomia: Desenhando
Novas Cartografias
“está sem discurso”
103
“religiosidade é exteriorizada dentro de sistema formais próprios
do espaço cultura”
Nós estamos vivendo hoje em uma sociedade fragmentada
e plural em que a religião não é mais fonte primeira de
sentido, porque as grandes instituições, inclusive as
eclesiásticas, estão ora mais, ora menos desacreditadas. E
há um excesso de ofertas religiosas ou pseudo-religiosas
de todo tipo. E hoje fazem sucesso as que apelam acima de
tudo para a emotividade e propõe novos sagrados. (...)
O que é religiosidade? Ela é a raiz do conjunto das dimensões
da vida e da pessoa, mas na medida que integra. Portanto,
a religiosidade leva, dá coerência a um projeto de vida. Por
quê? Por que o ser humano é histórico, ele é social. Por isso
que a religiosidade é exteriorizada dentro de sistemas formais
próprios do espaço cultura. Esta maneira concreta de viver
religiosidade constitui a religião.
Então, a religião surge mediante questionamentos e
respostas históricas do ser humano a respeito do sentido
último da vida. A vida é o processo histórico. Então, à medida
que eu estudo a vida, estudo o processo histórico, o processo
cultural. Normalmente a exteriorização da religiosidade se
dá numa comunidade religiosa marcada por mil contingências
históricas, grupos sociais, símbolos, cultos, preces, ritos,
formulações, normas. Daí a diversidade de religiões, de cultos
ou de filosofias de vida.
Então, a religião por certo é importante. Porém, é uma
importância relativa. A fé é o importante absoluto. Nesse
sentido a religião é um instrumento e a fé é o objetivo último.
Em sentido amplo, a religiosidade pode ser chamada também
de fé, embora a disponibilidade da pessoa ao sentido
fundamental de sua existência não se identifica somente na
sua entrega condicional a alguém reconhecido e amado
como razão última de sua vida. Não. Para quem crê, a vida
tem um rumo bem mais definido. Nesse caso a religiosidade
não é substituída pela fé. A religiosidade é iluminada pela fé
(...).
(...) Outra questão que a gente pode abordar é o mundo
das religiões. Dizer e pontuar que a atitude de uma pessoa
diante do fenômeno religioso não é só resultado de
conhecimento, de raciocínio e nem de fundo psicológico.
Porque a psicologia da religião tem constatado a importância
da dimensão social na formação de tal atitude. Ante mesmo
de qualquer questionamento intelectual, a pessoa se
embebendo inconscientemente das tradições religiosas de
seu ambiente, costumes, ritos, normas e crenças. Surge
assim um pano de fundo global, isto é, um modo de ver, de
valorizar, o que vai exercer forte influência na avaliação do
mundo e nas atitudes da pessoa.
A religião é uma produção social em vista da vida, já foi dito
aqui e acentuado. É um dado histórico. A religião não
começou com Moisés, Abraão, Jesus. Já haviam outras
religiões. Os grupos humanos para encontrar o sentido da
vida, as sociedades para se manterem vivas produzem
religiões como produções culturais.
A religião é problema da pessoa, do grupo. Não é problema
de Deus. Por isso, não se pode ser uma religião alienante e
sim que estuda, questiona, responde. Porque é no meio
desse questionamento, dessas respostas, é que surge o
104
“A religião é uma produção social em vista da vida”
transcendente. Então será sempre uma resposta histórica
reforçada pela fé, como uma resposta ao sentido último da
vida. E também perceber essas relações de forma crítica,
analisando, claro, todo o processo e posicionamento histórico
transformador.
Vejo que estas descobertas são através de várias religiões.
Descobrindo as diversas religiões como uma produção
humana, na tentativa de dar uma resposta aos diversos
questionamentos, qualquer resposta em nível de religiões
sempre será incompleta. E aqui a gente poderia abordar a
questão da modernidade, o que houve também no Brasil.
Mas passemos a questão das religiões e culturas. Eu queria
pontuar também neste sentido de que o ser humano na
profundidade do ser coloca questões básicas. O que estamos
fazendo neste mundo? Qual é o nosso lugar no conjunto
dos seres? Como agir para garantir um futuro esperançador?
O que nós podemos esperar além da vida?
Mas vejam que há pessoas que vivem a retidão de vida, o
sentido de solidariedade e cultiva o espaço sagrado sem a
religião. Sem que suas religiões e igrejas sejam no modo
como pensam ou interpretam a vida. Vejam que não é uma
tarefa fácil fazer distinção bem delineada entre religião e
cultura.
Muitas práticas religiosas estão ligadas a cultura de um povo,
onde a religião surgiu. Portanto, muitas práticas religiosas
foram a transposição de alguma prática cultural para o nível
do sagrado. Por exemplo, o sábado já era prática na
Mesopotâmia. O batismo cristão não pode ser desligado da
grande conexão com a imersão judaica, uma derivação do
banho de purificação. Portanto, não há povo sem cultura. E
ela é diferente, portanto, temos que entender, de erudição,
de inteligência, de habilidade profissional. Cultura é a
expressão de ser de um grupo. Todo grupo tem cultura. E
ela é a expressão do humano, do imanente, do horizontal
na vida de um grupo.
Também não há povo sem religião. Ela é a expressão do
transcendente, da busca da superação do indivíduo. Portanto,
é o vertical de um grupo. E a religião é um dos elementos
básicos constitutivos da cultura e de toda a sociedade.
Durkeim, por exemplo, vê na religião e nos valores, a base
dos quadros sociais e os fundamentos da estrutura social.
Portanto, podemos dizer que a própria religião cria uma cultura
com o passar do tempo. É a sua forma de se expressar ou
então seus praticantes a expressarem. Em muitos grupos a
gente pode notar que a cultura religiosa, que em geral se
chama tradição, acaba valendo muito mais que os princípios
que originaram a religião.
Nesse momento eu gostaria de colocar um último aspecto
a partir do que eu estou dizendo, do que eu fui convidado
para a partir da igreja católica... Eu quero falar de uma igreja
católica aberta, ecumênica. Uma igreja do dialogo interreligioso, e também da minha militância na Pastoral Afro há
30 anos. (...)
Então vejam que toda essa sensibilização da igreja diante da
condição dos afro-brasileiros não é um fato isolado. É a partir
do crescimento e da força dos movimentos populares, das
ações afirmativas, da luta que marca a presença do negro e
da negra na sociedade civil e nas igrejas. Por isso, a igreja
diz que essa evangelização tem que ter novos contextos,
novas expressões, novos métodos.
E a partir daí que surge, há questão de cinco anos atrás,
dentro da Conferência dos Bispos, a Pastoral Afro-brasileira.
105
“na prática da comunidade negra, entrar na religião do outro é
entrar numa verdadeira comunhão dialogal”
É uma instância de articulação e de animação na caminhada
da comunidade afro-brasileira. Portanto, a Pastoral Afrobrasileira está em parceria com a sociedade civil em centenas
de grupos no Brasil para quê? Na luta pela desconstrução
do racismo, contra a discriminação. O que nós, no início do
evangelho de libertação que é anunciada por Jesus Cristo,
colocamos a serviço da vida e da esperança. Nos queremos
suscitar e animar a descoberta e a vivência deste dom de
Deus. Portanto, ser negro é lindo. É gostoso ser negro e ser
negra. É prazeroso ser negro e ser negra. Isto é, assumir a
negritude é ter a consciência que é a partir dessa negritude
que nós damos resposta a Deus pela aceitação desse dom.
A negritude é uma tomada de consciência. Eu vejo que é
uma atitude, é uma responsabilidade, é uma filosofia, é um
modo de amar, de viver, de rezar, de trabalhar, de sonhar,
de fazer política, de coordenar, de decidir, de fazer escolhas,
de tomas opções. É um jeito de ser e de assumir a vida.
Então ser negro não é somente e exclusivamente pela
pigmentação preta. Ser negro é uma opção política, é uma
atitude política. E além do mais nós somos um povo
eminentemente religioso. Vemos Deus em tudo. Então, viver
para nós é um grande ato de louvor a Deus presente em
nossa vida e em tudo o que existe. Então nos nós sentimos
chamados a resgatar, a preservar, transmitir toda a história
de fé das comunidades negras, famílias ou religiões, igrejas
ou movimentos. Significa o quê? Perceber a experiência de
Deus feita no interior, feita na dinâmica das culturas afro.
Para a comunidade negra fazer a experiência de Deus é
entrar em contato com tudo o que ele criou, como já foi dito
aqui anteriormente. Essa criação é entendida coletivamente.
Por isso, é a comunidade que é a maior expressão de Deus.
É o valor maior de referência para o viver, para agir e morrer.
E neste sentido, na prática da comunidade negra, entrar na
religião do outro é entrar numa verdadeira comunhão dialogal.
Então é abertura para o outro, é integração.
E os africanos escravizados no Brasil, como tiveram a
experiência de Deus? Foi a partir da experiência de
discriminação racial institucionalizada. Para a gente fazer uma
leitura teológica dessa experiência, nós não podemos utilizar
um referencial epistemológico clássico. Mas a partir da
experiência desse povo. E nós sabemos que a partir dessa
experiência é que eles fizeram de Deus e da sua
espiritualidade aquilo que se contrapõe com a espiritualidade
tradicional.
Então, eles perceberam Deus da resistência, ou seja, um
Deus que sofre a dor, incompreensão, solidão. Que luta e
nos compromete com projetos. Que caminha, ou envia. Um
Deus que canta, que dança as conquistas com a gente. Um
Deus que é povão. Um Deus que participa. Um Deus que
cria e recria. Portanto, um Deus que nos incomoda, que nos
dinamiza, lança-nos constantes apelos e desafios. Então
manifestar esse Deus, justiça e alegria, vida que caminham
com o seu povo.
(...) Percebemos com alegria e esperança essa disposição,
também da igreja católica no Brasil, em resgatar dividas
sociais e dentre outras, por exemplo, a questão da terra dos
remanescentes dos quilombos. Então, as celebrações e as
tradições africanas permanecem na memória, na oralidade,
nas benzeções, nos cultos, nas religiões de matrizes
africanas.
Concluindo eu diria que duas coisas são importantes, diante
de tudo isso, nesse grande encontro mundial para discutir
106
“as celebrações e as tradições africanas permanecem na memória,
na oralidade, nas benzeções, nos cultos, nas religiões de matrizes
africanas”
religiosidade e culturas, duas coisas. Primeiro: pode revelar
um universo rico em símbolos e significados e que me leva
a crer que nós estamos vivendo um momento singular. Então,
um momento em que o olhar humano volta à sua atenção
para o diferente, sem tratar o diferente como negativo ou
equivocado, mas simplesmente como diferente. E o segundo
aspecto, que teria que continuar essa proposta, é dar
importância ao diálogo entre as religiões e as culturas. Diálogo
que como um conjunto de relações inter-religiosas que ajuda
a construir positivamente as pessoas e as comunidades.
Padre Jurandyr Azevedo de Araújo no
debate Religiosidade e Cultura
107
A diversidade cultural poderá
sobreviver às tendências de
padronização e hegemonia?
Como evitar perdas culturais
das sociedades tradicionais?
108
“Quero dizer, temos que banir a pobreza, ninguém deseja a pobreza,
os povos pobres não querem ser pobres, (...)”
Portanto penso seriamente que uma reflexão de uma
coletividade sobre sua história, sobre seu passado, já induz
orientações e escolhas artísticas. Então efetivamente são
os homens políticos que vão estar na ofensiva. Teremos de
fazer com equipes municipais que queiram assumir o risco,
uma aposta artística engajar-se ao lado dos artistas?
A gente começou a lembrar do passado, mas reconstruir,
refazer as imagens, a cultura com o pensamento e com a
cara de hoje, com a nossa cara de hoje. E nós estamos
nesse processo de trabalho.”
Darlene Taukane na mesa Minorias e suas
culturas: direitos humanos e riquezas
humanas
Jean-Louis Bonnin na Atividade Associada
Política Cultural (Delegaçãp Civil da França)
Definições servem aos definidores e não aos definidos.
E parece haver uma cultura que está relacionada à pobreza;
não há uma cultura da pobreza. Quero dizer, temos que
banir a pobreza, ninguém deseja a pobreza, os povos pobres
não querem ser pobres, não há uma identidade na pobreza.
Ines Sanguinetti no debate Novos
Territórios da Arte
Sally Price na mesa Procurando uma
Identidade Cultural
109
“Nós, os povos indígenas, ainda acreditamos que temos mais 500
anos de luta, 500 anos lutando pra poder ter uma vida melhor”
(...) Cada povo com sua cultura, a sua terra demarcada ou
não-demarcada, mas mesmo assim tem que ser respeitada
a sua identidade cultural e étnica. A gente fica muito
revoltado, porque essas pessoas que falam isso, são
justamente as pessoas que invadiram seus antepassados,
foram que invadiram a nossa terra. (...) Muitas pessoas dizem
que os índios são egoístas que quer a terra só pra si, nós
não queremos a terra só pra nós, queremos a terra pra
todos. Eu não acho que só os índios são filhos de Deus. Eu
acho que todo povo do planeta, eu acho que todos têm um
ser soberano, e o nosso deus é o deus Tupã. Eu não sei qual
é o deus dos brancos, mas eu entendo que deus talvez, o
Deus, seja um só, porque o nosso deus é aquele que
realmente responde por todos. E a gente fica preocupado
com essa discussão, porque enquanto nós queremos
realmente viver em paz entre as outras nações, aí a gente
escuta sempre essas baboseiras. Desculpa a expressão, mas
é isso mesmo. E quando a gente resolveu criar a nossa
organização indígena foi justamente para que nós
pudéssemos ter mais força perante o nosso povo. Quando
um índio do Nordeste desse um grito, alguém lá do Norte
pudesse ouvir e vir ao nosso socorro e vice-versa. Assim,
vai do Norte, do Nordeste, do Sul, do Sudeste, do Centrooeste e também os índios do mundo inteiro, da América
Latina, da América do Norte. Nós sabemos que os índios
também da América do Norte foram quase totalmente
dizimados como nós, índios do Brasil. E sabemos que nós já
fomos mais de 6 milhões e hoje somos reduzidos a apenas
340 mil, que são os dados da própria Funai. Mas só que no
nosso entendimento, nós achamos que nós chegamos a
mais de 1 milhão, porque, pela questão do preconceito, a
questão da discriminação, muitos índios que tem realmente
a sua identidade indígena, eles ficam a dizer que não são
índios, por causa do preconceito. (...) Então nós sempre
defendemos que temos que garantir, com a sociedade e
com o governo brasileiro, projetos de auto-sustentação para
que os nossos povos e nossos parentes fiquem na sua aldeia,
pra que eles não possam sair por aí mendigando e negando
sua própria identidade. Pra isso nós precisamos do apoio da
sociedade como um todo, a sociedade não-índia, para que
possamos ter realmente uma vida melhor em nossas aldeias.
(...) Agora, é preciso que a sociedade busque conosco. O
pessoal diz que nós somos minorias, mas nós não somos
minorias, nós somos apenas uma parcela da população,
somos o início desse Brasil e, pra que esse Brasil continue
pluriétnico, com uma democracia mais ampla e mais
igualitária, é preciso que todas as populações do planeta
possam estar unidas, para que possamos conseguir vencer
o ciclo da humanidade sem ter baixas.(...) Nós, os povos
indígenas, ainda acreditamos que temos mais 500 anos de
luta, 500 anos lutando pra poder ter uma vida melhor. Porque
se nós não continuarmos nessa luta, cruzar os braços,
ninguém vai conseguir lutar por nós.
Dourado Tapeba na mesa Raízes da
Tradição (Presença Indígena no Fórum)
110
“nós não podemos falar em uma cultura negra nem em uma cultura
afro-brasileira, no singular, totalitária, não-unificada”
(...) Conta a lenda que, certa feita, uma divindade maior, o
Oriximilá... Orumilá chamou Ifá, que é o orixá do destino,
futuro, e lançou o seguinte desafio. “Se um devoto tiver que
fazer uma viagem para o outro lado do mar, para um lugar
de onde ele não voltará, qual será o orixá que deverá
acompanhá-lo?” E aí o Ifá colocou a pergunta para o conjunto
de orixás presentes. E aí logo o Exu disse: “eu vou, deixa
comigo, eu acompanho”. Aí ela disse: “mas se você no
caminho passar pela sua cidade, encontrar sua comida
preferida, a sua dança preferida, os seus amigos” e fez...
“ah eu fico lá e o sujeito que vá sozinho”. Aí o Ogum disse:
“eu vou”. “Está bom, mas aí se no caminho você passar
pela sua cidade, encontrar com sua família, com sua
comidinha preferida, enfim, o que você faz?” “Ah, eu fico lá
e ele que se vire”. E assim foram todos os orixás. Então o
Ifá, intrigado, perguntou: “afinal de contas, será que nenhum
orixá acompanha um devoto para o outro lado do mar de
onde não se volta?”. Que era a morte, mas também a
escravidão. Assim como era visto pela tradição africana. A
terra onde se vai e não se retorna. E ele disse: ‘tem sim,
existe o Ori”. O Ori é o que se tem, é a cabeça de cada um
de nós, é um pouco desse pequeno orixá que cada um de
nós é. E esse acompanha o devoto para o outro lado do
mundo, acompanha através e para além da morte. Inclusive
essa é uma informação que o povo de santo mantinha em
segredo e quando os senhores de escravo souberam disso,
eles puderam reprimir uma forma de resistência que era o
suicídio. Então quando alguém estava insatisfeito ao extremo,
não conseguia mais viver na escravidão, se matava. Porque
ele acreditava que iria atravessar para um outro mundo e se
reencontrar com os seus na África de volta. E os senhores
descobriram que quem guiava esse caminho era o Ori, era
a cabeça e, portanto, cada um suicida tinha sua cabeça
degolada e enterrada separada do corpo. O que impediu,
enfim, a difusão da prática do suicídio. Ora, qual é a reflexão
sobre isso? É de que, na verdade, quando nossos ancestrais
vieram de lá pra cá, eles vieram com seu Ori na cabeça.
Eles vieram somente com isso, não trouxeram nada em
cima do corpo, não trouxeram livros, não trouxeram códigos,
não trouxeram sistemas de dogmas. Cada um trouxe a sua
memória, as suas obrigações, a sua identidade. A sua
identidade individual, familiar, enfim, sua identidade étnica
que veio com eles, com cada um de nós. E foi a partir daí,
que se reconstruiu do outro lado da vida,... para além da
kalunga como dizem os bantos, para além do mar que era a
kalunga, que era... para além da morte... Reconstruíram
não somente uma religiosidade, mas reconstruíram o sistema
de parentesco, reconstruíram amizades, reconstruíram a vida
dentro de uma sociedade hostil em uma terra estranha.
Portanto, nós temos essa dinâmica de que, por um lado, o
que veio conosco de África, veio como memória. Segundo:
o que foi reconstruído, foi reconstruído em condições
extremamente adversas e em formações sociais diferentes.
(...) Nós não podemos falar em uma cultura negra, nem em
uma cultura afro-brasileira, no singular, totalitária, nãounificada. Ela é, na verdade, uma rede muito complexa de
manifestações culturais que tem o Ori como... O Ori veio
com eles, mas em cada lugar houve um ponto de
combinação diferente. Portanto, a marca dessas diversas
combinações é a diversidade. A diversidade que nós temos
nas próprias formas dessa prática religiosa. Não cheguei ainda
em religiosidade, mas em práticas religiosas. Ou seja, a forma
do candomblé que é vista com uma forma mais organizada
e tradicional. As formas de culto de orixá,... de vodu, tambor
de mina, jurema, xangôs, enfim, batuque no Rio Grande,
falam no batuque, os batuques são o candomblé no Rio
111
“não é um sistema de crenças, quer dizer, é a nossa própria
identidade. Eu sou o que é minha cabeça.”
Grande. Portanto, são várias formas de adaptação com o
princípio comum de que a relação com sua ancestralidade,
a busca de uma identidade, que é algo muito maior do que
um sistema de crenças, que coordenou e articulou essas
criações culturais múltiplas em rede.
Essa primeira questão, que eu coloco na mesa para que a
gente afaste de vez qualquer tentativa ou tentação de fazer
uma discussão teológica em termos de estrutura, de
dogmas, de corpos religiosos, de estruturas de livros. Não
existe nenhuma oposição, enfim, a uma religião, a uma
religiosidade africana com o sistema de livro, Corão, Bíblia,
teologia, escatologia, o que seja e nem tampouco é um
objetivo do povo negro. Apesar de meus queridos colegas,
eu sou historiador, meus queridos colegas antropólogos
fazerem um grande esforço de construírem uma teologia
iorubá, de construírem um sistema unificado. Inclusive há
muito companheiros que pensam até em criar faculdades
de teologia de candomblé e umbanda. Dizer que o primeiro
ponto de partida é, pra nós que estamos nessa tradição, o
que o nosso Ori nos diz, é que não é um sistema de crenças,
quer dizer, é a nossa própria identidade. Eu sou o que é
minha cabeça. E isso me dá uma liberdade de dialogar, de
conversar, de... por mais que eu freqüente, tenha amigos,
estou casado na igreja, sou até noviço da irmandade...
Venerável Irmandade do Rosário dos Homens Pretos na porta
do Carmo. Isso não é nada contraditório com meu Obaluayê
porque eu sou um Obaluayê, essa é a minha identidade.
Não dá para ser outra coisa. Não dá para eu me esconder,
não dá para eu me travestir, não dá para eu escolher um
orixá bonitinho de acordo com a moda. É o que é minha
cabeça, é o que é a minha mãe, a minha tia, o meu irmão,
a minha bisavó. Portanto, isso organizou a minha vida,
organiza a minha afetividade, organiza a minha forma de
tratar as pessoas. Então, isso é que alguns amigos africanos
diziam. Isso é identidade étnica, etnia não é uma escolha
política. A partir de agora eu vou ser alguém do candomblé,
tudo bem, você pode escolher e entrar e sair de um templo,
mas se você não tiver fundamento, se você não tiver origem,
se você não tiver uma identidade profunda, então não
adianta, é algo falh... é algo, digamos, passageiro. Então,
nesse sentido, essa primeira parte de que a religiosidade do
nosso povo é muito marcada pelo sentido de identidade.
Segundo: porque que o espaço do religioso foi fundamental,
é porque foi somente essa crença da própria cabeça de
quem atravessou ao Atlântico foi a única referência cultural
fundamental para que ele pudesse reconstruir a sua vida no
cativeiro contra ele superando o cativeiro. Ou seja, nós não
tivemos partidos políticos. Nós não tivemos organizações
de movimentos, digamos, movimentos sociais como tem
hoje. Nós não tivemos no passado acesso à escolas, o que
nós tivemos foi recompor pelas identidades de cada um,
colando um parente com outro parente, criando novas
relações é que se foi possível criar comunidades resistentes,
quilombos, casa de santos, cantos de trabalho, no caso da
Bahia, cantos de trabalho, grupos de trabalho no porto, enfim,
estas identidades é que organizaram uma sociabilidade negra,
brasileira sobre a escravidão e impediram conosco que
simplesmente nós fôssemos aquilo que queríamos que nós
fôssemos. Ou seja, simples mercadoria, porque na saída do
outro lado da África, todas as cerimônias eram cerimônias
de destruição cultural, na medida que nós sabemos hoje
que a escravidão é a forma mais requintada de morte social.
Alguém que era escravizado e capturado, ele perdia sua
existência social, ele deixava de ser um ente humano. E
tanto é que ainda tá lá no porto de Uidá a árvore do
esquecimento onde cada um que saía era obrigado a dar 7
112
“a religiosidade do nosso povo é muito marcada pelo sentido de
identidade”
voltas em torno da árvore para esquecer a sua identidade, a
sua linhagem, a sua família, o seu lugar na sociedade e
embarcar em um navio como uma peça, como um fardo,
como uma mercadoria. Ou seja, uma unidade de uso. E foi
graças à religiosidade que essas pessoas puderam dizer que
eram pessoas, que não eram unidades de uso, que elas
tinham um ancestral, que elas tinham uma espiritualidade
forte que as protegiam e que as guiavam a construir sua
vida.
Portanto, nessa história do povo negro a religiosidade tem
um papel especial. Eu não tento nem comparar com
ninguém, porque eu não estudei nem vivi outras tradições.
Mas penso, pro exemplo, que deve ser algo parecido, deve
ser e não me culpem por isso com a identidade judaica. Ou
seja, apesar de dispersos pelo mundo inteiro mantiveram
costumes, tradições em cima de uma fé específica. Em cima
da manutenção de uma fidelidade naquela aliança deles
originária. Isso é que fez com que eles pudessem se
reagrupar depois, mantendo língua, mantendo tradições,
mantendo cultura. Portanto, é uma forma de religiosidade
que é étnica, de prática de vida, de identidade de vida e
nunca uma adesão am corpo de idéias nem muito menos
uma negociação de vantagens. O que que eu dou pro céu e
o que que o céu me dá. Muito embora nós também
negociemos porque esses nossos ancestrais eles também
comem, também dançam, eles também se divertem porque
eles são ancestrais... nós somos à imagem e semelhança
deles.
(...) Mas esse é um lado de... uma religiosidade de vivência
e não a religiosidade de adesão a um corpo de dogmas, a
um corpo de idéias. Então, portanto, ninguém converte
ninguém. É um tipo de religiosidade onde não há conversão.
As pessoas... vai quem quer. No máximo, é o que se diz na
Bahia, é o cá te espero. Cá te espero na visgueira, boto
minha visgueira e quem quiser que venha e quem pegar,
pegou. Quem não pegar, que vá embora. Se não é uma
religião apostólica, portanto, não há porque conflitar com
ninguém para saber quem disputa o cliente. Quem tiver
que ser, será.
Ora, esse é um primeiro dado de que isso permitiu para, na
maioria do povo brasileiro de origem africana, uma forma
de religiosidade muito convivial, de convívio, de vida, de
vida comunitária que se interpenetra naquilo que eu acho
que o Fernando Ortiz define pra mim como um conceito
muito feliz de transculturação. Então há um processo de
transculturação de matriz africana para a sociedade colonial
como um todo de ter na religião um aspecto de
convivialidade, de familiaridade e não é a toa que caiu tão
bem o catolicismo barroco, cheio de devoções, cheio de
padroeiros, de padrinhos, de anjo da guarda, de procissões,
de festas. Não é um oportunismo de um escravo que teve
que aderir nem aquele conceito para mim abstruso de
sincretismo. Mas um convívio, uma interpenetração, uma
transculturação em cima dessa vivência africana de uma
possibilidade de uma oferta religiosa, socialmente colocada,
em que era possível conviver. Isso é um conceito, segundo,
fundamental para mim que é do convívio que hoje corre
perigo. A intolerância religiosa que ocorre no Brasil ela é
hoje o grande choque do século XXI. É exatamente um Brasil
acostumado ao convívio, convívio desigual, convívio com o
conflito, mas convívio. Há o choque do fundamentalismo. O
choque do fundamentalismo é exatamente a incapacidade
de conviver com o diferente. É exatamente a incapacidade
de negociar. É, enfim, é... o corpo de idéias definindo sua
vida e não a sua vida, e não o exercício do conviver diário e
113
“uma religiosidade de vivência e não a religiosidade de adesão a um
corpo de dogmas, a um corpo de idéias”
da convivialidade com seus semelhantes definindo as
sociabilidades, as solidariedades e as amizades. (...) E,
portanto, a nossa Constituição brasileira define que há uma
liberdade de religião. Todas as pessoas são livres para pensar
e para cultivar aquilo que quiserem e, portanto, não há uma
religião que defina cultura brasileira. Não há uma religião
que defina o Estado brasileiro. E a religião existe não para
cobrar a nossa adesão, essa é a minha visão de vivência,
mas a religião existe para ajudar-nos a sermos felizes, a
construirmos laços de solidariedade com os nossos amigos,
com os vizinhos, com os parentes, enfim, religião é religar.
Então esta atitude cultural que eu entendo que é uma atitude
que foi construída com muito esforço. Inclusive chegando,
eu termino, há um assunto que outro dia eu provoquei o
padre Jurandyr, provoquei não porque ele é meu amigo, e a
gente de se entende muito bem. Mas que é um assunto
que padres como ele com os quais eu já militei inclusive em
trabalhos de base, entendem perfeitamente a questão da
chamada dupla pertença. Mas já outros bafejados pelos ares
fundamentalistas se recusam a ouvir falar na prática da dupla
pertença. Claro que há pessoas como eu que vivem
perfeitamente e entendem duas religiões, por que não? Mas
isso vem de onde, da escravidão? (...) Porque o preconceito
racial no Brasil é tal que ninguém se lembra dos grandes
livros como o do Felipe Alencastro, meu amigo e colega,
da... daqui da professora Marina, é, da USP, que mostram
muito bem a importância do reino do Congo. Por que é que
tem congada em Minas Gerais? Por que é que tem congada
em São Paulo? Por que a congada é uma forma tão popular
negra e católica? É a memória do reino cristão do Congo,
convertido antes da descoberta do Brasil, que construiu um
reino com Dom Garcia, com Dom Manuel, enfim, com Elitt
Maniconga, que tem santos, que converteu o povo e que foi
vencida para a escravidão, a batalha de Ambuila tá aí, é um
fato histórico narrado por Felipe. E, portanto, se importou e
se trouxe, à força, negros, africanos, católicos de África. E
não é a toa que todas as irmandades de Rosário, de São
Benedito, de Boa Morte do Brasil, elas começaram e se
mantiveram durante quase três séculos somente com
pessoas de origem Gorgangola. E Ioruba nem Nagô entrava
em irmandade não. Porque o seu contato era com árabes,
com o islã. Seu contato era com outro tipo de religiosidade.
Então esses africanos que lutaram para serem católicos do
Brasil contra a vontade da Igreja. E tiveram que construir
igrejas fora do perímetro urbano, capelas negras. Tiveram
que construir igrejas depois do seu expediente. A da Bahia,
dessa que eu estou como noviço, me propondo a ser um
noviço dessa igreja, eles trabalhavam dez horas por dia mais
quatro pra construir sua igreja. Porque eles queriam ser
enterrados como cristãos. Não queriam ter seu corpo jogado
no lixo. Eles queriam ter uma terra sagrada pra se enterrar e
só podiam se enterrar como cristãos se tivesse sua igreja.
Portanto, esses fenômenos de dupla pertença, que, na
verdade, são experiência africana de a vida, a família e o
povo não pode se dividir por causa de religião. Então,
portanto, se você tem acesso às duas não lhe é estranho
ter um irmão católico ou ter um irmão do candomblé. A
gente não vai brigar com irmão por causa disso. Isso
enfraqueceu o reino do Congo pra que ele caísse em
escravidão. E essa é uma cultura de convívio que a gente
encontra com o islã. Se nós olharmos pra o que são os
agudais? Os agudais são os brasileiros em África. Todos
aqueles que retornaram pra costa d’África. Os bresilian, os
bresilian, enfim, que são comunidades imensas na Nigéria,
Benin etc. e etc.. O cônsul Urbano Kassi de Sousa, que é o
cônsul do Brasil em Uidá. Ele é muçulmano, ele disse:
114
“a nossa grande tarefa cultural hoje é resistir e desmontar toda
forma de unidade totalitária”
Mus urmão me et clerri, quer dizer, que de vez em quando
ele toma uma cervejinha, mas com muita moderação. Todas
as famílias brasileiras na costa d’África, elas têm um nome
católico, um nome árabe e o nome de família, ele é Urbano,
Urbano é nome de papa; ele é Kassi, bom nome muçulmano;
e é de Sousa que é sua família. Portanto, a própria família
cria mecanismos de convívio e todos eles são bons
muçulmanos de mesquita, mas, de vez em quando, eles
também vão ao templo da serpente; de vez em quando,
eles desfazem suas obrigações; de vez em quando, eles
batem cabeça; porque isso faz parte de sua vida e não implica
em nenhuma guerra, nenhuma repartição de família porque...
porque o importante é esse princípio de que a religião, a
religiosidade deve ser algo de vida, algo voltado para o
convívio, algo voltado para felicidade e não algo que, diante
do qual cada pessoa deve cair prostrado como escravo e se
tornar um soldado em função, esse é o fundamento, essa é
a base do que ressurge como fundamentalismo.
E, finalmente, dizer que, do ponto de vista político, do ponto
de vista como cidadão do mundo hoje, concordo com todos
que dizem que a nossa grande tarefa cultural hoje é resistir
e desmontar toda forma de unidade totalitária, toda forma
de fundamentalismo e lutar pela diversidade cultural, lutar
pelo, pelo convívio do diferente porque é possível sim e os
negros do Brasil dão exemplo. É possível conviver Obaluayê,
com São Lázaro e São Roque. É possível Nossa Senhora
Aparecida conviver com Nana. É possível tudo desde que
haja boa vontade, desde que haja esse sentido profundo de
que religião é para ligar as pessoas, e não para dar
testemunhos de idéias, e não para vencer o outro.
Ubiratan de Castro no debate Religiosidade
e Cultura
115
116
117
118
119
“hoje há uma civilização em via de mundialização, à mercê do
dinamismo da cultura ocidental e da hegemonia que os seus
protagonistas exercem sobre o mundo há vários séculos.”
A cultura é o conjunto de modelos dos comportamentos de
pensamentos de sensibilidade que estruturam as atividades
do homem na sua relação com a natureza, a sociedade, o
transcendente, o absoluto. Aplica-se tanto aos grupos
humanos e à sociedade mas também ao indivíduo. É de
distinguir com civilização - infelizmente, essa é uma influência
que pessoalmente acho nefasta de, digamos, concepção
anglo-americana, em especial. Para a escola francesa, a
civilização é um conjunto de estruturas sociais e econômicas,
bens materiais e tecnológicos, características do território e
do meio ambiente produzidos por uma dada cultura em geral,
claro, coletiva.
Evidentemente há interações constantes entre ambas as
realidades. Evidentemente existem culturas sem civilização
próprias. Ou por não ter tido ainda a oportunidade de criarm
ou recriarem às suas próprias civilizações porque é um
processo de longo fôlego. Ou por se encontrarem em
situação minoritária, demográfica ou politicamente. Num
quadro geográfico ou nacional abrangente, de país, império,
o problema das migrações e das diásporas. Evidentemente
hoje há uma civilização em via de mundialização, à mercê
do dinamismo da cultura ocidental e da hegemonia que os
seus protagonistas exercem sobre o mundo há vários
séculos.
Esta civilização mundializada coexiste com culturas, no plural,
diferentes, que é fonte de tensões e conflitos. Pelo menos até o
domínio do novo processo civilizacional a sua integração mais
ou menos harmoniosa das diferentes culturas, nas culturas alheias
a ele, a assimilação dos novos paradigmas, há o reajustamento
necessário em ambos os níveis, cultura e civilização.
Religião, onde que fica a religião neste conjunto? É a vertente
da cultura que se relaciona em particular com o
transcendental e o absoluto, representação do ser supremo,
visão global do mundo, quer dizer, respostas às questões
da origem e do fim. Do amor e da geração da vida, da morte
e do sofrimento. Ajuda também a fixar, a criar valores
espirituais, individuais ou coletivos, e éticos, estáveis,
estabilizadores. Símbolos e rituais significantes e imobilizador.
Isto para mim é o que é a religião em contraste, não em
oposição, com cultura ou civilização. Sendo parte de um
sistema cultural, a religião transcende à mercê desses trunfos
de transcendências. Há interações evidentes e constantes
com as outras vertentes da cultura, a natureza, a sociedade,
a família. Ao mesmo tempo que as realidades e as dinâmicas
de correntes das relações homem-natureza, homem-homem
ou homem-sociedade e família condicionam a relação do
homem e da sociedade com o absoluto. Aqui um entre
parênteses, uma afirmação: toda a religião surge,
desenvolve-se e perpetua-se no quadro dum contexto
histórico e civilizacional concreto e circunscrito. Ao mesmo
tempo em que essas realidades influem sobre isto, quando
esta última relação, aquela entre o homem e o absoluto se
codifica, se sacraliza, ela tende a exercer um papel
predominante, hegemônico sobre a sociedade, a cultura,
influindo sobre os comportamentos e mentalidades. Ela
sacraliza os mesmos, quer dizer, os comportamentos e
mentalidades com os valores espirituais e éticos subjacentes.
Resultados desse processo dá maior coesão à sociedade
sobretudo no caso das sociedades complexas, dimensões
territoriais ou demográficas, diversificação étnica,
estruturação sociopolítica. Mas também ela cria um certo
grau de fechamento de cristalização bloqueadora e a
alienação, às vezes, quanto ao real de castração da liberdade
individual e coletiva.
120
“Não há um povo árabe como tal, há países árabes com várias etnias,
até várias línguas e até várias religiões”
As sociedades evoluídas e complexas com contradições
internas, os sintomas de desagregação e decadência, a religião
pode autonomizar-se em relação às outras esferas culturais.
Romper com a própria sociedade. Chega então a agregar
adeptos próprios espalhando-se por vários países e sociedades
diferenciadas, criando novos patamares culturais, novos
valores, novas dinâmicas sociais, transversais às diferentes
sociedades e culturas. É o caso, por exemplo, das grandes
religiões universais, o budismo, nascido, mais ou menos, 5
séculos antes da era cristã; o cristianismo e o islamismo. O
islã é a mesma coisa, século sétimo depois de Cristo.
O que tudo isto tem a ver agora com a identidade cultural
que é o segundo componente do nosso painel. As
sociedades, mais ou menos, homogêneas, mais ou menos,
isoladas. A unidade de cultura, religião, língua ou idioma. Eu
preferia, depois da intervenção de Mãe Sylvia, a palavra
idioma. Porque vem do grego idioma que é o próprio,
genuíno, como idiossincrasia. É mais forte que a palavra,
língua como tal. Identidade... a identidade é única e óbvia
ao nível coletivo e individual. No nosso mundo de hoje, aberto
e globalizado, onde vários desses elementos são transversais
nas sociedades, há polivalência e mobilidade dessa
identidade. Pertenças culturais múltiplas, como o que se
disse aqui, nas intervenções do meu antecessor, geridas
por povos ou indivíduos, com mais ou menos, sucesso e
harmonia. E chego ao exemplo do mundo árabe e médiooriental(...). Não há um povo árabe como tal, há países árabes
com várias etnias, até várias línguas e até várias religiões. É
o árabe puro, etnicamente puro, é o da Península Arábica.
Arábia Saudita, Kwait e esses Emirados agora são
enriquecidos escandalosamente como dizia aqui Abdul Aziz,
através do maná do petróleo.
Mas não devemos nos esquecer, no Norte da África os povos
da etnia bérber, misturados ou não com os árabes que
chegaram um tempo a ocupar essas zonas e a levar estas
zonas a um acúmulo civilizacional muito brilhante. No Médio
Oriente, como tal, no Egito faraônico antigo ou no crescente
fértil desta Palestina, Síria, Líbano, Jordânia até o Iraque, este
é um mundo semita, parente ao mundo árabe e também
misturado com árabes como tal. Um mundo semita onde,
entre outras coisas, digamos, tem importância a língua ciríaca
que não é nada senão a língua aramaica que Jesus Cristo
falava e que se tornou língua literária exprimindo a fé cristã
nesse âmbito. O caso do cocta egípcio, do Egito, é a única
fase do idioma egípcio antigo de 5 mil anos e que
permaneceu como língua não de cultura corrente mas
religiosa para os cristãos autóctones do país. Já não vou
falar do Sudão que corresponde também a um outro,
digamos, ciclo mais, digamos, africano como tal, mas para
vos mostrar isso.
Por outro lado, se bem que o islamismo como religião
minoritária, esse próprio islamismo tem várias vertentes que
implicam condições culturais diferenciadas. O sunismo é
generalizado. Mas há o xiísmo, o xiísmo no Líbano. O xiísmo
em certos Emirados Árabes. O xiísmo no Iraque que hoje
vem, digamos, (...) muito importante nos conflitos criados
recentemente. Ora, esse xiísmo, do ponto de vista cultural,
está mais ligado a seu território principal que é o Irã. Muitos
deles vão estudar nas grandes escolas tradicionais e trazem
um novo alento cultural.
Vocês aqui, no Brasil e em São Paulo, em especial, conhecem
também as comunidades de origem árabe. Será que todas
são muçulmanas? Longe disto. Há também cristãos, árabes,
cuja língua original é o ciríaco,... ou cocta mas que há séculos
121
“As pertenças religiosas, culturais e étnicas são, de fato,
manipuláveis, em geral, por grupos minoritários ou para legitimar
a imposição violenta daqueles interesses.”
e séculos falam árabe, integram com a cultura árabe,
cooperaram ou colaboraram na criação da civilização árabe
que depois foi transposta ao Ocidente. E também, no
momento de grande renovação, há dois séculos, o século
da Narda, tiveram o seu contributo para tal.
A predominância de um dos componentes sobre outros
resulta da sua força ou consistência, da sua operacionalidade
frente aos desafios pessoais ou societais, às vezes,
meramente conjecturais (...). Assim como das debilidades
ou da inoperância das outras.
Numa sociedade e num mundo próspero e equilibrado, é a
cultura integrada, conforme a definição estabelecida,
geradora de civilização, que prevalece. Mas há sociedades
pobres, desequilibradas, em crise, são as entidades,
identidades étnicas, nacionalistas, no sentido ruim da palavra
nacionalista, e religiosas. Forças profundas mas também
escuras quando não viciadas que tomam a dianteira, que se
prestam às ilusões e manipulações, que podem tornar-se
destruidoras e mortíferas. (...)
nosso mundo no início do novo milênio. É nossa profunda
condição e referem à minha pessoa com todas essas
multidimensões que apresentei aqui, como também
estudioso do islamismo e do cristianismo oriental e que os
conflitos e confronto, às vezes, sangrentos e em escala
mundial a que assistimos hoje, não tem origem primeira
nas religiões, na diversidade cultural ou nas pertenças
étnicas, mas eles alimentam sempre em primeiro lugar, quer
dizer, esses conflitos de interesses sociais, econômicos e
políticos antagônicos e resultam daquela ordem mundial,
regional ou local, injusta e profundamente desequilibrada.
As pertenças religiosas, culturais e étnicas são, de fato,
manipuláveis, em geral, por grupos minoritários ou para
legitimar a imposição violenta daqueles interesses. Ou como
reação, por vez, desesperada contra aquela ordem das coisas
viciadas e intoleráveis.
A mundialização a que assistimos hoje, em vez de pôr em
contato povos e culturas num processo de enriquecimento
mútuo que resultasse salutar para toda a humanidade está
a espalhar um uniformismo conformado e empobrecido, de
natureza tecnológica e materialista, que põe em causa a
liberdade criativa e transcendental que distingue afinal a
essência humana.
Por outro lado, e esta é uma mensagem a todos os
movimentos culturais e religiosos. O processo acelerado da
mundialização e globalização, termos e conceitos, que não
se devem confundir à maneira anglo-americana, não foi
acompanhado por valores culturais e éticos correspondentes
por um acréscimo de espírito (...). Esse processo de
mundialização e globalização tem antes atropelado ou
destruído alguns sistemas de valores profundamente
ancorados nos corações das populações do globo. Alguns
deles muito antigos, sem propor substitutos viáveis.
Os protagonistas desse novo império mental não sabem
falar de outra coisa senão de choque de culturas ou
civilizações e de guerras de religiões ocultando, consciente
ou inconscientemente, as verdadeiras causas dos
desequilíbrios insustentáveis e intoleráveis de que sofrem o
Em sentido contrário, as religiões que sempre informaram e
sustentaram os valores éticos da humanidade parecem não
ter conseguido, de um modo geral, acompanhar o ritmo
dos novos paradigmas societais e a nova conjuntura
planetária. Parecem ter parado no tempo, ficado presas às
122
“Esse processo de mundialização e globalização tem antes
atropelado ou destruído alguns sistemas de valores
profundamente ancorados nos corações das populações do globo.”
suas tradições particulares, por vezes, milenares, sem
capacidade de atualização, universalização e globalização das
suas mensagens e seus valores.
O último ponto. O nosso mundo de hoje precisa como nunca
antes e com grande urgência, não dentro de uma nova
religião ou cultura universal uniforme, mas que as diferentes
tradições culturais, religiosas, espirituais descubram ou
redescubram todas juntas, de modo solidário e igualitário,
os valores antropológicos perenes que correspondam às
necessidades e anseios dos homens e das mulheres de
nossos tempos. Aqueles valores, e este é o grande desafio,
que possam fundar e informar as relações entre o povo e a
sociedade e, bem assim, as diferentes esferas da atividade
social organizada e mundializada. Diplomacia e comércio e
política, comércio e economia, relação com a natureza,
serviços sociais etc. etc.
Adel Youssef Sidarus no debate
Religiosidade e Cultura
(...) Acho que é papel da escola pública formar a nação. As
escolas públicas de todas as democracias do mundo
possuem essa virtude, elas não podem esquecer disso. E
para formar uma nação é preciso considerar a criança desde
a mais tenra idade. Sabemos muito bem que uma criança
que não tem educação artística aos 3 anos, aos 10 anos ou
aos 13/14 anos não irá nem a museus nem a bibliotecas
quando ela tiver 25 ou 30 anos, salvo as exceções. O que
nos interessa não é a exceção, mas a regra, e portanto o
que importa é que a escola possa ser a criadora de uma
nova nação, de uma nação que deve integrar os africanos,
os norte-africanos que vieram à antiga metrópole colonial.
Trata-se de um retorno das coisas, de uma certa maneira,
porém considerável responsabilidade daquela que oprimiu
durante décadas esses povos e essas culturas. E prova de
modéstia igualmente para quem quer de alguma maneira,
ao forjar essa nova nação, inventar novos valores e novas
culturas. E isso numa concepção de laicidade.
(...) Como fazer de tal modo que esses valores sejam
culturais sem serem cultuais, que lugar reservar à religião, à
prática religiosa? Sabemos muito bem que entre a cultura e
a religião há relações e o próprio Malraux dizia que o século
XX seria religioso ou não seria. Ao menos, é o que se atribui
a ele. Podemos nos questionar sobre isso. Seria verdade?
Vemos todos os dias catedrais serem construídas em frente
a mesquitas, Devemos viver confrontos religiosos numa
nação cujos valores devem ser laicos, ou seja, fundados
sobre a tolerância, sobre o respeito ao próximo, sobre o
reconhecimento de seus valores próprios. De alguma
maneira, a escola é capaz de nos fazer passar do culto à
cultura? A partir disso, políticas são implantadas, políticas de
integração sobretudo políticas de discriminação positiva,
muito delicadas de se conduzir, pois sendo discriminatórias,
elas podem apontar o dedo para a diferença e de alguma
forma opor, evidenciar uma certa categoria social, ou certa
etnia, mas ao mesmo tempo sendo positiva, ela favoriza a
integração. Não existe nação sem um mínimo de valores
comuns.
Claude Mollard na mesa Conhecimento,
educação e solidariedade: dimensões de
um novo tempo
123
“Muitos grupos emergentes compreendem que a revalorização das
culturas locais não basta para encarar os novos desafios da
globalização”
Claro, poderíamos começar, seria o habitual num discurso
países, circuitos de comércio travados porque o norte se
sobre identidade e autonomia, exaltando as identidades,
entrincheira em alfândegas agrícolas e culturais, enquanto o
mostrando a necessidade de reafirmá-las e reivindicá-las num
sul é despojado dos seus produtos e daqueles que lhes dão
mundo onde há tantas identidades, tantas culturas alteradas,
identidade. As conseqüências mais trágicas desses
ameaçadas, marginadas, esta tarefa continua sendo de
processos são as guerras preventivas entre países ou dentro
grande importância. Creio que as identidades já não podem
de cada nação e ainda internamente nas megacidades. As
ser o que eram. Não nos definimos só pelo arraigo num
fronteiras e os aeroportos, os meios de comunicação e os
território, ou por pertencer a um só grupo. Como emigrantes,
bairros são militarizados.
ou como turistas, como consumidores de música e televisão
de muitos países, como assistentes a foros ou congressos
Neste momento da história parecem esgotados os modelos
globalizados, usamos repertórios de objetos que nos situam
de outra época em que acreditávamos que cada nação podia
na intersecção de muitas culturas. As roupas que usamos
combinar suas muitas culturas, mais as que iam chegando,
falam de muitos lugares do mundo.
num só caderno, ser um crisol de raças, como o declararam
as constituições e discursos. Passamos de um mundo
(…) Desta maneira já se põe em evidência a constituição
multicultural, entendendo multicultural no sentido de
global, planetária, das formas de consumo, das formas de
justaposição de etnias ou grupos numa cidade ou dentro de
identificação, que às vezes portamos inclusive com os nomes
uma nação, para outro mundo intercultural, agora globalizado.
nas nossas camisetas e ademais mostra as distâncias entre
os lugares originários de onde pensávamos que estas marcas
Como se configuram os novos mapas multiculturais? Gostaria
vinham, uma francesa, outra norte-americana, com os
de encarar estas perguntas e incertezas confrontando dois
lugares que efetivamente se fabricam as roupas, aonde
discursos: o das ciências sociais sobre as identidades e da
trabalha a gente para que essas camisetas, ou esses carros,
interculturalidade, e o da fotografia dos últimos anos na
ou esses aparelhos eletrodomésticos existam. Em muitos
América Latina. Vou circunscrever-me ao que ambos
casos as fábricas estão, mostra ela, em Jacarta, no México,
discursos dizem sobre este continente. Mas temos que nos
em El Salvador, ou no Brasil, ainda que não sabemos quem
perguntar em primeiro lugar: existe um continente que possa
as estão fazendo, de que nacionalidade são. De maneira
ser chamado de América Latina como unidade cultural ou
que as identidades muitas vezes aparecem ocultas,
multicultural? Quais seriam suas identidades definidoras?
dissimuladas atrás dos logos.
Uma forte primeira tendência na América Latina tem sido
Os resultados destes processos de emigração dos objetos,
definir o latino-americano a partir das raízes indígenas. Sem
mas sobretudo das pessoas, é que vivemos em cidades
dúvida continua sendo de grande importância, de grande
aonde se falam mais de 50 línguas, há trânsito ilegal entre
energia esta origem. Mas de todas as maneiras há que se
124
“Não é só uma questão de identidade ou de cultura, mas também de
redistribuição da riqueza e redistribuição do poder.”
perguntar se esta crescente presença dos índios pode
indígenas, negros, crioulos, mestiços, as emigrações
realmente ser o único modelo civilizador para passar dos
européias e asiáticas, o que nos sucedeu em campos e
campos ou das selvas ou das margens das cidades onde
cidades constitui um relato descontinuo, com fendas,
eles vivem, a pensar ou repensar nossas nações e inclusive
impossível de ler sob um só regime ou uma só imagem.
a América Latina como conjunto. Muitos grupos emergentes
Daí a dificuldade de encontrar nomes que desenhem este
compreendem que a revalorização das culturas locais não
jogo de redistribuição da riqueza e redistribuição do poder.
basta para encarar os novos desafios da globalização nem
Uma primeira conclusão desta apertada descrição da
para ocupar o vazio deixado pela demolição das utopias
complexidade sociocultural da região é que me parece que
modernistas ou utopias socializantes. (...)
perdeu o sentido pôr-se a procurar um “ser” latino-
Esta complexidade da definição do latino-americano, a partir
das chamadas culturas originarias, fica ainda mais difícil
quando reconhecemos outras vertentes multiculturais. Por
exemplo, considerar que a América Latina tem, junto aos
americano, ou inclusive uma “identidade” latino-americana.
Estamos preferindo falar de um espaço sociocultural latinoamericano.
É que coexistem muitas identidades e muitas
culturas. (...)
40 milhões de indígenas, uma população afro-americana de
(...) Eu diria que além de globalizarmos através do consumo,
vários milhões, difícil de precisar como conseqüência da
que geralmente é do que mais se fala ou das indústrias
desatenção que sofrem os planos de desenvolvimento.
culturais que reorganizam nossa cultura ou nossas culturas,
Sabemos a importância que tem o candomblé cubano, o
candomblé brasileiro, o vudu haitiano, e muitas músicas
geradas por estes grupos que hoje são retomadas pelas
indústrias culturais. O que seria, ou como compreender sem
esta participação afro as danças como o rap e muitas fusões
entre o jazz e o rock. Não é fácil organizar conceitualmente
esta diversidade, que como sabemos não só inclui o indígena
e o afro-americano, mas também as variadas emigrações
de europeus, sobretudo espanhóis, italianos e portugueses,
mais os judeus, árabes, japoneses, chineses e coreanos,
que também passaram a formar parte do espaço cultural
latino-americano.
nos globalizamos também como produtores culturais que
tratamos de expandir ao mundo em foros como este ou nas
indústrias propriamente, os circuitos massivos, nossa
música, nossa foto, nossa literatura, mas também como
emigrantes e como devedores nos globalizamos. Para que
servem estas reuniões latino-americanas, ibero-americanas,
globalizadas, foros, colóquios? (...) Por que temos tantas
dificuldades em nos agrupar para negociar como latinoamericanos um lugar menos submisso, menos subordinado
no mundo? Como podemos conseguir que nossas músicas,
telenovelas sejam algo mais que uma tentativa de nos
projetar no mundo que nos coloca à beira da globalização?
O que significa globalizar-nos como emigrantes? O que
(…) Nossas variações culturais não sempre encaixam umas
poderemos fazer através, por exemplo, dos 37 milhões de
nas outras. Como um cadáver primoroso, ao somar-se
latino-americanos hispano-falantes que habitam os Estados
125
“Precisamos uma linguagem artística, cultural, científica, capaz de
falar ou de fazer falar às ruínas de nossa modernidade
truncofágica (...)”
Unidos? Como esta intensificação das emigrações está
truncofágica, certamente nossas identidades, mas em meio
modificando de muitas maneiras a localização dos latino-
dessa descomposição dos estilos fundadores de nossa
americanos no mundo?
modernidade (...) parece-me que tanto para as ciências
Creio que vivemos numa etapa nova na que devemos nos
encarregar também dos derrubamentos de nosso
desenvolvimento urbano, dessas emigrações que às vezes
se localizam dificilmente na informalidade, nos lugares aonde
não há para descansar. (...)
Precisamos uma linguagem artística, cultural, cientifica, capaz
de falar ou de fazer falar às ruínas de nossa modernidade
sociais como para os discursos da arte da fotografia, do
teatro, da música, é importante não só afirmar e defender
nossas identidades mas também pensar a problemática dos
novos circuitos globalizados. Os dilemas da identidade
desembocam hoje nas políticas da interculturalidade, e uma
interculturalidade menos assimétrica, menos desigual, mais
justa.
Néstor Garcia Canclini, no debate
Identidade e Autonomia: desenhando
novas cartografias
126
“O nosso esforço para revitalizar as nossas tradições culturais
não pode ser medíocre
Uma língua estrangeira, especialmente uma língua global com
as implicações imperialistas, pode nunca substituir o papel
fundamental da língua nativa. Isso, contudo, não deve reduzir a
importância de se aprender sobre as culturas de línguas
estrangeiras. Essas línguas e culturas freqüentemente funcionam
como o outro elemento no ato criativo, mas para cultivar a
criatividade, sempre se começa com a própria tradição cultural.
A melhor forma de coexistir com a globalização, eu sugeriria, é
voltá-la contra si mesma ou, como dizemos em chinês, usar a
sua própria espada para penetrar no seu escudo. Ou seja, no
idioma nativo, usando o potencial ou usando o seu potencial
inerente de heterogeneidade contra a sua tendência à
homogeneidade.
O nosso esforço para revitalizar as nossas tradições culturais
não pode ser medíocre e, de forma alguma, submetido aos
discursos esfarrapados de uma hibridização passiva.
Hsiew Hao Liao, no debate Criando uma
Cultura Global de Política
O primeiro dado importante em relação aos povos indígenas
é o dado da diversidade. Trabalhar e pensar sobre índio supõe,
início de tudo, que as pessoas se abram para o fato da
diversidade. Não existe índio genérico, não existe cultura
indígena genérica, não existe uma psicologia indígena única.
Nós temos que nos habituar a pensar com o dado da
diversidade, com o dado de 500 anos de história que
marcaram esses povos, construíram outros caminhos e
outras perspectivas e tornaram-se ainda mais diferentes do
que eles já eram inicialmente.
(...) a realidade brasileira, é importante saber, ela inclui não
um povo indígena mas 220 povos bastante diferenciados,
mais de 180 línguas, é uma população bastante numerosa
dispersa pelo Brasil afora. Quer dizer, quase em todos os
estados da federação temos índios.
(...) Efetivamente, as situações são muito variadas, tem
desde populações indígenas que mantém língua, costumes,
uma presença de vida diferenciada da sociedade nacional
muito grande, enquanto outros que tem uma cultura indígena
que se expressa na língua portuguesa, numa série de
demandas políticas de ações concretas e que precisa ser
respeitada em igual medida. Porque o fato de ela não ser
exótica ou manifestamente diferente não quer dizer que ela
não viva aquilo segundo a perspectiva autêntica e bastante
importante pra eles mesmo.
João Pacheco na mesa Raízes da Tradição
(Presença Indígena no Fórum)
127
“Cultura só se salva, se defende sendo vivida, sendo efetivada,
sendo conectada com os desejos e aspirações dos grupos sociais
no presente.”
Será que foram as zabumbas que inventaram o nordeste?
Como se fossem zabumbas-galo tecendo manhãs em cada
noite de forró? Como se, no amálgama de tempo e
contratempo estivéssemos representando essa tensão
permanente entre a obsessão do enraizamento e a condição
inequívoca de desterro que nos constitui como brasil
brasileiro? Tensão essa, cada vez mais característica de uma
época pós, da qual talvez sejamos laboratório ímpar?
Paulo Costa Lima, em discussão retirada
do Fórum Virtual do Fórum Cultural Mundial
Sermos nordestinos não nos proíbe nada, pelo contrário: deve
nos estimular a promover sínteses meio inesperadas, pouco
ortodoxas. Nordeste e artes marciais. Nordeste e ficção científica.
Nordeste e zen-budismo. Nordeste e histórias em quadrinhos.
Nordeste e surrealismo francês. Nordeste e música árabe.
Nordeste e hip-hop. É direitinho o “tum-tá” de uma zabumba.
Bráulio Tavares em discussão retirada do
Fórum Virtual do Fórum Cultural Mundial
Gostaria ainda me desentender sobre mais um aspecto que
parece ser consensual nas discussões a respeito da arte e
da cultura. A idéia de que a defesa e o reforço da identidade
cultural, seja na nação, seja na região, seria um antídoto
contra a dominação e o imperialismo cultural, será uma
blindagem contra os processos de hegemonia cultural, de
descaracterização da essência que teria uma cultura e dos
processos de aculturação. O princípio da identidade trata de
propor alguns procedimentos para isso como a busca das
raízes culturais, o retorno a um tempo original ou a recusa
da passagem do tempo com as suas mudanças e
transformações, o fechamento da cultura às influências
externas, estrangeiras que, para mim agem no sentido
justamente oposto ao que se pretende, ou seja, tornam
essa cultura frágil, pouco criativa, obsoleta e por isso mesmo
pode ser devorada por outras mais ativas e criativas.
Se pensamos a cultura como identidade e não como fluxos
sociais e históricos de semiotização, em grande medida
retiramos dela o que lhe dá vigor: a sua capacidade de
conexão incessante com matérias e formas de expressão
vinda de qualquer época e quaisquer espaços. A cultura
que apenas repõe o que seriam suas raízes, matérias e
formas culturais de outros tempos, se fragiliza por perder
conexão com o tempo para o qual é produzida, não fará
sentido para os contemporâneos, vai morrendo por baixa
recepção. Ela produzirá monumentos de pedra que já não
tem mais sentido para a maioria. Seria como aquelas famosas
estátuas de heróis nacionais que habitam o centro das nossas
praças e que só servem aos pombos, pois a maioria dos
transeuntes que passam por lá não sabem sequer quem
são aquelas criatutras, e o que dirá o motivo de seu heroísmo.
Se um dia mandassem demolir essas estátuas quantos as
defenderiam? Quantos sairiam em sua defesa?
Cultura só se salva, se defende sendo vivida, sendo efetivada,
128
“A singularidade não é uma forma de ser, mas um estado passageiro,
transitório.”
sendo conectada com os desejos e aspirações dos grupos
sociais no presente. A busca por um tempo original, primitivo,
autêntico mal esconde a busca de se preservar uma dada
configuração social, uma dada dominação, uma dada
hierarquia social as quais esse tempo faz referência.
Defender-se do estranho, se fechar para o diferente, já não
será uma confissão de debilidade? Os índios antropófagos
não temiam o guerreiro mais valente do grupo inimigo, por
isso o comiam, por admiração, para incorporar a sua força.
Uma cultura se torna forte quando é capaz de tomar o
tonificante do elemento estranho que desafia à criatividade.
Que a desafia a fazer com ele uma coisa nova, singular. As
identidades são processos de captura das singularidades,
elas tentam cristalizar, petrificar uma diferença externa.
Eu estou achando engraçadíssimo nesse fórum as
discussões que afirmam ao mesmo tempo identidade e
diversidade, como se fosse possível essas duas coisas. Quer
dizer, a identidade é a própria negação da diversidade, a não
ser que você pense identidade para nação e diversidade no
mundo. Então, cada nação fechada sem diversidade, com a
identidade, convivendo com as diversidades do outro, é
muito engraçado.
Vamos defender a diversidade para fora e a falta de
diversidade para dentro. Como se as culturas nacionais
também não passassem por processos de homogeneização,
de dominação, de aculturação tanto quanto as relações
internacionais das culturas.
Então, as identidades são processos de captura das
singularidades, elas tentam cristalizar, petrificar uma diferença
externa criando fronteiras, limites, cânones para as culturas,
paralisando o fluxos de criação, de invenção, de circulação
de elementos culturais de todos os tempos e todos os
espaços, processos que nunca deixaram de ocorrer. Não foi
a globalização que trouxe a circulação dos elementos culturais
no mundo. A cultura circula desde que o homem habita a
terra, os elementos culturais não respeitam fronteiras. A
singularidade não é uma forma de ser, mas um estado
passageiro, transitório. Não é imanente nem transcendente
como a identidade; ela é fabricada, é histórica, e por isso
precisa, de novo, ser produzida. Por isso penso que o
sintetizador é uma ótima alegoria da produção cultural, pois
não tem raízes, não pretende ser original, não teme todas
as influências, a tudo incorpora. É um vassadouro de sons e
de contradições. É necessário, no entanto, torná-lo criativo,
e para isso abandonar a repetição e buscar a diferença.
Desaprender, desobedecer e se desentender.
Durval Muniz de Albuquerque - na mesa
Zabumba, sintetizador - cordel
O dia que tivermos uma visão monolítica de cultura, será o
fim. Quem já sabe o que é arte faz outra coisa, curte, vende,
comunica, analisa, ensina, produz e a até atrapalha. Aqui
temos um paradoxo fundante, só os que não sabem o que
é arte e cultura podem fazê-la.
Paulo Lima na mesa Zabumba, sintetizador
- cordel
Eu propus a imagem do cordel como gesto criativo, tipo um
símbolo talvez possível, para a cultura nordestina e para a
cultura brasileira, por extensão, e até para a cultura do Terceiro
Mundo de um modo geral.
Isso me parece adequado, pelo fato de que vivemos
necessariamente, não por nossa vontade, mas pelas
condições objetivas de nossa realidade numa situação de
sermos uma cultura de resposta. Nós não tomamos a
iniciativa do mundo, somos uma economia dependente,
129
“Toda identidade, como se sabe, implica em seleção, em cortes e em
arranjos de sentido que não são nem gratuitos nem inocentes.”
países absorvedores de tecnologias alheias, no sentido mais
amplo, inclusive a tecnologia conceitual. Os conceitos
filosóficos e científicos com que lidamos também são
absorvidos da Europa e dos Estados Unidos e nós não temos
a iniciativa. No jargão dos jogadores de xadrez eu diria que
nós não jogamos com as brancas, nós jogamos com as
pretas. Nós sempre aguardamos o lance inicial do nosso
oponente para que a gente possa responder.
Não devemos desprezar uma tecnologia só porque não está
mais servindo para o nosso concorrente. Quando não
precisamos mais daquela tecnologia, talvez seja o momento
de nós, que nunca tivemos aquela tecnologia ao nosso
alcance, lançarmos mão dela. É a mesma coisa porque nas
economias que vão na frente, que são as locomotivas da
história existe muito essa idéia da substituição do novo pelo
mais novo.
Não é porque uma determinada tecnologia está sendo
interessante para o andar de cima, que nós devemos correr
sequiosamente atrás dela. E não é porque uma tecnologia
não serve mais para o andar de cima que nós devemos
rejeitá-la. Nós temos direito a tudo e também de escolher.
Sempre que disserem que não possuímos a tecnologia, que
não possuímos as condições, existe uma condição de fazer
isso, nós é que não estamos enxergando porque queremos
fazer algo nos moldes, com a tecnologia e orçamentos
propostos pelo andar de cima, e nós achamos que não temos
condição de fazer isso.
Bráulio Tavares na mesa Zabumba,
sintetizador - cordel
O fato é que o debate sobre identidade e, particularmente,
identidade brasileira, como sabemos, é bastante antigo e
de certo modo tornou-se enfadonho e esgotado. Ele tem
sido preponderantemente uma discussão acadêmica e
política no sentido da grande política do Estado, não é? E
mesmo as variantes artísticas dessa questão da identidade,
não raro de sabor vanguardista, se tornaram ou anacrônicas
ou inúteis.
A questão, então, é aquela de distinguirmos de qual
identidade estamos a falar e de que uso extensionamos
fazer desta noção. O aspecto mais vulnerável de um debate
sobre o que vem a ser compreendido como identidade
brasileira é a sua pretensão de constituir-se numa narrativa
de totalidade.
A identidade não passa de um dispositivo como tal, como
totalidade, evidentemente. Como dispositivo a serviço de
interesses precisos, localizados e bem distantes da realidade
mais imediata dos símbolos sociais de que se vale para se
constituir como discurso abrangente. Foi sobre essa
orientação que se construíram tantos discursos de
brasilidade, tantos essencialismos culturais sobre o país.
Disso já estamos bastante fartos, porém, nem todas as
construções sociais de identidade se prestam aos usos
clássicos dessas sínteses nacionalistas, mesmo que as
identificações locais obedeçam ao processo seletivo dos
símbolos, e, portanto, ao problema do poder exercido por
quem possui prerrogativas de efetuar esta seleção, tratase, em todo o caso, de algo com conseqüências menos
comprometedoras do que os artifícios utilizados para a
definição da grande identidade do povo ou de nação.
No melhor dos casos, as identificações localizadas oferecem
uma possibilidade real de participação social diferenciada.
Toda identidade, como se sabe, implica em seleção, em
cortes e em arranjos de sentido que não são nem gratuitos
nem inocentes. Mas essas pequenas identidades locais
trazem a vantagem parcial de serem resultantes de uma
130
“Como água mole em pedra dura, as representações identitárias
acabam por adquirir existência real ao se tornarem modelos para
a ação.”
lógica menos perversa ou autoritária que aquelas motivações
em torno das quais muitas vezes os Estados-nações montam
os símbolos que se quer eleger como a síntese do vasto
oceano do que somos, de fato, individual ou coletivamente.
No final das contas, como se diz, se o inferno está cheio de
boas intenções, é mais digno arder sob o fogo de nossos
próprios erros que sob aquele das ideologias totalizadoras e
reducionistas.
Ora, as identidades culturais são sempre circunstanciais,
mesmo que aos mais desavisados possa parecer natural ou
essencial. E é justamente essa dinâmica cotidiana que escapa
às reificações sobre o que somos e, muito mais ainda, sobre
o que deveríamos ser.
Antes, porém, vale lembrar os discursos produzidos acerca
do que seria uma pretensa identidade brasileira. Esses
discursos têm assistido ao envelhecimento de seus
pressupostos por razões externas e de longo alcance. Basta
que aceitemos, para isso, e de qualquer modo que seja, o
argumento de que há, em nossos dias e diante de nossos
olhos, mudanças importantes nos diálogos interculturais em
escala global. Isto tem provocado a fragmentação de
estruturas de sentido sob as quais refletíamos, seja a idéia
de nação, e, particularmente, a idéia de uma cultura nacional.
Em contrapartida, as novas estratégias culturais são
mobilizadas pelos grupos sociais para se autodefinirem e
auto-sustentarem.
Deste modo, novas montagens identitárias se sobrepõem
no cenário mundial e pela via do mercado ganham força e
legitimidade. Não esqueçamos que as identidades de grupos
e territórios específicos são produzidas para dar a ver aquilo
que se quer como auto-imagem, não sendo, assim, apenas
projeções superficiais e meramente discursivas.
Como água mole em pedra dura, as representações
identitárias acabam por adquirir existência real ao se tornarem
modelos para a ação. Neste ponto, podemos então pensar
nas formas pelas quais os grupos podem tirar proveito prático
de modo a não apenas assistirem passivamente a
expropriação de alguns de seus traços culturais pelas
ideologias de largo alcance sobre a idéia do que seja um
país, um povo, uma nação. Mas, sobre as maneiras efetivas
pelas quais esses grupos sociais ou étnicos podem participar
ativamente do modo como desejam, como querem e como
podem tomar lugar no mundo.
Precisamos do elogio dos particularismos e das
singularidades culturais, mas sem que isso implique na
sonegação do diálogo entre as culturas. Somente assim, os
imperativos unilaterais dos centros de referência e emissão
de modismos em escala planetária poderão obter, em cada
lugar, uma recepção altiva, crítica, mas não ingenuamente
xenófoba. Em resumo, precisamos de educação sobre os
temas culturais como ferramentas para democracia do
acesso aos bens e o reconhecimento mais eqüitativo dos
produtores destes bens culturais.
Bruno César Cavalcanti na mesa
Zabumba, sintetizador - cordel
131
O mundo de hoje não é mais preto e branco; é um mundo
muito bem diferente. Resistindo à crença nas coisas erradas,
deve-se tentar reconstruir a sua estratégia como uma forma
de resistência. Isso significa abraçar aquilo a que se deve
resistir, alterar a sua natureza, ao invés de negar a sua
existência e força. Não podemos fingir que isso não existe.
A questão principal é como manter uma atitude empresarial
para se obter sustentabilidade e autonomia, e para fazer
isso, é necessário demonstrar capacidade.
Alvin Tan, no debate Criando uma Cultura
Global de Política
A linguagem é realmente um instrumento de percepção da
nossa realidade, e influencia a forma como percebemos as
coisas em nosso ambiente, a forma como pensamos, a
forma como agimos e falamos, assim como a forma com
que nos comportamos em um determinado contexto social;
a linguagem é o sangue da alma, e à qual a verdade corre,
e da qual cresce. Em quaisquer circunstâncias, é importante
desenvolver e manter a linguagem e impedir que seja
devastada por influências externas, como acontece quando
uma cultura domina uma outra.
Enas Mekawi, no debate Criando uma
Cultura Global de Política
Então temos certas dificuldades e eu acho que há dois
elementos importantes para essa revitalização: que a língua
seja respeitada e seja vista, sobre tudo pelas gerações
jovens, como elemento de poder.
María Helena Taberna, no debate Minorias
e Suas Culturas: Direitos Humanos e
Riquezas Humanas
132
“Se o ser humano não sentisse o olhar dos outros sobre ele,
existiria sua identidade?”
(...) Talvez um dia chegar a unir todas as nossas energias,
não para reconstruir nossos povos, porque a história já nos
separou, mas ao menos para nos reunir em volta daquilo
que temos de mais forte que é a cultura e que nunca se
pode sufocar. Para os que ficaram no continente, como nós,
ou para os que descendem de nós, de que estamos tão
longe, a única coisa que pudemos impor ao mundo até então,
e que ninguém jamais nos tirará, é a força da nossa cultura.
(...) a globalização, a mundialização, é ainda do nosso ponto
de vista, no continente, um meio de nos esmagar. Para que
nossas identidades culturais não sejam sufocadas, porque
não se pôde, no correr dos séculos, fazê-lo.
(...) os povos da África estão conscientes de que os povos
da África da diáspora não deixaram morrer a cultura africana,
que eles ergueram alto a flâmula da cultura africana.
(...) em Camarões há muita cultura, e em toda a região de
onde eu vim, isto é, a África Central, onde chove todos os
meses do ano, há muita cultura, há muito canto, há muita
dança, mas ninguém, no mundo inteiro, sabe que essa
parte da África existe, como um grande buraco no meio da
África, e quando se ouve falar dessa região do mundo de
onde eu venho, fala-se de guerra, fala-se de paludismo e
fala-se de aids, mas lá existem pessoas que riem, que
dançam e que cantam também o dia inteiro para mostrar ao
mundo que elas existem.
A identidade (...) supõe uma alteridade. Ela se situa,
obrigatoriamente ou quase, contra, ao lado de ou face ao
outro. Se o ser humano não sentisse o olhar dos outros
sobre ele, existiria sua identidade? Não é ela o conjunto de
elementos que fazem com que um indivíduo se distinga
dos outros membros de seu grupo e que este grupo se
distinga dos demais grupos? A identidade só existe na
diferença, sendo esta diferença ela própria definida com
relação ao outro, o outro indispensável à existência mesma
da identidade. Suprimi-lo é suprimir a si próprio. Daí, todos
os ardis, os artifícios, as mentiras que estão ligados à
afirmação de uma identidade. Este jogo com o outro, que é
seu outro ele-mesmo, esta tentação de modificar o outro à
sua própria imagem, é sabendo que não conseguiremos e
que, tal como Golem, nos escapará e que será preciso
destruí-lo. A identidade está na origem de todos os nossos
conflitos, de todos os males, de todas as guerras, de tudo
que há de malvado no homem e, ao mesmo tempo, ela é a
fonte de sua criatividade e do que esta criatividade pode
gerar de mais bonito no homem. Há alguns anos, nós
procurávamos saber como conciliar a identidade e a abertura
para o outro, a identidade e a luta contra o racismo: vã
procura. É preciso nos render à evidência da evolução
acelerada que sofreu o conceito de identidade e de sua
associação, de sua assimilação aos conceitos de exclusão e
do racismo. A defesa e a ilustração da identidade são atuais
em qualquer lugar do mundo, ligadas às guerras, aos
massacres, às purificações étnicas, aos genocídios. Mas por
que esta evolução radical enquanto todos os indicadores
passavam ao verde para anunciar um mundo mais livre,
mais aberto, mais fraternal?
(...) Ë que nós entramos na era do grande medo, houve,
conscientemente ou inconscientemente, grande medo,
medo, e a justo título, grande medo, medo de ver as
identidades negadas, rejeitadas, niveladas, passadas no rolo
compressor da uniformização, do que chamamos de
globalização, medo de ver substituir regimes arbitrários e
ditatoriais, regimes ainda mais injustos, mais cruéis e sem
133
“A defesa e a ilustração da identidade são atuais em qualquer
lugar do mundo, ligadas às guerras, aos massacres, às purificações
étnicas, aos genocídios.”
piedade, porque respondem apenas à lei do dinheiro e do
lucro, regimes que se instalam insidiosamente chamando à
tona instintos primários do homem, os das necessidades a
satisfazer, dos bens a adquirir, liberando assim seus outros
instintos de conservação, de sobrevivência, e o aumento
da violência sem limites jorrou como a lava de um vulcão e
se abateu lá para onde o mercado queria se expandir,
deixando para trás cinzas, mortos e lamentações.
Esta reação das identidades ignoradas e desprezadas
encontrou conforto nas mesmas armas da globalização, a
midiatização e suas ferramentas. Separados de suas
tradições e de suas raízes, os povos que se viam criticados
em seu passado, sendo encorajados a ascender à
modernidade, apertaram o passo e passaram da era atômica
à era digital com uma facilidade desconcertante, e as
ferramentas de comunicação que serviam para vender
produtos vendem também ódio e ostracismo, crimes e
racismo, vício e terrorismo. Estas identidades mortíferas
foram elas mesmas afetadas, desarraigadas, foram elas
mesmas digitalizadas. Estas identidades digitais e robóticas
são, ademais, como Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame,
suicidas, porque elas têm uma vaga consciência do fato de
que elas perderam tudo. Que resta a fazer? Como parar esta
lava fervente que jorra de todos os vulcões, os antigos que
estavam adormecidos e todos os novos que se criam dia
após dia? O que podem fazer alguns intelectuais que
mantiveram a cabeça fria neste pânico universal que deixou
multidões transtornadas? A resposta que parece se impor:
nada, não há nada a fazer, mas um grão de areia pode às
vezes mudar o destino de um homem, de um povo, do
mundo, é preciso encontrar este grão de areia, é preciso
ser este grão de areia nas engrenagens da modernização
conquistadora, desta besta imunda que provoca o grande
medo, o fim do século XX.
Em um livro de contos de fadas do terceiro milênio, a avó
conta à neta a seguinte história: há muito tempo, os povos
da terra se matavam entre si, cada um queria possuir o que
o outro tinha e cada um queria impor sua lei aos outros,
então vieram os poetas para lhes dizer: por que não vos
enriquecer com vossas diferenças em vez de destruí-las?
Que cada um fale sua língua, se vista à sua maneira, cante
seu próprio canto, cultive suas tradições e respeite o outro.
Os homens da terra escutaram os poetas e viveram na paz
e harmonia e foram mais felizes e mais ricos. Por que os
poetas, perguntou a neta. Porque eles são os únicos que
não têm nada para vender, respondeu a avó.
Elise M’Balla, na mesa Afro-globalização e
no debate Política Pública Cultural e
Investimento Privado em Cultura
É preciso gerenciar a identidade, como enfocar este produto
no mercado diverso, trazer as realidades próximas em
detrimento das realidades globalizadas. É preciso preservar
a “ecologia cultural” dos países e incluir as novas tecnologias.
As redes digitais, radiodifusoras, devem ser permeáveis.
Qualquer espaço para criação e difusão da produção cultural
é viável, a criação pequena só existirá se a TV der acesso a
ela. A ocupação cultural precisa ser autogestionável.
Andrés Morte, na mesa Mudança nos
Mercados Culturais
Não devemos perder nossa identidade, nossas raízes, para
que assim possamos preservar a integridade de nossas
tradições. As purezas e a alma das formas tradicionais estão
sendo perdidas ao tentarmos progredir para chegar a um
estado que dizem ser “ideal”. Não devemos impor nossa
visão do que é ideal para o outro, temos que ter respeito ao
outro.
Edric Ong, na mesa O Papel da Cultura e
das Artes em Programas de
Desenvolvimento
134
“A apropriação criativa, e não estamos falando de plágio, é a mesma
essência de toda a cultura e a base da nossa identidade cultural”
(...) Na realidade, o que eu vou tentar mostrar é que a
cibercultura de alguma maneira potencializa e traz à tona o
que ao meu ver seria a essência de todo o processo cultural
e de todo o processo de formação de identidade:
colaboração, intercâmbio, mútuas influências. Eu vou usar
aqui a metáfora do copyleft. Para quem não sabe copyleft
pode ser definido como processos de transformação de
obras na qual o usuário pode adicionar informações e
transformações desde que a obra continue livre para novas
transformações. Vou usar essa metáfora para falar não da
evolução, mas de algo que talvez possamos, com licença,
falar de devolução, no sentido de uma volta ao que deveria
ser e o que deve ser toda a dinâmica cultural.
(...) A apropriação criativa, e não estamos falando de plágio,
é a mesma essência de toda a cultura e a base da nossa
identidade cultural. A identidade cultural não existiria sem
intercâmbios diversos. A identidade pode ser definida assim
como uma especificidade que emerge de mútuas influências:
a música, a literatura, a economia, a ciência e a tecnologia
são exemplos concretos de expressões culturais que se
nutrem de fontes geográficas, ideológicas e sociais distintas.
O que vamos tentar mostrar rapidamente aqui é que essa
dinâmica da cultura está de alguma forma sendo colocada
em marcha pelos fenômenos da cibercultura. Então não há
propriedade privada nem no campo da cultura, nem no
campo da identidade. Há algo sempre autoritário e violento
na defesa de uma suposta, já que falsa, origem única, fonte
absoluta, princípio gerador ou essencial. Os deuses estão
nas pequenas coisas em relação, em rede, na cooperação,
nas trocas.
A riqueza de qualquer sociedade sempre está ligada à
complexidade da sua cultura. Isto é, a força do seu poder
criativo e empreendedor. A comunicação nesse sentido é a
forma pela qual uma sociedade põe em marcha e intercambia
o conjunto de seus empreendimentos, sejam eles artísticos,
sociais, políticos, científicos.
Uma cultura complexa é uma cultura plural, aberta, circulando
livremente pelo corpo social. A criatividade está na
originalidade da circulação de diversas formas, incluindo aí a
riqueza artística e cultural, hábitos sociais, a criatividade
simbólica e imaginária.
A cibercultura, esse conjunto de processos tecnológicos,
midiáticos e sociais emergentes a partir da década de 70 do
século passado, tem enriquecido a diversidade cultural
mundial e proporcionado formas de criatividade cultural local
em meio ao global, supostamente homeogeneizante.
Uma das principais características, eu estou falando de fatos,
dessa cibercultura planetária é o compartilhamento de
mensagens sobre os mais diversos formatos: arquivos, fotos,
filmes, música, mensagens pessoais, construindo uma
inteligência coletiva. A cibercultura está fazendo crescer a
troca de mensagens das mais diversas, de fóruns e chats a
weblogs, fotologs a mensagens de celular, dos jogos em
linha à atividade acadêmica. Ela pode potencializar o conjunto
do que há de mais rico e também de mais nefasto nas
culturas humanas.
A universidade, por exemplo, parece estar saindo agora da
Idade Média. O ideal científico, que é a circulação do saber
estruturado, a troca de informações, o encontro entre
pesquisadores, está em marcha. A internet estaria assim
potencializando a cultura científica em nível mundial. E esse
crescimento só se dá pela influência mútua, a cibercultura
nesse caso é fator de enriquecimento social e diversidade
cultural. E não há aqui qualquer perspectiva ingênua ou
otimista. Eu estou falando em termos quantitativos de uma
forma informante, evidente em todas as estatísticas sobre
135
“A identidade, a diversidade e a riqueza de uma cultura só se
estabelecem pelo contato e não pela interdição e isolamento”
o mundo virtual: o maior uso da internet é para contato
entre pessoas nas mais diversas formas.
Assim, a cibercultura pode ser, em alguns setores já é, um
fator de troca de conhecimentos, apropriação criativa,
desenvolvimento de uma inteligência compartilhada. Aqui
chamamos isso de cultura copyleft. (...)
Vivemos assim a liberação do pólo de emissão. A emissão
do ciberespaço não era para ser controlado centralmente.
Todos podem emitir, diferentemente das mídias clássicas
em que os poderes estão associados ao poder econômico
e político, concessões de televisão, rádios e jornais. (...)
O ciberespaço vem assim a pôr em xeque vários princípios
da cultura de massa do século XX. Não estamos falando em
substituição, já que ambas formas midiáticas vão coexistir,
mas da emergência de um princípio em rede que está
colocando sinergias em contato, incentivando a troca, a
apropriação, buscando uma evolução inteligente do planeta.
(...) Neste sentido podemos dizer que, com a emergência
da cibercultura, a cultura popular passa por um processo de
descentralização de circulação e de apropriação. As diversas
manifestações da cultura da internet, e eu não vou entrar
aqui nesses detalhes, mostram essa emergência de uma
lógica rizomática.
Como rede, e eu vou concluindo, os ciberespaços,
entretanto, abertos a priori, tendo a sua forma determinada
pelo tempo e pela dinâmica social, pela constituição
complexa dos nós das redes. E a rede não é aqui um
dispositivo fechado, mas aberto. Um lugar de passagem e
de contato, crescendo em valor de acordo com o
crescimento do número de seus utilizadores. Ela é construída
pela dinâmica de suas interações não sendo assim a
prioristicamente determinada.
(...) A cultura não deve ser propriedade privada já que a sua
riqueza se dá no livre intercâmbio de experiências, nas
mútuas influências e na abertura ao que Habermas e Zimmel
chamavam de mundo da vida. O que sabemos do mundo e
de nós mesmos vem daquilo que herdamos dos outros, do
que lemos, ouvimos, aprendemos, vivemos. A liberdade e
a identidade não devem ser opostos, mas complementares.
O emblema maior que é o movimento dos softwares livres
e a idéia do copyleft para marcar a contemporaneidade.
A identidade, a diversidade e a riqueza de uma cultura só se
estabelecem pelo contato e não pela interdição e isolamento.
Nossa cultural brasileira tem na sua identidade a prática
cotidiana dessa apropriação criativa e acumulativa de diversas
influências. Nossa identidade, se é que é possível falar no
singular, só foi possível pela criação autêntica, a partir do
uso de diversas influências européias, indígenas e africanas.
Da diversidade criamos uma diferença. O mesmo princípio
está hoje em andamento com a cibercultura.
Acho que o grande conflito que se dá hoje é entre uma
identidade contemporânea que deve dialogar entre a
dissolução total do global e uma afirmação fechada sobre si
mesmo que leva a grandes atrocidades. Esse talvez seja o
desafio do século XX. E eu acho que o grande paradoxo está
na relação entre duas frases. Uma do Rimbaud e outra do
Sartre. O Rimbaud dizia “ge é anotre”, “eu é o outro”, então
nós nos construímos pelo outro e, ao mesmo tempo, o
inferno é o outro. Então não saímos muito dessa equação.
André Lemos, no debate Evolução Cultural
e a Dinâmica da Identidade e Tradição
136
“(...) e a vida pode ser tornar apaixonante, pois temos a impressão
de que durante todo o dia temos possibilidades de escolha, outras
maneiras de ser no mundo são possíveis”
(...) eles decidiram fazer uma criação com uma parte dessas
mulheres operárias durante toda a vida delas e ele montou
uma criação com elas e é impressionante como em um
tempo muito curto foi possível ver a transformação dessas
mulheres que no começo sonhavam apenas em retornar à
fábrica porque elas só tinham conhecido isso até então e
elas queriam ter um trabalho que era a vida delas e como
finalmente elas compreenderam que a vida delas podia ser
muito mais que isso e agora nenhuma delas tem vontade
de voltar para a fábrica. Elas entenderam que podiam sonhar,
desejar, fazer outra coisa em suas vidas e é o que elas estão
fazendo realmente. E tenho a impressão que tudo o que
ocorre com todos esses artistas abre possibilidades de
tomada de consciência muito rápidas. Não são tomadas de
consciência que passam por longos caminhos teóricos, de
repente as pessoas se vêem diferentes. As discussões que
ocorreram desde o inicio desses encontros são muito
importantes, a importância dos artistas nas escolas, no
quotidiano das pessoas, pois todas essas coisas estão aí
para nos tirar desse quotidiano, para nos dar outras
perspectivas e a vida pode ser tornar apaixonante, pois temos
a impressão de que durante todo o dia temos possibilidades
de escolha, outras maneiras de ser no mundo são possíveis.
É um pouco isso o coração de nossos sonhos, retomar o
poder de nossa própria vida. E quando tivermos recuperado
esse poder não deixaremos outra escolha a nossos governos
senão a de mudar.
Eles podem ser artistas plásticos, dançarinos coreógrafos,
músicos, gente do teatro, eles se arriscam para criar
situações nas quais eles vão encontrar pessoas para leválas a mudar os seus olhares sobre si próprias. Nos damos
conta que quando trabalhamos muito com as crianças, até
uma certa idade se está verdadeiramente conectado consigo
mesmo, reage-se em relação ao que se sente de verdade e
depois de um certo momento separa-se de seu sentimento
e se prefere pensar sobre si mesmo e sobre as coisas da
vida o que nos ensinam pensar, o que vamos encontrar em
livros, o que vamos ouvir dizer mais do que sentimos nós
mesmos. E em relação a esse lugar, talvez o posicionamento
desses artistas, de forma intangível, seja que eles tentem
reconectar as pessoas com elas mesmas para dar-lhes a
força para pensar que eles têm muitas coisas nelas mesmas
e que elas têm muito mais possibilidades do que elas
acreditam.
Fazette Bordage, na mesa Para Uma Rede
Mundial de Artistas.
137
“Identidade como processo, não como
ponto de partida ou chegada, mas
como l ugar do diálogo, do
reconhecimento de si e do outro.”
Regina Novaes, no debate Procurando uma
Identidade Cultural