risco, sociedade digital e cultura do medo

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risco, sociedade digital e cultura do medo
ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E
SOCIEDADE DO UNILASALLE
GT – RISCO, SOCIEDADE DIGITAL E CULTURA DO
MEDO
CANOAS, 2015
1120
CULTURA DO MEDO E VITIMIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE OS DADOS DO
OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA DE CANOAS NO ANO DE 2014
Diego Oliveira Pereira1
Emerson Wendt2
Renata Almeida da Costa3
RESUMO: Os dados referentes à criminalidade no Brasil, veiculados pela
imprensa, são tidos como significativos na produção da sensação social de
(in)segurança. Expressões usadas pela mídia, como violência e vitimização,
tendem a estar presentes no cotidiano da população de grandes centros e
acabam influenciando a percepção social de (in)segurança. Nesse sentido,
evidencia-se a tentativa de contingenciamento de riscos mediante demandas por
produção e aplicação do Direito.Por esse motivo, faz-se necessária uma
observação crítica dos dados estatísticos criminais de cidades como Canoas,
buscando-se uma análise dialógica entre a sensação de insegurança com a
realidade social contemporânea e a adoção (ou não) de políticas públicas
compensatórias à produção do medo. Assim, o município de Canoas é o local de
experimentação da investigação e a pesquisa procura, desde a definição teórica
do que consistem “medo”, “insegurança” e suas “sensações” no território urbano,
analisar dois estudos realizados pelo Observatório de Segurança Pública de
Canoas. Para tanto, abordam-se: (a) a representatividade (social, cultural e
econômica) dos dados estatísticos da criminalidade de Canoas em 2014; (b) o
medo e a sensação de insegurança e a repercussão nos comportamentos
humanos; e (c) a atuação dos gestores públicos, em especial o municipal, com o
propósito de perscrutar criticamente a resposta do poder público às demandas
sociais de (maior) segurança.
1
2
3
Graduando em Direito pelo Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, bolsista em iniciação
científica pela própria instituição (PROIC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2143608046670140.
Mestrando em Direito e Sociedade (Unilasalle, Canoas-RS). Graduado em Direito - pela
Universidade Federal de Santa Maria (1997). Pós-graduado em Direito pela URI-Frederico
Westphalen. Delegado de Polícia Civil no RS. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9475388941521093.
Pós-Doutora pelo Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati (2015), Doutora em Direito
pela UNISINOS (2010), Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (2002) e Graduada em Direito pela Universidade de Passo Fundo (1998). É
professora do Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, em Canoas/RS, nos cursos de Direito
e Mestrado em Direito, e, também, da Escola de Direito da Universidade Anhembi Morumbi
(LaureateInternationalUniversities),
em
São
Paulo/SP.Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8431378002523967.
1121
PALAVRAS-CHAVE: Contingenciamento de riscos; Criminalidade; Cultura do
Medo; Gestão Pública; Vitimização.
1 INTRODUÇÃO
O espaço de convívio e interação do homem, a “polis”, passa
constantemente por transmutações. Hodiernamente, as grandes metrópoles e as
cidades são os núcleos da complexidade das relações sociais. Nesse sentido, os
dados referentes à criminalidade no Brasil, veiculados pela imprensa, são tidos
como significativos na produção da sensação social de (in)segurança.
Expressões usadas pela mídia, como violência e vitimização, além da
seletividade das notícias, tendem a estar presentes no cotidiano da população na
busca de contingenciamentos aos riscos, i.e., por elas, procura-se controlar aquilo
que pode ocorrer mas não necessariamente vai ocorrer, no afã de serem negadas
as indeterminações derivadas desse risco não somente pela produção
(legislativa) como também pela aplicação do Direito.
Nessa senda, as concepções da contemporaneidade, sob as perspectivas
de Zygmunt Bauman, por exemplo, atentam para as consequências das rápidas
transformações, questionando as instituições de um Estado Democrático de
Direito quanto às suas capacidades para resolução de conflitos.
Por esse motivo, considerando a historiografia da cidade de Canoas, sua
proposta de “enfrentamento” à criminalidade e a “criação” dos chamados
“Territórios da Paz”, faz-se necessária uma observação crítica dos dados
estatísticos criminais da maior cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre,
buscando-se uma análise dialógica entre a sensação de insegurança com a
realidade social contemporânea e a adoção (ou não) de políticas compensatórias
à produção do medo, com o propósito de verificar se essas decisões
governamentais são ou não corretas, se são ou não inclusivas.
Consideradas incomuns as características do município em relação às
demais cidades gaúchas e, em especial, às localizadas na região metropolitana
de Porto Alegre, é Canoas o local de experimentação da investigação e a
1122
pesquisa procura, desde a definição teórica do que consistem o “medo”, a
“insegurança” e as suas “sensações” no território urbano, analisar dois estudos
realizados pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas.
Por fim, aborda-se (a) a representatividade (social, cultural e econômica)
dos dados estatísticos da criminalidade de Canoas em 2014, (b) medo e
sensação de insegurança e a repercussão nos comportamentos humanos, e (c) a
atuação dos gestores públicos, em especial o municipal, com o propósito de
perscrutar criticamente a resposta do poder público às demandas sociais de
(maior) segurança.
A cidade de Canoas e seus Territórios de Paz: da construção de ideias ou
ideais à exclusão social
O povoamento da cidade de Canoas teve início no ano de 1874, quando
fora inaugurado o primeiro trecho de estrada de ferro do Rio Grande do Sul, entre
Porto Alegre e São Leopoldo (MAYER, 2009, p. 36). No entanto, foi apenas em 27
de junho de 1939 que Canoas é elevada à categoria de município.
O crescimento demográfico de Canoas, nos anos seguintes à sua
emancipação política, foi um fenômeno sem similar no RS. No decênio de 1950 a
1960, o crescimento populacional atingiu a cifra de 390%. Naquele período, a
população de Canoas deu um salto demográfico, passando de 19.471 habitantes
a 95.401. Segundo dados de um censo escolar realizado em 1964, a população
seria de 117.000 habitantes (MAYER, 2009, p. 38).
Logicamente, a hipertrofia demográfica acarretou uma série de problemas,
principalmente na prestação de serviços e efetivação de obras públicas. Segundo
Mayer, os números atestavam que a cidade de Canoas não conseguiu evoluir
dentro dos parâmetros de uma autêntica concentração urbana. Já o inusitado
surto de povoamento da década de 1940, promoveu uma verdadeira
“desconcentração urbana”. Isto quer dizer que, naquele momento, o núcleo
central da cidade não estava suficientemente consolidado, quanto ao social, ao
político e ao urbano (MAYER, 2009, p. 60).
É possível observar que a cidade de Canoas não teve o devido
planejamento por parte da gestão pública no aspecto do desenvolvimento social,
dado que o crescimento da cidade fora processado de forma desordenada e
1123
espalhada em dezenas de bairros e vilas, atingindo uma extensão de dez
quilômetros ao longo da rodovia BR-116 (MAYER, 2009, p. 39).
O povoamento local foi se processando com a abertura de dezenas de
loteamentos sem as mínimas exigências urbanísticas, localizados em áreas
alagadiças e banhados, resultando em graves problemas de ordem técnica,
social, educacional e econômica e que vêm sobrecarregando todas as gerações
das administrações municipais.
Esse fenômeno ocorreu (a) devido ao Plano de Metas do Governo Federal
e provocou o êxodo de milhares de famílias do interior do estado para Porto
Alegre à procura de empregos e melhores rendas, e, (b) a localização de Canoas
junto à capital gaúcha, que então surge como um promissor parque de trabalho.
Ou seja, a cidade de Canoas passou a oferecer possibilidades de emprego,
atraindo famílias de Porto Alegre com sérios problemas de moradia. A procura por
terrenos foi tanta que fez surgir um grande número de loteamentos, muitos deles
distantes do núcleo central. Formaram-se, assim, dezenas de núcleos sem interconvivência social, vivendo todos (e até o próprio centro), mais na órbita da
capital do que da própria comunidade canoense (MAYER, 2009, p. 38-39).
Esse adensamento, que na maioria das vezes ocorreu sem planejamento
nem controle, se de um lado ofereceu a uma parcela da população acesso ao
trabalho e, para alguns, melhores condições de vida, por outro lado causou um
desequilíbrio urbano que não se conseguiu solucionar ainda, inclusive no que toca
às questões ambientais (GRANZIERA, 2014, p. 630).
Ainda durante a década de 1950 e 1960, quando o país era atingido pela
“febre desenvolvimentista” do Plano de Metas4, a esperança para a resolução dos
problemas do município era sua rápida industrialização e, assim, Canoas tornouse um dos municípios gaúchos com maior índice de desenvolvimento industrial e
comercial. Atualmente, grandes empresas nacionais e multinacionais (como a
Refinaria Alberto Pasqualini – Refap, Springer Carrier e AGCO do Brasil, além de
4
O Plano de Metas foi um programa de industrialização e modernização, de ordem federal, de
autoria do então Presidente da República Juscelino Kubitschek. O plano contemplou o
desenvolvimento do setor industrial nacional
1124
nomes fortes nos ramos de gás, metal-mecânico e elétrico) estabeleceram-se em
Canoas.
Esse extraordinário crescimento da cidade de Canoas, como polo
industrial, comercial e de serviços marcava os discursos políticos, quando esses
se referiam a Canoas como a “cidade que mais cresce no Estado”, que se
encontrava de “braços abertos” para receber todo o empreendimento que
trouxesse “progresso” (MAYER, 2009, p. 40). Por outro lado, os jornais
ostentavam manchetes que refletiam a preocupação das lideranças e do conjunto
da população perante essa rápida expansão urbana. Em suma, a cidade de
Canoas teve, e ainda tem, seu “urbanismo ad hoc”5 à industrialização. É
notadamente um território operário.
2 TERRITÓRIOS DE PAZ: GUAJUVIRAS E GRANDE MATHIAS VELHO
A cidade de Canoas possui 17 bairros identificados no mapa urbano, no
entanto, contabilizam-se outros 15 bairros, sendo que esses são subdivisões dos
primeiros. Desses bairros identificados, dois deles ganham atenção do gestor
municipal (e também do estadual) pelas altas taxas de incidência de delitos, são
eles: Grande Mathias Velho (Bairros Mathias Velho e Harmonia) e Guajuviras.
O aumento rápido da taxa de criminalidade é o motor principal da
transformação dos comportamentos e atitudes públicos no desenvolvimento do
aparato de controle do crime e da criminologia. Visto da perspectiva da exclusão,
este aumento teve efeitos profundos (YOUNG, 2002, p. 37). Em vista disso, a
administração municipal, com apoio das esferas estadual e federal, buscou
através de dois projetos políticos o reestabelecimento da (sensação de)
segurança pública através da, e consequente, redução das altas taxas de crimes
que a cidade de Canoas apresenta.
5
Para o urbanista francês François Ascher, “o neourbanismo privilegia a negociação e o
compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a
solução ad hoc em detrimento da norma”. Em vez de regulação, negociações caso a caso, projeto
a projeto, na concretização do que o urbanista nomeou como “urbanismo ad hoc” [...] ASCHER
apud VAINER, Carlos. In: MARICATO, Ermínia. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades
Rebeldes. Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 2013, p. 38.
1125
Em relação à legitimidade que assegura o Estado o poder/dever de
proteger os cidadãos adotando discursos que tem por perspectiva a segurança
pública, faz-se oportuna a lição de Foessel:
El tema de la seguridad permite precisamente mantener ese discurso de
identidad inmediata entre el pueblo y sus gobernantes: la seguridad es
un objetivo que todos pueden compartir, y así se reconstruye una ficción
de unidad de la que no está permitido dudar. […] Del lado de las
instituciones, el deber de vigilancia produce legitimidad y constituye, por
tanto, un cierto amparo retórico ante el sentimiento de impotencia
pública” (FOESSEL, 2011, p. 28).
Para tanto, estabeleceu-se a primeira iniciativa municipal. Denominada de
Canoas Mais Segura6, o projeto é composto por profissionais da Fundação da
Brigada Militar, Guarda Municipal e Secretaria Municipal de Transportes, tendo
ainda o espelhamento da SIM (Sala Integrada de Monitoramento) e o 15º
Batalhão da Brigada Militar. Segundo a gestão municipal, trata-se de um projeto
estratégico que objetiva prevenir o crime e as violências, aperfeiçoar o controle de
tráfego, oportunizar o zelo urbanístico, ampliar a vigilância ambiental, aperfeiçoar
a fiscalização e implantação de projetos e programas7.
Com semelhante propósito, efetivou-se o segundo programa, denominado
“Territórios da Paz”. Inicialmente, um centro de pesquisa social aplicada à
segurança pública de Canoas foi estruturado com recursos do Governo Federal,
todavia, somente com a cooperação de outros órgãos governamentais e não
governamentais que foi possível a instalação dos Territórios de Paz nos bairros
de Mathias Velho e Guajuviras.
O projeto objetiva a monitoração das ruas, através de câmeras que captam
áudio e vídeo, e rígido policiamento em pontos considerados críticos dentro das
comunidades. Além disso, o gestor público estabeleceu projetos sociais de
integração comunitária para ambos os bairros a fim de compor, junto à ideia
principal, a “ordem” nessas localidades.
6
Essa ação política objetivou agregar 192 centrais de alarmes, instaladas em prédios públicos, 204
câmeras de vídeo, das quais 120 encontram-se em vias públicas, áudio-monitoramento com 44
sensores instalados no Território de Paz Guajuviras. A Guarda Municipal da cidade é o principal
gerenciador dessas ferramentas, tanto no atendimento aos alarmes, quanto no apoio as diversas
solicitações advindas das tecnologias implantadas sempre em apoio às demais integrantes da
SIM.
7
Dados disponíveis no sítio http://www.canoas.rs.gov.br/.
1126
Tratando-se de intervenção estatal direta sobre a comunidade, há que se
observar os efeitos sobre o tecido social urbano a partir do ato de decisão da
Administração municipal em criar os Territórios de Paz. São eles: (a) a
estigmatização desses territórios (tornam-se estigmatizantes e estigmatizados), e
(b) o fomento à segregação social no (e do) território urbano.
Pelo primeiro, o fato do gestor estatal estar promovendo os dois bairros à
condição de “especiais”, o imaginário social é conduzido à falácia do local a ser
evitado, do local perigoso, do ambiente belicoso. Ao enfatizar-se o local como
necessário à implantação da paz, reforça-se o estereótipo do que ele não é. Ou
seja, pretendendo-se negar o conflito e o medo, evidencia-se aquele espaço
como o "locus" dos mesmos (PEREIRA; COSTA, 2014).
Assim, a cidade se torna a polis das barreiras, de inclusão e exclusão de
indivíduos, embora deve-se destacar que tais barreiras não são apenas
imposições de classes hierarquicamente mais abastadas. Os sistemas de
exclusão, visíveis e invisíveis, são criados tanto pelos ricos como pelos setores
precários (YOUNG, 2002, p. 38). Ainda sob a perspectiva de Young:
A conduta atuarial de policiamento, zoneamento e prevenção diferenciais
ajuda a manter esta situação; com efeito, na medida em que desloca o
crime das áreas bem protegidas de classe média para as áreas menos
protegidas das camadas mais baixas da classe trabalhadora, esta linha
atuarial agrava o problema (HOPE apud YOUNG, 2002, p. 43). [...] Um
processo de atuarial de exclusão e administração de riscos que se
acopla a um mecanismo cultural de produzir bodes expiatórios: a criação
de um outro desviante segregado espacial e socialmente (YOUNG,
2002, p. 43).
Embora a existência de tais políticas auxilie na queda dos índices
estatísticos de criminalidade dos bairros em questão, a sensação de medo e
insegurança permanece incorporada a estas localidades. Isla (apud ROLLERI,
2006, p. 101) constata que “la sensación de inseguridad es más alta que la tasa
de delito”. Afora isso, pode-se notar que tais medidas implicam tanto o isolamento
sociomoral de uma categoria estigmatizada quanto a amputação sistemática do
espaço e das oportunidades de vida de seus integrantes (WACQUANT, 2008, p.
75).
1127
Esses dois territórios são notoriamente áreas pobres8, consolidados,
historicamente, sem os equipamentos urbanos adequados. Em outros termos, o
Poder Público enfatiza a vigilância – monitoramento e segurança – em detrimento
ao desenvolvimento do meio ambiente urbano acessível e saudável. A classe
proletária que reside nos Territórios de Paz tem mais desvantagens porque ao
mesmo tempo em que é o setor privilegiado para recrutamento da criminalidade
tradicional e a principal vítima, é ainda o setor mais vitimado pelo aparato
repressivo-punitivo e o menos protegido pelo setor judiciário, além de ser
estigmatizado segundo a famosa associação pobreza/criminalidade (PASTANA,
2011).
Nesse compasso, o Estado mostra a forma como pretende efetivar a
segurança e a pacificação desses bairros. Em um primeiro momento implementase o monitoramento e o patrulhamento ostensivos, para, logo depois, criar
políticas socioeducacionais e de integração comunitária (PEREIRA; COSTA,
2014). Dessa forma, pode-se entender que a partir da decisão do gestor municipal
cria-se a imagem de território perigoso, indiretamente do território a ser evitado.
Logo, produz-se um espaço estigmatizado e excluído. Esse efeito, por si só, tende
a dificultar a efetivação das estratégias de integração urbana.
8
Segundo Wacquant, durante e depois da era progressista, o termo “gueto” se expandiu para
designar o confinamento socioespacial dos recém-chegados à metrópole, especialmente as
famílias de classes populares provenientes da Europa do sul e central, mas também os afroamericanos que fugiam do regime opressivo do Sul segrecionista e tentavam alcançar a “terra
prometida” do Norte Industrial. Ou seja, esses lugares onde segregação, degradação do meio
ambiente, superpopulação e miséria (associada a desemprego e instabilidade no emprego) se
aliam para exacerbar os males urbanos e inibir a participação na vida societal (WACQUANT,
2008, p. 62). Embora os dois bairros em estudo não enquadram-se no conceito etno-racial de
gueto, compartilham características semelhantes. Desse modo, descarta-se o jargão popular cujo
rótulo identificam Mathias Velho e Guajuviras sendo os guetos da cidade de Canoas.
1128
3 O MEDO E A CULTURA À SUA VOLTA NO AMBIENTE SOCIAL DAS
CIDADES
Hodiernamente, o problema social da violência urbana está associado à
criminalidade, ao passo que o medo9 generalizado do crime se incorporou ao
modus vivendi da população urbana. Nesse contexto, é possível visualizar
mudanças nos comportamentos e hábitos sociais. Um exemplo de tais
transformações é a arquitetura das cidades, na qual é possível identificar, cada
vez mais, a fragmentação do espaço urbano, evidenciada pelo cerramento dos
imóveis de uso público e privado, pela construção de muros mais altos, pela
imposição de cercas em volta de das edificações, pelo emprego de sistemas
tecnológicos de segurança, dentre outros aparatos.
A utilização de aparatos de proteção é, desse modo, feita sob o escopo de
agregar mais segurança aos ambientes urbanos. Dito de outro modo, é nos
grandes centros urbanos que a complexidade da vida contemporânea produz
incerteza, uma vez que rotinas subjetivas e individuais são constantemente
alteradas, ou pelos adventos tecnológicos e mercadológicos, oriundos da
globalização, ou por influência de ordem estatal, ou, principalmente, pela
percepção sensorial dos fatos e dos acontecimentos ao seu redor (PEREIRA;
COSTA, 2014). Ademais, incerteza, indeterminação e risco são os elementos
característicos da contemporaneidade; mais do que isso. São os elementos
diferenciadores da sociedade contemporânea da sociedade moderna e/ou
tradicional, por sua vez, pautada na certeza e na determinação.
No contexto da incerteza característica da contemporaneidade, pode-se
dizer que, como afirma Alba Zaluar (apud PASTANA, 2011), o aumento real, ou
percebido como tal, da violência criminal tem consequências no plano simbólico,
econômico e político. A incerteza leva à sensação de medo e de insegurança, e
9
Segundo Bauman (2008, p. 8), “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância
da ameaça e do que pode e do que não pode para fazê-la parar ou enfrenta-la, se cessá-la estiver
além de nosso alcance”.
1129
essa, também tida como um aspecto da Cultura do Medo, apresenta-se como um
problema multifacetário10.
Geralmente as causas das sensações de medo e de insegurança, da forma
como são percebidas, usualmente levam a população a associar o crime e seus
acusados (BAUMAN, 2009, p. 16) a um determinado local (habitat dos
criminosos). Em outras palavras, o imaginário social fia-se na falácia da conduta
desviante11 ser oriunda de um local predeterminado devido à relação desse local
com o crime. A ideia, como se percebe, não é nova (v. Ferri e sua Sociologia
Criminal, v.g.)
Esse entendimento popular é pautado na premissa de que se teme aquilo
que não se pode controlar, e, chama-se essa incapacidade de controle de
incompreensão; o que não se pode administrar é “desconhecido e assustador”.
Portanto, medo é outro nome que se dá à indefensabilidade humana. O medo
assombroso do que se pode e deve descrever como a esfera do desconhecido,
do incompreensível e do incontrolável (BAUMAN, 2008, pag. 125).
Wacquant (2008) acrescenta que, não obstante ao sentimento de medo
pelos crimes e criminosos, há um fator agravante a essa sensação: a
criminalização da miséria e da pobreza Logo, a pobreza, e o espaço urbano na
qual se concentra, são alvos de estigmatização.
Outro fator que aumenta a tensão causada pelas sensações de medo e de
insegurança reside na percepção dos cidadãos sobre as normas de seguranças
existentes no território em que habitam. Dessa forma, de acordo com o
entendimento de Rolleri (2006), é inexorável questionar a capacidade de o Estado
controlar e conter o crime e a violência:
Esta sensación de inseguridad aparece en función de la percepción que
tienen los ciudadanos sobre los estándares de seguridad que existen en
el entorno que habitan. En la mente del ciudadano surge el
10
Barry Glassner enumera diversos fatores que, em suas pesquisas, revelam-se causadores de
medo e insegurança à sociedade norte-americana, como dependentes químicos, mães jovens e
solteiras, extrema pobreza, violência no transito, dentre outros. Desta forma, entende-se que a
Cultura do Medo não tem um único elemento constitutivo e é composta por diversos fatores
sociais (GLASSNER, 2003).
11
Para Émile Durkheim (1983) o comportamento desviante é saudável para a manutenção do
convívio social, uma vez que a não aceitação de uma conduta – norma, comportamento –, por um
indivíduo, ou por um coletivo, torna-o contrário à ordem social preestabelecida.
1130
cuestionamiento del estado en cuanto a su capacidad para controlar el
delito y la violencia (ROLLERI, 2006, p. 77).
Ora, se por um lado tem-se o próprio Estado afirmando a necessidade de
pacificar determinados territórios, sendo esses territórios reconhecidamente
operários, além de vítimas da violência – estatal/policial e urbana – são notórias
as sequelas causadas pelos pânicos morais: a segregação e a exclusão social, a
criminalização dos mais pobres e a desconfiança e o sentimento de desamparo
das instituições políticas (PEREIRA; COSTA, 2014).
3.1 Seletividade Midiática do medo e da violência
A estigmatização das classes operárias e sua aproximação com as práticas
delituosas, conforme fomentado pela mídia e, em segundo plano, pelas adoções
de medidas excludentes por parte da gestão municipal – políticas de segurança
pública -, colabora negativamente para a crença da relação direta da pobreza com
o crime. Nesse sentido, Glassner relata a forma como a mídia norte americana
trata o assunto:
Os jornalistas, os políticos e outros formadores de opinião fomentam o
medo em relação a determinados grupos sociais, tanto por aquilo que
apregoam como por aquilo que não divulgam. Consideramos o medo
americano em relação aos negros. Esse medo se perpetua pela atenção
excessiva dada aos perigos causados por uma pequena porcentagem de
afro-americanos contra outras pessoas, assim como por uma relativa
falta de atenção para os perigos que a própria maioria de negros
enfrenta (GLASSNER, 2003, p. 193).
Nesse quadro, ao associar, indevida e injustamente, a miséria e a pobreza
à criminalidade, os pânicos morais que causam mal estar à sociedade, repousam
sobre a excessiva vinculação de manchetes e noticiários, cujo teor tem por base
os crimes e a violência, a dadas áreas do território urbano. Por óbvio, as
consequências dessa fórmula resultam na sensação de medo a essas pessoas, a
esses locais (PEREIRA; COSTA 2014).
Em uma busca efetuada no sítio eletrônico do principal canal de mídia
voltado à cidade de Canoas, ao pesquisar os nomes dos dois bairros
supramencionados tem-se apenas notícias relacionadas a crimes, tais como:
“Homem é morto com quatro tiros no Mathias Velho (01/09/2014)”. “Tentativa de
homicídio no Guajuviras resulta em seis prisões e apreensões de armas
1131
(23/08/2014)”. “Brigada apreende um quilo de Crack no Guajuviras (22/08/2014)”.
“Corpo encontrado no Mathias Velho (19/08/2014)”. “Brigada Militar apreende
armas e munição no bairro Guajuviras (10/08/2014)”12.
Muito embora as notícias que ganham destaque sejam essas, é necessário
ressaltar que nem todas partilham conteúdo policial (PEREIRA; COSTA, 2014).
Os problemas de infraestrutura também são levados a conhecimento da
sociedade canoense: “Mathias Velho é o bairro mais afetado pela chuva, em
Canoas (04/07/2014)”. “Moradores queixam-se da falta de sinalização no Mathias
Velho (10/01/2014)”13.
Nesse contexto, evidencia-se a importante participação dos veículos
midiáticos na estimulação do imaginário coletivo frente aos problemas dessas
localidades: a partir do momento em que se tornam repetitivas as notícias sobre
um determinado tema, e nessa abordagem a problemática gira em torno da
violência (e suas consequências) e da falta de estrutura, cria-se uma identidade
(negativa) associada ao local. Portanto, da excessiva repetição, nasce o hábito de
associar tais problemas como originários única e exclusivamente desses
territórios. Isto é, não bastasse a violência estrutural e política, outro setor da
sociedade – a mídia – apresenta-se como agente reativo, estimulador dessa
estigmatização.
Nessa senda, Rolleri, sustenta que as informações veiculadas pela mídia
exercem grande influencia na rotina das pessoas:
Como dijimos, después de ver y escuchar reiteradamente, por televisión,
la cantidad de robos cometidos en la misma ciudad, la persona que sale
de su casa lo hará con mayor precaución y cuidado que si no hubiera
encendido el televisor. Todo esto tiene las más diversas consecuencias
colaterales, como el cambio en la utilización de medios de transporte, la
suspensión o el cambio de horario de encuentros, la compra de
elementos para protección (ROLLERI, 2006, p. 147).
Rolleri (2006, p. 128) ainda alerta que “la violencia que aflora al dominio
público es sólo una fracción de la que se vive en ese submundo, y se hace
12
Jornal
Diário
de
Canoas,
pesquisa
disponível
no
http://www.diariodecanoas.com.br/index.php?id=/busca/index.php&request=1,
resultados
acesso em 07/07/2014, às 16h56min.
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Jornal
Diário
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http://www.diariodecanoas.com.br/index.php?id=/busca/index.php&request=1,
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acesso em 07/07/2014, às 16h56min.
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conocida por la población en general debido a los hechos delictivos denunciados
o mediatizados”.
Perante o exposto, é possível notar que nos discursos públicos, os medos
proliferam por meio de um processo de troca. A cultura do medo cresce cada vez
mediante correntes de temores e contra temores (GLASSNER, 2003, p. 39).
Dizendo de outro modo, a fim de assegurar a segurança perdida na
contemporaneidade frente a superveniência da categoria do risco, produz-se mais
insegurança. Ou seja, a retroalimentação do medo se faz mediante o processo
circular de comunicação das próprias contingências. E, portanto, o emprego de
mais Direito ou de mais “segurança” finda por se configurar em um mecanismo de
produção de mais insegurança. Eis aí uma das vertentes do paradoxo da cultura e
da sociedade atuais.
4 OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA DE CANOAS – FUNÇÃO E
ATIVIDADES14
Instituído pela da Lei Municipal (de Canoas) nº 5386, de 19 de maio de
2009, o Observatório de Segurança Pública de Canoas iniciou suas atividades em
maio de 2010. Um Centro de Pesquisa Social Aplicada à Segurança Pública de
Canoas foi implementado, inicialmente, com recursos advindos do Programa
Nacional de Segurança Pública (PRONASCI), da Secretaria Nacional de
Segurança Pública do Ministério da Justiça, e da Prefeitura Municipal de Canoas.
Posteriormente, tornou-se política pública mediante sua institucionalização,
através da referida lei local, com o objetivo de qualificar e aperfeiçoar as
atividades realizadas pelo Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGI-M),
possibilitando um acompanhamento no processo de gestão da segurança pública
do município, facilitando o feedback para os gestores (PREFEITURA DE
CANOAS, 2015).
14
Os autores do texto agradecem a Eduardo Mattos (Coordenador), Thiago Magnus e Cátia Agne
Vanzellotti (Sociólogos),Daniel Montenegro (Geógrafo), Jardel Fischer (Antropólogo) e Eliége
Teixeira (Guarda Municipal), integrantes do Observatório de Segurança Pública de Canoas, além
do Secretário de Segurança Pública de Canoas, Carlos Adriano Klafke dos Santos,pelo
desenvolvimento da pesquisa empírica que embasa este trabalho e, sobremaneira, pela
interlocução franca, simples e acessível, sem a qual o presente texto não seria possível.
1133
Atualmente, o Observatório sistematiza e coordena os indicadores para
avaliar processualmente a política de segurança pública planejada e executada
na cidade de Canoas, conforme referido, a partir de três programas estratégicos:
“Guarda Comunitária”, “Canoas Mais Segura” e “Territórios de Paz”, sendo os
dois últimos já citados neste estudo.
Nesse processo de sistematizar e organizar os indicadores, avaliando a
política de segurança pública realizada em Canoas, o Observatório divulgou,
respectivamente em 2014 e 2015, a “Segunda Pesquisa de Vitimização Canoas”
(MATTOS, 2014) e o relatório anual sobre “Indicadores Criminais 2014”
(MATTOS, 2015). A análise dos dados coletados permite constatar como a
sociedade se vê frente ao contexto da insegurança urbana e quais os locais a
temer, bem como o quanto confia nos órgãos públicos relacionados à segurança
pública. Além disso, é possível correlacionar essa observação social sobre a
segurança com os dados estatísticos oficiais.
4.1 Pesquisa de Vitimização em Canoas
Na primeira pesquisa de vitimização realizada em Canoas, no ano de 2009,
verificou-se que 63% dos crimes, em geral, não eram registrados, já que a
sensação era de que registrar não daria em nada mesmo, segundo 65,5% dos
entrevistados.
Naquela
pesquisa,
79,2%
dos
entrevistados,
em
média,
consideravam a Polícia Civil e a Brigada Militar ineficientes ou muito ineficientes.
Então, ficou evidenciado que o não registro de ocorrência têm relação com a
incerteza de que as polícias não teriam capacidade de resolver os problemas
(MATTOS, 2014, p. 3-6).
Já a segunda pesquisa, com dados coletados em 2013 e divulgada em
2014 (MATTOS, 2014), revelou que a segurança é o segundo assunto que mais
preocupa os entrevistados (29,6%), mas que somados aos assuntos que têm
relação com o tema “segurança”, como drogas e tráfico (11,8%) e corrupção
(3,2%), chega-se a um nível de preocupação próximo à metade dos entrevistados
(44,6%).
1134
No aspecto de vitimização da população, quase 1 a cada 5 (19,2%)
moradores da cidade já foram vítimas de algum crime ou violência, sendo o
número de vítimas maior na Área Integrada de Segurança Pública (AISP) que
abrange bairros outros que não os Territórios da Paz.15 Esse dado, assim
visualizado, permite refletir que a eleição do território identificado como “da Paz”
considera não o local onde os fatos ilícitos ocorrem, mas uma região de moradia
dos supostos autores desses delitos. Em sendo assim, o fator “estigmatização” do
local estaria intimamente associado ao fator “estigmatização” do morador.
Em relação aos delitos mais citados, o grande percentual gira em torno dos
delitos contra o patrimônio (furtos e roubos, seja de residência, veículos,
acessórios, na rua etc.), sendo que somente 46% das vítimas registraram
ocorrências, havendo uma taxa de subnotificação de 54%. Os motivos relativos à
subnotificação têm a ver com a concepção de "perda de tempo" (52,8%), mas
também se relaciona com o medo de denunciar (4% dos homens e 11% das
mulheres têm medo de encaminhar o registro), não ter prova (6,5%) e considerar
que a polícia não cuida desse tipo de problema (7,4%). Nesse panorama, pode-se
afirmar que a baixa notificação dos delitos revela, sobremaneira, o desinteresse
individual na própria persecução formal dos ilícitos. Ao mesmo tempo, não se
pode descuidar de um fator – na pesquisa não explorado, mas que aqui surge da
reflexão como conclusão possível – que contribuíra para as subnotificações: a
burocratização. Ou seja, a ausência de tempo alegada pelos entrevistados estaria
intimamente relacionada à necessidade de tempo para o procedimento. O que,
por si só, faria concluir que as ações de notificação de ocorrências são
compreendidas pelos usuários do serviço de segurança pública como algo pouco
simples ou de alta complexidade. De qualquer sorte, o fator “medo diante do
próprio ilícito não é a escusa para a ausência de provocação de ações concretas
15
Canoas possui quatro Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs). A AISP 1 é composta
pelos Bairros: Industrial, São Luis, Mathias Velho, Harmonia e Centro, ambiente em que, segundo
os entrevistados, 20,5% já foram vítimas de crimes; na AISP 2, que é composta pelos bairros
Nossa Senhora das Graças e Niterói, há o segundo menor percentual, de 16,4% entrevistados que
foram vítimas de delitos; a AISP 3, composta pelos bairros Brigadeira, São José, Igara,
Guajuviras, Marechal Rondon, Estância Velha e Olaria, tem o menor percentual de vitimização,
tendo 12,4% dos entrevistados sido vítimas de delitos. O maior índice de vítimas, de 34,6% dos
entrevistados, está na AISP 4, composta pelos bairros Mato Grande, Fátima, Ilha das Garças e
Rio Branco.
1135
de repressão e de persecução punitiva estatais. O medo, assim, se evidencia
como geral e não especifico – ter-se-ia medo da criminalidade (no geral), mas não
do crime ou do “criminoso” (na espécie).
Em contrapartida, na relação com as polícias, em uma pontuação de 1 a 5,
a eficiência das instituições foi avaliada. A Brigada Militar foi considerada
ineficiente por 42% e eficiente por 37,5% dos entrevistados, enquanto que a
Polícia Civil teve o índice de ineficiência de 40% e o de eficiência de 36,4%.
Quanto à violência, a Brigada Militar foi considerada assim por 40,9% dos
entrevistados e a Polícia Civil por 25,1% dos respondentes. Um em cada 5
entrevistados foi abordado na rua pelas polícias, sendo que a maioria foi de
homens e, dentre os jovens entre 16 e 24 anos, 40% considerou a abordagem
agressiva.
Esses aspectos demonstram, em função dos percentuais alcançados, uma
certa relatividade, um descrédito da população canoense para com o sistema
policial, seja ele preventivo (ostensivo), seja ele repressivo (investigativo.
Sequencialmente,
quanto
à
sensação
de
segurança,
ao
serem
questionados o quanto a "minha vida foi afetada pela criminalidade", 74,9% dos
entrevistados respondeu que discordava dessa afirmativa. No entanto, quanto à
outra afirmativa, "me sinto seguro em Canoas", embora a maioria concorde, 52%,
há uma discordância de 35,9% dos entrevistados. Relativamente à mesma
afirmativa, porém no âmbito dos bairros ("me sinto seguro no meu bairro"), há
uma concordância de 59,1% e discordância de 16,1%, percebendo-se uma maior
segurança no local de habitação que propriamente no contexto citadino.
Assim, embora 70% dos crimes ocorrerem no bairro, na rua ou na
residência, a sensação de segurança experimentada pelos respondentes quanto
aos bairros é maior do que no contexto da cidade, ou seja, o "bairro é percebido
como mais seguro que a cidade" (MATTOS, 2014, p. 30).
A pesquisa também revelou um alto índice de aceitação pública para as
câmeras de monitoramento (56,3%), sistema de áudio monitoramento (39,2%) e
os
territórios
da
paz
(37,2%).
Por
outro
lado,
também
demonstrou
desconhecimento da população acerca de medidas importantes de presença dos
órgãos públicos no ambiente urbano, como os Núcleos de Policiamento
1136
Comunitário (desconhecimento de 55,2% dos entrevistados), Projetos Sociais
(desconhecimento
de
54,2%
dos
entrevistados)
e
Ronda
Escolar
(desconhecimento de 50,7% dos entrevistados), embora que 82,1% considerem,
pelo menos em parte, os projetos sociais relevantes na prevenção da violência.
Entre as causas principais da criminalidade, segundo os entrevistados, está
o uso e o tráfico de drogas. A falta de estrutura familiar, a desigualdade social e a
pobreza, também são pontuadas como causas dos crimes. Outros fatores, como
desemprego, falta de investimento em segurança, impunidade, embora sejam
citados, não se demonstram são tão relevantes para o incremento da
criminalidade.
Um dos aspectos importantes da pesquisa foi pontuar, segundo a
população entrevistada, os responsáveis pela segurança, demonstrando-se o
protagonismo do município na área de segurança pública, hoje responsabilidade
dos Estados federados e do Governo Federal. Assim, 72% dos entrevistados
entendem que a responsabilidade por garantir a segurança pública é do Prefeito e
36,4% do Secretário de Segurança Municipal, enquanto que as Polícias (de
caráter estadual), ficam com 40,6% e o governador com 31,8% "das
responsabilidades". Ou seja, pode-se por isso, cogitar que indiretamente há uma
crítica ao modelo estadual de resolver os problemas na área da segurança
pública, em locais específicos, como as cidades com características próprias.
Por outro lado, quando questionados sobre as medidas adequadas para
diminuir a criminalidade, 3 a cada 10 pessoas afirmaram que colocariam mais
policiais na rua e 2 em cada 10 combateria o tráfico de drogas, sendo que apenas
10,2% melhoraria as condições de educação e aumentaria as condições de
emprego e/ou criaria programas de inclusão social e diminuição da pobreza.
Esses resultados, uma vez mais, revelam o paradoxo pois, ao mesmo tempo em
que discursos na área da segurança pública são produzidos considerando o
“medo” da criminalidade como estandarte, a opinião individualizada dos
entrevistados populares não revela o interesse majoritário no policiamento
ostensivo, nemmesmo, na criminalização (aqui assim entendida frente ao
emprego da expressão “combate” – sendo essa a principal política estatal para o
controle da questão das drogas) das condutas associadas ao comércio e/ou uso
1137
de drogas ilícitas. Ao contrário. A manifestação popular foi no sentido majoritário
do reforço de políticas públicas outras que não as criminais e/ou as policialescas.
Ainda, quanto ao combate aos delitos, dentre os crimes apontados como
os que devem ser mais reprimidos estão os homicídios (24,9%) e furtos/roubos de
rua (19,9%), embora existam outros indicadores que tenham relação com os
crimes contra o patrimônio que, somados, têm uma relevância importante. Tais
números, por seu turno, não impressionam. Afinal, as modalidades ilícitas
apresentadas (homicídios, furtos/roubos) correspondem aos modelos tradicionais
da “criminalidade de massas” e, dessa forma, são espécies tradicionalmente
invocadas como objeto do controle penal. Desse modo, tais delitos, nem mesmo
nos processos e/ou debates minimalistas ou abolicionistas figurariam.
Pois bem. A despeito das reflexões que aqui se avolumam, a gestão
municipal passou a entender como reais as melhorias na área da segurança
pública. Logo, as iniciativas denominadas Territórios de Paz, Projetos Sociais,
Policiamento Comunitária, Ronda Escolar, Áudio monitoramento e Câmeras, têm
sido evidenciadas como efetivas (quiçá como políticas públicas) para o
estabelecimento de expectativas sociais (i.e., distribuição de segurança).
2.2 Dados estatísticos de indicadores criminais de Canoas no ano de 2014
A pesquisa quanto aos "Indicadores Criminais 2014" (MATTOS, 2015)
reuniu informações de três principais indicadores (aqui empregados como
paradigmas). Segundo o relatório, todos foram acompanhados periodicamente
pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas: a) furto de veículos; b) roubo
de veículos; c) mortes violentas, e, ainda, estudo sobre os autores de homicídios.
Quanto ao furto e roubo de veículos, o estudo foi relacionado com a frota
de veículos no município de Canoas, que a partir de 2007 teve um incremento,
em média, de 10 mil veículos por ano. Em 10 anos a frota de veículos de Canoas
cresceu 92,8%, possuindo, em 2014, 186 mil veículos. Sobre esse dado, a taxa
de roubos e furtos, por cada 10 mil veículos, é, respectivamente, de 48,2% e
39,3%.
1138
O estudo traz um comparativo dos casos de roubo de veículos nos últimos
oito anos, incluindo 2014, permanecendo a variação dos casos não inferior a 625
(2013) e não superior a 1127 (2009) registros por ano. Segundo o levantamento,
junto aos órgãos oficiais, considerando os bairros com mais ocorrências de
roubos de veículos no ano de 2014, as faixas horárias mais recorrentes são: entre
as 18h e 19h59min, entre as 20h e 21h59min, e entre as 22h e 23h59min,
somando 56% dos casos de roubos ocorridos nos bairros com maior número de
ocorrências16, nenhum deles sendo integrante dos Territórios de Paz.
Há, também, um comparativo dos casos de furto de veículos no mesmo
período, permanecendo a variação entre 537 e 835 casos noticiados (registrados
em delegacias de polícia) entre os anos de 2007 e 2014. Ambos os estudos
apontam os meses de maior incidência de roubos e furtos de veículos nos últimos
três anos, porém a variação não é grande, com exceção do aumento dos furtos
de veículos nos meses finais de 2014.
Os mapas de hotspots de roubos e furtos de veículos17, integrados ao
estudo e divididos por faixas horárias, ajudam a delimitar os locais de maior
incidência de ambos delitos. Percebe-se a baixa incidência de casos de furtos e
roubos de veículos registrados nas áreas dos Territórios de Paz, caso comparado
aos locais centrais da cidade.
Quanto ao indicador "mortes violentas", a metodologia aplicada tem relação
com o agregado de crimes violentos com resultado morte em 2014 comparado
com anos anteriores. Neste agregado estão fatos como (a) encontros de cadáver,
(b) latrocínios e (c) mortes por confrontos com a polícia, (d) falecimentos por
lesões. Neste indicador, o comparativo é feito a partir de 2009, que teve o maior
índice de casos (154), não sendo menor do que 112 casos em 2011, e, no caso
de 2014 (com 137 casos), a maioria se refere a homicídio (91,2%). Além disso, o
estudo é também voltado aos comparativos de meses e semestres desses anos
analisados e, embora não se tenha ciência do motivo de tais análises
16
Os bairros com um maior número de ocorrências policiais registradas em 2014, nos órgãos da
Polícia Civil, são Marechal Rondon, Nossa Senhora das Graças, Niterói, Centro e São José.
17
Em uma das traduções possíveis, hotspots ou hot spots significa locais quentes ou áreas
geográficas específicas consideradas zonas críticas, no caso de incidência acentuada de delitos.
1139
comparativas, percebe-se que ela não tem uma relevância específica no contexto
do estudo, ou melhor: sua finalidade não está latente e perceptível.
Somente relativamente a 2014 há um estudo pormenorizado sobre o
percentual de vítimas homens (95,6%) e mulheres (3,6%). Embora também não
esteja claro o motivo de tal parcela de estudo, crê-se que tenha referência ao
aumento constante da atenção social da mídia aos casos de feminicídio que,
inclusive, gerou a aprovação da Lei nº 13.104/2015, prevendo o feminicídio como
circunstância qualificadora do crime de homicídio, portanto inserindo inciso VI no
art. 121, § 2º, do Código Penal, quando o delito é cometido “contra a mulher por
razões da condição de sexo feminino”. Tal lei também alterou o art. 1º da Lei nº
8.072/1990, incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
O estudo aponta que a maioria das vítimas de 2014 (104) era branca
(75,9%), sendo 20,4% delas negra ou parda (28 vítimas). Do total de vítimas, 53%
tinham até 29 anos, porém 86,9% delas possuíam antecedentes, a maioria por
tráfico de drogas (26,3%) ou por homicídio (16,4%).
A maioria dos casos ocorreu nos bairros Guajuviras (19,7%), Harmonia
(19%), Mathias Velho (18,2%), Rio Branco (10,9%) e Mato Grande (6,6%),
estando os demais bairros com menor índice. Assim, tem-se os Territórios da Paz
com o número de maior incidência dos casos de mortes violentas: 56,9%. Além
disso, 83,2% das vítimas residia em Canoas e 46,7% morreu no próprio bairro de
residência, embora apenas 21,2% tenha morrido no próprio local de domicílio.
Assim, o perfil dominante das vítimas são homens, brancos, jovens e
envolvidos com o tráfico de drogas. Outros aspectos de relevância apontados,
portanto, são: (a) a relação com o local de moradia e (b) o já envolvimento prévio
com outros delitos. Esta circunstância é reforçada pelo fato de os autores das
mortes terem acesso à arma de fogo, já que do total de mortes violentas em 2014,
87,5% (120 casos) tiveram arma(s) de fogo como meio empregado. Se por um
lado se traça um perfil estigmatizante da vítima, por outro não há dados objetivos
acerca do perfil dos autores.
Na análise do histórico dos casos de mortes violentas nos Territórios de
Paz Guajuviras e Grande Mathias Velho, a partir de 2009, verificou-se que 2014,
em relação a 2013, houve um aumento de 45,7% dos casos no TP Grande
1140
Mathias Velho, enquanto que o percentual do TP Guajuviras seguiu a tendência
de aumento da cidade de Canoas:
Considerando o acumulado de mortes violentas em Canoas e nos
TPsGuajuviras e Grande Mathias entre Janeiro e Dezembro de 2014, as
faixas horárias mais recorrentes são aquelas compreendidas entre as
20h e as 05:59h. Destaca-se, ainda, a faixa entre 18h e 19:59h na
Grande Mathias. (OBSERVATÓRIO, 2015, p. 36).
Destaque, assim, para o TP Grande Mathias Velho, onde 72,6% dos casos
de mortes violentas ocorreram entre às 18h e 05h59min, depreendendo-se que os
criminosos procuram agir em horários em que há maior facilidade de locomoção e
também maior dificuldade de identificação, seja por testemunho, seja por câmeras
de vídeo, já que o período da noite prejudica o uso da tecnologia e dificulta a
visão humana.
O estudo aponta que após o desencadeamento de Operações policiais
(maio de 2009, novembro de 2010 e maio de 2013) há uma redução nos casos de
mortes violentas (MATTOS, 2015, p. 39). No entanto, não existem dados
concretos sobre essa afirmação nem bases capazes de demonstrar isso, havendo
necessidade de estudo específico para confirmar essa afirmação.
Quanto ao perfil dos autores de homicídios, 98% são do sexo masculino.
Também, a grande maioria é de cor branca (79%), sendo autores negros e
mulatos 19%, possuindo uma média de 30 anos de idade. Praticamente um a
cada 10 autores foram também vítimas de homicídio. Dos 88 autores de homicídio
com registros de residência em Canoas, 72,7% têm domicílio nos Territórios de
Paz, o que caracteriza esses locais não como espaços de inserção de segurança
e tranquilidade, mas de exclusão e propagação de mais violência.
Aproximadamente 7 em cada 10 autores de homicídios já tem passagem
pelo sistema prisional e a grande maioria possui antecedentes policiais que vão
além dos casos de homicídios, como arma de fogo, ameaças, lesão corporal,
roubo, posse e tráfico de entorpecentes, dano, lesão corporal e vias de fato,
receptação, dentre outros.
Finalmente, o estudo pontua a alta incidência de presença de arma de fogo
nos indicadores analisados (MATTOS, 2015, p. 45): 87,5% das vítimas por arma
de fogo; 92,5% dos roubos de veículo (2º semestre) com presença de arma de
fogo.
1141
Assim, percebe-se que a iniciativa do Observatório de Violência do
município de Canoas tem o objetivo de, conhecendo as percepções sociais
quanto à sensação de segurança e as políticas públicas municipais, validar as
escolhas por determinadas ações sociais e culturais e afirmar como corretas as
decisões municipais, dos seus gestores, não avaliando ou contextualizando as
ambiências como formas de exclusão ou inclusão, mas, sim como áreas de
atenção governamental.
Em suma, pode-se dizer que indiscutível é o mérito da pesquisa quanto o
método empregado (empírico) e o investimento da gestão pública no
aparelhamento de um setor especializado para o cumprimento dessa tarefa
inovadora, com a contratação e manutenção de recursos humanos capacitados
(sociólogos, geógrafos e antropólogos) para tanto. Contudo, sob a perspectiva da
complexidade social e dos fatores criminológicos, carece o levantamento de
dados e suas conclusões de maior interrelação. Especialmente no que atine à
abordagem da estigmatização social (aqui podendo ser entendida amplamente,
em diversas acepções: individual, coletiva e/ou espacial). Ao mesmo tempo, as
conclusões alcançadas pelo relatório final não estabelecem vetores de solução e
de busca por mais segurança que não os já estabelecidos no município, embora
algumas ações sejam mais desconhecidas que outras18, o que, por si só, inebria
as razões de ser de todo o levantamento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização da presente reflexão acadêmica, e a comprovação das
hipóteses de pesquisa aventadas pelo Grupo Criminalização, Cultura e
Urbanização do Unilasalle, foi possível graças à existência no Município de
Canoas, no estado do Rio Grande do Sul, de um Observatório de Segurança
Pública. Como se verificou, o órgão, criado e mantido pelo gestor público
municipal, emprega o método empírico para a coleta de dados acerca da violência
18
Conforme já pontuado, os Núcleos de Policiamento Comunitário são desconhecidos por 55,2%
dos entrevistados, os Projetos Sociais são desconhecidos por 54,2% dos entrevistados, e, a
Ronda Escolar é desconhecida por 50,7% das pessoas entrevistadas.
1142
e da criminalidade na região. Ademais, percebeu-se que há o emprego direto e
permanente de equipe profissional altamente capacitada (profissionais da
Sociologia, Geografia e Antropologia) para a criação, aplicação e interpretação
dos instrumentos de coleta dos dados.
Instigados à compreensão dos dados apresentados pelo Observatório de
Segurança Pública do Município de Canoas, os signatários do presente texto,
realizaram, primeiramente, um estudo teórico do espaço urbano. Nesse
compasso, pretendeu-se identificar os fenômenos sociais que influenciam o
modus vivendi da população. Isto é, buscou-se perceber como a população se
comporta, trata e reage à criminalidade na contemporaneidade.
Ademais, o fenômeno em comento tem especial atenção da gestão
municipal. Em outras palavras, o combate ao desvio, para o administrador
público, é uma clara preocupação; todavia, as iniciativas políticas que visam o
enfrentamento ao desvio, proporcionam um efeito antagônico para qual foram
criadas.
Desse modo, percebeu-se que o projeto Territórios de Paz, para o gestor
municipal, apresenta-se comouma política de sucesso traduzida em números:
índices e estatísticas comprovam que, a partir do surgimento dos referidos
“territórios”, as condutas desviantes de maior incidência no espaço urbano de
Canoas diminuíram, no entanto, a ideia de transformar bairros em “Territórios de
Paz” transmite à população o efeito contrário. Afirma-se que não são:de paz! Isto
é, são “Territórios de Medo”. Locais a serem evitados. Espaços associados à
ocorrência de crimes. Locais onde moram pessoas indesejadas, os excluídos
socialmente.
Nesse compasso, evidenciou-se como o Estado enfrenta o contingente de
condutas delitivas efetivando a segurança e a pacificação dos bairros Mathias
Velho e Guajuviras. Em um primeiro momento, implementa-se o monitoramento e
o patrulhamento ostensivos, para, logo depois, criar políticas socioeducacionais e
de integração comunitária; primeiro atacam-se as consequências (aumento do
Estado Penal) para depois oferecer as oportunidades de inclusão e reintegração à
sociedade.
1143
No entanto, o que não é vislumbrado como de caráter efetivo e
considerado na política pública é que, na própria pesquisa de vitimização
mencionada, há sensação de segurança nesses locais, pelos próprios habitantes,
muito mais do que no contexto social. Se a própria pesquisa demonstra o quanto
a sociedade analisada desconhece práticas sociais, desenvolvidas pelo gestor
municipal, dever-se-ia apontar outros caminhos para a solução dos problemas,
justamente voltados para a participação e inclusão dos territórios hoje
estigmatizados.
Assim, objetivou-se, a partir de um contexto conceitual e histórico a
respeito da cultura do medo no contexto urbano e a percepção dos dados
criminais da cidade de Canoas, que avalia a sensação de (in)segurança de
acordo com a “sua” realidade social contemporânea e, a partir da adoção de
políticas públicas compensatórias à produção do medo, a ênfase à continuidade
do sistema estigmatizante de determinada comunidade, bairro, taxando-o, a
contrario sensu, de Território da Paz quando na verdade é mais um espaço do
contexto da municipalidade, merecedor de uma atenção e de propostas
inclusivas.
Derradeiramente, percebeu-se o esforço por, um lado, traçar um perfil, por
assim dizer estigmatizante, da vítima (são homens, brancos, jovens e envolvidos
com o tráfico de drogas), não havendo, por outro, dados objetivos acerca do perfil
dos autores. Também, neste raciocínio, ao se detectar que 88 dos autores de
homicídio com registros de residência em Canoas, 72,7% têm domicílio nos
Territórios de Paz, observou-se que esses locais se caracterizam não como
espaços de inserção de segurança e tranquilidade, mas de exclusão e
propagação de mais violência, necessitando da atenção do gestor público de
maneira diferenciada, inclusiva e não exclusiva.
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1146
INTERAÇÃO DIGITAL
Arnaldo Rizzardo Filho;
RESUMO: A sociedade está em constante transformação, fruto de um contínuo
desenvolvimento tecnológico que aproxima os indivíduos em uma escala mundial.
Esse movimento é verificável a partir do estudo da comunicação em sua
historicidade. Desde a forma mais simples de comunicação, a comunicação face
a face (oral), a interação humana vem se desenvolvendo através da virtualização.
Começou com a escrita, agora está digitalizada. Esse movimento histórico pede a
identificação e comparação dos elementos que compõem a interação face a face
e a interação virtual em suas diversas modalidade. A partir daí é possível debater
sobre o resultado que cada um desses diferentes ambientes de existênciade
comunicação produz na sociedade. Ao longo do desenvolvimento da interação
social, há um nítido processo de dessubstanciação, amplamente verificável na
interação virtual da forma digital, resultado de uma tendência autopoiética que a
sociedade possui a partir da absorção das alteridades sociais. O artigo faz uma
análise comparativa entre os estudos da “interação face a face” do antropólogo
ErvingGoffman e do “fenômeno virtual” do filósofo Pierre Lévy. Há,
definitivamente, uma relação evolutiva não exclusivista entre a interação face a
face e a interação virtual, evidenciada principalmente pela formação de uma
inteligência coletiva que alimenta-se de cada inteligência individual. A
virtualização digital é hoje o ambiente ideal para (auto)reprodução de atualidades
sociais. Se interação virtual é um processo multiplicador de atualidades, a
interação virtual “digital” embaralha essas atualidades (uma potencialização do
virtual), sendo, por isso, uma fomentadora máxima de possibilidade de
desenvolvimento social. A virtualização digital evidencia a consciência coletiva
enquanto um novo paradigma, ou melhor, um paradigma “atual”, diferente
daquele paradigma passado calcado em uma consciência ainda fortemente
individual.
PALAVRAS-CHAVE: interação social; interação face a face; interação digital,
Inteligência coletiva.
1 INTRODUÇÃO
Dentre as últimas revoluções sociais, a comunicação digital representa
uma força grande o suficiente para ser comparada com a própria comunicação
1147
escrita. Trata-se, antes de tudo, de uma comunicação predominantemente à
distância, que muitas vezes sequer ocorre de forma concomitante entre os atores
envolvidos no ato. É uma forma de comunicação virtual, como a escrita. O
elemento básico que não está presente na interação digital é o encontro face a
face. A comunicação digital ocorre através do teclado, do som ou da imagem,
mas sem a presença atual. A questão que vem à tona é a sua potencialidade se
comparada com a interação face a face e até mesmo com a própria interação
virtual escrita. O ambiente digital fornece condições especiais de expansão à
comunicação, permitindo que a interação se potencialize em escala maior.
A proposta desse artigo é analisar a interação virtual (escrita e digital) em
relação
à
interação
face
a
face,
aproximando
as
ideias
que
o
antropólogo/sociólogoErvingGoffman expôs nos artigos que compõem sua obra
“Ritual de Interação”19, com as ideias que o filósofo Pierre Lévy explana sobre
cultura virtual em seus livros, em especial “O Que É Virtual?”.
O artigo abordará primeiramente a caracterização do que é virtual e suas
implicações na interação social. Após, serão abordados fenômenos físicos e
psíquicos presentes nos rituais de interação social face a face. Ao fim, estarão
dadas as evidências de como a interação social está sendo modificada pela
virtualização digital da comunicação.
2 INTERAÇÃO VIRTUAL (DIGITAL)
Pierre Lévy explica o virtual a partir da sua distinção do atual. “A
virtualização pode ser definida como o movimento inverso da atualização”.20 Há
um constante movimento de passagem do atual ao virtual, uma ‘elevação à
potência’ da entidade considerada. A questão do virtual não diz respeito ao real,
mas sim ao atual, pois o acontecimento virtual é um acontecimento real, que
chama a atualização para um processo de resolução do problema virtualizado
existente. Se virtual é um problema, atualização é a solução. A virtualização é
19
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia).
20
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 17.
1148
uma mutação de identidade, uma modificação ontológica do objeto; por isso,
enquanto a atualização é a solução de um problema, a virtualização é o próprio
problema. O movimento da atualização vai do problema à solução; o movimento
da virtualização vai de uma solução ao problema. O fato é que esse movimento
(chamado por Lévy de efeito Moebius) caminha em redes de virtualizações, uma
ação apoiando-se em outra, em uma historicidade total21. Há uma tendência
autopoietica aqui22 (que é reafirmada quando o filósofo chama a atenção para a
existência de um “espírito” compatível com a coletividade, com uma inteligência
múltipla, heterogêneo, constantemente auto-organizador ou autopoiético, que se
desenvolve a partir do ‘acolhimento da alteridade’ do mundo ao seu redor). Para
Lévy, “a entidade carrega e produz suas virtualidades: um acontecimento, por
exemplo, reorganiza uma problemática anterior e é suscetível de receber
interpretações variadas. Por outro lado, o virtual constitui a entidade: as
virtualidades inerentes a um ser, a uma problemática, o nó de tensões, de
coerções e de projetos que o animam, as questões que o movem, são uma parte
essencial de sua determinação”23. Resumindo, o atual é uma resposta ao virtual.
O virtual, com muita frequência, não está presente, adverte Lévy. Há uma
desterritorialidade. Citando as ponderações de Michel Serres no livro Atlas, afirma
que o virtual se identifica com a falta de presença. “A imaginação, a memória, o
conhecimento, a religião são vetores de virtualização que nos fizeram abandonar
a presença muito antes da informatização e das redes digitais”24. As virtualizações
tornam as coisas, as pessoas, em não presentes, em desterritorializadas. Mas
nem por isso deixam de ser reais, de acontecer, de existir, de surtir efeitos.
Apenas não há atualidade no virtual.
O virtual também é heterônomo. Esse conceito é de crucial importância
para Lévy. Ser heterônomo significa estar sujeito a um “processo de acolhimento
21
A importância da historicidade para a formação do pensamento é latente.
Bem ao estilo de NiklasLuhmann.
23
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 16.
24
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 20.
22
1149
da alteridade”25. Assim, a reprodução do que é virtual não se dá de forma
autônoma, e esse é o efeito embaralhante da virtualidade. A heterogênese da
virtualidade é explicada pelo já referido “efeito Moebius”, ou seja, a passagem do
interior ao exterior e do exterior ao interior. Os lugares e tempos se misturam e se
recriam.
No mundo das ideias, talvez a escrita seja o maior instrumento de
virtualidade, muito embora existam outros, como nas belas artes. De qualquer
modo, parece certo que instrumento de virtualização funcione como meio
socialização. Hoje, o instrumento evoluiu: foi do entalhamento ao grafite, deste à
tinta, e depois de mais alguns passos evolutivos chegou à digitalização. Das
cavernas à lua[...] Armazenar a escrita em memória digital é uma potencialização
extrema da comunicação. Pelo menos extrema até agora, mas como será vista
em 250 anos? No início da década de 60, o que havia de mais virtual na
comunicação era o telefone; o mundo estava interligado por ele. O que ocorreu
nas décadas seguintes foi um processo gradual de digitalização do sistema de
telecomunicações, até então, completamente analógico. Potencializou-se a
comunicação, e é nesse movimento virtualizante da comunicação que a
sociedade se desenvolve.
Lévy faz um questionamento interessantíssimo e empiricamente verificável:
“Posto que a escrita alfabética hoje em uso estabilizou-se sobre um suporte
estático, e em função desse suporte, é legítimo indagar se o aparecimento de um
suporte dinâmico não poderia suscitar a invenção de novos sistemas de escrita
que extrapolariam muito melhor as nova potencialidades”26. Isso já ocorre, por
exemplo, através das placas de trânsito – pois algumas são identificadas por
qualquer pessoa em qualquer país, e através de plataformas como o whatsapp:
J.
Um dos efeitos avassaladores da virtualização é a passagem do privado
para o público, com a recíproca transformação do interior em exterior – “uma
emoção
posta
em
palavras
e
desenhos
pode
ser
mais
facilmente
25
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 25.
26
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 50.
1150
compartilhada”27. Mas a emoção compartilhada é uma emoção virtual. Fato é que
na comunicação digital a interação social é diferente da comunicação “em carne e
osso”, principalmente em função da desterritorialidade, da heterogenia, e da
constante passagem do estado privado ao público.
Três são as virtualizações decisivas para o ser humano, segundo Lévy: o
nascimento das linguagens, que significa a virtualização do presente; o domínio
da técnica, que significa a virtualização da ação; e o surgimento do contrato, que
representa a virtualização da violência. Nesse último caso, “os rituais, as religiões,
as leis, as normas econômicas ou políticas são dispositivos para virtualizar os
relacionamentos fundados sobre as relações de forças, as pulsões, os instintos ou
desejos imediatos. Uma convenção ou um contrato, para tomar um exemplo
privilegiado, tornam a definição de um relacionamento independente de uma
situação particular; independente, em princípio, das variações emocionais
daqueles que o contrato envolve; independente da flutuação das relações de
força”28.
A virtualização evidencia que a inteligência é construída a partir do
envolvimento coletivo dos indivíduos. Lévy afirma que “as instituições sociais, leis,
regras e costumes que regem nosso relacionamento influem de modo
determinante sobre o curso de nosso pensamento [...] Pela biologia, nossas
inteligências são individuais e semelhantes (embora não idênticas). Pela cultura,
em troca, nossa inteligência é altamente variável e coletiva. Com efeito, a
dimensão social da inteligência está altamente ligada às linguagens, às técnicas e
às instituições, notoriamente diferentes conforme os lugares e as épocas”29.
Segundo Lévy, os princípios darwinianos aplicam-se às populações, e de acordo
com Gilles Deleuze, o interior é um dobra do exterior. O devir está na transição
para outra subjetividade. A inteligência de cada indivíduo é atravessada de uma
dimensão coletiva, “porque o psiquismo é, desde o início e por definição, coletivo:
trata-se de uma multidão de signos-agentes em interação, carregados de valores,
27
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 73.
28
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 77.
29
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 99.
1151
investindo com sua energia redes móveis e paisagens mutáveis. Os coletivos
humanos são espécies de megapsiquismos, não apenas por serem percebidos e
afetivamente investidos por pessoas, mas porque podem ser adequadamente
modelados por uma topologia, uma semiótica, uma axiologia e energética
mutuamente imanentes”30.
O progresso virtual da comunicação abre a consciência individual à
consciência social, sendo o ambiente digital um ambiente coletivo,onde as
alteridades de cada consciência podem se manifestarem. E esse fenômeno
ocorre automaticamente, decorrente das próprias características da virtualidade.
A nova inteligência coletiva, proporcionada pela digitalização, afirma a existência
de um pensamento atual, efetivo, oriundo dos coletivos humanos. Conforme Lévy,
“o desenvolvimento da comunicação assistida por computador e das redes digitais
planetárias aparece como a realização de um projeto mais ou menos bem
formulado, o da constituição deliberada de novas formas de inteligência coletiva,
mais flexíveis, mais democráticas, fundadas sobre a reciprocidade e o respeito
das singularidades. Nesse sentido, poder-se-ia definir a inteligência coletiva como
uma inteligência distribuída por toda a parte, continuamente valorizada e
sinergizada em tempo real”31.
3 INTERAÇÃO FACE A FACE
Em contraste com o virtual há o atual. Passa-se a analisar o atual a partir
dos estudos sobre a interação social face a face do antropólogo ErvingGoffman.
As identificações e caracterizações dos fenômenos autoevidentes, como “linha”,
“fachada”,
“aprumo”,
“deferência”,
“porte”,
“constrangimento”,
“alienação”,
“sintomas”, e “caráter”, são capazes de dar pistas sobre como a sociedade age,
ou atua; os elementos físicos e psíquicos encontrados na interação ritualística dos
encontros sociais mostram exatamente o que se passa na atualização do virtual.
30
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 109.
31
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 99.
1152
A comunicação é carregada de elementos oriundos do corpo e da psique que
informam tanto quanto as palavras ou os sinais utilizados para comunicar.
Passa-se a explicar, ilustrativamente, esses fenômenos expressivos
segundo os artigos que compõem o livro Ritual de Interaçãode ErvingGoffman.
4 LINHA, FACHADA E APRUMO NA INTERAÇÃO FACE A FACE
“Todas as pessoas vivem num mundo de encontros sociais que as
envolvem, ou em contato face a face, ou em contato mediado com outros
participantes. Em cada um desses contatos a pessoa tende a desempenhar o que
às vezes é chamado de linha – quer dizer, um padrão de atos verbais e não
verbais com o qual ela expressa sua opinião sobre a situação, e através disso sua
avaliação sobre os participantes[...]”.32 A linha é, nessa base, o padrão
comportamental comunicacional expressivo da pessoa.
Fachada, por seu turno, é o valor social positivo que as pessoas tentam
transparecer aos demais participantes da interação social. A fachada é o
resultado da linha que o indivíduo possui em suas interações. “A fachada é uma
imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados[...]”.33
A relevância da linha e da fachada decorre de um efeito particular da
interação social: ela põe em evidência os efeitos emocionais que os indivíduos
sofrem quando no contrato de outros indivíduos. Conforme explicita Goffman, “o
apego de uma fachada particular, junto com a facilidade de comunicar
informações falseadoras por ela e por outros, constitui uma das razões que fazem
com que ela considere que a participação em qualquer contato com os outros seja
um compromisso[...] A fachada pessoal e a fachada dos outros são construtos da
mesma ordem; são as regras do grupo, e a definição da situação que determinam
quantos sentimentos devem ser distribuídos pelas fachadas envolvidas”.34
32
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 13.
33
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 13.
34
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 14.
1153
Um dos principais efeitos da interação face a face, oriundo justamente do
que simboliza o corpo presente de uma pessoa, é a combinação da regra do
respeito próprio e da regra da consideração. Essa combinação de regras é a
tendência de condução de um indivíduo durante a interação social. Assim se
mantém a própria fachada e a fachada do terceiro. Essa é a obrigação latente do
envolvimento social. Proteges a ti e ao teu irmão. A proteção mútua é uma
característica estrutural básica da interação, especialmente quando se trata de
interação face a face. E não que essa proteção de um a outro e vice versa seja o
exato reflexo do eu (do um ou do outro), mas talvez apenas uma praticidade, na
linha de argumento de Goffman, para manter-se a sociedade. “A aceitação mútua
de linhas tem um efeito conservador importante sobre os encontros”.35 É
necessário preservar a fachada, e esse exercício é realizado através do “aprumo”,
ou seja, através do controle do próprio constrangimento em alguma situação,
além de outras práticas habituais e padronizadas. Há, na interação face a face,
uma série de etiquetas e diplomacias nas quais os indivíduos que estão
interagindo mantêm como forma de cooperação para preservação da fachada.
Goffman
segue
a
linhagem
da
antropologia
social
da
Tradição
Durkheimiana, focada nos símbolos e rituais da interação social. Segundo Collins,
“um ritual é um momento de uma densidade social extremamente alta.
Novamente, quanto mais pessoas estiverem juntas, tanto mais intenso será o
ritual. Mas os rituais também elevam os contatos entre as pessoas; ao fazer os
mesmos gestos, ao entoar as mesmas canções e outras coisas do tipo, as
pessoas voltam a atenção para uma mesma coisa. Elas não estão apenas
reunidas, mas têm plena consciência do grupo ao seu redor. Como resultado
disso, certas ideias passam a representar o próprio grupo, tornando-se seus
símbolos”36. Nesse contexto, há, na interação social, rituais cotidianos
inconscientes, que estão presentes em cada ponto de um encontro social. Collins
afirma que Goffman segue explicitamente Durkheim quando explica que “na
sociedade moderna, os deuses dos grupos isolados deram lugar à adoração de
35
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 19.
36
Quatro tradições sociológicas / Randall Collins ; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ :
Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia), pág. 165.
1154
um único ‘objeto sagrado’ que todos temos em comum: o eu individual”.37 Os
rituais são as performances que têm consequências sociais ao criar imagens
adequadas sobre os indivíduos, e requerem habilidades materiais e culturais.
“Rituais são armas que sustentam e renegociam a estrutura de classe. Eles não
apenas criam o eu, mas classificam os diferentes tipos de eu em diferentes
classes sociais”.38
Na interação falada o ritual se expõe por símbolos e sinais que significam
diversas coisas. Goffman exemplifica: “Uma olhadela descuidada, uma mudança
momentânea no tom de voz, uma posição ecológica tomada ou não, tudo isso
pode encharcar uma conversa de importância avaliativa”.39 São gestos,
interrupções e pausas que regulam o fluxo de mensagem dando algum sentido
especial a ele, pois representam o nexo subjetivo existente entre o indivíduo e sua
ação. São “atestados de autenticidade”.
Quando se comunica algo, o indivíduo expõe sua figura a decepções, como
ocorre, por exemplo, quando os comunicados não prestam atenção no que foi
informado, ou quando os comunicados não correspondem com a empolgação que
o comunicador espera. São inúmeras as possibilidades, e em muitas delas
somente a presença física é capaz de revelar. Nessa linha, preservar a fachada
significa, na interação falada, uma organização convencional, mantendo-se um
fluxo bem ordenado de mensagens faladas através de uma estrutura de ritual.
Para Goffmann, se há de fato uma natureza humana universal, ela deve
ser pesquisada nos encontros sociais. A forma de mobilizar os indivíduos para os
encontros sociais é através do ritual. A percepção, os sentimentos e outros efeitos
da racionalidade são provocados quando se está face a face com outra pessoa. O
efeito que o corpo humano gera em outro corpo humano ainda é inexplicável,
mesmo para os que estudam a mente. É algo quase místico, ou, talvez, para os
mais existencialistas, seja o que há de místico.
37
Quatro tradições sociológicas / Randall Collins ; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ :
Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia), pág. 190.
38
Quatro tradições sociológicas / Randall Collins ; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ :
Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia), pág. 191.
39
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 39.
1155
5 DEFERÊNCIA E PORTE INTERAÇÃO FACE A FACE
Segundo Goffman, “uma regra de conduta pode ser definida como um guia
para a ação, recomendada não porque é agradável, barata ou eficiente, mas
porque é apropriada ou justa. As infrações caracteristicamente levam a
sentimentos de desconforto e a sanções sociais negativas”.40 As regras de
conduta interagem entre si de forma a padronizar o comportamento humano de
acordo com o ideal institucionalizado pela sociedade. Assim, geram expectativas
e obrigações. Quando um ato humano submete-se a uma regra de conduta,
segundo o autor em análise, entra em cena a perspectiva comunicacional do ato,
pois se passa a representar a forma pela qual os “eus” são confirmados. Ato que
segue ou não segue uma regra de conduta sempre é comunicação, pois seguir ou
não seguir só têm peso ôntico a partir de quando o paradigma é comunicado.
Caso contrário, há, apenas, arbitrariedade. A partir do momento que um
comportamento concreto vira paradigma para uma expectativa comportamental,
há comunicação.
O componente cerimonial do comportamento concreto possui pelos menos
dois elementos básicos: a deferência e o porte. A deferência vem a ser, nas
palavras de Goffman, o “componente da atividade que funciona como um meio
simbólico através do qual se comunica regularmente apreciação para um receptor
deste receptor, ou de algo do qual esse receptor é considerado um símbolo,
extensão ou agente”.41 É a apreciação que um indivíduo faz sobre o outro
individuo para esse próprio indivíduo. São representações da relação entre ator e
receptor de uma interação face a face; a deferência significa estima. É possível
identificar atos de deferência em expressões corporais, como nos abraços, nos
apertos de mão, na voz, nos tapas nas costas, nas lágrimas. Já o porte é o
“elemento do comportamento cerimonial do indivíduo tipicamente comunicado
através da postura, vestuário e aspecto, que serve para expressar àqueles na
presença imediata dele que é uma pessoa de certas qualidades desejáveis ou
40
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 52.
41
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 59.
1156
indesejáveis”.42 Através do porte o indivíduo cria uma imagem de si, que para si
mesmo pode conscientemente não ser verdadeira, pode ser fruto de um desleixo
momentâneo,
um
de
um
momento
de
pressa.
Mas
para
terceiros,
inconscientemente ou até mesmo conscientemente é uma imagem verdadeira. É
difícil saber o que se passa na vida e na mente de outras pessoas. Como diz o
ditado popular, a primeira impressão é a que fica.
Fato é que tanto a deferência quanto o porte apresentam e representam as
pessoas, e ainda submetem-se a regras de conduta. É do senso comum que não
se pode recusar um aperto de mão, ou ir mal vestido para um aniversário.
Enquanto regras de conduta, o porte e a deferência comunicam os indivíduos, e
por isso são fontes de conhecimento.
6 CONSTRANGIMENTO NA INTERAÇÃO FACE A FACE
O constrangimento pode ser notado em si mesmo e nos outros indivíduos
por sinais objetivos de perturbação emocional, como enrubescimentos, balbucios,
gaguejos, entonações da voz, suor, palidez, piscadelas, tremor das mãos,
movimento hesitantes ou vacilantes, tremor das mãos, distrações e disparates.43
Segundo Mark Baldwin, citado por Goffman, também se pode notar o
constrangimento no rebaixamento dos olhos, nos movimentos da cabeça e na
posição e movimento das mãos e dos dedos. O normal, na interação face a face,
é estar tranquilo, de forma que o constrangimento é um desvio do estado normal.
O constrangimento, dessa forma, tem relação direta com o que o indivíduo
representa diante de quem está presente em um encontro social.
O interessante é que dos efeitos do constrangimento se pode notar uma
certa união ou uma certa indiferença dos coparticipantes do evento para com os
envolvidos diretamente no ato constrangedor. Afinal de contas, o constrangimento
é contagioso. Ou seja, além dos efeitos do constrangimento refletir o
constrangedor ou o constrangido, também reflete a interação do grupo. Ninguém
42
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 78.
43
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 95.
1157
gosta de se sentir constrangido, e por isso é normal que pessoas sensíveis e
ponderadas evitem constranger outras (deixando a salvo suas fachadas). A
relatividade do constrangimento é óbvia e é verificável na própria historicidade da
humanidade. Os costumes, a tradição, os mitos, os totens, os tabus, tudo muda, e
por isso “eventos que levam ao constrangimento e os métodos para evita-lo e
dissipá-lo podem fornecer um esquema de análise sociológica que atravessa
culturas”.44
O constrangimento, no sentido acima delineado, possui uma importante
função social. No momento em que se identifica um constrangimento, a
identidade social está desmistificada. Por traz do conflito individual gerado pelo
constrangimento, está o conflito organizacional, “pois o eu, para muitos
propósitos, consiste apenas da aplicação de princípios organizacionais legítimos
para o nosso eu. Construímos nossa identidade a partir de reinvindicações que,
se forem negadas, dão-nos o direito de nos sentirmos injustificadamente
indignados”.45
7 ALIENAÇÃO NA INTERAÇÃO FACE A FACE
Uma conversação tem “vida própria”, no sentido de transcendência. Formase um pequeno sistema social em cada interação social desse tipo que
transcende aos indivíduos envolvidos. Formam-se exigências próprias para cada
situação que devem ser respeitadas pelos atores do evento, sob pena de
comprometer todo o ritual e sua finalidade. A alienação do indivíduo em um
encontro conversacional é uma das causas do seu fracasso, gerando
consequências negativas individuais e sociais. São algumas formas de alienação,
segundo Lévy, a preocupação externa ao foco da conversação, a consciência de
si mesmo (quando o indivíduo dá mais atenção a si mesmo, ao invés de dar
atenção ao conteúdo da conversação), a consciência dos outros (distração
44
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 99.
45
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág.
108.
1158
advinda de outros participantes, como beleza, feiura, estatura, etc.) e a
consciência formal da interação (preocupação demasiada com a forma como a
interação está ocorrendo, e não com o próprio conteúdo da conversação).
Essas alienações são preocupantes porque o ritual da interação face a face
cria obrigações para quem participa dele. “Em nossa sociedade prevalece um
sistema de etiquetas que dirige o indivíduo a lidar com estes eventos de forma
conveniente, projetando através deles uma imagem de si correta, um respeito
apropriado pelos outros presentes e uma consideração adequada pelo ambiente.
Quando o indivíduo quebra uma regra de etiqueta, intencionalmente ou não, os
outros presentes podem se mobilizar para restaurar a ordem cerimonial, de forma
parecida com aquela utilizada quando outros tipos de ordem social são
transgredidos. Através da ordem cerimonial que é mantida por um sistema de
etiqueta, a capacidade do indivíduo de ser levado por uma conversa se torna
socializada, assumindo uma carga de valor ritual e função social”.46
Segundo TalcottParson, citado por NiklasLuhmann, os atores sociais dão
sentido individual (subjetivo) às ações quando atuam entre si. Assim, devem
integrar as expectativas recíprocas de comportamento, e essa integração ocorre a
partir da estabilização através de regras compreensíveis e assimiláveis. De outra
forma, seria impossível assimilar a dupla contingência da determinação do sentido
da ação a partir de dois sujeitos, e tampouco constituir a complementariedade das
respectivas expectativas. Por isso toda interação pressupõe normas, e sem elas
não se constitui um sistema.47
Em face dessas alienações, o sistema social da interação cria
solidariedade para salvar o ritual face a face. Conforme explica Goffman, “A
obrigação do indivíduo de manter o envolvimento espontâneo na conversação e a
dificuldade de fazer isso o coloca numa posição delicada. Ele é salvo por seus
coparticipantes, que controlam suas próprias ações para que ele não seja forçado
a sair do envolvimento apropriado. Mas, assim que ele for resgatado, ele terá que
46
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág.
111.
47
Sociologia do Direito I / NiklasLuhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileito, 1983, pág. 31.
1159
resgatar outra pessoa, e por isso seu trabalho de participante da interação se
complica ainda mais. Aqui, então, está um dos aspectos fundamentais do controle
social na conversação: o indivíduo deve não apenas manter o seu próprio
envolvimento, mas também agir de forma a garantir que os outros mantenham o
deles”.48
Quando ocorre um problema de alienação na interação falada a realidade é
atingida, e o sistema social que a reflete fica desorganizado a ponto de não mais
servir de horizonte ao ritual de interação. A veracidade dessa realidade será
confirmada apenas no conflito, na decepção pelo desrespeito do ritual. Nos
termos de Goffman, “ao examinar as formas pelas quais o indivíduo pode perder o
passo com o momento sociável, talvez possamos aprender algo sobre a forma
pela qual ele pode ser alienado de coisas que ocupam muito mais o seu tempo”.49
As regras de conduta para a interação falada é de importância capital entre
inúmeras pessoas em incontáveis situações. É a forma básica de envolvimento e
por isso a consciência de si mesmo é forte nesse tipo de relação.
8 SINTOMAS MENTAIS NA INTERAÇÃO FACE A FACE
A tradição freudiana da psiquiatria aborda que sintomas do comportamento
psicologicamente anormal podem ser interpretados como parte do sistema de
comunicação e de defesa do ofensor. A reversão a modos de conduta infantis é o
exemplo dado por Goffman. Em um encontro social, um comportamento
inapropriado é entendido por todos, é autoevidente, pois é uma coisa pública. É
pública porque é potencialmente acessível a todos, e assim torna-se uma
preocupação a todos. A ordem do ritual está em jogo. Dessa forma, analisando a
interação social se pode observar sintomas da psicopatia. A análise de Goffman
parte do exame da regra geral de conduta que o comportamento ofensivo infringe.
A partir daí se examina o conjunto de regras do qual a regra geral faz parte.
48
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág.
113.
49
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág.
131.
1160
Identifica-se um conjunto de regras gerais para então se analisar o grupo social
onde vigem essas regras e sua estrutura. Quando esse trabalho estiver feito,
pode-se, então analisar o ofensor e o que significa para ele burlar aquelas regras
sociais. Talvez seja possível, até mesmo, encontrar um grupo de sintomaspadrão. O fato é que o desvio de conduta pode ser fruto de um comportamento
psicótico, mas o que normalmente ocorre é o contrário: a burla a um regra de
conduta é realizada por um comportamento normal. A preocupação repousa
sobre o tipo de ordem social que é relacionada ao comportamento psicótico. “Agir
de forma psicótica é, com muita frequência, associar-se incorretamente com os
outros na sua presença imediata; isso comunica alguma coisa, mas a infração em
primeira instância não é de comunicação, e sim de regras de counião”.50
É possível, então, conhecer a estrutura de uma sociedade a partir de suas
regras de conduta; e a partir daí, é possível conhecer, também, a estrutura do
comportamento. Ao final, pode-se chegar à perspectiva da infração sob o ponto
de vista do ofensor. O ofensor será desmascarado e classificado como um mero
transgressor que agiu de uma forma anormal ou como um psicótico. Afinal de
contas, como observa Goffman, todos os desvios psicóticos de conduta podem
ser encontrados na vida cotidiana, na conduta de pessoas mentalmente sãs. Os
desvios perpetrados por pessoas sãs são copiados de desvios perpetrados por
pessoas psicóticas. Por isso a social válvula de escape de “se fazer de louco”.
9 CARÁTER E COMPOSTURA NA INTERAÇÃO FACE A FACE
A capacidade das pessoas de agir de forma correta e firme diante de
pressões repentinas é um aspecto do caráter do indivíduo. A incapacidade de se
comportar corretamente sob pressão é sinal de um caráter fraco. Manter o
autocontrole total quando a questão envolve uma decisividade é sinal de um
caráter forte. Segundo Goffman, a ação está nos momentos de decisividade,
quando é possível analisar o caráter das pessoas. “Ao procurar onde a ação está,
50
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág.
137.
1161
chegamos a uma divisão romântica do mundo. Em um lado estão os lugares
seguros e silenciosos, o lar, o papel bem regulado nos negócios, na indústria e
nas profissões; no outro estão todas as atividades que geram expressão, exigindo
que o indivíduo dê a cara para bater e se coloque em perigo por um momento
passageiro”51. Para o sociólogo em estudo, a compostura é uma das qualidades
do caráter que merecem atenção. Compostura no sentido de autocontrole, de
domínio de si, de aprumo. “A compostura tem um lado comportamental, uma
capacidade de executar tarefas físicas (tipicamente envolvendo o controle dos
músculos das mãos) de forma suave, organizadas e autocontrolada sob
circunstâncias decisivas[...] A compostura também tem aquilo que é considerado
um lado afetivo, o autocontrole emocional necessário para se lidar com os
outros”52. Pela compostura também se pode analisar a dignidade, a confiança, o
controle emocional, enfim, a compostura informa a pessoa.
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA INTERAÇÃO FACE A FACE À INTERAÇÃO
DIGITAL
É notório que na interação face a face existem elementos comunicacionais
que estão ausentes na interação digital. A era da digitalização trouxe um impulso
socializante extremamente revolucionário. O mundo passou a estar conectado.
Obviamente, para se dar essa abrangência à interação social, foi preciso abrir
mão de muitos elementos humanos que se associam à fala. A psique humana se
expressa pelo corpo humano, e na virtualização tudo o que sai do corpo para
comunicar, como o som da voz e as expressões faciais, são substituídas por
símbolos, que na maioria das vezes representam só o objeto da comunicação,
não o sentimento do comunicador.
51
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág.
254.
52
Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de
Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), págs.
212 e 213.
1162
Mas isso não quer dizer que a digitalização da comunicação signifique
alienação. Pelo contrário, significa socialização, muito embora a alienação esteja
em um ambiente propício a se desenvolver, justamente devido à falta do corpo
místico. É simplesmente paradoxal.
O fenômeno é novo e certamente ainda estamos nos primeiros estágios da
digitalização, e isso não só em termos técnicos, mas também em termos
antropológicos. Novos símbolos de comunicação, diferentes das palavras, são
incorporados na comunicação digital. A voz e a imagem passaram a ser
virtualizadas pela digitalização em uma velocidade e facilidade de acesso
espantosa. Agora, os aspectos físicos das pessoas é alcançável a todos.
Na interação virtual escrita, fenômenos biológicos autoevidentes, como
“linha”, “fachada”, “aprumo”, “deferência”, “porte”, “constrangimento”, “alienação”,
“sintomas”, e “caráter” dissipam-se. Não que sumam, mas diminuíram
consideravelmente. Isso leva a uma impessoalização da comunicação. Mas a
interação virtual digital, longe de alienar, representa uma virtualização da
comunicação, da mesma forma que as linguagens são a virtualização do ser.
Toda a virtualização expande o ser virtualizado, pelas características que o
ambiente virtual possui. Não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo,
salvo se se está virtualizado. Inclusive, aí se pode estar em muitos lugares ao
mesmo tempo. Tal evidência explica porque, nos últimos 20 anos, comunicou-se
mais do que nos últimos 2.000 anos.
A virtualização digital definitivamente coloca no texto elementos da
antropologia humana. Esse é uma das características do hipertexto.
O ambiente digital potencializa a comunicação, e, conforme mencionado
alhures, potencialização da comunicação é potencialização da sociedade. Longe
se alienar, a virtualização digital cria, ou melhor, dá o ambiente à criação, a partir
de um movimento autopoético heterógeno, acolhedor de alteridade.
O virtual, digital ou escrito, sempre será um problema a ser resolvido,
atualizado. Dessa forma, a interação virtual sempre será uma multiplicadora de
atualidades, ou seja, uma fomentadora do desenvolvimento social. A digitalização
é um avanço da virtualidade humana, e não uma degradação humana.
1163
Como problema que é, gera conflito, que será resolvido a cada atualização.
O conflito, então, mostra-se como fonte da criação. Num ambiente socializado, a
melhor forma de solucionar um conflito é pela diferenciação. Quanto for maior o
leque de possibilidades, mais chance há de se ter uma resolução perfeita do
conflito. Conflito pede, portanto, especialização, diferenciação, que, em âmbito
sistêmico, se dá de forma estruturada e funcional. Há possibilidade, portanto, de
se visitar as mais diferentes tradições sociológicas a partir do presente tema, pois,
como ficou evidente, há questões conflituais, ritualísticas e sistêmicas.
Com efeito, identificar o ambiente em que se está interagindo é situar-se no
estado atual. Não há uma luta do pessoal contra o digital, há uma relação de
espaço e tempo que, plenamente identificado e conhecido, serve ao
desenvolvimento social.
Com bem observado por Lévy, os grupos humanos são meios ecológicos
nos
quais
espécies
de
representações
ou
ideias
desenvolvem-se
autopoieticamente. Os princípios darwinianos aplicam-se aos ambientes de
desenvolvimento da inteligência, dentre eles, o ambiente virtual, hoje amplamente
digitalizado, formadores de inteligência coletiva.
É a partir da virtualização que os indivíduos terão cada vez mais
consciência para, na atualização, interagirem com a linha, a fachada, o aprumo, a
deferência, o porte, e o caráter corretos, sem constrangimento e alienação. Esse
fato traz instabilidade porque os fenômenos da interação face a face não se
fazem presentes na interação virtual escrita. Mas na interação virtual digital há
essa possibilidade, de forma fácil, rápida e eficiente. Essa é a principal
característica do hipertexto.
REFERÊNCIAS
COLLINS, R.. Quatro tradições sociológicas; Tradução de Raquel Weiss. –
Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia).
GOFFMAN, E. Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face.
tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. –
(Coleção Sociologia).
1164
LÉVY, P. O que é virtual?; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34,
2011 (2ª edição). 1165
O MEDO COMO ALAVANCA DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E DO
AUMENTO DO RISCO SOCIAL
Suelen Webber,
Leonel Severo Rocha,
RESUMO: Esta pesquisa analisa como a sociedade brasileira na
contemporaneidade comunica a necessidade de punições mais severas e mais
previsões legais de penalização. O objetivo neste trabalho foi observar como a
figura do medo (real ou fictício), que é comunicada na Sociedade, fomenta o mito
de que punir mais e com mais rigor é melhor. Nesse cenário de busca
desenfreada pena punição, a sociedade depara-se com o fenômeno da expansão
do Direito Penal de forma descontrolada, na medida em que se passa a punir atos
preparatórios, editar leis penais em branco, penalizar situações que deveriam ser
resolvidas na esfera administrativa, além de se vislumbrar que a única resposta
satisfatória para frear a criminalidade é a pena privativa de liberdade. Como
resultados preliminares, observou-se que os meios de comunicação de massa,
em especial a mídia, utilizam um discurso sedutor em torno da criminalidade, a
fim de convencer o senso comum de que o enrijecimento das leis e a penalização
de tudo é a única solução eficiente a ser encontrada. A metodologia sistêmica,
através de Niklas Luhmann e Leonel Severo Rocha, foi a forma encontrada para
observar estas comunicações sociais, aliada aos trabalhos de autores como Silva
Sanchez, Díez Ripolléz, Pierre Bourdieu. Das conclusões obtidas até o momento,
tem-se que, atualmente, existe um discurso embotado pelo medo, que nem
sempre advém de situações reais, e está a favor da mídia e do Sistema Político, e
faz com que o risco seja ampliado na Sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Direito penal; medo; risco.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo desse trabalho é observar como o medo, que nem sempre é
uma sensação criada de uma situação real, tem sido comunicado na Sociedade,
e como isso tem fomentado o mito que se abriga no imaginário do senso
comum, de que punir mais é melhor. Para realizar esta abordagem, é necessário
observar como os meios de comunicação e o Sistema da Política tem usado a
criminalidade real para fomentar um discurso de expansão do Direito Penal.
1166
A expansão do Direito Penal, consiste, no aumento de penas de crimes já
tipificados, na administrativização do Direito, sobretudo penal, e no aumento ou
enrijecimento de penas. Todas essas características vem sendo aceitas por
grande parcela da população, graças ao discurso da mídia e das ações políticas.
Assim, a ideia de que punir mais é melhor é comunicada e efetivada na
Sociedade de Complexidade, ampliando os riscos e perigos deste sistema.
Para tratar desta questão, o artigo é dividido em duas partes. Na primeira,
observa-se como o medo e a punição tem sido comunicados na Sociedade. Na
segunda, procura-se indicar os resultados das comunicações deste medo e
anseio por mais punição nesta mesma Sociedade. É assim que este trabalho se
apresenta.
2 MEDO E PUNIÇÃO: AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS ATUAIS
Atualmente, na Sociedade de Complexidade, em que existem muitas
possibilidades, conforme definiu Niklas Luhmann, há uma comunicação que tem
ressoado cada vez mais forte: “punir mais é melhor”; “punir mais é a única
solução”. A partir da propagação desta informação, outra comunicação é formada,
uma comunicação de medo, de risco e de um sentimento vago de insegurança
que assola a sociedade brasileira, e, talvez, possa-se dizer mundial.
Esse é o sentimento alimentado pelos meios de comunicação, e pelo
Sistema Político. Segundo eles, a única solução para exterminar este medo
coletivo (como se isso fosse possível, medo zero), é diminuir a criminalidade, e
isso seria feito com mais punição. Assim, as expectativas cognitivas dos
cidadãos direcionadas ao Sistema Político, são no sentido de mais direito penal.
Dito de outra forma, é: “vamos penalizar tudo, vamos prender, vamos punir
mais”.
A internet ganha papel de destaque neste cenário, mormente nos últimos
cinco anos, pois possibilita que quase toda a população tenha acesso à
informação, as notícias de crimes que dominam as comunicações virtuais. Além
disso, possibilita que todos, incluídos e excluídos (LUHMANN, 1983) possam
expor ao mundo, neste ambiente cibernético, as suas opiniões sobre o que está
1167
ocorrendo. Invariavelmente, a maior parte das comunicações, assim como
ocorre nas ruas, é por mais punição.
Todo esse movimento comunicacional circular, qual seja, informações
midiáticas, clamor social, penalização de mais condutas, mais notícias
tendenciosas, mais expectativas de punição, leva a questionar quais os reais
efeitos desta comunicação na estrutura da sociedade. Quais os ruídos e
interferências que ele pode gerar. Na verdade, este é um questionamento que
se coloca não apenas a nível nacional, mas cabível também para países como a
Espanha ou os Estados Unidos.
A Espanha, é um dos locais em que o medo se apropriou tanto destas
comunicações que ela sofre um processo de expansão do Direito Penal,
levando-a a um Direito Penal discriminatório, como no caso das leis referentes à
pessoa do imigrante. Na atual quadra da história, em que tudo acontece de
maneira simultânea (LUHMANN, 2002. p. 101) e as situações deixam de se
limitar às fronteiras dos países, as comunicações são transnacionais assim
como seus efeitos sociais. Não é afetado apenas o imigrante que efetivamente
tente ingressar em território espanhol, mas todo o imigrante que tenha esta
expectativa,
mormente
se
proveniente
de
alguns
países
específicos.
Curiosamente, os espanhóis sofrem este mesmo problema para tentar ingressar
nos Estados Unidos.
Nesse conhecido debate sobre expansão do Direito Penal, Díez Ripollés
vai dizer que falar em expansão “implica reconsiderar o flexibilizar el sistema de
imputación de responsabilidad y de garantías individuales vigentes, lo que se ha
de hacer en función de la necesidad políticocriminal de mejorar la efectividad en
la persecución y encausiamento penales.” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007. p. 85).
As teorias que argumentam que esta expansão do Direito Penal é
proveniente da mídia, defendem que ela possui um caráter meramente
simbólico, o que vem justificado por um discurso de eficiência. Acrescentam
ainda que este discurso é respaldado, validado e realizado pelos meios de
comunicação aliados à forças políticas interessadas em angariar votos,
exercendo grande poder sobre a Sociedade. De forma acertada, mencionam
que, este temor social e justificado, gera um aparato denominado Direito Penal
1168
Simbólico. No entanto, em que pese a simbologia social que ele alcança na
esfera do medo, seus efeitos são efetivamente sentidos na sociedade.
afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que
ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as
funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a
confirmação simbólica (não empírica) destas. A função simbólica é assim
inseparável da instrumental à qual serve de complemento e sua eficácia
reside na aptidão para produzir um certo número de representações
individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função de
“engano” (ANDRADE, 1997. p. 293).
Da forma como este problema é explorado, tem-se que o Direito Penal,
que deveria ser o último recurso social, passa a ser utilizado como um
instrumento para a solução de todos os problemas da sociedade, e essa
instrumentalização amparada pelo Sistema da Política - Governo/Oposição (LUHMANN, 2002), ganha a aceitação de grande parte da população. Com o
ingresso dos meios de comunicação nesta questão, e a possibilidade que alguns
deles, como as redes sócias, dão de que todos possam dizer o que pensam,
este sentimento de medo e mais punição se multiplica ao ponto de não se ter
mais certeza do quanto ele é real e o quanto é falacioso.
Fomentado pela mídia ou não, o fato é que a consequência desta
expansão é o abarcamento do Direito Penal por áreas que não deveriam lhe
dizer respeito, o que leva obrigatoriamente a um modelo de Direito Penal
máximo. Entretanto, onde há um estado com Direito Penal máximo, nem sempre
as garantias constitucionais e as verdadeiras expectativas dos indivíduos são
respeitadas.
O contexto social em que se desenvolve a expansão do Direito Penal é
frequentemente marcado pela noção de que a pena é suficiente para resolver
todos os problemas da sociedade. Quando se fala em pena como solução de
problemas, em regra, fala-se de pena privativa de liberdade, a que afasta o
“delinquente”, o “marginal”, do convívio social, já que “só isso é capaz de trazer
segurança à população”. Prova de que este é o pensamento que tem dominado
as comunicações sociais é a recente aprovação do projeto de redução da
menoridade penal (PEC 171/93). Para o senso comum (WARAT, 1985), que
guarda o maior número de eleitores, o encaminhamento de transgressores da lei
à prisão cada vez mais cedo, é a maneira de frear a criminalidade no Brasil.
1169
Neste caso, fica muito bem retratado o que se quer comunicar com este artigo:
no imaginário social, a prisão em uma cadeia, em um presídio, é o que vai
resolver o problema. Isso é simples de se constatar, na medida em que jovens
infratores já são afastados da Sociedade e internados, mas não são presos, com
todo o peso e simbologia que esta palavra tem.
O fato de se estar em uma Sociedade de Complexidade, na qual
risco/perigo dominam as comunicações (WEBBER, 2013), afastando a tão
almejada segurança absoluta, não justifica esta situação. Tudo ocorre nesta
sociedade (ROCHA; KING; SCHWARTZ, 2009. p. 19). Assim, o risco seria
apenas
mais
comunicações
um
elemento
sistêmicas
(generalizado)
(ROCHA;
CLAM,
que
se
faz
presente
nas
SCHWARTZ,
2005.p.
36),
merecendo uma observação mais atenta em razão dos ruídos que pode causar
nas comunicações e dos efeitos decisivos que gera na tomada de decisão.
Nessa senda, o risco sempre estará vinculado a uma tomada de decisão, mas
não vai definir a sociedade, embora possa interferir nas expectativas dos
indivíduos. Não se pode eliminar o risco, apenas se pode gerenciá-lo. Também
não se fala em níveis de risco ou quantidade de risco, já que este altera-se de
acordo com quem é o responsável pela decisão e pela comunicação em si
(LUHMANN, 2006. p. 47/48). Assim, risco na Teoria dos Sistemas seria
la posibilidad de daños futuros debido a decisiones particulres. Las
decisiones que se toman en el presente condicionan lo que acontecerá
en el futuro, aunque no se sabe de qué modo: deben ser tomadas sin
tener una conciencia suficiente de lo que sucederá. Con otras palabras:
quien toma una decisión en el presente no se puede proteger, con
seguridad, de eventuales danõs futuros y éstos pueden ser
consecuencia de un comportamiento. El riesgo está caracterizado por el
hecho de que, no obstante la posibilidad de consecuencias negativas,
convieve, de cualquier modo decidir mejor de una manera que de outra.”
(CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 2006. p. 193).
Portanto, a existência do risco/perigo deve ser melhor administrada em
nossa Sociedade, e não usada para fomentar o medo através dos meios de
comunicação. Ao fazer isso, estar-se-ia, voltando a modelos de Sociedades
segmentárias, e com isso, propiciando a expansão do direito penal, de forma
desnecessária e irresponsável, o que pode causar muitos danos à população.
Independente da noção de risco que se adote, o fato é que nenhuma
delas justifica a expansão do Direito Penal na forma como ela ocorre. É patente
1170
que atualmente, em qualquer postura epistemológica que se aposte, o medo
está presente na vida dos indivíduos e que antes de definir a sociedade em
razão do risco existente, é mais plausível defini-la pela complexidade que se
esta inserido atualmente. Essa complexidade, aliada ao medo, poderia ser a
condição de possibilidade para que o Direito Penal sofresse espontaneamente
uma leve expansão (a necessária), uma vez que novos crimes têm surgindo,
como os cibercrimes, novos modos de se operar crimes antigos foram
aparecendo e outros bens jurídicos necessitaram ser protegidos. Entretanto, o
problema enfrentado não é essa expansão natural, e sim uma expansão que
busca, segundo Callegari e Motta (2007. p. 20):
a) incrementação da criminalização a partir da proliferação de bens
jurídicos de natureza coletiva, intangíveis ou abstratos; b) criminalização
de atos de mera conduta que presidem da efetiva lesão aos bens
jurídicos tutelados; c) antecipação da intervenção penal ao estágio prévio
à efetiva lesão do bem jurídico, generalizando-se a punição de atos
preparatórios, como, por exemplo, a associação criminosa; d) ampliação
da discricionariedade das autoridades policiais; e) aumento
indiscriminado do limite de tempo da pena de prisão; f) alterações nas
regras de imputação e no sistema de garantias penais e processuais, a
partir da proliferação de tipos penais pouco precisos e de leis penais em
branco, bem como da introdução da ideia de efetividade como princípio
norteador do processo penal, ainda que à custa da flexibilização, senão
da supressão, das garantias dos acusados.
Um exemplo privilegiado que estampa todas as características acima
elencadas, bem como contém os elementos clássicos da expansão trabalhada
por Silva Sáchez, é a criminalização do delito de embriaguez ao volante no
Brasil.
A embriaguez ao volante, que por muitos anos foi considerada um delito
de trânsito (Código de Trânsito Brasileiro), que possuía inicialmente punição
administrativa, nos últimos anos passou por grandes transformações. Ele
passou de infração administrativa para crime (Lei n. 11.705/2008). Mesmo
permanecendo dentro do Código de Trânsito, ela prevê penas de prisão.
Além da Lei n. 11.705/2008, posteriormente, como os números dos
acidentes não estavam diminuindo, houve uma nova alteração através de Lei
12.760/2012, inclusive para tentar terminar com uma série de interpretações
dadas pelos tribunais. A alteração mais recente ocorreu em 2014, através da Lei
12.971, que disciplina as novas formas de auferimento da tipicidade da conduta.
1171
Como isso, obviamente não fez com que diminuíssem as mortes no
trânsito, esta legislação passou por várias modificações nos últimos anos
(WEBBER; ROCHA, 2013), passando pela necessidade de se comprovar, além
da ingestão da bebida, a incapacidade do sujeito, e voltando para diversas
compreensões judiciais desta questão com a modificação posterior e que se
encontra atualmente em vigor.
Revela-se relevante trazer as observações que Silva Sánchez, já fez há
alguns aos, e ainda mantêm-se atuais no Brasil, frente a colcha de retalhos que
espelha o delito de embriaguez ao volante no Brasil. Sobre dispositivo
semelhante da Lei Espanhola, quando trata da administrativização do Direito
Penal, o estudioso, a fim de demonstrar que a expansão não se apresenta
apenas no Brasil, mas é transnacional, afirma:
O limite da infração administrativa em matéria de tráfego e veículo é de
0,5 mg de álcool por litro de sangue, segundo a normativa espanhola.
Obviamente, tal limite, ou inclusive um inferior, pode estar plenamente
justificado sob perspectivas globais de ordenação do setor, inclusive com
base em dados estatísticos. Desde logo, a maioria das pessoas
representa um perigo para a circulação se seu sangue apresenta essa
concentração de álcool. Mais ainda, em termos de gestão administrativa
do risco da circulação – redução das enormes cifras anuais de mortes
nas estradas – pode ter inclusive sentido o limite absoluto de 0 mg de
álcool por litro de sangue, cuja superação conduziria à infração
administrativa. Mas, vejamos, tal critério por si só não è operativo no
âmbito jurídico-penal. Pois aí não interessa o aspecto estatístico, senão
se a pessoa cuja conduta está sob exame judicial pôs realmente em
perigo bens jurídicos ou não. E aqui a apreciação estatística pode
somente constituir uma presunção contrário, a qual, em princípio, não
constitui base suficiente para imputação (SILVA SÁNCHEZ, 2002. p.
148).
Destaque-se que a análise dessa lei foi feita de maneira proposital, já que
é uma das legislações que teve maior clamor público, com incentivo dos meios
de comunicação, “justificando” uma expansão concreta do Direito Penal.
Constantemente são veiculadas notícias de acidente de trânsito nos telejornais.
A internet através de suas redes sociais oferece cenas exclusivas e mais
detalhadas deste mesmo acidente, e o folhetim principal vai explorar isso,
usando um personagem que ingeriu bebidas alcoólicas, dirigiu e acidentou-se,
ficando com dificuldades de locomoção (ou outras variações de desgraças).
Na mesma senda, pode-se citar: a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes
Hediondos), que apenas aumentou penas de crimes já previstos no Código
1172
Penal Brasileiro; a Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), que prevê
penas extremamente elevadas e declara a inafiançabilidade de referidos crimes;
o instituto do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), instituído pela Lei nº
10.792/2003, dentro da Lei 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais), sob o
argumento de que a legislação de execução penal é retrógrada e não atende às
necessidades da sociedade.
Ainda, querendo ampliar esta observação, surgiram no cenário mundial,
principalmente após o “11 de setembro”, uma gama variada de legislações do
medo, as quais, na prática, pelo que se pode acompanhar de movimentos como
o Estado Islâmico e o Boko Haram, ou a queda de dois aviões na Ucrânia, e os
ataques ao jornal francês Charlie Hebdo, não foram tão eficiente, como se
anunciavam.
Nada obstante, outro referencial que necessariamente deve ser
considerado ao se analisar a expansão é o que Silva Sanchez denomina Direito
Penal de Velocidades. Para Sanchez, há um Direito Penal de Velocidades, na
qual, por meio da expansão e da anedota da prevenção, que justificaria qualquer
ilimitação dos atos do Estado em busca de segurança, passa-se a tolerar,
inclusive, a flexibilização de direitos fundamentais, como é o caso do Regime
Disciplinar Diferenciado no Brasil. Sobre o Direito Penal de velocidades,
Sanchez (2002. p.148) esclarece que este possui três velocidades:
Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal “da prisão”, na
qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais
clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma
segunda velocidade, para os casos em que, por não tratar-se já de
prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles
princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização
proporcional a menor intensidade da sanção. A pergunta que há que
elaborar, enfim, é se é possível admitir uma “terceira velocidade” do
Direito Penal, na qual o Direito Penal da pena de prisão concorra com
uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de
imputação e critérios processuais.
Inexoravelmente o punitivismo descabido vai ganhando cada vez mais
espaço nas expectativas cognitivas dos indivíduos e nas expectativas
normativas da Sociedade. Evidentemente que o Direito tem e deve ter papel de
destaque na Sociedade, já que ele é o responsável pela tomada de decisão.
1173
Mas neste aspecto, os olhares devem se voltar para a Política, pois é ela a
primeira a possibilitar que esta expansão ocorra.
. E esse é o grande perigo. Sua consolidação e estruturação na Sociedade na
forma de legislação (expectativa normativa).
Também é fato que os meios de comunicação de massa vendem a ideia
de que punir mais é melhor e que a criminalidade atualmente (e aqui usa-se a
expressão atualmente porque estes meios de comunicação sempre a usam
tentando passar a ideia de que agora sim o problema não tem mais solução)
está desenfreada. Isso tem gerado na população um medo intensificado,
fazendo com que as pessoas cedam e passem a aceitar “a influência cada vez
maior dos meios de comunicação de massa nos processos de formação da
opinião sobre os mais diversos assuntos” (CALLEGARI; WERMUTH, 2010. p.
43), entre eles o clamor por mais Direito Penal. Como normalmente é esquecido,
a porta de entrada para esta solidificação está na Política, e não no Direito, e a
Política aproveita-se disso para alimentar o seu sistema, que é operacionalizado
pela forma Governo/Oposição.
3 O RISCO DAS IRRITAÇÕES MIDIÁTICAS NA SOCIEDADE
Nesse contexto de insegurança, risco e complexidade, nada é mais
“lucrativo” do que lidar com o medo, uma vez que essa seria a mercadoria à
disposição nesse século. Para ganhar esse mercado, a imagem de
acontecimentos sociais passa a ser manipulada e/ou valorizada, em busca de
maior audiência. Uma das consequências dessa manipulação é o fato de que
certos casos são escolhidos pela mídia como “carro-chefe” da programação e
passam a instigar a população na busca por “justiça”.
No caso “Daniela Peres” nos anos 90, depois o “caso Isabela Nardoni”, o
“caso Eloá”, e mais recentemente o “caso do menino Bernardo” e da Boate Kiss,
e, entre eles os inúmeros acidentes de trânsito em que os condutores estavam
embriagados, foi possível observar isso. O caso Daniela Peres, é emblemático
porque, afirma-se ter resultado na lei dos crimes hediondos, as vítimas do
trânsito, que poderiam ou não estar embriagadas, no enrijecimento da lei de
1174
delitos do trânsito. Possivelmente os “casos Isabela Nardoni e Menino Bernardo”
inspirarão algum legislador na criação de uma lei para os que assassinam
crianças, mesmo que isso já exista. O fato é que a mídia vem explorando ao
máximo estes casos e pedindo “justiça” que se traduz por mais punição e
criação de novas leis, mesmo que inócuas.
Isso remete as observações de Callegari e Wermuth (2010. p. 43):
O caso Isabela Nardoni, no Brasil, bem ilustra a forma como a mídia de
massa nacional explora o crime e a criminalidade: o caso isolado de uma
menina que foi assassinada violentamente passou a ser visto como uma
forma de criminalidade bastante frequente no país e, mesmo
contrariando a realidade objetiva – visto que casos semelhantes são
bastante raros no país -, serviu como “espetáculo” midiático por mais de
dois meses consecutivos, espetáculo esse marcado pelas pressões
populares por justiça – leia-se vingança – contra o pai e a madrasta da
menina, acusados pela prática do crime. A divulgação ad nauseam de
imagens dos acusados sendo escoltados por policiais em meio a uma
massa popular sedenta por agredi-los[...].
E passado algum tempo do crime, ao abrir a edição 2193 da Revista Veja
(1 de dezembro de 2010), nas páginas centrais você encontrará a seguinte
chamada: “O homem que faz Justiça”, referindo-se ao Promotor de Justiça que
atuou no caso Isabela Nardoni. Com o julgamento do caso Eloá, novamente a
mídia voltou a lembrar do caso Isabela, e da mesma forma, recentemente, com
o “caso Bernardo”. Com o passar dos anos, as formas de atingir o público de
aperfeiçoam através da tecnologia, e isso permitiu, por exemplo, que os
depoimentos e interrogatórios do “caso Bernardo”, fossem divulgados nos meios
de comunicação, em uma atitude sem nenhuma justificativa plausível. Qual a
relevância (e até mesmo o direito) para a Sociedade ter acesso a este tipo de
informação?
Embora a mídia tenha a pretensão de atingir a população de massa, o
fato é que ela “reproduz”, em regra, casos penais de pessoas que não
pertencem a essa massa. Observe-se que os casos citados acima não
envolviam pessoas de baixa renda. Com exceção, os “atores televisivos” dos
acidentes de trânsito são pessoas de parcas condições, mas apenas se isso
garantir um índice de audiência maior. Estas são exceções que só ocorrerão se
o caso for realmente trágico. Em regra, busca-se mesmo em acidentes de
trânsito procurar envolvidos por quem a população tenha um interesse maior em
1175
saber de suas condutas, seja por afinidade por rejeição. Como exemplo, tem-se
o caso em que o filho do conhecido empresário Eike Batista (o rapaz muitas
vezes não tem nem mesmo nome, é “o filho de”, a fim de fazer uma chamada
mais apelativa) teria sido o culpado no atropelamento de um ciclista humilde.
Isso, mais do que aumento de pontos nas pesquisas, gera outras consequências
de cunho grave.
Os noticiários sobre episódios violentos, mas distantes, não provocam
aumento generalizado do medo dos públicos. Esse nível de temor
aumenta única e exclusivamente no local da ocorrência do crime. Esse
resultado foi obtido igualmente por Michelle Slone, que constatou
aumento significativo da ansiedade em pessoas reunidas em grupo
experimental submetido à transmissão de mensagens teledifundidas com
ameaças terroristas à segurança do país. A autora confirma a hipótese
de que a mídia tem poder de provocar a emoção das pessoas e pode
eventualmente ter um impacto prejudicial no bem-estar psicológico das
populações vítimas potenciais (WAINBERG, 2005.p. 63).
Veja-se que este atropelamento ocorreu no ano de 2012, e ainda hoje, em
2015, ele é notícia (G1, fevereiro de 2015), foi Thor foi absolvido, após a
sentença de primeiro grau ser altamente divulgada como uym exemplo de
justiça, principalmente quando se noticiou que o pai do acusado, Eike Batista,
estava com suas empresas em crise, uma vez que o carro envolvido no adente
era um modelo de grande valor e nada popular.
Não é apenas de casos reais que a mídia alimenta o medo e o clamor da
Sociedade. A ficção também exerce este papel muito bem. Seja no cinema ou
em programas televisivos semanais. No cinema, o Brasil ganhou seu “primeiro
super-Herói” (VEJA, edição 2190, 2010) com Wagner Moura, no filem Tropa de
Elite. O discurso do filme, é que é preciso ser implacável com bandidos, ou
ainda, “bandido bom é bandido morto”. Não é necessário dizer que o implacável
implica em violação total dos direitos humanos. Assim, a mídia vende um
material de fomentação ilimitada da violação de Direitos Humanos no Direito
Penal, que passa a ser o que a grande massa entende como sendo a única
forma de solucionar os problemas criminais no Brasil. E quando se fala em
grande massa, está-se falando no sentido literal, porque os números que
envolvem o filme são impressionantes.
Os cinemas lotaram. Tropa de Elite 2 arrecadou em três dias mais de 14
milhões de reais e atraiu um público de 1,3 milhão de pessoas. Foi a
maior abertura de um filme nacional nesta década, e a maior renda do
1176
ano, superando a estreia de Eclipse, terceiro filme da série vampiresca
adolescente Crepúsculo, que entrou em junho. Em média, até a semana
passada, o filme de José Padilha estava atraindo 430 000 espectadores
por dia. Até a última quarta-feira, 13, Tropa de Elite 2 foi visto por 2,6
milhões de pessoas e arrecadou mais de 25 milhões de reais[...].” (VEJA,
edição 2187, 2010).
Nesse diapasão, o lobby que a mídia de audiência procura fazer é buscar
que as pessoas se identifiquem com o fatos que estão vislumbrando na tela. Foi
assim com o caso de Daniela Peres, foi assim com o caso Isabela Nardoni, e é
esse um dos motivos que justifica as milhares de associações contra a violência
no trânsito. É esse um dos motivos que fundamenta o grande sucesso dos
filmes Tropa de Elite, principalmente em sua continuação, em que, para buscar
o apelo final, a vítima da violência é o filho do protagonista.
Essa “trama narrativa” que, por meio de recursos que contemplam um
cenário de angústia e sofrimento (fortemente auxiliados por recursos sonoros,
jogos de câmera e cenários estratégicos), busca a empatia dos espectadores
com as vítimas. Assim, os telespectadores passam a acompanhar passo a
passo o que está acontecendo ou o que aconteceu com a vítima, vivenciando
um sentimento de angústia, porque aquilo que está sendo representado poderia
por ele ou por sua família ou conhecidos ter sido sofrido.
Em se tratando de programas televisivos, no Brasil, um programa que
seguia exatamente esta linha era o programa Linha Direta, exibido na Rede
Globo entre os anos de 1999 e 2007. Nele, podia-se perceber que o repórter
passava a ter mais do que o papel de transmitir a notícia. De fato, o programa
buscava uma identificação entre o telespectador e a vítima, para que se
despertasse o sentimento de injustiça na Sociedade, o qual poderia ser
restaurado com a apresentação do programa e a participação ativa do
telespectador.
O programa não se limita a “noticiar” a existência de um criminoso
foragido. É preciso reconstruir o crime com o máximo de carga emotiva
para que o telespectador ao se identificar com a família da vítima – afinal
o crime “poderia ter acontecido com você” - execute a denúncia
(MENDONÇA, 2002. p. 67).
Outro mecanismo que programas como o Linha Direta – e tantos outros
que retratam casos verídicos pelo mundo – se utilizam é o fato de procurarem
“afastar” o tempo decorrido desde os acontecimentos reais até a apresentação
1177
dos casos, a fim de que os sentimentos como insegurança e revolta sejam
“recuperados” nas pessoas. Assim, “não será por acaso que as feições físicas
dos atores e dos envolvidos reais serão tão convincentes” (MENDONÇA, 2002.
p. 70), uma vez que essa “ênfase na semelhança realça a credibilidade da
simulação” (MENDONÇA, 2002. p. 74).
De fato, a mídia acaba por manipular tão bem a verdade dos fatos que,
em situações como a do Programa Linha Direta, houve pessoas que
confundiram um dos atores com o verdadeiro acusado. No caso, a casa do
referido ator foi cercada e o mesmo chegou a ser levado pela polícia para
prestar esclarecimentos (ÉPOCA, de 29 nov de 1999). Em outra situação, essa
“veracidade” do programa e sua forma especulativa e até mesmo imprudente da
instigação em busca de “justiça” foi fatal para Ronaldo Josias de Souza, o qual
foi espancado até a morte após ter seu caso exibido no referido programa
(MENDONÇA, 2002. p. 56).
Saindo do cenário brasileiro e de programas voltados especificamente
para a exploração de casos de crimes não solucionados, esse poder midiático
pode ser verificado nos telejornais ou nos jornais impressos, da mesma forma
que em programas como o citado. Como as pessoas acreditam que se tratam de
temas informativos, elas não costumam questionar as informações veiculadas, e
não percebem quando fatos – mesmo que graves- são manipulados.
O governo Bush controlou o discurso da mídia em parte por meio da
desinformação e da propaganda e em parte pelo controle da imprensa
graças ao sistema de pool. Nos primeiros dias da “crise do Golfo”, por
exemplo, o governo levou a cabo uma campanha de desinformação
muito bem-sucedida graças ao controle e à manipulação das fontes que
legitimavam a mobilização militar americana na Arábia Saudita em 8 de
agosto de 1990. Durante os primeiros dias da crise, o governo americano
afirmava constantemente que os Iraquianos estavam mobilizando tropas
nas fronteiras da Arábia Saudita, dispostos a invadir esse reino rico em
petróleo. Era pura desinformação, e os estudos feitos posteriormente
revelaram que o Iraque não tinha a intenção de invadir a Arábia Saudita
e não tinha grande contingente nas fronteiras em posição de ataque
(KELLNER, 2001. p. 256).
Para reforçar essa noção do poder que a mídia teria junto à população e
até mesmo frente ao governo, há estudos que apontam que as próprias
organizações criminosas se utilizam dela para causar o impacto desejado, qual
seja, de medo, insegurança e muitas vezes de desespero.
1178
As Brigadas Vermelhas da Itália, por exemplo, adequaram-se às rotinas
produtivas da mídia, realizando prioritariamente suas operações às
quartas-feiras e sábados a fim de ocupar o maior número de páginas das
tradicionais edições de quintas e domingos, sempre mais generosas na
cobertura dos fatos. [...] Comenta-se que o choque do segundo avião
contra a segunda torre do WTC foi retardado para assegurar que todas
as câmeras de televisão estivessem focadas no prédio no momento do
impacto. Na Europa, tanto o IRA como a ETA avisam a imprensa com
antecedência da explosão de uma bomba (WAINBERG, 2005. p. 63/72).
Todas essas manipulações ou seleção dos fatos “mais importantes” feita
pela mídia resulta na criação de pseudoperigos. Isso faz com que as pessoas a
abandonem espaços públicos, a busquem novas formas de garantir a segurança
de suas residências (ampliando o mercado das empresas de segurança privada)
e a se centrem em discussões superficiais procurando soluções imediatistas que
as livrem de enfrentar os reais problemas como os de políticas públicas.
Outra importante consequência da “midiatização do medo da
criminalidade” é a sua influência na política, redundando na elaboração
de legislação que, atendendo aos clamores midiáticos, cada vez mais
alargam o âmbito de interferência do Direito Penal na vida social, bem
como incrementam o seu rigor na tentativa de “tranquilizar” a alarmada
população, proporcionando-lhe maior “segurança” por meio da atuação
do sistema punitivo[...]”(CALLEGARI, WERMUTH, 2009. p. 64).
No senso comum, esse modo de tranquilização passa, evidentemente,
pela criação de novos tipos penais ou pelo enrijecimento das penas,
acreditando-se que o mito, a falácia de que “punir mais é melhor” é a solução
dos problemas sociais.
a construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que
multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas –
todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dado-lhes
a imagem de severos, capazes, decididos e, acima de tudo, a de que
“fazem algo” não apenas explicitamente pela segurança individual dos
governados mas, por extensão, também pela garantia e certeza deles- e
fazê-lo de uma forma altamente dramática, palpável, visível e tão
convincente (BAUMAN, 1999. p. 127).
Um dos indícios de que punir mais não é a solução é o fato de que, em
países como os Estados Unidos, o qual tem um direito penal máximo, um direito
de lei e ordem, os números indicam que mais punição e punição com privação
de liberdade não tem resolvido a situação.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população
viva nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os
que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5
milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil
são 300 presos por 100 mil habitantes. [...]. O paradoxo dos EUA é que
em 75, quando Regan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham
100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 manos, a taxa multiplicou-se
1179
por oito. [...]. Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo
social. Essa é a questão. [...]. Uma regra que ajudou a aumentar a
população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora.
Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser
pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência
para tratá-lo. Vamos eliminá-lo. [...]. Dos 180 e poucos países do mundo,
não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na
Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes. Há 30 anos, porém,
eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso
acontece na Ásia, na África, em países que não se comparam com os
EUA e a Europa. (..). Mas hoje as pessoas acham que o direito penal
que castiga mais tem mais eficiência. (PAVARINI).
É claro que não se pode deixar de mencionar que, infelizmente, as
pesquisas também são manipuláveis, e por isso, há um grande número de
pesquisas com informações contraditórias a respeito deste tema, principalmente
sobre os números dos Estados Unidos.
Os números acima apontados apenas materializam o que foi dito até o
momento neste artigo: punir mais nunca foi e provavelmente nunca será a
solução para diminuir a criminalidade. Essa atitude apenas faz com que o medo
seja estruturado na Sociedade. Se as expectativas sociais são no sentido de
reduzir a criminalidade, é preciso encontrar uma maneira de gerenciar estas
comunicações de infrações da lei e medo, e a prisão já se mostrou insuficiente
para isso, ao menos no formato atual.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A expansão do Direito Penal é um fenômeno global que tem efeitos
nefastos, embora receba a nomenclatura de simbólica. Portanto, um primeiro
ponto precisa ficar claro: simbólico nesta circunstância é apenas a sensação de
que o problema da criminalidade terá fim. Os efeitos advindos deste tipo de
legislação são bem reais e causa o rompimento de estruturas da sociedade.
Com efeito, em busca de uma expectativa cognitiva de segurança, além
da administrativização, outro fenômeno que se apresenta é o aumento
exorbitante de penas para crimes que já se encontravam tipificados em leis
anteriores e no próprio Código Penal, ou ainda a previsão de institutos, como o o
Regime
Disciplinar
Diferenciado.
É
o
Estado
Democrático
de
Direito
1180
compactuado com o modelo do Direito Penal máximo e com elementos que mais
se assemelham a um Direito Penal do Inimigo.
Por trás de tudo isso, tem-se a mídia. Não há negócio mais lucrativo do
que jogar com o medo das pessoas. E é exatamente isso que a mídia faz. Como
foi demonstrado, os meios de comunicação de massa utilizam-se de artifícios
que vão desde a inocente manipulação de fatos através de recursos
tecnológicos até, a identificação dos espectadores com os fatos narrados,
passando, algumas vezes, pela completa distorção dos acontecimentos e dos
números que o envolvem.
E essa manipulação dos fatos e a forte influência que a mídia exerce na
população é que acaba por fomentar a expansão do Direito Penal. A mídia com
seus discursos eficientista incute nas pessoas a necessidade de que haja mais
punição porque a violência está descontrolada e por todos os lados, em todos os
lugares. Nada mais está seguro e a única forma de se resolver isso é com mais
punição e punição que afaste esses delinquentes das ruas em que o cidadão de
bem transita.
Em razão de todos esses acontecimentos, é que se tentou demonstrar
que ideologias como “punir mais é melhor” ou “apenas a pena de prisão pode
resolver o problema da criminalidade”, frases essas que são plantadas pela
mídia, são falsas e não passam exatamente disso: de mitos.
A realidade é que mais punição ou punição através da privação de
liberdade historicamente já se mostraram insuficientes e ineficazes. Necessitase de um Direito Penal sério e comprometido, no qual se busque um processo
de punição adequado, não só para crimes de apelo popular.
Não se quer negar que a criminalidade existe. Ela de fato existe e cresceu
muito nos últimos anos. Efetivamente, é preciso ter receio. Agir com cautela e
gerenciar condutas e comunicações de risco. O que não pode acontecer é
aceitar uma manipulação dos fatos, para incutir um medo descabido que é
usado a serviço de interesses individuais.
1181
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1184
CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA DESDE A VITIMIZAÇÃO: ABORDAGEM
CRÍTICA A PARTIR DOS DADOS ESTATÍSTICOS DE HOMICÍDIOS DE
HOMOSSEXUAIS NO BRASIL NO ANO DE 2013
Valquiria P. Cirolini Wendt,
RESUMO: O texto analisa os dados estatísticos sobre homicídios de
homossexuais, apresentados a partir de levantamento de dados pelo Grupo Gay
da Bahia – GGB, que apontam o Brasil na primeira colocação no ranking mundial
de homicídios homofóbicos em 2013. Desde essa percepção, não oficial, e no
contexto das mobilizações sociais e da Criminologia, discute-se sobre os altos
índices ser um dos principais argumentos utilizados na campanha pela
criminalização da homofobia. Ainda, questiona a necessidade de produção do
Direito Penal, a fim de discutir se a estratégia normativa é a política adequada
para o enfrentamento do problema.
PALAVRAS-CHAVE: Homossexuais; Homofobia; Homicídio; Teoria Queer;
Criminalização.
1 INTRODUÇÃO
Há pelo menos três décadas o Grupo Gay da Bahia – GGB53 faz
levantamento de notícias relacionadas aos crimes de homicídios cometidos contra
homossexuais no Brasil. Essas informações são organizadas e, posteriormente,
divulgadas através de relatórios de dados estatísticos referente a este crime. O
Brasil vem sendo apontado como um dos líderes do ranking de países com
elevado índice de crimes homofóbicos54 contra lésbicas, gays, bissexuais,
53
O Grupo Gay da Bahia é a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos
homossexuais no Brasil. Fundado em 1980, registrou-se como sociedade civil sem fins lucrativos
em 1983, sendo declarado de utilidade pública municipal em 1987. É membro da ILGA, LLEGO,
e da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT). Em 1988 foi nomeado
membro da Comissão Nacional de AIDS do Ministério da Saúde do Brasil e desde 1995 faz parte
do comitê da Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC).
Ocupa desde 1995 a Secretaria de Direitos Humanos da ABGLT, e desde 1998 a Secretaria de
Saúde da mesma (GGB, 2003, s/p).
54
Crime homofóbico é praticado “por um não homossexual, tendo como motivo ou inspiração do
crime o fato da vítima pertencer a uma minoria sexual socialmente estigmatizada e
extremamente vulnerável, ou por ostentar um estilo de vida diferenciado” (CARVALHO, 2014, p.
265).
1185
transexuais, travestis e transgêneros – LGBTs. Essas pesquisas trazem
resultados que apontam um aumento desse crime a cada novo período
observado.
No entanto, é necessário resaltar que esses dados não são oficiais55; ao
contrário, são obtidos através de levantamento de notícias vinculadas na mídia
sobre crimes praticados contra homossexuais, principalmente em relação ao
crime de homicídio, pois não há uma apuração oficial a respeito desses
“números”, de modo que, eles podem ser ainda maiores ou não56.
Diante destes resultados, há aumento das manifestações para que seja
criminalizada a homofobia no Brasil, sendo apontada esta como a principal
maneira de diminuir os homicídios contra homossexuais no país.
Neste contexto será analisado, a partir da importância destes dados, a
atuação da mídia e a pressão da população (a favor ou contra), o porquê da
criminalização da homofobia ainda não ter sido aprovada. Seria o direito penal,
utilizado como um mecanismo de contingenciamento jurídico, realmente
fundamental para haver uma redução do número de casos, ou melhor, a política
adequada para o enfrentamento do problema seria a estratégia normativa?
Deste modo, pretende-se analisar, a partir dessas questões, se a opção da
criminalização da homofobia é a única ou a forma mais adequada a ser utilizada
para se alcançar o reconhecimento dos direitos dos homossexuais ou são
necessárias outras políticas públicas por parte de Estado.
2
PANORAMA
SOBRE
OS
DADOS
ESTATÍSTICOS
(NÃO
OFICIAIS)
RELATIVOS A HOMICÍDIOS DE HOMOSSEXUAIS NO BRASIL NO ANO DE
2013
55
No momento em que é realizado o registro policial em Boletins de Ocorrência (BOs) referente ao
crime de homicídio não há nenhum “campo” específico para que seja indicada a homofobia como
um motivo presumido, deste modo, com a falta desse dado, não há como se obter um
levantamento oficial de quantas situações de violência acontece por motivação homofóbica. Os
casos registrados são todos através de coletivos e organizações não governamentais (ONGs)
(SANDER, 2014, s/p).
56
O fato de ser noticiada a morte (homicídio) de um homossexual não significa que a
causa/motivação para este crime tenha sido em razão da sua orientação sexual.
1186
Atualmente, muito se tem falado e escrito na mídia sobre casos de
violência envolvendo homossexuais, principalmente no que se refere ao crime de
homicídio. Dados estatísticos são divulgados com informações de que a cada ano
este tipo de crime vem aumentando consideravelmente.
Desde o início da década de 1980, movimentos sociais LGBTs (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros) no Brasil, em iniciativa
pioneira do Grupo Gay da Bahia, realizam o levantamento de notícias
relacionadas a homicídios cometidos contra a população LGBTs no sentido de
embasar estatísticas não oficiais sobre homofobia no Brasil. Estabeleceu-se, pois,
uma série histórica de dados que permite comparar, se não o número real de
assassinatos de caráter homofóbico no Brasil, pelo menos o volume de notícias
relacionadas a este tipo de crime na mídia brasileira (RELATÓRIO SOBRE A
VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA NO BRASIL, 2012).
O Grupo Gay da Bahia – GGB (2014) divulgou o Relatório Anual de
Assassinato de Homossexuais no Brasil (LGBT) relativo ao ano de 2013,
informando que foram documentados 312 assassinatos de gays, travestis e
lésbicas no Brasil, apontando que:
[...] a cada 28 horas um homossexual brasileiro foi barbaramente
assassinado em 2013, vítima da homofobia. Nunca antes na história
desse país foram assassinados e cometidos tantos crimes homofóbicos.
A falta de políticas públicas dirigidas às minorias sexuais mancha de
sangue as mãos de nossas autoridades. E 2014 começa ainda mais
sanguinário: só neste último Janeiro foram documentados 42 homicídios,
um a cada 18 horas [...].
Ainda de acordo com o referido relatório, o Brasil continua sendo o
campeão mundial de crimes homo-transfóbicos: segundo agências internacionais,
40% dos assassinatos de transexuais e travestis no ano passado foram
cometidos no Brasil. A região nordeste continua sendo a mais homofóbica do
Brasil, concentrando 43% das mortes, seguido de 35% no Sudeste e Sul, 21% no
Norte e Centro Oeste. Pernambuco e São Paulo são os estados com maior
número de casos e os estados do Acre e Espírito Santo onde menos casos foram
registrados. No Rio Grande do Sul, por sua vez, foram detectadas 1,16 mortes
para cada milhão de habitantes.
Deste modo, embora os dados sobre homicídio possam sugerir um
aumento da violência “antigays” no Estado, sendo apontado que em 2013 foram
1187
13 casos de homicídios de homossexuais no RS, isso não quer dizer que os
gaúchos estejam entre os mais homofóbicos do país. Comparando-se o número
de registros com o tamanho da população, o Rio Grande do Sul fica abaixo da
média nacional de 1,55 mortes por milhão de habitantes (GONZATTO, 2014).
Foi traçado o perfil dessas vítimas e verificou-se que 7% dos LGBTs tinham
menos de 18 anos quando foram assassinados; 31% tinham menos de 30 anos e
10% mais de 50 anos. A faixa etária considerada com maior risco de assassinato
(55%) está entre 20-40 anos.
Outro dado observado é quanto à violência extremada com que este tipo
de crime é cometido, confirmando, desse modo, o que a Vitimologia costuma
chamar de “crime de ódio”. Dos 312 homicídios analisados no relatório, a maioria
foi praticado com arma branca e, em segundo lugar, com arma de fogo. Também
foram identificadas mortes por espancamento, asfixia, fogo, entre outros meios.
Da mesma forma, traçou-se o perfil dos assassinos, embora com maior
dificuldade diante da falta de dados, uma vez que apenas ¼ dos homicidas foram
identificados nos inquéritos policiais. Entre os identificados, cerca de 17% tinham
menos de 18 anos e 85% abaixo de 30 anos. Deste modo, como apontado pelo
relatório do GGB (2014), fica demonstrado como é alto o índice de homofobia
entre os jovens. Outro dado que chama a atenção é em relação ao fato de que
1/5 desses crimes terem sido praticados por 2 a 4 homens e, assim, fazendo com
que a defesa da vítima se tornasse ainda mais difíceis.
No entanto, cumpre-nos observar, que os dados foram pautados em
notícias coletadas pelo Grupo Gay da Bahia, referentes aos casos ocorridos
durante o ano de 2013. É não consta nenhum dado ou confirmação oficial desta
estatística, muito menos de como as polícias militares e civis costumam atender e
tratar esses casos. Deste modo, estes números ainda podem ser diferentes,
maiores ou menores, já que nem sempre a orientação sexual foi a razão do crime,
e um grande número de outros casos não entra nessa estatística porque a vítima
esconde sua condição ou, simplesmente, o crime não virou notícia.
Nesse sentido, afirma o secretário-geral do Nuances – Grupo pela Livre
Expressão Sexual –, Célio GolIn:
1188
Faltam dados mais concretos. Por isso, uma das nossas batalhas é que
a polícia tenha um olhar mais direcionado, ao registrar a ocorrência
desse tipo de crime, se a motivação pode ter relação com a
homossexualidade para que isso apareça claramente no inquérito
(GONZATTO, 2014).
Ao analisar estes dados, Luiz Mott, antropólogo da Universidade Federal
da Bahia (GONÇALVES, 2014), considerado um dos pioneiros do movimento no
País, relatou que “nunca se matou tantos gays e, sobretudo, lésbicas, que teve
um número muito maior de assassinatos do que em anos anteriores”. Para Mott, a
única forma de redução dos crimes de homicídio de homossexuais seria a
criminalização da homofobia.
Para o Presidente do GGB, Marcelo Cerqueira (MOTT; ALMEIDA;
CERQUEIRA, 2010), há quatro soluções emergenciais para a erradicação dos
crimes homofóbicos:
[...] educação sexual para ensinar aos jovens e à população em geral o
respeito aos direitos humanos dos homossexuais; aprovação de leis
afirmativas que garantem a cidadania plena da população LGBT,
equiparando a homofobia e transfobia ao crime de racismo; exigir que a
Polícia e justiça investiguem e punam com toda severidade os crimes
homo/transfóbicos e finalmente, que os próprios gays, lésbicas e trans
evitem situação de risco, não levando desconhecidos para casa e
acertando previamente todos os detalhes da relação. A certeza da
impunidade e o estereótipo do gay como fraco, indefeso, estimulam a
ação dos assassinos.
Segundo o antropólogo Osvaldo Fernandez (2011) “será com a
criminalização da homofobia e com uma política de educação sensível à
diversidade sexual que conseguiremos transformar o contexto das atuais
violações dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil.”
Com relação à criminalização da homofobia, havia o Projeto de Lei da
Câmara (PLC) 122/2006 tramitando no Congresso Nacional há mais de uma
década e foi arquivado recentemente (SENADO FEDERAL, 2015a). Sobre o tema
da criminalização, voltar-se-á a discuti-lo posteriormente.
3 HOMOFOBIA SOB O OLHAR DA TEORIA QUEER
A teoria queer surge da cultura intelectual gay e lésbica a partir da metade
dos anos 1980, inspirada especialmente pela crítica ao modelo de definição das
identidades sexuais e de gênero como estáveis e fixas (heteronormatividade).
1189
Ainda, procura concentrar-se menos às identidades e mais nas práticas sexuais,
incluindo, dessa forma, tanto travestis e drag queens, quanto sadomasoquistas
etc. (FURLANI, 2009).
O termo queer foi mantido no vernáculo inglês por assim já estar
consolidado, entretanto, poderíamos traduzi-lo de várias formas, segundo Salo de
Carvalho:
[...] como um adjetivo, se aproxima de estranho, esquisito, excêntrico ou
original. Como substantivo normalmente é traduzido como homossexual;
mas o seu uso cotidiano e a sua apreensão pelo senso comum denotam
um sentido mais forte e agressivo, com importantes conotações
homofóbicas: ‘gay’, ‘bicha’, ‘veado’, ‘boneca’ (CARVALHO, 2014).
Diferente não é o que acentua Anzaldúa (2009, p. 207), ao conceituar o
termo queer:
Como es sabido, el término <<queer>> es rico em connotaciones. Si bien
designa lo <<raro>> o <<extraño>> es también la palabra usada para
designar de forma peyorativa a lãs personas homosexuales. Em esos
casos, se há preferido La traducción al español. Sin embargo, queer
adquiere también um uso político, y deviene um término que se apropia
del insulto para reivindicar el carácter subversivo de toda práctica que
desestabilice la moralidad convencional. Em los casos em que La
palabra tiene este sentido, y dado que no hay um término em español
que permita.
Portanto, queer engloba termos que são utilizados para insultar, falar mal e
se referir aos homossexuais. Embora toda a sua carga de estranheza e de
deboche, é assumido pelo movimento homossexual como uma forma de protesto
contra a normalização e à estabilidade das propostas pela política de identidade.
Deste modo, “queer passa a ser, também o sujeito da sexualidade desviante –
bissexuais, homossexuais, transexuais, travestis, drag queens” (MASIERO,
2013).
Esta teoria surge como uma forma de chamar a atenção para o fato de
como uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual
ela pretende se insurgir e para isto se utiliza como foco principal a crítica à
oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central
que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos.
Dentro deste contexto de protesto, segundo Miskolci (2009, p. 169), é que
surge a teoria queer no fim da década de 1980 nos Estados Unidos com uma
proposta de mudança de foco dos estudos de minorias que caracterizaram a
maioria dos empreendimentos na sociologia para os processos de construção da
1190
sexualidade a partir da díade hetero/homossexualidade. Ainda, para o autor, “o
queer mantém, portanto, sua resistência aos regimes de normalidade, mas
reconhece a necessidade de uma epistemologia do abjeto57, baseada em
investigações interseccionais” (MISKOLCI, 2009, p. 173). Deste modo, com as
pesquisas sociológicas focadas nos processos normalizadores resultariam na
criação das identidades e sujeitos subordinados.
Neste sentido, como já mencionado, a teoria queer, surge como forma de
oposição dos homossexuais com relação às instituições políticas tradicionais
quanto à normalização e à estabilidade das propostas de política de identidade
sexuais julgadas como “normais”, ou seja, a heteronormatividade e buscam ser
reconhecidos como sujeitos de direitos.
4 A HOMOFOBIA E SUA CRIMINALIZAÇÃO
Antes de adentrar no estudo sobre a criminalização da homofobia, a
primeira questão a ser enfrentada é acerca do significado e da extensão do termo
homofobia. Este termo é geralmente utilizado para descrever uma atitude de
hostilidade contra homossexuais, tanto homens quanto mulheres. Segundo Borillo
(2010):
Homofobia pode ser definida como hostilidade geral, psicológica e social,
contra aqueles e aquelas que, supostamente, sentem desejos ou têm
práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica
do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles que não se
conformam com o papel predeterminado para seu sexo biológico.
Construção ideológica que consiste na promoção constante de uma
forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo), a
homofobia organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa
postura, extrai consequências políticas.
Ou seja, vivemos em uma sociedade em que a sexualidade “normal” em
nosso meio é a heterossexual e, desta forma, constitui-se um padrão
heteronormativo de mundo, onde há uma cultura que busca condicionar
57
Segundo Butler (2010, p. 155), “o abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’, e
‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não
gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável” é necessário para que o
domínio do sujeito seja circunscrito. […] Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da
força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao
sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, ‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante
repúdio”.
1191
determinados comportamentos que visam à heterossexualidade e, deste modo,
todas as outras orientações sexuais são vistas como anormais, desviantes,
problemáticas, sendo, na melhor das hipóteses, entendidas como “diferentes”
(WELZER-LANG, 2001).
Insatisfeita com esta situação e diante da apresentação de dados
estatísticos que revelam, senão o aumento do número real de assassinatos de
caráter homofóbico no Brasil, pelo menos o aumento no volume de notícias
relacionadas a esse tipo de crime na mídia brasileira, a comunidade dos Gays,
Lésbicas, Travestis e Transexuais mobiliza-se há muito, com o fito de conseguir
tutela estatal58. Uma das propostas é a utilização do Direito Penal, criminalizando
condutas que se relacionem com o preconceito em virtude da orientação sexual.
Neste sentido, o Coordenador da pesquisa realizada pelo Grupo Gay de
Bahia há mais de três décadas, Luiz Mott lamenta que, diferentemente de países
como Argentina e Chile, onde o Legislativo e o Executivo abraçaram a causa, o
Congresso brasileiro nunca tenha aprovado uma lei para os cidadãos LGBT.
Nossa última esperança continua sendo o Poder Judiciário, disse Mott,
assinalando que, em dezembro passado, a criminalização da homofobia
sofreu mais um golpe, ao ser excluído do texto do novo Código Penal
(PLC 122) em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)
do Senado Federal (FRANÇA, 2012, s/p).
Conforme referido anteriormente, com relação à criminalização da
homofobia havia o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122/2006, que buscava
definir como crime a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero
alterando a norma incriminadora dos arts. 1º, 3º, 4º, 8º e 20, da Lei 7.716/89, bem
como § 3º do art. 140 do Código Penal. Este projeto vinha tramitando no
Congresso Nacional há mais de uma década59 e, por ter passado mais de duas
legislaturas sem decisão, o PLC foi arquivado e o assunto poderá ser pauta no
58
A criminalização da homofobia tem sido a pauta da maioria dos movimentos sociais dos
homossexuais, especialmente os conhecidos como “Parada Gay”, exemplo que ocorreu na
Parada Gay de São Paulo, em 2014, com o lema "País vencedor é país sem
homolesbotransfobia. Chega de mortes! Pela aprovação da lei de identidade de gêneros!",
militantes cobraram a criminalização da homofobia e mais direitos para os transgêneros
(ESTARQUE, 2014, s/p).
59
Este projeto foi apresentado na Câmara em 2001, pela deputada Iara Bernardi (PT/SP), e lá
aprovado em 2006, quando então seguiu para o Senado onde ficou aguardando ser votado até o
início deste ano de 2015, quando foi arquivado (SENADO FEDERAL, 2015a).
1192
projeto de reforma do Código Penal - PLS nº 236/2012 (SENADO FEDERAL,
2015b).
Esta situação torna-se curiosa, na medida em que, ao se analisar a política
criminal brasileira dos últimos anos, percebe-se uma crescente tendência à
expansão penal, com uma grande facilidade, por parte do parlamento, na
aprovação de leis penais, pois os legisladores se deixam levar pela empolgação
da mídia e a grande pressão exercida pela sociedade exaltada pelo sentimento de
medo e insegurança e acabam por criar novos tipos penais de forma precipitada e
sem uma discussão devida da matéria60.
Como já mencionado, apesar da forte campanha, seja pela mídia (através
de divulgações constantes de violência contra homossexuais, especialmente o
crime de homicídio), seja por parte dos movimentos sociais dos LGBTs e parte da
população, para que a homofobia seja criminalizada, não foi o suficiente e, após
mais de uma década esperando por aprovação, o projeto acabou sendo
arquivado. Uma explicação para isto pode ser intensa oposição de bancadas
conservadoras, particularmente a religiosa com a matéria do PLC nº 122 e, ainda,
a contrariedade de grande parte da sociedade que, por consequência dos
preconceitos internalizados e crenças religiosas que se declaram como verdades
absolutas, a admitir que os homossexuais sejam protegidos de uma maneira
específica, como se fez com a lei de criminalização do racismo e/ou da Lei Maria
da Penha (tratamento processual especial à violência doméstica). Não se admite
no Brasil que a um negro possam ser atribuídas “características” negativas, mas
aqueles acham válido fazer esse exercício a respeito de gays, lésbicas,
bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (BAHIA e SILVA, 2015, s/p).
No entanto, embora tenha ocorrido o arquivamento do PLC nº. 122/2006,
ainda persiste o intento na criminalização e a pergunta que se impõe, nas
palavras de Salo de Carvalho, é quanto à legitimidade jurídica (constitucional) e
política da tutela da livre orientação sexual e da identidade de gênero, ou seja, “se
60
A produção legislativa penal brasileira caminha simultaneamente às pressões exercidas pelos
veículos de comunicação em massa. Ocorre que essa produção não vem sendo acompanhada
de avanços positivos, em virtude de o legislador atuar de forma imediatista, tentando ceder aos
apelos da Mídia. A guerra comunicacional prejudica sobremaneira os profissionais do direito que
se veem diante de leis espalhafatosas, produzidas diante do clamor popular ensejado por casos
criminais célebres (MASCARENHAS, 2010, s/p).
1193
é legítimo no Estado Democrático de Direito diferenciar os crimes em geral
daqueles praticados por preconceito ou discriminação de orientação sexual ou
identidade de gênero” (CARVALHO, 2012). Quanto a esta questão, ainda, a
posição do autor:
Desde este ponto de vista (garantista), não percebo a priori como
ilegítima a diferenciação qualitativa dos crimes homofóbico dos demais
crimes. Entendo justificável, do ponto de vista da tutela dos direitos
fundamentais, a motivação homofóbica adjetivar condutas que implicam
em danos concretos a bens jurídicos tangíveis, como a vida (homicídio
homofóbico), a integridade física (lesões corporais homofóbicas) e a
liberdade sexual (violação sexual homofóbica). Inclusive porque estes
bens jurídicos invariavelmente integram a restrita pauta de criminalização
defendida nos programas de direito penal mínimo. Retorno (e adapto),
portanto, uma conclusão que externei em outro momento, relativa ao
debate sobre violência contra a mulher: a mera especificação da
violência homofóbica em um nomem juris próprio designado para
hipóteses de condutas já criminalizadas não produz o aumento da
repressão penal, sendo compatíveis, inclusive, com as pautas políticoscriminais minimalistas (CAMPOS e CARVALHO, 2011, apud
CARVALHO, 2014, p. 269).
De qualquer modo, trata-se de uma questão muito polêmica, devendo ser
amplamente debatida, como deveria ser, a propósito, de toda e qualquer
legislação criminal, sobretudo a que pretenda instituir novos tipos penais, haja
vista o elevado potencial de carregar consigo graves prejuízos políticos-criminais
(MASIERO, 2013).
Ainda que se entenda como legítima a criminalização da homofobia, ela
não resolve o problema, porque se deve avaliar qual estratégia normativa seria a
mais adequada ao tratamento da matéria, tendo em vista as linhas já traçadas do
que se entende como forma legítima de tutela penal diante do problema da
população LGBTs (MASIERO, 2013).
Na avaliação de Carvalho (2014) uma reflexão sobre experiências penais
de matérias semelhantes em vigor no Brasil se faz necessária, neste caso, da Lei
n. 7.716/1989 (crimes raciais) e Lei n. 11.340/2006 (Lei da Violência Doméstica),
por se tratar de dois cases distintos em termos de criminalização, e, que são
referenciais.
É interessante notar as distintas configurações dos projetos políticoscriminais a partir da consolidação normativa das reivindicações do
movimento negro e do movimento de mulheres. A Lei 7.716/89
simplesmente nomina as condutas lesivas resultantes de preconceito de
raça e ou de cor e as insere dentro do tradicional sistema repressivo, ou
1194
seja, trata-se de uma inovação de tipos incriminadores no âmbito do
direito penal.
Em sentido distinto, a Lei 11.340/06 projetou a construção de um novo
modelo de gestão de conflitos, com a intenção de superar e ultrapassar
as estruturas dogmáticas que reduzem os problemas às esferas penal e
civil [...] (CARVALHO, 2014, p. 269).
Mais recentemente, houve aprovação da Lei nº 13.104/2015, prevendo o
feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, portanto
inserindo inciso VI no art. 121, § 2º, do Código Penal, quando o delito é cometido
“contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Também, alterou o
art. 1º da Lei nº 8.072/1990, incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Portanto, mesma estratégia utilizada na Lei dos Crimes Raciais, Lei nº
7.716/1989, conforme a reflexão de Carvalho (2014, p. 269), já exposta
anteriormente, qual seja, apenas se nominou novas condutas de violência contra
a mulher e as inseriu dentro do “tradicional sistema repressivo”. Já há quem
defenda ser inconstitucional a previsão do feminicídio (COSTA, 2015, s/p).
Deste modo, o PLC nº 122/2006, com proposta de alteração da Lei nº
7.716/89 como forma de inclusão dos termos relativos à orientação sexual e à
identidade de gênero (criminalização da homofobia) não foi a mais adequada.
Melhor seria seguir um caminho próprio, que tivesse criatividade para romper a
racionalidade penal moderna, ou seja, no sentido de se apropriar do poder
simbólico que o direito penal exerce perante a cultura social punitivista e utilizá-lo
de forma a produzir o menor dano possível, dentro de uma pauta racional e
democrática de política criminal (MASIERO, 2013). Este também é o
entendimento de Salo de Carvalho:
[...] o problema da criminalização da homofobia no Brasil reside na
estratégia utilizada pelo movimento LGBTs. Não vejo problemas de
legitimidade jurídica ou de incompatibilidade com o projeto políticocriminal garantista se a forma de nominação (nomenjuris) de o crime
homofóbico ocorrer apenas através da identificação de certos crimes em
decorrência da motivação preconceituosa ou discriminatória quanto à
orientação sexual – por exemplo, especificação da violência homofóbica
nas estruturas típicas do homicídio, da lesão corporal, do
constrangimento ilegal, do estupro. A técnica legislativa poderia ser
restrita à identificação desta forma de violência – sem qualquer
ampliação de penas, objetivando exclusivamente dar visibilidade ao
problema – através da remissão da sanção ao preceito secundário do
tipo penal genérico [...]. No máximo, seguindo o caminho trilhado pela Lei
Maria da Penha, a inserção da motivação homofóbica como causa de
aumento de pena no rol das agravantes genéricas. (CARVALHO, 2014,
p. 270).
1195
Mesmo que se considere o direito penal como um meio de poder facilitar e
impulsionar a mudança relativamente à imagem social da comunidade LGBTs,
pois a tipificação da homofobia daria um efeito simbólico (em inúmeros casos o
efeito simbólico é o único que a criminalização possui), porém ele será ineficaz se
não for acompanhada por um trabalho pedagógico, no sentido de demonstrar à
população que a sexualidade heterossexual não é incontestável e tampouco
compartilhada por todos e que a hierarquia de sexualidades é tão detestável
quanto à de raças. Dessa maneira, compreende-se que não precisa,
necessariamente, ser utilizado o direito penal, pois as políticas antidiscriminatórias
não punitivas de reconhecimento dos direitos civis representa um impacto político
muito maior do que qualquer criminalização, pois conseguem quebrar com muito
mais vigor o preconceito e, contribuir, assim, para a diminuição da violência
(CARVALHO, 2014).
Portanto, embora prepondere a “vontade social” de criminalização da
homofobia, deve-se ter em conta aspectos outros que representem a fuga do
direito penal como único mecanismo capaz de satisfazer e contingenciar os riscos
relacionados à opção sexual diferente da heterossexual, riscos estes resultantes
da não aceitação da diferença, da não concordância com os “outros”
comportamentos sexuais, no caso os homossexuais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, buscou-se realizar a análise de dados estatísticos divulgados pelo
Grupo Gay da Bahia, referentes aos homicídios de homossexuais ocorridos no
ano de 2013 no Brasil a partir de levantamento de casos noticiados na mídia e
que apontam o Brasil na primeira colocação no ranking mundial de homicídio
homofóbico no período analisado e, também, observou-se que estes dados são
“usados” como um dos principais argumentos na reivindicação pela criminalização
da homofobia.
Realizou-se, de forma sucinta, uma abordagem sobre a teoria queer que
surgiu no final da década de 1980, como uma forma de chamar a atenção para as
reivindicações dos homossexuais e, também, como uma forma de criticar o
1196
modelo de identidades sexuais e de gênero tidos como “normais”, ou seja, a
heterossexualidade.
Como foco principal deste artigo, foi abordada a questão da criminalização
da homofobia, discutindo-se sobre o projeto legislativo que se encontrava em
pauta no Congresso Nacional, os possíveis motivos que fizeram com que esse
projeto permanecesse por mais de uma década tramitando e que acabou sendo
arquivado sem que fosse votado. A tendência é que este tema volte a ser
apresentado, entretanto, salienta-se que, caso não seja debatido e sua análise
realizada adequadamente com base nos dados não apenas divulgados pela
mídia, mas correlacionado com os dados oficiais, poderá conduzir a uma decisão,
gerida pela demanda social, mesmo que específica, que cultue o comando
normativo penal, ou seja, de se criar um contingenciamento da homofobia que
leve a expansão do direito penal, com mais crime e mais pena.
Dessa maneira, ainda que se entenda que a utilização da lei possa ser uma
forma de facilitar e impulsionar os direitos almejados pela comunidade LGBTs,
pois a nominação da homofobia como crime daria um efeito simbólico, isto não
bastaria para evitar a discriminação, pois não será a criminalização da homofobia
que vai fazer com que os homofóbicos deixem de ter preconceitos. Ao contrário,
vão procurar outras formas de manifestar esse sentimento que não pela via da
agressão verbal ou física.
As pessoas tendem a acreditar nessa expansão do Direito Penal como
única alternativa para amenizar o sentimento geral de impunidade, influenciados
pelas estatísticas e notícias divulgadas através da mídia (muitas vezes
especulativa), elementos que afirmam, e não necessariamente comprovam a
existência de um grave problema pendente de solução.
No entanto, é preciso muito mais que a atuação coercitiva do Estado
através do direito penal, pois se trata de um problema de origem social e, para
isso, é necessária a atuação do Estado através de políticas antidiscriminatórias
não punitivas e de reconhecimento dos direitos civis o que representará um
impacto político muito maior do que qualquer criminalização, pois conseguem
quebrar com muito mais vigor o preconceito e, contribuir, assim, para a diminuição
da violência.
1197
Deste modo, conclui-se, que não é a criminalização de práticas
discriminatórias que fará diminuir estas atitudes e, consequentemente, os índices
de violência contra os homossexuais, mas sim, por meio de mecanismos de
conscientização e reconhecimento das diferenças será possível alcançar uma
igualdade de direitos.
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1199
A SOCIEDADE DO RISCO, A MODERNIDADE REFLEXIVA E A
REFLEXIVIDADE DO DIREITO CONTEMPORÂNEO: OS CLAMORES DA
EFICÁCIA E A CONTEXTUALIZAÇÃO DO JURÍDICO
Natalia Brigagão Ferrer Alves Carvalho,
RESUMO: Há décadas, a sociologia vem apontando profundas mudanças na
dinâmica social, que afetam da escala regional à internacional. O movimento
duplo de contingência e internacionalização inerente ao aprofundamento da vida
globalizada constitui um inevitável incremento à complexidade das relações
intersubjetivas e intercoletivas, e a percepção de que os velhos mecanismos
legais do direito positivo moderno clamam por revisões é cada vez mais forte. O
Direito passa, hodiernamente, por uma crise estrutural e fundamental. Sob esta
percepção e a partir dos estudos de Ulrich Beck, este trabalho objetiva analisar as
consequências impostas pela “Sociedade do Risco” ao universo jurídico,
orientando-se a partir de uma revisão bibliográfica crítica, centrada nos estudos
de Ulrich Beck e seus livros "Sociedade do Risco: rumo a uma nova
modernidade" e "O que é Globalização?", com o suporte de outros autores tais
como Eduardo C. B. Bittar e seu "O Direito na Pós-Modernidade". É perceptível,
pela análise das colocações destes autores, a necessidade de construção
permanente de uma reflexividade do Direito em uma Modernidade Reflexiva,
tendo como norte a eficácia. É imprescindível, assim, a constante construção de
um universo jurídico dialógico e teleologicamente orientado, fundado nas
necessidades concretas que ultrapassam os sistemas binários do Direito Estatal,
tendo como pedra de toque um arcabouço de Direitos Humanos e Fundamentais
de sólida teoria e desenvolvidos artifícios hermenêuticos.
PALAVRAS-CHAVE:
Direito
Contemporâneo;
Globalização; Sociedade de Risco
Modernidade
Reflexiva;
1 INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, um expressivo número de
sociólogos passou a alertar acerca de mudanças fundamentais e estruturais nas
formas de organização social, que, para muitos, constituíam uma transição para
uma nova era; para outros, representavam a reciclagem dos parâmetros de
ordenação da modernidade. Em geral, essa corrente teórica é identificada como
1200
“pós-modernismo” – expressão posta por Lyotard –, sendo que há variantes na
utilização da expressão de acordo com a interpretação dos fenômenos indicados
– lembremos da Modernidade Liquida de Bauman e da Modernidade Reflexiva de
Ulrich Beck. Como coloca Bittar,
A pós-modernidade é discutida menos como um anseio teórico ou um
fetiche acadêmico e mais como um estado de coisas assumido, pois
inevitável, presente e fortemente sentido pela sociedade, como um
conjunto de mutações que vêm sido provocadas em diversas dimensões,
projetando-se em abalos marcantes sobre os conceitos modernos, sob o
manto dos quais se conduzia a vida, se organizavam as instituições, se
agia socialmente, se estruturavam os relacionamentos humanos, se
concebiam as regras morais e jurídicas etc. (BITTAR, 2014, p.1).
Os fenômenos da globalização são discutidos por cada corrente em seu
particularismo, mas o que é consensual é que os modos de vida desse novo
tempo se diferenciam e muito daqueles de algumas décadas atrás e isto impõe
uma reavaliação dos parâmetros de convívio, da ética e das instituições, na forma
de uma transição paradigmática [...] cujo perfil é ainda imperscutável e até
imprevisível. Trata-se de um longo processo caracterizado por uma suspensão
‘anormal’ das determinações sociais que dá origem a novos perigos, riscos e
inseguranças, mas que também aumenta as oportunidades para a inovação, a
criatividade e a opção moral (SANTOS, 2001, p. 186). Como afirma Bittar,
Em lugar das certezas modernas (verdade, ciência, ordem, regra, poder
central, norma, código, capital, produção, propriedade, sistema[...]), um
outro quadro se instaura em seu lugar, indícios e características de crise
e mudança paradigmática, identificáveis a partir de algumas palavras:
desmantelamento, descompasso, desestruturação; desagregação;
banalização; abalo; incômodo; choque; contradição; desordem;
ilegalidade; contracultura; ineficácia. [...] Mas, no momento da crise
paradigmática, em plena expansão da crise, deve-se ter uma visão
otimista desse processo de reversão de padrões, captando-se em tudo
isto um momento privilegiado de reflexão, um momento de reavaliação
de valores, um momento de ouvir vozes dissonantes e, enfim, um
momento de transformar estruturas de justiça[...].”(BITTAR, 2014, p.146).
Neste contexto, o Direito ocupa uma posição estratégica e extremamente
delicada, preso entre as rígidas construções clássicas e as necessidades de um
palco cujos atores tem fobia à rigidez, mas clamam pela estabilização de seus
fluxos efervescentes, imprevisíveis, atordoantes e aparentemente incontroláveis.
Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do
tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não
nasceu. O desassossego resulta de uma experiência paradoxal: a
vivência simultânea de excessos de determinismo e excessos de
indeterminismo. [...] A coexistência desses excessos confere ao nosso
tempo um perfil especial, o tempo caótico onde ordem e desordem se
1201
misturam em combinações turbulentas. Os dois excessos suscitam
polarizações extremas que, paradoxalmente, se tocam. As rupturas e as
descontinuidades, de tão frequentes, se tornam toina e a rotina, por sua
vez, torna-se catastrófica (SANTOS, 2001, p. 41).
Há, portanto, uma metamorfose radical nas formas de interação e vivência,
cuja instabilidade gera cada vez mais desconforto. Isso multiplica a quantidade e
a complexidade dos conflitos e exaure os artifícios jurídicos clássicos, já
insuficientes, e muitas vezes indesejados por estarem no cerne da Modernidade –
situação originária que os tornaria responsáveis, em parte, pela própria situação
de desamparo dos novos tempos.61
Ao mesmo tempo em que cresce a demanda pela atuação reguladora do
direito, suas vias de oferta se esvaem, anêmicas, gerando uma crise de caráter
eficacial.62 Como afirma Faria, a decantada ‘crise’ jurídica ocorre, assim, no
61
“No fundo, se trata de perceber que as promessas da modernidade haveriam, paradoxalmente,
de conduzir à Auschwitz, este que pode ser considerado o trauma do século XX, quando os
ideais de Aufklarung (corrigir) do século XVIII, foram transformados em aparato para a realização
de tánatos. O pensamento de Freud não deixa de ser sensível a esta profunda contradição, o
paradoxo da civilização moderna ocidental. Esse movimento próprio da dialética da
modernidade, que ainda não cessou de operar, e que se desdobra com as mais recentes
transformações do capitalismo toyotista mundializado, continua a produzir efeitos. Desta forma é
que nosso tempo se torna uma sucessiva onda de manifestações de violência, atentados,
genocídios, guerras e forma de dominação, que torna a assinatura deste tempo muito mais afim
com a dimensão de tánatos do que de éros. Quando tánatos ecoa em nosso tempo, a condição
hodierna se vê marcada pela indelével marca da ressonância do medo, do temor, da violência,
do trauma psicossocial, de cujas ondulações não se pode libertar os indivíduos do hoje. Suas
ressonâncias tornam inaudíveis as vezes que falam a favor de éros. Trata-se, portanto, de
desmistificar a ideia moderna de progresso”. (BITTAR, 2014, p. 72) Sobre essa (des)mistificação,
Beck afirma que o “‘Progresso’ pode ser compreendido como uma transformação legítima da
sociedade sem legitimação político-democrática. A fé no progresso substitui o escrutínio. E mais:
ela é um substituto para os questionamentos, uma espécie de consentimento prévio sobre metas
e resultados que permanecem desconhecidos e indefinidos. Progresso é a tabula rasa assumida
como programa político, diante da qual se exige uma aceitação global, como se se tratasse do
caminho a ser seguido na Terra rumo ao paraíso celestial. As exigências fundamentais da
democracia são viradas de cabeça para baixo no modelo do progresso. [...] “A fascinação que o
deus substituto, o progresso, exercia sobre a humanidade na época da sociedade industrial
revela-se tanto mais surpreendente quanto mais de perto se contemple sua construção,
demasiado mundana. [...] O “progresso” é a transformação social institucionalizada na
irresponsabilidade.” (BECK, 2010, p.314-315)
62
Deve-se ressaltar, contudo, que não se pode atribuir a crise de eficácia exclusivamente aos
processos de metamorfose pós século XX. “As tentativas de formulação de novos paradigmas
normativos, a partir das exigências decorrentes do desenvolvimento capitalista, enfrentam,
assim, as tensões permanentemente existentes entre o comportamento real e a conduta
juridicamente exigida, bem como entre a conduta juridicamente exigida e a conduta moralmente
desejada. Mesmo porque, longe de se constituírem um problema, essas tensões estão na
essência do próprio papel do direito, enquanto instrumento de controle social, não podendo ser
1202
momento em que os mecanismos tradicionais de neutralização dos conflitos e
trivialização das tensões já não conseguem mais rechaçar aquelas ameaças.
(FARIA, 1988, p.90). Bittar ainda completa que
A crise de eficácia é um ponto de comprometimento da própria existência
e sobrevivência do contrato social, na medida em que a ausência ou
inoperância prática das instituições conduz a um profundo abismo entre
a legalidade e a facticidade das regras jurídicas. É desse abismo que se
nutrem as desavenças sociais, os desvios, as condutas antijurídicas [...].
A crise pós-moderna de eficácia do ordenamento jurídico tornou-se tema
de inúmeras reflexões na medida em que passou a representar um
problema francamente sistemático [...] capaz de significar a desrazão de
toda a arquitetura jurídica projetada para sua aplicação sobre a realidade
social. Quando o sistema jurídico não está permeável para absorver
identidades, mas apenas testemunha sua ampla defasagem em face dos
avanços tecnológicos, reconhecendo a impossibilidade de atender a
tantos e tão conflituosos fluxos de divergentes interesses, torna-se inábil
para cumprir sua fundamental meta de pacificação do convívio social e
da mediação regulamentada dos interesses sociais (convergentes e
divergentes). (BITTAR, 2014, p.154-169).
Todo esse peso exige que a ciência jurídica se reinvente pela autocrítica,
pela autoconstrução, tomando como referencial esta nova sociedade que se
articula, superando as dificuldades geradas pela erosão de valores, pela alteração
de parâmetros de comportamento, pela decrepitude e pela inadequação das
instituições aos desafios presentes, pelas mudanças socioeconômicas, bem como
pela explosão da complexidade provocada pela emergência de novos conflitos
socioinstitucionais, [...] e pelas alterações profundas nos modos tradicionais de se
conceber o ferramental jurídico (BITTAR, 2014, p.8).
Será que ainda se pode conviver, num contexto pós-moderno, com
fluxos ininterruptos de mudança social, com uma estrutura jurídica
inteiramente voltada para a neutralização, apenas ideológica, dos
paradoxos sociais? A função do Direito não poderia deixar de estar
sintonizada com as querenças e necessidades da sociedade do século
XIX, para estruturar-se, por ora, em torno de problemas conjunturais e
históricos sensivelmente mais agudos na contemporaneidade? Não
deveriam as estruturas conceituais dogmáticas e mas molduras
legislativas de adaptarem para servir à realidade sócio histórica da pósmodernidade, em vez do contrário ser o tentado pelos Tribunais? Os
paradigmas encontram-se em mutação, e os valores anteriormente
consagrados como nucleares para o sistema jurídico erodiram. (BITTAR,
2014, p. 67).
É sob esta perspectiva que este trabalho propõe-se a analisar os desafios
do Direito Contemporâneo a partir de um olhar geral sobre a ótica moderna
confundidas como simples distorções funcionais resultantes das diferenças entre o ritmo das
mudanças sociais e o ritmo da atualização e modernização dos códigos.” (FARIA, 1988, p. 89)
1203
reflexiva de Ulrich Beck – que aborda a percepção de que a modernidade se
encontra em um processo de autodissolução e rearranjamento, com base em
duas dialéticas da modernidade, as ambivalências do mais-moderno e do
antimoderno63.
Este estudo se desenvolve pela análise das concepções de Globalização e
Sociedade de Risco, chaves das duas principais obras do autor. Estas serão aqui
analisadas em dois momentos, cada um associado a um tipo predominante de
recomposição que traz desafios ao Direito – o primeiro à redinamização espacial,
o segundo, à redinamização temporal do comportamento humano.
2 A REDINAMIZAÇÃO ESPACIAL DA MODERNIDADE REFLEXIVA: O
DIREITO E A TOPOPOLIGÂMICA “GLOBALIZAÇÃO DAS BIOGRAFIAS”
Apesar das muitas divergências a respeito da exatidão do conceito de
globalização, é consenso que ela se associa aos fluxos internacionais de capitais,
mercadorias, informações e pessoas; representa, portanto, uma interconexão que
transcende os limites do espaço físico geográfico. Na interpretação de Ulrich
Beck,
A globalização significa: surgem alternativas de poder, de ação e de
percepção da vida social que desmontam e confundem a ortodoxia da
política e da sociedade nacional-estatal. [...] Os sonhos, as ambições, as
utopias cotidianas dos homens já não estão mais presas aos espaços
geopolíticos e às identidades culturais. (BECK, 1999, p.122-123).
Esses fluxos internacionais tão intensificados a partir do século XX,
potencializados pela virtualização do mundo, ocasionaram profundas mudanças
nas relações humanas, que, em termos espaciais, sofreram uma recomposição
em formato de rede dinâmica e complexa de sujeitos que interagem entre si,
presos entre as intersecções do global e do local. Na concepção de Beck,
63
“No primeiro caso, a vitória dos princípios básicos modernos gera crises nas instituições básicas
modernas. Há ao mesmo tempo crise e não-crise: a continuidade dos princípios modernos leva
à descontinuidade das instituições básicas. No segundo caso, a modernidade contraria seus
próprios princípios básicos. O autor cita o exemplo da bomba atômica. Da vitória da
modernidade criou-se uma arma de sua destruição, transformando o apocalipse, de uma visão
religiosa, em uma possibilidade real criada pelo progresso científico. Assim, do sucesso da
modernidade criaram-se os riscos globais, os quais colocam os princípios básicos da
modernidade à disposição: podem ser destruídos e essa possibilidade por si só já os destrói, em
parte.” (MOTTA, 2009, p. 394)
1204
Isto já havia disso entrevisto por Elizabeth Back-Gernsheim [...]:
‘[...]Trata-se, nestes casos, de histórias de vidas muito embaraçadas,
movediças e agitadas, que recusam um enquadramento nas categorias
já estabelecidas [...]’. [...] O local e o global, como argumenta Robertson,
não se excluem. Pelo contrário: o local deve ser compreendido como um
aspecto do global, Globalização também quer dizer: a conjunção e o
encontro de culturas locais que deverão ainda ser conceitualmente
redefinidas em meio a este ‘clash of localities’. Robertson propõe a
substituição do conceito base de globalização cultural por glocalização
[...]. (BECK, 1999, p. 91-95).
Surge, assim, uma sociedade mundial não-territorial, não-integrada, nãoexclusiva, o que não quer dizer que essa forma da diversidade social e da
diferença cultural não possui ou não conhece nenhum vínculo local. Essa nova
organização não traz [...] anomia, destruição, dissolução do social. Nas biografias
multilocais, transnacionais, glocais, os pontos de cruzamento e semelhança entre
os homens se ampliam e se diversificam. (BECK, 1999, p. 185).
É nessa linha que o autor desenvolve os conceitos de “globalização das
biografias” – que traduz a irrestrição geográfica das vidas humanas – e de
“topopoligamia” – que interpreta as múltiplas relações entre o sujeito e os
diferentes e distantes espaços como uma forma de estar casado com vários
lugares e pertencer simultaneamente a distintos mundos, de forma que esses
seres humanos compartilham internacionalmente vivências de um destino
comum, manifestas nas proximidades improváveis do distante em um mundo sem
fronteiras (BECK, 1999, p.99). Como o contemporâneo Bauman também chegou
a afirmar, a proximidade física não se choca mais com a distância espiritual.
(BAUMAN, 1935, 2005, p.33)
Quem deseja compreender a figura social da globalização das vidas
individuais deve relativizar as contradições dos diversos locais entre os
quais elas são apresentadas. E isto requer, entre outras coisas, uma
nova compreensão da mobilidade. [...] Surge no primeiro plano a
mobilidade interna da vida individual, que já se habituou a ir e vir, a estar
simultaneamente aqui e ali. [...] A mobilidade interna não é, há muito
tempo a exceção e sim a regra [...] significa a medida da flexibilidade
física e espiritual necessária ou desejada para o domínio desta vida
cotidiana entre mundos diferentes. [...] Se a vida individual se expande
por diversos lugares, isto pode significar que estas biografias se
desenvolvem num espaço comum [...]. A multilocalização não quer
portanto dizer [...] nem emancipação e nem a não-emancipação, nem a
anomia e nem a não-anomia, nem o automatismo da “visão cosmopolita”
e nem um novo fundamentalismo, nem a banalização e nem o
alarmismo, nem a difamação [...]. Ela quer dizer: há algo novo, que se
tem a curiosidade se der ou experimentar para decifrar este(a) novo(a)
(visão de) mundo. (BECK, 1999, p.38-41).
1205
O desligamento da restrição “aqui e agora” – já que o aqui é múltiplo e o
agora se esvai na busca pela apreensão dessa multiplicidade – e a consequente
flexibilidade física e espiritual fazem com que os indivíduos sejam bombardeados
de possibilidades, estas muito mais transcendentes que efetivas. É disso que se
decorre o primeiro impacto da globalização (na perspectiva das biografias) ao
âmbito jurídico: a complexização da individualidade64.
Se a questão da identidade era minimamente previsível e uniforme há dois
séculos atrás, hoje esse universo tão vasto de pretensas possibilidades que nos é
exibido nas “vitrines” da globalização nos atordoa e faz buscar uma imensa
diversidade de elementos para a construção do Eu.
Isso se agrava pelo fato de que se têm perdido importância as formas
tradicionais e institucionais de supressão do medo e da insegurança no interior da
família, no casamento, nos papeis de gênero, na consciência de classe e nas
instituições e partidos políticos nela apoiados. (BECK, 2010, p.93) [...] Dessa
maneira, surgem sempre novos movimentos de busca, que em parte põem à
prova modos experimentais de abordar as relações sociais, a própria vida e o
próprio corpo, segundo diversas variantes de subculturas alternativas e juvenis.
(BECK, 2010, p.111)
O
Direito,
que
se
propõe
a
resguardar
o
desenvolvimento
da
personalidade, vê-se obrigado a resguardar também toda essa efervescência
inconstante de um eu esparso em busca de si; vê-se impelido a acomodar uma
pluralidade exponencialmente maior de sujeitos com ambições cada vez maiores
e mais complexas. Quanto maiores e mais complexas essas ambições plurais,
maior é o desafio jurídico de proporcionar um “habitat” propício e seguro para seu
exercício simultâneo e maximizado – principalmente num contexto de
64
“Repentinamente nos vemos lançados diante de um quadro [...]: as antinomias e as
contradições dos continentes, culturas, religiões [...] transcorrem incessantemente na vida de
cada pessoa. O global não espreita e ameaça sob a forma de Todo exterior – ele faz seu ninho e
chama a atenção no espaço de origem da vida das pessoas. Mais ainda: constitui uma boa
parcela da autenticidade e da particularidade da vida própria.” (BECK, 1999, p.136)
1206
descentralização dos âmbitos de atuação e influência, o que Beck trabalha mais a
fundo pelo conceito de subpolítica.65
Ao mesmo tempo, a uniformidade das situações e casos jurídicos se esvai
com a uniformidade dos sujeitos, exigindo uma flexibilização cada vez maior. Já
afirmou Luiz Roberto Barroso, com enorme sensatez, que o paradigma jurídico,
que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para o caso
concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido.
(BARROSO, 2001, p. 3-4) Neste contexto de particularização, os princípios –
normas mais porosas à flexibilidade da realidade concreta – tornam-se
indispensáveis ao juízo, ao passo em que o perigo da relativização excessiva
torna imprescindível o desenvolvimento hermenêutico.
Movamo-nos ao segundo impacto da globalização (na perspectiva das
biografias) ao Direito – a complexização da sociabilidade –, que também se
decorre desta supracitada pluralidade pulsante e glocalizada. Ao passo em que a
diversidade de sujeitos e personalidades cresce, cresce também a potencialidade
de conflitos e litigiosidade; ao passo em que isso se esparrama para além dos
espaços sociais geográficos óbvios, esses conflitos são desencaixotados e
desafiam a jurisdição clássica, cuja previsibilidade escapa à compartimentação do
Direito. Temos, desta forma, uma demanda maior e primária, a quantitativa, que
traz uma demanda secundária e qualitativa: a de mecanismos inéditos para
resolução de dinâmicas conflituosas inéditas, não mais presas ao sistema binário
que pressupõe o envolvimento simplificado de dois agentes únicos em polos
antagônicos, circunscritos por um Estado soberano clássico.66
Nesse contexto complexo, a demanda pela resolução judicial de conflitos
não se restringe ao termo médio, rígido, artificial – o Estado – mas exige cada vez
65
Sobre esse desafio de regulação da esfera de atuação não-central, melhor desenvolvido por ele
em longas considerações no livro "Sociedade de Risco: rumo a uma nova modernidade", Beck
afirma: “Minha resposta é a seguinte: por meio de uma ampliação e da garantia jurídica de
possibilidades específicas de controle da subpolítica., assim como uma esfera pública forte e
independente, com tudo o que isto pressupõe." (BECK, 2010, p. 340)
66
“Juntamente com estes fatos, os conflitos deixam de ter a proporção e a perspectiva de serem
conflitos individuais, e passam a se tornam conflitos conjunturais, coletivos, associativos, difusos,
transindividuais, motivando o colapso das formas tradicionais de se atenderem as demandas
para as quais somente se conheciam mecanismos típicos do Estado liberal, estruturado sobre as
categorias do individual e do burguês.” (BITTAR, 2014, p.142)
1207
uma intersecção da mínima e da máxima escala – do pluralismo jurídico
intraestatal e do Direito Internacional, que florescem com a crise do Estado – já
que são conflitos glocalizados, postos entre os paradoxos do local e do global.
Ressalta a importância de um direito contextualizado espacialmente, já que a
particularidade deve ser o enfoque, mas universalizado na interconexão global,
ambas as dimensões em diálogo cujo árbitro potencial mais apto parece ser os
Direitos Humanos67.
Temos, portanto, os desafios:
a)
de uma pluralidade subjetiva cada vez mais aguda, que deve ser
resguardada pelo Direito em sua proteção do desenvolvimento de
personalidade, bem como de esferas de atuação igualmente difusas, no
âmbito da subpolítica, que exigem Tribunais fortes, mas igualmente abertos
e dialógicos;
b)
de casos cada vez mais complicados e desuniformes, que exigem
uma ponderação muito mais atenciosa, fundada na porosidade normativa
dos princípios e na hermenêutica;
67
Em vários momentos, Ulrich Beck aborda com extrema sensatez a questão do universalismo e
do relativismo dos Direitos Humanos. Para ele, os “direitos humanos não devem ser submetidos
ao universalismo universalista da forma inventada pelo Ocidente que deveria ter validade em
todo o globo [...] (e)xistem versões dos direitos humanos até mesmo nos diferentes cantos da
Europa. [...] As reinvindicações provenientes de outras partes do mundo remetem a outra
compreensão dos direitos. [...] Com a curiosidade de outras tradições e concepções não ocorre,
como teme o universalismo universalista, algo como o abandono da ideia da equidade de direitos
para todos os homens. “Somente” pode começar, ou melhor: só agora começa uma disputa das
culturas, dos povos, dos Estados e das religiões pelas mais ricas dentre as concepções de
direitos humanos, E se inicia o enfeitiçado diálogo sobre o assunto. [...] O universalismo
contextual afirma: é preciso abrir daquilo que possuímos de mais sagrado para a crítica dos
outros”. (BECK, 1999, p. 153-155). Esta concepção mostra a possibilidade de conciliação
jurídica entre o global e o local de forma não negligenciar nenhuma das duas perspectivas, já
que o “universalismo contextual parte da constatação [...] de que a não-mistura é impossível [...]
vivemos na era da semelhança, toda tentativa de manter seu isolamento e de buscar refúgio na
ideia de que há mundos separados é grotesca, inadvertidamente cômica. O mundo é a
caricatura de um incontestável (não)-diálogo consigo mesmo e com os outros. [...] Não existem
mundos separados. Existe a multiplicidade de um contexto global descontextualizado diante do
qual o retorno ao não-diálogo parece ser algo idílico. Em substituição ao pacto de não-mistura,
considerado inviável, entra em cena a admissão da vida glocal. [...] Não está em discussão o se,
mas o como da miscigenação, de tornar-se miscigenado, da contra – ou com-mistura. [...] O
contextualismo absolutista afirma: deixe-me em paz! Mas não por ser proibida a perturbação da
paz, mas por ela não ser capaz de transpor os abismos da não-comparabilidade. E no final, o
resultado continua a ser o mesmo. Em contraposição, o princípio do universalismo contextual
afirma: não há escapatória diante da falta de paz promovida pela mútua mistura, não há
escapatória possível. [...] Mas surge esta possibilidade: há o meu e o seu universalismo – um
universalismo plural. [...] (BECK, 1999, p.149-153)
1208
c)
de uma litigiosidade crescente em magnitude e dinamicidade, não-
binária e não-compartimentada como esperam os artifícios da jurisdição
clássica, o que impõe uma visão cada vez mais ampla, flexível e dialógica
da realidade e do Direito, para que ele supra as duas dimensões do
crescimento da demanda judicial;
d)
de um necessário e constante escapamento do Direito das
tradicionais vias estatais, que ressalta a imperiosidade de valorização das
perspectivas jurídicas glocalizadas, interseccionando o pluralismo jurídico
intraestatal e o Direito Internacional a partir da conciliação dos Direitos
Humanos (vistos sob a ótica do que Beck denomina universalismo
contextual).
Como é perceptível, o mínimo denominador comum entre tais realidades é
a exigência cada vez mais aguda de um universo jurídico poroso, flexível,
dialógico, sendo o grande trunfo do Direito Contemporâneo sua composição
axiológica fundada nos princípios, nos Direitos Humanos e Fundamentais68.
A redinamização temporal da Modernidade Reflexiva: o Direito, o
determinismo do futuro, o "poder-ser" e o "dever-ser"
Segundo Ulrich Beck, a sociedade do risco designa uma época em que os
aspectos negativos do progresso determinam cada vez mais a natureza das
controvérsias que animam a sociedade. Desta forma, não se trata, pois, de
analisar os perigos como tais, mas de demonstrar que, diante da pressão do
perigo industrial que nos ameaça [...] aparecem chances de novas configurações.
(BECK, 2010, p. 1) Sob esta perspectiva de renovação, analisaremos o
deslocamento de referencial temporal dessa nova conditio humanitas descrita
68
Como coloca o próprio Beck, “Direitos fundamentais são, nesse sentido, pontos decisivos para
uma descentralização da política com efeitos amplificadores de longo prazo. Eles oferecem
várias possibilidades de interpretação e, em situações históricas diversas, sempre novos pontos
de partida para romper com interpretações restritivas e seletivas até então válidas. A mais
recente variante desse aspecto verificou-se na ampla ativação política dos cidadãos, que, com
uma diversidade de formas que ultrapassa todos os esquemas políticos habituais – de grupos de
iniciativa, passando pelos assim chamados “novos movimentos sociais”, até formas alternativas
e críticas de atuação profissional (entre os médicos, químicos, físicos nucleares etc.) - ,
usufruem, com urgência extraparlamentar, de seus direitos antes de mais nada formais e dãolhes a vida que faz com que sejam algo pelo que lutar.” (BECK, 2010, p.290)
1209
pelo autor e algumas possíveis perspectivas sobre os seus efeitos na dinâmica
jurídica.
O conceito de Sociedade de Risco refere-se à uma situação histórica
específica, característica da Modernidade Reflexiva, que impõe esforços teóricos
e práticos para a adaptação dos modos de vida e das instituições às novas
necessidades. Como esclarece Estevão Bosco,
a sociedade de risco designa uma fase no desenvolvimento da
sociedade moderna em que os sucessos da modernização industrial
passam a gerar efeitos colaterais imprevisíveis, diagnosticados como
causa de danos e destruições (ambientais, econômicos, políticos e
individuais) e, num segundo momento, como riscos cientificamente
projetados e social, econômica e politicamente percebidos e geridos.
Efeitos estes que tendem a escapar dos mecanismos de controle e
proteção institucional da sociedade industrial. A sociedade de risco é
caracterizada por uma ambivalência expressa: o progresso técnicoeconômico não necessariamente corresponde a progresso social.
(BOSCO, 2012, p.5).
O que torna essa nova forma de percepção e relação com os riscos
peculiar e imprescindível? Todas as sociedades temem a morte, as doenças, os
incêndios, as inundações, a fome, os temporais e a guerra; todas as sociedades
conhecem os riscos que a ameaçam; todas as sociedades procura evitar danos
(HERMITTE, 2005, p.7), mas só na sociedade moderna-reflexiva de risco essas
percepções referem-se a consequências amplamente catastróficas e presentes
de formas tão difusas e aparentemente inescapáveis, já que tão intrínsecas. A
sociedade de risco é marcada fundamentalmente por uma carência: pela
impossibilidade de imputar externamente as situações de perigo, vendo-se, ao
lidar com riscos, confrontada consigo mesma. Riscos são um produto histórico, a
imagem especular de ações e omissões humanas, expressão de forças
produtivas altamente desenvolvidas.” (BECK, 2010, p.275)
Na modernidade reflexiva, paira de maneira constante o fantasma da
iminência. No terrorismo que apavora, nas catástrofes ambientais, no transgênico
cancerígeno: a sensação de risco é tão intensa e onipresente que desloca o eixo
de referência do passado para o futuro – um futuro não em-si, mas empotencialidade. Há uma inflação da percepção do movimento ação-consequência,
com simultâneo e paradoxal atordoamento, tanto pela inestimabilidade da
1210
consequência, quanto pela indeterminabilidade da ação, em um mundo não mais
binário69 e compartimentado. Beck explica que
Sociedade de risco significa: o passado perdeu o seu poder de
determinação sobre o presente. Entra no lugar o futuro – ou seja, algo
que não existe, algo fictício e construído – como a causa da vida e da
ação no presente. Quando falamos de riscos, discutimos algo que não
ocorre mas pode surgir se não for imediatamente alterada a direção do
barco. (BECK, 1999, p. 178).
É esse aspecto da sociedade de risco que este enfoque propõe abordar:
essa redinamização temporal do comportamento humano, agora muito mais
voltado ao futuro. A atenção que antes não vislumbrava de maneira tão sensível
as consequências, não se voltava para o ser-no-futuro e nem agia tendo-o como
norte, agora procura avaliar este espectro de probabilidades. O referencial para a
ação no presente não é mais o passado, é o que está por vir, nisso inclusos de
maneira especial e protagonista os riscos. A questão que redefine o
comportamento é a difícil e turva escolha entre muitas possibilidades, entre
muitos peculiares poder-ser.
O Direito, como dever-ser social – ou seja, como a busca de um poder-ser
específico – tem então a incrível oportunidade de colocar-se em consonância com
este paradigma e não só superar sua crise de eficácia, mas renovar-se
observando seu enfoque central: a constante construção de uma ordenação
social futura por ele regulada e estabelecida. A ciência jurídica tem, em seu
cerne, o potencial para tornar-se um referencial na ponderação de escolha hojeamanhã, ou seja, na gestão do probabilidades e riscos – agora tão inflados – de
maneira reorientar-se para sua efetividade.
Para tal, é necessário que o Direito imponha a si mesmo algumas
perspectivas. Primeiramente, é preciso que ele se veja, como o contexto em que
se insere, reflexivo. Tendo sofrido os processos das duas dialéticas dessa fase da
modernidade – a mais-moderna, pela crise de muitas das suas instituições,
anêmicas demais para suportar a pressão da demanda pela eficácia dos
princípios jurídicos, e a antimoderna, pelo uso de seus ferramentais contra estes
69
Enquanto anteriormente era simples a determinação do conjunto das causas em uma lógica
binária quase que ao estilo agressor-vítima, hoje “a complexidade das causas leva a discussão
do universo nas causas”, já que “a pluralidade das possíveis causas e ainda mais interações a
forma com a qual produzem efeitos que se juntam a ouras causas para produzir novos efeitos
provocam um certo desânimo”. (HERMITTE, 2005, p. 11)
1211
mesmos princípios70 – a ciência jurídica vê-se em momento de autocrítica e
renovação. Se o Direito é um dever-ser, seu dever-ser máximo é a organização
da sociedade – como já entendeu Norberto Bobbio71 – e deve-ser este seu eixo
de orientação para sua recomposição reflexiva.
Em virtude disso, é necessário que o Direito constitua-se como teleológico,
em dois sentidos.
No primeiro e fundamental sentido, teleologicamente orientado pela busca
da melhor eficácia na organização desta nova sociedade, adaptando-se às
necessidades e ansiedades desta. Bittar nos lembra que a crise que mais de
perto se estará a discutir é aquela referente à eficácia do Direito, pois de nada
adianta pensar-se no Direito como regra de dever-ser (Sollen) isolada do ser
(Sein) (BITTAR, 2014, p. 10). O objetivo máximo é a máxima harmonização das e
com as necessidades sociais atuais e futuras.
No
segundo
e
decorrente
sentido
–
já
contextualizado
nessas
necessidades específicas da sociedade reflexiva –, teleologicamente voltado ao
manejamento dessa nova disposição temporal que se coloca, ou seja, dirigido a
70
Este movimento antimoderno, que é usualmente exemplificado pela bomba atômica, pode ser,
no âmbito mais restrito do Direito, relacionado ao próprio uso do ferramental jurídico nas
Grandes Guerras para a promoção de atrocidades. O sucesso do Direito Positivo acabou por
esfacelar a própria segurança jurídica que era por ele proclamada. Já o primeiro movimento
dialético entre os princípios e instituições jurídicas, o mais-moderno, é indiretamente abordado
pelo autor: "[...] ambos os processos – o empalidecimento do intervencionismo do Estado Social
na esteira de seu sucesso e as ondas de grandes inovações tecnológicas com ameaças futuras
até o momento desconhecidas – somam-se a uma dissolução das fronteiras da política e, na
verdade, em duplo sentido: de um lado, direitos estabelecidos e assim percebidos reduzem as
margens de manobra no sistema político e fazem com que surjam fora do sistema político
demandas por participação política sob a forma de uma nova cultura política (iniciativas da
sociedade civil, movimentos sociais)". Ao mesmo tempo, "a perda em termos de poder estatal de
conformação e realização não é, nesse sentido, expressão de um certo fracasso político, e sim
produto da democracia e da política social realizadas, em meio às quais os cidadãos sabem
dispor de todos os meios de intervenção e controle público e judicial para a defesa de seus
interesses e direitos.” (BECK, 2010, p.278) Em resumo, "quanto mais exitosamente direitos
políticos foram conquistados, estabelecidos e avivados ao longo deste século, tanto mais
energicamente foi questionado o primado do sistema político e tanto mais fictícia se tornou ao
mesmo tempo a concentração decisória pretendida pela cúpula do sistema político-parlamentar"
(BECK, 2010, p.285)
71
“Quem desejar compreender a experiência jurídica nos seus vários aspectos deverá considerar
que ela é a parte da experiência humana cujos elementos constitutivos são: ideais de justiça a se
realizar, instituições normativas para realiza-los, ações e reações dos homens frente àqueles
ideais e a estas instituições. Os três problemas são três aspectos diversos de um só problema
central, que é o da melhor organização da vida dos homens em sociedade” (BOBBIO, 2001, p.
53-54) (grifos meus).
1212
atuar hoje pelo referencial da eficácia do dever-ser no amanhã, onde se encontra
o risco, onde se encontra o poder-ser que deve(-)ser regulado. Essa
imprescindibilidade do Sein abordada por Bittar, portanto, refere-se a um Sein não
só presente mas também futuro, ocupado pelas peculiaridades da dinâmica açãoconsequência da sociedade de risco.
O jurídico não pode, numa sociedade já tão repleta de iminências
indesejáveis, dar-se ao luxo de ignorar a discussão acerca d’“o que queremos” e
“como alcançaremos”, nem a riqueza de sua pluralidade, nem a oportunidade que
deriva de sua ocorrência72. Há duas alternativas: adaptar-se à supremacia do
futuro ou definhar no apego ao passado.
Não cabe mais, por exemplo, enxergar hoje que uma sanção tem
(pre)dominância sobre uma medida reparadora qualquer, se aquela acarretará
mais prejuízo futuro a à sociedade, em seu saldo negativo, enquanto esta sanará
os prejuízos daquele dano e prevenirá sua recorrência. Em termos gerais, não
cabe qualquer decisão que, em supervalorização do passado, se esqueça que
este é imutável e, na sociedade do risco, perdeu seu poder de determinação sob
o presente (BECK, 1999, p. 178) de tal forma que o que importa é o Sein de
amanhã, entre seus muitos "podes" e "deves".
É necessário que as instituições jurídicas que objetivam se adaptar à
modernidade reflexiva levem em consideração: o que trará efeitos mais
adequados à eficácia do dever-ser? De que forma o Direito pode, tendo em vista
um específico desvio do dever-ser para um não dever-ser, cumprir sua função
primordial de ordenar, organizar, harmonizar o convívio social de forma alcançar o
resultado almejado? Já foi citada a sensata afirmação de que o paradigma
jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora
para o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser
resolvido. (BARROSO, 2001, p. 3-4). Devemos não só enfatizar o uso meticuloso
da expressão "resolvido", que sugere um caráter quase que restaurativo, mas
também acrescentar que este mesmo paradigma não se limita àquele caso
72
Como coloca o próprio autor, “por trás de todas as retificações, cedo ou tarde emerge a questão
da aceitação e, com ela, a velha nova questão: como queremos viver? O que há de humano no
ser humano, de natural na natureza, que é preciso proteger?” (BECK, 2010, p.34)
1213
concreto em sua localização temporal passada, mas aos seus efeitos e
possibilidades decorrentes da atuação e reverberação no futuro.
O foco do Direito moderno-reflexivo configura-se tendo pela eficácia
constante (presente e futura) do dever-ser; por isso, o paradigma jurídico passa a
constituir-se teleologicamente.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A modernidade reflexiva, em escala espacial e temporal, vive um constante
paradoxo: o glocal. Biográfica, exacerba diferenças, acentua particularidades;
internacionalizada, exerce pressões equalizadoras, acentua interdependências,
torna complexo o movimento ação-consequência. Enquanto o regresso (infinito)
às questões “sou realmente feliz?”, “sinto-me realmente realizado?” e “quem é
que aqui na verdade diz e pergunta ‘eu’? conduz a modos sempre novos de
respondê-las (BECK, 2010, p. 145) num individualismo e numa diferenciação
peculiares, amigo e inimigo, leste e oeste, em cima e embaixo, cidade e campo,
preto e branco, sul e norte são todos submetidos, no limite, à pressão equalizante
dos riscos civilizacionais que se exacerbam. Elas contêm em si uma dinâmica
evolutiva de base democrática que ultrapassa fronteiras, através da qual a
humanidade é forçada a se congregar na situação unitária das autoameaças
civilizacionais. (BECK, 2010, p.57)
A vida privada de fato se torna extremamente especifica, mas seu
individualismo esbarra nas circunstâncias de um contexto que esvai entre os seus
dedos, sobre o qual se exerce ínfimo controle. Ínfimo também é o controle que se
tem sobre o futuro, sobre o próprio vir-a-ser, sobre o próprio (auto)determinismo.
Desta forma,
[...] surge uma nova imediação entre indivíduo e sociedade, a imediação
entre indivíduo e sociedade, a imediação entre crise e enfermidade, na
medida em que as crises sociais surgem como se fossem individuais,
sendo que somente sob uma série de condições e mediações seu
caráter social pode ser percebido. (BECK, 2010, p.110).
O fato é que a dinâmica social foi desterritorializada – principalmente no
que concerne à dinâmica do risco –, o que tornou as relações humanas mais
complexas, e, principalmente, complexas as decisões e as ações humanas. Há
1214
novas fontes de conflito e consenso, a novas fontes de catástrofes e soluções, de
forma que as causas esfarelam-se numa vicissitude generalizada de atores e
condições, reações e contrarreações, o que confere evidencia social e
popularidade à ideia sistêmica. (BECK, 2010, p.39)
Para a compreensão dos desafios desta nova sociedade, a expressão
“sistêmica” é um conceito chave. As interconexões que compõem esse gigante e
complexo sistema e aniquilam pretensões de estabilidade e compartimentação
exigem ação pensada, cautelosa e flexível, que seja capaz de manter-se de
maneira positiva num mundo que parece precisar do senso existencialista de
responsabilidade para gerir a si próprio.
A imprescindibilidade desta revisão de responsabilidade emerge quando os
maniqueísmos são dissolvidos, quando os laços se tornam embaraçados, quando
cresce o sentimento de que “estamos todos no mesmo barco”. O efeito
socialmente circular de ameaça pode ser generalizado, já que cedo ou tarde se
atinge a unidade entre culpado e vítima, sendo que no mais inconcebível dos
casos – o cogumelo atômico -, isto é evidente: ele aniquila inclusive o agressor
(BECK, 2010, p.45); sob este risco, somos obrigados a redirecionar nossas ações
com atenção ao Sein futuro. Como já afirmou Beck, não é possível continuar a
aceitar o mito da imprevisibilidade dos efeitos. Não é a cegonha que traz os
efeitos – eles são feitos (BECK, 2010, p. 262), e, num contexto tal como esse, a
direção é regular quais deles desejamos e quais combateremos de forma evitar a
latência do efeito circular de ameaça. Essa atitude teleológica, cuja necessidade
já foi abordada, insiste que temos de lidar com uma
‘variável projetada’, com uma “causa projetada” da atuação presente,
cuja relevância e significado crescem em proporção direta à sua
incalculabilidade e ao seu teor de ameaça, e que concebemos para
definir e organizar nossa atuação presente. [...] (BECK, 2010, p.40).
A grande questão é: como o Direito deve organizar sua atuação presente?
Toda teleologia tem seu referencial, qual será o de uma ciência jurídica modernareflexiva?
Não há pretensão de precisar tal resposta. Num mundo tão complexo, a
unificação de um valor universal parece um tanto forçada e ilusória; a discussão
de tais objetivos deve ser central e incessante, nunca definitiva. O que podemos
1215
afirmar se restringe ao fato de que, num contexto plural, biográfico e
interdependente, não há alternativa senão manter uma flexibilidade controlada e
não omissiva, ou seja, que se adapte à diversidade, à complexidade e à
intensidade das vidas humanas.
Na visão sistêmica, é necessário que se regule com muita atenção as
consequências – e, decorrentemente, a responsabilidade – de forma que todas
estas biografias possam se desenrolar ao máximo, como é de seu desejo. É
preciso gerar efeitos positivos, permitir o desenvolvimento da maneira mais
próxima possivel à plenitude de maneira aliar a auto realização individual a uma
visão quase holística, de forma acalmar os conflitos, reduzir os danos e garantir
que os anseios e interesses de todos esses sujeitos de direito sejam valorizados
devidamente – daí a emergência do paradigma de valorização jurídica máxima da
pessoa. Para isso, não há muitos caminhos senão a busca proativa de uma
garantia universal de desenvolvimento que não rotule e estipule um conceito de
desenvolvimento, mas procure conciliar a diversidade sistêmica dos projetos de
vida, que, inegavelmente, não se harmonizam por si mesmos. Destaca-se a
necessidade deste tipo de visão quando se percebe que
[...] se por um lado as biografias individualizadas seguem
estruturalmente atadas à autoconfiguração, por outro lado elas se abrem
até o limite do interminável. Tudo aquilo que parece isolado numa
perspectiva teórico-sistêmica se converte em componente integral da
biografia individual: família e trabalho assalariado, educação e ocupação,
administração e transporte, consumo, medicina, pedagogia etc. [...] Visto
dessa forma, trata-se de situações institucionais individualizadas
cujos nexos e fissuras, negligenciados no nível sistêmico, acabam
gerando permanentemente, tanto nas biografias individuais quanto
entre elas, pontos de fricção, empecilhos à harmonização e
contradições. Sob tais condições, a condução da vida se converte
na superação biográfica de contradições sistêmicas. A biografia é –
com base na formulação de N. Luhmann – a soma das racionalidades
subsistêmicas, e de modo algum o meio ambiente que as envolve. Não é
só que a compra do café na loja da esquina eventualmente se torna uma
questão relativa à contribuição com o espólio dos trabalhadores rurais
sul-americanos. Não é só que a onipresença dos pesticidas transforma
uma formação básica em (anti)química num pré-requisito para a
sobrevivência. (BECK, 2010, p.201) (grifos meus)
Caberia [...] proteger e ampliar o nível já alcançado de direitos sociais e
democráticos contra investidas (BECK, 2010, p.341), no âmbito dos Direitos
Humanos e Fundamentais, tendo em vista um Direito não só teleológico mas
axiteleologico; construindo um sistema dialógico, poroso, que mantivesse, com os
1216
devidos limites, a autonomia das margens decisórias judiciais73 em Tribunais
fortes e independentes (BECK, 2010, p. 340), de forma garantir o protagonismo
da melhor decisão para o caso concreto74. Esta decisão, por sua vez, – e aí está
uma das (de)limitações a serem postas à autonomia – não deve ceder ao
particularismo de ignorar ao seu entorno, mas sim considerar os amplos aspectos
que se relacionam sistemicamente com aquela situação individual, levando em
conta as complexidades da redinamização espacial de nossos tempos e
orientando-se pelo referencial temporal que tal complexidade exige.
REFERÊNCIAS
BARROSO, L. R. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), Revista Diálogo
Jurídico, Salvador, CAJ, v.1, n.6, set. 2001.
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BECK, U. O que é a globalização? Equívocos do globalismo; respostas à
globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
BECK, U. Política na sociedade de risco. Tradução de Estevão Bosco. Campinas:
Ideias. Edição n. 1, nova série, 2º semestre, 2010.
BECK, U. Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. São Paulo:
Editora 34, 2010.
BITTAR, E. C. B. O direito na pós-modernidade. 3. Ed. Modificada e atualizada.
São Paulo: Atlas, 2014.
BOBBIO, N. Teoria da norma jurídica. 1.ed.São Paulo: Edipro, 2001.
73
Afirma Beck que “na posição profissional de juiz, protegida na Alemanha pelo direito
administrativo, tornam-se visíveis, em parte através de novas formas de percepção e interpretação
e em parte através de alterações externas, margens decisórias parcialmente autônomas, que,
conforme percebem com perplexidade uma comunidade de juízes e uma esfera pública surpresas,
também vêm sendo utilizadas de modo controverso nos últimos anos.” (BECK, 2010, p.291)
74
É interessante a colocação do autor que demonstra a flexibilização da norma positiva nessa
busca pelo protagonismo do caso concreto – “Para o legislador, isto leva à seguinte consequência:
ele vê-se cada vez com mais frequência colocado no banco dos réus nos tribunais.” (BECK, 2010,
p. 292)
1217
BOSCO, E. Reflexividade, incerteza e risco: uma crítica imanente da teoria da
Sociedade de Risco Mundial de Ulrich Beck. VII Congresso Português de
Sociologia. Porto, 2012.
FARIA, J. E. O. C. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como
instrumento de transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988.
MOTTA, R. Sociologia de risco: globalizando a modernidade reflexiva.
Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 22, jul./dez. 2009.
SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. São Paulo: Cortez, 2001.
VARELLA, M. D. (org); HERMITTE, M. A. Governo dos Riscos. Brasília: Rede
Latino-americana-europeia sobre Governo dos Riscos, 2005.
1218
DIREITO, RISCO E SOCIEDADE INDUSTRIAL: O SISTEMA JURÍDICO NA
PERSPECTIVA DE ULRICH BECK
Damáris Costa Ribeiro,
Rafael Lazzarotto Simioni,
Rodrigo Pedroso Barbosa,
RESUMO: Quando se pensa em risco, geralmente pensa-se em risco em plano
individual. Mas quando se pensa na relação entre o Direito e a decisão jurídica, os
riscos vão além destes limites. Direito acontece em um ambiente social e não
matemático ou probabilístico. Por conseguinte, é preferível, que a noção de risco
também seja fundada em riscos sociais, especialmente quando vivemos em uma
sociedade globalizada onde riscos ultrapassam fronteiras, são não localizados e
possuem contornos não delimitáveis. Quais os limites do risco de uma catástrofe
ecológica? De um acidente nuclear? Como se pode mitigar a perda da camada de
ozônio e o aquecimento global? Em menor escala, mas ainda de maneira mais
ampla do que o antigo conceito de risco, estão os riscos de decisões jurídicas e
atividade legislativa. O risco de uma nova lei ou de um novo precedente, que
pode afetar milhares de pessoas, sua segurança, patrimônio, renda, saúde etc.
Nessa perspectiva, a questão central desta pesquisa é qual a relação do risco
com o direito? O presente artigo objetiva compreender a relação do risco com o
Direito, especificamente nas questões do que representa o risco na sociedade
contemporânea globalizada, a diferenciação entre risco e vulnerabilidade, e como
o Direito pode funcionar como mecanismo de absorção de risco, algo não mais
possível através dos mecanismos anteriores da sociedade industrial. Utiliza-se a
metodologia analítica, em especial através do pensamento de Ulrich Beck. Na
sociedade mundial de risco, as nações não conseguem, sozinhas, resolver os
problemas. Devem dialogar para minimizar os riscos e perigos, assessorar umas
às outras e aliarem-se, conforme imperativo cosmopolita. Vencer os problemas
exige esforços políticos globais, no entanto, nada ocorrerá sem conflito. As
soluções estão nas negociações e não nas guerras. A reflexividade da sociedade
de risco global, a expansão dos riscos, a quebra de fronteiras dos estados-nações
decorrentes da globalização, a quebra da fórmula do progresso tecnológico
equivaler a progresso social, nos levam a uma ruptura com os mecanismos de
gerenciamento e compensação de riscos existentes na sociedade industrial.
Ulrich Beck propõe, então, como solução para esta auto incapacitação a própria
responsabilidade pelos efeitos colaterais, ampliam-se e garantem-se
juridicamente controles subpolíticos. E ainda aponta a importância de tribunais
fortes e independentes e uma esfera pública forte e independente.
1219
PALAVRAS-CHAVE: Risco; Direito; Globalização; Decisão Jurídica
1 INTRODUÇÃO
A noção de risco geralmente está associada a perigos em um plano
individual. O risco de um acidente, de uma doença, de uma catástrofe, parecem
poder ser calculados na forma das probabilidades e com contornos delimitados.
Assim nos apresenta o chamado risco pessoal. O homem primitivo que
empunhava sua lança e saia para caçar estava sujeito ao risco de ser morto por
animais selvagens. O homem antigo que se engajava em um combate, com
armas de cobre, estava sujeito ao risco do oponente ser mais habilidoso ou
possuir armas de aço. O homem moderno que se lançava ao mar com pretensões
expansionistas estava sujeito aos riscos inerentes de tal empreita: intempéries,
doenças, fome. Eram todos riscos delimitados, ou ao menos delimitáveis, e de
natureza pessoal, ainda que pudesse se expandir às pessoas próximas, como a
família do caçador que, em face da morte do mesmo, corria o risco de forme. E
esses riscos, antigamente, podiam ser enfrentados mediante a fé religiosa. Na
modernidade, contudo, enquanto probabilidades, os riscos passam a ser
calculáveis. E enquanto delimitados, parecem poder ser mitigáveis.
Cientistas ao longo dos séculos vêm estudando o risco, em suas diversas
manifestações temporais. Assim como o caçador pode ir em bando, um homem
contemporâneo pode analisar o mercado para calcular o risco de um determinado
investimento ou de uma atividade. Esses cálculos são baseados em médias
estatísticas e se fala em risco enquanto probabilidade de um evento. Casos que
caem fora desses limites são tratados como anomalias estatísticas e, se
necessário, mitigados. Fala-se de risco aceitável, controle e gerenciamento de
riscos, seguros e garantias. Unidades de análise de risco, com o micromort
(HOWARD, 1980, p. 89-113), foram criadas com o maior rigor científico. Um
cidadão comum nos EUA, em 2010, tem um risco de morte, por qualquer causa,
de 22 micromorts por dia (MURPHY; XU; KOCHANEK; 2014).
1220
Entretanto, todos estes estudos foram focados em riscos individuais,
localizados, delimitados. Quando se pensa no Direito e na decisão jurídica, os
riscos vão além destes limites individuais delimitáveis e mitigáveis. O Direito
acontece em um ambiente social, e não matemático e probabilístico. Por
conseguinte, é preferível, e não premente, que a teoria de risco também seja
fundada em riscos sociais, especialmente quando vivemos em uma sociedade
globalizada onde riscos ultrapassam fronteiras, são não localizados e possuem
contornos não delimitáveis. Afinal, quais os limites do risco de uma catástrofe
ecológica? De um acidente nuclear? Como se pode mitigar a perda da camada de
ozônio e o aquecimento global? Em menor escala, mas ainda de maneira mais
ampla do que o antigo conceito de risco, estão os riscos de decisões jurídicas e
atividade legislativa. O risco de uma nova lei ou de um novo precedente, que
pode afetar milhares de pessoas, sua segurança, patrimônio, renda, saúde etc.
Recorre-se então ao pensamento de Ulrich Beck, sociólogo do risco, com a ajuda
do qual é possível perguntar: qual a relação do risco com o Direito?
O presente artigo objetiva estabelecer uma reflexão sobre a relação do
risco com o Direito. Nessa perspectiva, a pesquisa procura inicialmente a)
distinguir as diferenças entre a concepção de sociedade industrial e sociedade de
risco, para depois b) analisar o problema da relação entre a globalização do risco
e a territorialidade das juridisdições; em um segundo momento, c) explicita-se a
diferença entre perigo e vulnaribilidade e d) a identificação de possíveis
mecanismos sociais contemporâneos de mitigação ou absorção de riscos.
A questão central é como o Direito pode funcionar como um mecanismo
social de absorção de riscos, já que os mecanismos tradicionais, como a fé
religiosa ou a “fortuna” já não são mais mecanismos suficientes de justificação
das condutas arriscadas. E para serem alcançados esses resultados, esta
pesquisa utiliza a metodologia analítica, através do estudo das obras do
referencial teórico da sociedade do risco de Beck e obras afins, visando assim
questionar e expandir o conhecimento jurídico na área.
1221
2 SOCIEDADE INDUSTRIAL E SOCIEDADE DE RISCO
A transição da primeira modernidade – sociedade industrial clássica - para
a segunda
- sociedade mundial de risco - traz como problema central e
consequência: uma sociedade construída por riscos incontroláveis, em nome do
progresso, e desestruturada pelas incertezas.
[...] assim como no século XIX a modernização dissolveu a esclerosada
sociedade agrária estamental e, ao depurá-la, extraiu a imagem
estrutural da sociedade industrial, hoje a modernização dissolve os
contornos da sociedade industrial e, na continuidade da modernidade,
surge uma outra configuração social. (BECK, 2011, p. 12-13).
A ruptura que indica a passagem da sociedade industrial clássica para a
sociedade mundial de risco define-se por ter ocorrido de forma "indesejada,
despercebida
e
compulsiva
no
despertar
do
dinamismo
autônomo
da
modernização.” (BECK; GIDDENS; LASH, 2012, p. 18).
A sociedade industrial clássica ostenta estas características: sociedade
nacional, crença no progresso, exploração econômica da natureza com
consequências “invisíveis”, oferta de tecnologia advinda da industrialização,
distribuição de seguridade social, pleno emprego (e conflitos das suas relações),
sociedade de classes ou camadas sociais, antagonismo entre os interesses
conflitantes dos partidos políticos, grandes grupos, ciência institucionalizada,
continuidade, concretização (ou instabilidade em sua própria concretização),
tradição familiar, união da escassez - produção e distribuição de riquezas, utopia
da segurança científica dos riscos vinculados aos lugares em que foram gerados riscos controlados tanto geográfica como economicamente e linearidade.
Na sociedade industrial clássica, a produção de certezas é cega às
ameaças. A segurança propagada carrega um risco intrínseco, até então
“inconsequente” e gerado aos "outros". E, assim como os riscos a riqueza, é
licitamente distribuída de forma socialmente desigual.
As “sociedades de classe são sociedades nas quais, para além das
trincheiras de classe, a disputa gira em torno da conspícua satisfação das
necessidades materiais. Contrapõem-se fome e fartura, poder e impotência”
(BECK, 2011, p. 54). Para Ulrich Beck é a primeira modernidade. “A força motriz
na sociedade de classes pode ser resumida na frase: tenho fome! O movimento
1222
desencadeado com a emergência da sociedade de risco, ao contrário, é expresso
pela afirmação: tenho medo!" (BECK, 2011, p. 60).
Na
segunda
modernidade,
a
produção
de
riqueza
acompanha
sistematicamente a produção social de riscos. Mas o que são riscos?
O conceito de riscos é moderno. Riscos referem-se à antecipação, com
destruições que ainda não ocorreram, mas são iminentes (BECK, 2011, p. 39).
São as consequências "permitidas" por decisões "calculáveis", sem avaliação dos
seus reflexos, em nome do progresso.
Sociedade de risco significa: o passado perdeu seu poder de
determinação sob o presente. Entra em seu lugar o futuro – ou seja, algo
que não existe, algo fictício e construído – como a causa da vida e da
ação no presente. Quando falamos em riscos, discutimos algo que não
ocorre, mas que pode surgir se não for imediatamente alterada a direção
do barco. (BECK, 1999, p. 179).
Na sociedade de risco, assinalam-se os seguintes aspectos: autonomia
inconsequente, que ganha o processo de modernização; ameaça, que surge para
toda a humanidade; ubiquidade dos riscos gerada pela imprevisibilidade nuclear;
força atômica, que gera a possibilidade de destruição de qualquer tipo de vida no
planeta terra; riscos que se esgueiram da consciência; quebra das fronteiras;
mundo à mercê da contaminação; incalculabilidade dos efeitos nocivos da
modernização; intenso crescimento econômico; instabilidade dos mercados
financeiros globais; alta velocidade do desenvolvimento tecnológico; engenharia
genética; individualização; dinamismo; abstração; velocidade das transformações
atreladas à falta de controle, que leva às incertezas; dissolução da família nuclear
e dos papéis dos sexos na família, etc.
A segunda modernidade é caracterizada pela incerteza. A “classe” torna-se
um conceito insuficiente perante as dificuldades das desigualdades da sociedade
mundial de risco (BECK, 2011, p. 366). Nesta sociedade a visibilidade das
diferenças da sociedade industrial clássica dá lugar à invisibilidade dos riscos que
ameaçam e transcendem quaisquer fronteiras, no entanto, não exclui que alguns
sejam mais afetados pelos riscos que outros. Nos "efeitos colaterais
imperceptíveis" existem os que têm poderes para decidirem quem serão os mais
afetados pelos riscos, trata-se da "vulnerabilidade social".
O que se anuncia sobre riscos para a sociedade já foi discutido a portas
1223
fechadas pelos que lucram com os riscos, pois, à medida que há a percepção
pública dos riscos surge uma sociedade autocrítica (BECK, 1999, p. 177). Existe a
necessidade de politização decorrente da percepção pública dos riscos.
Há a necessidade de mobilização política para que a população mais
vulnerável tenha consciência dos riscos, visto que não são iguais para todos. A
população mais afetada não tem essa noção, quais poderão ser as
consequências. Os segredos entre os poluidores e os potenciais receptores
tendem a diminuir quando o direito, a economia, a ciência, a política trabalham em
conjunto e refletem sobre a questão ecológica, descobrindo-a como poder (BECK;
GIDDENS; LASH, 2012, p. 86).
Na sociedade de riscos, antecipam-se danos ecológicos, nucleares,
genéticos,
bioquímicos,
econômicos,
industriais,
militares,
informacionais,
científicos, políticos, sociais e individuais, que se revelam como consequências
incontroláveis das decisões humanas como civilização e se acumulam diante de
um futuro produzido pela modernização. A sociedade de riscos não quantifica ou
qualifica.
Beck distingue risco de catástrofe. “Risco não significa catástrofe; significa
antecipação da catástrofe” (BECK, 2011, p. 362). Entende por riscos a encenação
do futuro no presente (presente do futuro), já as catástrofes são desconhecidas
para o futuro (futuro do futuro). A antecipação das catástrofes futuras para o
presente pode se transformar em uma força política. O autor difere os riscos das
"incertezas fabricadas". As "incertezas fabricadas" são impostas pela sociedade,
de forma que são imprevisíveis, inevitáveis, incalculáveis, incontroláveis e
incomunicáveis. São provocadas pelas respostas sociais à velocidade do
desenvolvimento tecnológico, além de identificar também, as ameaças, que são
incertezas que o mundo não está preparado para enfrentar. Ameaças não são
riscos, são os desastres naturais que vem de fora, são atribuídos a Deus ou à
natureza (BECK, 2011, p. 362-363). Aumentam-se os riscos, aumentam-se as
ameaças.
Na distinção entre a sociedade clássica industrial e a sociedade de riscos,
é importante destacar que existem sociedades com ambas as características.
Ulrich Beck, em desenvolvimento à linearidade proposta no início da sua teoria,
1224
reconhece
que
a
desigualdade
de
classes
sociais
continua
existindo
concomitantemente a um mundo globalizado pela sociedade de riscos. Para os
países mais pobres a linearidade existente na sociedade de industrial convive
com a sociedade de risco (BECK, 2011, p. 365). Os conflitos da sociedade
industrial clássica entre trabalho/capital, esquerda/direita permanecem (BECK;
GIDDENS; LASH, 2012, p. 63).
Na proporção em que, na sociedade industrial, a “lógica” da produção de
riqueza domina a “lógica” da produção de riscos, na sociedade de risco a “lógica”
da produção de riscos domina a “lógica” da produção de riqueza (BECK, 2011, p.
15). Enquanto a sociedade industrial distribui riquezas e a classe de baixa renda
sofre com a falta de capital, emprego e seguridade social, na sociedade de riscos,
a classe menos favorecida financeiramente continua sofrendo restrições, no
entanto, os riscos não abrem exceções, são distribuídos democraticamente.
3 GLOBALIZAÇÃO DO RISCO E TERRITORIALIDADE DA JURISDIÇÃO
Na
segunda
modernidade,
o
Estado
é
de
ordem
transnacional,
caracterizado pela unificação global dos riscos. As relações sociais e de poder, ao
contrário da unidade entre Estado, sociedade e indivíduo proposta pela primeira
modernidade, são desvinculadas dos Estados nacionais (BECK, 1999, p. 181).
A globalização é precursora da segunda modernidade apresentada por
Ulrich Beck , a qual, como um dos fenômenos da sociedade mundial de risco,
ocorre de forma não controlada e descentralizada, tendo como um dos seus
desafios a territorialidade da jurisdição.
Os riscos têm uma tendência globalizante, são onipresentes, caracterizamse pela sua deslocalização, por não haver “porta de saída”, barreira jurídica,
política, econômica, cultural, lingüística ou religiosa que os detenha. “Reduzindo a
uma fórmula: a miséria é hierárquica, o smog é democrático” (BECK, 2011, p. 43).
Na sociedade industrial clássica, os riscos eram divididos em classes e aos mais
poderosos era permitida a proteção, no entanto, na sociedade de risco há o
“efeito bumerangue”, isto é, mais cedo ou mais tarde, todos serão afetados pelos
riscos, e nem aos mais ricos, que lucraram com eles, é garantida a segurança
1225
(BECK, 2011, p. 44).
Na globalização, a soberania dos países sofre interferência cruzada de
atores transnacionais (BECK, 1999, p. 30). A transição dos riscos restringidos
geograficamente pelas fronteiras nacionais para os riscos democraticamente
distribuídos a uma sociedade global exige do direito novos desafios e
interpretações.
Para Ulrich Beck, existem dois tipos de globalização, uma simples, linear e
outra reflexiva. A globalização simples é ameaçadora à medida que homogeniza a
cultura e a identidade das nações. A globalização reflexiva ultrapassa a relação
contígua (BECK, 2014).
Globalização significa a experiência cotidiana da ação sem fronteiras nas
dimensões da economia, da informação, da ecologia, da técnica, dos
conflitos transculturais e da sociedade civil, e também o acolhimento de
algo a um só tempo familiar mas que não se traduz em um conceito, que
é de difícil compreensão mas que transforma o cotidiano com uma
violência inegável e obriga todos a se acomodarem à sua presença e a
fornecer respostas. Dinheiro, tecnologia, mercadorias, informações e
venenos “ultrapassam” as fronteiras como se elas não existissem.
(BECK, 1999, p. 47).
É uma quebra de fronteiras que alia Estados através dos perigos e riscos
da segunda modernidade. Ulrich Beck questiona como é possível fazer política na
era da globalização. E responde: "percibiendo la globalidad de los peligros,
globalidad que funde el aparentemente férreo sistema de la política internacional y
nacional haciéndolo maleable" (BECK, 2003, p.20). A globalização é um processo
ambivalente e irreversível, afirma o autor, pois os pequenos países, que dela são
vítimas, abandonam suas políticas de autarquia nacional e conectam-se ao
mercado mundial (BECK, 2003, p. 46). A democracia, na segunda modernidade, é
transnacional; a política, cosmopolita.
As mudanças climáticas decorrentes das ações humanas ameaçam o
planeta e demandam implementação de políticas e vínculos com organizações
internacionais. Os países com maior “vulnerabilidade social” e com recursos
naturais sofrem pressões internacionais por parte dos mais poderosos, no
entanto, desertificados, que impõem uma "globalização" diante de favores
econômicos na condição de que não haja desmatamento. Ulrich Beck levanta
questões como: até que ponto os países industrializados podem reivindicar que
outros em vias de desenvolvimento protejam seus recursos naturais e lhe
1226
garantam os recursos energéticos (BECK, 2003, p. 24).
Na estrutura de poder, riscos não são apenas riscos. São também
oportunidades de mercado. Na sociedade de risco existem aqueles que são
afetados pelos riscos e aqueles que lucram com eles. Por exemplo, na Word Wide
Web (www – rede de alcance mundial), a criminalidade informática é
transnacional, de modo que um ilícito penal pode ser praticado de qualquer lugar
da sociedade mundial de riscos, o que dificulta a definição da jurisdição.
Na globalização dos riscos, estão presentes a instabilidade do mercado
financeiro global, a velocidade das mudanças na tecnologia da informação, o
desenvolvimento
das
tecnologias
sem
fronteiras,
os
crimes
ambientais
transnacionais, as ameaças terroristas, a plurimodernidade, o pluriuniversalismo,
a pluridimensionalidade etc.
A impotência das autoridades diante dos acidentes tóxicos e escândalos de
lixo tóxico, assim como a avalanche de questões de legalidade, competência e
indenização [...] (BECK, 2011, p. 47) são exemplos da criminalidade transnacional
que demanda um direito transnacional.
Na sociedade mundial de risco, as nações não conseguem, sozinhas,
resolver os problemas. Devem dialogar para minimizar os riscos e perigos,
assessorar umas às outras e aliarem-se, ‘conforme o imperativo cosmopolita cooperamos todos ou fracassamos todos! (BECK; ZAPEDA, 2014)
O autor
enfatiza a necessidade da presença de Estados que atuem cooperando entre si,
visando a soluções ambientais, políticas, jurídicas e sociais, pois todos serão
afetados, as gerações presentes e as futuras. Vencer os problemas exige
esforços políticos globais, no entanto, nada ocorrerá sem conflitos. As soluções
estão nas negociações e não nas guerras (BECK, 2003, p. 23-26).
A perda da soberania e a solidariedade entre os Estados decorre de uma
sociedade globalizada pela necessidade da modernização e unida por riscos e
perigos incontroláveis. A transnacionalização da Economia, do Direito, da Cultura,
da Política, se ainda não é uma realidade posta, é uma realidade vindoura.
1227
4 PERIGO E VULNERABILIDADE
"A definição de perigo é sempre uma construção cognitiva e social" (BECK;
GIDDENS; LASH, 2012, p. 19). O perigo é imprevisível, imperceptível,
incontrolável. É uma das consequências incalculáveis das decisões humanas na
sociedade
mundial
de
riscos.
Pode
ser
entendido
como
produto
do
desenvolvimento mais avançado da modernidade. O seu diagnóstico corresponde
à sensação de inelutável desamparo diante dele (BECK, 2011, p. 8).
Desde meados do século XX, as instituições sociais da sociedade industrial
enfrentam a possibilidade de destruição da vida no planeta (BECK, 2002, p. 83).
Os riscos da modernização, quando os perigos da sociedade industrial se tornam
iminentes, somam-se a estes e forma-se “uma peculiar carga de dinamite política”
(BECK, 2011, p. 95). É importante o entendimento da dificuldade que a
linguagem humana encontra em informar sobre os perigos da sociedade mundial
de riscos, uma vez que a sua conscientização é perturbadora para toda a
sociedade.
Pues la outra cara de admitir la presencia de peligros es reconocer el
fracaso de las instituciones, cuya legitimidad se deriva de su afirmación
de dominar el peligro. Por eso, el <<nacimiento social>> de un peligro
global es un acontecimiento tan poco probable como dramático, más
bien, traumático, un aconntecimiento que sacude a la sociedad mundial.
(BECK, 2003, p. 16-18).
A outra face da presença dos perigos é a falência das instituições de
domínio do perigo. A sociedade mundial de risco mostra-se vulnerável, pois os
perigos são consequências imprevisíveis, deles só elas restam.
Assim como os riscos, os perigos da era nuclear também não podem ser
segregados. A violência do perigo suprime todas as zonas de proteção e todas as
diferenças entre classes da primeira modernidade. Para uma contaminação
nuclear, inexiste uma “saída possível para regiões, países ou continentes inteiros”
(BECK, 2003, p. 7). Uma simples virada no tempo pode ser suficiente para que a
toxicidade atinja o “outro”, pois o perigo viaja com o vento, com a água, com os
alimentos, com os objetos etc.. Por uma contaminação nuclear, pode não haver
sobreviventes no mundo inteiro. A sensação é de desamparo (BECK, 2011, p. 710).
1228
Os perigos ambientais apresentam um horizonte de conflito: sempre há
perdedores e ganhadores. Os interesses dos que contaminam enfrentam os dos
demais. À medida que o perigo se concretiza, aumenta-se o interesse de prevenilo, de evitá-lo, de eliminá-lo, no entanto inclui-se um fatalismo negativo “nada se
pode fazer, já é tarde demais” (BECK, 2002, p. 162-163).
Os países mais pobres atraem mais os riscos. As indústrias químicas
altamente tóxicas tendem a instalarem-se nos países subdesenvolvidos por
possuírem uma população desempregada que aceita inconscientemente os riscos
em troca de empregos. Todavia, à medida que os riscos se potencializam, tudo se
converte em perigo (BECK, 2011, p. 49-53). “As anteriormente celebradas fontes
de riqueza (energia atômica, indústria química, tecnologia genética etc.)
transformam-se em imprevisíveis fontes de perigos.” (BECK, 2011, p. 62)
O perigo transpassa tudo o que lhe poderia opor resistência. Para o perigo
não há barreiras, não há controle pela modernidade. O perigo tem acesso a tudo,
ao ar, à água, ao solo, aos alimentos, às plantas, aos animais, aos seres
humanos (BECK, 2011, p. 9)
Na sociedade global de risco, existem três dimensões de perigo, cada uma
seguindo uma lógica singular: a crise ecológica, a crise financeira global e o
perigo terrorista da rede transnacional que age nesses parâmetros. Nas três
dimensões apresentadas, a globalidade do perigo abre oportunidades de ações
geopolíticas (BECK, 2003, p. 19).
Para Ulrich Beck, o problema do perigo global tem solução global e
demanda cooperação global. A ideia dos países de que podem sozinhos dar
respostas às questões é a grande ilusão do século XXI. A persistência dos países
na individualização das questões faz com que ao invés de evitar as catástrofes,
elas sejam multiplicadas. O perigo tende a ser maior à proporção que se
nacionalizam as tentativas de soluções para ele. As fusões sociais tendem a
serem positivas na busca de respostas (BECK; ZEPEDA, 2014).
Na segunda modernidade, a sociedade é interdependente, é autocrítica. Na
modernidade reflexiva, apresentada por Ulrich Beck, devemos encontrar
respostas aos riscos produzidos. A modernização torna-se “reflexiva” ao passo
que se transforma em um problema para ela mesma. Para Beck, é a etapa da
1229
modernidade em que o progresso se autodestrói. Necessária se faz a reflexão
das consequências do progresso. Questiona-se: as intervenções irreversíveis e
incalculáveis do progresso compensam à existência humana, à natureza etc.
Quais são os limites da ciência para lidar com a incerteza a longo prazo?
Quais os riscos que o consumo dos transgênicos traz à saúde dos seres
humanos?
Os cientistas querem evoluir seus trabalhos independentemente do quanto
precisam potencializar os riscos em contextos precários. O ser humano e a
natureza são vulneráveis àquilo que não é considerado tóxico e tem circulação
livre. A ciência considera como risco apenas o que comprovadamente já foi
registrado como nocivo aos seres humanos e à natureza, deixando livre para
consumo toda e qualquer outra substância.
As substâncias tóxicas utilizadas no processo de envenenamento dos
alimentos geram riscos e perigos globais e demandam limites de tolerância. Ulrich
Beck alerta que a expressão “pouquinho” torna-se “normal”, mas, na verdade,
trata-se de um “envenenamento admissível”, coberto pelas lacunas do silêncio
(BECK, 2011, p. 79-80). Relevante e especificamente grave também é o problema
das concentrações tóxicas nos seres humanos, pois os estudos isolados da
toxicidade dos produtos não garantem sua inocuidade (BECK, 2011, p. 31).
Mesmo quando são fixados os limites de tolerância para substâncias isoladas,
desconsidera-se o envenenamento total.
Ademais, não se pode estender o resultado com as experiências em
animais para testar os riscos futuros de uma substância isolada, se os efeitos
reais serão postos a prova de forma particular e cumulada com outras
substâncias nos seres humanos.
A
verdade
científica
tem
validade
finita,
sendo
constantemente
questionada pela própria ciência. Do que é que se deve ter medo ou não são os
especialistas a tentar responder, no entanto, foge à capacidade humana dar
respostas àquilo que é imprevisível e incontrolável sendo que a possibilidade que
resta é sonegar o perigo, que gera menos pânico na população, que é mantida na
paz da ignorância e longe da verdade da percepção dos riscos e perigos.
1230
A impotência e a vulnerabilidade dos seres vivos em relação à energia
nuclear, às indústrias químicas, à engenharia genética, ao terrorismo e às
mudanças climáticas fazem com que uma situação de “normalidade” seja
convertida em perigo em questão de segundos. A mutação tende à alteridade,
que conduz os seres humanos a aprenderem a lidar com o medo e a insegurança,
suportar os perigos e superar as consequências como realidade. “Quando tudo se
converte em ameaça, de certa forma nada mais é perigoso” (BECK, 2011, p. 43).
Quando não há solução, solucionado está!
5 MECANISMOS DE ABSORÇÃO DOS RISCOS (ECONOMIA, CIÊNCIA,
INDIVIDUALIDADE, POLÍTICAS LOCAIS)
Com o advento da segunda modernidade e o fim da sociedade industrial, a
partir da qual esta nasceu, a maneira como os riscos se disseminam e seus
efeitos mudaram. Porém, a demanda da sociedade por garantias e controles
continua existindo, muitas vezes ignorando as mudanças na própria realidade do
risco. Ulrich Beck indica, diretamente, que a sociedade demanda e confia no
controle (BECK, 2014), mesmo com o advento de riscos inconhecíveis. Riscos
surgem que não são mais compensáveis, catástrofes novas, inconhecíveis e,
principalmente, incompensáveis (BECK, 2014).
Ultich Beck nota, frequente e enfaticamente, que as instituições que
desenvolvemos para lidar com a incerteza que é criada pela modernidade não
são capazes de produzir esta certeza, porque são tão bem-sucedidas, porque têm
consequências que vão além dos estados-nações (BECK, 2014). Ora, a
economia, ciência, individualidade e políticas locais, bem como várias outras subpolíticas, se encaixam nessa categoria. Vemos o modelo de “seguros” e
contingenciamento local, já não são mais possíveis, quando os riscos são
globalizados e ultrapassam fronteiras. Vemos claramente isso no clássico
exemplo de Chernobyl, mas também em exemplo mais recentes como
Fukushima, a crise econômica russa e posteriormente do mercado imobiliário
americano e, principalmente, a mudança climática.
1231
A própria ideia de individualização como mecanismo de absorção de riscos
não é apenas inefetiva, porém irreal. Na atual modernidade, com a
universalização das comunicações e a internet, vamos até além da descrição
oferecida por Ulrich Beck sobre a televisão (BECK, 2011, p. 196), quando já
indicava que a mesma isola e padroniza. Ao mesmo tempo que temos uma
individualização, temos uma padronização que faz com que “circunstâncias
individuais, mesmo em sua dependência institucional, já não podem ser limitadas
pelas fronteiras dos Estados Nacionais.” Ou seja, mesma tal individualização
ainda exista – mesmo que superficialmente – ela não mais representa um
isolamento e, na falta deste, não mais opera como mecanismo de absorção de
riscos. Nenhuma individualização permite se proteger de catástrofes globais.
Nenhuma medida individual (ainda que este “indivíduo” seja um grupo) pode, por
exemplo, isolá-lo das consequências das mudanças climáticas globais.
Outros mecanismos de absorção tradicionais da sociedade industrial, como
a economia e as ciências também caem por terra. Estes, outrossim, acabam se
tornando fontes originadoras de riscos. O progresso e o desenvolvimento deixam
de ser unicamente mecanismos que evitam, por exemplo, o risco de que uma
dada sociedade não tenha alimentos suficientes, através de práticas de aumento
de produtividade, e passa a se tornarem riscos devido a estas mesmas práticas,
em uma escala ou outra. Alguns falam até mesmo de uma extinção em massa de
espécies, apesar de, em termos científicos, isto ainda não estar totalmente
caracterizado (DELL’AMORE, 2014). Temos a mudança climática, e mesmo os
tão discutidos alimentos geneticamente modificados (GMOs). Como Beck bem
indica, de uma sociedade industrial obcecada com o progresso, hoje este
progresso se precariza com a ampliação dos riscos (BECK, 2011, p. 296). Temos
os efeitos sociais da transformação tecnológica. Talvez um dos casos mais
exemplificativos da reflexibilidade da sociedade de risco global seja a recente
descoberta de amostras do vírus da varíola em um depósito da FDA (Food and
Drug Admnistration) dos Estados Unidos (EUA, 2014). A ciência então fracassa
como fonte legitimadora do progresso, e como mecanismo de absorção do risco,
uma vez que quanto maior o progresso, maior o risco gerado por ele próprio. O
1232
consenso cultural sobre o desenvolvimento técnico-econômico se perde, e cada
vez mais somos advertidos sobre as ameaças.
A economia pode ser vista pelo menos prisma da ciência, em que de tem a
“fórmula pacífica partilhada por todos de que ‘progresso econômico é igual a
progresso social’”, o que leva novamente ao conceito de efeitos sociais. Nota-se
que nas avaliações de efeitos sociais, sejam eles positivos ou negativo,
pressupõem-se o consenso em torno da consumação do desenvolvimento
econômico (BECK, 2011, p. 299). E uma vez que tal consumação é desejável,
cabe ao estado realizar tarefas indiretas, como o controle de riscos. Porém, com a
ampliação dos riscos, as premissas dessas fórmulas são suspensas, da unidade
entre progresso tecnológico e social.
No caso da economia, temos ainda um outro desdobramento. A
globalização permitiu que corporações transnacionais utilizem a ameaça de dano
econômico como fonte de poder (BECK, 2005, p. 122), como por exemplo a
transferência de empregos para outros países, fazendo com que a economia não
apenas deixe de ser um possível mecanismo de absorção, e passe a ser um
mecanismo de extrapolação de riscos.
Por último, outro mecanismo de controle e compensação de riscos
oriundos da sociedade industrial é o de políticas, especialmente políticas locais.
Porém, a “política não é mais a única e nem mesmo a mais importante instância
em que se decide sobre a configuração do futuro social” (BECK, 2011, p. 338).
Isto
é
uma
autolimitação
historicamente
consumada,
que
precisa
ser
compreendida. O poder decisório proposto pela política, e pelos políticos, é
muitas vezes simulado, especialmente durante campanhas eleitorais. É uma
lenda determinada pelo sistema. “Essas ficções têm sua realidade na encenação
e na estrutura de poder funcional da sociedade industrial” (BECK, 2011, p. 338).
E, se o poder não é real, a capacidade de absorção de riscos pela política
também não pode sê-lo.
1233
6 DIREITO COMO MECANISMO DE ABSORÇÃO
A reflexividade da sociedade de risco global, a expansão dos riscos, a
quebra de fronteiras dos estados-nações decorrentes da globalização, a quebra
da fórmula do progresso tecnológico equivaler a progresso social, nos levam a
uma ruptura com os mecanismos de gerenciamento e compensação de riscos
existentes na sociedade industrial. Porém, a sociedade demanda e confia no
controle. Como riscos não são mais compensáveis, tais acidentes, catástrofes,
não podem acontecer. É a precaução por prevenção (BECK, 2014). E assim
novos mecanismos de controle e absorção se tornam necessários, onde o risco
pode ser visto como um ônus social. “[S]empre que direitos são garantidos, que
ônus sociais são redistribuídos, que a participação é viabilizada, que cidadão se
tornam ativos, a política avança um pouco mais na dissolução de suas fronteiras e
em sua generalização” (BECK, 2011, p. 287). A democracia implica em uma
autodesautorização e de deslocalização da política. Economia, ciência não podem
mais fazer política com seus meios. Uma vez que os riscos estão distribuídos e
são, agora, gerais, os mecanismos de controle inevitavelmente também devem
assim se tornarem, uma vez que não temos mais a ficção de um centro de
comando da sociedade moderna.
Em outras palavras, com a mudança dos riscos pessoais para as ameaças
globais, a transição da sociedade industrial para a sociedade de risco global, é
necessário que os riscos também sejam tratados de forma mais ampla, e não
local ou pontual. Não pode mais se falar em controle ou gestão de riscos, e muito
menos compensação, pois as catástrofes não são compensáveis. Uma vez que o
resultado de tais catástrofes é inaceitável, elas simplesmente não podem
acontecer, e a maneira de manter o controle que a sociedade demanda é
distribuindo-se o ônus social na mesma. Como os riscos são globais, as fronteiras
e barreiras da política devem se tornar tão rarefeitos como as fronteiras e
barreiras dos riscos. Sistemas políticos apenas formalmente democráticos não
são mais suficientes, e devemos ter não uma democracia usufruída, mas sim uma
democracia estabelecida. “Nesse sentido, a democracia estabelecida, na qual os
1234
cidadãos são conscientes de seus direitos e lhes dão vida, exige uma
compreensão da política e instituições políticas diferentes daquelas da sociedade
que ainda caminha nessa direção” (BECK, 2011, p. 288).
Porém, uma solução política de distribuição do ônus não é sustentável,
pois a política é autoincapacitativa, limitando-se a propagandista do processo e a
propaganda oficial, quando abertamente questionada, pode se converter em
ameaça aos resultados eleitorais. Assim, riscos que existem, não deveriam existir,
e revela-se a impotência da política. Temos então o desencontro ainda mais dos
riscos com a economia e a política. “A economia não tem responsabilidade sobre
algo que ela desencadeia, e a política é responsável por algo sobre o que ela não
tem qualquer controle” (BECK, 2011, p. 329-331).
Ulrich Beck propõe, então, como solução para esta autoincapacitação a
própria responsabilidade pelos efeitos colaterais, “uma ampliação e da garantia
jurídica de possibilidade específicas de controle da subpolítica” (BECK, 2011, p.
339). E ainda aponta a importância de tribunais fortes e independentes e uma
esfera pública forte e independente. No topo disso, ele ainda aponta a
necessidade de autocrítica dentro do progresso, como contralaudos, discussões
interprofissionais
e
interempresariais
a
respeito
do
risco
do
próprio
desenvolvimento etc, ou seja, a medicina contra a medicina, a física contra a
física, a ciência contra a ciência, a economia contra a economia. Algo que
poderíamos até chamar de autoreflexão crítica dos mecanismos de progresso,
“provavelmente a única a maneira pela qual poderia ser desvelado de antemão o
erro que, de outro modo, faria com que, mais cedo ou mais cedo ainda, o mundo
nos passasse em branco” (BECK, 2011, p. 340).
Porém, vale notar que mesmo sendo o Direito o único mecanismo que
possui a possibilidade de absorver os riscos, estes ainda persistem, e qualquer
atitude em contrário, tentando indicar que o Direito elimina os riscos, ou mesmo
os compensa, é um retorno a uma realidade utópica não mais condizente com a
sociedade contemporânea.
1235
7 CONCLUSÃO
As sociedades estratificadas do mundo medieval não tinham um conceito
de risco tal qual temos hoje. No mundo medieval, as catástrofes, as doenças, os
acontecimentos indesejados eram explicados e entendidos como castigo divinos,
como “fortuna” ou simplesmente como dádiva ou provação mística. Na
modernidade, contudo, a fortuna começa a ser imputada ao resultado das ações
humanas. “O futuro depende do que fazemos hoje”, diz o ditado popular moderno.
Fruto do Renascimento e do humanismo, é na Modernidade que os riscos e
perigos vão deixar de ser entendidos como castigos divinos e passarão a ser
compreendidos como efeitos colaterais das ações ou decisões da sociedade.
Na sociedade pós-industrial, na modernidade reflexiva, como a denomina
Ulrich Beck, a noção de risco ultrapassa os limites das cadeias de ações e
reações. Pois agora, os riscos já não possuem mais fronteiras. Não possuem
mais limites, nem geográficos, tampouco temporais. Um risco de catástrofe
ecológica pode desencadear perigos incontroláveis em termos não apenas
geográficos ou espaciais, mas também em termos de tempo, de gerações, de
história.
A noção de risco, com efeito, rompe com as noções tradicionais de tempo e
de espaço. Pois a extensão especial e temporal dos perigos já não é mais
controlável, nem previsível. Entretanto, os impactos dessa noção não se limitam
apenas a essa reflexão científica da sociedade do risco. O risco rompe também
com as tradições categorias sociológicas de entendimento e de organização da
sociedade. Conceitos como modernidade central e modernidade periférica, países
de primeiro e países de terceiro mundo, classes sociais, grupos sociais, campos
simbólicos, enfim, os riscos já não se encontram delimitados por esses conceitos
sociológicos.
Uma guerra não afeta apenas os países envolvidos, como a escassez de
água não afeta apenas a região com a estiagem. Os riscos econômicos,
ecológicos, políticos, religiosos, são questões que podem afetar todas as classes
sociais. Ricos ou pobres, todos se encontram igualmente submetidos aos riscos –
embora, como demonstrado nessa pesquisa, em países de modernidade
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periférica, como o Brasil, podem existir grupos de maior vulnerabilidade a riscos
do que outros.
O Direito se torna importantíssimo em uma sociedade do risco pois ele
produz confiança. Quanto mais correto é o funcionamento do Direito e das
instituições jurídicas, mais confiança a sociedade produz para enfrentar os seus
riscos. O direito trabalha com as expectativas da sociedade. Ele afirma o que
podemos esperar uns dos outros, apesar do risco de frustração, apesar das
coisas poderem sair de modo diferente do que era esperado. O Direito não
garante que as expectativas sociais que ele consubstancia vão ser efetivadas tal
como esperadas pela sociedade. Mas ele garante a diferença entre o que deve
ser esperado de modo contrafático e o que deve ser abandonado pelo
aprendizado.
Assim o Direito funciona como um importante mecanismo social de
absorção de riscos. Ele não evita, tampouco controla, muito menos prevê a
produção de riscos. Mais importante do que isso, o Direito produz a confiança
institucional necessária para que a vida continue apesar da sempre presente
probabilidade de efeitos colaterais, de consequências indesejadas e de
frustrações nas expectativas. As expectativas jurídicas imunizam a frustração,
gerando, assim, confiança.
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