O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TRABALHO E AS POSSIBILIDADES

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O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TRABALHO E AS POSSIBILIDADES
O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TRABALHO E AS POSSIBILIDADES DA
FORMAÇÃO UNITÁRIA NO ÂMBITO DO ENSINO MÉDIO INTEGRADO1
Mônica Ribeiro da Silva2
Eloise Medice Colontonio3
Introdução
A trajetória histórica do Ensino Médio fez-se a partir de movimentos que expressam ora
maior, ora menor aproximação com a Educação Profissional. Tais movimentos demarcam e
caracterizam o dualismo entre educação geral e formação profissional, a primeira orientada por
uma cultura geral, com foco nos estudos acadêmicos com vistas à apropriação da ciência; a
segunda, orientada por uma cultura técnica, de caráter utilitário e restrito a preparar para funções
laborais específicas. Esse dualismo, fundamentado na divisão social do trabalho e legitimado pela
legislação do ensino, expressa a intenção de ajustar a escola às demandas do processo produtivo,
bem como a razões políticas que se firmaram em cada momento histórico.
Contemporaneamente, as possibilidades de profissionalização em nível médio tornaram-se
limitadas a partir da vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96, que separou, em
modalidades distintas, o Ensino Médio – de educação geral – e a Educação Profissional. Tal
separação viu-se consolidada pelo Decreto 2208/97.
A revogação desse Decreto e a instituição do Decreto 5154/04 retomam a possibilidade de
integração entre educação geral e educação profissional em nível médio, o que conduz à
necessidade de se repensar a relação entre formação científica básica e formação profissional. Essa
possibilidade, no que se refere às concepções que irão nortear a ação das escolas, implica na
tentativa de promover uma integração que não se dê de maneira apenas formal, retomando a
clássica justaposição entre formação profissional e formação geral básica.
1
Capítulo do livro O Ensino Médio Integrado à Educação Profissional: concepções e construções a partir da
implanatação na rede púbica estadual – no prelo – 2008.
2
Doutora em Educação: História, Política e Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Professora na Universidade Federal do Paraná. [email protected].
3
Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná. [email protected]
2
Em que sentido tomar, assim, a perspectiva de integração? Conforme o Dicionário Aurélio,
integrar “diz-se de cada uma das partes de um todo que se completam ou complementam”, e, ainda
“tornar inteiro, incorporar-se” (1986, p. 954). Integrar demanda, ainda, um complemento: integrar o
quê? Quando se trata do Ensino Médio Integrado, significa integrar escola e trabalho; integrar
formação científica básica e formação técnica específica; integrar cultura geral e cultura técnica.
Como possibilidades conceituais, assumem centralidade as elaborações de Antonio Gramsci acerca
da formação unitária a partir do princípio educativo do trabalho.
As finalidades da integração, na perspectiva do trabalho como princípio educativo, estariam
em viabilizar a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos e
em particular dos processos de trabalho, consolidando uma formação profissional que ultrapasse o
caráter restrito e utilitarista do preparo imediato para o exercício de funções técnicas e que conduza
a um processo formativo capaz de gerar, de forma consistente, o conhecimento acerca das bases
científicas, históricas e culturais que explicam o trabalho e a tecnologia na contemporaneidade.
O princípio educativo do trabalho
O trabalho, em sua dimensão ontológica, manifesta-se como atividade humana de produção
da existência; é, portanto, ato de autocriação do homem (MARX, 1978; 1983). É por meio do
trabalho que o homem age sobre a natureza, transformando-a e, ao mesmo tempo, transformandose a si mesmo, sendo, portanto, expressão de suas faculdades físicas e mentais. Nesse sentido, é
que o trabalho torna-se princípio educativo em Gramsci, fundamento a partir do qual o homem
pode ver-se emancipado da extrema especialização em pleno avanço da produção industrial.
Em Para uma ontologia do ser social, Georg Lukács (1981) argumenta no sentido da
definição do trabalho enquanto atividade teleológica, isto é, sempre orientada a um fim, a satisfação
das necessidades humanas. O trabalho é reconhecido na sua condição ontológica originária por
meio da qual se verifica a capacidade humana de intervir no mundo exterior e transformá-lo,
momento que encerra a relação entre indivíduo e sociedade. Assim, “baseado no trabalho, pela
primeira vez, se estabelece uma verdadeira relação sujeito-objeto” (TASSIGNY, 2004, p. 25),
relação esta que está na base de processo educativo, isto é, de todo o processo da formação humana:
Em primeiro lugar, pode-se afirmar que o complexo social da educação tem a mesma base
ontológica que serve ao aparecimento das demais expressões espirituais humanas – isso é,
ele aparece como expressão das capacidades humanas e da necessidade de domínio sobre a
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realidade, surgidas em uma certa etapa do desenvolvimento histórico-social. (TASSIGNY,
2004, p. 25).
Na particularidade histórica do capitalismo, manifesta-se a contradição entre o trabalho em
sua perspectiva ontológica – como ato de criação – e na perspectiva de trabalho alienado4 –
limitador da condição criativa e emancipatória. Para Lukács, a dimensão subjetiva da formação do
ser social – a ética – encontra seu fundamento no fazer do trabalho, ainda que circunstanciado pelas
condições históricas de cada formação social específica.
Assim sendo, em Lukács é com base na estrutura ontológica do trabalho que se pode
esclarecer a gênese da liberdade (as escolhas do sujeito entre alternativas no ato de trabalho),
cuja estrutura básica permanece presente, também, na ética: os homens, através das escolhas
alternativas, podem decidir-se por valores genéricos que impulsionam o desenvolvimento do
gênero humano. Nesse sentido, a esfera da ética é mediação de uma consciência que se
afirma não como simples epifenômeno das determinações objetivas, mas, sobretudo, como
possibilidade ativa de escolhas/decisões que traduzem autodomínio humano, tanto das
circunstâncias interiores, subjetivas, quanto das circunstâncias objetivas. (TASSIGNY, 2004,
p. 25).
A dimensão ontológica do trabalho está na base das proposições de Gramsci acerca do
princípio educativo. O trabalho é compreendido em suas dimensões teórico-prática, social e
histórica. É precisamente a partir da distinção entre o trabalho em sua dimensão ontológica e a
constituição histórica do trabalho alienado, que Gramsci localiza o trabalho como princípio
educativo.
Em Americanismo e Fordismo Gramsci (2000b) verifica o quanto a racionalidade do
trabalho na forma mais desenvolvida do capital se cristaliza no sacrifício da corporeidade e da
espiritualidade do trabalhador. São as conseqüências históricas e culturais do trabalho alienado, que
no processo expropria o saber e exaure o corpo, e no produto, encerra e limita as condições da
existência material. Contraditoriamente, Gramsci vê, aí, as condições de superação da alienação, na
medida em que por mais embrutecedor que seja o trabalho industrial, ele é incapaz de usurpar dos
homens sua atividade intelectual, condição de toda libertação, uma vez que, para o pensador
italiano:
... não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua
profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um
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Na formação social do capitalismo o trabalho se vê convertido em mercadoria: o trabalhador vende sua força de
trabalho e, pela divisão social e técnica do trabalho, pela separação entre trabalho manual e intelectual, vê-se alienado
do processo (a ausência de controle sobre o processo produtivo) e do produto (o que produz não lhe pertence, mas
pertence a quem paga por sua força de trabalho). (MARX, 1978; 1983).
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artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha
consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou modificar uma concepção do
mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, isto é, para suscitar novas maneiras
de pensar... (GRAMSCI, 2000a, p.53).
Por isso em Gramsci a educação possui papel central e se faz em todos os espaços
entremeados pelas relações humanas. A escola é concebida como lócus especial da formação dos
indivíduos, no entanto, sempre situada em relação às demais instituições, em particular à
“instituição trabalho” – o trabalho como elemento primordial de constituição do ser social, na sua
dimensão individual e coletiva.
Ao pensar a organicidade entre trabalho e educação, Gramsci localiza esta última enquanto
processo por meio do qual o homem adquire propriamente as condições de humanização, processo
este circunstanciado pela história e pelos modos de produção da existência determinados pelas
formas de organização do trabalho.
O caráter histórico do trabalho industrial moderno converte-se, na proposição gramsciana do
princípio educativo, no elemento integrador entre cultura e ciência e deveria, portanto, orientar todo
o processo educativo no âmbito da escola, chamada, por essa razão integradora, de escola unitária
ou escola unitária do trabalho.
A proposta gramsciana vai na direção de compreender os fundamentos que explicam
os processos naturais e sociais do desenvolvimento tecnológico e da produção
moderna, pois isto possibilitaria a aprendizagem de novos conhecimentos, o que
exige ir além das simples competências. Neste sentido verifica-se a importância do
conceito de trabalho, ciência, tecnologia e cultura na perspectiva das transformações
do trabalho e na elaboração do currículo escolar. Não se trata de uma adaptação às
mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho, mas de uma formação
integrada entre o ensino e a educação profissional ou técnica (tecnológica ou
formação politécnica) cuja exigência da formação do pensamento e da produção
social da vida, está além das práticas, de educação profissional e das teorias da
educação propedêutica. (ANGELI, 2007, p. 4).
Gramsci propõe como alternativa à escola tradicional assentada na ciência abstraída de suas
relações com o trabalho, uma escola "desinteressada", essencialmente humanista, que toma o
trabalho como princípio educativo. A escola "desinteressada" do trabalho teria como finalidade e
fundamento a compreensão objetiva da ciência e da tecnologia como base dos processos produtivos.
(...). No mundo moderno à educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial,
mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de
intelectual (...). Da técnica-trabalho, eleva-se à técnica-ciência e à concepção humanista
histórica, sem a qual permanece especialista e não se chega dirigente (especialista mais
político). (GRAMSCI, 2000 a).
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A formação unitária, capaz de integrar ciência e trabalho está no centro da proposição
gramsciana cujo método tomaria o trabalho como princípio educativo, identificado como espaço do
trabalho diretamente produtivo:
O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural com base no trabalho, na
atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo
liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior
desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para a compreensão do
movimento e do devir, para a avaliação da soma de esforços e de sacrifícios que o presente
custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade como
síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro. (GRAMSCI,
2000 a).
Nesse sentido, o trabalho, para Gramsci, é essencialmente um elemento constitutivo da
formação na medida em que possui uma dimensão teórico-prática, capaz de mediar a integração do
trabalho com o momento educativo:
[...] o modo em que a proposta de Gramsci, de trabalho como principio educativo é
fundamento da escola elementar emana da análise do conteúdo educativo do ensino de
base, à conclusão de um discurso que parte da diferenciação de dois elementos educativos
fundamentais, as primeiras noções de ciências naturais e as noções de direitos e deveres
do cidadão. São exatamente esses elementos culturais que determinam a natureza e a
função educativa do trabalho no pensamento de Gramsci, na medida em que as leis da
sociedade ("civil e estatais", diz ele) "colocam os homens na posição mais adequada para
dominar as leis da natureza", isto é "para facilitar seu trabalho, que é o modo específico
do homem participar ativamente da vida da natureza para transformá-la e socializá-la”.
(MANACORDA, 1991, p.138).
Gramsci assevera que, tomando o trabalho enquanto princípio educativo fundamental tornase possível realizar a tarefa de consolidar a unidade entre teoria e prática, e articular a técnica do
trabalho à sua base científica: a formação unitária ou politécnica, formação básica necessária para a
construção de uma concepção crítica de mundo e de uma formação técnico-política a partir da
integração entre ciência e técnica – entre ciência, cultura e trabalho.
Em síntese, em Gramsci o trabalho se constitui em componente fundamental da formação
humana na medida em que comporta a dimensão teórico-prática e técnico-política necessária para
mediar a integração do trabalho com o momento educativo. Nas Palavras de Markert:
As relações entre produção moderna e escola podem ser frutíferas, contanto que a formação
técnica especializada tenha por base a educação humanística e se oriente na dimensão
científico-criativa da indústria. Percebe-se que Gramsci descobriu e enfatizou as chances
formativas do desenvolvimento das estruturas complexas do trabalho industrial na educação
do novo intelectual. Produção industrial como “trabalho qualificante” favorece o
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desenvolvimento da criatividade e a cooperação em conjunto e torna-se “princípio
educativo”, mas o intelectual político-intervencionista dispõe igualmente de uma educação
geral-cultural. (2007, p. 10).
Primeiras iniciativas da implantação do Ensino Médio Integrado no Paraná: breves reflexões
acerca do Documento Fundamentos Políticos e Pedagógicos da Educação Profissional do
Paraná
Ao acompanhar o processo de discussão para a revogação do Decreto 2208/97, o estado do
Paraná fomentou a perspectiva de integração entre educação geral e profissional de nível médio,
iniciando a política de retomada da educação profissional já em 2003, por meio de ações dos órgãos
da Secretariada Educação do Paraná – SEED-PR -, legitimadas pela aprovação do Decreto 5154 em
2004. Logo, reflexões acerca da estrutura curricular apontaram para a formação do
cidadão/aluno/trabalhador, na perspectiva da educação politécnica. Dessa forma, já em 2004, foram
implantados cursos profissionalizantes integrados ao ensino médio em 71 escolas da rede estadual
de ensino.
Com o fim de orientar o processo de implantação do Ensino Médio Integrado, em 2005, a
SEED-PR lança o Documento intitulado Fundamentos Políticos e Pedagógicos da Educação
Profissional do Paraná, com os seguintes pressupostos epistemológicos: Articulação com a
educação básica; Trabalho como princípio educativo; As mudanças no mundo do trabalho e as
novas demandas da educação profissional; Relações entre ciência, tecnologia e educação
profissional; Determinantes da integração entre educação básica e educação profissional
(PARANÁ, 2005).
Faz-se, a seguir, uma breve discussão acerca do Documento Fundamentos Políticos e
Pedagógicos da Educação Profissional no Paraná com o fim de se dimensionar as proximidades
entre as proposições desse Documento e as asserções acerca do trabalho como princípio educativo
em Gramsci.
Uma primeira proposição relaciona o trabalho, a cultura, a ciência e a tecnologia como
princípios fundamentais na constituição do currículo. O papel da escola seria o de articular esses
elementos em seu projeto político pedagógico. A articulação entre trabalho, cultura, ciência e
tecnologia é proposta com o fim de permitir ao aluno reconhecer as transformações sociais
decorrentes do mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que se viabilizaria a democratização do
acesso ao conhecimento acerca do trabalho, da cultura e da tecnologia.
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A segunda proposição toma o trabalho como princípio educativo e eixo articulador do
currículo e das disciplinas. Desse modo define a construção de uma base teórico-prática no âmbito
do ensino médio integrado, proporcionando uma formação cultural, política e científica. Conforme
o Documento:
Para atender a este princípio, a proposta curricular deverá, do ponto de vista dos
conteúdos, contemplar: os princípios científicos gerais sobre os quais se fundamentam as
relações sociais e produtivas; os conhecimentos relativos às formas tecnológicas que estão
na raiz dos processos sociais e produtivos contemporâneos; as formas de linguagem
próprias das diferentes atividades sociais e produtivas; os conhecimentos sócio-históricos e
as categorias de análise que propiciem a compreensão crítica da sociedade capitalista e das
formas de atuação do homem, como cidadão e trabalhador, sujeito e objeto da história.
(PARANÁ, 2005, p. 37)
O trabalho se institui, assim, como princípio educativo ao viabilizar a compreensão do papel
dos sujeitos na sociedade em geral e no mundo do trabalho em particular, o que conduziria à
superação de uma visão reprodutivista e pragmática da atividade produtiva, ao enfatizar as
dimensões históricas, comportamentais (subjetivas) e ideológicas presentes na atividade teóricoprática do trabalho.
Dentre as proposições no Documento de fundamentação geral, prescreve-se que, na
organização dos conteúdos, assegure-se a integração entre ciência básica e conhecimentos
aplicados, considerando, inclusive, o ordenamento seqüencial entre as disciplinas da formação
científica básica e da formação profissional, o que implica no tratamento indissociável entre
trabalho manual e intelectual e entre teoria e prática:
Acerca desta questão, podemos afirmar que a teoria corresponde a uma interpretação
possível da realidade, em um dado tempo e em um dado espaço; assim será sempre parcial,
revelando e escondendo ao mesmo tempo. Já a realidade é complexa, síntese de múltiplas
determinações que não se deixa conhecer em sua plenitude pelo pensamento humano,
sempre parcial e determinado pelo desenvolvimento histórico das forças produtivas.
(PARANÁ, 2005, p. 25)
As propostas destacadas do Documento norteador da Educação Profissional no Paraná,
como é possível constatar, guardam significativa proximidade com as formulações teóricas de
Antonio Gramsci acerca do princípio educativo do trabalho. No entanto, é preciso preservar a
dimensão histórica de seus escritos para que não se corra o risco de transladar princípios e conceitos
de um contexto a outro, fragilizando-se, com isso, sua potencialidade explicativa e propositiva.
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Provavelmente, em virtude do reconhecimento da ressalva acima, dentre outros motivos, é
que no Documento Fundamentos Políticos e Pedagógicos para a Educação Profissional faz-se
referência a um princípio relacionado diretamente às mudanças ocorridas contemporaneamente no
mundo do trabalho e às demandas que tais mudanças impõem à formação do trabalhador. Afirmase, nessa direção, que a educação profissional integrada ao nível médio teria o compromisso de
atender à formação de novas competências em seus alunos, como a flexibilidade, a capacidade de
improvisação, a comunicação, a autonomia intelectual e moral:
A partir desta perspectiva justifica-se e exigem-se patamares mais elevados de educação para
os trabalhadores, até porque a concepção de competência enunciada privilegia a capacidade
potencial para resolver situações-problema decorrentes de processos de trabalho flexíveis em
substituição às competências e habilidades específicas exigidas para o exercício das tarefas
rígidas nas organizações taylorista/fordistas. (PARANÁ, 2005, p. 32).
A referência às perspectivas postas pelo mundo do trabalho na contemporaneidade situa as
proposições do Documento estadual em relação à dinâmica histórica de uma sociedade que se move
entre continuidades e rupturas, e, enquanto documento de política pública, manifesta-se seu caráter
de não neutralidade ao incorporar a dimensão contraditória da sociedade capitalista.
Educação geral e profissional: desafios para a integração e as possibilidades do trabalho como
princípio educativo – Considerações Finais
As proposições de Gramsci acerca da escola unitária e do trabalho como princípio educativo
indicam como desejável uma formação politécnica, possível por meio da integração entre ciência,
cultura e trabalho em um projeto educativo unitário, necessidade que permanece e se vê aumentada
em nossa sociedade, se nos colocamos diante do desafio de pensar e realizar um projeto educativo
emancipatório.
O Ensino Médio Integrado, nesta perspectiva, contempla a educação como formação
científica e tecnológica. A concepção gramsciana de formação unitária, isto é, a formação capaz de
integrar as dimensões científicas e técnicas do trabalho, deveria assegurar o domínio “dos
princípios científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno e
dos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho.” (SAVIANI, 1987, p.17).
Assim, a formação unitária poderia proporcionar uma educação capaz de contemplar os
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diferentes elementos de mediação que explicam a prática produtiva, na medida em que propicia a
compreensão dos princípios e fundamentos da atividade produtiva, por exemplo, ao oportunizar o
entendimento de que a tecnologia não contém em si apenas uma dimensão técnica, mas é marcada
pela relação social que lhe dá origem e a converte, em nossa sociedade, em elemento de dominação.
A categoria trabalho como princípio educativo, própria de Gramsci, evidencia que a função
social, pedagógica e histórica, da escola é a de promover a articulação entre trabalho manual e
intelectual, entre teoria e prática, entre ciência, cultura e trabalho enquanto componentes históricoculturais da formação do indivíduo.
Diante desse desafio, torna-se imprescindível a construção de um projeto políticopedagógico capaz de articular a teoria e ação curricular sustentados no e pelo princípio educativo
do trabalho. A efetivação deste re-ordenamento curricular, além da integração entre as disciplinas
de formação geral e as disciplinas da formação específica, a partir do trabalho, impõe como
necessários desdobramentos político-pedagógicos resultantes do repensar as práticas de ensino, de
planejamento e de avaliação. Essa necessidade encerra a construção da perspectiva integrada no
âmbito dos desafios epistemológicos que levariam a rever a relação que alunos e professores têm
travado historicamente com o conhecimento no interior das formas escolares consolidadas.
Conforme o Documento estadual, as parcelas disciplinares encontradas nos currículos
escolares dificultam a interação entre os campos do conhecimento, e implica na necessidade da
organização curricular por meio da transdiciplinaridade, assim, entendida:
A transdisciplinaridade implica na construção de novos objetos, com metodologias peculiares, a partir
da integração de diferentes disciplinas, que se descaracterizam como tais, perdem seus pontos de vista
particulares e sua autonomia para constituir novos campos do conhecimento. É uma nova forma de
integração de vários conhecimentos que quebra os bloqueios artificiais que transformas as disciplinas
em compartimentos específicos, expressão de fragmentação da ciência. (PARANÁ, 2005, p. 41).
Os currículos organizados a partir dos clássicos fragmentos disciplinares dificultam, de fato,
a interação entre os diversos campos do conhecimento. No entanto, tampouco uma artificial
abordagem interdisciplinar proposta a posteriori da disciplinarização tem se mostrado capaz de
romper as barreiras da parcialidade e da fragmentação.
Assim, tomar o trabalho como princípio educativo significa, em última instância, recorrer à
teoria e à prática do trabalho como referências permanentes na organização do trabalho pedagógico:
do planejamento (definição das concepções, do perfil, dos conhecimentos, das formas
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metodológicas, das disciplinas, dos processos de acompanhamento), à efetividade do currículo em
ação, isto é, à materialização dessas intencionalidades no cotidiano das salas de aula.
A integração entre educação geral e formação profissional impõe repensar a organização
pedagógica e curricular em bases que superem as velhas formas marcadas pela mera justaposição.
Nesse sentido, evidencia-se a necessidade de articulação entre teoria e prática, entre ciência e
técnica. Reafirma-se, igualmente, a necessidade de gerar a compreensão do significado histórico e
social do trabalho.
Desse modo, mostra-se fundamental o papel da escola na construção e na busca da possível
integração do mundo da cultura com o mundo do trabalho, por meio da articulação plena entre
formação geral e profissional. Dito de outro modo, a integração curricular pressupõe uma
articulação entre conhecimentos gerais e específicos construídas sobre o eixo integrador trabalhociência-cultura.
Importa, por fim, destacar que para que a escola unitária se efetive em pleno sentido é,
segundo Gramsci, necessário compreender que:
...A escola unitária requer que o estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da
família no que toca à manutenção dos escolares, isto é, requer que seja completamente
transformado o orçamento do ministério da educação nacional, ampliando-o enormemente e
tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação de novas gerações deixa
de ser privada e torna-se pública, pois somente assim ela pode abarcar as gerações, sem
divisões de grupos ou castas. Mas esta transformação da atividade escolar requer uma
enorme ampliação da organização prática da escola, isto é, dos prédios, do material
científico, do corpo docente, etc. (GRAMSCI, 2000a, p.36).
Referências
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BRASIL. Lei n.9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
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______Presidência da República. Decreto 2.208/97, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o
parágrafo 2o do art. 36 e os artigos 39 a 42 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
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______Presidência da Republica. Decreto nº 5.154 de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do
art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394, de 20-12-1996, que estabelece as diretrizes e bases da
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