Ativação e ressignificação da classe trabalhadora em Venezuela e
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Ativação e ressignificação da classe trabalhadora em Venezuela e
Ativação e ressignificação da classe trabalhadora em Venezuela e Bolívia: a conjuntura constituinte. Mayra Goulart 1 Introdução. O paper aqui apresentado faz parte de uma pesquisa em andamento. Esta por sua vez espera concluir-se sob a forma de uma contribuição à teoria democrática contemporânea, uma vez que seu objeto diz respeito a diferentes formas de interpretar este ideal. Nesse sentido, buscar-se-á observar como diferentes conceitos de democracia são mobilizados por atores sociais determinados, atentando para as consequências de tal mobilização. Em particular, serão analisadas as conceitualizações substancialistas procedimentalistas e "agonísticas" acerca da noção de soberania popular. Não obstante, a escolha destas formas de ressignificar o ideal democrático obedece um critério puramente instrumental e didático tendo em vista o objetivo do trabalho, que é analisar os recentes processos de ativação do poder constituinte sucedidos em Venezuela e Bolívia – nos quais o conceito de democracia teria exercido o papel de catalizador – observando as formas pelas quais os principais atores envolvidos se apropriaram de tal conceito. Em seguida, se investigará como essas diferentes formas de interpretar o ideal democrático influenciam a práxis dos atores e, por conseguinte, as instituições por eles modeladas. Partir-se-á, então, da hipótese de que distintas formas de entender a democracia ensejam diferentes formas de agir, na medida em que "decantam" sobre a forma de distintas práticas e demandas políticas, que, por sua vez, dão origem a desenhos institucionais diferenciados. Sendo assim, por meio da análise de documentos e ensaios sobre o período constituinte, mas, também, sobre seus antecedentes e desdobramentos, buscar-se-á elementos que permitam um maior conhecimento sobre a formação e atuação dos principais atores coletivos envolvidos nos procesos de cambio 2 estudados. 1 Doutoranda em Ciência Po lít ica do Instituto de Estudos Polít icos e Sociais da Un iversidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), mestre em Ciência Po lít ica pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), professora do Instituto de Humanidades e da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM) e coordenadora do Observatório de Países de Língua Portuguesa (OPLOP). 2 Forma pela qual grande parte da população de Venezuela e Bolívia se refere ao processo que levou a uma transformação política, por meio de u ma ruptura co m as lid eranças pretéritas e instauração de um 1 Do mesmo modo, serão analisados documentos e ensaios sobre o período que sucede tais processos em busca de elementos que indiquem suas principais consequências. Portanto, identificando a democracia como um ideal normativo que desempenha um papel determinante na definição da conduta dos principais atores envolvidos nos processos constituintes estudados e, por conseguinte, no desenho institucio nal por eles configurados, espera-se estabelecer: (i) quem eram e qual a origem dos principais atores envolvidos nesses processos; (ii) qual eram os conceitos de democracia por eles mobilizados, ou seja, o que eles entendiam por democracia quando a demandavam; (iii) qual o impacto dessas diferentes formas de entendimento na praxis desses atores durante o momento constituinte; (iv) qual o seu impacto para a configuração institucional constituída. Primeira parte Apresentação da polêmica: debate teórico acerca do conceito de democracia. 1.1. A democracia inachevée, sua origem e o controverso conceito de participação. Esta investigação tem como ponto de partida o diagnóstico de Pierre Rosanvallon de que o ideal democrático teria um caráter inachevé, ou seja, se constituiria como um horizonte necessáriamente inalcançável 3 e, portanto, incapaz de cristalizar-se em um sistema institucional ou conceito determinado. Tal pressuposto, por sua vez, se desdobra em uma perspectiva epistemológica segundo a qual o conceito de democracia só se mostraria sob a forma de movimento e, por isso, só poderia ser estudado através da análise de suas sucessivas ressignificações e polêmicas entre as diferentes formas de interpretá-lo. Esta é, então, a perspectiva que orienta a proposta novo marco institucional. Sob uma perspectiva quantitativa e generalista é seguro afirmar que tal p rocesso conta com o apoio da maio ria dos cidadãos de ambos os países, embora, co mo será desenvolvido ao longo do trabalho, os níveis de aprovação e crítica variem significativamente entre os dois casos estudados. 3 » il est tout de suite nécessaire de préciser qu’il ne s’agit pas seulement de dire que la démocratie a une histoire. Il faut considérer plus radicalement que la démocratie est une histoire. Elle est indissociable d’un travail d’exploration et d’experimentation, de compréhension et d’élaboration d’elle -même » (3 ROSANVA LLON ; 2000 : 32-33.) 2 desta primeira parte, na qual será promovido um contraste entre duas possíveis interpretações para a noção de soberania popular: uma, schmittiana, de caráter substancialista com desdobramentos cesaristas e outra, habermasiana, de caráter procedimental e deliberativo. Tal contraste, todavia, será realizado com a intenção de orientar uma reflexão crítica a respeito das novas Constituições de Venezuela (1999) e Bolívia (2009), assim como dos processos políticos que as engendraram e sucederam. Esta intenção alicerça-se na percepção de que ambas dinâmicas de ativação do poder constituinte respondem a um projeto de refundação democrática do Estado, através da construção de um modelo participativo de democracia. Entretanto, haja vista sua vagueza e indefinição conceitual, a noção de participação é compatível com concepções substancialistas e procedimentais de democracia. Deste modo, objetivo da pesquisa é aclarar quais teriam sido as interpretações acerca da ideia de soberania popular mobilizadas nesta conjuntura, na tentativa de esclarecer qual teria sido a fundamentação do modelo demandado. Nesta medida, a análise se volta para a busca de indícios que evidenciem, nas dinâmicas políticoinstitucionais configuradas pelas novas Cartas, vestígios que remetam aos difere ntes – e, em certa medida, antagônicos – conceitos de democracia que as inspiraram. Esta seção cumpre, então, a função de introduzir didática e preliminarmente alguns destes conceitos. Para isso, ela incluirá um quadro comparativo no qual serão sintetizadas as cinco formas de ressignificar o ideal democrático que serão mobilizadas ao longo do estudo de casos. Estas são: (a) da origem: o modelo grego; (b) da ressignificação republicana: o modelo substancialista de Rousseau; (c) da radicalização schmittiana: o modelo cesarista/plebiscitário; (d) da crítica habermasiana: democracia enquanto modelo de procedimento deliberativo e, por fim, (e) uma síntese possível: o modelo agonístico de Chantall Mouffe e Ernesto Laclau. Antes desta sucinta exposição cabe um, também sucinto, comentário acerca do caráter demasiadamente vago das interpretações “participativas” do ideal democrático 4 . Para isso, voltar-se-á ao modelo grego (ateniense), enquanto arquétipo deste ideal, com o propósito de desqualificar sua caracterização como “democracia direta” – apontando 4 Levando em consideração que mesmo o modelo plebiscitário e cesarista se estrutura em função de algum grau de participação, no caso à consulta às massas e, subsequente, aclamação ou desaprovação ao líder, é possível conjecturar que tal conceito é demasiadamente vago e, portanto, incapaz de servir de parâmetro para a análise normativa dos experimentos democráticos. 3 os limites de tal conceito e sua proximidade com as formulações substancialistas. Sendo assim, o sistema político ateniense será reafirmado em seus componentes deliberativos. Com base nas leituras de M. I. Finley, Chantal Mouffe e Ellen Wood, entre outros, o sistema político-social estabelecido em Atenas no século IV AC. – delineado através de resgates históricos, subjetivamente orientados, como todos os outros –, é possível situá-lo no patamar de modelo de democracia, a servir de inspiração para as experiências subsequentes. Nestas narrativas ele sobressai, então, como procedimento deliberativo e includente, no que diz respeito à efetiva participação dos diferentes estratos econômicos que compunham a cidadania ateniense. Não obstante o reconhecimento da incompatibilidade do tipo de mecanismo político criado na Atenas do século IV A.C, com relação às sociedades complexas do século XXI. Todavia, de acordo com o ponto de vista assumido ao longo desta análise, nenhum anseio de mudança, sobretudo quando baseado no ideal democrático, pode ultrapassar a vulgaridade sem impor limites ao ceticismo. Dessa forma, como veremos no estudo de casos, é esta a disposição de grande parte dos atores políticos comprometidos com a instauração de um proceso de cambio em Venezuela e Bolívia, capaz de instaurar um modelo de democracia radicalmente participativo, cuja inspiração subjaz ao arquétipo ateniense, embora combinada com inúmeras outras influências e ressignificações. Uma disposição análoga, porém orientada teoricamente, pode ser encontrada na argumentação desenvolvida por M. I. Finley, em Democracia Antiga e Democracia Moderna. Isto porque o propósito do texto – que é repensar a democracia moderna a partir de uma análise aprofundada do modelo ateniense – é conciliado a um justificável ceticismo, a respeito da plausibilidade de admitir o sistema político de Atenas como um desenho institucional passível de transplante trans- histórico. Afinal, mesmo nos tempos áureos de Péricles, a totalidade dos cidadãos atenienses jamais passara de 40 mil homens, organizados de modo rudimentar em uma comunidade essencialmente agrícola. Este trabalho, então, em muito deve ao esforço de recuperação histórica realizado por Finley, Chantall e Wood acerca do modelo legado pelos gregos. Porém, é particularmente devedor do ponto de vista crítico que estrutura a argumentação destes autores. Como pode ser ilustrado no fragmento abaixo, retirado do livro de Finley. 4 “(...) seria absurdo fazer qualquer co mparação direta com u ma sociedade pequena, homogênea, onde todos se conheciam, co mo a antiga Atenas, sugerir ou até mesmo sonhar que pudéssemos reinstalar uma Assembleia de cidadãos como órgão supremo, co m poder decisório de uma cidade ou não moderna. Não era essa a opção que eu examinava, e sim u ma totalmente distinta, proveniente da apatia política e de sua avaliação. Não há como contestar que a apatia pública e a ignorância polít ica são hoje fatos fundamentais. As decisões são tomadas pelos líderes polít icos em apelo ao voto popular, o qual, no máximo , tem apenas um eventual poder de veto depois da concretização do fato. A questão é se esse estado de coisas, nas condições atuais, é algo necessário e desejável, ou se novas de participação popular, com o mesmo espírito das atenienses, embora sem sua essência, precisam ser inventadas” (FINLEY, 1988: 48 – grifo meu) Este argumento é fundamental para a pesquisa aqui apresentada, pois, além de assumido sob o ponto de vista teórico, ele é também compatível com uma apreciação empírica, formada a partir da análise dos atores coletivos que compõem o estudo de casos. Esta compatibilidade resulta do fato de que muito daqueles que vislumbravam a instauração de um proceso de cambio, deixaram de lado o excesso de ceticismo para abraçar um ponto de vista efetivamente normativo, haja vista a intenção de construir algo novo. Grande parte das abordagens comprometidas uma radicalização da democracia, empreendidas pelas sociedades venezuelana e boliviana; a despeito de suas diferenças, possuem uma estrutura comum na qual aparece a referência a experimentos participativos análogos ao ateniense 5 . Tal estrutura tem alguns atributos essenciais: a percepção de que o modelo representativo sofre de uma crise de legitimidade – tendo se mostrado insuficiente para atender às crescentes demandas e expectativas associadas ao ideal democrático –e; em segundo lugar, elas compartilham o entendimento de que o incremento da participação é a alternativa mais adequada para lidar com tal crise. Não obstante, a hipótese desenvolvida nesta seção busca atentar para a inadequação do conceito de "democracia direta", tendo em vista possíveis desdobramentos plebiscitários, e, até mesmo cesaristas, que subestimam o componente 5 Estes, por sua vez, são associados à ideia de democracia d ireta, que, co mo veremos, abre margem para imprecisões conceituais com consequências políticas desagradáveis. 5 deliberativo e o envolvimento dos cidadãos na formulação das propostas posteriormente sufragadas. Sob esta perspectiva, a participação se reduziria uma função meramente consultiva, perante propostas apresentadas por elites políticas (no caso dos experimentos plebiscitários), ou por um líder a ser aclamado ou rechaçado (no caso dos experimentos cesaristas). O conceito de "democracia participativa", por sua vez, padece do mesmo problema, e, também, será descartado em virtude de sua excessiva imprecisão. Pois, como asseverado acima, a ideia de participação pode compreender desde de uma aceitação tácita e complacente quanto às autoridades políticas, até a capacidade dos cidadãos de se envolverem ativamente nos processos de formação e decisão das políticas públicas. Deste modo, é necessário demarcar as diferenças entre as formas de entender a participação e a democracia, haja vista suas consequências radicalmente distintas em termos de práticas políticas e desenho institucional (o que será feito no próximo subitem). Para, em seguida, buscar um enquadramento normativo que defenda as abordagens que privilegiam o momento da deliberação, ressaltando a importância de processos de formação de interesses comuns, em detrimento da mera consulta e agregação de preferências aprioristicamente consideradas. A hipótese que normativamente será sustentada ao longo do trabalho, se configura em defesa do modelo apresentado por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, não apenas em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas, também, por sua adequação a contextos sócio-políticos marcados por uma forte polarização e antagonismo entre parcelas da população. Como se espera demonstrar ser o caso das conjunturas venezuelana e boliviana, analisadas ao longo da segunda parte da investigação. 1.2. O ideal de mocrático e suas ressignificações: cinco formas de interpretar a soberania popular a. Origem: o modelo ateniense a.1. Forma de interpretar a ideia de soberania popular: Procedimental. 6 O povo não apenas era consultado e votava propostas apresentadas por líderes – a partir de preferências pré- formadas –, uma vez que qualquer cidadão podia formular medidas e sugestões. A soberania entendia-se, portanto, enquanto procedimento de produção de consenso, no qual diferentes proposições eram apresentadas e debatidas. a.2. Procedimento decisório: Não representativo. O povo exercia sua soberania de modo direto, deliberativo e includente. a.3. Enquadramento normativo: Conforme ressaltado por inúmeros historiadores, o pertencimento ao conjunto de cidadãos atenienses, condição para a participação no processo decisório, tinha como contrapartida uma diferenciação em relação àqueles que não faziam parte deste grupo (estrangeiros, mulheres e escravos). b. O modelo republicano de Rousseau b.1. Forma de interpretar a ideia de soberania popular: Substancialista. Embora seja difícil resumir a complexidade do pensamento de J.J. Rousseau – que concilia elementos republicanos e liberais – é possível observar que, em sua descrição de uma comunidade política virtuosa, subjaz uma concepção substancialista acerca da ideia de soberania popular. Isto por que as condições de exercício de tal soberania implicam na configuração de uma comunidade homogeneamente virtuosa. b.2. Procedimento decisório: Não representativo. 7 O povo exerceria sua soberania de modo direto. Tal procedimento, entretanto, não se estabelece de modo propriamente deliberativo. Pois, ao reunirem- se em assembleias periódicas, os cidadãos apenas reafirmam sua identidade e concordância em relação aos termos da vontade geral, uma vez que já se encontram em consenso, no tocante aos valores éticos. Tal consenso, entendido como identidade dada a priori e não como resultado de um procedimento deliberativo, é a condição de possibilidade de qualquer noção substancialista de soberania popular. b.3. Enquadramento normativo: A vontade geral está enraizada em uma identidade compartilhada pelos cidadãos, que se encontram em uma situação de igualdade econômica e cultural, propiciando um alto grau de homogeneidade ético-valorativa, a qual, por sua vez, é apresentada po r Rousseau como condição de possibilidade para o sistema por ele proposto. Deste modo, a ideia se soberania popular é concebida como expressão do "povo" enquanto sujeito de uma identidade eticamente determinada. c) A radicalização schmittiana. c.1) Forma de interpretar a ideia de soberania popular: Substancialista, plebiscitária, cesarista e antagônica. Para Carl Schmitt o processo de formação de identidades ético/políticas procederia a partir da “exclusão do outro”. Sendo assim, seria através da percepção da alteridade, isto é, de um conjunto de elementos que definiriam a heterogeneidade (o ‘outro’), que se revelariam os elementos que configuram a homogeneidade (o ‘nós’). c.2. Procedimento decisório: Representativo com consultas diretas à população (cesarista). 8 Os cidadãos são chamados a aclamar ou rechaçar as decisões do líder (soberano), cuja força simbólica advém do seu papel de representante da identidade do grupo enquanto sujeito político. c.3. Enquadramento normativo: O povo soberano é sujeito de uma identidade ética, determinada a partir da decisão do soberano de excluir os elementos heterogêneos. No caso, aqueles que são considerados como uma ameaça ao modo de vida do grupo em questão. Não há afinidade necessária entre democracia e direitos huma nos, os quais são descartados enquanto mera abstração da ideia de igualdade. A democracia, contudo, implica em uma relação de homogeneidade e identidade concreta entre os cidadãos e seus governantes. d. O modelo deliberativo de Jürgen Habermas. d.1. Forma de interpretar a ideia de soberania popular. Soberania popular enquanto procedimento. Na reflexão pós- metafísica de Jürgen Habermas a soberania é entendida como expressão de um povo dessubjetivado, cuja identidade política deveria se limitar ao compromisso a constituição (patriotismo constitucional) e, sobretudo, ao apego às regras do procedimento democrático. A dimensão ético-valorativa é situada em um plano distinto, ou seja, fora da esfera pública. Por este motivo, as deliberações e decisões políticas sempre podem resultar em consenso ou acordo, não havendo espaço para conflito entre valores não conciliáveis, uma vez que estes devem se restringir ao universo privado. Todos podem ser igualmente soberanos. As decisões podem ser tomadas sem que ninguém seja excluído ou derrotados. d.2. Procedimento decisório: Representativo com ênfase na participação. 9 O procedimento democrático deliberativo deve garantir a autonomia dos envolvidos. E, por isso, deve ter como essência a troca ideias por parte da população em esferas públicas e privadas de formação da vontade geral, que não deve estar radicada em nenhum tipo de homogeneidade, identidade ou consenso dado a priori. d.3) Enquadramento normativo: A vontade geral assume a forma de um consenso precário e provisório, porém sempre possível, mesmo entre grupos com identidades ético- valorativas distintas, visto que estas devem se restringir à esfera privada, não interferindo nas decisões políticas. Tal consenso, por conseguinte, é sempre aquiescente aos parâmetros das liberdades subjetivas (direitos humanos), já que estas são cooriginais à própria expressão da soberania popular. O consenso produzido deliberativamente aparece, então, como o único modo racional de produção de decisões legítimas 6 . e. Uma síntese 7 possível: o modelo agonístico de Chantall Mouffe e Ernesto Laclau. e.1. Forma de entender a soberania popular: Substancialista e procedimental. A ideia de soberania popular é desenvolvida, por Chantall Mouffe e Ernesto Laclau, com base em um resgate do pensamento de Antonio Gramsci, sob a forma de um procedimento por meio do qual um conjunto de cidadãos reafirma uma identidade comum, precária, 6 “Todos aqueles que são afetados por decisões legais deveriam ser ouvidos e envolvidos em discursos jurídicos até que concordassem co m u m consenso razoável, ou, caso eles não concordem, eles deveriam ser avaliados como não-razoáveis” (LUHMANN; 1998: 890; tradução minha 6 ). 77 A exp ressão aqui utilizada remete ao termo Au fhebung, utilizado por Hegel para referir-se à superação de um antagonismo entre tese e antítese. Nesse sentido, a síntese apareceria co mo u ma negação da negação, que, por sua vez, pro move a suprassunção do conflito, elevando-o a um patamar superior. O modelo agonístico, aqui exposto, ao apresentar uma crítica ao modelo deliberativo de Jürgen Habermas – que se define pela negação das teses substancialistas schmittianas – pode ser visto como negação da negação e, portanto, como síntese que suprassume o conflito entre os conceitos substancialista e procedimentalista de democracia. 10 provisória e mutável, que demanda constante atualização diante de novas circunstâncias. Essa identidade, entretanto, pressupõe uma fronteira entre aqueles que fazem parte do conjunto de cidadãos e aqueles que dele estão excluídos. Tal fronteira, por sua vez, aparece como o resultado de um arranjo político-social (formação hegemônica). Este arranjo, contudo, pode ser alvo de contestação e disputa, conforme seus alicerces venham a se fragilizar, o que acontece em momentos de luta hegemônica. e.2. Procedimento decisório: Procedimento decisório: deliberativo, includente e participativo, embora incapaz de subsumir os conflitos. As decisões políticas não podem favorecer igualmente a todos os cidadãos, elas sempre resultam em vencedores e perdedores, uma vez que as diferenças e as identidades ético-valorativas não são excluídas da esfera pública. Ao contrário, o modelo visa ampliar os canais institucionais de contestação e discussão, permitindo que as fronteiras de antagonismo se mantenham abertas ao debate e à modificação. Com isso, criam-se mecanismos pelos quais as diferenças e o antagonismo entre grupos possam ser amainados, reduzindo a beligerância e mantendo a possibilidade de que vencedores e perdedores possam trocar de posição. e.3. Enquadramento normativo: No modelo desenvolvido por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau o povo soberano é entendido enquanto sujeito ético, formado a partir de uma fronteira de antagonismo entre aqueles que dele fazem parte e os que dele estão excluídos. Todavia, a identidade entre ambos os grupos é dialeticamente determinada, correspondendo a uma formação hegemônica provisória, visto que sujeita a contestação por parte daqueles que dela são excluídos, ou nela ocupam uma posição subalterna. 11 Não há afinidade necessária entre democracia e direitos humanos. Esta correlação foi historicamente construída no campo teórico e político. Não obstante, uma vez que nas sociedades contemporâneas a ideia de soberania popular se encontra intrinsecamente associada à defesa das liberdades individuais, devem existir garantias de que tais direitos sejam resguardados. Segunda parte Estudo de casos. 2.1 Ativação do poder constituinte: democracia e inclusão. Nesta seção, buscar-se-á compreender os conceitos de democracia mobilizado pelos principais atores coletivos envolvidos nos processos constituintes de Venezuela e Bolívia. Para isso, será analisado o contexto que propiciou o movimento de ativação do poder constituinte, na tentativa de investigar quem eram esses atores, sua origem, e, sobretudo, quais eram suas motivações e demandas. Em particular, a hipótese que orienta a presente análise indica que, em ambos os casos, tanto o movimento em favor da mudança, como seus protagonistas surgiram de uma crise hegemônica no sistema político-social anterior. Estas formações hegemônicas que vigoravam até então, em Venezuela e Bolívia, foram construídas por meio de pactos entre os principais partidos no poder, o empresariado e as principais organizações trabalhistas. Estes pactos, embora em um primeiro momento tenham sido revestidos de algum grau de legitimidade normativa – propiciada, sobretudo, pelo apoio ao compromisso de respeito às instituições democráticas –; foram mantidos, em particular no tocante às suas bases sociais, por meio de recursos de cooptação e repressão. Nesse sentido, conforme se enfraqueciam os alicerces normativos do sistema – que se demonstrava incapaz de atender as demandas por parte da sociedade civil, crescentes em termos de quantidade e complexidade – reduziam-se os recursos disponíveis para sustentar os incentivos utilizados para cooptar as bases sociais. Tais incentivos, por sua 12 vez, em parte respondiam a uma dinâmica (restrita) de inclusão social propiciada durante seus momentos áureos. Porém, conforme progredia o desgaste de ambos blocos históricos, tornam-se ainda mais importantes as prebendas e favores, distribuídos diretamente àqueles que participavam das organizações político-partidárias e trabalhistas, desejosas por manter sua hegemonia. Nos anos noventa, contudo, esta crise se acentua, tendo em vista um cenário de baixa nos preços das commoditties e dos produtos primários exportados pelos países da região, cujos recursos eram indispensáveis para a manutenção da estrutura corporativa. Ao lidarem com este dilema, parte dos países latinoamericanos se tornaram- receptivos a discursos liberalizantes, empenhando-se na redução da máquina estatal. O Estado, antes visto como o artífice do moderno, agora, nas derradeiras décadas do século passado, tornar-se- ia um obstáculo ao progresso, na concepção de grande parte das elites econômicas e sociais dos países da região. No plano conceitual, este contexto ganha contornos pós- modernos. A liberdade individual é hipostasiada em detrimento das instâncias associativas: classes, sindicatos e o próprio Estado transformam-se em símbolos de um mundo antigo. A salvação passa, então, a ser buscada pelo expurgo da herança maldita dos governos nacional-populares. Ela, contudo, não veio. Ao contrário, os países sul-americanos experimentaram no período uma grave recessão econômica, conjugada a uma profunda crise social. Com isso, uma parte dos indivíduos que antes se reconheciam como profissionais, trabalhadores ou camponeses se viram dispensados enquanto força produtiva, passando a ser identificados negativamente como desempregados, sem teto, sem terra e excluídos de modo geral. Esta dinâmica de esgotamento do antigo sistema abre espaço para um processo de reconfiguração identitária por parte dos grupos sociais nele envolvidos, determinado pelo surgimento de novas demandas, que aparecem e se consolidam em função de uma alteração nas formas pelas quais estes grupos – que se percebiam de algum modo excluídos do antigo sistema – observavam a si mesmos e eram observados pelos demais. Em especial, este processo foi catalizado pelo incremento nas demandas por inclusão, participação e reconhecimento por parte das camadas populares, mantidas subalternas no plano político, econômico e social. É ao longo de tal reconfiguração que se originam os atores coletivos que protagonizam a dinâmica de ativação do poder constituinte. 13 Esta reconfiguração, contudo, uma vez que motivada por uma perspectiva de exclusão que associa os planos político, econômico e simbólico-cultural, é determinada por uma acentuação na dimensão antagônica. Esta segundo a argumentação de Laclau e Chantall Mouffe, seguida ao longo do trabalho, é constitutiva de toda formação política identitária. Assim sendo, deflagra-se uma conjuntura de acirrada polarização social, que divide a sociedade em dois grupos: aqueles que demandam sua inclusão e reconhecimento por meio de um processo mudança e ruptura com o sistema anterior, seguida pela configuração de um novo modelo político-econômico, e aqueles que se opõem ao novo modelo. Seria através da percepção da alteridade, isto é, de um conjunto de elementos que definiriam a heterogeneidade (o ‘outro’), que se revelariam os elementos que configuram a homogeneidade (o ‘nós’). Deste modo, a opção por tal perspectiva, decorre da hipótese de que os casos estudados compartilhariam uma conjuntura de radicalidade, responsável pela ativação do poder constituinte. Mas, sobretudo, por que se caracterizam por possuir uma dinâmica social determinada pela polarização e pela divisão da sociedade em dois grupos antagônicos. 2.2 Comparação dos casos de Venezuela e Bolívia: esgotamento das formações hegemônicas e ativação do poder constituinte 8 . a. Caso venezuelano a.1. Sistema de partidos. Ano 1999. Colapso do bipartidarismo. a.2. Resultados eleitorais (eleições presidenciais simultâneas ou próximas no tempo e porcentagem). Eleições 1998: 8 Parte dos dados aqui apresentados foram extraídos do livro “Democracia Directa en Latinoamérica” (LISSIDINI, W ELP, ZOVATT O eds., 2008). 14 Pólo patriótico [Movimento Quinta República (MVR), Movimento al Socialismo (MAS), Partido Pátria para Todos (PPT), Partido Comunista Venezuelano (PCV) e outros]: 48.11% Pólo democrático [Ação Democrática (AD), Partido Social Cristiano de Venezuela (COPEI), Proyecto Venezuela (PRVZ) e outros]: 39.97%. a.3. Alternância ou não alternância do partido no governo. Alternância. Presidente Hugo Chávez Frias (MVR, MAS, PPT, PCV e outros). a.4. Nível de protesto social antigovernamental (níveis: alto, médio ou baixo). Médio. Se registra um aumento nas greves, paralizações e, principalmente, no fechamento de vias (cortes de rutas o carreteras). a.5. Nível de estabilidade política. Baixo. Foram registradas duas tentativas de golpe de Estado. Em 1992, Chávez lidera segmentos do Exército venezuelano em um intento fracassado de tomar o poder. Em 1993, o presidente Carlos Andrés Pérez, é afastado por meio de um impeachment. Em 2002, a oposição protagoniza um golpe de Estado contra Hugo Chávez que, em seguida, é restituído ao cargo. a.6. Atores que protagonizam as manifestações de descontentamento. Poucos atores coletivos, haja vista o baixo grau de organização da sociedade civil. Em particular, observam-se protestos de estudantes universitários, vecinos (associações de moradores), buhoneros (camelôs e trabalhadores informais), pensionistas e aposentados, embora, na maioria dos casos, não organizados em movimentos sociais com coesão e capacidade de mobilização. a.7. Atores que protagonizam o proceso de cambio. Crescente protagonismo do MVR e de outros grupos políticos partidários aglutinados em torno da figura de Hugo Chávez. Aumento da presença política 15 de algumas organizações sociais como o Comité de Familiares de las Víctimas de los sucesos ocurridos entre el 27 de febrero y los primeros días de marzo de 19899 (COFAVIC) , Queremos eleger, entre outros). a.8. Variáveis econômicas. Grau de reforma do Estado: Alto (principal conjunto de reformas ocorrido em 1995). Porcentagem da população abaixo da linha de pobreza: 49.4 (em 1999) Distribuição de renda: 0,498 (índice GINI de 1999) Taxa de desemprego: 14.9% (em 1999) Crescimento do PIB por habitante: -7.7% (índice Cepal de 1999). b. Caso boliviano b.1. Sistema de partidos. Ano 2004. Multipartidarismo moderado, surgimento de novos grupos políticos. b.2. Resultados eleitorais (eleições presidenciais simultâneas ou próximas no tempo e porcentagem). Eleições 2002: MNR: 22.46 % (primeiro turno) MAS: 20.94% (primeiro turno 10 ). 9 Em 1989, após o governo ter anunciado um conjunto de medidas econômicas, grupos de pessoas em Caracas e nas cidades satélites saíram às ruas para protestar. O evento, conhecido como Caracazo, se desenvolveu sob a forma de saques e enfrentamentos que duraram alguns dias e re sultaram na mo rte de cerca de 600 pessoas. 10 Segundo as regras eleitorais então vigentes, quando nenhum candidato obtinha a maioria absoluta dos votos nas eleições, cabia ao Congresso escolher quem seria o presidente da República. Uma vez que o sua coligação era majoritária no legislativo, Gonzalo Sánchez de Lozada foi escolhido para o cargo, derrotando Evo Morales. 16 NFR: 20 % (primeiro turno). b.3. Alternância ou não alternância do partido no governo. Alternância 11 . Presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (MNR). b.4. Nível de protesto social antigovernamental. Alto. Diversas mobilizações a partir de 2000: a ‘Guerra da água’ 12 ; os bloqueios camponeses em Chapare, Cochabamba e La Paz 13 ; o ‘Fevereiro negro 14 ’ (ocorrido em La Paz e El Alto em 2003) e o ‘Outubro negro’ 15 (ocorrido em La Paz e El Alto em 2003). b.5. Nível de estabilidade política. Médio. Renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, em outubro 2003, e de Carlos Mesa, em 2005. 11 Em 2001, após a renúncia de Hugo Banzer, do partido Acción Democrática, assume o vice-presidente Jorge Quiroga, membro da mesma agremiação. 12 Nome dado a uma série de protestos sucedidos em 2000, co mo conseqüência de do intento do presidente boliviano Hugo Ban zer, co m o apoio do Banco Mundial, de privatizar o serviço de d istribuição e abastecimento de água em Cochabamba. A forte repressão às manifestações resultou em u ma morte e mais de 170 feridos. Após os eventos, todavia, a privatização foi interropida. 13 Em setembro de 2000 os cocaleiros da região de Yunga e Chapare iniciam b loqueios em 17 pontos da rodovia Santa Cruz- Cochabamba em protesto contra a instalação de quartéis militares na região, e, sobretudo, contra a política de erradicação da coca levada a cabo pelo governo boliviano com o apoio de instituições estrangeiras (em particu lar, norte-americanas). Os manifestantes demandavam, também, a criação de uma universidade agrônoma e u m parque industrial. Os bloqueios, que contaram co m o apoio da CSUTCB, tiveram co mo resultado o isolamento das cidades de La Paz, Oru ro, Cochabamba e Santa Cru z, levando a uma forte repressão por parte do Estado, que declara a participação nos bloqueios um delito passível de detenção. Uma pessoa morreu e do ze ficaram feridas durante os protestos. 14 Em fevereiro de 2003, após a aprovação de uma drástica elevação nos impostos (o chamado impuestazo), setores polícia e da sociedade civil se engajaram em u ma série de protestos, que tiveram como consequência em 33 mortos, em parte, resultantes do confronto entre policiais e militares. 15 Os acontecimentos que ficaram conhecidos como ‘outubro negro’, tiveram sua origem em 2002, quando o governo de Jorge Quiroga decide pela construção de um gasoduto através do território chileno, não obstante as críticas de diversos setores da população, em favor de uma rota que passasse pelo Peru. O descontentamento, porém, acirrou-se ao longo do ano, abarcando inúmeras organizações sociais (sindicatos, camponeses, indígenas entre outros), transformando -se em u ma mu lt itudinária reiv indicação pela nacionalização dos hidrocarbonetos, liderada por Evo Morales (dirigente sindical cocaleiro) e Felipe Quispe (dirigente campesino). Em meados de outubro de 2003, durante manifestações ocorridas na cidade de El Alto, mo rreram 67 pessoas e mais de 400 foram feridas em confrontos com os militares. Eclodiram, então, inúmeras man ifestações pelo país que culminaram co m a renúncia do presidente Sánchez de Lo zada, que foge em 17 de outubro rumo aos Estados Unidos. 17 b.6. Atores que protagonizam as manifestações de descontentamento. Camponeses, indígenas e sindicatos. Sociedade civil fortemente organizada com a presença de inúmeros atores coletivos com coesão e capacidade de mobilização. Em especial: La Central Indígena del Oriente Boliviano (CIDOB), La Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB), La Confederación Sindical de Colonizadores de Bolivia (CSCB), La Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia Bartolina Sisa (FMCBBS), La Confederación Nacionalde Markas y Ayllus del Qollasuyo (CONAMAQ). b.7. Atores que protagonizam o proceso de cambio. Adquirem protagonismo os líderes indígenas e campesinos, em particular Evo Morales (MAS), Felipe Quispe (MIP). Surgem os partidos Consciência de Pátria (CONDEPA), fundado em 1988 e extinto em 2002, Unidad Cívica Solidaridad (UCS), fundado em 1989, e Nova Força Republicana (NFR), fundado em 1996. b.8. Variáveis econômicas. Grau de reforma do Estado: Alto (principal conjunto de reformas ocorrido em 1995). Porcentagem da população abaixo da linha de pobreza: 60,6 (em 1999) Distribuição de renda: 0,586 (índice GINI de 1999) Taxa de desemprego: 7.6% (em 2000) Crescimento do PIB por habitante: -0.9% (índice Cepal de 2001). 2.3 As novas Constituições de Venezuela e Bolívia. Após a observação dos quadros expostos na seção 2.2 e da discussão empreendida no item 2.1, fica claro o panorama de radicalização e antagonismo que marca os 18 procesos de cambio, deflagrados em Venezuela e Bolívia, ao final do século XX. Esta radicalização – catalizada pela crise econômico-social e pela subseqüente demanda por uma transformação político-econômica – foi potencializada por meio de elementos simbólico- identitários, galvanizados pelas lideranças que conduziram o processo de ruptura constituinte. Tal panorama instaura, principalmente nas classes populares, um processo de ressignificação identitária, a partir do qual emergem uma multiplicidade de sujeitos coletivos. Sendo assim, ao longo da década de 90, estes novos atores, reunidos em função de ideais nacionalistas, étnicos e sócio-econômicos, foram se aglutinando em torno de projeto de mudança e inclusão. Tal projeto chega, então, ao poder pela via eleitoral, capitaneado pelas lideranças de Hugo Chávez e Evo Morales, que passam a ser, em maior ou menor escala, os porta- vozes e representantes dos anseios dessas parcelas da população. Esta dinâmica corresponde, portanto, a uma configuração identitária de tipo substancialista, que, por sua vez, modelará o ideal de soberania popular presente nos anseios de refundação democrática do Estado e de ativação do poder constituinte, os quais se consubstanciam na promulgação das novas Constituições de Venezuela (1999) e Bolívia (2009). Neste subítem, por conseguinte, o objetivo é investigar qual teria sido o modelo de democracia plasmado nestas novas Cartas. Para isso, buscar-se-á compreendê- las enquanto resultantes do embate entre as diferentes forças envolvidas nos processos constituintes. Partir-se-á, então, da perspectiva de que a dinâmica de reconfiguração identitária (analisada nas seções 2.1 e 2.2), situa-se na dimensão do político, que se caracteriza por processos de representação e auto-entendimento, nos quais são forjadas as identidades políticas dos grupos sociais. Nesta seção (2.3), todavia, serão observados os rebatimentos desses processos processo no plano da política, que se caracteriza pelo embate fático, transcorrido nos canais institucionais e extra institucionais, entre os diferentes grupos e forças políticas que disputam os recursos de poder disponíveis na sociedade. Esta análise, conforme argumentado anteriormente, obedece à hipótese de que tais transformações teriam sido inspiradas em uma interpretação substancialista do ideal democrático, posto que estruturado em função de uma concepção apriorística da vontade geral, entendida como resultado de uma homogeneidade prévia. Isto porque, o 19 projeto de refundação democrática do Estado que as orienta teria sido delineado enquanto modo de reafirmação de uma identidade naciona l, forjada a partir de setores que se percebiam como historicamente excluídos econômica, política e culturalmente (um “nós” que teria surgido pela percepção de alteridade em relação a um “outro”). Constata-se, primeiramente, que as duas Cartas analisadas assumem um modelo inspirado na acepção “participativa” do ideal democrático, conforme consta no próprio texto constitucional 16 , como podemos observar no quadro ilustrativo abaixo. Constitución de la República Bolivariana de Venezuela Preámbulo El pueblo de Venezuela, en ejercicio de sus poderes creadores e invocando la protección de Dios, el ejemp lo histórico de nuestro Libertador Simón Bolívar y el heroís mo y sacrificio de nuestros antepasados aborígenes y de los precursores y forjadores de una patria libre y soberana; con el fin supremo de refundar la República para establecer una sociedad democrática, participativa y protagónica, mult iétnica y pluricultural… Artículo 6. ° El gobierno de la República Bo livariana de Venezuela y de las entidades políticas que la co mponen es y será siempre democrático, participativo, electivo, descentralizado, alternativo, responsable, pluralista y de mandatos revocables. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia Artículo 11º I. La República de Bolivia adopta para su gobierno la forma democrática part icipativa, representativa y comunitaria, con equivalencia de condiciones entre hombres y mujeres. II. La democracia se ejerce de las siguientes formas, que serán desarrolladas por la ley : 1. Directa y participativa, por medio del referendo, la in iciat iva leg islativa ciudadana, la revocatoria de mandato, la asamb lea, el cabildo y la consulta previa.. Las asambleas y cabildos tendrán carácter deliberativo conforme a Ley. 2. Representativa, por medio de la elección de representantes por voto universal, directo y secreto, conforme a Ley. 3. Co munitaria, por medio de la elección, designación o nominación de autoridades y representantes por normas y procedimientos propios de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, entre otros, conforme a Ley. Esta nova adjetivação do conceito de democracia, caracterizada por sua vagueza e imprecisão, remete, contudo, a uma proposta de ampliação dos canais de envolvimento direto e indireto da população na política. Não obstante, sobre tal proposta incide, também, uma “deriva plebiscitária” (maior ou menor conforme as diferenças entre os casos), haja vista as possibilidades de contornar entraves nos 16 O termo participativo é usado 8 vezes na Constituição venezuelana de 1999 (no preâmbulo, e nos artigos: 6º, 18º, 84º, 86º, 118º, 171º e 299º) e na Constituição boliviana de 2009 (art igos: 11º, 18º, 78º, 275 º, 282 º, 317 º, 345 º, 391 º). 20 processos de formação de consenso parlamentar, pela via dos “mecanismos de democracia direta”. Entretanto, uma vez que o objetivo do artigo é analisar os casos de Venezuela e Bolívia não apenas sob o prisma da semelhança, é preciso estabeler movimentos de aproximação (i) e distanciamento (ii) entre ambos. No tocante às aproximações (i), sobressai a compreensão de que as duas Constituições são o produto de uma conjuntura política e social marcada (a) pela radicalidade das demandas por transformação política e econômica, e (b) pela polarização da sociedade, isto é sua divisão em grupos antagônicos em função de elementos simbólicos, identitários e materiais. Quanto ao primeiro elemento (a), ao longo do estudo dos casos analisados, sobressaem elementos indicativos de que os anseios por uma alteração no regime de acumulação não teriam resultado em disposições constitucionais propriamente revolucionárias, passíveis de determinar mudanças econômicas drásticas e automáticas. Embora seja possível apontar alguns artigos que delineiam um perfil nacionalista e desenvolvimentista, enumerados nas duas tabelas abaixo. Tabela 1 Tabela 2 21 Quanto ao segundo elemento (b), observou-se que a criação de dois polos de atração reduziu o espaço para a formação de consensos políticos no país, dificultando o andamento institucional, administrativo e a relação entre os partidos, permitindo a ascendência do Poder Executivo sobre o Legislativo 17 . Sendo assim, os mecanismos de “democracia direta”, apresentados na tabela 2, teriam surgido como uma alternativa para dirimir tais entraves institucionais, buscando, por meio da consulta direta à população, conferir legitimidade a decisões que não advêm das instâncias de representação e deliberação parlamentar. No que tange às diferenciações (ii), cujas raízes serão buscadas nos contextos que antecedem e determinam a ativação do poder constituinte, a comparação dos casos venezuelano e boliviano indica que quanto mais polarizada é a conjuntura, mais difícil se torna a emergência de posições intermediárias e atores dissonantes. Nesta medida, conforme ilustrado nas tabelas 3, 4 e 5, a partir de uma comparação entre os dois processos constituintes, evidenciam-se indícios de maior ou menor pluralidade que, por sua vez, servem para diferenciá- los no tocante aos seus graus de polarização. Dessa 17 Tal ascendência não se desenvolve em conflito entre Poderes, uma vez que o Executivo em Venezuela e Bolívia, conta, até o mo mento, co m amp la maioria no Leg islativo, dada a predominância de congressistas do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) e do Movimento al Socialismo (MAS), liderados, respectivamente, por Hugo Chávez e Evo Morales. 22 forma, quanto menos plural e amplo for o espectro de sujeitos coletivos organizados (partidos, sindicatos, organizações profissionais, movimentos sociais) capazes de participar na esfera pública, maior o grau de polarização. Tabela 3 Tabela 4 23 Tabela 5 2.4 Avanços e retrocessos dos procesos de cambio. Por meio de um acompanhamento da dinâmica político-social dos países estudados, foi possível observar que, em maior ou menor medida, esta polarização ultrapassou o momento constituinte, levando a um 'achatamento' da vida pública do país, isto é, ao seu confinamento às disputas entre governo e oposição. Nesta medida, o processo constituinte na Venezuela teria ocorrido sob um panorama comparativamente mais polarizado, haja vista a participação de um menor número de atores e, por conseguinte, a maior centralização na figura do presidente. O que está relacionado à menor eficiência dos partidos e organizações corporativas tradicionais venezuelanas no que tange a sua capacidade de formar vínculos de pertencimento e mobilização socia l com a população, deixando-os mais suscetíveis à débâcle que os atinge nas últimas décadas do século. Quando comparada à conjuntura boliviana, a crise dos partidos e sindicatos tradicionais venezuelanos parece mais cáustica e tem como consequência uma ma ior “atomização” da sociedade civil. O que dificulta a organização das demandas e insatisfações sociais por meio de outros meios, favorecendo a centralização por parte do presidente, que sobressai como canal de representação possível. Conforme apresentado na tabela 5 que, quando contrastada com a tabela 3, ressalta a maior pluralidade do 24 processo constituinte boliviano, na medida em que este inclui um espectro mais amplo de atores. Na conjuntura boliviana, por sua vez, a crise nos partidos tradicionais, embora acentuada, teria sido em parte compensada pela atuação dos sindicatos e, em especial, pela emergência de novos movimentos sociais. Desta maneira, a figura do líder e de seu partido não teria alcançado um mesmo grau de centralidade, considerando a presença de outros atores externos e internos à coalizão com capacidade de influência e mobilização das bases. Esta maior capacidade de mobilização evita a concentração de poderes na figura do líder e seus correligionários, haja vista a presença de um número maior de atores políticos organizados e concorrentes na disputa por alguma parcela de poder, porém, muitas vezes, consoantes em termos de apoio ao proceso de câmbio instaurado. Na Venezuela, todavia, observou-se que esta disputa limita-se à relação entre governo e oposição, em função da escassez de organizações sociais capazes de exercer este tipo de pressão. Em especial, sobressai a ausência de atores coletivos que, embora apoiem o proceso de cambio, sejam capazes de manter uma postura crítica e combativa em relação a eventuais tendências centralizadoras. Por isso, é possível sugerir que o caso venezuelano ganha matizes cesaristas mais fortes do que o boliviano, não obstante, a constatação de que, em ambos, o modelo de democracia implementado é de tipo substancialista, com desdobramentos plebiscitários. Deste modo, as implicações dos distintos graus de polarização, e a subsequente relação inversamente proporcional entre pluralidade e centralização, servem de base para a comparação entre os dois casos analisados. O contraste, por sua vez, pode ser estabelecido, também, no tocante às relações Executivo e Legislativo (constituinte e ordinário), considerando-se que, quanto menor a capacidade do parlamento de servir de espaço para a representação de interesses e grupos plurais, menor a sua legitimidade enquanto lócus de formação de consensos. Sob esta perspectiva é possível sugerir uma correlação entre esta fragilização do Legislativo – em termos de capacidade representar a sociedade e produzir consensos – e o uso dos mecanismos de “democracia direta”, enquanto instrumento (plebiscitário) de legitimação de decisões. O que indicaria uma “conexão lógica” (para além das evidentes conexões empíricas) entre a inclinação plebiscitário-cesarista, observada nestes experimentos, e a conotação substancialista, 25 que subjaz à interpretação outorgada ao ideal democrático nos processos constituintes que os configuraram. Considerações finais: À guisa de conclusão, contudo, cabe uma ressalva quanto aos riscos de que esta deriva plebiscitária possa minar o conteúdo efetivamente deliberativo e procedimental desses novos experimentos democráticos, abrindo espaço para a configuração de uma dinâmica consultiva, incapaz de estimular a produção de consensos, cujo resultado seria o incremento da polarização por meio da reificação identitária do antagonismo entre oposição e governo. Para isso, é fundamental resgatar as considerações de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau. Isto porque o aqui chamado “modelo agonístico” de democracia se confor ma por meio de uma crítica sintética às formas substancialistas e procedimentalistas de entender a soberania popular. Sendo assim, no tocante às conceitualizações substancialistas, é denunciada uma compreensão estática acerca dos antagonismos e das relações identitárias, que, entretanto, são reconhecidos como inerentes a quaisquer coletividades políticas, ou, na terminologia gramsciana, formações hegemônicas. Tal reconhecimento, por conseguinte, é a base da crítica direcionada ao modelo deliberativo procedimental. Mas, também, o fundamento de sua adequação aos casos estudados, uma vez que estes se caracterizam por um alto grau de polarização, nos quais sobressai uma compreensão identitária do antagonismo entre grupos. Daí o descompasso entre o modelo deliberativo e estas conjunturas, deflagradas por processos de luta hegemônica, nos qua is a dimensão ético-valorativa é palco de antagonismos que dificilmente podem ser subsumidos através de procedimentos deliberativos. Sem embargo, a adequação do modelo de democracia encontrado na formulação agonística, reside exatamente em sua ênfase ao caráter dialético, provisório e precário das identidades assumidas pelos sujeitos políticos em uma relação de antagonismo. E, sobretudo, na importância concedida aos processos de deliberação e contestação dos termos que configuram as fronteiras de diferenciação e exclusão que os formam. Pois, se a política é uma prática que inevitavelmente resulta em vencedores e perdedores, a diferença entre ambos não pode ser vista em termos de essência, mas enquanto parte de uma formação hegemônica provisória, precária e contestável. 26 Uma segunda vantagem do modelo proposto por Chantall Mouffe e Ernesto Laclau diz respeito aos desdobramentos econômicos do conceito de soberania popular, que passa a estar associada à equalização das condições materiais dos diferentes grupos sociais (socialismo), enquanto condição de possibilidade para uma efetiva capacidade de participar dos processos decisórios. Todavia, tal equalização não mitiga o espaço de contestação de outras formas de subalternidade, ao contrário, reforça a possibilidade de lutas por reconhecimento estabelecidas no plano simbólico-cultural. Bibliografia: AYERBE, L. F. Novos atores políticos e alternativas de governo: os casos de Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela. In: AYERBE, L.F (org). 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