ElE é imoral, imortal!

Transcrição

ElE é imoral, imortal!
Beatbrasilis
ado
Cuid
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vírus !
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fofoc
O estranho Burroughs
Gla
ube
r
Ele é imoral,
imortal!
T
e
a
t
r
o
Chevrolet,
Bortolotto e uns
lanchinhos pela
praça Roosevelt
- Outono: um conto de amor beat
- Pelos bosques argentinos
que lembram “Bruxas de Blair”
- Um rolê por Alfama, o morro
do fado vadio
- A primeira viagem de avião
de um vagabundo iluminado
- Chá dos deuses da floresta
a tabua de esmeraldas
Beatbrasilis
I
maginem um vagabundo iluminado, personagem esse que tão bem personifica o espírito beat. Ele habita nosso imaginário. Ele representa a liberdade, a arte, o infinito e também
toda a poesia da condição humana. Ele é um ser sagrado, messiânico até, vivendo na pele os ideais românticos da vida na estrada e da comunhão com a natureza. O vagabundo iluminado é
um ícone do século 20.
Imagino nossa revista como um vagabundo iluminado. Juntando
nosso conhecimento, nossa sensibilidade e nossas experiências,
acredito que podemos criar, através da revista, um personagem
icônico, um vagabundo sem rosto composto por todos nós. Um
vagabundo vivido com histórias pra contar. Um vagabundo culto
com histórias para ensinar. Um vagabundo iluminado, leve e sorridente, como um poema que inspira gerações.
Proponho, para a revista, a missão de inspirar. Inspirar aventuras
e leituras. Inspirar uma juventude apática a criar seu próprio destino.
Beatbrasilis é uma tentativa modesta de realizar este propósito. Por Guilherme Rocha
Críticas, reclamações, xingamentos, cartas de amor ou uma boa idéia, escreva pra
esse e.mail: [email protected]
arte: Renata Bueno - [email protected]
Gente
A fome por Glauber
Por Jim Duran
H
á algo que me emociona nos filmes e
no pensamento de Glauber Rocha. Não
são os prêmios e nem a qualidade de sua obra,
nem sua genialidade. Há em Glauber a urgência
dos vencidos pela vida como os visionários em
geral têm estampados em seus olhos que fazem
falta.
Em sua verborragia caótica o ilustre filho de
Vitória da Conquista, (BA) contou as histórias de
farwest que tanto amava com elementos genuínos
do cotidiano sertanejo. Um matador vestido de
sobretudo matou a tiros e a sangue frio um de
seus tios quando ele era pequeno. A cena ficou
gravada em sua memória e serviu de base para a
construção daquele que foi um dos seus personagens mais lembrados, o caçador de cangaceiros
Antônio das Mortes de “Deus e o Diabo na Terra
do Sol” e “ O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro” vivido nos dois filmes pelo grande Maurício do Vale. A vida sempre serve de base para
as criações que ficam para a história.
A câmera na mão e o turbilhão na cabeça não
foi só uma característica de Glauber, foi a impressão digital de uma geração que soube subir
e descer do bonde na hora certa. Lutou até o fim
pelo o que acreditava ser o melhor não só pra si
mas para o cinema brasileiro por que sabia de sua
importância para a arte tupiniquim e sabia também
que sua influência ultrapassaria ao movimento do
Cinema Novo.
Ele emprestou a pouca sanidade que tinha
a uma causa que nunca pensou estar perdida.
Soube elogiar um dos pilares do golpe militar,
Golbery Silva, e foi execrado pelos desavisados
de plantão que mantêm sempre a boa imagem de
bons moços, mesmo quando querem ser marginais. Foi para a televisão gritar pela abertura em
um programa que foi novidade e ainda seria hoje
em dia.
A vida que derrotou Glauber também o encheu
de paixões. Casou-se com uma mulher que foi
também símbolo de seu tempo e foi traído por ela.
Soube ser maior do que rancor machista e casou-se mais um tanto, teve filhos como quem teve
idéias. Um dos seus rebentos mais novos, Érick
Rocha é autor de “Rocha que voa”, documentário
sobre o pai. A arte é herança genética na família
Rocha, digo isso de cadeira.
Ele, Glauber, costumava ficar em casa sentado
de cuecas e recebia seus amigos assim. Não perdia tempo com coisas pequenas como o banho,
a barba ou pentear o cabelo. Glauber foi urgente,
viveu mesmo sem claquete como disse Arnaldo
Jabor. Sua vida não teve edição, mas não ficou só
no copião perdido nos corredores da Embrafilme.
Quem vê hoje o moderno cinema nacional deve
olhar no castanho raivoso do olhar glauberiano.
Somos seus seguidores fiéis, mesmo que alguns
não se apercebam do óbvio que isso soe.
Quando um cinema exibe um filme feito aqui
na Pindorama que ele anunciou com a Terra em
Transe ele sorri descabelado e lúcido com seu
cigarrinho de maconha pendendo nos lábios.
Nunca se deitou em berço esplêndido, sempre
caminhou por sobre espinhos e sempre esteve
descalço. Glauber não aceitou a coroa de gênio
mas aceitou o drama do realizador. Deixou de
exemplo a fé em si e o ensinamento de que há
hora de luta e há hora de beijo. Onde estaria
Glauber Rocha se não tivesse voltado de Portugal para morrer em português nacional, como
brincava Tom Jobim que acabou morrendo em
inglês. Estaria filmando com certeza porque a
vida é sempre sem claquete.
Revejam Glauber, devemos isso a ele.
Musica
A Tábua de Esmeraldas
Por José Eduardo
Q
uando se ouve falar em Jorge Ben, logo
vem à mente da maioria das pessoas:
“Hum, sim, o Jorge Ben Jor, aquele cara que canta
W/Brasil...” Bom, certo, é esse mesmo, eu também
já pensei assim. Mas é necessário e essencial
lembrar que Jorge Ben nem sempre foi Jorge Ben
Jor, e muito antes de W/Brasil, esse maluco criou
toda uma identidade, um balanço e um novo estilo
à MPB, mesmo sendo difícil classificar a sua obra,
pode-se dizer que ele foi o pai do que se chama
hoje de “samba rock” ou “suingue” e é difícil achar
um artista da nova geração da MPB que não seja
ou foi influenciado por ele de alguma forma. É sobre o Jorge Ben que quero falar.
Em meados de 1963, 18 anos de idade, um
violão afinado de forma bastante particular, algumas canções autorais, se apresentou a convite de amigos no Beco das Garrafas, tradicional
reduto da boêmia carioca naquela época. Dizem
que quando músicos ouviam o Jorge tocar suas
canções, às vezes de três acordes, mas de uma
maneira bastante peculiar, diziam: “Porra, como
é isso aí? É um sambinha esquisito, tem tudo pra
dar errado, mas dá certo no final...”. Resultado:
chamaram o cara pra gravar, e pra acompanhálo, um grupo de samba... Mas não funcionou.
Os sambistas não sacavam como acompanhar
aquele som entortado, então, o jeito foi incorporar
uma banda de jazz pra acompanhar o neguinho,
a hoje cultuada Meirelles e os Copa 5. Esse disco
chamado Samba Esquema Novo surpreendeu
vendendo 100.000 cópias logo nas primeiras
semanas, o equivalente nos dias de hoje, como
algo em torno de 1.000.000 de cópias, levando
a diferentes opiniões na época. Alguns achavam
que eram apenas canções ingênuas, os puristas
diziam que era uma música moderna demais,
outros achavam que eram canções geniais. De
qualquer forma, assim foi deflagrada a estupenda,
fértil e simpática carreira de Jorge Ben. Nada mau
pra quem queria ser jogador de futebol.
O álbum Tábua de Esmeraldas de 1974 é sem
dúvida a obra prima de Jorge, um disco que segundo ele, tinha a intenção de passar paz de espírito e tranqüilidade pra quem escuta. Foi uma
fase chamada por ele próprio de alquimia musical.
E pode-se dizer que ele realmente transmutou o
chumbo em ouro. A inspiração veio do Hermetismo, a filosofia do antigo Egito, base da Alquimia. A
influência do Hermetismo no mundo foi tão grande
que, segundo “O Caibalion”, um livro de filosofia
hermética, ainda se pode facilmente encontrar
semelhanças e correspondências nas muitas e
variadas teorias e religiões existentes, onde os
Preceitos Herméticos são como um grande conciliador. Essa filosofia foi estabelecida por Hermes
Trismegisto, que afirmam ser contemporâneo de
Abraão. Pelo que consta, as “verdades” originais
ensinadas por ele foram conservadas intactas por
um pequeno número de pessoas, que, recusando
grande parte de estudantes e discípulos pouco
desenvolvidos, seguiram o costume hermético
e reservaram essas “verdades” para os poucos
que estavam preparados para compreendê-las e
dirigí-las. Dos lábios aos ouvidos, os ensinamentos têm sido transmitidos entre esses poucos, de
mestre a discípulo. É daí o termo “Hermeticamente Fechado” e a dificuldade de informações
mais profundas sobre o tema.
Mas não ficou apenas nisso, nesse álbum ainda
sobrou espaço pra belas canções com histórias
cotidianas, como insistir em uma conquista amorosa, lindas viúvas, mulheres que não nos deixam
dormir sossegados, amores inalcançáveis, a negritude e seu orgulho, tudo com muito suingue,
bom humor e simpatia.
O álbum começa com a sacolejante e descon-
traída “Os Alquimistas Estão Chegando”, uma
bela dedicatória aos filósofos herméticos e um aviso do que está por vir, a sonora salada alquímica
de Jorge. A segunda faixa, “O Homem da Gravata
Florida” é uma homenagem a Paracelso, o grande
alquimista da história, uma verdadeira aula de
suingue e bom humor. Ainda no tema do Hermetismo, “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de
Esmeraldas” vem pra arrebentar. Esse mantra de
apenas dois acordes é nada mais, nada menos,
que o texto encontrado por Alexandre “O Grande”
na pirâmide de Gize no Egito. Foi escrito com uma
ponta de diamante em uma tábua de esmeraldas. No samba psicodélico “Errare Humanum Est”, com
direito a climas cósmicos, contagem regressiva e
levadas envenenadas de violão, Jorge faz a famosa pergunta: ”Eram os deuses astronautas?”. Em
“Menina Mulher da Pele Preta”, o assunto é sobre
aquela linda mulher que mexe com a cabeça do
homem, sendo impossível não sacar o balanço esperto do violão do mestre. Magnólia canta aquele
tão esperado amor que todos acreditam que há de
chegar um dia. É engraçado como na poesia de
Jorge, tudo parece ser válido, desde se descrever
esperando a tal Magnólia todo feliz e de branco,
como saber que ela vem chegando em uma “nave
maternal dourada, linda e veloz feita de um metal
miraculoso”. A canção em inglês “Brother” mostra
a influência gospel na música de Jorge. Tem também a hilária “O Namorado da Viúva” e a sentimental “A Minha Teimosia, Uma Arma pra te Conquistar”. A bela “Eu Vou Torcer” é um louvor ao bem
estar e a paz, uma sucessão de palavras bonitas.
Na libertária “Zumbi”, Jorge lembra a escravidão,
conclama com as nações africanas para ver o que
vai acontecer quando Zumbi dos Palmares chegar. Uma canção de harmonia simples, mas em
um tom inusitado, com uma Rabeca, uma espécie
rústica de violino originário do norte da África, que
sola melancolicamente ao fundo, deixando claro
mais uma vez a genial alquimia musical proposta.
E no final, quando os ouvintes mais críticos, pode-
riam até dizer, mesmo que agradecidos e sorrindo
pela injeção de paz e otimismo, que esta é uma
obra onde falta um pouco mais da realidade do
sofrimento humano, a angustiada “Cinco Minutos”
fecha o álbum. Repare como Jorge entoa sofridos
falsetes em um ritmo alucinado, quebrado e difícil
de entender em um primeiro momento. Mas não
adianta, o bem estar é o grande pano de fundo
para as canções de Jorge Ben.
Enfim, uma obra prima, uma pérola da música
brasileira que merece ser escutada ao menos três
vezes, no carro, no PC, no som de casa, num antigo walkman ou MP3, mas levando em consideração o alto risco de se viciar, sendo necessárias
doses cada vez mais generosas de Jorge Ben. E
não digam que não avisei.
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J
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v
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S
Fala solta
O vírus da fofoca
Por Matheus Teófilo
U
m erro, uma notícia.Um acerto, o silêncio
e crítica.É como são as coisas.Nas colméias
que chamamos de bairro ,que por fim é parte de
uma colméia maior que chamamos de cidade, vi-
gora um vírus não biológico, mas psicológico,natural
entre seres “racionais”. Seu nome: fofoca.
Tenho presenciado em minhas pesquisas
(resultantes do fato de eu não ter absolutamente nada para fazer) que outros, cuja as vidas
definharam,devido à baixa inteligência,passam
seu tempo reparando e observando seu próxi-
mo.São incapazes de elogiar um bom feito (pelo
menos verdadeiramente e/ou sem uma ponta de
inveja) mas totalmente capazes de falar a respeito
de um mal feito, descuido e atitude diferente de
seus fúteis costumes com outra(s) vítimas do mesmo vírus e logo apontar discretamente para vítima
da tal fofoca.
Já fui, por vezes, vítima de tais vítimas. Uma das
causas do vírus é fazer o infectado acreditar que
manda na vida do seu próximo, ou seja, aqueles
que não portam tal vírus.
Principais vítimas dos infectados:
maconheiros, idealistas, vagabundos,
seguidores de alguma religião diferente, ateus, escritores da nova ge-
ração beat ou qualquer outra, solitários em geral, mulherengos e aventureiros, desajustados em geral.
Minha receita é mandar para puta
que pariu todos os portadores do tal
vírus e/ou se isolarem ,deslocando-se
para um lugar bem afastado e deserto. Minhas pesquisas sobre tal vírus
continuarão, pelo menos enquanto eu
estiver desempregado (ou quem sabe
passarão para um outro estagio?)
Teatro
Nossa vida não vale um Chevrolet
S
aio da aula de Português da
faculdade de jornalismo acompanhado por dois colegas e uma colega que vão comigo presenciar a sessão de teatro da peça “Nossa vida não
vale um Chevrolet” do meu conterrâneo de Londrina Mário Bortolotto. Com
uma garrafa plástica de um vinho pra
lá de vagabundo entramos no carro da
colega motorista (para não contrariar
a polêmica lei seca ela realmente não
bebeu) e seguimos até a praça Roosevelt. Apesar de morar em São Paulo
há uns quatro ou cinco meses ainda não conheço
quase nada. Não tivemos muitas dificuldades
para chegar próximos a praça Roosevelt. Depois
de rodar por um tempo e pedir informações aqui
e acolá conseguimos localizar a rua Roosevelt,
onde se concentram alguns teatros “alternativos”
da cidade. Estacionamos o carro e procuramos o
lugar. Um tempo depois estamos no Espaço dos
Parlapatões, com um dos tradicionais vendedores
de milho das ruas paulistanas plantado em frente
ao lugar.
Logo na entrada do local esbarro com uma
moça de jaqueta rosa. Ela me olha para pedir
desculpa e eu no intuito de fazer o mesmo percebo que é Fernanda D’Umbra, atriz da peça e do
seriado Motherns do canal Gnt. O lugar parece ser
legal, com guarda-chuvas no teto e uma banheira
Por Gabriel Daher
cheia de terra e plantas servindo como vaso. A bilheteria fica no fundo do lado esquerdo do espaço
principal. Ao lado esquerdo um balcão movimentado onde trabalham dois rapazes e uma moça e a
frente várias mesas e cadeiras – a essa hora completamente lotados – com boêmios da noite paulistana e admiradores do teatro “underground”. Compramos nossos ingressos na bilheteria. 20 reais
a inteira e 10 para estudante. Encostamos num
canto, compramos uma cerveja e ficamos em pé
em frente à bilheteria bebendo, dando baforadas
em nossos cigarros e conversando. A nossa frente
há a fila para a sala do teatro (que fica nos fundos
da bilheteria e do balcão, num segundo espaço) já
começa a se formar. Acidentalmente e felizmente
nos posicionamos em um local da formação da fila
e por lá ficamos. Pouco antes da entrada para a
sala ser aberta terminamos todos a última cerveja e com aquela necessidade normal entre os
bebedores corremos ao banheiro a fim de nos
aliviarmos antes que o espetáculo comece. Finalmente entramos na sala entre os primeiros e
escolhemos uma fileira em posição estratégica
com número de poltronas vagas suficientes para
abrigar nós quatro e mais o casal formado pela
irmã de minha colega e seu namorado que se
juntaram a nós. Sentamos lá e esperamos tudo
começar. Mais pessoas entram e logo o espaço
íngreme das cadeiras frente ao palco de tamanho médio já esta lotado. Mais algumas pessoas
entram e sentam-se nas escadas ao nosso lado
direito. Músicas de rock e blues tocam antes
da peça. As luzes se apagam gradativamente
e após um pequeno tempo de espera os atores
entram em cena.
A história se passa no Rio de Janeiro e
é simples porém intrigante. A peça mistura humor e drama numa combinação interessante.
As histórias dos irmãos ladrões de carros Lupa
e Monk (Bortolotto e Laerte Mello), do caçula e
trombadinha Slide (Gabriel Pinheiro) e da irmã
volúvel e interesseira Magali (Helena Cerello)
se cruzam com as do Stripper e boa-vida Love
(Francisco Eldo Mendes) e a da carente Silvia
(Fernanda D’Umbra). É com uma trilha sonora incrivelmente sensacional – que incluí Elvis Presley, Ray Charles e outros clássicos do Blues e
do Rock – e uma iluminação muito bem feita e adequada que a peça mostra sua qualidade. Atrás de
mim um homem de uns quarenta anos e cabelos
ralos e grisalhos gargalha sem parar. A qualquer
mínimo movimento dos atores ele solta seus risos
ecoados como se estivesse diante da maior comédia já vista. Apesar de não ser uma peça exclusivamente voltada á comédia a interação entre o
humor ingênuo presente em cada personagem
(com exceção da personagem Guto, que comanda o submundo do enredo e do misterioso ladrão
Monk, que tem seu apelido inspirado pelo pianista
de Jazz Thelonious Monk e passa a maior parte
da peça com o capuz do moletom enterrado sobre
a cabeça e óculos escuros ao estilo Bob Dylan,
criando uma imagem misteriosa) contrasta com a
dramaticidade exposta em momentos cruciais. É
onde a peça ganha o espectador com dualidades
refletidas em diferentes momentos da saga das
personagens.
O caricato e abobalhado Lupa contrasta uma
das cenas mais interessantes (cena que ilustra o
cartaz da peça) com a carente Silvia, numa atuação divertida e cativante da talentosa Fernanda
D’Umbra. Em uma cena de carinho e questionamento de um casal recém conhecido os dois encenam uma envolvente seqüência e dialogo sobre
a relação de homens e mulheres. No caso, de um
homem e uma mulher carentes e confusos. Apesar
de ter um texto simples, a atuação de Fernanda é
a melhor entre todos os atores da peça. Outro momento-chave da peça é a cena em que o motivo do
nome que batiza a peça é revelado. O chefão do
crime Guto (Paulo Jordão) dialoga com o bandido
Monk e lhe diz que suas vidas valem ainda menos
que os carros que roubam. Daí o nome “Nossa
vida não vale um chevrolet”, que enfoca bem a
desigualdade social de vidas menos valiosas que
os automóveis sendo roubados. A sensual Magali
embeleza e da um toque sexy na peça com seu
figurino de poucas roupas e estilo sensual, além
de ser a única irmã da família, o que faz o enredo
tomar sentido de acordo com recente a morte do
patriarca da família (onde todos os irmãos se encontram). Um dos personagens que não interfere
muito na trama mas tem seu valor humorístico é o
capanga de Guto e amigo de Love, Suruba (Tiago
Pinheiro). Suruba acrescenta a peça alguns toques
humorísticos e um jargão repetido pelo elenco em
algumas cenas devido a suas estapafúrdias ações
e comentários em momentos inoportunos – “Não
fode, Suruba!”.
Além das duas cenas já citadas, na opinião
deste as melhores da peça, também se pode destacar o final. A partir da reta final a peça perde o
caráter humorístico e ganha uma dramaticidade
convincente para o sucesso do surpreendente final da trama. Entre os pontos mais positivos estão a trilha sonora praticamente perfeita que se
encaixa com todas as cenas e se faz presente no
intervalo de cada cena onde as luzes se apagam
e o volume aumenta, fazendo o espectador ter
vontade de levantar pra dançar, cantar em voz
alta ou simplesmente pensar sobre o que acabou
de ver. Nota onze para Bortollotto neste quesito. A
iluminação é outro ponto que impressiona. Tudo
feito na hora certa, e dando um charme e um mistério ímpar para o espetáculo. A peça perde um
pouco no desenrolar da trama, que em alguns momentos se torna um pouco cansativo para os mais
impacientes, ou para os apertados por causa da
cerveja, que era o meu caso e que mais tarde
descobri vir a ser o dos meus colegas também. A
dica para quem for assistir é que não exagere na
bebida antes da entrada, pois o espetáculo tem
em torno de uma hora e meia de duração. A peça
está em sua terceira montagem e foi escrita por
Bortollotto em 1990. Segundo informação de seu
blog, ele teve a idéia de escrevê-la quando via um
comercial da Chevrolet com uma música de Bruce
Springsteen ao fundo. A primeira montagem foi
feita com os primeiros membros de sua companhia Cemitério de Automóveis, ainda em Londrina,
no Paraná no Festival de Londrina de 1990. A segunda foi já em São Paulo em 2000, na I Mostra
Cemitério de Automóveis que rendeu a Bortolotto
o prêmio Shell. A peça ganhou ares estrangeiros e
foi lida em francês no Festival De Pount a Mousson
e na Comédia Francesa em Paris. Esta atual tem-
porada de “Nossa vida...” teve apenas quatro apresentações. Por isso vale a pena ficar ligado no
blog de Bortollotto* e demais noticiosos de arte
(incluindo este!) pois ela pode voltar sem muitos
avisos prévios. Vale constar que a peça virou livro
de mesmo título e o livro virou o filme “Nossa vida
não cabe num Opala”, que está em cartaz atualmente e foi dirigido pelo cineasta Reinaldo Pinheiro. Bortolotto se afastou da obra cinematográfica
por não concordar com a adaptação.
Após o final da peça, a galera ainda fica ali
pelo Espaço dos Parlapatões tomando umas cervejas e conversando. Quase uma hora depois
do final do espetáculo (que tem horário boêmio
e começa à meia-noite) o lugar ainda estava lotado. Os atores também ficam por ali e é possível cumprimentá-los se a peça tiver sido de seu
agrado. Tudo com a cara da boemia cultural paulistana e dos apreciadores do teatro e cultura em
geral. Para quem gosta de teatro com influências
em Jazz, Rock and Roll e literatura marginal a
peça é uma boa pedida. As sessões acontecem
ás sextas á meia-noite e da tempo pra se encontrar com os amigos antes ou depois de lá, ou até
mesmo sentar nas mesas do bar do teatro se você
chegar mais cedo. Se sua vida vale mais que um
Chevrolet, um Ford, um Renault e até mesmo uma
Ferrari você não vai se arrepender de assistir a
esta incrível peça.
Vida de autor
O Estranho
mundo de
William Burroughs
Por Guilherme Rocha
N
os anos 50, o ilustre padrinho da ge-
ração beat, William S. Burroughs, explorou
a selva amazônica em busca da mítica ayahuasca.
Levou consigo seu namoradinho, um jovem cu doce
que negociava para transar. “Uma vez por semana,
seu velho nojento” era o tipo de coisas que o jovem
dizia, e restava ao Burroughs aceitar. Essa história
é relatada no seu livro “Queer”, um livro sóbrio que
chegou a fazer parte do manuscrito original do mais
conhecido “Junkie”. Esses livros compõem a fase
que antecedeu o assassinato de sua mulher Joan no
famoso incidente ‘Guilherme Tell’. Acusado e fora-
gido, Burroughs se mudou para Tangiers (Marrocos), na época uma zona internacional (daí o Interzone de Almoço Nu), célebre destino de fugitivos,
marginais e toda a ralé desse tipo.
E foi aí que Burroughs começou a se transformar no afamado autor de “Almoço Nu”, o velho louco, o mais icônico intelectual drogado do
século XX. Em Tangiers, juntando o uso constante
de heroína e outros narcóticos ao seu conhecimento de temas como arqueologia, lingüística e
teologia, suas paranóias foram se intensificando
e suas teorias foram ficando cada vez mais bizarras (envolviam dimensões paralelas, mulheres como espiãs de outros planetas, insetos
conscientes, linguagem como mecanismo de
controle). Argumentativamente coerente, o universo de Burroughs ganhou vida. E acreditando
nas ficções que ele mesmo criava, Burroughs
lançou livros experimentais até morrer, respeitadíssimo e chapado, aos 83 anos.
Conto
O U T O N O
Por Christiane Freire
N
o outono da vida, ela o conheceu.Era um
jovem comum, mas tinha algo que a atraía. Talvez a masculinidade, quiçá o olhar sedutor - não sabia exatamente o quê, mas sugeria algo
peculiar. Foi por casualidade. Estavam no mesmo
café quando desabou um temporal que a impediu
de sair. O jovem senhor achava-se acomodado
junto a uma mesa que, minutos antes, fora ocupada por ela. Ao vê-la retornar, sorriu, comentou
algo sobre o tempo e convidou-a a sentar-se a seu
lado. Ofereceu-lhe, de pronto, um café, que aceitou sem maiores pudores não só por ser ela uma
presença assídua no tradicional e histórico recinto como também por sua idade. Imediatamente, ela
pensou que aquele homem poderia ser seu filho.
Por que não acolher, assim, um tão gentil convite? Ademais, tratava-se de um local público.Ela
tirou seu elegante casaco e tomou lugar à mesa.
Ele elogiou-lhe o doce sorriso, o que ela recebeu
como amabilidade. Principiaram a conversar sobre
o café, de sua importância no âmbito intelectual e
cultural daquela cidade, dos ilustres frequentadores das artes e das letras tanto do passado quanto de então.
A animada conversa entrou pela poesia, li-
teratura, e não se deram conta de que a forte chuva havia cessado.Isso porque estavam totalmente
absorvidos pelo que discorriam naquele mágico
do café. Em dado momento, ela se percebeu mais
jovem e minimizou a diferença de idade entre os
dois. Afinal, eram intelectualmente compatíveis,
liam autores em comum; também gostavam de
música, teatro, cinema e tanto um quanto o outro
cultivavam o hábito de escrever.
Em certo instante, o homem consultou o relógio. Com expressão assustada, admitiu não ter
notado a rápida passagem do tempo, e isso a fez
sorrir. Ele pediu a conta e logo sugeriu acompanhá-la até a casa, o que ela julgou desnecessário.
Concordou, porém, em que ele a conduzisse ao
ponto de táxi do outro lado do café. Despediramse como velhos amigos.Ela disse haver sido um
belo encontro, e ele mostrou desejo de vê-la outra
vez.
Já em casa, ela aconchegou-se em sua poltrona preferida e iniciou a capitular aquelas horas em que nenhum detalhe pessoal foi dito, o que
faziam, sequer onde moravam, absolutamente
nada... Reviveu a profundidade com que ele a
olhava, a atenção a tudo quanto ela dizia, captan-
do todas as palavra como se quisesse possuí-las.
Voltou a experimentar o calor da mão dele que, oferecendo mais um café, tocou levemente a sua.
Flagrou-se invadida por algo intenso que julgava
morto no corpo e na alma, mas qual nada! Ali estavam
o delírio de uma paixão e a vontade de vivê-la em toda
a profundidade porque tais emoções lhe devolveram
seu “ ser mulher”.
Não pensava no homem, mas no que sentia. Por
sua cabeça não passava que ele pudesse ter ímpetos
iguais, nem imaginar! Um homem que brilhava em juventude nunca pensaria em uma senhora já madura
como mulher; quando muito, como tia, amiga, jamais
como mulher.
Dormiu. Ao despertar, preparou o chá costumeiro e voltou a perder-se em relembranças. Quem sabe,
poderia encontrá-lo novamente? Jogou fora tal insana
idéia e decidiu: por um período, não volveria ao café.
Não queria sentir o mesmo da noite anterior caso se
pusessem frente a frente.
Nutria certa ventura pela escolha que fizera.
Desfrutava uma ponta de felicidade por ter aberto,
um instante que fora, o sinal verde em seu coração.
Naquela idade, quem diria, pensar em caso de amor...
Ensaiou um sorriso, levou a xícara à cozinha e sentouse a escrever.
Poemas
Por Leandro Durazzo
passo...
...passo
passo...
“passa aqui!”
é o que grito
é o que grita
ela.
passo, e tomo o mundo,
o rumo,
o curso,
o rio.
passo...
passei por ruas,
vielas,
e as vi
nuas
meninas em janelas
por todo o litoral.
...passo
num mar de sal
submerso
nadando ao céu
feito verso que não pára de soar...
passo...
e ela,
menina,
pernas do mundo,
passará.
Selvagem
Guilherme Rocha
Me imagino em meio a uma região selvagem
cercado por grandes árvores, quero ir à loucura,
Imagino o mau-cheiro de carne fresca recém caçada
rasgando a carne dos ossos com os meus dentes
e trilhas de sangue quente correndo pelo meu rosto e peito
Me sinto selvagem e colido contra o armário.
Encaro uma criatura nervosa e peluda no espelho antes dele quebrar
vejo pinturas rasgadas da parede
sinto sons afiados no ouvido
dinheiro queimado em nome da arte
formando uma fogueira inspirada
Me mantenho quente
cozinhando um esquilo atropelado,
escondido nas sombras de antigas entradas esculpidas,
selvagem.
Poemas
Solução
Luciano Favaro
Meu grande problema
Meu terrível e assustador problema
Sem solução
Que me fez perder o sono
Noite passada
Pois então!
Descobri que ele é tão menor
Que a flor
Que acabou de desabrochar
No meu jardim
Por Helena Hutz
Dor física.
Dor mental.
E é na alma que sangra.
Medo de ser vista como alejada. Ser apontada por crianças “olha mamãe,
que diferente”. Causar repúdio aos homens. Gargalhadas às mulheres. Pena
dos que compaixão sentem.
Enquanto o somático se propaga, finjo a auto-estima alta. Via glicose
líquida, bolas, bicarbonato... entendam os que possam, não quero me autoexplicar. O engraçado? O cara me come no fim da noite e diz “porra, puta
auto-estima baixa você tem”!
E me dizem: bonita, intelgente, talvez gostosa.
Erro dos que dizem.
A beleza não sou eu, combinação genética.
Inteligência de nada adianta quando não se produz, se convive com os
ignorantes de caráter. (E meu passado mostra como muito assim fui, sem
caráter, vergonhoso de expor até, mas se não ponho pra fora a dor...a lá de
cima, física e mental, não passará, jamais!)
E gostosa sou pra quem tem pinto e não cheirou a ponto de estar meiabomba. Bando de babaca.
Que morram os cocainômanos e me levem com vocês.
Poemas
Em Roma
Por M. Cass
Isolado no meio da multidão
Que passa vadiamente apressada
As ruas rugem, querem nos comer
O dia é terrivelmente claro, penso na noite
Ainda há luz, distante das horas notívagas
Dos seres cintilantes e fantasmagóricos
Penso sem ti, nunca te vi, imagino
Seus dentes, o paladar de seus lábios
A pele frutada castanha
Sozinho entre as gentes ruidosas
Tento dominar meu silêncio
Calado sentado na fonte secular
Meus medos flutuam, me acompanham
Conversam comigo, me fazem sonhar
As cores humanas se tornam opacas
Como as calçadas pisadas
A massa é a cortina que me esconde
Mas olhos transpassam minha alma
Investigam meus desejos
Fingem não me ver, penso em ti
Penso em seu colo macio
Como o colo da madona da praça
Duro e negro de bronze tão milenar
É você então na estátua parada
Anos e anos quieta, é você então
Negra e fria a me ignorar
Com os pombos a te cagar na face
Mas devo estar ali, em seus braços
Vejo seus indóceis peitos firmes
O rio leva consigo nossa história
Verde e prata, leito do luar
Com seus decotes e piratas
Mato minha sede a te desejar
Nos sonhos impressionistas
Aceno pra ti na margem esquerda
Com seu sorriso a me chamar
Me chamas? Diga se me chamas...
Para que eu possa te amar
Te amar? Quando os pássaros choram
Sozinho na praça cinzenta
Diante da estátua de ti tão negra
Dura e fria sem nada me dizer
Não me chame, por favor
Temo, se o fizeres, te amar!
Ainda que me ignores para sempre
Preciso ouvi-la me chamar
Que grite meu nome com força
E lágrimas...
Grite que assim te posso escutar
E se te aqueces em corpo alheio
Nas suas eternas noites tão brancas
Pense por um instante em mim
A vadiar pelos becos, a fugir de armadilhas
A brincar de aventuras santas
A olhar para os mortos dos povos perdidos
Imagino então eu mesmo ao seu lado
Como o herói bárbaro amedrontado
No colo da musa a chorar...
No suor de seus poros imaculados
no calor de seu beijo
Grite, então grite...
Quero te ouvir gozar!
Trip Argentina
Os bosques não param
Por Elena Caracoles
N
os vamos a cagar de frio, me adverte o
primo. Achava que eu não daria conta, que
boluda, mulher e acha que agüenta quatro noites
ao relento, tá pensando que tem água quente e
calefação? tem nada não, minha querida, quero só
te ver batendo queixo e reclamando. Ha, Ha e mais
um Ha pra ele, que não sabe que tão pra inventar
um clima que me intimide.
Laguna Brava foi o destino. Ali entre Balcarce
e Mar del Plata, sudeste da Província de Buenos
Aires. Éramos três os bicho-grilos: eu, Mariano (meu
primo muito irmão) e Julio (my man). Guris, - disse
eu, ao melhor estilo meu filho pega um casaquinho
- convém levar luvas e uma touquinha de lã, não se
façam de neanderthais, a macheza tem limite, ai
ai... homens e sua mania de não ser mulher. Passo
às 8 da madrugada pra te buscar, o trem sai às
nove e meia, me diz o Julio. Detalhe que na noite
anterior havia tomado 90 pesos de Heineken com
o querido Mateus, um dos ilustres colaboradores
desta revista. No sábado pela manhã, o desafio
era ignorar o fato de que eu havia dormido curtas
2 horas e ainda me sentia um tanto quanto... ébria,
digamos. Bora lá, banho meio frio pra despertar os
sentidos, lãs, laranjas e latão-kit marijuana na mochila, saco de dormir, tô pronta. Sonambulamente,
chegamos à estação de trem, onde meu primo estava escorado em sua backpacker. Dormindo no
chão, feito um mendigo, é claro. Mochileiro que é
mochileiro dorme em qualquer lugar e nao se atém
às possibilidades de roubo.
Seis horas num trem do passado, aquele sus-
piro por estar on the road again, câmera, Artaud,
Dylan, becks clandestinos no setor de fumadores
inventado por nós, ok boys, chegamos a Mar del
Plata. Mais duas horas num bus pra lá de caliente
(a calefação devia estar beirando os 40 graus, sem
exagero, e eu pensando como um biquini sera útil
nessa hora).
Por fim, e já fazendo comentários tipo “e não é
que tá frio mesmo”, chegamos a Balcarce. Pernas
pra que te quero, seis quilômetros marchando com
mochilas e dois violões, fora o peso das roupas que
vestíamos. A essa altura o Julio já me implorava de
pé junto pra eu emprestar a minha touca de lã pra
ele. Dei aquela risadinha sarcástica eu te avisei. (E
aí fiquei viajando em guerras dos sexos, que coisa,
como as mulheres completam os homens, é mesmo fantástico!) Dois amáveis cachorros resolveram
nos acompanhar, foram nos seguindo, e é aí que o
Julio me diz: otra vez, mi niña, otra vez nos siguen
los perros... (sempre nos acontece). Ali é o camping, diz um senhor que passava cavalgando. Ok,
gracias. Mas que camping, que nada, queríamos
mesmo era nos meter no meio do bosque, camping é coisa de looser. Consultamos o mapa porca
e precisamente ilustrado por um estranho que já
havia acampado lá, bingo, falta um quilometrinho,
nomás.
Como “somos” machos mesmo, chegamos ao
meio do bosque à noite,
Me senti filmando A Bruxa de Blair, e tudo teria
parecido uma grande brincadeira de mau gosto
não fosse a quantidade absurda de estrelas que
cintilavam no firmamento. Lua nova é bom assim, a
céu aberto escancarado.
Busca lenha pra fazer o fogo, monta barraca,
carái a lanterna tá quase sem pilha, foi mal aí
galera, quebrou a porra do pino, paciência, não dá
nada, fecha o baseadinho pra dar uma desanuviada, meu bem o que teremos para o jantar? pergunto eu, bem confortável sentadinha olhando o fogo
enquanto o Julio buscava mais lenha e o Mariano
se empenhava em arquitetar bem a fogueira. (E aí
fiquei viajando em guerras dos sexos de novo, que
coisa, como os homens completam as mulheres, é
mesmo fantástico!) Massa aos quatro queijos, me
diz o Julio. Massa! exclamamos eu e meu estômago, coisa fina é comida italiana feita na fogueira,
tomando banho de estrelas! Meu corpo e minha
vida agradecem. Demos a volta na bela e gélida
lagoa, invadimos três longínquas propriedades privadas na tentativa de subir a serra, mas acabamos
saindo com o rabinho entre as pernas porque não
éramos páreo para os 6 irados cães que se apresentaram. E o pior é que o Tommy e o Negão (nossos cuscos) tampouco eram dos mais valentes. Uma barbaridade ser privado um lugar assim. Nos
emputecemos, mas vamos, vamos, prá lá tem um
monte de cavalos e ovelhas, façamos um momento
Nat Geo. O frio realmente era de romper os mamilos (depois ficamos sabendo que essa havia sido a
noite mais fria do ano. Rá! Na mosca!). Mas nada
que um foguinho e um sexo não dissimulassem.
(sexo este, que a duras penas conseguimos fazer,
porque abdicar das luvas já era um suplício). Po-
bre do Mariano, isso sim, que foi sem ninguém pra
dividir a barraca. E vá licor pra dentro! Bebemos,
filosofamos, fumamos, ouvimos música viajandona, enfim. O tal fenômeno ao qual chamamos de
Hippismo. Lá pelas tantas, eis que decido acompanhar o Mariano a catar mais lenha, sem nadica
de luz, tãn nãn! Aham, nos perdemos. Menos mal
que eu havia levado os bebes e fumes. Ficamos
perdidos umas 3 lindas horas no meio da floresta
encantada, e não teria me espantado nada se surgisse uma fadinha por ali. Amanhecemos e fomos
desbravar. O lugar é encantado, tem trilhas e mais
trilhas, e também trilhas no estilo faça-você-mesmo,
com ou sem facão. A paisagem da lagoa com a
serra é her-mo-sa. Deu lástima não ter um doce
naquela hora. (nosso dealer falhou, quase o demiti).
Não havia absolutamente ninguém nos arredores.
A sorte é que, caminhando uns 2 km pelo meio dos
bosques, havia um mini - muito mini, quase nano mercadinho, e ali compramos mantimentos, principalmente as pilhas da bendita lanterna. Foram 4 dias
e 4 noites de caminhadas com cheiro de verde, de
cachorrada amiga, de estrelas preenchendo cada
azul disponível no céu; enfim, foi como respirar fundo e ter vontade de continuar respirando. Muitos
silêncios dos bons olhando o céu, outros olhando
o verde, outros olhando os cães, outros de olhos
fechados. Daqueles silêncios que nos atam de uma
forma, justamente, silenciosa e, por isso mesmo,
que transcende. Dizem que quando um cachorro
te segue é porque estás perdido. Se isso é estar
perdido, então que não me achem.
Trip Amazonica
Chá dos Deuses, Vinho da
Floresta
Por Guilherme Rocha
N
stou deitado debaixo do céu, na compa-
nhia das estrelas e da lua, meditando,
concentrando minha energia no estômago e nos
ossos. A fogueira está queimando em silêncio enquanto consumo a eucaristia selvagem.
Olho para o céu e vejo estrelas caçando a lua
numa rede de constelações.
Sinto a presença da ayahuasca no meu corpo.
Eu a sinto nas minhas entranhas, brincando. Sinto
o líquido espesso percorrendo minhas veias. Sinto
a náusea e a acolho. A envio do estômago para
todo meu corpo. A náusea é energia e eu a sinto
nas minhas extremidades, da ponta dos pés ao
topo da cabeça, e isso me faz sentir divino.
Chamo as estrelas e elas vêm. Inalo e exalo e
o mundo me acompanha. Meus pulmões pulsam
a galáxia.
Estou cercado por globos de luz. Cada globo é
carregado por um par de beija-flores. Peço a eles
que injetem a luz diretamente em minhas veias
com seus bicos de seringa. Eles o fazem. Insetos
multicoloridos sobem pelo meu corpo e serpentes
rastejam por minhas pernas. Cipós envolvem meus
braços. Teias psicodélicas cobrem minhas mãos.
Formigas saem por debaixo de minhas unhas.
Tudo é tão vívido. A vida está me consumindo.
Estou explodindo em cores.
Escamas de peixe no céu. Espinhos de arraias.
Poeira cósmica. Estrelas cadentes. Já colecionei
umas 10 nessa noite estrelada da Amazônia. A
floresta que me cerca parece não ter fim, pois me
sinto como se estivesse voando por cima dela,
vendo o verde da vegetação e o amarelo solitário
da fogueira. Não há viagem mais íntima pela
Amazônia do que a viagem de ayahuasca. O chá
dos deuses, o vinho da floresta.
”Deus, abençoe todas nossas tentativas frustradas de defini-lo.” Disse a mim mesmo em êxtase.
Fecho os olhos e me vejo envolto por uma lama
viva. Não tem chão firme para pisar. Há apenas
uma lama caleidoscópica, composta de insetos,
serpentes entrelaçadas, baratas e centopéias
multicoloridas. Eles sobem por minhas pernas e
vestem o meu corpo nu. Sou composto por essa
lama viva, é ela que me une à terra. Somos feitos
da mesma matéria, afinal, cada pedaço de mim é
um pedaço da terra. Ela está tão viva quanto eu e
eu tão vivo quanto ela.
Sigo uma luz brilhante que parece vir de um
distante templo dourado. Continuo coberto por insetos. Sigo andando e, quanto mais perto chego,
maiores se tornam os bichos. Chegando ao topo,
vejo que sucuris gigantes protegem o templo, mas
eu não tenho medo. Vejo a fonte de toda a luz.
Eu a tenho na minha frente. Ela está bem ali, condensada num pequeno globo gasoso. Observo
atentamente, quiçá buscando obter alguma resposta divina, buscando uma resposta para uma
pergunta que eu desconheço. Mas a única coisa
que consigo identificar é o infinito. Ele nunca me
foi tão nítido. Dentro do globo está todo o infinito—a imensidão da luz, o tesouro do fim do arcoíris, a baleia branca do capitão Ahab, a epítome
da energia cósmica—e qualquer sentido se desfaz quando ele ameaça se revelar. Minha lição é
que não há resposta fácil. A energia divina pulsa
o universo do qual faço parte e essa é a única
resposta que posso alcançar. Aprendo que devo
abandonar a inútil busca quixotesca por verdades
absolutas. Devo apenas buscar comunhão com o
mundo que está tão vivo quanto eu. Somos todos
feitos da mesma essência. É o sopro da vida. A
maneira mais pura de se relacionar com Deus.
Após mais de seis horas sob o efeito da ayahuasca, a náusea volta intensamente. Dessa vez
ela é maior do que meu bom senso. Pensei que
iria perder o controle. Apoiei-me numa árvore e
vomitei violentamente por dez minutos. Pensei
que iria desmaiar. Poderia jurar que eu iria perder
de vez minha sanidade. Estava completamente
amedrontado. Mas quando todo o líquido espesso
saiu de meu corpo, meu mundo se reencontrou
e me senti purificado, literalmente regozijado. A
ayahuasca havia me dominado, brincado comigo
e agora estava finalmente me libertando, deixando comigo apenas um agradável sentimento de
comunhão. Senti-me abençoado. Meus sentidos
renasceram mais puros, dando-me a impressão
de que os pássaros para sempre cantariam maravilhosamente.
Após uma viagem íntima por tudo que é divino,
voltei a uma nova e harmoniosa realidade.
Trip Portuguesa
Na terra do fado vadio
Por Mauro Cass
D
a
rua
do
Car-
mo, no bucólico alto Chiado,
a gente avista o Tejo um rio que imaginei
estreito como o Tietê mas é de largura
amazônica. Fui andar por lá, um bairro
boêmio cujo nome me remete aos tempos
que ficávamos tentando sintonizar um rádio a válvula. Tirei uma foto ao lado da
estátua de bronze de Fernando Pessoa
diante do clássico Café Brasil. O bronze
confere uma fantasmagórica feição parecida a toda gente famosa. Onde estudei
havia o busco do Cásper Líbero, também
parecido com Drumond e Pessoa. Por
fim, ao morrermos ficamos todos parecidos. Ao se debruçar sobre o Tejo, o sol
confere um brilho curioso a toda cidade. Não demora e todo Chiado fica aos cuidados de sombras
e luzes seculares com destaque para o amarelado
noir de seus bondes elétricos. Passava das sete
da noite e a fome apertou. Desci apressadamente
para o Rossio, o velho centro de Lisboa, no trajeto, ainda na rua do Carmo, me detive diante de
um calhambeque vermelho impecável cuidadosamente estacionado. Parecia saído de fábrica. Dentro do veículo um sujeito fantasiado como aqueles
senhores da década de vinte, com chapéu, colete
e gravata borboleta vendia CD de fado. Ao me ver
ali parado, apreciando o carro, tratou logo de botar
seu melhor fado. Começou o som, me detive mais
um tanto. Sim, estava diante de um legítimo fado.
Ouvira coisa parecida na infância, cantada por
meu pai. Agora estava ali, na terra do fado e ouvia
uma voz potente de mulher, seguida por guitarra
portuguesa, aquela melancolia toda não poderia
ser de outra cantora senão Amália Rodrigues.
Deixei de notar o calhambeque, fiquei entretido,
envolvido ou, creio eu, hipnotizado por aquela melodia secular. Vinte euros o CD, foi o que me disse
o sujeito ao lhe perguntar o preço. Mais caro que
o que eu planejava gastar com minha refeição.
Bem, estava em Lisboa, havia de, no centro, encontrar africanos vendendo uma boa pirataria por
dois euros. Me enfiei pela rua da Vitória, cruzei
a fabulosa Augusta e parei no mercadinho para
comprar pão, frios, um pastel de Belém e vinho do
Porto. Uma boa refeição por dez euros. Inspirado
e feliz da vida, rumei para o pequeno hotel onde
havia me instalado na noite anterior.
Deodoro era o recepcionista historiador. Um
homem de boa prosa, sem dúvida. Ele, muito
cortês, sugeriu que eu comesse ali mesmo nas
mesinhas do café da manhã. Ajeitei tudo, abri o
vinho, Deodoro me trouxe a taça e fiquei ali comendo, bebendo e conversando sobre a re-
construção de Lisboa por Marquês de Pombal
após o terrível terremoto com tsunami e tudo que
arrasou a cidade em 1755. Deodoro me dava dicas de lugares a conhecer como a igreja em ruínas, no alto Chiado, que não foi reconstruída e é
a lembrança viva daquela tragédia. O assunto,
naturalmente, escorregou para o fado. Sim, tragé-
dia em Lisboa tem tudo a ver com fado. Perguntei
onde ouvir um bom fado. Ele torceu o nariz. Certamente não quis me dizer que não se podia ouvir
bom fado em Lisboa mas, ao me ver ali, fazendo
uma refeição comprada no mercadinho em vez
de comer nos baratos restaurantes, deduzira que
minha verba certamente não me permitiria gozar
de tal luxo. “No Chiado tem os grandes shows,
mas é demasiado caro”. Assim me disse, com
todo seu sotaque português. “Caro, quanto”,
perguntei. “Não sai por menos de 50 euros uma
noite”. Grande frustração. Aquela melodia toda,
me parecia, tinha tudo a ver com Lisboa mas se
tornara turística demais. Estar ali e não sentir nas
entranhas um fado me faria ir embora com a terrível sensação de frustração. Mas 50 pratas por
uma noite? Sim, “demasiadamente caro”.
“A não ser que tu vá a Alfama e não se importe
em ouvir o fado vadio”, me disse despretensiosamente Deodoro. Foi para lá que fui nesta mesma
noite. Tomei um banho, me aprontei, me pus cheiroso e sai alegremente caminhando, previamente
orientado por Deodoro, rumo a Alfama. Quinze
minutos andando pela sombria rua Bacalhoeiros,
depois, beirando o Tejo, peguei a rua do Trigo e
enfim dei na Casa do Fado, que não toca nada, é
apenas um museu e, claro, estava bem fechado
àquela hora da noite, passava das onze. Ambiente e atmosfera desse naco da cidade lembra
muito a barra pesada portuária de Santos, Vitória,
Salvador ou Rio de Janeiro: docas abandonadas,
carroceiros, malandros e algumas putas perambulavam por ali. Lá pra cima, olhando para o alto,
do lado esquerdo, se vê as luzes amareladas
que adornam o Castelo de São Jorge e lembra,
de longe, uma tímida coroa sobre a cabeça de
Lisboa. Abaixo, como uma vila medieval, temos
Alfama. É, verdadeiramente, um morro apinhado
de casebres seculares e vielas apertadas o bairro
de Alfama. Ali acontece, diariamente, em porões
apertados, o fado vadio que é, a grosso modo, o
legítimo. Pois, feito o tango, ou o samba, também
o fado nasceu assim como um uivo do submundo
marginal. Assim como nas favelas cariocas, em
Alfama são poucos os espaços onde se pode entrar um carro. Ali é preciso se aventurar na boa
e velha caminhada pelos becos. E todos os becos levam nomes singulares e poéticos. Beco
das Flores, das donzelas, das margaridas, dos
prazeres, esse último, aliás, altamente sugestivo.
Pouca luz, alguns soturnos transeuntes e, por todos os cantos, a melodiosa guitarra portuguesa
se faz presente junto com lamuriosas canções
ora entoadas por homens ora por senhoras de
negro. Escolhi uma de maneira aleatória. Deixei o
senhorzinho com seu enrr ugado terno negro achar que me convencera a por lá ficar. Vinte euros
com direito a uma jarra de vinho verde. Fantástico,
fenomenal. Duas cantoras e um cantor se alternaram em um pequeno canto do estreito salão da
meia-noite às três da madrugada. Conversei com
os músicos depois, fizemos comparações sobre
fado, samba, tango, morro, Alfama, porto e a toda
vida humana. Cheguei um tanto cambaleante ao
amanhecer no velho hotel e ainda pude agradecer a Deodoro, que acabava seu turno, pela dica
maravilhosa. Fabula
A lenda do grande mestre Ni
Por Luiciano Favaro
A
lenda diz que, em meados do século
VIII, um monge, conhecido apenas por
monge Ni, saiu em busca da iluminação, abando-
nando todos seus bens materiais e indo morar em
uma caverna isolada, no alto de uma linda colina,
depois de uma ordem de despejo da sua casa. Ali,
ele tinha certeza que o caminho ao nirvana seria
mais fácil, já que nenhuma testemunha de Jeová
o acordaria domingo de manhã para vender revistas.
Na caverna, alimentava-se de frutos silvestres,
meditava e, quando se sentia entediado, fazia palavras cruzadas e jogada peteca.
Após anos em total isolamento, um jovem
apareceu em seu abrigo, dizendo ser vendedor de
enciclopédias. Estava desesperado e com fome,
e então, o grande monge ofereceu a ele abrigo e
uma lata de atum. O rapaz sentiu-se agraciado, e
mesmo não conseguindo comer o atum por não ter
um abridor de latas, ficou encantado com a bondade daquele homem que, a partir daquele momento, virara seu grande mestre.
O monge aceitou com honra tal responsabilidade, batizando o rapaz de ishmira batsum, ou,
em uma tradução literal, o discípulo que rói as unhas dos pés.
Assim, os dois passaram vários anos na montanha, o mestre e seu discípulo, um se elevando,
outro aprendendo. Dividiam tudo o que tinham para
a sobrevivência na clausura, a comida, a água, as
vestimentas, só não dividiam o mesmo colchão
porque pegava mal.
Um belo dia, enquanto meditava, monge Ni
sentiu algo estranho em seu corpo, leveza, contemplação e uma vontade incontrolável de imitar
uma galinha: sim, era seu corpo se elevando em
direção à mais completa iluminação. O monge,
então, levantou-se e, antes de alcançar o nirvana,
declamou mais de 200 provérbios seguidos enquanto fazia polichinelos. Boa parte desses sagrados provérbios foi, infelizmente, perdida, porque
o telefone tocou na mesma hora e o discípulo foi
atender, e quando voltou o grande mestre já tinha
terminado. O jovem então pediu para ele repetir o
que tinha dito, mas o monge já não se lembrava
mais.
O que nos restou, portanto, foi apenas uma
faísca da sabedoria do grande mestre Ni, anotada
por seu fiel discípulo em alguns post-its, antes de
o monge alcançar a iluminação e partir dessa para
melhor.
Abaixo, alguns dos sagrados provérbios de
mestre Ni, anotados por ishmira batsum há mais
de 13 séculos, e que ainda hoje são amplamente
conhecidos nos países orientais:
O tolo admira a banana. O sábio a come.Na
hora do apuro, um cálice e um penico têm a mesma serventia. O tolo conta as estrelas. O sábio o
espera terminar. O sábio difere perfeitamente o ter
e o ser. O fanho nem tanto.
Insanidade
Diário de loucos
Por Sânzio Barreto
A
rotina no hospício é de enlouquecer
qualquer um. Houve uma chuva na quar-
ta-feira e ficamos vagando pelos corredores sem
nada pra fazer. Um saco. Ninguém saiu para o pátio.
No outro dia pude receber visita e me trouxeram as coisas que eu pedi. Uma fita cassete
pra tocar na rádio. Me avisaram que tinha que
ser música suave, comercial de amaciante. Sinto
profundamente. O bom e velho rock´n´roll ainda
é tudo. Deus salva, o rock alivia. Veio junto com
meias e outra bobagens meu livrinho de cabeceira recheado de cartelas de ácidos. Minha pequena coleção de selos. Mandei logo dois. Na real
preferia uma boa garrafa de gim pra acompanhar
a leitura.
Fiquei sentado ali no pátio, entre passarinhos e
árvores centenárias, esperando os primeiros efeitos. Começou aquele formigamento nos cílios e
uma vontade incontrolável de rir e aprontar alguma coisa. Achei tudo lindo, até os curativos nos meus
pulsos, as ataduras brancas, os pontos sobre a
pele ainda aberta a estilete. Mexi demais naquelas feridas e o sangue voltou a jorrar. Já estava babando, sempre rindo. Quanto mais saia sangue,
mais eu achava lindo, lindo, Linnnnnnndo!
Vermelho vivo de artéria.
Aí me deu um certo receio de ser flagrado com
aquele tesouro, mas não ia jogar na pia de jeito
nenhum. Achei que distribuir fosse melhor. Fosse
melhor. Melhor. As palavras zumbindo na minha cabeça. O primeiro que ganhou foi um chegado meu
aspirante a diretor/enfermeiro chamado Gabriel
que era meu vizinho e inventava as próprias regras
de funcionamento do lugar. Tomai, e ide para vossa casa, morreis a caminho!?. O Diretor da Rádio
tomou dois. Era um cara sofrido, per-dera um dos
rins por causa de porrada da polícia. Figura assustadora, de óculos pretos, era negro, alto e parrudo
e nunca conversava com ninguém. Bota a nossa
fita aí DJ?. Foi a única vez que o vi rindo. Achei que
a festa fosse acabar quando os primeiros acordes
de Helter Skelter começaram a ecoar pelos corredores do hospício.
Pelo contrário, os funcionários ficaram rindo
da minha performance de coelhinho da páscoa/
Cosme&Damião. Já que ninguém sabia direi-
to o que fazer, fui ao meu quarto ministrar uma
dose ao colega tristonho que conversava com a
própria dentadura sem auxilio químico nenhum.
Outro doidão se manifestou logo reconhecendo a
molecagem: não acredito! Tamém quero!?.
A Janaína, cujo nome real eu não sabia, e só a
chamava assim porque rimava com matou a filha
com cocaína também ganhou. Ela costumava me
pedir produtos de higiene porque não recebia
visitas e não falavam com ela. Dizem que, sendo
viciada em crack, achou o seu bebê, recém-nascido, não agüentaria a abstinência e, na sua mente
de dependente, misturou leite materno e cocaína
e deu numa colherinha. Sua única preocupação
agora era com a aparência. Dizia que me amava
e nesse momento gritou até para os aviões passavam: ele tá sangrando?!
Me arrastaram para a enfermaria de onde dava
pra ouvir o barulho cada vez mais alto da melhor
festa que já houve ali. O som foi diminuindo na medida em que o sedativo fazia efeito e enquanto os
curativos eram refeitos. 28 de fevereiro de 2002,
na minha agenda, comemora-se o dia mundial do
doido.
Insanidade
Pássaro de Ferro
Por Leandro Durazzo
As nuvens são mais reais pessoalmente. Do
alto, bem do alto, talvez não o máximo mas, de repente, de uma hora pra outra, mais do que eu esperava. Porque eu queria voar, sempre quis e sempre quero, e foi que voei. Subindo quilômetros e
mais, acima, sempre, sem parar, sempre, subindo
até mesmo para o pouso. Sempre ao alto. Às nuvens, nelas e através. Chegando, vagabundo, até
o topo de uma terra nova, uma terra tenra macia e
feito água. Onde o sol brilha direto, sem intermé-
dios, sem nada, sem sombras, nem dúvidas. Sem
homens.
Parece que o mar sobe aos céus, se você voa
alto. Parece que o mundo volta ao mar, todo ele,
horizonte interminável para todo e todo lado. Parado em alguns trechos, revolto mais abaixo. E o espírito de Deus pairava sobre as águas. E as águas
sobem aos céus e Deus se banha.
As nuvens são mais reais pessoalmente. Dizem do fundo das gotas frias
tudo que lá debaixo tu jamais poderia
ouvir. Não ouviria, a menos que a chuva
caísse trazendo ao solo a voz das mães
alvíssimas. Ou negras. O canto ritmado de
tambores do vento que vem e traz trovejos
e lampejos de luz do sol. Quando Deus se
seca.
Não é como um país de algodão, ou
uma massa gigante de algo falso. Falso, gasoso e mentiroso. É mesmo, lá de
cima, como o chão mais sólido em que
eu poderia pisar. É como uma queda esperando que eu a cometa. Se as asas se
queimarem e todo o corpo acometer em
direção ao centro, eu volto à terra. Como
um cometa.
Mas eu não quero, e continuo voando,
com o olhar exultante e prazeroso fitando
as nuvens, que são meu chão, meu horizonte, minha fonte de água pura e meu
destino eterno. Que são testemunhas mais
primárias dos feitos das minhas estrelas
irmãs de lá de cima, do firmamento. E vizinhas bem mais próximas da mãe lua de
todo mundo.
Se Deus não for o céu, Deus não há.
Ficcao
A Arte da Guerra - Passo a passo
C
Por Luiciano Favaro
riada pelos chineses por volta do ano 1000, e patenteada pelos japoneses 3 anos depois, a
pólvora foi usada pela primeira vez como arma de fogo por um rei francês, quando tentava
acender um rojão no Ano Novo.
Os americanos inventaram a bomba atômica, a internet e o estilingue, mas hoje isso tudo está à disposição dos inimigos dos Estados Unidos, à vista ou parcelado no cartão.
No livro A Arte da Guerra – Passo a Passo¬, o historiador americano Maximilian Coxy examina a
guerra de perto e alerta: Ela não cheira nada bem.
O livro “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, ainda
continua influente em combates de guerra?
Maximilian Coxy - Hoje sabemos que a obra
de Sun Tzu foi consultada por diversos militares
ao longo da História. Os romanos leram e a traduziram para o latim. Napoleão pode ter lido também, mas provavelmente em uma versão pocket
book, assim como os ingleses, mesmo que ambos não admitam isso. É provável que ainda hoje
militares a consultem para a preparação de combates. Mas isso é difícil responder com certeza, já
que ainda estou na página 11 do livro.
Quem os EUA devem temer: a China, a
Coréia do Norte ou a Al Qaeda?
Coxy - Possivelmente uma combinação entre
eles. Os Estados Unidos devem se preocupar
com a China e a Coréia do Norte juntos, ou a Al
Qaeda com a China, a Coréia do Norte com a Al
Qaeda. Ou uma união entre os árabes e algum
país latino americano. Ou ainda uma junção dos
todos eles. Enfim, hoje os Estados Unidos devem
temer qualquer coisa que se mova, basicamente.
E a China pode se tornar uma superpotência
sem guerra?
Coxy -Historicamente não conheço nenhum
país que tenha alcançado status de superpotência sem guerra. Alguns países entraram em superguerras, mas sem nenhuma potência. Esses se
deram muito mal.
A verdade é que, normalmente, a potências já
estabelecidas não dão espaço para que uma nova
potência surja. E esse é o prelúdio de um confronto
bélico. Analisando a situação dos Estados Unidos
e da China hoje, podemos garantir que a melhor
decisão a ser tomada é comprar um pacote turístico para as Bahamas e ficar por lá por tempo indeterminado.
Qual é o maior problema da China em
questões armamentistas?
Coxy - O grande obstáculo da China, apesar
de seu investimento por estruturação bélica e seu
número gigantesco de soldados alistados, é o setor de comunicação. O problema é que a língua
chinesa é tão difícil que nem os próprios chineses
conseguem entender muito bem. Isso atrapalha
um pouco as decisões em combate. Um exemplo
clássico disso foi a conhecida batalha de Yun-Pé,
em 1667. Um enorme batalhão chinês estava alinhado, aguardando ordens para invadir a região de
Yun-Pé, na fronteira com o Vietnã. O coronel Wing
Li então ordenou a todos que seguissem em direção nordeste, mas os soldados não entenderam
o que o coronel tinha dito e rumaram para oeste,
chegando à Paris 8 meses depois.
Dos militares citados em seu livro, quem é
seu preferido?
Coxy - Tenho verdadeira admiração pelo Duque
de Ashmor. No livro, conto um de seus primeiros
combates, na Índia, em 1703. É inspirador relatar
como ele enfrentou e venceu o exército Mongol.
Os Mongóis tinham 4.500 homens bem treinados e
fortemente armados, enquanto o batalhão de Ashmor possuía apenas 120 soldados, que usavam
chinelos para se defender e palitos de dente para
atacar. E um estudo revelou que a maioria deles
estava completamente bêbada na hora do combate. Foi um feito impressionante.
Muito obrigado, Sr. Coxy.