Abuso Sexual Infantil

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Abuso Sexual Infantil
Abuso Sexual Infantil: Breve Histórico e Perspectivas
na Defesa dos Direitos Humanos
Vanessa Milani Labadessa –
[email protected]
Professora das Faculdades Associadas de Ariquemes - FAAr.
Especialista em Psicologia. Mestranda MAPSI – UNIR
Mariangela Aloise Onofre –
[email protected]
Psicóloga da Vara de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica e
Familiar e Crimes Contra Crianças e Adolescentes da Comarca de Porto Velho-RO.
Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente
Resumo
Este trabalho propõe-se a realizar uma revisão teórica sobre os diferentes entendimentos sobre
as práticas sexuais realizadas por adultos com indivíduos na infância. Apresenta a evolução do
conceito de infância e da respectiva conquista de direitos sociais. Discute as práticas de
atendimento voltadas para crianças e adolescentes vitimas de abuso sexual, apontando a
necessidade de empreendimento de esforços conjuntos entre a sociedade civil e os poderes
executivo, legislativo e judiciário no sentido de enfrentar a violência e a exploração sexual de
crianças e adolescentes na realidade brasileira.
Palavras-chave: infância; abuso sexual infantil; direitos da criança;
Introdução
Entende-se por abuso sexual infantil, situações em que a criança é
usada para gratificação de necessidades ou desejos sexuais com pessoa mais
velha para a qual a criança seja incapaz de dar um consentimento consciente
em virtude de assimetrias de idade, tamanho ou de poder (Sanderson, 2005).
O abuso sexual pode envolver violência direta, e ocorrer em diferentes formas,
seja por meio de contato físico direto (beijos, masturbação, relação sexual,
entre outros) ou por via indireta (encorajar a criança a assistir contatos sexuais
ou ouvi-los, observar a criança nua ou despindo-se, observar a criança nua ou
despindo-se, fotografar a criança para uso erótico posterior, expor a genitália
deliberadamente, entre outros).
Além do abuso sexual propriamente dito, existem outros tipos de
violência a que são submetidas as crianças, que podem estar presentes na
situação de abuso sexual ou colaborar para que ela ocorra. Tais violências são:
o uso de violência física, a violência psicológica e a negligência.
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o processo histórico
das relações de poder que determinaram o lugar social criança, articulando
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as transformações sociais acerca do entendimento sobre a infância e o
processo de evolução do conceito de violência contra a criança e o
adolescente.
Para apreensão e mediação da análise aqui proposta, seguimos o
seguinte roteiro: 1) compreensão histórica sobre o fenômeno com a
respectiva construção de conceitos sobre os tipos de violência contra
crianças e adolescentes; 2) a legislação atual sobre o tema; 3)reflexões
sobre a prática de atenção e atendimento à vítima de violência sexual.
O abuso sexual na História
Para entender o percurso e os significados que resultaram no
entendimento sobre o abuso sexual, faz-se necessário resgatar as relações
de poder que envolveram historicamente a criança.
Os estudos de Azambuja (2004) consideram que o fato da criança se
apresentar como ser frágil tanto física como psiquicamente, numa sociedade
embasada nos valores do adulto masculino, faz com que a situe na posição
de vítima. Esta autora enfatiza que são recentes o reconhecimento do
sentido da infância e a preocupação da ciência com os efeitos da violência
no desenvolvimento físico, mental, espiritual e social. Reitera que, quanto
mais se retroage na história, maiores são as chances de se observar a falta
de proteção jurídica à criança, com registros de abandono, espancamento,
morte e violência física, psíquica e sexual. Por sua vez, Grolli (1999) sustenta
que numa sociedade patriarcalista e machista, a mulher e a criança são
submetidas à opressão.
O abuso sexual está presente em toda história, independentemente da
classe social, grupo étnico ou religioso. Nos estudos de Strey (1998), a
subordinação sexual da mulher existe desde os primórdios da humanidade e
seria motivada, entre outras coisas, pela preocupação com o crescimento
populacional. Uma vez que, na época, existia grande escassez de recursos e
era preciso ter o controle populacional, até guerras entre os diferentes povos
eram incitadas para que houvesse eliminação de pessoas. Nessa
organização, os homens eram levados a desenvolver toda sua agressividade
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destrutiva e em troca obtinham gratificações sexuais por meio do direito de
estuprar as mulheres do povo perdedor. Por esses costumes, as mulheres
eram estimuladas a serem passivas e submeterem-se às atrocidades sexuais
da guerra, caso o seu povo perdesse.
Bass e Thornton (1985) informam que nos tempos bíblicos com a lei
talmúdica1 era possível o uso sexual de meninas a partir dos três anos de
idade, desde que o pai consentisse e recebesse o dinheiro que lhe parecia
adequado por sua filha. As mulheres e crianças eram propriedades de
alguém, portanto, se essa pessoa quisesse vender, alugar ou emprestar, só
era preciso estipular um valor. Mulher e criança eram tratadas como
mercadorias sexuais que pertenciam a um proprietário particular. As autoras
ainda relatam que até o ato sexual com meninas menores de três anos não
estava sujeito a nenhuma restrição na lei talmúdica. Em suas palavras:
O uso de meninas com menos de três anos para fins sexuais não era
legalmente regulamentado, porque elas eram consideradas muito jovens
para serem virgens legalmente e, portanto, não tinham valor monetário. O
sexo com meninas de menos de três anos não estava sujeito a nenhuma
restrição. Como na caça, estava aberta a temporada (BASS; THORNTON,
1985, p. 24).
Não havia punição para os adultos que abusavam das meninas com
menos de três anos de idade e também não havia punição para os adultos
que mantinham relação sexual com os meninos menores de nove anos. Mas,
apesar de aparentar um consentimento muito grande sobre as relações
sexuais com o sexo feminino e crianças, a lei talmúdica condenava
severamente o sexo entre homens adultos (BASS; THORNTON, 1985).
As autoras continuam a nos esclarecer informando que não houve
mudanças significativas sobre a questão do abuso sexual infantil com a
chegada do catolicismo. A lei canônica defendia o estupro como meio
1
Segundo Chouraqui (1963), existem o Talmude de Jerusalém e o da Babilônia e são ambos
enciclopédias gerais do saber tradicional dos hebreus. O Talmude é dividido em seis Sedarim
(ordens), cada qual possui um certo número de tratados, dividindo-se em capítulo e por fim em
parágrafos, entre eles o terceiro tratado é consagrado às mulheres e às questões do
casamento, moral sexual, e etc. A palavra Talmude significa “ensinamento” e é, em sua
essência, uma meditação da Bíblia, a Palavra de Deus para os judeus e cristãos.
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indissolúvel de se contrair matrimônio. A lei católica consentia ter relações
sexuais com crianças, mas aumentou de três para sete anos a idade mínima
legal para iniciar as crianças nas relações sexuais com adultos. O que houve,
de acordo com Azambuja (2004), foi apenas certa humanização dos
costumes romanos com a chegada do cristianismo, visto que foram
influenciados a proibir o ato sexual com o recém-nascido, o que antes era
comum naquela civilização. Esses fatos indicam que o abuso sexual infantil,
assim como a exploração contra a mulher sempre existiram.
Bubeneck (2004) comenta que a sociedade grega permitia a
prostituição de jovens do sexo masculino (efebos). O sexo de um adulto com
parceiros infantis, de ambos os sexos, também era considerado comum
naquela sociedade. Esses fatos ocorriam, entre outros locais, na ilha de
Creta, onde era bem vista a atitude de um velho raptar adolescentes para
seu usufruto. Bass e Thornton (1985) citam que, durante mil anos na China,
por desejos sexuais masculinos, as meninas a partir dos cinco anos eram
obrigadas a passarem por um processo torturante de diminuição dos pés,
porque os homens eram atraídos sexualmente por pés mutilados do tamanho
dos de um bebê (oito a dez cm), e as meninas eram submetidas pelas
próprias mães à tortura desta mutilação para garantir-lhes um futuro
casamento.
Ariès (1981) afirma que durante toda a Idade Média as crianças eram
misturadas aos jovens, adultos e velhos. Isso se dava a partir do momento
em que não dependiam mais da ajuda das mães e das amas
(aproximadamente aos sete anos). Elas participavam das brincadeiras, jogos
e do trabalho como se fossem adultos, sem qualquer restrição. Nessa fase,
relata o autor, que não existia a distinção da infância e isso era manifesto
pelas roupas que usavam, as brincadeiras e os afazeres. Ele afirma que o
tratamento era tão semelhante que qualquer leitor moderno ficaria confuso
ao ler o diário de Heroard, médico de Luís XIII, o qual mostra a liberdade que
os adultos tinham com as crianças e a grosseria e indecência de suas
brincadeiras.
Chegava a ser comum observar entre os últimos anos do século XVI e
início do século XVII a exposição e o toque dos genitais das crianças pelos
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adultos. As crianças também sabiam, muito precocemente, sobre sexo. Um
exemplo bastante difundido é do rei Luís XIII, quando ele tinha pouco mais
de um ano, tratou-se de seu casamento com a Infanta da Espanha, e ele já
sabia sobre o significado do seu pênis no futuro casamento. Por isso,
quando, perguntavam-lhe: “Onde está o benzinho da Infanta? Ele põe a mão
no pênis” (ARIÈS, 1981, p.75).
Em uma conotação de justiça, abusos sexuais foram cometidos por
parte de algozes, cúmplices, e executores. Bass e Thornton (1985) relatam
que, na Europa entre o fim do século XV e o final do século XIX, cerca de
nove milhões de pessoas foram mortas por bruxaria e, em sua grande
maioria, eram crianças e mulheres acusadas por copularem com demônios.
Eram torturadas e estupradas por bandos de homens até confessarem tal
crime. Azevedo e Guerra (2000) informam que esta prática não foi diferente
no Brasil, aqui era responsabilidade da Inquisição reprimir os desvios sexuais
e atos de bruxaria. Desta forma, as mulheres e crianças foram castigadas e
mortas por uma suposta prática sexual não permitida. Esses costumes têm
em comum o fato dos homens ditarem as normas sobre os atos sexuais,
julgando seus limites, proibições, castigos e as mulheres serem castigadas
quando apresentam ações que transgridem as regras impostas.
Bass e Thornton (1985) pontuam que, na atualidade, em vários países
africanos, como em outros continentes no passado, apresenta-se o costume
da mutilação do órgão genital (clitóris) das meninas. Essa mutilação tinha e
ainda tem a intenção de evitar que elas sintam prazer na relação sexual.
Retornando aos exemplos do passado, a amputação ocorria sem antisépticos ou anestesias e eram realizadas, na maioria das vezes, com cacos
de vidro, fazendo com que muitas meninas morressem por infecção. As
mutilações continuavam na vida adulta, quando se casavam recebia novos
cortes na vagina e em caso de maternidade outros cortes.
Em contra partida, o homem se apresenta como inocente perante os
abusos sexuais cometidos contra crianças e mulheres. Azevedo e Guerra
(2000) fazem menção sobre a primeira visita do Santo Ofício da Inquisição à
Bahia em 1591, onde um sacerdote de 46 anos de idade confessou que, por
duas vezes havia cometido a prática de abuso sexual contra meninas (ambas
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de seis ou sete anos de idade). O crime desse religioso, segundo as leis do
Santo Ofício, não se deu pelo ato do abuso sexual das crianças e sim por ter
realizado com elas conjunção anal, o que naquela época era condenado pela
igreja como abominável pecado de sodomia.
Em outro exemplo de Bubeneck (2004), uma cafetina foi levada à
justiça francesa na época áurea dos bordéis (1830-1930) sob acusação de
aliciar crianças para “trabalhar” em seu estabelecimento. Ao ser indagada
pelo juiz sobre o fato, a cafetina o confrontou dizendo que quando ele
freqüentava o seu estabelecimento, as meninas eram consideradas muito
velhas por ele.
A relação entre poder social e poder sobre o sexo pode ser retratada
no exemplo de Azambuja (2004), que descreve que os filhos e as mulheres
do Império Romano eram subordinados à figura masculina, ou seja, eram
submissos primeiro aos pais e no caso das meninas posteriormente ao
marido. As mulheres e crianças eram consideradas sem personalidade
jurídica e não tinham direito a patrimônio algum. Isto ainda ocorre em
diversos países muçulmanos e africanos.
É importante destacar que mesmo com o aparecimento das
organizações internacionais para discutir os direitos humanos, a exploração
sexual de mulheres e crianças não foi colocada em primeiro plano. Taquary e
Lima (2004) destacam que a primeira preocupação da Comunidade
Internacional foi com a escravidão. Primeiro houve a repressão ao tráfico de
pessoas e só depois houve a preocupação com os raptos de crianças e
mulheres que eram submetidas a abusos e prostituição.
Taquary e Lima (2004) informam que a primeira Declaração dos
Direitos da Criança em Genebra, em 1924, não tratou sobre a questão
específica da prostituição infantil e nem sobre o comércio sexual da criança.
Foi somente em 21 de março de 1950 em Lake Sucess, que foi mencionada
a penalização da prostituição, sem contudo especificar a proteção de
crianças e adolescentes.
Apenas em 1959 na Assembléia Geral da ONU, que se proclamou a
Declaração dos Direitos da Criança, que continha dez princípios e um deles
defendia o direito à proteção especial às crianças. A Convenção sobre os
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Direitos da Criança foi ratificada pelo Brasil em 20 de setembro de 1990 e
passou a definir como criança, todo o ser humano com idade inferior dezoito
anos2. Neste documento, definiu-se que os interesses superiores da criança
serão priorizados em todas as medidas tomadas por instituições de bemestar social, públicas ou privadas. A garantia de direitos e deveres dos pais
ou responsáveis legais, tomando todas as providências legislativas e
administrativas também constam no documento que propõe-se a assegurar
que a sobrevivência e o desenvolvimento da criança ocorrerá em condições
de dignidade humana e respeito aos costumes da comunidade onde ela está
inserida. O artigo 34º da Convenção, trata especificamente da proteção às
situações de abuso e exploração sexual.
Mas, como afirma Azambuja (2004), ainda há muito que ser feito para
mudar a realidade brasileira e mundial do abuso sexual infantil. Começando
com a conscientização e desmistificação da visão da sociedade em relação
ao problema. Constata-se, apesar dos discursos, que muitas práticas outrora
ocorridas continuam a acontecer, o que é confirmado pelos noticiários que
veiculam, a cada dia, vários casos de abusos e violências sexuais, que estão
cheios de vítimas deste tipo de situação, em sua maioria, mulheres e
crianças. Bass e Thornton (1985) citam casos de bebês de três meses sendo
tratados de doenças sexualmente transmissíveis na garganta. Barbosa
(1999) comenta histórias de meninas das regiões pobres do Brasil que são
vendidas por suas famílias para servir sexualmente a grandes concentrações
de homens.
Um exemplo dado por Bass e Thornton (1985) retrata a perpetuação
dos costumes ligados à violência contra a mulher e ao abuso sexual infantil.
Elas falam dos apelos feitos pela mídia que desvaloriza a mulher e cria a
imagem da menina-mulher, que pode ser vista nua em jornais, revistas e
programas de televisão, mediante propagandas e anúncios que podem vir a
reforçar a prática da pedofilia. Acrescentam que a comunidade deve ficar
2
Neste trabalho, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2002) será
considerada criança, “a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela
entre doze e dezoito anos de idade”.
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atenta aos abusos que ganham novas conotações e apresentam-se numa
roupagem aparentemente inofensiva (BASS; THORNTON, 1985).
A publicidade, os meios de comunicação e a pornografia encorajam a
aceitação do uso sexual de crianças. Embaralhando a distinção entre mulher
e menina-criança, estas imagens, algumas vezes enviam a mensagem de
que as meninas, assim como as mulheres, podem ser – e devem ser –
consumidas sexualmente. Mulheres são fotografadas em poses sedutoras
vestindo meias soquetes, segurando pirulitos e ursinhos. Adolescentes e préadolescentes são fotografadas com um foco difuso e usando lingeries
enfeitadas com rendas e laços, ou nuas (BASS; THORNTON, 1985, p.
28).Obedecendo a esse código, a criança agirá de acordo com as
expectativas adultas, pois deseja a aprovação deles. A autora coloca que o
Los Angeles Times calculou que “um milhão e meio de crianças com menos
de dezesseis anos são usadas anualmente em sexo comercial (prostituição e
pornografia)”3. A revista publicou também que a indústria da pornografia
infantil gera um negócio de um bilhão de dólares por ano. A reportagem dá
conta de que mulheres e meninas encontram-se expostas em imagens
pornográficas e degradantes. Os comerciais de televisão transmitem a
mensagem de que as meninas estão “disponíveis para o sexo”. Um anúncio
para uma grande fábrica de colchões mostrava uma menina retorcendo-se
no colchão. O título, em grandes letras destacadas, incitava: “Experimente
algo novo” (BASS; THORNTON, 1985, p. 31).
Os meios de comunicação costumam ser apelativos e “permissivos”
quanto ao uso de crianças em comportamentos sexuais provocativos. A
indústria fonográfica usa o sexo e a violência contra as crianças para obter
lucros. Mesmo as piadas contadas em reuniões de amigos, muitas vezes,
podem demonstrar a “permissividade” da sociedade quanto ao abuso sexual
infantil (BASS; THORNTON, 1985).
Apesar do abuso de crianças ser condenado ostensivamente, na
verdade
são
sancionados
por
nossas
instituições,
filmes,
revistas,
3
John Hurst, Los Angeles Times, 26 de maio de 1977, citado por Florence Rush em “Child
Pornography”, p.77 (apud BASS; THORNTON 1985, p. 30).
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publicidade, e até mesmo pela arte e literatura. Todos confundem meninas
com mulheres adultas; vulnerabilidade com provocação sexual; virilidade
com agressividade; sim com não; mulheres com seus genitais; e tanto
mulheres adultas como crianças como propriedades para posse dos homens
(BASS; THORNTON, 1985, p. 32).
Assim, há a confirmação que o abuso sexual infantil é parte de uma
cultura na qual se tolera a violência contra a vida. A sociedade não preza a
saúde das próximas gerações, na medida em que atribui mais valor a
produtos para o consumo do que para as conseqüências sociais que isso
pode acarretar. A questão que se impõe é: se não há preocupação com o
futuro das próximas gerações, por que haveria com as gerações infantis
presentes?
Dessa forma, entende-se que a ruptura desse ciclo só ocorrerá houver
atitudes que ensinem a criança a proteger-se desde a tenra idade. Souza
(1991), por exemplo, afirma que a educação sexual deve ter início aos três
anos de idade com uma linguagem simples e clara. Sendo assim, a criança
desde pequena já saberá se defender contra insinuações e abusos sexuais
investidos por adultos. O conhecimento sobre as formas, os conceitos e os
tipos de violência, assim como os tipos de abuso sexual podem contribuir
para que crianças, adolescentes e até as mulheres não sejam mais vitimadas
e caladas durante a história.
Perspectivas atuais
Santos et al. (2004) informam que a primeira organização
institucionalmente criada para defender as crianças de maus tratos foi a New
York Society for the Prevention of Cruelty to Children – NYSPCC (Sociedade
de Prevenção da Crueldade contra Crianças de Nova York), fundada
somente em 1894. A história dessa instituição inicia com a ação para retirar a
menina Mary Ellen, de nove anos de idade, da casa dos pais adotivos, pois
sofria maus tratos severos por estes, ação que foi apoiada pela Sociedade
de Prevenção à Crueldade aos Animais de Nova York.
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Na época, as autoridades não tinham legalidade suficiente para tirar
uma criança da casa dos pais por maus tratos. Dessa forma, o juiz teve que
se embasar no fato de que a criança também pertence ao reino animal,
portanto também tem o direito de ser protegida. Com esse embasamento
legal houve a remoção da menina para um abrigo. Com a repercussão desse
acontecimento, foi criada a Sociedade de Proteção à Criança de Nova York
(NYSPCC).
A primeira organização de caráter internacional criada para a
prevenção de abuso e abandono de crianças foi a Society For The
Prevention of Child Abuse and Neglect – ISPCAN, que teve sua fundação
somente em 1977. Essa organização reuniu profissionais de muitos países e
traçou como meta a realização de congressos mundiais a cada dois anos e a
estimulação de criação de novas entidades e serviços em vários lugares do
mundo. Com estas organizações, os abusos sexuais passam a ser
encarados de uma perspectiva não estritamente masculina.
Segundo Taquari e Lima (2004) e Azambuja (2004), o Brasil se
destaca, internacionalmente, no estabelecimento dos direitos da criança e do
adolescente. Além de ratificar a Convenção dos Direitos da Criança, é
pioneiro em garantir a proteção da criança na Constituição Federal de 1988 e
garantir a sua proteção integral em seu Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA (BRASIL, 2002). O Brasil tem reprimido o turismo sexual e penalizado
os responsáveis. Há um esforço por parte do Governo Federal, por meio de
programas especializados, em trabalhar com as crianças que são vitimadas
pelo abuso sexual. Esses programas visam resgatar, bem como promover a
dignidade e a auto-estima a essas crianças.
Santos et al. (2004) apontam que as primeiras organizações
brasileiras para a proteção de crianças contra maus-tratos surgiram nos anos
de 1980. Para eles, isso não significa que as crianças não eram
negligenciadas ou abusadas física e sexualmente no passado, nem que não
existissem atendimentos para elas, mas que não existiam, até então,
instituições especializadas que trabalhassem apenas com esse tipo de
clientela. Os atendimentos às crianças eram realizados em ambulatórios e
hospitais comuns.
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O Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância – CRAMI,
de Campinas (SP) criada no Brasil em 1985, foi a primeira agência desse
gênero. A partir de 1988 multiplicaram-se instituições em todo o Brasil com o
intuito de proteger as crianças.
O preconceito e a tendência social em não dar credibilidade à palavra
da criança é um dos principais obstáculos ao enfrentamento da violência
sexual contra crianças e adolescentes. Apesar disso, a responsabilização
dos agressores e a proteção e acolhimento das vítimas é tendência
crescente no cenário brasileiro. A criação de delegacias especializadas em
atender crianças e adolescentes, instalação de programas de atendimento e
criação de métodos específicos de oitivas evitando a revitimização, são
ações que vem sendo implantadas a nível nacional e discutidas por
profissionais da área jurídica, serviço social e psicologia.
A metodologia do depoimento sem dano, implantada inicialmente no
Poder Judiciário do Rio Grande do Sul e já adotada em outros estados
brasileiros é um exemplo dos esforços empreendidos no sentido de tornar a
passagem pela justiça uma trajetória menos sofrida para as vítimas. De
acordo com Cezar (2007), em síntese, o projeto consiste em retirar as
crianças e adolescentes do ambiente formal da sala de audiências e colocálas em sala projetada com equipamento de vídeo e áudio, onde juiz,
promotor, advogado e demais serventuários da justiça interajam com a
criança por meio dos equipamentos, com a intervenção técnica de
profissionais preparados para o trato com a vítima (psicólogos ou assistentes
sociais). O projeto tem provocado importantes discussões nos conselhos
profissionais de psicologia e serviço social, produzindo documentos
norteadores para a escuta de crianças e adolescentes vitimas de violência.
Por fim, a mais recente lei na defesa das mulheres e crianças é a Lei
12.015 de 07 de Agosto de 2009 (BRASIL, 2009), que altera o código penal
brasileiro no que diz respeito aos crimes de natureza sexual adotando o
procedimento de ação penal pública incondicionada se o crime for cometido
contra menores de dezoito anos ou pessoas vulneráveis. Embora polêmica,
uma contribuição significativa desta lei é considerar que pessoas do sexo
masculino também podem ser considerados vítimas do crime de estupro.
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Haverá agravante de pena quando o crime for praticado por pessoas das
relações familiares ou de proximidade da criança.
Considerações Finais
Se em face do quadro descrito neste trabalho as atitudes em defesa
da criança descritas no segundo tópico parecem insuficientes, não podemos
deixar de considerar que, numa comparação histórica, os avanços nestes
cuidados e defesa aumentaram rapidamente nas últimas décadas.
O fato é de grande complexidade, pois envolve relações construídas
social e politicamente como fruto de comportamentos socialmente aceitos
pela visão e compreensão do papel e identidade da criança na história da
humanidade.
A preocupação está estabelecida, o tema não é mais tomado como
natural por muitas populações em diversos países do mundo. Diversos
estudos tem se voltado para o tema e políticas públicas tem sido implantadas
nesta causa. Ações conjuntas da sociedade civil e dos poderes executivo,
legislativo e judiciário representam avanços siginificativos no enfrentamento a
este tipo de violência. Mas o labor apenas começou na defesa dos direitos
humanos.
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Title
Child sexual abuse: A brief history and perspectives on the protection of human
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Revista Olhar Científico – Faculdades Associadas de Ariquemes – V. 01, n.1, Jan./Jul. 2010
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Abuso Sexual Infantil: Breve Histórico E Perspectivas Na Defesa
Dos Direitos Humanos – Vanessa Milani Labadessa - Mariangela Aloise Onofre
Abstract
This paper aims to conduct a literature review on the different understandings of sexual
practices between adults and children. It shows the evolution of the concept of childhood and its
achievement of social rights. It discusses the practices of caring focused on children and
adolescents, victims of sexual abuse, pointing the need of development of joint efforts between
civil society and the executive, legislative and judicial branches of government in order to
confront violence and sexual exploitation of children and adolescents in Brazil.
Keywords: Childhood, Childhood Sexual Abuse, Children's rights;
http://www.faar.edu.br/revista
Recebido em: 23/05/2010
Aceito em : 06/07/2010
Revista Olhar Científico – Faculdades Associadas de Ariquemes – V. 01, n.1, Jan./Jul. 2010
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