DossierDevirMenor (PDF COMPLETO)

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DossierDevirMenor (PDF COMPLETO)
N. 41
Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia
é uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Território e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade.
Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha
Escola de Serviço Social, sala 33
22290-240 Rio de Janeiro, RJ
EQUIPE EDITORIAL
Barbara Szaniecki
Bruno Cava
Cristina Ribas
Giuseppe Cocco
Sindia Santos
DESIGN: Cristina Ribas
REVISÃO: Sindia Santos
COLABORADORES: Aukai Leisner e Susana Caló
CONSELHO EDITORIAL
Rio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Alexandre do Nascimento, Alexandre
Mendes, Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Cristiano Fagundes, Eduardo Baker,
Emerson Mehry, Fabricio Toledo, Gerardo Silva, Henrique Antoun, Leonora
Corsini, Marcelo Castaneda, Mariana Medeiros, Pedro Mendes, Rodrigo Bertame,
Rodrigo Guerón, Silvio Pedrosa, Talita Tibola, Tatiana Roque e Vladimir Santafé.
Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa Maria, Homero
Santiago – São Paulo, Hugo Albuquerque – São Paulo, Jean Tible – São Paulo, Márcio Taschetto – Passo
Fundo, Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa – Curitiba, Natacha Rena – Belo
Horizonte, Paulo Henrique de Almeida – Salvador, Peter Pal Pelbart – São Paulo, Renata Gomes – São
Paulo, Rita Veloso – Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus e Simone Parrela Tostes – Belo Horizonte.
Outras cidades: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Carlos Restrepo – Colômbia, César Altamira
– Argentina, Christian Marazzi – Suíça, Diego Sztulwark – Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret –
Espanha, Matteo Pasquinelli – Itália, Michael Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega Camacho
– Bolívia, Raul Sanchez – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália, Santiago Arcos – Chile, Thierry Badouin
– França, Veronica Gago – Argentina, Yann Moulier Boutang – França.
Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n. 1, (1997) – Rio de Janeiro:
UFRJ, n. 41 – set-dez 2013
Quadrimestral
Irregular (2002/2007)
ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
Apresentação
7
Bruno Cava
Editorial
Espirais pelo deserto com Mandela
11
UnivErsidadE nômadE
•Nem Xenios, nem São Francisco de Assis.
O milagre pertence aos pobres
17
Fabrício Toledo de Souza
•Ubuntu,ocomumeasaçõesairmativas
29
Alexandre do Nascimento
•Cidades insurgentes
37
Ricardo Gomes
•AfavordeAlthusser.Notassobreaevolução
dopensamentodoúltimoAlthusser
51
Antonio Negri
•Biopolíticasespaciaisgentriicadoras
e as resistências estéticas biopotentes
71
Natacha Rena, Paula Berquó e Fernanda Chagas
dossiê dEvir mEnor (org.: sUsana Caló)
•Devirmenor,espaço,territórioeemancipaçãosocial.
PerspectivasapartirdaIbero-América
91
Susana Caló
•DevirAutónomoeImprevisto:
Pornovosespaçosdeliberdade
95
Susana Caló
•O sul também (não) existe.
AarquiteturaiccionaldaAméricaLatina
103
Eduardo Pellejero
•ODevir-MundodasPráticasMenores
121
Anne Querrien
•Dionora. Para uma Arquitetura Menor
133
Patricio del Real
•Arquitetura,FeitiçoeTerritório.Matériaeimpulso
delibertaçãonaobrabaianadeLinaBoBardi
Godofredo Pereira
145
•AberturaTrilogiadaTerra
153
Paulo Tavares
•ACidadeMultiforme:OcasodoIndoamericano
171
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
•Algumas Considerações acerca
daPráticadoMapeamentoColetivo
185
Iconoclasistas
navEgaçõEs
•Odesejodomotoristadeônibus:
esquizofreniaeparanoiasituadas
195
Jésio Zamboni e Maria Elizabeth Barros de Barros
•Proliferaroásis:porumahistóriapolitizada
dodesejoedacontingência
213
Pedro Demenech
•Sobreasmanifestaçõesdejunhoesuasmáscaras
223
Javier Alejandro Lifschitz
artE, mídia E CUltUra
•Omodoartísticoderevolução:dagentriicaçãoàocupação
241
Martha Rosler
EConomia E sUbjEtividadE: o aCElEraCionismo
do ponto dE vista do marxismo
•Apresentação
265
Bruno Cava
•ManifestoAcelerar:porumapolíticaaceleracionista
269
Alex Williams e Nick Srnicek
•Sobreoaceleracionismo
281
Steven Shaviro
•Oantiprometeísmoentreneoliberaisecatastroistas
293
Alberto Toscano
•Umacríticahackeraomanifestoaceleracionista
299
McKenzie Wark
rEsEnha
•Vintecentavos:alutacontraoaumento.
(deElenaJudensnaider,LucianaPiazzonePabloOrtellado)
310
Por Bruno Cava
rEsUmos
315
Devirmenor,espaço,territórioe
emancipaçãosocial.Perspectivas
apartirdaIbero-América
Susana Caló
Apresentação
Devir Menor, Espaço, Território e Emancipação Social. Perspectivas a
partir da Ibero-América é uma investigação que tem como objectivo interrogar a
dimensão espacial das formas e práticas de emancipação social na contemporaneidade. Inicialmente formulado no âmbito de um pensamento ético-político da
nkvgtcvwtc"pc"ÝnquqÝc"rqn vkec"fg"Fgngw|g"g"Iwcvvctk"pc"qdtc"uqdtg"Kafka e retomado no volume II de Capitalismo e Esquizofrenia, o conceito de devir menor serve
de ponto de partida ao projecto, e refere-se ao processo pelo qual se criam aberturas à variação num contexto determinado por uma língua dominante, segunda
a ideia de que subjacente a uma língua unitária está uma operação de poder que
se impõe sobre uma multiplicidade política. Mais concretamente, refere-se a uma
prática de contra-investimento, exercida sobre as estruturas de poder por forma a
abrir espaços para a vida e para a heterogeneidade.
Tendo no horizonte a crescente mercantilização da cidade e do território
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diretas sobre as formas de vida, procuramos traçar alternativas a este modelo e
examinar processos de resistência como são, entre outros, a toma de terras na
Argentina, as lutas dos sem-terra no Brasil, ou também as ocupações do espaço
público que têm ocorrido agora com grande visibilidade no Sul da Europa.
O conjunto de contribuições aqui reunido foca principalmente três dimensões:
ミ
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ミ
a questão da terra enquanto luta por direitos a outras formas de produção
e modos de existência;
ミ
e a questão do habitar na luta pela politização colectiva da cidade e do
urbano.
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Da mesma forma, e reconhecendo a transversalidade destas problemáticas, esta investigação confere particular atenção à articulação entre campos proissionais e disciplinares (urbanismo e arquitectura) e práticas espaciais desenvolvidas por movimentos sociais no âmbito de processos de autonomização cívica e
emancipação social.
Finalmente, o próprio contexto geográico em que este projecto se insere
assume contornos que exigem problematização. É preciso ter em atenção que a
Ibero-América enquanto constructo projecta sobre um amplo e diverso território
uma ideia de unidade que remete a um passado colonial. Numa primeira instância
esta aproximação entre a América Latina e a Península Ibérica não pode, portanto, ser entendida sem a consciência de uma história colonial e de uma modelação identitária que resulta na ofuscação da divergência e da diversidade existente
no espaço deste território. Contudo, mais do que uma limitação, aqui a Ibero-América é uma possibilidade de trabalho. E ao contrário da unidade investida
no constructo, o resultado que se procura não é uma mostra unitária, mas uma
multiplicidade e heterogeneidade de práticas espaciais e concepções de território
que emergem deste espaço e das quais é possível tirar partido. Assim, centrarmo-nos aqui nas possibilidades de abertura a outras experiências e práticas de emancipação, procurando estabelecer ligações e cruzamentos entre diversas noções de
território e de prática, de vida e de relações socioespaciais.
Por último, a pergunta que quisemos colocar foi de que modo um entendimento menor das práticas do espaço abre possibilidades para a emergência
de formas de viver e de habitar mais democráticas. Como conclusão, ressalva-se
um entendimento ético-político do menor, isto é, que segue o imperativo de uma
prática, que diz respeito a uma tensão e articulação produtiva entre movimentos
sociais e instituições, com vista à consagração em direito a outros modos de organização, outros modos de produção, outros territórios e modos de vida.
Deste modo, iniciamos este dossier com a exploração cuidada do conceito de devir menor avançado por Deleuze e Guattari, e o seu desenvolvimento por
relação com a axiomática do capital na forma do problema do minoritário. Neste
texto, intitulado Devir Autónomo e Imprevisto: Por novos espaços de liberdade,
proponho reavaliar o conceito na medida de uma prática de resistência que articula uma micropolítica e uma macropolítica, alertando para os perigos de confundir
o menor com o pequeno, o independente ou o marginal. Trabalha-se a ideia de que
a luta pelos espaços da existência é uma luta pela vida, e que defender o direito ao
território é também defender o direito à participação na invenção de um mundo.
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Prosseguimos com O Sul também não existe. A arquitectura iccional
da América Latina de Eduardo Pellejero, em que o autor explora uma série de
casos da literatura do último século – icções coloniais e nacionalistas modernas
e, em contraste, formas “menores” de icção e “desincorporação literária” – para
desenvolver uma ideia de literatura que se opõe a narrativas hegemónicas e às
identiicações imaginárias que modelam o território permitindo-nos compreender
o seu potencial de resistência.
O terceiro ensaio, Devir-Mundo das Práticas Menores é de Anne Querrien que a partir da ideia da escola enquanto lugar de articulação da heterogeneidade
do território procura expandir o pensamento das práticas espaciais críticas com
vista a uma abertura à participação e autogestão do espaço.
A relexão seguinte, desenvolvida por Patricio del Real, com o título Dionora. Para Uma arquitectura menor, contrasta a ideia de território ou meta-geograia ibero-americana com a multiplicidade social e cultural que corresponde
a esse território. Em alternativa, encetando também uma crítica ao fascínio pelo
informal, sugere que se foque a atenção não sobre a escala do território, mas sobre
a escala da cidade, por forma a pensar as condições para um processo de menorização da prática da arquitectura.
Nesta sequência, a contribuição de Godofredo Pereira Feitiço, Arquitectura e Território, sugere a desconexão contemporânea entre a proissão de arquitectura e a necessidade de uma política espacial crítica. Partindo da inluência que os
“anos entre os brancos” tiveram sobre o posicionamento político da obra de Lina
Bo Bardi, assim como a proximidade desta com a conceptualização de uma ecologia radical desenvolvida por Félix Guattari, procura pensar a importância “feiticista” de certos objectos enquanto elementos transversais que dão corpo uma relação
entre território e existência, enquanto lugar de transformação e luta política.
Ainda sobre a problemática da emancipação social no Brasil, a contribuição de Paulo Tavares, Abertura – Trilogia da Terra é um projecto vídeo de
investigação sobre os desdobramentos urbanos e territoriais do processo de redemocratização no Brasil no período designado de “Abertura”. A partir de um
conjunto de entrevistas e dos registos das viagens de Félix Guattari ao Brasil,
documentada em Micropolítica: cartograias do desejo, o autor mostra como a
questão do direito à terra estava no centro das lutas políticas e sociais, à escala
urbana, agrária e territorial.
Prosseguimos com o Colectivo Situaciones que nos traz uma relexão produzida com outros colectivos no Taller Hacer Ciudade. Cidade Multiforme: o caso
do Indoamericano analisa a ocupação do parque indoamericano em Buenos Aires
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por emigrantes, em dezembro de 2010, que desaguou em violência, terminando
com a sua evacuação. Na análise do processo, os autores identiicam uma complicada trama económica e governamental de micro-gestão territorial e especulação
imobiliária conjugada com problemas de emigração, racismo e nacionalismo.
Ainda no âmbito de projectos de trabalho colectivo e militante, em Algumas Considerações a cerca da Prática do Mapeamento Colectivo, o coletivo Iconoclasistas parte de uma crítica ao uso hegemónico da representação cartográica
para mostrar através da sua extensa experiência como os mesmos recursos podem
ser usados de um modo contra-hegemónico. Os autores desenvolvem um método
de cartograia participativa, com vista à produção de novas subjectividades e territorialidades.
As contribuições aqui reunidas para formar especialmente este dossiê
foram desenvolvidas durante o ano de 2012.
LUGARCOMUMNº41,pp.95-102
DevirAutónomoeImprevisto:
Pornovosespaçosdeliberdade
Susana Caló
É a variação contínua que constituiu o devir minoritário de todo
o mundo, por oposição ao Fato majoritário de Ninguém. O devir
minoritário como igura universal da consciência é denominado
de autonomia. Sem dúvida que não é utilizando uma língua menor
como dialecto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamos
revolucionários; é utilizando muitos dos elementos de minoria,
conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especíico,
autónomo, imprevisto.38
As línguas menores não existem em si: existem apenas em relação a
uma língua maior e são igualmente investimentos dessa língua para
que ela se torne, ela mesma, menor. 39
deleuze e guattari, Mille Plateaus
Quando em Mille Plateaus Deleuze e Guattari se referem ao projecto de
devir menor enquanto constituição de uma prática revolucionária com o potencial
de evadir a axiomática do capital é para o investir de uma dimensão política que
merece ser explorada, para além do campo da literatura em que foi inicialmente
formulado40. É neste movimento que se podem especular linhas de pensamento
sobre a questão da relação entre espaço, política e emancipação a partir dos conceitos de devir menor e minoria. Neste âmbito, há duas ideias chave: primeiro, a
virtude de questionar o critério epistemológico que deine maiorias e minorias e,
segundo, a qualiicação de uma prática que toma lugar no seio do maior para o
menorizar. A primeira e a segunda complementam-se na deinição de uma prática
orientada para a abertura de espaços de conexão à experiência múltipla do mundo,
38 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus,
trad. Brian Massumi. London: Continuum, 1987, p. 118.
39 Ibid., p. 116.
40 Isto não quer dizer que no domínio literário devir menor não tenha um cunho político – pelo
contrário, a enunciação da capacidade ética-estética-política da literatura é central ao projecto
crítico-clínico de Deleuze e Guattari.
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DEVIRAUTóNOMOEIMPREVISTO
ou a criação de condições de possibilidade para outras formas de pensamento e
de vida. Contudo, é importante notar que, como bem nota Maurizio Lazzarato41,
o conceito de devir menor traduz o período das lutas da década de 1960, num
ambiente em que se procurava encontrar linhas de fuga através de formações
minoritárias à rigidez política dos grandes ajuntamentos sociais, institucionais e
partidários. Ora, hoje em dia, passa-se um pouco a situação contrária. Ao passo
que o modelo neoliberal se airma duplamente, quer a um nível micropolítico, na
captura da produção de subjectividade, quer a um nível macro-político, nas formas de estado e instituições ao seu serviço, tanto movimentos sociais como partidos, manifestam uma diiculdade de expressão e articulação que consiga conectar
estes dois planos. É neste sentido que vale a pena reavaliar a questão do menor.
Importa distingui-lo claramente de uma apologia do marginal, do pequeno, ou do
não-institucional. É nessa medida que vamos enfatizar essa implicação mútua, em
que a política é sempre uma micro e uma macro-política, pois parece-nos que se
hoje o conceito é válido é porque convoca a necessidade de procurar formas de
articulação e de formalização entre estas.
I.
Formulado no âmbito de um pensamento político da literatura através do
estudo da obra de Kafka42, o conceito de devir menor refere-se ao processo pelo
qual, num contexto dominado por uma língua hegemónica, se criam espaços e
passagens para a variação e multiplicidade que não é relectida nas formas de representação dominantes. Segundo a ideia de que “a unidade da língua revela uma
manobra política” e que as línguas hegemónicas reforçam a homogeneização, a
identidade e as “constantes de expressão ou conteúdo”, de acordo com um regime
de representação, devir menor deve ser entendido como um tratamento da língua
maior cujo propósito é de arrancar a língua às relações de poder que a aprisionam,
para a re-conectar com a variação e heterogeneidade que caracteriza a experiência
do mundo. Neste sentido, o menor ou o maior não dizem respeito a duas línguas,
mas a diferentes tratamentos ou usos de uma língua. O que importa reter é que
o maior determina o padrão ou a regra a partir da qual todos os outros usos são
avaliados: implementa normas e leis, imanentes tanto ao conteúdo como à forma,
41 Entrevista não publicada, realizada a maio de 2013, Londres.
42 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Pour une littérature mineure. Paris: Minuit,
1975.
Susana Caló
que regulamentam não só as práticas discursivas, mas também comportamentos,
formas de falar, de fazer e de pensar.
Parece-me então que face a esta homogeneização, o tratamento menor
da língua encontra a sua mais alta justiicação na premissa de que esta deve ser
devolvida à multiplicidade do mundo para salvaguardar condições de possibilidade de enunciação e de formulação de novos problemas. Ou seja, a introdução de
novos objectos de luta no espaço político.
Se retomarmos o ponto de vista de Deleuze e Guattari, a literatura menor
implica uma capacidade de afectar a língua maior com um grau relevante de desterritorialização que provoca uma série de deslocamentos e renegociações que a
confrontam com o seu próprio limite. No caso de Kafka este efeito deve-se a deslocamentos contextuais (em Metaformose, por exemplo) que produzem situações
cuja natureza convoca simultaneamente a renegociação de estruturas familiares,
económicas, burocráticas ou jurídicas. Este aspecto entende-se bem se seguirmos
a proposta sugerida em Mille Plateaus de que a pragmática é a política da língua,
isto é, que a língua não existe em si mesma, mas depende de factores externos a si
própria ou pré-condições que permitem, ou não, a sua efectuação, em determinado campo social ou contexto, e em dado momento no tempo.
Ora, esta confrontação da língua com os seus limites expõe a rede de elementos da qual a efectuação de um enunciado depende, deste modo entendendo-se melhor a língua como um sistema dinâmico com quebras e transições, na
fronteira de micro e macro-lutas que relectem modulações de poder, num certo
momento do tempo e revelam o contexto de relações de poder segundo as quais
se a expressão é distribuída.
Se continuarmos a extrapolar o sentido político do enquadramento da
língua nessa dinâmica de relações, então percebemos que, assim como o fechamento da língua sobre si própria neutraliza a sua potência política revolucionária
(porque ofusca a sua dimensão colectiva e social), de igual forma o encerramento
do escritor sobre si próprio anula a potência política da criação literária. Como tal,
na perspectiva do menor, Deleuze e Guattari defendem que o verdadeiro escritor é
aquele que força sobre si próprio uma potência de desubjectivação da experiência
ou uma elevação ao impessoal, como condição necessária para a articulação com
a experiência colectiva (e singular) do mundo, assim como de uma ligação do individual ao social. Neste sentido, a noção de agenciamento colectivo de enunciação, também introduzida no livro dedicado a Kafka, é central para compreender
o que se entende por literatura menor. O escritor não escreve sobre as coisas, nem
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DEVIRAUTóNOMOEIMPREVISTO
no lugar delas, mas escreve com o mundo ou em conjugação com o mundo – é, no
fundo, essa a condição política da literatura.
Trata-se de defender que o fazer de uma língua não é uma coisa individual, mas diz respeito a um processo de criação colectiva, assim como a um
processo de constituição de um colectivo. É também a esse respeito que Deleuze
e Guattari propõem que a literatura menor inventa condições de possibilidade de
um povo por vir, povo esse que está em falta.43 Todavia, é fundamental entender
que este povo não se refere a um grupo particular ou ideal, mas convoca a questão
da política do por-vir, sinónimo de outras formas de vida, outros valores e outros
modos de pensamento para os quais as condições de possibilidade de acontecimento têm de ser produzidas. No domínio da língua ou da expressão, isso implica
garantir que a enunciação e a formulação de novos problemas sejam informadas
por essa multiplicidade, e sensíveis à formalização de novos problemas. É esse
movimento de devir que forja articulações entre vários regimes de poder, e que
força o menor sobre o maior, que deve ser relevado (enquanto uma prática).
II.
Partindo destas considerações e tendo no horizonte a crescente mercantilização da cidade e do território que cada vez mais se airma como uma tendência
dominante com consequências directas sobre os modos de vida, tentarei agora
sugerir a forma como a ideia de devir menor pode informar um pensamento e
prática contra-hegemónicas do espaço e do território. Neste âmbito, a hegemonia
diz respeito ao processo global em que a urbanização hoje promove a expansão do
capital, estruturando tanto a cidade como o território de maneiras que geram não
só exclusão social e discriminação, mas inevitavelmente resultam na airmação
de certas formas de relação com o espaço que acarretam como consequência o
estrangulamento de muitas outras. E, com efeito, os aspectos anteriormente mencionados – desterritorialização da língua maior; elevação ao impessoal; conexão
do individual ao social; agenciamento colectivo de enunciação – revelam-se dimensões importantes para pensar práticas espaciais e sociais comprometidas.
Mas há ainda dois aspectos que resultam da relexão prévia e que devemos notar: o reconhecimento de que as formas de poder operam a diversos níveis,
desde a produção de subjectividade aos modos de relação social; e a necessidade de inventar modos de articulação entre a dimensões subjectivas, movimentos
43 Esta articulação entre um tratamento menor e a noção de um povo por vir é melhor feita em
Cinéma 2: L’Image-temps (1985), Critique et Clinique (1993) e Qu’est-ce que la philosophie?
(1991) por relação com o conceito de fabulação.
Susana Caló
sociais, formas de representação e instituições. É claro que a política não pode
ser reduzida à dimensão maior das representações ou das instituições, pois passa
também pelas formas de vida e processos de produção de subjectividade, quer
seja pelo “modo como falamos” como por “aquilo que pode ser dito”. Ou seja, a
política é algo que se faz e se pratica, atravessando tanto o tecido do individual
como do social. Esta tomada de consciência é importante, pois a partir do momento em que a vida é tomada como objecto de poder, nela reside também uma força
estratégica que pode ser canalizada para a resistência. Como disse Deleuze, “não
é uma questão de nos preocuparmos ou de esperar pelo melhor, mas de encontrar
novas armas”.
É evidente que os domínios materiais e espaciais são atravessados por
relações de poder (de formas implícitas e explícitas) e necessariamente emitem
regulamentações sobre os modos de relação social, valores e formas de vida. Por
isso, o espaço não é, nem deve ser entendido, como um simples contentor pacíico
e neutral das relações sociais, mas sim como um elemento activo, com o potencial
de participar, tanto a um nível molecular, como molar, da singularização e renovação dos modos de relação social e cultural. Como explicou Guattari, a produção
de subjectividade depende de uma série de factores polifónicos, espaciais e materiais, discursivos e não discursivos, signiicantes e assigniicantes.
Assumindo como ponto de partida que as práticas de emancipação tomam lugar nos espaços que habitamos e são tanto produtoras de espaço como
contingentes ao espaço, deveríamos ser capazes de operar uma análise dos lugares
que habitamos, não só para identiicar modos de organização rígidos e hegemónicos, mas também para os reformar. Estaríamos próximos do trabalho de crítica
e análise institucional de Guattari e Jean Oury no espaço da clínica La Borde44,
onde se pode dizer que a estratégia era a de menorizar o espaço institucional
enquanto modo de singularização e autonomização da diferença, e resolver um
impasse entre uma horizontalidade e uma verticalidade puras de poder, ou entre
processos topo-base e base-topo.
Nesta lógica, a questão que nos deveria orientar para pensar ideias de
emancipação articuladas por práticas espaciais seria: de que modo é que estas
podem gerar formas de habitar e de relação com o território que exponenciem
processos de singularização e autonomização cívica? Teríamos de pensar uma
44 A primeira vez que tentei analisar as implicações sociais e políticas do trabalho desenvolvido
na análise e crítica institucional foi através do estudo do caso da clínica La Borde em “Félix
Guattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepção da subjectividade para além do
humano.”, em (dis)locations, ed. Gabriela Vaz Pinheiro e Fbaup, 2011.
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DEVIRAUTóNOMOEIMPREVISTO
economia do espaço e do território orientada para a emergência de concepções de
liberdade, de igualdade e de justiça, capazes de constituir uma oposição crítica a
critérios epistemológicos maiores.
Embora seja certamente possível deinir certas minorias segundo um critério quantitativo45, esta deinição é tão errada quanto confundir a proposta do
menor com a airmação de espaços pequenos ou independentes, desligados da
sociedade e tentativamente separados da realidade, em ruptura com as instituições
e as estruturas de poder existentes. Não se trata de evitar qualquer tipo ou forma
de identidade ou de representação – dessa forma anulando estrategizações formais
chaves à prática política. Pelo contrário, como sublinha Guattari, o menor deve
mobilizar uma prática de articulação:
a conclusão deste tipo de transformações dependerá essencialmente da capacidade que tenham os agenciamentos criados para articular essas transformações
com as lutas políticas e sociais. Se não se produzir essa articulação: nenhuma
mutação de desejo, nenhuma luta por espaços de liberdade logrará dar lugar a
transformações sociais e económicas a grande escala.” “Fugas moleculares e
movimentos não seriam nada se não voltassem às organizações molares para
recombinar os seus segmentos, a sua distribuição binária dos sexos, das classes
e dos partidos.”46
Inevitavelmente as lutas de emancipação social ocorrem às mais diversas escalas e nos mais diversos contextos, produzindo formas de identidade, de
associação e de representação que se tornam a dado momento necessariamente
maiores (desde o grupo ao partido). Mas por isso mesmo é necessário identiicar
modos de interacção do menor com o maior, que possam substituir a simples oposição (improdutiva) entre espaços “menores” vs “maiores”, “marginal” vs “institucional”, “formal” vs “informal”.
45 Como Deleuze e Guattari explicam: “Por maioria nós não entendemos uma quantidade
relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as
quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias.” A Thousand Plateaus, p. 321.
“Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica a
determinação de uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação
ao qual ela é avaliada. (…) A maioria assume um estado de poder e de dominação e não ao contrário
(…) Certamente as minorias são estados que podem ser deinidos objectivamente, estados de
língua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser consideradas também
como germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveis
e de desterritorializações da média ou da maioria.” A Thousand Plateaus, p. 116-117.
46 Ibid., p. 239
Susana Caló
Neste âmbito, as práticas espaciais que se debruçam sobre as relações
de trabalho, sobre o colectivo enquanto modo de criação, sobre protocolos de
ocupação de espaços ou sobre as políticas do território e as suas determinações
legais, são particularmente relevantes para imaginar possíveis práticas espaciais
que intervenham no âmbito de diferentes relações de poder. E por isso é crucial
prestar atenção também a modelos participativos promotores de outras formas de
relação social que potenciem estas articulações.
Por outro lado, ao passo que é preciso não confundir metodologias participativas com ausência de arquitectura, é crucial ter presente o que sugere o
arquitecto Teddy Cruz ao defender que “uma comunidade não será livre enquanto
não for capaz de resolver criativamente as suas necessidades de habitação, de formas de sustentabilidade socioeconômica, as suas próprias concepções de espaço
público, e os modos de relação com o território: no fundo a sua cultura cívica”.47
III.
“Devir-minoritário é um caso político, e apela a todo um trabalho de potência,
uma micropolítica activa. É o contrário da macropolítica, e até da História,
onde se trata de saber, sobretudo, como se vai conquistar ou obter uma maioria. Como dizia Faulkner, não havia outra escolha senão devir-negro, para não
acabar fascista. Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de
passado e futuro. Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões de
um futuro e de um passado da revolução; ele passa entre os dois. Todo devir é
um bloco de coexistência.” 48
Uma prática menor começa por reconhecer que o pensar do espaço e do
território é um problema que diz respeito a todos. Tal como a invenção de uma
língua diz respeito a um colectivo, e não apenas a um indivíduo ou a um regime de
representação que se impõe de cima, também o espaço diz respeito a uma comunidade, em prolongamento com a construção da sua autonomia cívica. Só perspectivando as lutas em torno ao território enquanto lutas pela vida e enquanto sintomas
destes agenciamentos colectivos é que podemos fazer passar a política pelo espaço,
isto é, concebendo-o como território de existência. Deste modo, a politização do
47 Cf.: excelente discussão on-line, em particular, os comentários de Teddy Cruz aqui
“Re: [-empyre-] Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policy and the Collective’s
Imagination, http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg04012.html.
(Acedido em julho de 2012).
48 A Thousand Plateaus, p. 322.
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DEVIRAUTóNOMOEIMPREVISTO
espaço não termina no espaço, mas prossegue apontando uma direcção para fora
dele, indicando sempre a sua posição num regime transversal de relações de forças,
que preigura a sua capacidade de intervenção e afectação a diferentes níveis. Sem
dúvida, a medida de afectação mútua é a medida política do espaço.
Por im, reconhecer que a política se faz e se pratica nos espaços da existência como uma luta pela vida, implica reconhecer e defender que o direito ao
espaço é também o direito à participação na invenção de um mundo. Uma participação que depende da construção de articulações produtivas entre uma micro e
uma macropolítica.
Referências
CALÓ, Susana. Félix Guattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepção
da subjectividade para além do humano. In (dis)locations, ed. Gabriela Vaz Pinheiro
e Fbaup, 2011.
CRUZ, Teddy. Re: [-empyre-] Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policy
and the Collective’s Imagination. Disponível em: http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg04012.html. Acesso em: jul. 2012.
DELEUZE, Gilles. Critique et clinique, Les éditions de Minuit. Paris, 1993. (coll.
“Paradoxe”)
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka: Pour une littératuremineure. Paris: Minuit, 1975.
___. Qu’est-ce que la philosophie? Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris,
1991.
___. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus, trad. Brian Massumi.
London: Continuum, 1987.
Susana Caló escreve neste momento o doutoramento no Centre for Research in
Modern European Philosophy (CRMEP), em Londres, com uma tese sobre a política da linguagem a partir de Gilles Deleuze e de Félix Guattari em que aborda as relações entre linguagem,
semiótica e emancipação.
LUGARCOMUMNº41,pp.103- 120
O sul também (não) existe. A arquitetura
iccionaldaAméricaLatina
Eduardo Pellejero49
Que classe de ser histórico é o que chamamos de América? Não é
uma região geográica, nem um passado, nem,quiçá, um presente. É
uma ideia, uma invenção do espírito europeu.
octavio paz, O labirinto da solidão
mas aqui embaixo, abaixo,
a fome disponível
recorre ao fruto amargo
do que outros decidem
enquanto o tempo passa
e passam as paradas
e fazem-se outras coisas
que o Norte não proíbe.
Com a sua esperança dura
o Sul também existe.
mario benedetti, O sul também existe
Entre outras tantas aventuras intelectuais, o século XIX reservava à Europa o cansaço da cultura e a tristeza da carne, contaminando os sonhos dos seus
poetas com fantasias de evasão.50 A ilusão de uma vida simples, sem as contradições que dilaceravam as cidades modernas, levaria alguns a fazerem-se ao mar
49 Traduzido do espanhol por Susana Guerra.
50 “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. / Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux
sont ivres / D’être parmi l’écume inconnue et les cieux! / Rien, ni les vieux jardins relétés par
les yeux / Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe / O nuits! ni la clarté déserte de ma
lampe / Sur le vide papier que la blancheur défend / Et ni la jeune femme allaitant son enfant. /
Je partirai! Steamer balançant ta mâture, / Lève l’ancre pour une exotique nature! / Un Ennui,
désolé par les cruels espoirs, / Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs! / Et, peut-être,
les mâts, invitant les orages / Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages / Perdus,
sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots... / Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!!”
(Mallarmé, “Brise marine”, 1887)
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(muitas vezes para desaparecer), mas, sobretudo, levantaria no vazio da literatura
da época a utopia de um mundo virgem, de um mundo onde tudo ainda estava por
ver, por nomear e por fazer.51
Essa utopia inissecular não era nova. A América nascera de uma fantasia
similar.52 A imaginação europeia projetara durante séculos a imagem de um paraíso terrenal sobre os despojos da conquista, sobrepondo uma topograia intelectual
e fantástica ao território real, perpetuando a icção de um mundo novo, puro, sem
falhas. Os mares do sul não eram neste contexto um simples tropo literário, eram
assunto de Estado.
Signo do valor atribuído a esta icção pelo poder são as numerosas disposições coloniais através das quais Espanha pretendeu proibir, a partir do século XVI, a publicação e importação de qualquer material romanesco na colónia.
Visando fundamentalmente o controlo ideológico do novo mundo, a metrópole
tentava deste modo impor limites à imaginação americana.53 Os inquisidores com51 As mesmas contradições que inspiravam d fantasias, por outra parte, davam lugar na mesma
época a outra utopia, esta vez imanente e materialista, que airmava que o mundo estava por ver,
pensar e fazer em todas partes e a todo o momento.
52 Sobre a fundação iccional da América, cf. TODOROV. Fictions et vérités. L’Homme, v. 29,
n. 111, Paris, 1989, p. 7-33; “A América é uma utopia, isto é, é o momento no qual o espírito
europeu se universaliza, se desprende das suas particularidades históricas e se concebe como
uma ideia universal que, quase milagrosamente, encarna e aiança-se numa terra e num tempo
preciso: o porvir. Na América a cultura europeia concebe-se como unidade superior” (PAZ,
Octavio. El laberinto de la soledad. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 71); “Com
a descoberta da América, o “Novo Mundo”, o Ocidente converte-se em terra verdadeira de
promissão. (…) A chave mais importante deste ocidente será o ouro. A ideia de “El Dorado”
(uma lenda índia que chegou aos ouvidos dos espanhóis no século XVI), deu asas à fantasia e à
cobiça dos europeus. O Ocidente passará a ser – a partir das expedições dos conquistadores do
século XVI até à “quimera do ouro” californiana na época posterior a 1848 –, o ponto cardeal
dos caçadores de tesouros. (…) Mas o Ocidente converte-se em terra promisionis também em
sentido político. Durante séculos, a América constituirá a meta de inúmeros emigrantes que,
abandonando as estreitas e opressivas condições europeias, procuravam no “dourado Ocidente”
liberdade individual, independência e riqueza, ou – como os padres peregrinos, os quáqueres e
muitos outros grupos – queriam tornar realidade, com a fundação de novas comunidades, uma
ordem social ideal” (cf. RICHTER, Dieter. El sur. Historia de un punto cardinal. Un recorrido
cultural a través del arte, la literatura y la religión. Tradução espanhola de María Condor. Madrid: Ediciones Siruela, 2011, p. 30).
53 Para uma visão mais apurada da questão da icção na América colonial, cf. Antonio
Antelo. Literatura y sociedad en la América Española del siglo XVI: Notas para su estudio. In:
Thesaurus, tomo XXVIII, n. 2, 1973; cf. SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales. Tradução
espanhola de José Leandro Urbina e Ángela Pérez. Bogotá: FCE, 2004, p. 27.
Eduardo Pellejero
preendiam muito bem que a proliferação não regrada das imagens e dos discursos
à qual dá lugar a icção literária constituía uma ameaça (real) para a fundação
(iccional) do novo mundo.54
Espanha procurava assegurar o monopólio da força assegurando o monopólio da icção. Com o argumento (platónico) de que os romances eram disparatados e absurdos (isto é, mentirosos), com o argumento de que podiam ser
prejudiciais para a saúde espiritual dos cidadãos, durante 300 anos os americanos
foram privados do direito à sua leitura, ou, melhor, foram forçados a lê-los de
contrabando, de tal modo que o primeiro romance que se publicou sob essa igura
na América hispânica só apareceu depois da independência55.
Trezentos anos é muito tempo. Há costumes que se enraízam. Quero dizer que depois de viverem tantos anos envolvidas numa icção, as nações nascentes necessitariam da icção para viver. O sul, que até então fora uma projeção
fantasmática do norte, um espaço onde as topograias reais e imaginárias se encontravam indissoluvelmente ligadas, arriscava a desagregar-se enquanto lugar
simbólico a golpes de realidade (guerras civis, conlitos fronteiriços, luxos migratórios etc.). Libertada inalmente do controlo espanhol, era hora da imaginação
americana dar consistência a um território que aparecia dividido e depredado. E,
numa época em que a experiência religiosa (e as suas fábulas associadas) deinhava enquanto fundamento do vínculo social, a literatura haveria de responder a essa
necessidade espiritual e política, assumindo a tarefa de produzir o sucedâneo de
uma experiência partilhada, de uma memória comum.
Poetas e políticos conluiriam nesta empresa. Assim, por exemplo, em
1847, o futuro presidente da Argentina, Bartolomé Mitre, introduzia no prólogo
do seu romance Soledad, uma espécie de manifesto com o qual pretendia suscitar
54 Espanha aspirava controlar totalmente a vida nas colónias americanas, e pretendia portanto
deter também o monopólio da icção. É difícil de compreender, contudo, que tenha tentado
submeter a literatura a uma forma tão sistemática de censura. O certo é que se o poder pretende,
por um lado, enclausurar ou expulsar a icção (pensem na expulsão dos poetas da república platónica, que inaugura esta história de exílios que se estende tristemente até aos nossos dias), por
outro lado, o poder também procura apropriar-se da potência da icção para os seus próprios ins
(lembrem também, neste sentido, que na República, Platão funda a divisão do trabalho numa
icção ou num mito: o da implantação do ouro, da prata, do bronze e do ferro nas almas dos
homens). A associação imediata, claro, é 1984, de George Orwell: “Quem domina o presente,
domina o passado. Quem domina o passado, domina o futuro”. Cf. LLOSA, Mario Vargas. La
verdad de las mentiras. Buenos Aires: Alfaguara, 2002, p. 15-16.
55 Trata-se do romance de José Joaquín Fernández de Lizardi, El periquillo sarniento,
publicado no México, em 1816.
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a produção de romances que izessem as vezes de cimento para a nova nação.
No espírito de Schiller, considerando que a revolução política só era possível a
partir de uma reforma cultural56, Mitre estava convencido de que os romances de
qualidade promoveriam o desenvolvimento do país; os romances ensinariam a
população sobre a sua história incipiente, sobre os seus costumes apenas formulados, sobre ideias e sentimentos políticos e sociais, oferecendo uma representação
sensível da sua transformação em curso, do seu devir histórico imediato57.
Resultado de invasões violentas e de divisões forçadas, de pactos desiguais e alianças improváveis, as novas nações careciam de qualquer tipo de coesão. As identiicações imaginárias que a literatura era capaz de suscitar apareciam
portanto como uma alternativa efetiva. Nesse sentido, intelectuais e governantes
alentaram a fabricação de icções compensatórias para preencher um mundo cheio
de vazios.58
Exemplo: Em Amalia59 (1844), de José Mármol, Eduardo Belgrano (portenho) é ferido quando tenta fugir de Buenos Aires para somar-se à resistência ao
governo de Rosas; Daniel Bello salva-o e oferece-lhe refúgio na casa da sua prima
tucumana, Amalia. A paixão entre Eduardo e Amalia inlama a paixão política,
56 A interpretação que Mitre faz de Schiller pode ser posta em causa, mas certamente Mitre
afeta a sua inluência, chegando a utilizar, no Prólogo, as categorias de homem moral e homem
isiológico.
57 “É por isso que gostaríamos que o romance criasse raízes no solo virgem de América. O
povo ignora a sua história, os seus costumes apenas formulados não foram ilosoicamente
estudados, e as ideias e sentimentos modiicados pelo modo de ser político e social não foram
apresentadas sob formas vivas e animadas copiadas da sociedades na qual vivemos. O romance
popularizaria a nossa história apelando aos acontecimentos da conquista, da época colonial, e
das memórias da guerra da independência. Como Cooper no seu Puritano e o espía, pintaria os
costumes originais e desconhecidos dos diversos povos deste continente, que tanto se prestam a
ser poetizados, e dariam a conhecer as nossas sociedades tão profundamente agitadas pela desgraça, com tantos vícios e tantas grandes virtudes, representando-as no momento da sua transformação, quando a crisálida se transforma em brilhante borboleta. Tudo isto faria o romance, e
é a única forma sob a qual podem apresentar-se estes diversos quadros tão cheios de ricas cores
e movimento.” (MITRE, Bartolomé. Soledad. Buenos Aires: Tor, 1952).
58 Deste modo, na América Latina, os romances, do mesmo modo que as constituições e os
códigos civis, vinham legislar sobre os costumes modernos. A literatura fornecia uma espécie
de “código” civilizador, que tinha por objeto erradicar a barbárie, e de uma forma tão certa
como os códigos civis promulgados muitas vezes pelos mesmos autores; cf. RAMOS, Julio.
Desencuentros de la modernidad en América Latina: Literatura y Política en el siglo XIX.
México: FCE, 1989.
59 MARMOL, José. Amalia. Madrid: Cátedra, 2000.
Eduardo Pellejero
e leva os primos a ingir-se partidários do regime para secretamente lutar contra
Rosas. Na véspera da inevitável fuga de Buenos Aires, Eduardo e Amalia casam,
mas morrem na tentativa às mãos das tropas de Rosas, fechando um pacto que já
não poderá ser desfeito. Na prosa de Mármol, a história de amor funciona ao mesmo tempo como impulso para uma nova ordem política; projeta, num contexto de
divisão social e na ausência de um poder legítimo (tal é a perspectiva de Mármol),
o tipo de cópula entre a capital e as províncias, capaz de estabelecer uma família
pública de direito.
O caso de Amalia é representativo de um gênero que conheceu uma tradição prolíica, cujo objeto era conciliar as diferenças entre etnias, classes e regiões, postulando os antigos inimigos como futuros aliados. Romance erótico/
político, onde a metáfora do matrimónio (conquistado com grandes esforços) ou
da união de fato (minada por todo o tipo de condicionamentos materiais, sociais
e culturais), se desdobra como metonímia de consolidação nacional.60 Os amantes desejam-se apaixonadamente ao mesmo tempo que desejam o nascimento de
uma nova ordem política, uma ordem capaz de tornar possível a sua união; cada
obstáculo que os amantes encontram intensiica o amor – o das personagens e o
dos leitores –, pelo surgimento de uma nação onde a paixão possa ser consumada61. A icção literária é politicamente fundacional: não implica diretamente uma
organização nova do social, mas dá lugar a um novo agenciamento coletivo de
enunciação, que apela aos leitores presos nos mesmos impasses que narra para
o tornarem seu. Palavra impessoal à espera de um corpo (político) que lhe dê
voz, a icção fundacional pressupõe um sujeito paradoxal, que coloca em causa
(e redeine) as distinções entre o público e o privado, o individual e o coletivo, o
particular e o universal.
Balzac dizia que “o romance é a história privada das nações”, mas o que
acontece na América é demasiado; os termos invertem-se: as biograias familiares
da literatura são as que dão lugar à história nacional. Não há separação entre o nacionalismo épico e a sensibilidade íntima; os romances da época fornecem alegorias nacionais (Fredric Jameson), articulando num nível simbólico comunidades
60 Enquanto, por exemplo, na França, os romances de Balzac expunham as tensões e as brechas da família burguesa, os latino-americanos tentavam reparar essas issuras, com a vontade
de projetar histórias idealizadas que apontavam, ora ao passado (enquanto espaço legitimador),
ora ao futuro (enquanto meta nacional).
61 Cf. Doris Sommer, Ficciones fundacionales, pp. 41-65.
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imaginadas (Benedict Anderson)62. Enquanto na Europa os escritores exploram as
falhas da sociedade burguesa e projetam a fantasia de um novo começo nos mares
do sul, na América os escritores tentam balizar a imaginação desse território em
ebulição à imagem e semelhança dos estados do norte. E, enquanto a literatura
europeia reconhece na crítica a sua autêntica forma de intervenção, a literatura
americana da época parece deinir-se politicamente por uma função substitutiva:
oferece um horizonte de sentido (sobre um território fragmentado), preenche vazios (identitários), cobre distâncias (étnicas, sociais, políticas). Sem nenhum fundamento moral, ilosóico ou religioso, os romances fundacionais são icções que
se fazem passar por verdade, criando um espaço – ilusoriamente estável – para
novas formas de aliança política.
Identiicar-se na leitura com a paixão dos amantes para consumar o seu
desejo, era já assumir um programa político. Por exemplo, o da eliminação das
diferenças sociais, étnicas ou culturais, numa sociedade dada, isto é, o da produção de uma identidade cívica nacional capaz de se impor sobre essas formas
conlituosas de identidade tradicional.63 Evidentemente, estes programas políticos
nem sempre pressupunham a igualdade e, do mesmo modo que os romances, implicavam a subordinação de uma parte à outra – da mulher ao homem, do índio ao
mestiço, do campo à cidade etc.
O certo é que a fundação da América Hispânica é em boa medida um
exercício de fabulação.64 Um singular exercício de fabulação, que tem o homem
americano apenas por sujeito dos enunciados (nos enunciados assistimos, de fato,
62 JAMESON, Frederic. Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism. Social
Text, n. 15, 1986.
63 Não se trata apenas de uma forma arcaica de funcionamento. A literatura, o cinema, a televisão, conheceram sempre e continuam a conhecer um valor substitutivo similar, sempre mais ou
menos polarizado pelas apostas do poder. Também não se trata de um fenómeno meramente local, uma deformação terceiro-mundista da arte (atribuível, por exemplo, ao hipotético populismo latino-americano). Nos Estados Unidos, por exemplo, Robert Burgoyne retoma o tema das
icções dominantes enquanto imagens de consenso social e o seu papel central na construção
de uma identidade nacional por parte do cinema norte-americano do tipo The birth of a nation.
Fabulação nacionalista que opera “de cima” (isto é, propiciada ou dirigida pelos poderes instituídos), e para a qual o cinema clássico teria constituído uma mediação fundamental, criando
uma imagem da sociedade imediatamente acessível a todas as classes.
64 Borges seria um dos primeiros a assinalar a impostura dos mitos da fundação (Fundação
mítica de Buenos Aires), reconhecendo (criticamente) a superioridade da potência política da
poesia sobre o espírito das leis. Cf. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Barcelona: Emecé
Editores, 1989.
Eduardo Pellejero
à sua criação como personagem de uma história sem memória), mas do ponto de
vista do sujeito da enunciação pressupõe o homem europeu (inclusive se cruzou o
Atlântico, se se amancebou, se leva já nas suas veias sangue novo). É neste sentido que temos que entender o problema levantado por Octavio Paz em El laberinto
de la soledad (1950): a América é uma ideia, invenção do espírito europeu, mas
enquanto ser autónomo, a América vê-se confrontada com essa ideia e é capaz de
opor-lhe uma resistência imprevisível.65
A América é uma complexa trama iccional reconjugada pela evolução
da própria literatura americana. O novo mundo não é tão novo assim. Começo
que já é uma repetição, ocupa de fato um espaço duplamente ictício: um fornecido pela tradição europeia e reelaborado pelos escritores americanos, que tentam
reinventar-se a si próprios e à América num movimento sem im.66
Assim, a fundação mítica ou icção originária, que se postulava de forma
dogmática, passa a ser lida com diversos graus de ceticismo. E a literatura, correlativamente, deixa de aspirar à totalização imaginária da realidade para passar a
assinalar as suas brechas, os seus desajustamentos, as suas possibilidades desapercebidas; passa a compreender-se e a expressar-se como divergência fundamental,
como desvio, como dispersão. Assim, em Rayuela (1963), Cortázar escreve: “Se
o volume ou o tom da obra podem levar a crer que o autor tentou uma summa,
apressar-se a assinalar que está ante a tentativa contrária, a de uma subtração”.67
Os grandes romances contemporâneos re-escrevem ou des-escrevem as
icções fundacionais latino-americanas. Opõem formas de desincorporação literária às identiicações imaginárias forjadas durante o século XIX (e não só), isto
é, colocam em causa, segundo um deslocamento estratégico da perspectiva, essa
política iccional que não logrou reconciliar as classes em luta, nem aproximar o
campo à cidade, nem unir os pais europeus com as mães da terra (ou que só logrou
essa reconciliação subordinando, silenciando ou eliminando um dos termos).
Então, como assinala Doris Sommer, os amores fundacionais próprios
dos romances do século XIX revelam a sua intrínseca violência, e as mentiras piedosas aparecem como estratégias para controlar conlitos raciais, regionais e económicos que ameaçavam o desenvolvimento das novas nações (na sua evolução
burguesa e capitalista, claro). Esses romances aparecem como parte do projeto da
65 Cf. MADRID, Lelia. La fundación mitológica de América Latina. Madrid: Espiral Hispano
Americana, 1989, p. 8.
66 Cf. ECHEVERRÍA, Roberto González. Alejo Carpentier: The pilgrim at Home. New York:
Cornell University Press, 1977, p. 28.
67 CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Sudamericana, 1983.
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burguesia para conquistar (para assegurar) a hegemonia desta cultura que se encontrava em estado de formação (uma cultura que, idealmente, seria uma cultura
acolhedora, que ligaria as esferas pública e privada, dando lugar a todos, desde
que todos soubessem qual o seu lugar).
Sommer propõe como exemplo deste último tipo de icções La muerte de
Artemio Cruz (1964), de Carlos Fuentes. Entre batalhas, Artemio e Regina lembram a conversa amorosa do seu primeiro encontro, sentados na praia, contemplando as suas imagens reletidas na água. Uma lembrança dourada para encobrir
a cena original da violação (que foi o que efetivamente tivera lugar). Fuentes
escreve: “essa icção... inventada por ela para que ele se sentisse limpo, inocente,
seguro do seu amor... essa bela mentira... Não era verdade. Ele não entrara na
sua aldeia, como em tantas outras, procurando a primeira mulher que passasse
desprevenida pela rua. Não era verdade que aquela rapariga de 18 anos tinha
sido subida à força num cavalo e violada em silêncio no dormitório comum dos
oiciais, longe do mar.”68
De alguma forma, os escritores, antes alentados a preencher os vazios
de uma história que contribuía para legitimar o nascimento de uma nação e impulsionar essa história no sentido de um futuro ideal, procuram dizer agora o
não dito nas icções fundacionais, tentam reintroduzir a contingência no passado,
destruindo as estruturas imaginárias e materiais sobre as quais assenta o presente,
propiciando a resistência e a abertura de novos espaços de possível.
Exemplo: Em El siglo de las luces69 (1962), de Alejo Carpentier, três
adolescentes – Sofía e Carlos, irmãos, e Esteban, o seu primo – perdem o pai e o
tio, icando sozinhos numa enorme casa da Cuba colonial, até que um dia chega
um estranho visitante – Víctor Hugues, comerciante e partidário dos novos ideais
políticos do século XVIII – que abre a casa ao mundo e à época, implicando-os nos movimentos revolucionários. Mas as ideias de liberdade, fraternidade e
igualdade – e a declaração universal dos direitos do homem, enquanto icção fundacional ou constituinte –, são colocadas em questão numa história difícil para
as personagens, revelando a traição da revolução francesa aos levantamentos dos
negros do Caribe. Sofía, que se apaixona por Víctor e pelas suas ideias (e se entrega a ambos), acaba por se desenganar: Víctor, o mesmo que trouxera à América
o decreto da abolição da escravidão, acaba comprometido num falido intento de
68 FUENTES, Carlos. La muerte de Artemio Cruz. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica,
1967. Cf. SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales, p. 45.
69 CARPENTIER, Alejo. El siglo de las luces. Barcelona: Seix Barral, 1985.
Eduardo Pellejero
genocídio da população negra.70 Ou seja, o romance, longe de fundar alguma coisa, des-funda uma narrativa hegemónica na qual se espera (ainda) que venham a
alinhar-se as nações latino-americanas.71
Exemplo: Em Conversación en La Catedral (1969), de Mario Vargas
Llosa, Santiago e Ambrosio mantêm uma conversa num bar chamado La Catedral, durante a ditadura do general Odría, da qual resulta uma exploração profunda das razões da corrupção e da desídia dos dirigentes, assim como da resignação
e da impotência dos peruanos. Isto é, Vargas Llosa não nos oferece (mais) uma
icção fundacional para o Peru, mas, pelo contrário, aplica-se à destruição (à desconstrução) de um estado de coisas insustentável, que as icções fundacionais
pretendem passar por alto. De fato, o romance de Vargas Llosa começa assim:
“Da porta de La Crónica, Santiago olha para a avenida Tacna, sem amor: carros,
edifícios desiguais e descoloridos, esqueletos de anúncios luminosos na névoa,
o meio-dia cinzento. Em que momento se tinha lixado o Perú?”72. A pergunta
não tem resposta, ou, melhor, não tem apenas uma resposta. Cada resposta (cada
história) levanta novas questões, cada questão dá lugar a novas histórias, e assim.
Não há verdade fundacional, apenas icções que na tentativa de articular o sentido
do presente redeterminam (ou simplesmente apagam) o passado.73
Exemplo: Em Yo, el supremo74 (1974), Augusto Roa Bastos reconstrói,
utilizando indiferenciadamente elementos históricos e ictícios, a biograia política
de José Gaspar Rodríguez de Francia (também conhecido como Doutor Francia,
70 No im, procurando expiar a culpa ou conquistar a redenção, Soia viaja para Madrid, onde
se faz matar (corajosamente, desesperadamente) num levantamento popular contra Napoleão.
71 A proximidade de Carpentier à Revolução Cubana (1959) e a data de publicação de El siglo
de las luces (1962), podem transmitir a ideia de que Carpentier escreve o seu livro na senda da
revolução e que a sua crítica da narrativa da revolução francesa é solidária deste acontecimento,
mas a verdade é que Carpentier declarou ter terminado de escrever o livro em 1958.
72 LLOSA, Mario Vargas. Conversación en La Catedral. Buenos Aires: Sudamericana –
Planeta, 1981.
73 Nesse sentido, Vargas Llosa não se limita conduzir a sua genealogia até o momento da conquista, mas reconhece, nos próprios “povos originários” (concretamente, nos Incas), o mesmo
mecanismo mistiicador de iccionalização total da realidade. (Mario Vargas Llosa, La verdad
de las mentiras, pp. 25-28) Historicamente iel ou não, a proposição de Vargas Llosa é um
principio de interpretação: qualquer icção fundacional é a apropriação violenta de uma icção
anterior, não sendo possível, por um exercício de regressão, dar com nenhuma palavra verdadeira (o mito é um mito, dirá Jean-Luc Nancy); logo, não há comunidade originária, apenas
icções da comunidade.
74 BASTOS, Augusto Roa. Yo, el Supremo. Buenos Aires: Sudamericana, 1985.
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Karaí Guazú, e “el Supremo”), ditador do Paraguai durante 26 anos (1814-1840).
A biograia estrutura-se sob a forma de uma espécie de discurso ditado, estrategicamente pontuado pelos comentários (sediciosos) do seu secretário pessoal, multiplicando as vozes de tal modo que a icção mística sobre a qual se fundava o poder
de Francia aparece atravessada de contradições, de inconsistências e de mentiras.
O ditador dita, mas o secretário adenda, omite, repete, e em geral faz gaguejar o
discurso. O escritor empreende um trabalho de segunda mão, não funda nada, não
pre-escreve nada com a sua escrita, simplesmente re-escreve uma versão anterior.
Sobre a literatura já não repousa nada (não pode), mas no seu movimento desregrado a escrita pode fazer tremer (e em última instância derruir) qualquer construção
(cultural, social ou política) que assente sobre bases iccionais.
Exemplo: Em Respiração Artiicial75 (1980), Ricardo Piglia trama, a partir de fragmentos de cartas, monólogos, diálogos e documentos, um romance que,
contra o monopólio narrativo que tendem a impor as icções estatais, procura restaurar a polifonia de vozes silenciadas pela ditadura. Renzi (um dos protagonistas)
recebe os papéis (até então em posse do seu tio, Marcelo Maggi) de um dos seus
antepassados, Enrique Osório, dando origem à descoberta de uma história não
oicial, de uma história dos derrotados, ou, melhor, de uma memória sem história.
A sua reconstrução tem por resultado uma versão sem pretensões de institucionalização, que nas margens de um país das margens, torna possível (vivível) a desincorporação das personagens (e dos leitores) em relação aos horizontes instituídos
de sentido. Renzi compreende com Tardewski (e nós compreendemos com ele)
que o grande mérito de um escritor não é a fundação do comum, mas a capacidade de ouvir a sua própria época, de ouvir e fazer ouvir o murmúrio silenciado
pela história oicial, de trazer à luz a palavra dos esquecidos, mesmo se se trata
da palavra da derrota, da claudicação ou do desespero. A sociedade é para Piglia
uma trama de relatos, um conjunto de histórias que circulam entre as pessoas,
pelo que traçar o mapa iccional da sociedade constitui a tarefa mais importante
do escritor, remetendo as icções hegemónicas a uma região especíica do plano,
e assinalando os lugares onde algo é dito e não é ouvido, algo é pensado e não é
considerado, algo é feito e não é visto.76
Exemplo: Em Zama (1956) de Antonio Di Benedetto, o romance fundacional é invertido através de uma paródia do romance histórico. A estrutura de
Zama é aparentemente simples: o protagonista narra, na primeira pessoa, 10 anos
75 PIGLIA, Ricardo. Respiración artiicial. Buenos Aires: Sudamericana, 1988.
76 “Que estrutura têm essas forças ictícias?”: talvez este seja o centro da relexão política de
qualquer escritor” (Ricardo Piglia, Crítica y icción, Buenos Aires, Seix Barral, 2000; p. 43)
Eduardo Pellejero
da sua vida; anos cruciais, nos quais o protagonista experimenta os sintomas da
sua decadência física e moral (é, portanto, a história de um perdedor, com o qual
muda já o sujeito da história em relação ao sujeito heróico das icções fundacionais). Por outro lado, Di Benedetto não repete as velhas crónicas familiares do
romance burguês do século XIX, nem divide a realidade em nações, não pretende
ser a summa de nenhuma classe ou território, mas, pelo contrário, multiplica as
histórias, as alegorias e as metáforas, anulando a ilusão biográica e historicista.
Essa fragmentariedade, que contamina o livro, dispõe, aí onde as icções fundacionais pressupunham a identidade, a continuidade e a coerência no desenvolvimento, a heterogeneidade, as diferenças, os acidentes, os acontecimentos mais insigniicantes ou mais refratários ao sentido77. Consideremos a passagem a seguir,
onde esta espécie de contra-história aparece de forma ímpar. Zama está a cruzar
ingloriamente a selva paraguaia quando dá com uma estranha tribo, que caminha
pelas veredas abertas no mato, guiada por crianças que levam os adultos pela mão.
Zama diz:
“Cegos. Todos os adultos eram cegos. As crianças não. (...) Eram vítimas da
ferocidade de uma tribo mataguaya. Tinham-nos cegado com facas ao rubro.
(...) Não viam e tinham eliminado deles o olhar dos outros. (...) Quando a tribo
se habituou a viver sem olhos foi mais feliz. Cada um podia estar só consigo
próprio. Não existiam a vergonha, a censura, a culpa; não eram necessários os
castigos. Acudiam uns aos outros para atos de necessidade coletiva, de interesse
comum: caçar um animal, reparar o telhado duma cabana. O homem procurava
a mulher e a mulher procurava o homem para o amor. Para se isolarem mais,
alguns batiam nos ouvidos até partir os ossos. Mas quando os ilhos alcançaram
certa idade, os cegos compreenderam que os ilhos podiam ver. Então foram penetrados pelo desassossego. Não conseguiam estar em si mesmo. Abandonaram
as cabanas e internaram-se nos bosques, nas pradarias, nas montanhas... Algo
os perseguia. Era o olhar das crianças, que ia com eles, e por isso não conseguiam deter-se em parte nenhuma”78.
Na sua austeridade e o seu laconismo, Zama não representa a condição
profunda da América, não é mais uma imagem da nossa fragilidade e da nossa
contingência (mesmo que isso possa ser reconfortante). Se o romance de Di Benedetto evita qualquer exaltação patriótica, se recusa qualquer tentação de historicismo ou de cor local, não o faz em nome de nenhuma nova identiicação. A
77 Cf. SAER, Juan José. Prólogo. In: DI BENEDETTO, Antonio. Zama. Buenos Aires:
Adriana Hidalgo, 2000.
78 DI BENEDETTO, Antonio. Zama. p. 171-172.
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agonia do seu protagonista, o seu inevitável declínio, é apenas metonímia da desorientação e da falta de sentido (histórico) do tempo no qual Di Benedetto escreve
a sua história. E nesse sentido Saer tem razão: Zama propõe-nos, não uma evasão
do presente, mas um trabalho (necessariamente paciente) sobre a sua irresolução
e a sua problematicidade, sendo o afastamento metafórico em direção ao passado
apenas um mecanismo para a sua irrealização. Na sua leitura desconhecemo-nos
enquanto sujeitos de uma história que acreditávamos ser nossa, estranhamo-nos
de nós próprios, isto é, colocamos em causa os fundamentos da nossa identidade
e os alicerces das construções imaginárias às quais a nossa identidade se encontra
associada (simplesmente, já não nos sentimos parte).
Poderíamos multiplicar os exemplos indeinidamente. As obras de Felisberto Hernández, Haroldo Conti, José Donoso, Alfredo Bryce Echenique, Manuel
Puig, José Revueltas, Ernesto Sabato, Osvaldo Soriano, Juan José Saer, Roberto
Bolaño, e boa parte da literatura da americana hispânica permitem uma leitura
deste tipo, e compreendem uma relação problemática, difícil, irresoluta, com as
fábulas fundacionais que demarcam o território iccional no qual se movem.
Durante séculos, o norte impôs ao sul a sua espada e a sua pena. Cavou,
no vazio da sua própria dispersão, um lugar iccional a partir do qual pretendia
airmar-se apesar de todas as suas diferenças, das suas falhas e contradições. O
sul era uma miragem: a ilusão mínima necessária para manter as coisas a funcioanr (outro mundo é possível, mas do outro lado do mundo, elusivo, inatingível,
proibido).
Os poetas, os loucos e os desesperados procuraram-no de diversas formas, e de diversas formas o encontraram, mas não como paraíso perdido nem
como território virgem (nem, certamente, como terra da liberdade).
“Com a sua fome disponível (...) e a sua esperança dura”79, o sul insinua-se nas margens das línguas e do imaginário que chegaram do norte, mas não
existe, pelo menos não como lugar de identiicação.
Se o sul é alguma coisa, é uma diferença, ou, melhor, a promessa (sempre
diferida) de uma diferença. A diferença, sempre conlituosa, entre a representação
que a Europa fazia de nós, a representação que os fundadores das nações americanas faziam de nós, e as representações que nós próprios fazemos de nós. Uma
diferença que a literatura frequenta de forma clandestina. Uma diferença na qual
não se joga destino nenhum, mas em virtude da qual resiste aquilo que mantém
79 BENEDETTI, Mario. El sur también existe. In: Preguntas al azar. Buenos Aires:
Sudamericana, 2000.
Eduardo Pellejero
viva a imaginação daquilo que ainda não somos, daquilo que ainda não dissemos
nem sonhámos, daquilo que apenas nos atrevemos a pensar.
Entre as fábulas da sua origem e uma origem sempre por fabular80, entre
as identiicações imaginárias que dão forma ao horizonte da sua história e as desincorporações estéticas que relançam continuamente o devir da sua consciência,
o sul debate-se por esta diferença sem modelo, isto é, pela utopia desrazoável de
uma liberdade sem determinação.
É, claro, um sonho de loucos, de desesperados e de poetas. Que outra
coisa podem ser os mares do sul? Que mais?
Crédito da imagem: “Alejandro Thornton, America, 2010.
Post-scriptum sobre as condições de possibilidade de uma política da
literatura
Se falamos da inscrição da literatura nos corpos individuais, ou se assinalamos a possibilidade de uma desincorporação a respeito dos corpos coletivos
80 Os produtos da icção são particulares e arbitrários, mas a faculdade de produzir icções é
universal e necessária.
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OSULTAMBéM(NãO)EXISTE
através da escrita; se constatamos, de forma geral, um devir-menor das poéticas
latino-americanas de cujos efeitos políticos ainda não tirámos todas as consequências, devemos pressupor que a icção e a realidade se tocam em algum lugar,
sobrepõem-se ou, melhor, entram numa zona de indiscernibilidade.
Mais geralmente, a possibilidade de uma relação efetiva entre estética e
política remete a um plano comum, a uma ordem imanente cuja lógica tem sido
diversamente abordada pelo pensamento contemporâneo, nomeadamente na tentativa de pensar as formas de intervenção da criação artística. Remeter a questão
a uma estética primeira (Rancière) ou a um plano de imanência (Deleuze) são algumas das formas contemporâneas de dar conta dessa condição de possibilidade,
cuja determinação é uma exigência para qualquer ilosoia que pretenda inscrever
a arte no contexto de uma pragmática alargada.
Tomemos o caso de Gilles Deleuze. Na ideia de que a literatura é ou pode
chegar a ser algo mais que uma sublimação dos nossos desejos falidos, na ideia de
que a literatura é um objeto entre outros objetos, máquina entre máquinas, e que o
escritor “emite corpos reais”81, Deleuze desenvolve uma ontologia da expressão.
Esta ontologia conhece diferentes formas na sua obra, mas ganha uma consistência ímpar através do conceito de agenciamento de desejo, enquanto unidade
de análise que articula estrategicamente uma série de elementos heterogéneos
(discursos, instituições, arquiteturas, regulamentos, leis, medidas administrativas,
enunciados cientíicos, proposições ilosóicas etc.). Alternativa conceptual ao
sujeito e à estrutura, o agenciamento de desejo permite a Deleuze refundar uma
teoria da expressão eliminando qualquer traço representativo. Relacionando os
luxos semióticos com os luxos extra-semióticos e as práticas extra-discursivas,
para além das relações de signiicante a signiicado, de representante a representado, o agenciamento é uma relação de implicação recíproca entre a forma do conteúdo (regime de corpos ou maquínico) e a forma da expressão (regime de signos
ou de enunciação). Neste sentido, assinala Deleuze, qualquer agenciamento tem
duas caras:
“Não há agenciamento maquínico que não seja agenciamento social de desejo,
não há agenciamento social de desejo que não seja agenciamento coletivo de
enunciação (...) E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado como
o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação num processo
que não permite que nenhum sujeito seja atribuído, mas que permite por isso
mesmo marcar com maior ênfase a natureza e a função dos enunciados, uma vez
que estes não existem senão como engrenagens de um agenciamento semelhante
81 Deleuze. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 183.
Eduardo Pellejero
(não como efeitos, nem como produtos). (...) A enunciação precede o enunciado,
não em função de um sujeito que o produziria, mas em função de um agenciamento que converte a enunciação na sua primeira engrenagem, junto com as
outras engrenagens que vão tomando o seu lugar paralelamente”82.
Noutras palavras, os corpos e os enunciados, as palavras e as coisas, são
parte de um mesmo regime de expressão, de uma mesma coniguração do desejo
(sempre aberta, por outra parte, a novas conigurações, na medida em que qualquer agenciamento compreende pontas de desterritorialização, linhas de fuga por
onde se desarticula e se metamorfoseia). É a partir dessa ontologia que, retomando a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político, Deleuze
restitui toda a sua potência à literatura. A máquina de projetar da escrita não é separável do movimento da política: subjetiva, a escrita remete à subjetividade dos
grupos onde começa a fazer sentido como expressão, onde deixa de ser um mero
devaneio da imaginação para passar a formar parte de um agenciamento coletivo
de enunciação (“a força de projeção de imagens é inseparavelmente política, erótica e artística”83). A literatura é uma engrenagem (a) mais, uma formação suplementar, lado a lado com os equipamentos do saber e do poder, as conigurações da
subjetividade e as canalizações do desejo que dão consistência a uma sociedade;
e, nessa mesma medida, concorre na articulação (sempre inconclusa) do comum.
Mais perto de nós, Jacques Rancière propõe que arte e política não são
duas realidades separadas cuja relação estaria em causa, mas duas formas de partilha do sensível dependentes de uma estética primeira: espécie de a priori histórico que determina regimes especíicos de identiicação (do público e do privado,
do individual e do coletivo, da arte e do trabalho etc.)84. Deste ponto de vista, a
política compreende uma estética, na medida em que estabelece montagens de
espaços, sequências de tempo, formas de visibilidade, modos de enunciação que
constituem o real da comunidade política. Ao mesmo tempo, a arte compreende
uma política pela distância que guarda a respeito dessas funções, pelo tipo de tempo e de espaço que estabelece, pela forma em que divide esse tempo e povoa esse
espaço. O que liga a prática da arte à questão do comum, o laço entre estética e
política, é a constituição, ao mesmo tempo material e simbólica, de um determinado espaço-tempo (no qual se redistribuem as relações entre os corpos, as imagens,
82 GUATTARI, Deleuze. Kafka: Pour une litterature mineur. Paris: Minuit, 1975, p. 147-152.
83 GUATTARI, Deleuze. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993, p. 148.
84 Cf. RANCIÈRE. A partilha do sensível: estética e política. Tradução portuguesa de Mônica
Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 15-26.
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OSULTAMBéM(NãO)EXISTE
as funções etc.), produzindo certa ambiguidade em relação às formas ordinárias
da experiência sensível (o próprio da arte, segundo Rancière, consiste em praticar
novas formas de articulação dessa experiência).
“A relação entre estética e política é a relação entre a estética da política e a
política da estética, isto é, a forma em que as práticas e as formas de visibilidade
da arte intervêm na partilha do sensível e na sua reconiguração, no qual recortam espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o particular. A estética tem a
sua política própria que não coincide com a estética da política senão na forma
do compromisso precário. Não há arte sem uma determinada partilha do sensível que a liga a uma determinada forma de política (a estética é essa partilha).
A tensão das duas políticas ameaça o regime estético da arte, mas é ao mesmo
tempo aquilo que o faz funcionar.”85
A literatura pode momentaneamente colaborar na conformação política
de um corpo social, mas a escrita – no seu regime estético, isto é, tal como a praticamos, a lemos e a pensamos hoje – tende a produzir uma desincorporação em
relação às identiicações imaginárias disponíveis, tende a interromper as coordenadas normais da experiência sensorial e, a partir desta, a percepção ordinária da
partilha do sensível (e as suas coordenadas políticas). Qualquer política da poética
contemporânea não pode ser para Rancière senão uma política do dissenso (com
o risco de anular-se como poética), e não pelas intenções que projetamos sobre a
literatura, mas pela forma na qual – nos nossos dias – vemos, fazemos e pensamos
a arte.
As tentativas de pensar as relações entre estética e política não se limitam aos dois casos que mencionámos (nem esses casos desconhecem problemas
de ordem teórica e prática). Como dizia Blanchot, a resposta autêntica é sempre
a vida da pergunta, e esta é uma pergunta que nos inquieta e nos inquietará quiçá
por muito tempo. Nem toda a obra redeine a arte, da mesma forma que nem todo
o nascimento recria o mundo, mas late nestes dois acontecimentos seminais a
esperança de um outro mundo possível, de um outro homem, do devir (menor) da
consciência.
85 RANCIÈRE. Sobre políticas estéticas. Tradução espanhola de Manuel Arranz. Barcelona:
Servei de Publicacions de la Universitat Autónoma de Barcelona, 2005, p. 33; cf. p. 51: “O
regime estético da arte implica uma determinada política, uma determinada reconiguração da
partilha do sensível. Essa política divide-se originalmente ela própria, como tentei mostrar, nas
políticas alternativas do devir-mundo da arte e da reserva da forma artística rebelde, deixando
em aberto que os opostos possam recompor-se de diversos modos para constituir as formas e as
metamorfoses da arte crítica”.
Eduardo Pellejero
Referências
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SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales. Las novelas nacionales de América Latina. Bogotá: Fondo de Cultura Econômica, 2004.
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OSULTAMBéM(NãO)EXISTE
Textos de revistas e periódicos
L’Homme, Paris, 1989, v. 29, n. 111, p. 7-33; cf. PAZ, Octavio Paz. El laberinto de la
soledad. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1998.
JAMESON, Frederic. Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.
Social Text, n. 15, 1986.
Eduardo Pellejero é argentino de nascimento, português por adopção, residente no
Brasil, apátrida por convicção. Actualmente é professor de Estética Filosóica na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, onde desenvolve uma investigação no domínio da Filosoia
(política) da Arte. Publicou Deleuze y la redeinición de la ilosofía (México: Jitanjáfora, 2006)
e A postulação da realidade (Lisboa: Vendaval, 2009).
Tradutora
Susana Guerra é graduada em História pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa-Portugal, 2004), mestre em Estudos Asiáticos pela Faculdade de
Letras da Universidade do Porto (Porto-Portugal, 2007), doutora em História pela Faculdade de
Letras da Universidade do Porto (2012). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
LUGARCOMUMNº41,pp.121- 131
ODevir-MundodasPráticasMenores
Anne Querrien
São numerosos os jovens arquitectos que se põem hoje a questão de inventar novas práticas que os levem a contornar uma encomenda que se tornou
hipotética, através da valorização de uma procura latente, ligada às necessidades
das populações. As encomendas de arquitectura por parte das construtoras imobiliárias ou das instituições públicas, a pretexto de dar resposta às necessidades de
alojamento, traduziu-se em programas de especulação inanceira, que estão em
parte na origem da crise actual. Construir ou projectar nestas condições torna-se
insustentável, no sentido de não ecologicamente duradouro. Os arquitectos vêem-se cada vez mais rapidamente confrontados com a necessidade de inlectirem as
suas práticas. A arquitectura participativa dos anos do passado, que se contentava
com fazer modiicar na margem os programas estabelecidos pelas autoridades,
não conduz a novos programas; limita-se ao comentário das instituições dominantes, baseia-se nos seus programas para se desenvolver, não abre novos campos
de práticas.
Até mesmo quando se trata de alojar a população, esses programas
são os de uma casta que associa “grandes arquitectos” e altos funcionários na
repetição das mesmas atitudes paternalistas em resposta aos problemas sociais.
O desenvolvimento industrial permitiu na Europa o desenvolvimento de centros de cidade, destinados ao comércio e à cultura, testemunhos de uma certa
qualidade arquitectural. Na América Latina, as periferias abandonadas por esta
forma de organização são ainda mais vastas. De um lado e de outro do Atlântico, o saber arquitectural, formado nas escolas e nas agências de arquitectura,
distribui o espaço da vida quotidiana ou torna-se uma referência para as pequenas empresas e a autoconstrução. Os “grandes arquitectos” deinem os espaços
monumentais destinados às práticas do poder, quer se trate de os valorizar em
termos espectaculares ou de os associar às necessidades fundamentais de educação e de saúde.
A juventude da democracia nos países ibero-americanos conduziu a práticas menos hierárquicas. Foi assim que, em Barcelona, a escola de arquitectura
pôde propor por altura da preparação dos Jogos Olímpicos que se aproveitasse
a acumulação de desenhos de praças públicas e de fantasias utópicas, realizados
nos anos anteriores a partir do projecto de embelezar a cidade e de a tornar aces-
122
ODEVIR-MUNDODASPRáTICASMENORES
sível a todos os cidadãos. Do mesmo modo, no Brasil o programa de urbanização
das favelas rompeu provisoriamente com as formas habituais de expropriação, e
comprometeu-se com um trabalho colectivo do espaço que permitia restituí-lo à
população, ainda que a propriedade efectiva continuasse a ser posta em causa86.
Mas, nos dois casos, a boa vontade não resistiu perante a avidez consentida pela
organização de eventos internacionais, como as conferências do Fórum em Barcelona ou a organização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A arquitectura é de
novo subordinada à realização de projectos espectaculares efémeros. Os jogos das
crianças ou os itinerários quotidianos são ignorados em beneicio da circulação
dos turistas.
E, entretanto, independentemente do brio com que o arquitecto participe
na governação urbana, o luxo crescente dos estudantes de arquitectura diicilmente encontra lugar nos quadros canónicos da proissão. Dirão alguns que isso
se deve ao facto de serem demasiado numerosos. Mas a experiência mostra que se
tratou antes de não terem sabido redeinir o seu espaço, potencialmente alargado
pelo seu número. Nem toda a gente pode vir a ser o “grande arquitecto” em direcção ao qual a encomenda pública lui abundantemente para melhor se repetir.
É necessário inventar outras práticas, encontrar outros comanditários, instaurar
outras ligações com os utilizadores inais que são os moradores e os visitantes.
Com o devir-menor da arquitectura aparece o carácter plural daqueles a quem ela
se destina, carácter plural no tempo da frequentação, nos desempenhos esperados
das construções. Este devir-menor pode tomar forma de múltiplas maneiras. Aqui
abordarei o caso do Atelier d’architecture autogerée87, e a sua experiências de
organização da transição ecológica em bairros pobres e periféricos de Paris. Poderá esta prática situada intervir como referência num contexto ibero-americano,
transatlântico e do Sul?
Construir o programa
Foi no início da década de 1970 que se descobriu em França que, à força
de se disporem a obedecer à encomenda a im de poderem construir e ganhar
mais88, os arquitectos podiam tornar-se cúmplices de operações absurdas, quando não nocivas. Foi assim que se viram obrigados pelo Ministério da Educação
86 Cf. BERENSTEIN-JACQUES, Paola. Les favelas de Rio. Un enjeu culturel. Paris:
L’Harmattan, 2011.
87 http://www.urban-tactics.org
88 Revista Recherches, Architecture, programmation et psychiatrie, 1967.
Anne Querrien
Nacional [francês] a fabricar estabelecimentos de ensino secundário industrializados, que não tinham a possibilidade de beneiciar de centros de documentação
ou outros equipamentos adjacentes. Do mesmo modo, alguns deles julgaram-se
obrigados a fabricar hospitais psiquiátricos que se tornaram inúteis depois da rápida difusão dos medicamentos psicotrópicos e da emergência da hospitalização
domiciliária. As concepções administrativas pareciam em atraso sobre o peril
proissional das práticas, ao mesmo tempo que as reivindicações sindicais das
proissões se exprimiam em termos de necessidades tradicionais. Era, portanto,
necessário intervir sobre o dispositivo da enunciação das necessidades, incluindo
no colectivo membros do conjunto dos pessoais implicados e representantes dos
utilizadores. O arquitecto já não era o decorador encarregado do “embrulho” de
um programa deinido e calibrado quantitativamente para o adaptar a um certo
lugar. Tornava-se o agente gráico e escritural, ao mesmo tempo que o animador
de um colectivo, chamado a deinir o projecto com ele: sem dúvida, num processo
que tal, o arquitecto não ocupa uma posição igual à dos outros actores, porque
possui um saber gráico que permite representar o espaço, oferecer ao grupo um
espelho do seu pensamento, e desempenha assim um papel maiêutico essencial.
Mas está, também ele, numa situação de aprendizagem, de descoberta das necessidades do grupo e do local preciso que o ocupa. Deixa de poder dispor de
respostas antecipadas para tudo89.
A escola primária e o estabelecimento de ensino secundário são programas arquitecturais comuns à França e ao mundo ibero-americano. Inácio de
Loyola foi o primeiro a imaginar que, graças a dispositivos espaciais concretos,
Deus poderia dirigir-se em particular a cada ser humano. As igrejas da Idade Média dirigiam-se a grupos sociais hierarquizados, que retransmitiam, cada um à
sua maneira, a palavra divina90. Os Exercícios Espirituais propõem ao homem
de espírito cultivado a forma mais desterritorializada desse dispositivo espacial:
o crente, imaginando intensamente as cenas da vida de Cristo, escolhendo cuidadosamente todos os detalhes, poderá chegar a desterritorializar-se o bastante para
se tornar lugar da eleição de Deus, entrar num diálogo directo consigo mesmo na
presença do Senhor, e descobrir a solução dos problemas éticos ou práticos que
o apoquentam. A prática mostrou que nem sequer os mais próximos de Loyola
conseguiam pensar em Cristo com a intensidade e a liberdade suicientes para
89 GUATTARI, Félix. Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles. Éditions de l’Aube,
La Tour d’Aygues, 2011.
90 PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris: Editions de Minuit,
1967.
123
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ODEVIR-MUNDODASPRáTICASMENORES
acederem a um tal grau de desterritorialização. Os companheiros de Inácio viram-se por isso reduzidos a mandar fabricar livros que transformassem em quadros as
cenas da vida de Cristo e a organizar um ensino moral a seu propósito. Enquanto,
até então, só a leitura e o canto eram ensinados na igreja, a escrita passou a ser doravante o utensílio privilegiado das escolas cristãs. A escrita que dá conta do que
se observou, do que se aprendeu, mas que eventualmente abre também à prática
da liberdade. Os jesuítas enviados em missão para todos os continentes recentemente descobertos têm de enviar todos os meses uma carta a Inácio, dando-lhe
conta do que descobriram e dos problemas que são levados a pôr-se. Encorajados
assim à curiosidade perante novas civilizações do mundo, estabelecem-se nelas e
tornam-se seus dignitários. A escola de bairro ou de aldeia é a pedra sobre a qual
se constrói o novo edifício espiritual. Difunde-se nas terras recentemente conquistadas tão rapidamente como nos campos da Europa, e enfrenta nelas resistências iguais ou superiores. A igreja barroca e o colégio dos jesuítas são programas
arquitecturais omnipresentes na América Latina.
Em França, a Revolução, trazendo consigo uma constituição escrita e a
soberania popular, conferiu à escola um novo papel: forjar o povo que ainda ausente, fundir num mesmo conjunto o centro e as periferias. A escola torna-se um
lugar central de cada comuna, uma marca explicitamente assinalada, deixando de
se albergar em edifícios arrendados, ou recuperados, inadequados à sua função
de representação da República e de formação de cada um dos seus membros. E
contudo, a escola republicana instala-se nos dispositivos espaciais e pedagógicos
concebidos pela escola cristã. Na sala de aula, as carteiras dos alunos são colocadas diante do mestre que se instala no plano superior do estrado, com um cruciixo
ou o busto da República atrás dele – ou atrás dela, quando a escolarização passa a
abranger igualmente as raparigas, cerca de um século mais tarde, na generalidade
dos casos. Mas a reunião de um grupo de crianças dá lugar a numerosas outras
relações, geralmente ignoradas pelo olhar do mestre, ou percepcionadas como
diiculdades. Ora, é ao longo destes vectores horizontais, destes agrupamentos
parciais, que vai organizar-se a aprendizagem através dos ricochetes do discurso
do mestre, da formação mútua ou do treino nos expedientes improvisados. As
crianças aplicam-se de modo a fazerem com que as mensagens passem ou a detê-las; a sua presença activa é precisamente a condição de uma pedagogia eicaz.
Certas pedagogias diferentes aperceberam-se de que assim era e esforçaram-se
por desenvolver cenários alternativos, muitas vezes baseados no funcionamento
do grupo da turma em entidades mais pequenas. A sala de aula torna-se facilmente
um espaço cheio de entraves e de ruído. Tal é a origem do sonho de instalações
Anne Querrien
mais amplas e mais diversiicadas. Ao que se opõem as condições do inanciamento, uma vez que as programações centrais só podem sobreviver da reprodução
das mesmas células de base. O olhar lateral dos alunos entre eles e em direcção ao
mundo prolonga-se então voltando-se para os seus pais, ou para o meio no qual
se enraíza a escola. Ao ligar-se ao seu meio, a escola descobre a possibilidade
de novas contribuições, de novos intercâmbios. É a própria escola que acaba por
se ver assim revisitada. Deixa de ser o lugar onde as crianças são postas de lado
enquanto os pais trabalham, mas torna-se um lugar de aprendizagem para todos,
um núcleo de formação para a aldeia e para o bairro. Entretanto, o seu invólucro
arquitectural evolui, alarga-se, passa a ter aberturas que deixam passar a luz e o
olhar, desenvolve-se a comunicação entre o interior e o exterior, e o programa
transforma-se à imagem de um centro de desenvolvimento comunitário local91.
Daqui resulta uma imposição maior e homogénea: a escola torna-se um
lugar de articulação e de prolongamento dos elementos heterogéneos presentes
no território, na aldeia ou no bairro: um lugar de cruzamento e de expressão da
multiplicidade dos devires-menores com que pode deparar. É articulando-se com
estes devires-menores, com as práticas singulares das crianças ou dos adultos
presentes no meio circundante que a escola poderá transformar o seu contexto em
meio educativo.
A arquitectura escolar pode assumir então diversas conigurações, função das trajectórias que vêm atravessá-la. A escola deixa de corresponder a um
modelo que se aplicaria não importa onde para obter resultados mais rápidos e
menos caros. O seu programa é produzido localmente, utilizando todas as contribuições de séculos de experiência escolar, mas afastando-se dessa tradição a im
de permitir aos devires-menores que nele se cruzam não sendo capturados pela
hierarquia que até hoje os conduziu à exclusão. Nesta situação, os arquitectos são
responsáveis pela cartograia dos desejos e pelo fornecimento à comunidade das
informações indispensáveis à possibilidade de escolher.
91 Anne Querrien, L’école mutuelle, une pédagogie trop eficace?, Les empêcheurs de penser
en rond, Paris, 2004; Julien Pallota, L´école mutuelle, au-delà de Foucault, Bibliothèque de
philosophie sociale et politique, Paris, 2012.
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ODEVIR-MUNDODASPRáTICASMENORES
Crédito da imagem: “Le 56 rue Saint Blaise, un salon de jardin près d’un grand ensemble
© AAA (www.urban-tactics.org).
A construção ecológica de lugares urbanos
São raras as operações arquitecturais académicas que partem de uma
imersão na quotidianidade para a construção de uma proposta pública e comum a
um conjunto de moradores. A crítica arquitectural corresponde na maior parte dos
casos a projectos de renovação: estes são, depois, apreciados pelos moradores em
função das mudanças a que os submetem, e, de um modo geral, recusados. Numa
cidade em vias de desenvolvimento, o valor monetário dos bens destruídos não
pode ser suiciente para reaver o valor de uso equivalente – para já não falarmos
das relações desfeitas pela mudança de local. Os promotores públicos e privados
apoiam-se no fraco número dos participantes para passarem por cima destes aspectos. Asseguram-se da desmoralização dos moradores.
Para evitar esta espiral depressiva no quartier La Chapelle prometido
a uma renovação completa, os fundadores do Atelier d’architecture autogerée,
Constantin Petcou e Doina Petrescu, imaginaram a ideia de desenvolver num terreno vago, que a SNCF92 deixara desocupado, uma investigação-acção sobre a ini-
92 Ou Société nationale des chemins de fer – companhia nacional dos caminhos de ferro
franceses (N.d.T.).
Anne Querrien
ciação dos moradores na ecologia e no desenvolvimento durável93. Criou-se, entre
paletes de transporte de mercadorias, um grande jardim hors-sol (“fora do solo”) a
ser partilhado em comum; crianças e adultos tinham a possibilidade de plantar ali
o que quisessem, aprendendo a respeitar-se uns aos outros. O desenho do jardim,
as suas regras de funcionamento, a animação quotidiana, que seria rapidamente
continuada por moradoras e moradores, conseguiram construir um corpo comum.
Projecções de ilmes, oicinas de bricolage, apresentações de trabalhos de artistas
de toda a Europa partilhando a mesma problemática, permitiram soldar uma comunidade multicultural, empenhada no trabalho de construção comum através do
desenho generoso dos espaços. Quando a renovação começou, foi possível negociar uma continuação do jardim partilhado pelos moradores com a municipalidade
de Paris. A acção fez com que emergissem no bairro alguns líderes, sobretudo
mulheres, e uma preocupação com os jardins que a municipalidade retomou por
sua conta no programa da renovação.
A acção foi de tal modo exemplar que Paris-Habitat, a principal organização de alojamento social da Ville de Paris, propôs ao Atelier de Arquitectura
Autogerida fazer cultivar por meio da sua metodologia uma faixa de terreno árido
entre dois prédios, precisamente diante do maior complexo de habitação social de
Paris, a ser objecto de renovação próxima. A terra pedregosa do número 56 da rue
Saint Blaise encontrou-se em breve coberta de plantações, ao mesmo tempo que
se desenvolveram diversas actividades colectivas para os moradores do bairro. Ao
contrário das intervenções artísticas que tinham tentado pontualmente despertar
a consciência cívica dos moradores, “o 56” transformou-se numa instalação duradoura, num pequeno espaço de demonstração das técnicas ecológicas em Paris:
fossas secas, painéis solares, utilização das águas da chuva. Uma instalação fora
do solo (hors-sol) pode funcionar de maneira autónoma sem ligação às grandes
redes: prova da possibilidade de numerosas outras instalações posteriores. Em termos muito concretos, os princípios de base da ecologia são instaurados numa instalação aberta: um “salão de verdura” num bairro popular. Com efeito, “o 56” não
é simplesmente uma montra técnica da ecologia urbana: é um local de debates,
sob o nome de Laboratório de Urbanismo Participativo (Laboratoire d’urbanisme
participatif) que relecte em termos abertos e públicos sobre as experiências de
construção ecológica ou de Land Art na Europa. Também aí a gestão do local é
progressivamente coniada a uma associação de moradores-jardineiros, principal93 Multitudes, n. 20, Constantin Petcou e Doina Petrescu, Au rez de chaussé de la ville,
Amsterdam, Paris, 2005, e idem, n. 31, DP e CP (orgs.), Une micropolitique de la ville: l’agir
urbain, Amsterdam, Paris, Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 2007.
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mente jardineiras, que se encarrega da animação do terreno enquanto os arquitectos se retiram parcialmente para desenvolverem o seu projecto noutros espaços94.
Alguns representantes eleitos de Colombes, uma cidade da periferia noroeste de Paris, foram convidados a visitar o 56 por um morador-jardineiro. Convenceram o maire da comuna a retomar o projecto de uma formação dos moradores em conversão ecológica no quadro de um projecto intitulado R-Urban95. Três
domínios de trabalho começam a ser explorados nos terrenos deixados por cultivar: agricultura urbana com os moradores das habitações sociais vizinhas; uma
galeria de fabrico, exposição e venda de objectos produzidos a partir de materiais
reciclados; um habitat cooperativo autogerido. Há também aqui um processo associativo de produção de ideias a partir dos moradores, confrontados com animadores de investigações nestes domínios, chegados de todas as partes do mundo.
Colombes torna-se o núcleo de uma exploração de referências e de práticas que
garantem um futuro apesar da crise. Na arquitectura passam a participar a agricultura, a economia, a sociologia, a escultura, a land art, num novo processo de
fabricação do quotidiano.
Um diálogo a abrir com o Sul
A arquitectura autogerida é solicitada a integrar-se no modelo dominante
como um seu enésimo caso, através de numerosas formas de reconhecimento internacional, prémios, artigos pedidos… Mas a força de ruptura de uma proposta
semelhante, hoje coninada a espaços dedicados à economia social e solidária, é
ampliada e reencaminhada pelo projecto artístico e político de Doina Petrescu e
Constantin Petcou, visando criticar no plano dos actos tanto o capitalismo como o
“socialismo real” que ambos viveram durante a sua juventude na Roménia. Trata-se, para começar, de abrir espaços de liberdade, de criar um comum vivo, antes
de dar resposta aos novos imperativos da arquitectura ecológica. Em França, este
projecto é um projecto singular – apesar de fazer escola, no sentido em que numerosos estagiários chegam para participar nele, e, sobretudo, apesar de, quando
os terrenos envolvidos logram alargar-se, não estarmos ainda perante uma prática
colectiva que transborde os quadros sucessivos que o viram nascer.
O interesse por esta experiência vem actualmente sobretudo do Norte,
de investigadores e artistas que tentam também uma crítica através da land art
ou da instalação de dispositivos ecológicos. Estas conexões são facilitadas pe94 http://www.urbantactics.org/projectsf/passage%2056/passage56html.html
95 http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rurban.html
Anne Querrien
los inanciamentos europeus96, enquanto as cooperações com o Sul são apoiadas
sobretudo quando envolvem instituições já muito reconhecidas. Esta cooperação
europeia acarreta uma funcionalização da proposta, permitida também pelo carácter relativamente homogéneo da população a que se dirige: as classes médias
pobres das periferias urbanas, que descobrem assim novos meios para a sua busca
de responsabilidade social.
O dinamismo das regiões do Sul é sustentado, em contrapartida, pela
mestiçagem ds populações, a fusão das vagas sucessivas de imigrantes (colonizadores portugueses e espanhóis, escravos negros, operários agrícolas e trabalhadores fabris europeus, judeus fugindo ao anti-semitismo, árabes fugindo ao
islamismo, e outros grupos). Fazendo do lugar alternativo (l’ailleurs) marcado
pela presença índia, ainda que fortemente exterminada, o crisol dos seus novos
sonhos, os povos da América Latina lançaram os alicerces de novas construções
culturais97. Como pode fazer arquitectura esta civilização em fuga e, depois, em
reconstrução? Fez já a uma música que desenvolve as suas linhas de fuga, dos
ritmos africanos às elaborações contemporâneas, passando pelas melodias espanholas98. Entre as igrejas barrocas, o modernismo arquitectural e a loresta, que
será possível tecer? O espaço das favelas é, no essencial, um espaço de habitat,
privado; mas, nesse espaço, a rua é muito frequentada e muitas vezes ocupada; a
decoração apodera-se dos muros, multiplicam-se as iniciativas teatrais. Precisa-se
um renascimento, que os poderes municipais se apressam, de resto, a enquadrar
em renovações urbanas que, há 20 anos, seriam inconcebíveis, como aconteceu
no caso de Medellin99.
As culturas do Sul alimentam uma relação com o outro a que os escritores e artistas brasileiros, na esteira de Oswald de Andrade, chamaram antropófaga,
consistindo em se apropriar do que o outro tem de melhor, em assimilá-lo a im
de se transformarem. Acolher a arquitectura europeia tal como esta é deixa de ser
recomendável nesta nova produção. E para tanto é já necessário escapar aos programas monumentais e aos modelos. Trata-se de desenvolver no espaço público
pequenas intervenções no limite da arte contemporânea, da performance e da arquitectura, de fabricar uma arquitectura da rua, que se desenvolva nos interstícios
da cidade, e que não se autorize senão da sua própria iniciativa – uma arquitectura
96 Rhyzom, Cultural Practices Within and Across, AAA, Paris, 2010.
97 Multitudes, n. 35, Amérique Latine, Amsterdam, Paris, 2009.
98 Michel Plisson, Le tango, du noir au blanc, Actes Sud, Aix en Provence, 2004.
99 http://www.pavillon-arsenal.com/expositions/thema_modele.php?id_exposition=243
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ODEVIR-MUNDODASPRáTICASMENORES
que poderíamos dizer autogerida, mais centrada na ecologia e na formação dos
habitantes.
Enquanto o Sul ofereceu durante muito tempo a imagem do sofrimento
humano, pontuada por alguns focos de resistência que a atenuavam, a sua potência recente em termos de desenvolvimento económico revela nele uma diversidade ininita e a capacidade de estabelecer o diálogo entre os saberes, de deslocar
as linhas. A este apelo as experiências do Norte respondem por meio da crítica da
pretensão das disciplinas à hegemonia e a profusão das experimentações. Mas a
proliferação é impedida pelas vontades de controle e pelas crispações repetitivas
que persistem. A convergência das emergências100 prepara-se lentamente, numa
dispersão completa das suas manifestações. Assistimos a uma nova crioulização
do mundo, a uma hibridação, que reemerge a partir do Sul e prepara o advento do
mundo-todo (tout-monde)101 cantado por Edouard Glissant102.
Referências
BERENSTEIN-JACQUES, Paola. Les favelas de Rio. Un enjeu culturel. Paris:
L’Harmattan, 2011.
GLISSANT, Edouard. Traité du tout-monde. Poétique. Paris: Gallimard, 2011.
GUATTARI, Felix. Máquina Kafka. São Paulo: N-1 Edições, 2011.
___. Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles. Éditions de l’Aube, La Tour
d’Aygues, 2011.
PALLOTA, Julien. L´école mutuelle, au-delà de Foucault. Paris: Bibliothèque de philosophie sociale et politique, 2012.
PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris: Editions de
Minuit, 1967.
QUERRIEN, Anne. L’école mutuelle, une pédagogie trop eficace? Les empêcheurs
de penser en rond. Paris, 2004.
100 SANTOS, Boaventura de Sousa. Épistémologies du Sud. Etudes rurales, n. 187, Ecoles
des hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.
101 Termo que condensa e reitera a ideia de uma “mundialidade” (mondialité) alternativa
proposta por Glissant (N.d.T.).
102 GLISSANT, Edouard. Traité du tout-monde. Poétique. Paris: Gallimard, 2011.
Anne Querrien
Artigo de revista
PETCOU, Constantin; PETRESCU, Doina. Au rez de chaussé de la ville. Multitudes,
Amsterdam, Paris, n. 20, 2005.
___. Une micropolitique de la ville: l’agir urbain. Multitudes, Amsterdam, Parisn, n.
31, DP e CP (orgs.), Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 200A
SANTOS, Boaventura de Sousa. Épistémologies du Sud, Etudes rurales, n. 187, Ecoles des hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.
Textos da internet
Atelier d’architecture autogeree. Urbantatics. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/>. Acesso em: 12 dez. 2013.
___. Le 56 / Eco-interstice. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/projectsf/
passage%2056/passage56html.html>. Acesso em: 13 dez. 2013.
___. R-URBAN – participative strategy for development, practices and networks of
local resilience. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rurban.html>. Acesso em: 28 dez. 2014.
Pavillon de L´Arsenal. Medelìn, Urbanismo Social. Disponível em: <http://www.pavillonarsenal.com/expositions/thema_modele.php?id_exposition=243>. Acesso em:
28 dez. 2014.
Anne Querrien é socióloga e urbanista. No maio de 68 militou no Movimento de 22
de março, depois trabalhou no Ceri com Félix Guattari. Dirige a redação do journal Les Annales de la Recherche Urbaine. É membro dos comités de redação da Multitudes et da Chimères
e participa de diversas associações como a AITEC e a CLCV.
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LUGARCOMUMNº41,pp.133- 143
Dionora. Para uma Arquitetura Menor
Patricio del Real
Não deve surpreender-nos que num mundo assim, onde os mais belos
jovens tinham sido reproduzidos nus e num tamanho gigantesco,
por todos os lados, se desencadeasse uma virulenta febre de
ninfomarmáticos e ninfomarmóreas.
reinaldo arenas
Dionora domina o terraço do seu edifício. Há muito já que se mudou para
a açoteia de uma antiga construção de Habana Vieja: “Fui a primeira moradora”,
diz com uma voz forte e segura, “deste ‘palácio’, antes da Revolução” – em Havana, todas as casas velhas se transformam em palácios. Ostentando uma atitude
senhorial, conta como “alargou ao terraço” o seu espaço “depois de a moradora
se ter ido embora do país”. Defensora das conquistas da Revolução, admite também os seus malogros, mas adverte-me que não pense que o estado ruinoso do
edifício se deve à negligência, que não vá dizer “lá fora” que o que aqui se vê
é sinal de um fracasso colectivo. Dionora é combativa; vive há muito tempo já
uma batalha quotidiana: litígios com os vizinhos devidos às iniltrações constantes; negociações no mercado negro enquanto procura materiais para prosseguir
a sua expansão permanente sobre as açoteias de Havana. Dionora combate para
conservar o seu pequeno estado matriarcal. Embora defendida por um sistema
legal e ético, Dionora luta contra uma cidade colonial que está a ser objecto de
saneamento e posta ao serviço do turismo internacional desde que foi declarada
pela UNESCO, em 1982, Património da Humanidade. As recentes transformações
do Estado cubano, a legalização da propriedade privada em inais de 2010, com o
objectivo da inserção do espaço urbano num mercado imobiliário nascente, geram
novos conlitos para aqueles que, como os construtores de barbacoas103, vivem
intensamente o património histórico da nação cubana; por detrás das pressões do
103 As barbacoas – por vezes consideradas como “favelas interiores” – são plataformas ou
tablados construídos aproveitando os “pés direitos” muito altos de velhas casas, cujo resultado
é subdividir e reordenar os espaços interiores, fornecendo alojamento a um grande número de
elementos da população de Cuba. (N.d.T.).
134
DIONORA.PARAUMAARqUITETURAMENOR
mercado internacional perila-se a geograia económica nacional e consolida-se a
imagem do “cubano” através de uma arquitectura colonial consumida por turistas.
No Rio de Janeiro, a batalha pela cidade assumiu dimensões olímpicas.
Recentemente, o presidente do Comité Olímpico Internacional, Jacques Rogge,
reclamou a “urbanização” das favelas do Rio. Rogge declarou que um grande investimento em infra-estruturas seria qualquer coisa de “fantástico”104. Por detrás
da soma delirante, calculada em mais de cinco mil milhões de dólares, de um projecto fantasista, esconde-se o ditame de urbanizar – ou seja, de produzir um sujeito urbano. Os recentes projectos de arquitectura e urbanismo no Rio revelam uma
cidade sequestrada pelo Olimpo, na qual os mecanismos internacionais são usados para expulsar (“relocalizar”, na boa gíria burocrática) sujeitos incivilizados
em operações menos espectaculares do que as recentes incursões paramilitares em
favelas transformadas, através da imprensa e da televisão, em baluartes do tráico
internacional de drogas. Os construtores de favelas já não têm apenas de combater
quotidianamente situações e organismos locais; hoje, é-lhes necessário ainda inserirem-se em circuitos internacionais e defenderem, através de organismos como
a Organização dos Estados Americanos, reivindicações locais, não esquecendo
que tais instituições possuem os seus próprios mecanismos de ofuscação105. A
situação relocalizou as favelas do Rio, uma vez que o olhar internacional as deslocou para o sector dos desportos. A visão das favelas, apresentada nas páginas
internacionais e de desporto, produz uma ofuscação populista entre espectáculos
de violência real e violência ritualizada. Este modo de apresentar a questão, que
tenta conter e localizar o problema como sendo o da existência de focos de intensidade urbana malsã, faz-nos esquecer que é o sujeito urbano, que Rogge deseja,
que materializa o tráico de drogas, e que as supostas redes internacionais têm a
sua contrapartida nos consórcios internacionais das empresas farmacêuticas que
possibilitam os escândalos olímpicos do doping.
“You don’t need these”, dizia Encarnación num inglês reinado aos agentes da polícia da cidade de Nova Iorque; “não faço mal a ninguém”, continuava,
entregando-lhes as algemas que, deslizando, lhe tinham caído das mãos pequenas.
Há mais de 10 anos que Encarnación vende tamales a um dólar em Harlem, a
104 http://www.portal2014.org.br/en/news/6917/PRESIDENT+OF+THE+IOC+SLUMS+UR
BANIZATION+BEFORE+2016+RIO+OLYMPICS.html (Consultado em dezembro de 2011).
105 Por exemplo, é impossível encontrar a referência a estes conlitos na página web da OEA,
organismo que pretende defender tanto os direitos privados como humanos. Ver: http://www.
cidh.oas.org e http://www.usatoday.com/sports/olympics/2011-02-23-rio-de-janeiro-slums-humans-rights-2016-Olympics_N.htm
Patricio del Real
trabalhadores, a estudantes, ao autor deste texto, a menos de um quarteirão de distância de um McDonalds, onde se fala espanhol. Encarnación vivia no Estado de
Guerrero, no México, “com um telhado de folhas de palma e paredes de adobe”,
e, como muitos, veio para os Estados Unidos para melhorar a vida dos que icaram no seu país106. Encarnación também melhorou Harlem; a sua pequena banca
móvel (um carrinho de supermercado) à boca da estação de metro, junto a um
pequeno parque, acabou por desenvolver ao longo de muitos anos uma pequena
zona comercial efémera, onde, dependendo do dia e do tempo, se podem encontrar
fruta, lores, bijutaria e até mesmo artigos de segunda mão. Esta forma de pressão
sobre o uso correcto e oicial da cidade provocou a acção policial directamente
sofrida por Encarnación, mais como um aviso destinado a lembrar quem realmente
manda do que da efectividade de um poder que tem de negociar com uma economia estratiicada e, assim, usar múltiplas estratégias de cooptação. As acções urbanizadoras da polícia de Nova Iorque não são tão espectaculares como as do Rio
– as detenções efectuadas pela polícia da cidade são, em geral, bastante silenciosos.
Menos violenta ainda é a política oicial de beneiciação estética da cidade (Arts in
the Parks Program), que instala, temporária mas ruidosamente, esculturas nos parques da cidade, urbanizando assim uma cidade já urbana e que, em certas ocasiões,
se sobre-urbaniza. As ovelhas de bronze do escultor Peter Woytuk, que disputam
agora com Encarnación o pequeno parque, não serão, sem dúvida, detidas107.
Em Havana, Rio de Janeiro e Nova Iorque, nestas três cidades tão diferentes, como em tantas outras, entretecem-se relações de poder no espaço urbano que
desdobram um leque de desejos locais e internacionais, sob uma globalização que
mobiliza e põe a produzir todos os estratos sociais e económicos. Pequenas acções,
como vender um tamal a um dólar, mobilizam estratégias que revelam mercados
paralelos em Nova Iorque (evitemos andar por aí a dizer que o mercado negro só
existe no Terceiro Mundo), que, como em Havana ou no Rio, melhoram um certo
número de vidas. O desejo de uma vida melhor transformou-se num imaginário
colectivo que, nas suas pulsações globais, transcende qualquer geograia. As iniltrações contra que Dionora batalha na sua açoteia, manifestam um mundo de
fendas através do qual a informação se globaliza e se democratiza. Este uso intenso
do espaço urbano revela uma cidade conectada, articulada em redes internacio106 Sobre a sua história, ver: http://www.nypress.com/article-20390-the-tamalera.html
107 Ver http://www.nycgovparks.org/art Estas esculturas são efémeras, o que signiica que não
são permanentes; no momento em que escrevo este ensaio, encontram-se no parque duas ovelhas de bronze, Sheep Pair, do escultor Peter Woytuk. Ver http://www.woytuk.com/archives/
gallery/the-new-york-sculptures/
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DIONORA.PARAUMAARqUITETURAMENOR
nais, tanto legais como alheias à realidade oicial, activadas por um sujeito local
que navega essas intensidades segundo os seus desejos e necessidades, produzindo
múltiplas cidades dentro e fora dela. A cidade é uma zona de contacto intenso e
expansivo onde o desejo encontra a sua forma. Surge aqui uma clara contradição,
porque a intensiicação dos contactos e a expansão das redes manifestam uma heterogeneidade que fragmenta a totalidade implícita na ideia de cidade. É, portanto,
necessário falar, não de cidade, mas de cidades. Esta necessidade de falar no plural,
assinalada há já algum tempo por Michel de Certeau, entre outros, e de romper
com a ideologia da universalidade na qual se esconde ainda a táctica de reduzir “o
outro”, continua a ser um obstáculo para os que tentam articular meta-geograias,
como a que a noção de Ibero-América supõe. Esta noção, e a relação histórico-cultural iniciada pela colonização espanhola e portuguesa a que a noção implicitamente se refere, articula um território possível de diferença e resistência, mas que
se dilui com Encarnación, que articula outra comunidade, que não é só aquela que
vive nos Estados Unidos, mas a que vive nos luxos migratórios de uma força de
trabalho “liberalizada”. Inserir trabalhadores deslocados no quadro de geograias
culturais particularistas parece ser um acto comprometedor, uma vez que os nigerianos na Península Ibérica, que não participam dos benefícios culturais de uma
ideologia ibero-americanista, por exemplo, sofrem do mesmo modo que os equatorianos que hipoteticamente poderão mobilizar uma suposta cultura comum como
se fosse uma carta de chamada. A mobilização do termo e da ideia de uma comunidade ibero-americana pode ser um acto de reivindicação, mas a ideia esconde uma
consagração implícita de valores e tradições que reclamam unidade de espírito e
transformam a história e a cultura em essências, por mais que as fragmentemos em
pluralidades. A noção de Ibero-América depende da ideia de território; esta convergência entre espírito e território manifesta-se hoje como sintoma do retraimento
e alargamento do Estado frente ao mercado internacional. Deve ter-se presente
que o imaginário luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre, que serviu para
exaltar as bondades do colonialismo e da ditadura num momento de debilidade democrática no chamado Terceiro Mundo, serve como advertência perante qualquer
meta-geograia que insista em articular oposições e exclusões. Creio ser hoje mais
importante falar de uma rede de cidades do que de territórios, uma vez que a crescente urbanização agenciada actualmente pela expansão do mercado internacional
reclama de nós novos imaginários geográicos. A chamada comunidade transnacional ibero-americana exerce as suas próprias exclusões, e se há alguma coisa que
da globalização devamos recuperar, é precisamente a sua força de inclusão. Assim,
devemos menorizar a Ibero-América.
Patricio del Real
Hoje, ranchos como os de Caracas108, que antes não iguravam nos mapas, são cadastrados e incorporados na cidade; no Rio de Janeiro, pode fazer-se um
circuito turístico pelas favelas; as barriadas de Lima integram-se plenamente no
mercado imobiliário, de acordo com o ideário do economista peruano Hernando de
Soto. As acções de uma “linguagem imperial” de “urbanização” passaram ultimamente a tomar por objecto lugares anteriormente inexistentes, excluídos ou demonizados. A cidade é rearticulada hoje enquanto corpo orgânico, quer dizer, como um
total diferenciado, não desprovido de conlitos, mas necessariamente funcional sob
a globalização. Esta rearticulação, ainda em processo, manifesta-se a diferentes escalas. Em Bogotá, Caracas e Rio, os bairros pobres de Santo Domingo, San Agustín
e Alemão respectivamente, foram incorporadas no tecido urbano através de elegantes funiculares, e, em certos círculos de arquitectura da Ibero-América, encontramos
um interesse pontual e renovado pelos processos ditos informais, que dão origem
a favelas, ranchos, villas miserias, barbacoas, barriadas, tapancos, chabolas, pueblos jóvenes, shanty towns, slums, bidonvilles etc. Estabelecem-se assim momentos
de contacto, de fascínio e de desejos, entre o marginal e a arquitectura.
A constante luta dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro esforçando-se por melhorarem as suas vidas é uma fonte de admiração e estupefacção para
arquitectos que propõem intervenções críticas e para ateliers de escolas de arquitectura que tentam introduzir novos temas, com o objectivo de promoveram a renovação de uma disciplina já comprometida com o poder e de uma proissão cega
por uma espectacularização sob a tutela dos starquitects. Das condições extremas
– extremadas pela intensidade daqueles que as vivem e pela distância daqueles que
não a sofrem –, os arquitectos recuperam um agenciamento inventivo do presente
e do agora, executado por sujeitos marginais investidos de uma certa inocência
e de uma criatividade intensa. O desdobrar-se de estratégias construtivas ad hoc,
deste bricolage material e produtivo, solicita o interesse e a admiração, e mobiliza
um estranho humanismo que reclama a nossa compaixão e a nossa inveja, revelando a profunda transformação conceptual que os ranchos sofreram. Se antes as
villas miserias eram cancros a ser extirpados, são hoje imaginados como padrões
urbanos alternativos, construções sociais de onde emergem propostas vernaculares de um “lugar” possível contraposto ao espaço abstracto da cidade moderna.
Hoje os processos de construção das barbacoas revelam novos procedimentos de
projecto para uma arquitectura sobrecarregada pela tecnologia e reduzida à sub108 Um rancho, na Venezuela, é uma construção improvisada, utilizando materiais usados
e pobres, como as que encontramos nos chamados “bairros de lata”. Este tipo de construção
proliferou em Caracas, sobretudo a partir da década de 1960 (N.d.T.).
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DIONORA.PARAUMAARqUITETURAMENOR
jectividade do seu autor. Nestes espaços marginais, alguns descobrem um processo de construção de comunidade enquanto acto social reivindicativo e processo de
projecto de resistência; aos dois níveis, social e pessoal, surge aqui como que uma
alternativa aos discursos hegemónicos da globalização. A sedução em causa não
é nova, possui uma já longa tradição, que, desde o século XIX, tenta reintegrar
uma tradição enraizada nas forças descontextualizantes da modernização: trata-se
da luta que encontramos em Dionora, quando, armada com baldes de cimento e
pequenas vigas de ferro, madeiras e pás, menoriza a subjectividade de género do
“construtor”, que a própria linguagem preigura como sujeito masculino. Como
já observou a crítica Eve Kosofsky Sedgwick, dos Estados Unidos, a recuperação
do não-oicial liberta um luxo de desejos escondidos. As incursões paramilitares
nas favelas do Rio revelam os complexos combates de género de um lugar já altamente politizado. As intervenções dos arquitectos nos ranchos desarticularão os
desejos de masculinidade da arquitectura?
A dualidade persistente entre tradição e modernidade foi forjada na arquitectura por um modernismo que desejava ser a linguagem oicial do moderno.
Os bairros degradados não podem ser reduzidos a sonhos românticos, a espaços
vernaculares de sociabilidade pré-capitalista, numa tentativa visando reproduzir
lugares de resistência ao mercado internacional; também não podem ser reduzidos a espaços de um capitalismo selvagem dominados e espectacularizados pela
violência; não são lugares de resistência ou espaços de violência, mas constituem
âmbitos nos quais descobrimos resistências e violências; por outras palavras, são
lugares reais e actuais, não imagens para deleite ou horror de um consumidor
afectuoso ou hostil, embora nos dois casos igualmente distante. Neste sentido,
qualquer tentativa de articular uma relação entre uma urbanidade intensa de emergência e uma arquitectura emergente na Ibero-América requer a identiicação de
um momento de inlexão histórica. A valorização de espaços produzidos à margem, ainda que sempre ligados ao mercado, à cidade, à arquitectura, marca a
nossa particularidade histórica. Trata-se de uma postura sintomática de um mundo
heterogéneo, e também de uma mudança cultural, em que já não vemos, nas suas
vastas extensões urbanas, o “atraso da nação”, como se dizia nos anos 1950 a
propósito dos ranchos de Caracas, mas o seu futuro. A capitalização da cidade
tornou-se extensiva; mas se se valoriza a experiência vivida pelos residentes dos
bairros pobres, se se valorizam os processos de construção, o uso dos materiais
que aponta para uma criatividade do sujeito marginal, devemos perguntar também onde terminam os contornos desta valorização. A coincidência dos valores
de mercado e dos valores produzidos nos ranchos está ainda em gestação. As
Patricio del Real
narrativas anteriores, que descreviam a injustiça social no interior de um quadro
nacional de cidadania, são hoje reformuladas no quadro da economia, duplicando-se a todos os níveis, da gestão dos recursos naturais (ecologia) à correcta administração do doméstico (oeconomia) e do pessoal.
É importante, por isso, perguntar que valores hoje aqui descobrem os
arquitectos. A obra persistente de Jorge Mario Jáuregui – insistindo durante 15
anos sobre as favelas do Rio através do Programa Favela-Bairro – obteve ressonância e constituiu-se como modelo para a Ibero-América. Trata-se, contudo,
de um trabalho que causa também desorientação, uma vez que, sem menosprezo
da magníica e necessária obra realizada, depende da igura do arquitecto como
proissional-especialista que reconcilia os desejos dos moradores dos bairros com
o poder. A capitalização da arquitectura social, embora não completamente consolidada, efectuou-se já na Sétima Bienal de Veneza sob o título Less Aestethics,
More Ethics – Menos estética, mais ética, e, mais recentemente, no Museu de
Arte Moderna de Nova Iorque, com a exposição Small Scale, Big Change. O
que estou a tentar articular aqui são os limites tanto do fascínio que hoje exerce
sobre os arquitectos a necessidade sofrida pelos construtores de tapancos109, como
os limites de um olhar que responde a uma pergunta tautológica, uma vez que,
nesse fascínio e nesse olhar, os arquitectos ou se descobrem a si próprios, ou se
descobrem arquitectos “menores”, e deparamos aqui com um impasse. A pergunta
é unidireccional – de quem olha quem – tentando abrir assim um espaço teórico.
Porque aquilo que importa, se quisermos continuar a reclamar benefícios das barracas, não é vermos como os construtores de pueblos jóvenes110 são arquitectos em
ponto pequeno, mas como as suas acções menorizam a arquitectura. É fácil descobrir arquitectura nas shanty towns111, mas é mais difícil descobrir shanty towns
na arquitectura. Proponho que retomemos o processo de capitalização efectuado
em Veneza, no sentido em que o limite da valorização das favelas – quer dizer,
o que não se trata de valorizar nas favelas – deve ser precisamente a estética que
exibem. Daí que, em Veneza, se tenha insistido mais na ética, a im de prevenir o
colapso da arquitectura sob os seus próprios valores estéticos.
109 O tapanco designa originalmente, no México, um piso que se constrói sob o telhado, por
cima do tecto ou falso tecto das outras divisões (N.d.T.).
110 Designação peruana de aglomerações de construções precárias, que surgem na periferia das
cidades, e cuja população é composta quase integralmente por negros, índios e ex-camponeses
mestizos (N.d.T.).
111 Bairro precário e muitas vezes clandestino, como o “bairro de lata”, o bidonville, os
pueblos jóvenes, a favela, a barriada etc. (N.d.T.).
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140
DIONORA.PARAUMAARqUITETURAMENOR
As recentes e magníicas arquitecturas de Bogotá e de Medellín – como,
por exemplo, a Biblioteca España de Giancarlo Mazzanti, na segunda destas cidades – abrem um diálogo complexo que mobiliza os contrastes: uma clara estética arquitectónica de elite sobrepõe-se à estética convulsa do slum112 de Medellín. Articula-se assim uma arquitectura cívica de elevado valor, tanto inanceiro
como estético. Em Santiago do Chile, Alejandro Aravena, com o concurso das
soluções de construção “elemental”, integra estratégias de crescimento gradual,
incorporando assim uma temporalidade presente nos bidonvilles e estratégias de
construção elaboradas durante a década de 1950, por exemplo, no Norte de África
sob o regime colonial francês. Mas o que importa é perguntar se as estratégias e
os discursos luem nas duas direcções: quer dizer, se podemos descobrir na arquitectura de Aravena ou de Mazzanti essa informalidade que hoje exerce tanto
fascínio; descobrir os ranchos nas Torres Siamesas do Campus San Joaquín da
Pontiicia Universidad Católica do Chile; se podemos descobrir as viilas miserias
num dos bastiões do poder na Ibero-América; se a estética da emergência aparece na arquitectura ibero-americana emergente – uma arquitectura que começa
a transbordar do seu limite geográico, não como curiosidade do momento, mas
como arquitectura menor.
Crédito da imagem: Dionora, fotograia de Patricio del Real.
As incursões de arquitectos nas barbacoas menorizaram a arquitectura.
A polivalência material, a utilização de diversos materiais tradicionalmente precários, como o tijolo e a madeira; a revalorização dos processos de construção
informais ou primitivos, como o adobe – como na Escuela de Artes Visuales de
Oaxaca, no México, de Mauricio Rocha –, revelam as atitudes da arquitectura
112 Ver a N.d.T. anterior (N.d.T.).
Patricio del Real
emergente. A preferência por estratégias informais é condicionada por uma tendência já bem estabelecida para a experimentação material em arquitectura. Assim, a articulação material não é necessariamente uma menorização da arquitectura. Talvez seja, portanto, mais produtivo tornarmos a insistir no campo da estética,
uma vez que a estética de elite resiste a incorporar a emergência. Se examinarmos
a produção arquitectónica que se contém na casa unifamiliar da Ibero-América,
descobriremos que nada nela emerge. A casa unifamiliar revela-se como o grande baluarte de uma classe social tradicionalista hoje protegida por um cuidado
e sufocante minimalismo estético. As múltiplas versões daquilo a que podemos
chamar “a gaiola” de vidro, cimento ou madeira – muitas vezes desvirtuada por
combinações de materiais ou geometrias decorativas postiças – exprimem o tédio,
a leviandade intelectual e a ausência de valores comunitários dos seus proprietários. Estes cubículos da versão estética oicial, espaços de abstracção minimalista,
são máquinas de fuga potenciadas pelos arquitectos – pois, quem desejará viver
num estado de constante fragmentação como o das barriadas? Mas são também
espaços de poder, onde se reproduzem os valores de uma sociedade desigual e
tradicionalista no pior sentido da palavra, como é o caso com o ainda muito vincado paternalismo da região. O elitismo que circula com insistência nas revistas
de arquitectura e a compartimentação das construções informais no interior de
uma emergência que não vê a sua contribuição estética, não fazem mais do que
conirmar que a região continua a ser a mais desigual do mundo. Após as repetidas
incursões no mundo da informalidade, a arquitectura na Ibero-América não foi
capaz de articular um projecto coerente de arquitectura menor. E se a incursão nas
favelas radica somente na capitalização de uma economia de valores imobiliário
e humanitário, reduz-se consequentemente a valorização e o efeito saudável que
aquelas podem ter sobre uma arquitectura que depende ainda da estética do poder.
Mas a resposta não está nem nos proprietários, defensores dos seus próprios interesses, nem nos arquitectos, porque ao im e ao cabo o simples construir
já é suicientemente difícil: o problema radica na ausência da crítica da arquitectura – mas que arquitecto ou proprietário deseja que a sua obra e o seu investimento inanceiro e estético seja desvirtuado por subtilezas intelectuais que, embora
também difíceis de construir, a poucos interessam? Não devemos esquecer que
só o meritório merece ser criticado, pois o que interessa é a crítica produtiva,
a crítica que trabalha. Como tantas outras casas difundidas por revistas ibero-americanas, a elegante Casa Poli dos arquitectos Pezo von Ellrichshausen (PvE),
instaura, numa falésia da costa chilena, a convergência de uma casa de férias
com um centro cultural, que, como um cubo caído do céu, tenta fazer esquecer o
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DIONORA.PARAUMAARqUITETURAMENOR
preço ecológico que estas arquitecturas implicam – não só devido aos processos
de construção que alteram o ambiente, mas também, e em primeiro lugar, pela
contaminação abstracta que a sua capitalização estética exerce sobre o quadro
natural. A estética da paisagem, tão elegantemente elaborada pela equipa chileno-argentina de arquitectos através das elegantes vistas sobre o Oceano Pacíico
que perfuram o cubo, articula uma manipulação visual que insiste na deinição
artístico-estética da palavra paisagem – uma deinição que esquece por força a sua
relação com um terreno que o camponês trabalhou arduamente, sem contemplação, mas com a sua própria naturalidade estética. O império do visual desdobra-se
na imagem, produzindo uma arquitectura facilmente capturada pelas revistas. A
estética do camponês já foi capturada pelo romantismo no século XIX, e hoje, na
Ibero-América, resiste a esta nova forma de incorporação.
A partir da convergência entre o visual e o terreno, do confronto entre a
paisagem e o camponês, da união entre o olhar do autor e a mão da sua antítese, do
contraste máximo entre a obra na falésia dos arquitectos PvE e a açoteia de Dionora, podemos elaborar uma tentativa de arquitectura menor. Devemos começar por
recusar qualquer tentativa de deinir as favelas como arquitectura, uma vez que
essa incorporação discursiva esconde a hierarquia operacional de valores estéticos ainda bem instalada na arquitectura, e desarticula qualquer tentativa possível
de elaborar uma arquitectura menor, uma vez quer, se seguirmos Deleuze, ela só
poderá ser a prática menor no interior de uma linguagem maior. Se considerarmos
a produção construtiva por volume da cidade ibero-americana, veremos que são
os arquitectos que produzem a menor quantidade de estruturas e de espaço construído da cidade, enquanto são os construtores dos bairros que produzem a maior
parte. Assim, a operacionalidade da arquitectura como linguagem a menorizar
radica principalmente em acções críticas sobre os seus valores estéticos – quer dizer, na sua relação com o poder, ou, como diriam os modernistas brasileiros, com
a bão tradição, com essa tradição que delineia os contornos da boa sociedade. Se
os arquitectos podem aprender alguma coisa com os construtores de favelas é o
modo como estas permanecem frágeis, sem que isso seja fraqueza: a fragilidade
construtiva que faz da favela uma obra em surgimento constante é qualquer coisa
que os arquitectos começam já a incorporar, ainda que de modo insuiciente. Estando em construção permanente, as barriadas exibem as suas contradições à lor
da pele e revelam uma construção estética colectiva, uma montagem expressiva
sem autor a que a arquitectura resiste. O caminho a percorrer é difícil, uma vez
que a ideologia do estilo unitário e representativo da mão do “arquitecto” como
criador singular e autoritário está tão enraizada que um artefacto tão complexo
Patricio del Real
como um edifício, um artefacto que requer uma equipa de pessoas e proissionais,
precisa ainda de ser identiicado e reduzido a um único arquitecto. Objectar-se-á
que, sem esta força homogeneizadora e controladora o resultado seria uma vaga
desordenada de kitsch numa sinfonia sem tom nem harmonia. Talvez, mas temos
de nos dar conta de que, por detrás de tais argumentos contra a dissonância e a heterogeneidade, se esconde a produção de simples objectos de consumo imediato,
de uma arquitectura capitalizada pelo mercado e não por arquitectos.
Patricio del Real realizou o doutoramento em História da Arquitectura e Teoria na
Universidade de Columbia em Nova Iorque e o mestrado em Arquitectura pela Universidade
de Harvard. É coeditor da antologia Latin American Modern Architectures: Ambiguous Territories, publicado pela Routledge, 2012, e actualmente trabalha no Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque.
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LUGARCOMUMNº41,pp.145- 152
Arquitetura,FeitiçoeTerritório.
Matéria e impulso de libertação na
obrabaianadeLinaBoBardi
Godofredo Pereira
1 – Lina Bo Bardi
A transformação do Solar do Unhão em Museu de Arte Popular (1959)
representa, na obra de Lina Bo Bardi, o encontro de dois elementos centrais: por
um lado, o interesse por arte popular que traz já desde Itália, pelo outro, uma preocupação com a realidade política do Brasil, e em particular do seu Nordeste. O
programa original propunha-se articular a ideia de “Civilização Brasileira” através
de um encontro cultural entre “O Índio”, “África-Bahia” e “Europa e Península
Ibérica”. Seria uma espécie de viagem à história do país através da sua arte quotidiana. Para Lina, a palavra “civilização” indicava “o aspecto prático da cultura, a
vida do homem em todos os instantes”, e a exposição devia tornar visível a “procura desesperada e raivosamente positiva de homens que não querem ser ‘demitidos’,
que reclamam o seu direito à vida. Uma luta de cada instante para não afundar no
desespero, uma airmação de beleza conseguida com o rigor que somente a presença constante de uma realidade pode dar. Matéria prima: o lixo”.113
A partir de Lina Bo Bardi, este texto aborda um problema central para a
arquitectura, nomeadamente, o do seu estatuto enquanto objecto, assim como as
relações que estabelece com os objectos pelos quais é ocupada e habitada. Não é,
contudo, a natureza ilosóica deste problema que aqui interessa, mas sim a ligação entre o objecto e um território que lhe dá sentido. Identiicando uma certa continuidade entre objectos e territórios, explora-se aqui o modo como o debate em
torno à natureza dos objectos não se resume a estes, mas relecte uma constante
disputa em torno a diferentes concepções de território. Desde território entendido
como espaço sob a jurisdição do estado nação, parte de uma organização social
produtiva baseada na privilégio da propriedade privada sobre todos os demais direitos, até ao território entendido na sua dimensão existencial, agenciamento de
elementos heterogéneos que dão consistência aos modos de vida. Em ambos os
casos, quer por revelarem as condições de produção que os constituíram, quer por
113 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa Oicial, 2008, 158.
146
ARqUITETURA,FEITIçOETERRITóRIO
revelarem os afectos, hábitos ou práticas que os materializaram, os objectos funcionam como um arquivo de conlitos e debates territoriais. Ora, precisamente esta
capacidade de ver nos objectos as lutas e circunstâncias daqueles que os produziram, marca toda a obra de Lina, desde o seu interesse por máscaras, talismãs e ex-votos até ao desenho da “Cachoeira do Pai Xangô” para o centro da Bahia (1986),
às exposições sobre a cultura do Nordeste. Estes objectos “carregados” são centrais
na arquitectura de Lina, pois participam de um modo de projectar que privilegia a
concepção de territórios a que chamarei de existenciais, por tratarem, como indica
Olívia de Oliveira, matérias subtis, ao mesmo tempo naturais e míticas.114
Este mesmo termo, “territórios existenciais”, é também usado pelo ilósofo/psicanalista Félix Guattari, em Lês Trois Ecologies, para se referir aos espaços
afectivos criados por contextos e experiências de pertença. Mas a sua diversidade
encontra-se em perigo de desaparecimento face à homogeneização das subjectividades promovida pelo capitalismo neoliberal. Pode dizer-se que da mesma
forma que os países “desenvolvidos” são os principais poluidores ambientais, são
também os principais poluidores existenciais, o que se manifesta na crescente
“ossiicação” de comportamentos, imaginários e formas de “territorialização” que
os caracteriza.115 Olhando para Lina através de Guattari, podemos sugerir que o
recurso a “objectos carregados” se insere na tentativa de capturar a expressão de
diferentes modos de viver e habitar o mundo.
Claro que o seu interesse por objectos advém também de privilegiar a
questão do habitar, ainal a grande preocupação da arquitectura moderna. Desde
cedo preocupada com os problemas do quotidiano – vejam-se os textos escritos
ainda em Itália, sobre a Disposição dos Ambientes Internos116 e sobre O aquário na Casa117 – Lina não reduz o habitar apenas a um problema funcional, mas
entende-o enquanto prática existencial. Podemos ver, por exemplo, como as casas
Valéria Cirell (1958) e Chame-Chame (1958), valorizam a expressão dos materiais acima da pureza da forma e da organização espacial. Mas não se trata aqui de
qualquer romantismo da expressão ou da natureza, mas de uma busca da simplicidade que se conquista na relação da obra com as práticas de vida e os seus rituais.
De qualquer forma, se numa fase inicial este discurso emerge ainda preso aos
estudos decorativos da casa, ganha toda outra radicalidade nos seus escritos sobre
114 OLIVEIRA, Olivia de. Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barcelona:
Gustavo Gili, 2006.
115 Cf. GUATTARI, Félix. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.
116 BARDI, Lina Bo. Sistemazione degli interni. Domus, 198, 1944.
117 BARDI, Lina Bo. L’Acquario In Casa. Lo Stile, 10, 1941, p. 24-25.
Godofredo Pereira
o Nordeste entre 1959-63. É aí, em proximidade com uma “estética da fome” de
Glauber Rocha, que Lina aborda as profundas relações entre emancipação social
e produção artística popular: “Em Pernambuco, no Triângulo Mineiro, no Ceará,
no polígono da Seca, se encontrava um fermento, uma violência, uma coisa cultural no sentido histórico verdadeiro de um País, que era o conhecer da sua própria
personalidade”.118 Recorde-se que nos anos 1960 no interior nordestino, a maioria
da população vivia abaixo do limiar da pobreza, devido não só à escassez de recursos ditada por um clima de semi-aridez, mas principalmente pela exploração
social operacionalizada pelas oligarquias agrárias. É esta violência e miséria que
anima o ressurgimento em 55 das Ligas Camponesas, associações de camponeses
em luta por uma reforma agrária, ou no cinema o surgimento de um novo movimento, a “estética da fome” de Glauber Rocha, a partir da qual se reposiciona a
importância das práticas quotidianas dessa população esquecida. E é devido a este
contacto com o sertão e as suas transformações político-culturais, que para Lina
Bo Bardi a arte popular deixa de ser simplesmente algo que confere profundidade
e realidade à arquitectura, e se refere cada vez mais concretamente às condições
brutas da existência. E progressivamente também a arquitectura de Lina começa a
participar activamente na emancipação desse território quotidiano e não-erudito,
como forma de resistência à hegemonia cultural colonial.
2 – Feiticismo e Colonialismo
De acordo com o antropólogo William Pietz na sua série de ensaios sobre
The Problem of the Fetish, o termo “fetiche” tem origem nos territórios inter-culturais da África Ocidental nos séculos XXVI e XXVII como resultado do
encontro entre mundos culturais radicalmente heterogéneos. Segundo Pietz, “esta
situação nova começou com a formação de espaços habitados interculturais ao
longo da costa da África Ocidental (especialmente ao longo da Costa da Mina)
cuja função era traduzir e valorizar objectos entre sistemas sociais radicalmente diferentes (...) estes espaços, que existiram durante vários séculos, existiam
num triângulo de sistemas sociais composto por feudalismo Cristão, linhagens
Africanas e capitalismo mercante”119. Emergindo da descrição das falsas crenças
do outro, o termo migra posteriormente para a Europa com os escritos de Charles de Brosses, lentamente adquirindo o seu uso mais familiar com as obras de
Feuerbach, Marx e Freud. Mas para Pietz a relevância do termo fetiche ou mais
118 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo: Imprensa Oicial, 2008, 153.
119 PIETZ, William. The Problem of the Fetish. I. Res, n. 9 (1985): 6.
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148
ARqUITETURA,FEITIçOETERRITóRIO
adequadamente feitiço não reside na sua capacidade de descrever mecanismos
culturais reais (a natureza de uma especíica crença), mas sim na capacidade de
evidenciar a natureza de certos encontros, na medida em que refere a uma história de conlitos em torno à correcta valorização (afectiva, cultural, comercial) de
determinados objectos. Referindo-se ao entendimento dos europeus, Pietz dirá
que “no discurso sobre feitiços, esta impressão da propensão do primitivo para
personiicar objectos técnicos – ou para os considerar veículos de causalidade
sobrenatural – é conjugada com a percepção mercantil que os não-Europeus atribuem valores falsos aos objectos materiais”120. Uma posição semelhante é desenvolvida por Bruno Latour em The Cult of the Factish Gods, argumentando que a
declaração de feiticismo surge sempre enquanto acusação sobre as falsas crenças
do outro. Acresce que tal acusação sobre a crença dos outros servirá para fundamentar uma acção “pedagógica” de correcta valorização, tornando evidente como
os princípios argumentativos que subentendem designações de primitivismo ou
superstição, substanciam também um processo de apropriação de um território
material. Surgindo sempre em relação a empreendimentos coloniais, a história
do feitiço é por isso a história da constituição de culturas de fronteira, por relação
com o desenvolvimento de sistemas mercantes, ou do nascimento do projecto
capitalista.
Assim, reconhecer o “feitiço” como um local de conlito, implica que
se entenda o objecto como uma questão material, que atrai na mesma medida
em que divide. E é precisamente neste ponto onde o “feitiço” se torna político, já
que o seu real poder deriva do fato de revelar uma disputa e por conseguinte uma
diferença. Além disso, o “feitiço” – tal como os “objectos carregados” de Lina Bo
Bardi – revelando diferenças, torna-se por isso mesmo um objecto de fronteira a
partir do qual, ou sobre o qual, essas diferenças serão supostamente resolvidas
(gestos iconoclastas, vandalismo etc.)121
3 – Territórios de Fronteira
Digamos que Lina desenha os seus edifícios de uma forma feiticista, devido não só ao seu interesse pelas práticas populares, mas também devido ao
estatuto instável dos vários objectos com que ocupava os seus edifícios, assim
como pela relação pessoal que estabelecia com eles. Em Lina vemos o redescobrir
120 PIETZ, William. The Problem of the Fetish. II, The Origin of the Fetish. Res, n. 13 (1987): 42.
121 Cf. TAUSSIG, Michael. Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative.
Stanford, Calif: Stanford University Press, 1999.
Godofredo Pereira
de todos estes objectos “outros”, carregados de vidas e de costumes, de histórias.
Neste sentido um dos debates que para a arquitecta se tornou central foi precisamente a questão do folclore, contra o qual lutava pela ideia de arte popular. Para
Lina a arte popular e artesanato designam formas de produção directamente ligadas às condições de produção (económicas, geográicas, climáticas e culturais)
e não poderiam ser entendidas como formas inferiores, isso sim fazia o folclore
designação reservada às “artes menores”. Além disso, se através do processo pedagógico colonial/capitalista os objectos são por um lado forçados a categorias
discretas do saber, e por outro transformados em mercadoria de formato turístico – em ambos os casos desconectados das forças territoriais que os modelam
–, uma outra pedagogia era necessária, mais próxima de Gilberto Freyre, para
libertar as forças que “carregam” esses mesmos objectos e mobilizá-las enquanto
forças políticas. Assim, como airmava Lina “O balanço da civilização brasileira
‘popular’ é necessário, mesmo se pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o
balanço do Folclore, sempre paternalistamente amparado pela cultura elevada, é o
balanço ‘visto do outro lado’, o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura
brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, é
o habitante das ‘Vilas’, é o negro e o índio, é uma massa que inventa, que traz uma
contribuição indigesta, seca, dura de digerir.”122 Claramente aqui se vê o quanto
foi importante a inluência de António Gramsci e a sua defesa da importância de
uma força colectiva nacional-popular como prática contra-hegemónica. De facto,
para Lina a aprendizagem com a arte popular seria o elemento chave que deveria
informar o processo de industrialização e modernização brasileiro, ou seja, uma
aprendizagem desprovida de romantismo mas entendida como oportunidade para
a constituição de um novo território, construído a partir da cultura existente. Assim, longe de se reduzir a um discurso da pequena escala, Lina aproveitava as
energias de um Brasil em construção que na altura re-imaginava os limites do
possível. Neste sentido a airmação de Lina que Brasília era “um belo começo
para uma nação é paradigmática”.
Os seus projectos para a Bahia são testemunho de como para Lina foi
importante a inluência do Candomblé, das tradições afro-americanas, e em particular desses objectos que os portugueses, através do comércio de escravos, trouxeram de um continente ao outro. Não por acaso, a Costa da Mina onde o antropólogo William Pietz localiza o início da história desses objectos-feitiço, é contígua
à costa dos Escravos, onde se encontra hoje o Benin, e de onde veio a maioria da
população Afro-descendente para a Bahia. Procurando valorizar a história local,
122 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa Oicial, 2008, 210.
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ARqUITETURA,FEITIçOETERRITóRIO
um dos mais notórios projectos que Lina desenha na Bahia é a recuperação de um
antigo edifício colonial para ser transformado na Casa do Benin, onde estaria em
exposição o arquivo do antropólogo Pierre Verger sobre as relações culturais entre
Brasil e África. Deste modo, promover uma concepção existencial do território tal
como o faz Lina, implica portanto, a possibilidade de praticar a coexistência de
“mundivisões” heterogêneas. A luta pelo reconhecimento de alternativas às práticas epistemológicas da modernidade, contra o “eliminativismo” da tecnociência
sobre outras formas de conhecimento123, é central para poder defender o direito a
diferentes visões do mundo e outras formas de produção.124 Convém notar, apesar
de tudo, que não se trata aqui da defesa das culturas indígenas ou tradicionais
como que constituíssem uma alternativa, mas reconhecer com Arturo Escobar,
que as soluções devem ser buscadas a partir do meio: “a noção de colonialidade
assinala dois processos paralelos: a supressão sistemática pela modernidade dominante de culturas e conhecimentos subordinados (o encobrimento do outro); e
a necessária emergência, a partir desse próprio encontro, de conhecimentos particulares formatados por essa experiência e que têm pelo menos o potencial de se
tornarem lugares para a articulação de projectos alternativos”125.
4 – Devir-território
O fazer do território não pode ser objecto de conhecimento especializado,
pois não há como especializar o direito à expressão e à existência. A territorialização é um processo colectivo que agencia pessoas, mas também espaços, artefactos, instituições, materiais, narrativas, modos de estar etc. E por isso mesmo a
luta por diferentes concepções de território é, por isso, também a luta pelo direito
a existir e por diferentes visões do mundo. Recordando o projecto para a recuperação do centro histórico da Bahia (1986), em que o objecto de recuperação não foram as arquitecturas consideradas historicamente relevantes mas sim a “alma” da
cidade, vemos como esta concepção territorializante é central para Lina. Quando
Lina recupera não só as praças, ruas e miradouros, mas também a economia informal, que tem lugar nas ladeiras, nas associações recreativas e nas lojas ilegais, ou
123 No que respeita à coexistência entre as práticas cientíicas e outras formas de produção de
conhecimento, convém referir o importante trabalho que Isabelle Stengers tem vindo a desenvolver. Isabelle Stengers, Cosmopolitics II, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2011.
124 Cf. SANTOS, Boaventura Sousa. Another Production Is Possible. Reinventing Social
Emancipation. London: Verso, 2006.
125 ESCOBAR, Arturo. Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. London:
Duke University Press, 2008, p. 12.
Godofredo Pereira
quando desenha bancos de rua, uma fonte e até um comboio de recreio, percebe-se que a Bahia que tinha em mente não era a de um museu histórico, mas a da
sua vida local. Tentando dinamizar as formas de comércio e expressão popular,
torna-se evidente que orientando a prática da arquitectura para uma atenção aos
modos de vida dos seus habitantes, se abre a possibilidade para que outras subjectividades e formas de praticar o espaço possam também ter lugar. Se a arquitectura
e as práticas espaciais intervêm num território que é existencial, então este tem de
necessariamente ser também entendido enquanto colectivo.
Devir-menor não é que não um processo de territorialização que opera
a partir das margens dos discursos dominantes, que se alimenta das condições
geradas, forçosamente, pelo habitar de zonas de fronteira. Daí a sua proximidade
ao feitiço, a esses objetos naturalmente fronteiriços, em si mesmos arquivos de
constantes encontros. Mas é também o assinalar de uma possibilidade, constitutiva de imaginar vidas possíveis. E aqui a obra de Lina é exemplo maior de uma
imaginação constante e lutadora. Exemplo de que é possível fazer arquitetura
com as pessoas, com os seus mitos, as suas práticas e as suas lutas. Sempre atenta ao quotidiano na sua dimensão mais alargada, Lina defendia uma arquitetura
enquanto processo, não abdicando das conquistas da modernidade, mas retirando
daí ilações que lhe são menos reconhecidas: que viver e habitar são demasiadamente importantes para serem de exclusiva responsabilidade dos arquitetos,
promovendo o realizar da arquitetura, enquanto construção coletiva do território,
como uma luta por direitos e por justiça.
Referências
GUATTARI, Félix. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.
ESCOBAR, Arturo. Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. London: Duke University Press, 2008.
LATOUR, Bruno. On the Modern Cult of the Factish Gods. Durham: Duke University
Press, 2010.
OLIVEIRA, Olivia de. Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barcelona: Gustavo Gili, 2006.
PIETZ, William. The Problem of Fetish I. RES – Anthropology and Esthetics, 1985,
n. 9: 5-17.
___. The Problem of Fetish II. The Origin of Fetish. RES – Anthropology and Esthetics, 1987, n. 13: 23-45.
151
152
ARqUITETURA,FEITIçOETERRITóRIO
___. The Problem of Fetish IIIa. Bosman’s Guinea and the Enlightenment Theory of
Fetishism. RES – Anthropology and Esthetics, 1988, n. 16: 105-123.
SANTOS, Boaventura Sousa. Another Production Is Possible. Reinventing Social
Emancipation. London: Verso, 2006.
STENGERS, Isabelle. Cosmopolitics II. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2011.
TAUSSIG, Michael. Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. California: Stanford University Press, 1999.
Godofredo Pereira é arquiteto formado no Porto. Realizou o mestrado na Bartlett
School of Architecture e é actualmente doutorando no Centre for Research Architecture na Goldsmiths, University of London. A sua investigação “Feiticismo Territorial” debruça-se sobre o
papel da tecnociência na reconiguração de conlitos políticos e epistemológicos em torno ao
território. É professor de História e Teoria no MArch Urban Design na Bartlett School of Architecture. É editor do livro Objetos Selvagens/Savage Objects (INCM, maio 2012) e organizador
de vários seminários entre os quais se destacam Objectos, Práticas e Territórios (Capital Europeia da Cultura, Guimarãoes 2012) e Devil’s Advocate (Forensic Architecture, Londres, 2013).
LUGARCOMUMNº41,pp.153- 169
Abertura
Trilogia da Terra
Paulo Tavares
Entre 1979 até o ano de sua morte em 1992, Félix Guattari viajou sete
vezes ao Brasil. Também esteve na Palestina, Polônia, México, Japão. “Talvez seja
isso que estou buscando com tanta viagem nos últimos tempos” – disse durante uma
de suas visitas ao país –, “será que existe um povo desterritorializado que atravessa
esses sistemas de re-territorialização capitalística?”126 O Brasil passava por uma
transformação radical nos anos 1980. Deixava para trás 20 anos de ditadura militar
em direção à abertura política. 1979 foi o ano da anistia e o início do retorno ao
multipartidarismo. Em 1982 ocorrem as primeiras eleições diretas para governos
regionais. Dois anos depois uma ampla campanha pelas eleições diretas à presidência da república mobilizaria o país inteiro. Mas apenas em 1989, meses depois da
promulgação da nova Constituição de 1988, é que a população iria às urnas para
eleger o presidente pela primeira vez desde o Golpe Militar de 31 de março de 1964.
Além das transformações macro-políticas no aparelho estatal que sustentava o regime, o Brasil dos anos 1980 foi marcado por um intenso processo
de formação de agenciamentos micro-políticos e abertura de novos espaços de
contestação nos mais diversos setores da sociedade. Uma vez que os canais tradicionais da esquerda como sindicatos, diretórios estudantis, ligas camponesas,
associações proissionais etc. haviam sido suprimidos ou esvaziados pela brutal
repressão imposta pelo governo militar, durante a década de 1970 houve um reluxo da dissidência em direção à espaços menos formais de representação e organização popular. Grupos “minoritários” e diferentes movimentos sociais, com
distintas agendas e formas de atuação, começam paulatinamente aparecer na cena
pública, engendrando a formação de novos sujeitos políticos e a articulação de
subjetividades resistentes à lógica autoritária que era cultivada pelo regime. Na
década de 1980, estes espaços e sujeitos e subjetividades vieram à tona como uma
potência transformadora que então parecia incontornável. Foi justamente esta dimensão menor das convulsões na realidade política do Brasil, ou melhor – e para
ser mais preciso –, foi esta concatenação do processo de re-estruturação político126 GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartograias do desejo. São Paulo:
Editora Vozes, p. 375
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ABERTURATRILOGIADATERRA
-jurídica do aparelho de Estado e a intensiicação de processos micro-políticos de
re-democratização que mobilizou as paixões e viagens de Guattari pelo país durante este período. “O que me parece importante no Brasil” – ele declarou durante
um debate promovido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 1982 na cidade de
São Paulo – “é que não vai ser depois de um grande movimento de emancipação
das minorias, das sensibilidades, que vai se colocar o problema de uma organização que possa fazer face às questões políticas e sociais em grande escala, pois isto
já está sendo colocado ao mesmo tempo”127.
Estes e outros registros da viagem de 1982 foram transcritos e compilados por Suely Rolnik no livro Micropolítica: cartograias do desejo, publicado
no Brasil quatro anos mais tarde128. Entre agosto e setembro daquele ano, acompanhado por Rolnik, Guattari deambulou por cinco regiões do país, seguindo um
intenso calendário de encontros, conferências, entrevistas, mesas redondas e conversas formais e informais com diversos grupos, movimentos, organizações e indivíduos que, conforme escreve Rolnik, “institucionalizados ou não, constituíam
naquele momento subjetividades dissidentes”129.
Este talvez seja o único registro das sete viagens que Félix Guattari fez
ao Brasil durante os últimos 14 anos de sua vida que Suely Rolnik menciona
na introdução de Micropolíticas. Observado com olhos contemporâneos, o livro
converteu-se em um documento histórico, não apenas porque as falas de Guattari,
capturadas no luxo das conversas e encontros, prestam testemunho da sua verve
criativa e engajamento político, mas também porque percorrendo a cartograia
de Micropolíticas é possível acessar o exato momento de abertura para um movimento de transformação histórica que parecia se anunciar. Isto é, para além do
processo formal de ‘Abertura’, percebe-se que, naquele momento, e a despeito do
‘im da esquerda’ e do ‘im da história’ que alguns projetavam com a derrocada
inal do bloco comunista e consolidação da hegemonia geopolítica do Império
Norte Americano, era possível imaginar outros espaços que não se alinhavam
com a ordem neoliberal que estava sendo implementada. O Brasil dos anos 1980
parecia incubar aquilo que Félix Guattari chamava de “Revolução Molecular”130.
Como se sabe, este momento de abertura, que marcou não apenas o Brasil
mas grande parte dos países da América Latina que foram comandados por regi127 Micropolíticas, p. 195.
128 Micropolíticas foi recentemente traduzido para o ingles sob o título de Molecular
Revolution in Brasil, MIT 2008.
129 Micropolíticas, pg. 16
130 GUATTARI, Félix. La révolution moléculaire. Fontenay-sous-Bois: Recherches, 1977.
Paulo Tavares
mes autoritários durante a Guerra Fria, logo se fechou no longo pesadelo neoliberal. Apenas no inal dos anos 1990 e início dos anos 2000 é que houve uma reação
à este “fechamento”, quando vários países do continente passaram novamente por
grandes convulsões políticas que redirecionaram as regras do jogo à esquerda.
É por isso que, no prefácio à nova edição Brasileira publicada em 2007, Suely
Rolnik escreve que Micropolíticas “ganhou uma dimensão de registros de pistas
para uma genealogia do presente”, e não apenas do momento presente em contexto Latino Americano, mas em escala mundo, uma vez que hoje, por toda parte
do globo, o projeto neoliberal dá sinais de completo esgotamento, principalmente
nos centros do capital inanceiro do Ocidente, no lugar mesmo onde foi elaborado.
Passados cerca de 30 anos desde sua publicação original e, fundamentalmente, após o Brasil ter vivenciado as “jornadas de junho” de 2013, a situação mudou de maneira radical. No atual contexto, a releitura deste registro histórico talvez
seja ainda mais relevante, pois carrega consigo uma memória viva que pode lançar
novas bases para se pensar o presente político. Sem nostalgia, rumo às novas “aberturas” escancaradas pela multidão que veio para ocupar as ruas de nossas cidades.
O projeto Abertura (trilogia da terra) – um vídeo instalação que parte da
leitura dos registros da viagem de Guattari em 1982 para pensar os desdobramentos urbanos e territoriais do processo de re-democratização no Brasil. Observados
desde o ponto de vista espacial, os agenciamentos micro-políticos articulados durante os anos 1980 são mapeados em três escalas – urbana, agrária e territorial –,
cada uma delas marcada pelo surgimento de formas de “re-des-territorialização
dissidentes”. Assim como Guattari o izera, durante o mês de abril de 2012, junto
com o arquiteto André Dalbó, membro do coletivo de arquitetos Grupo Risco131,
e o advogado Anderson Santos, integrante da Rede Nacional de Advogados Populares, viajei de sul à norte do Brasil para realizar uma série de conversas com
personagens que foram ativos durante o processo de abertura política. Tomando
como inspiração o registro-colagem elaborado por Suely Rolnik em Micropolíticas, trechos destas conversas seguem transcritas abaixo, organizadas de acordo
com o diagrama escalar que formata o projeto.
Em escala urbana, conversamos com Ermínia Maricato, uma das principais protagonistas do movimento de “reforma urbana” durante o processo de
re-democratização. Em escala agrária, a conversa foi com Darci Frigo, advogado
que desde os anos 1980 trabalha com a defesa dos direitos humanos de camponeses envolvidos em conlitos pela terra. Por im, izemos uma conversa com
o jurista Carlos Marés, uma autoridade em direitos territoriais indígenas e ator
131 http://www.gruporisco.org
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ABERTURATRILOGIADATERRA
central no processo de elaboração da nova constituição Brasileira de 1988 que,
pela primeira vez, reconhece por lei que os povos indígenas gozam de direitos
de autonomia sobre seus territórios originários. Observadas em conjunto, esta trilogia revela que no centro da ‘revolução molecular’ do Brasil encontrava-se a
abertura de um antigo nó colonial – a terra – nó górdio que até hoje, a despeito
das promessas lançadas nos anos 1980, continua sendo a base de sustentação de
um sistema excludente e desigual.
Paulo Tavares
TERRA: ESCALA: URBANA
Ermínia Maricato: No início dos anos 1960, nós tivemos no Brasil uma mobilização da sociedade em torno de propostas de reforma. A principal delas era a
reforma agrária. Por que é que eu digo que é a principal? Era a principal não só
do ponto de vista do travamento do desenvolvimento econômico e social do país,
mas também porque era a que tinha maior apoio da população, de organizações
sindicais e sociais. E nós tivemos o início da proposta de reforma urbana, que foi
articulada em 1963 num encontro de arquitetos na cidade de Petrópolis, no hotel
Quitandinha.
A reforma urbana signiicava o quê, em 1964?
Era principalmente a questão da distribuição de terra urbana. É preciso
entender a conjuntura: nós estávamos numa época de avanços, de libertação na
América Latina, não é? E muitos arquitetos estavam voltando de Cuba, de onde
trouxeram essa ideia de que é preciso expropriar a terra, libertar a terra de um jogo
de privatização. A terra sempre foi no Brasil, e na América Latina como um todo,
mas no Brasil parece que é uma característica muito forte, o nó que permeia as relações de poder político, econômico e social. Todos esses movimentos que pretendiam reformas profundas no país deram num beco sem saída na Revolução de 64.
Devido à urbanização e industrialização acelerada da década anterior,
no início dos anos 1960 o Brasil passava por um forte processo migratório campo-cidade, levando ao inchamento das periferias, extrema carência habitacional
e falta de infra-estruturas adequadas para acomodar a população migrante. Os
arquitetos então começaram a debater e elaborar temas e propostas que visavam
orientar as políticas públicas para o que icou conhecido como “Reforma Urbana”, isto é, uma série de diretrizes que propunham contornar a precária situação
de moradia da classe trabalhadora nos centros urbanos, alterando o balanço da
concentração de terra nas cidades. O ponto alto desta articulação foi marcado
pelo Seminário de Habitação e Reforma Urbana – SHRU, organizado pelo Institutos dos Arquitetos do Brasil (IAB) em julho de 1963, no Hotel Quitandinha no
Rio de Janeiro, e dias depois na sede do IAB de São Paulo.
A proposta de Reforma Urbana fazia parte de amplo espectro de transformações estruturais da sociedade brasileira que ganhavam força com o governo trabalhista de João Goulart. Conhecidas como “reformas de base”, estas
medidas reuniam um conjunto de iniciativas no setor inanceiro, iscal, adminis-
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ABERTURATRILOGIADATERRA
trativo, urbano e, principalmente, a questão da reforma agrária. Em larga medida, a deposição de Goulart pelo Golpe Militar de 1964 foi uma resposta para
bloquear este processo de mudança da estrutura política e territorial que estava
em curso no Brasil.
EM: Depois da cassação e da prisão dos arquitetos, passa um certo tempo e surge
o que eu chamo de uma nova escola de urbanismo no Brasil. É uma ‘corrente’
que vai-se associar aos movimentos sociais, que vai desvendar a cidade real, que
vai tirar esse véu, essa invisibilidade e mostrar o tamanho daquela cidade ilegal.
Essa escola de urbanismo recupera muito da reforma pré-64. Eu particularmente
entrei nesse movimento de retomar a proposta de reforma urbana a partir de um
convite da Comissão Pastoral da Terra132, em 1979, que dizia “olhe, nós estamos
sendo procurados por movimentos urbanos e nós não temos essa capacidade de
lidar com o rural e o urbano, nós achamos que é necessário uma esfera dos movimentos urbanos”.
Com o violento processo de urbanização dos anos 1960 e 1970 a cidade se
torna um grande palco político de reivindicação
EM: A cidade começa a apresentar movimentos novos no Brasil. Na luta contra
a ditadura nós tivemos algumas vitórias, nós tivemos o crescimento dos movimentos populares, o crescimento dos movimentos sindicais, a criação da CUT133,
a saída dos partidos que estavam clandestinos para a legalidade, a criação do PT.
Havia a pastoral operária atuando nas periferias, movimentos de bairro etc. Nós tínhamos também os movimentos sociais avançando muito. E nós tivemos a eleição
de gestões municipais de um novo tipo, que começa a implementar, com a ajuda
dessa nova escola de urbanismo, políticas que incorporavam a participação social
e incorporavam o que chamávamos de ‘inversão das prioridades’, isto é, tentar
resolver esta cidade invisível, dar cidadania para quem não tem. As prefeituras
132 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu durante o Encontro Pastoral da Amazônia,
organizado pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) na cidade de Goiânia em
junho de 1975. A CPT teve um papel fundamental na luta pela distribuição da terra e melhoria
das condições de vida dos camponeses durante a ditadura militar, e tornou-se um dos principais
espaços articuladores da abertura política.
133 A Central Única dos Trabalhadores (CUT), entidade que reúne os sindicatos e associações
trabalhistas no Brasil, foi fundada em 1983 durante o 1º CONCLAT – Congresso Nacional da
Classe Trabalhadora, que foi realizado na cidade de São Bernardo do Campo, região industrial
da cidade de São Paulo, palco central da luta operária na década de 1970/1980.
Paulo Tavares
agiam de uma forma nova, na contramão do que vinha da Europa, da Barcelona
Olímpica, dessa coisa da arquitetura espetacular, do urbanismo do espetáculo... do
im da esquerda, não é?
Quando eu assumi a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano
(em São Paulo), a secretaria era virada para a cidade legal, ela tinha um bracinho
lá que tratava das emergências, mas as emergências estavam cada vez mais frequentes, não dava para enxergar mais aquilo como emergência. Nós izemos uma
reversão dentro da secretaria. O que era um apêndice voltado para as pessoas que
icavam sem casa com as enchentes, com os incêndios nas favelas, com as áreas
de risco que desmoronavam, com aquele crescimento impressionante de favelas,
isso se tornou o eixo da ação. Era necessário que a gente tratasse a exceção como
regra. Essa era a nossa diiculdade, aliás, essa é a diiculdade até hoje.
Eu queria conversar sobre essa ideia de participação. Durante a Abertura, há
uma demanda por novos espaços organizacionais, uma espécie de micropolítica dos novos movimentos sindicais, as pastorais, os movimentos de bairro,
e de luta por terra no campo e na cidade. Novos fóruns estão surgindo, novas
maneiras de participação popular, novos espaços políticos. E de repente a
participação entra no centro do discurso da virada neoliberal.
O consenso de Washington é fechado em 1989. Aí é formalizada a receita
neoliberal. Durante os anos 1980, não vamos nos esquecer, há uma diiculdade
em ter recursos para investir, o sistema de inanciamento da habitação, o sistema
de inanciamento do saneamento, toda a política que era ligada aos transportes
urbanos (o governo federal durante a ditadura teve uma empresa nacional voltada
à política de transporte urbana, coisa que nós não temos novamente até hoje) etc.
– tudo isso recua. Inicia-se uma marola que depois se transformou num tsunami
que nos afogou literalmente. E é interessante que a esquerda foi crescendo no
campo institucional e caindo no campo da mobilização social. Eu acho que o im
do ciclo implica nisso.
No meu artigo eu escrevi ‘nunca fomos tão participativos’134. Lembro
em uma mesa em Vancouver, no Canadá, durante um fórum urbano mundial, a
diretora do Banco Mundial fez um discurso emocionado a favor da participação
da ação social na esfera pública. Então há um período de ascensão da esquerda,
porque o capitalismo tem uma lógica que é de uma inteligência impressionante,
134 Ermínia Maricato, Nunca fomos tão participativos, disponível em: http://www.cartamaior.
com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774
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ABERTURATRILOGIADATERRA
ele abre espaço para a esquerda no campo institucional, muita liderança sindical e
popular entra nesse espaço, se elege ou se emprega nas administrações públicas,
nos gabinetes de políticos e realmente existe um declínio da capacidade ofensiva
e do poder de ação que os movimentos sociais tinham. E foi com a chegada do PT
no poder federal que esse ciclo se completa.
A institucionalização se completa, e a situação realmente ganha uma qualidade nova. Mas as políticas não estão melhorando em vários aspectos. Algumas
estão, sem dúvida. Eu acho que tirar 13 milhões de pessoas do nível de indigência
não é pouca coisa. Mas na área que eu conheço bem, a política urbana, nós estamos caminhando para uma regressão fortíssima. O centro dessa regressão está
relacionado com a terra. Desde 1963, quando surgiu a reforma urbana, nós não
mudamos o chão. Nós tivemos muito avanço institucional, nós ganhamos uma
constituição que fala das cidades, nós ganhamos o Estatuto da Cidade 13 anos
depois, que era o que os juristas queriam para regular a constituição e para se poder aplicar a função social da propriedade... mas que nós não estamos aplicando.
Nós não mudamos o chão, a base, a raiz do que é a política urbana, que é uso e
ocupação do solo.
Você sempre volta para a questão da terra...
Sempre. É a base… mas com a globalização este nó que era central no período colonial, imperial, republicano, ganha uma nova qualidade. Hoje você vê países
comprando terras na África de maneira brutal... o fato é que a terra adquire novos
aspectos, ela continua sendo um nó, mas é um nó diferente, no campo e na cidade.
Paulo Tavares
TERRA : ESCALA : AGRÁRIA
Darci Frigo: O capital se territorializou. A terra, as commodities, agora a produção de bio-massa... são elementos centrais para a reprodução do capital. Na
década de 1980 as pessoas diziam “o campo está icando para trás, um lugar do
passado”. Que nada! Hoje o campo é o centro da disputa do capital. A cidade é
onde as pessoas estão, mas a disputa está no campo.
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ABERTURATRILOGIADATERRA
Como você se envolveu nesta disputa?
Eu sou ilho de camponeses, vivi a década de 1970 no campo. Em 1975
entrei num Seminário para fazer os estudos do primeiro grau, e segui nessa trajetória religiosa. Em 1982 eu encontro a Teologia da Libertação, quando estava aqui
no norte do Paraná, e nós começamos a ter acesso a algumas bibliograias que
eram críticas em relação à própria Igreja. O livro mais importante que eu li nesse
período foi “Caminhando se abre caminho” de Arturo Paoli, um padre italiano que
estava aqui no Brasil. É um livro muito denso, muito crítico em relação à própria
Igreja. Este livro despertou um outro sentido em relação à proposta para a vida
religiosa e o futuro que ela poderia ter.
O segundo momento desse processo aconteceu em 1984. Eu vim para
Curitiba iniciar os estudos em ilosoia, ainda na vida religiosa, e descobri que
tinha um centro de direitos humanos sendo fundado por um grupo de Pastoral
Universitária da Universidade Estadual de Ponta Grossa que estava ligado à Teologia da Libertação. Esse grupo se colocou como desaio formar um centro de
defesa dos direitos humanos para enfrentar os problemas ainda ligados à ditadura
militar, mas também outros problemas que estavam acontecendo na sociedade.
Ainda ano de 1984, chega um abaixo-assinado no centro de direitos humanos em
favor do Leonardo Boff, que estava sendo submetido a um silêncio obsequioso
pela congregação da doutrina da fé, conduzida pelo Papa anterior, o Ratzinger.
Um frei, que inclusive é meu parente, dizia: “o problema é que existem
umas freiras e uns padres que se descaracterizaram completamente, não tem mais
nem a identidade religiosa, viraram comunista, estão muito envolvidos com os
movimentos sociais, então tem os excessos”. Este era o discurso para descaracterizar o propósito da Teologia da Libertação.
Neste ano eu iz minha primeira missão relacionada com o tema de terra
e essas questões de direitos humanos. Havia uma ameaça de despejo dos sem-terra que estavam ocupando o Cavernoso. Eu nem sabia da existência do MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Havia a ameaça de despejo
deste grupo destas terras e me falaram: “o exército quer despejar os sem-terra e
você tem que ir lá falar com o Bispo de Guarapuava e dizer para o ele falar para o
general para não mandar as tropas tirarem os sem-terra de lá.”
Um dos setores que sofreram maior repressão após o Golpe de 1964
foram as ligas camponeses que haviam se formado na década de 1950, principalmente no Nordeste do país, que então viviam um momento de intensa mobilização política pela redistribuição da terra. Lideranças foram presas, assassinadas
Paulo Tavares
ou levadas ao exílio, e grande parte do movimento foi desarticulado. A questão
agrária voltaria com toda força durante o processo de abertura nos anos 1980.
Uma das principais organizações neste processo foi a Comissão Pastoral da Terra, um braço da Igreja Católica que atuava junto aos camponeses sem-terra por
justiça social no campo. O envolvimento de padres, bispos, freis, freiras e ativistas ligados à igreja em lutas sociais teve como pano de fundo uma re-articulação
radical do discurso e prática da Igreja Católica na America Latina nos anos
1960 e 1970 através da Teologia da Libertação, uma vertente de teologia (política) critica que nasceu da necessidade de aproximar a leitura do evangelho à
realidade desigual que permeava todo o continente, e direcionar a ação pastoral
para a transformação desta realidade. O termo foi originalmente cunhado pelo
padre peruano Gustavo Gutiérrez no livro A teologia da Libertação, publicado
em 1978, e contou com outros expoentes como Jon Sobrino em El Salvador, Juan
Luis Segundo do Uruguai e, no Brasil, o frei Leonardo Boff. Na conluência da re-articulação do ativismo da ala progressista da Igreja Católica e o ressurgimento
das organizações camponesas é que vai surgir o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra do Brasil, o MST, fundado oicialmente em 1984.
O MST inicia-se com formas táticas de ocupação: não havia o direito à terra,
portanto você vai lá ocupar até que esse direito seja implementado. Como
você enxerga a dimensão política desta prática?
O aspecto político e ético foi sendo construído no processo de inserção
nos debates da própria Teologia da Libertação, com a ideia de que os pobres tinham direitos e que os pobres precisariam lutar por esses direitos, e portanto era
preciso fazer ações para conquistar estes direitos porque não bastava esperar o
Estado. Havia uma situação insustentável do ponto de vista ético que era a distribuição da terra. A ocupação de terra vinha como uma resposta a um direito legítimo que os trabalhadores tinham de acessar à terra. E o argumento era esse, de que
era insuportável que metade da terra agrícola do Brasil estivesse na mão de 1% da
população. A ideia de que a gestão desse patrimônio que devia ser coletivo, partilhado, era fundamental e nunca foi posta em dúvida em relação a esse processo.
Do ponto de vista legal, nós começamos a trabalhar o aspecto do reconhecimento desse direito a partir do que se colocava como uma dívida que devia
ser resgatada pelas populações negras, indígenas, camponesas que historicamente
nunca tiveram esse direito. A Constituição de 1988 consagrou o princípio da função social da terra, e essa função social sempre foi colocada como uma questão
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ABERTURATRILOGIADATERRA
importante, não é só o direito de propriedade, é o direito de acessar a terra, uma
possibilidade de você ter um outro futuro.
Há uma relação muito diferente entre a terra e a territorialidade do latifúndio, agora do agronegócio, com a relação terra-territorialidade do pequeno
agricultor, do camponês. Como você vê essa diferença, e como você interpreta essa organização espacial e territorial dentro do MST?
Na Comissão Pastoral da Terra havia um debate – eu me inseri na comissão
pastoral da terra em 1986 –, sobre terra de trabalho e terra de negócio. A terra de
trabalho era a terra do camponês, do indígena, do quilombola, do poceiro, terra legítima pelo uso que você faz dela. A terra do agronegócio é uma terra para você tirar
lucro. Como dizia uma das criadoras do conceito do agroecologia, a Ana Primavesi,
o agronegócio trata a terra como um cadáver, mata a terra, trata a terra como um
objeto puro e simples. Já os camponeses e as populações tradicionais, indígenas ou
quilombolas, tratam a terra numa outra perspectiva, mais espiritual, mais cultural.
Eu aprendi esse processo na convivência com as pessoas que viviam especialmente no Nordeste e no Norte do país. Porque para nós no Sul, apesar de
termos participado dos movimentos em torno da Teologia da Libertação, a formatação da nossa cultura é baseada no paradigma que separa a terra como apenas
objeto de produção, um projeto econômico. Só com o tempo e com a relação com
esses outros grupos e vendo outras formas de você cultivar a terra, e especialmente a relação com a loresta, é que a gente foi mudando a visão.
No livro As monoculturas da mente135, Vandana Shiva faz uma leitura
de como o cristianismo vai sedimentar todo o processo de colonização segundo
o qual a Natureza é inimiga de todos esses que se colocam contra o progresso, e
como isso legitimou uma grande violência contra certas populações em todo o
mundo. A Natureza aparece como aquilo que você limpa porque a terra limpa é o
lugar do cultivo. Do ponto de vista mais ligado a Teologia da Libertação, o debate
sobre a “ética do cuidado” que o Leonardo Boff e outros teólogos vão captar a
partir do modo de viver das comunidades indígenas teve um impacto importante.
Essa troca de experiências, de “in-culturação”, foi muito importante para toda
uma geração de militantes.
135 SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente. São Paulo: Gaia, 2003.
Paulo Tavares
TERRA : ESCALA : TERRITÓRIO
Carlos Marés: Quando eu estudava Direito nos anos 1960, a questão da antropologia era uma questão que se discutia. O Brasil começava a pensar que era latino-americano. E quando a gente começa a discutir a questão latino-americana, os
índios começaram a aparecer. Embora o movimento de esquerda não tinha tanta
consciência da questão indígena, as questões de antropologia apareciam como
teoria.
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Quando saí do Brasil para o exílio no Chile fui conviver com um ambiente latino-americano muito mais caracterizado. E embora as esquerdas latino-americanas não fossem marcadamente indígenas, isso aparecia no Chile, e também
aparecia no Peru, na Bolívia. E quando você entra por essa via, todos os processos
históricos da América Latina sempre esbarram por alguma coisa indígena. Por
exemplo, qual é o grande movimento de independência no Peru? Não é a chegada
do movimento pelas tropas de San Martín, pelo Sul, e do Simon Bolívar, pelo
Norte. O grande momento foi o movimento indígena que começa em 1870. A
revolução mexicana de 1910 é uma revolução que nasce de um índio, que é o Zapata. E toda a questão do Zapata se alçar numa revolução é uma questão territorial,
indígena-camponesa. O Zapata é o guardador dos documentos que legitimam a
propriedade da comunidade. Outro grande marco é a revolução boliviana, de 1952.
Diz que foram os mineiros. Bom, os mineiros são índios. Mais de 70% dos mineiros são índios, eu acho que chega bem perto de 100%. E os camponeses juntos.
Ora, os camponeses também são índios. Portanto, são os índios que se rebelam em
1952 e fazem uma revolução. As recentes marchas dos mineiros na Bolívia, elas
são marchas de índios... Por que é que isso não é explícito? Você começa a dar-se
conta que na América Latina há essa exclusão, essa invisibilidade dos índios.
Na minha volta do exílio no inal de 1979 havia já uma ebulição de um
movimento indígena já estava a começar a existir, formada principalmente por alguns índios intelectualizados que começavam a estruturar uma organização pan-indígena desde as cidades. Essa organização se chamou União das Nações Indígenas
(UNI). Tinha um nome pretensioso, aliás muito pretensioso, porque era um grupo
pequeno de índios intelectualizados, cuja relação com as suas etnias não era uma
relação muito simples porque eles não eram propriamente os líderes tradicionais.
Pois bem, eu me vinculei a eles trazido pelos antropólogos, e como não tinha muita
gente no direito que trabalhasse essa questão, ao contrário, não tinha ninguém, eu
praticamente fui levado a trabalhar com o movimento indígena por contingências.
Durante a década de 1970, ignorando a existência das populações e territórios indígenas, o regime militar implementou um violento projeto de colonização na Amazônia. Pretendia-se sobrepor toda a bacia do Rio Amazonas com
uma matriz urbana de proporções continentais, formada por uma série de enclaves extrativistas, interligados por linhas expressas de comunicação e transporte.
Nas margens dos corredores rodoviários, o governo promoveu programas de re-assentamento dos camponeses desterrados pelas fronteira da soja e do latifúndio
pecuário com o intuito de ‘absorver’ os efeitos políticos dos conlitos de terra que
Paulo Tavares
se davam em outras partes do país, principalmente no Nordeste e no Sul. “Uma
terra sem gente para uma gente sem-terra”, foi como o General Garrastazu Médice descreveu a Amazônia em 1970.
No inal dos anos 1980, o processo de desmatamento desencadeado por
este “desenho territorial” estava totalmente fora do controle. A loresta então
tornou-se num espaço por onde se reuniram vozes dissidentes à lógica destrutiva
gestada durante a ditadura. Dois momentos foram especialmente marcantes neste período: a luta dos seringueiros no território do Acre, extremo oeste da Amazônia, e o surgimento das organizações indígenas que lutavam pela defesa de seus
territórios. Um dos resultados mais expressivos deste processo icou registrado
na nova Constituição Brasileira de 1988, que legitima e garante o direito dos
povos indígenas à autonomia cultural e territorial.
Como foi a discussão em torno da questão indígena no momento da Constituição de 1988?
A participação dos indígenas na Constituição foi muito grande, foi muito
forte. Os indígenas se organizaram para isso. Claro que quando a gente fala nos
indígenas brasileiros é preciso ter em conta que são 220 povos. Desses 220, uma
boa parte não tem sequer ideia de que existe estado nacional, não tem ideia. Então,
está vivendo a sua vida e está muito bem. Então quando dizemos que os movimentos indígenas se mobilizaram, foram alguns povos, os mais próximos, mas
alguns muito poderosos, como os Kaiapó, por exemplo. Os Kaiapó tiveram uma
presença na Constituinte muito forte. Seria muito difícil nós termos um artigo 231
na Constituição se não houvesse a presença indígena.
O artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 estabelece que “são
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”.
A Constituição de 1988 abre uma ideia de autonomia territorial para os índios impensável no dia anterior.
As constituições é que constituem um Estado Nação. O Estado Nação
nasce com as constituições. Portanto, a ideia é que só quando estivesse um rompimento na constituição é que o Estado Nação estaria modiicado. A convenção
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169136, que é anterior à Constituição, diz que existem pequenos ou grandes grupos dentro das nações que devem ser respeitados como grupos diferenciados. A
Constituição de 1988 assume muito claramente essa posição, dizendo que esses
povos têm o direito a continuar a existir como povos, os seus direitos são direitos
da sua organização social, da sua cultura etc., tudo isso ligado por um território. A
constituição brasileira é a primeira, mas não é a única. Praticamente todas as constituições latino-americanas desta época seguem essa linha. Há um rompimento, a
Constituição Brasileira de 1988 rompe com uma tradição... Por isso é que se diz
“neo-constitucionalismo sul-americano”.
Isto é uma ruptura, mas é também um problema. Porque todos esses direitos estão ligados a um território, são direitos territoriais. Então se você não
consegue localizar esses direitos dentro de um território determinado você exclui
a possibilidade de eles serem exercidos. A questão territorial é uma questão, digamos assim, prevalente na deinição de um povo. A gente discutia coisas como se é
possível existir povo sem território? Claro que é possível, olhem para os ciganos,
por exemplo... Pois bem, sendo as coisas como são, com a Constituição de 1988
alguns povos começaram a retomar a busca pelo seu território. Mas que território?
Onde é que está? Então recomeçam a retomar a busca pela sua identidade cultural,
antes de mais nada. E a partir da identidade cultural, qualquer lote de terra, qualquer pedacinho de terra passa a ser o território.
Pois quem está fora do território, não teria estas garantias jurídicas. Esta é
uma interpretação rasa, porque a interpretação mais complexa seria agir segundo
a necessidade de se restituir esses territórios, reconstituí-los, reorganizá-los. É um
processo de organização territorial. Não é pegar o mapa como está hoje. Entretanto, todas as decisões são nesse sentido, de consolidar o mapa como está hoje.
O pensamento mais conservador não consegue admitir a ideia de haver
território indígenas dentro de um Estado-nação...
Porque o Estado tem que restringir o seu próprio controle sobre uma parte
do território...
Tem que restringir o controlo porque tem que restringir o controlo sobre
aquele povo. Lá é outra história, lá não podem dizer como é que vocês casam, não
pode dizer como é o contrato o casamento. Aliás, não diz numa favela, quanto
136 Aprovada em 1989, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, oicialmente
chamada de Convenção dos Povos Indígenas e Tribais, é o primeiro instrumento legal internacional
que trata especiicamente dos direitos dos povos indígenas e tribais à suas terras originárias.
Paulo Tavares
mais num território indígena. Enim, lá o Estado não pode impor o contrato. Em
alguns lugares do Brasil a sociedade hegemônica não é a sociedade capitalista
branca. Por exemplo: no Alto Rio Negro a maioria da população é indígena. Uma
cidadezinha chamada Araweté não tem nenhum branco e falam-se sete línguas diferentes. O que é Araweté? É nação brasileira? Não, é território brasileiro apenas
porque está marcado no mapa. E não estou falando de um Portugal, é um território
imenso. Estou falando de Portugal, Espanha e um pedaço da França juntos.
Um grande território que não é um território hegemônico.
Referências
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartograias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
GUATTARI, Felix. La révolution moléculaire, Fontenay-sous-Bois: Recherches,
1977.
___. Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1987.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola,
1978.
PAOLI, Arturo. Caminhando se abre o caminho. Trad. Guido Piccoli. São Paulo: Ed.
Loyola, 1979.
SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gaia, 2003.
Textos da internet
MARICATO, Ermínia. Nunca fomos tão participativos. Disponível em:<http://www.
cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774>. Acesso em: 12
dez. 2013.
Paulo Tavares é um arquitecto e urbanista formado no Brasil. Lecionou na Universidade London Metropolitan, no Laboratório de Culturas Visuais/ Mestrado em Teoria de Arte
Contemporânea – Goldsmiths, e desde 2008 lecciona no programa de Mestrado no Centro para
Investigação em Arquitetura – Goldsmiths. No Brasil, paralelamente às suas actividades como
investigador/arquitecto, Tavares esteve envolvido com muitas práticas autónomas dos meios
de comunicação desde o inal dos anos 1990. Como resultado a sua prática combina a análise
arquitectónica, cartograias baseadas em meios de comunicação e escrita como modalidades
interconectadas de leitura espacial/condições ecológicas.
169
LUGARCOMUMNº41,pp.171- 184
ACidadeMultiforme:
OcasodoIndoamericano
137
Atelier Hacer-Ciudad
Colectivo Situaciones138
Em dezembro de 2010, teve lugar uma ocupação maciça e em princípio inesperada do Parque Indoamericano, na Zona Sul de Buenos Aires. O Indoamericano é um dos rostos menos visitados da cidade. Talvez porque nele não se
relecte nenhuma das mensagens retóricas que ambicionam captar o espírito de
uma cidade que oicialmente se apresenta como aberta ao turismo, santuário da
cultura, meca do cosmopolitismo, cadinho de raças, além de sede de amabilidade
cívica e laboratório de criatividade política. Encontramos neste fragmento cru da
vida urbana chaves para a compreensão do que existe, e do que poderia existir.
O presente e os seus possíveis. Os episódios violentos que marcaram a desocupação do Parque Indoamericano conjugam num só movimento a procura de terra
e habitação ao mesmo tempo que a dinâmica da valorização imobiliária; a acção
directa das massas ao mesmo tempo que operações “punteriles”139; o racismo que
137 O texto que se segue é a versão ligeiramente modiicada de algumas páginas que compõem
Vecinocracia. (Re)tomando la ciudad, investigação levada a cabo pela oicina Hacer-Ciudad,
que funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires (casa autogerida por grupos e colectivos
múltiplos e diversos). Fazemos parte da oicina pessoas que participam ou participaram numa
ou em várias experiências de investigação e acção colectivas (Colectivo Situaciones, Simbiosis
Cultural, Observatorio Metropolitano, Raíces al viento, No damos cátedra, Juguetes Perdidos,
cadeiras universitárias alternativas etc.). Vecinocracia. (Re)tomando la ciudad foi editado por
Retazos / Tinta Limón, Buenos Aires, dezembro de 2011.
138 Traduzido do espanhol por Miguel Serras Pereira
139 Adjectivo formado a partir de puntero. “Os punteros são militantes do Partido Justicialista
colocados como intermediários entre os recursos federais, provinciais e municipais dentro do
bairro (cestas básicas, consultas medicas, vagas em escolas), além de serem os responsáveis
pela elaboração das listas de beneiciários dos planos de assistência. Sua capacidade de mobilização da comunidade (para actividades politicas peronistas, como comícios) é o que faz
com que tenham maior ou menor acesso aos recursos governamentais” – cf. CARDOZO, Fernanda Soares. Protestar não é delito. A criminalização dos movimentos sociais na Argentina
contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997-2007). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Instituto de Filosoia e Ciências Humanas, Porto Alegre, 2008. Disponível em:
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15316/000677668.pdf?sequence=1. O pun-
172
ACIDADEMULTIFORME
atravessa transversalmente o social, as instituições governamentais e os estereótipos mediáticos, ao mesmo tempo que um relorescimento da sacrossanta nacionalidade argentina vinculada à defesa da propriedade privada; a violência criminal,
civil e policial, ao mesmo tempo que momentos agónicos da vida colectiva e
comunitária; o estatuto do espaço público e a ressigniicação da igura do vizinho
(“vecino”).
Bem-vindos à selva urbana!
À cidade dos planos ininitos. Pseudo-ambiente vivo, saturado de informação. Cidade-drama dos processos do comum e da guerra civil dos modos de
vida. Bem-vindos, pois, à agitação urbana do constante jogo de encerramento
e abertura, de ligação e desligação. Cidade espelho – às vezes iel / quase sempre distorcido – das fórmulas de produção de valor. Cidade biopolítica, enquanto
objecto de mecanismos de apropriação do valor social, enquanto espaço de resistências aos mecanismos de controle, enquanto território dinâmico de novas percepções e modos de conhecer. Cidade produtiva, fábrica das formas de vida que
nela se misturam, se distinguem e se entretecem. Cidade-arca de memórias, de
sentidos e de conlitos. Bem-vindos à própria fábrica da cidade, à fábrica social.
O Indoamericano como problema
Quando falamos do fragmento não nos referimos à parte qualquer parte
de um todo anterior explodido: falamos de uma situação concreta e problemática
cuja força de realidade nos violenta. Que nos arrasta no processo da sua evolução.
Que nos afasta de qualquer abstracção. O fragmento é sempre índice expressivo
desta vida urbana.
O fragmento não seria, assim, um estilhaço arbitrário. O fragmento é um
problema essencial captado na sua evolução. Interrogá-lo, penetrá-lo, supõe um
confronto com o concreto em mutação. O fragmento é uma dobra. Que explica,
se desdobrado. Que dissimula as suas implicações, se o deixarmos envolto no seu
véu. Contém uma marca cifrada da época e uma potência discordante. Desvelar o
fragmento afecta a perspectiva, descobre latências e possíveis.
O fragmento é um todo concreto cujos ilamentos tocam outras situações.
Do racismo às economias informais; das dinâmicas de ocupação da terra às dinâmicas da migração; das técnicas biopolíticas dos Estados à propaganda política;
terismo designa assim um sistema de clientelas e caciquismo que procura manter a base popular
sob o controle de uma hierarquia político-partidária (N.d.T.).
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
da codiicação mediática à urbana; das formas submersas de trabalho e de sobreexploração à precarização do direito à habitação.
O fragmento histórico contém as chaves da compreensão de mutações
colectivas maiores. O fragmento é ao mesmo tempo universal (fala de alguma
coisa que se manifesta em muitas outras situações) e caso concreto (sucede como
episódio fechado, contextualizado, e mantém sob uma aparência extremamente
empírica uma incógnita urgente).
Do mesmo modo que a investigação do caso promove a investigação
política sub-representativa140, o pensamento do fragmento conduz-nos, na companhia de Walter Benjamin, a um tratamento diferente do universal. O universal
concreto é uma porção de realidade da qual se pode dizer: “está tudo aí”. E
remete sempre para uma práxis, que não precisa de ser remetida para uma totalidade abstracta. Para o fetiche de uma totalidade complexa com as suas mediações ininitas. Pelo contrário, Benjamin expõe as suas razões a favor da unidade
imediata (monádica) da situação sem necessidade de recorrer a qualquer ciência
abstracta.
O fragmento é mundanidade. Convite a desenvolver práticas de mundo.
O fragmento pode abrir, portanto, uma sequência de politização: gosto
pelo episódio (caso); militância de investigação; problematização expressiva (o
problema da escrita, ou do discurso das imagens). Fazer cidade. É o que procuramos e o que se nos impõe. Porque a cidade supõe e aspira desde sempre a uma
teoria política, a um jogo que airma os usos comuns e as suas mutações por meio
de uma gestualidade inevitavelmente política. E o gesto político, o convite à escrita tem sempre por ponto de partida a airmação da igualdade de potência dos
socialmente desiguais.
Como necessidade persistente de cartograias para nos apropriarmos da
cidade como riqueza comum. De uma temporalidade comum. Um ano do Indoamericano sobrepõe-se aos 10 anos de 2001141. As perguntas acumulam-se e
140 “Sub-representativo” possui aqui duas acepções convergentes: a presença de factos e dados como potência para dissolver o espaço da representação estatal e mediática (na medida em
que a verdade e a justiça avançam juntas, a investigação supõe uma ética contra a criminalidade
do poder) e, ao mesmo tempo, recurso ao “poder do falso”, uma vez que a icção nos ajuda a
compreender as camadas mais profundas do que podemos assumir como verdade.
141 Ao completar-se uma década da crise que mudou o país para sempre, a nossa perspectiva
não é a da recordação. 2001 não é um ano, mas um princípio activo, uma chave para pensar
esta década. 2001, para nós, é quase um método, uma maneira de olhar as coisas vendo-as em
movimento. Neste sentido, a crise torna-se premissa, na multiplicidade das suas signiicações:
instabilidade e criação, preocupação e incerteza, abertura e alteração do calendário… Tanto
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ACIDADEMULTIFORME
dilaceram-se retrospectivamente. São estas feridas que nos aproximam de uma
enunciação comum. Contra a língua neoliberal que separa minuciosamente e por
etiquetas cada um dos estereótipos e as perguntas que não devem misturar-se. O
que nós procuramos é tornar um texto um convite esclarecido sobre o sistema de
fronteiras, que atravesse guetos urbanos, zonas políticas e temas privados. Não é
nada fácil. Mas persistimos.
(Re)tomando o indoamericano
Tomamos o Indoamericano como fragmento, caso e situação.
Uma célula mínima de realidade observada que equilibra com o seu próprio peso o resto da cidade. O Indoamericano não é um facto excepcional, excepto
na medida em que permite apreciar uma complexidade de níveis e dinâmicas que
hoje convergem nisso a que chamamos (fazer) cidade. A cidade tem mil planos.
Impossível vê-los todos ao mesmo tempo. A opacidade do Indoamericano surge
do encontro entre muitos e muitos destes planos. Não tentamos explicar o Indoamericano a partir de uma análise abstracta e totalizadora da cidade, mas, pelo
contrário, propomo-nos pensar melhor a cidade referindo-a imediatamente a essas
singularidades, e às tendências e lutas sociais que a constituem. Que singularidades são essas?
Primeiras hipóteses / O Indoamericano como condensação de problemas
/ Nova gestão governamental / Racismo micropolítico / Nova lógica de
ocupação: expectativas económicas e organização não-tradicional
A ocupação do Parque Indoamericano reúne uma quantidade de problemas nos quais se joga boa parte do posterior triunfo eleitoral do candidato da direita a “intendente” (presidente do município), Mauricio Macri, na cidade. Esses
dias violentos puseram em evidência a brutalidade das acções do mercado, as
reacções racistas e a violência social contida. Não se trata de dizer que o Indoamericano seja tão diferente de outras coisas que costumam passar-se na cidade, e
noutras cidades, mas é uma situação privilegiada, devido às camadas de questões
que condensa em vista de pensarmos e agirmos na conjuntura da cidade.
Há nesta relação, entre o que aconteceu no Indoamericano e o triunfo de
Macri, uma subtil trama micropolítica que poderíamos reconstruir tomando como
ponto de partida o pôr em série dos acontecimentos desses dias com as imagens
quando é visível, como quando, como nos tempos de agora, corre como uma corrente subterrânea numa sociedade “normal” ou num país “a sério”.
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
difundidas depois pelo macrismo – que vão da transparência obscena dos factos
de dezembro de 2010 à estratégia de comunicação e de gestão governamental, estratégia mascarada de um estilo anti-político ingénuo, que explicita um conteúdo
racista indisfarçado.
A eicácia da operação consiste num deslocamento da signiicação do
público (não por acaso, o Indoamericano é um parque público maioritariamente
usado por migrantes); na visibilização e na gestão de formas (tão odiosas como
efectivas) de produção de cidade; num deslizar dos modos de construção política
capaz de dar conta da face micropolítica reaccionária sobre a macropolítica do
governo nacional, cujos enunciados inclusivos e pós-liberais são objecto de uma
suspensão pelos lemas e divisas do governo da cidade (“é bom estar aqui”, “seja
bem-vindo”) que transmitem ao nível do imaginário colectivo uma cumplicidade
com a exclusão da ameaça. A ocupação do Indoamericano, ao contrário do que
se disse na altura, revela menos a ausência do Estado como o facto de, na gestão
territorial, o próprio Estado (no seu funcionamento maioso) ser parte do problema. Mas também o mercado intervém na ocupação, uma vez que se trata de
um fenómeno que não pode considerar-se à margem do contexto das práticas de
especulação imobiliária.
Pensar a dinâmica própria da ocupação requer uma investigação que deve
desprender-se de múltiplos imaginários, por exemplo, o da tradição de ocupações
comunitariamente organizadas. Com efeito, as ocupações pertencem a uma forma
de luta popular promovida e desenvolvida por formas políticas e organizativas
que, partindo das necessidades, desenvolveram experiências sociais comunitárias.
Todavia, tanto na ocupação do Indoamericano, como em todas as outras ocupações que houve na mesma altura, não podemos situar as coordenadas dessa tradição: a ausência de enunciados e uma narrativa sobre o que acontecia, a diiculdade
de encontrar interlocutores, e o transbordar da violência tão difícil de interpretar,
sugerem-nos que se trata de outro tipo de situação emoldurada num contexto em
alta do ciclo económico, em que a renda inanceira se orienta em geral para a terra
e para a construção de habitação.
A título de hipótese, portanto, deparamos com dois eixos: uma racionalidade económica em posta em causa e uma fraqueza por parte dos actores sociais
para introduzirem outras dinâmicas alternativas ou comunitárias. Os cálculos
do Indoamericano, verdadeiro concentrado dos cálculos urbanos, obrigam-nos a
desprendermo-nos das representações mais simples e habituais através das quais
se procuram explicar as dinâmicas da cidade.
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ACIDADEMULTIFORME
Crédito da imagem: Fotograias de Sub.Coop, 19 de dezembro de 2012. Cortesia Sub.Coop.
A cidade espontânea? / Ocupações promíscuas / Cálculos / Especulação
imobiliária e reivindicação democrática
No fazer cidade, há sempre qualquer coisa de espontâneo. As cidades são
tramas complexas que não podem explicar-se somente através do planeamento
(de urbanistas, de governos, de organizações sociais) nem do livre arbítrio das
suas pulsões vitais. Nas ocupações manifesta-se um estranho paradoxo: a constatação de uma organização e, ao mesmo tempo, a sua ausência.
A espontaneidade não signiica a ausência de inteligência e organização,
mas, de uma maneira ou de outra a convergência – em tensão e harmonia – de
racionalidades e planos diferentes de acção. Deste modo, podemos pensar a simultaneidade da organização punteril (dos líderes de bairro)142, nessa negociação
política que inclui habitualmente cálculos especulativos de mercado, com processos menos evidentes, ligados a solidariedades entre os ocupantes, à vontade
de alojamento e de terra que, talvez, se airmasse antes de outro modo, através de
outro tipo de organizações, conluindo hoje numa dinâmica, que adquire um tom
promíscuo característico das misturas: autoritarismo e oportunismo a par de mo142 Ver a N.d.T. anterior. (N.d.T.)
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
mentos de solidariedade e vontade de uma vida melhor. As ocupações são tanto
momentos de manipulação ao serviço de negócios e de criação artiicial de climas
políticos, como dinâmicas de reapropriação de espaços urbanos anteriormente
capturados como espaços privados ou públicos para usos precisos. Quando são
ocupados, esses espaços readquirem um carácter comum. Mas, nesse território,
que torna a ser comum, desenvolvem-se esses traços de promiscuidade que assinalámos, onde funcionam conjuntamente lógicas maiosas mais visíveis e outras
ligadas ao querer-viver, menos evidentes.
O paradoxo destes modos de fazer cidade consiste em canalizar os impulsos populares e as reivindicações democráticas de terra e alojamento, através
de esquemas políticos tão autoritários como rebeldes, dando lugar a excessos muito difíceis de organizar (para os militantes) e de representar (para os políticos).
Na província de Buenos Aires sempre houve ocupações. Não se trata de
um fenómeno extraordinário ou de outro planeta. Na realidade, a ocupação de
terras é um modo de fazer cidade, e foi assim que se constituiu grande parte da
conurbação. Mas os meios de comunicação tratam a capital federal como um território privilegiado, onde essas coisas não acontecem. A mensagem em torno das
ocupações do Indoamericano foi clara: na capital, protege-se a propriedade, e os
usurpadores, na sua maioria estrangeiros, são os que a põem em perigo…
O problema real é, sobretudo, o do apinhamento. E também a subida
do preço dos arrendamentos, que deriva do primeiro problema. Os ‘punteros’143
avisam quando começa a entrever-se a possibilidade de uma ocupação, e os interessados preparam-se para agir. Entre estes incluem-se desde os ‘pibes’ (meninos)
apostados na revenda de lotes aos que necessitam de terreno onde possam fazer
um lugar para viverem; desde os que aproveitam a ocasião para comprar lotes assim que se inicia a ocupação, aos que vêem nela uma oportunidade de adquirirem
mais casas para revender ou arrendar.
Os novos bairros compõem-se em geral de paraguaios, bolivianos e peruanos, que são os que têm mais ilhos e estão sempre dispostos a entrar em acção. Já
em Lugano144 se tinham dado ocupações de terras… Algumas. E a reacção racista
foi sempre muito forte. Foi o caso da Villa 20. mas eram ocupações pequenas,
comparadas com a do Indoamericano. Nalgumas delas, houve até certo apoio do
consulado boliviano, através do fornecimento de colchões às famílias bolivianas
ocupantes. Mas a ocupação do Indoamericano foi diferente. Pela escala, sobretudo, e também por ter escapado ao controle. Houve um acordo entre o governo
143 Ver a N.d.T. inicial. (N.d.T.)
144 Ou Villa Lugano, uma das grandes circunscrições urbanas de Buenos Aires (N.d.T.)
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ACIDADEMULTIFORME
da cidade e o do país para recensear os ocupantes e dar-lhes dinheiro (calculo
que três mil pesos pelo menos, e há quem fale em oito mil, e quem fale em cinco
mil…) para os fazer abandonar a ocupação. Os ‘punteros’ sabem onde é possível
fazer ocupações, onde há terras que se podem ocupar. Sabem também quando há
alguma oportunidade de ocupação temporária, que não poderá ser mantida, mas
pode render alguma massa (como neste caso). O ‘puntero’ averigua, tem os seus
ajudantes e aparece nos bairros encorajando as pessoas à ocupação. Aconselha
sobre a melhor maneira de agir, sobre a maneira de proceder à ocupação com
rapidez. Sabe de quem são os terrenos, está sempre bem informado, e disposto a
negociar e a tentar obter algum benefício… e se for possível icar com os terrenos,
tanto melhor. Mas no Indoamericano as coisas não puderam ser controladas. De
um modo geral, as ocupações tendem a transbordar a organização, mas no Indoamericano, tratou-se de uma ocupação a uma escala formidável.
Racismo / Classiicação: Vizinhos versus Okupas / Inquérito e
recenseamento em tempo real
Se até ao momento imagens como as do Indoamericano têm sido difundidas e lidas como as de uma “guerra de pobres contra pobres”, devemos admitir
que a intervenção astuciosa do governo municipal de Macri facilitou uma nova
operação hegemónica sobre a cidade. A guerra deixaria de ser entre pobres, passando a ser entre usurpadores e vizinhos. Aos vizinhos cabe defender o Parque
Indoamericano e a Plaza Francia. A equivalência é evidente: o corte não é de classe nem étnico-nacional. O problema não é a imigração, mas sim o descontrolo.
Qual é o objecto desta guerra entre caos e controlo? A riqueza da cidade
e o espaço público (hospitais, escolas, parques ameaçados pelos imigrantes). As
coisas orientam-se assim de tal maneira que a reacção dos vizinhos de Soldati/Lugano, avalizada por boa parte da cidade e das suas instituições, parece consagrar
um direito ao racismo145, até ao momento só reconhecido pelo Estado a certas
partes e classes da cidade.
145 Tal como costumamos interrogar-nos sobre a lei que dita que acatemos a lei, a obrigação
de obedecer, interrogamo-nos também sobre o direito que garante a posse de direitos, o direito
a ter direitos. De onde vem esse direito natural, condição primeira da igualdade? Quem reconhece e quem garante o direito a ser-se sujeito de direitos, a ser-se cidadão, a ser-se humano?
Pensamos o racismo como a máscara que dissimula e, ao mesmo tempo, explica as desigualdades subjacentes à plena igualdade promulgada pelos regimes liberais. Mas o racismo não se
limita a encobrir e a revelar paradoxalmente, mas produz também muitas outras desigualdades.
Desigualdades – se há lugar para estabelecer esta distinção – não de facto, mas de direito. O
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
“Em bairros como Lugano I e II, há desde sempre resistências contrárias
à construção de habitação para a gente das villas146. A experiência da se ir às compras ao supermercado Coto é suiciente. Vêem-se como são recebidas as ‘tarjetas
sociales’ (senhas de compras), e como se observa o consumo dos paraguaios e
bolivianos. Sobretudo da Villa 20. Que enchem as salitas, as escolas públicas, o
supermercado Jumbo, os parques durante os ins de semana. Os espaços públicos
são lugares de mistura, de encontros, de preconceitos. A escalada da animalização
vai de formas mais atenuadas, como ‘negros’, a ‘villeros’ e, termo depreciativo
entre todos, a ‘bolivianos’”.
Esta mutação de imaginários é estranha. Até certo ponto, os bolivianos
são valorizados segundo uma imagem do trabalhador dócil. Alegoria da migração
boa, que se faz a partir de baixo, regenerando valores como o trabalho, o estudo e
a família. Mas, em contacto com a “villa”, espaço de uma selvajaria insondável, o
boliviano vai-se confundindo com o villero, o negro, o narco.
O governo municipal de Macri dirigia-se em tempo real aos vizinhos
em suas casas, perguntando-lhes o que queriam eles que o município izesse. O
bairro aprovou que Macri declarasse que, se havia problemas de alojamento, os
argentinos deviam ser prioritariamente atendidos. Agora, a guarda está no bairro,
a sua simples presença mudou o estado de coisas. Os guardas garantem a segurança durante a noite. Sobretudo nos quarteirões mais violentos onde se começa
a vender paco147. Circulam permanentemente, de carro ou a pé. A guarda ocupa o
lugar de uma autoridade pública armada para travar essa violência desenfreada.
Redeinição reaccionária da igura do migrante / Discurso de Evo /
Imigração descontrolada / Macri e os representantes comunitários
De facto, durante a ocupação do Parque Indoamericano o discurso da
imigração usurpadora foi ampliado até ao insuportável. Por um lado, o discurso dos vizinhos que entraram em acção contra os ocupantes. Por outro lado, as
próprias organizações imigrantes e o próprio governo de Evo Morales assumidireito ao racismo opera através de uma dialéctica negativa que consiste na auto-atribuição que
um grupo se faz do direito a negar direitos. O direito ao racismo deita por terra a pretensa universalidade liberal. Os meus direitos, segundo dita o manual, acabam onde começam os direitos
do outro. Os seus direitos, diz o bom vecino porteño [o bom morador, ou vizinho, de Buenos
Aires (N.d.T)] aos ocupantes do Parque Indoamericano, acabam aqui.
146 O termo villas, ou villas miseria designa, na Argentina, os bairros de lata ou zonas ocupadas
pela construção de alojamentos precários. (N.d.T.)
147 Pasta de cocaína. (N.d.T.)
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ram que as comunidades estrangeiras não deviam comprometer a sua imagem
em semelhante tipo de acções. Por parte do Estado nacional, a mobilização da
guarda limita-se a conirmar o novo mapa das fronteiras nacionais, que se desmultiplicam no interior de bairros e villas da Zona Sul. A proliferação de um
discurso abertamente racista, com a plena cumplicidade dos meios de comunicação de massa levou o discurso presidencial a referir-se a uma migração boa
e trabalhadora. Raiando o extremo, o discurso de Macri, dirigente máximo da
cidade, referia-se à imigração descontrolada, identiicando as ocupações com o
narcotráico e a delinquência em geral.
A TV titula: ‘vecinos’ versus ‘okupas’, mostra imagens de confrontos
na ausência das forças policiais. Por quê esta ausência? As imagens eram de uma
tolerância inédita perante a violência crua. Havia imagens da Polícia Federal espancando as pessoas com violência. Da [força policial] Metropolitana, não era
surpreendente (os seus efectivos ocupavam-se da repressão dos ‘cartoneros’148),
mas supunha-se que a Federal estava proibida de usar a violência e de reprimir.
Os confrontos prolongaram-se horas a io. Tanta impunidade corrobora uma capacidade de violência, de cuja possibilidade já suspeitávamos, por parte dos vizinhos. No Facebook, nas redes argentinas – de vizinhos do bairro – e nas redes de
bolivianos dizia-se a mesma coisa: eram poucos os indignados com a violência,
e havia uma maioria que se opunha à ocupação como maneira fácil e irresponsável de apropriação de terrenos para construção de alojamentos, bens que aos
locais custam muito trabalho. Incluem-se aqui membros da comunidade boliviana, envergonhados de serem associados aos ocupantes. Na realidade, o Parque
Indoamericano não era um lugar utilizado pelas famílias do bairro. Era quase
inteiramente ocupado por migrantes.
No Indoamericano, houve de tudo, mas insistiu-se sobretudo na presença
dos bolivianos. São os bolivianos que icam até ao im. Os bolivianos tornam-se
mais visíveis porque se mantêm na parcela que ocupam; não se movem, para que
não lhes roubem o lugar. Os bolivianos são fáceis de expulsar, os ‘pibes’ tiram-lhes os terrenos e, a seguir, vendem-nas (lhas). Os paraguaios, em contrapartida,
organizam-se com rapidez; estão preparados para se defenderem e ocupam o território colectivamente. Os bolivianos agiam cada um por sua conta, isolados ou em
família, mas não se agrupavam num colectivo. Muitas vezes são ‘pibes’ recém-chegados para trabalhar numa oicina. As organizações bolivianas preocupam-se
muito com a sua imagem e condenam tudo o que possa entrar em conlito com os
148 Os cartoneros dedicam-se à recolecção e recuperação de lixos e resíduos. (N.d.T.)
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
valores considerados dominantes na cidade. E durante esses dias, condenavam a
ocupação, para salvaguardar a imagem dos bolivianos…
Mas, além disso, há, entre os bolivianos, uma ruptura profunda do comunitário; competição, isolamento… enim, um individualismo bastante exacerbado. Nestas situações de ocupação observa-se uma mistura muito estranha. Uma
mistura de assembleia, de espontaneidade e de organização. E não é raro que, em
resultado dessa dinâmica, se dêem actos de racismo, às vezes com origem nos
próprios ilhos dos bolivianos. Nestas ocupações, falta que os bolivianos actuem
com mais força, com mais organização colectiva. Falta uma airmação mais decidida, como acontece noutros casos ou nalgumas movimentações em que se manifestam modos de airmação mais claros…
No bairro Samoré organizaram-se ‘bandereadas’ (ruas Escalada e Dellepiane) convocadas pela palavra de ordem: ‘Traz a tua bandeira argentina para defender o bairro’. E em vários autocarros que passavam pelo bairro Samoré (o 36,
o 50, o 114 etc.), todos os passageiros bolivianos eram obrigados a sair. Quando
os vizinhos cortaram a circulação em Dellepiane, o 36 teve de desviar-se uns 10
quarteirões para evitar que fossem espancados os bolivianos que iam no autocarro. No 50, foram os próprios passageiros que não deixaram entrar no autocarro
uma boliviana.
Organização do excesso, condução das reivindicações / Oportunismo e
disponibilidade / A construção do caso social como forma de negociação
O tipo de organização que protagoniza as ocupações já não é a que identiicamos com outros ciclos de lutas, que se desenvolviam a partir de características
comunitárias (promovidas por grupos militantes e por uma cultura política autónoma). Até ao momento, este tipo de lutas não gerou um discurso político próprio.
Esta conluência de “punterismo”, aspirações e oportunismos não possui nem as
formas herdadas de consistência, nem os valores anteriores. Sabemos o que este
tipo de lutas não é. Mas talvez o urgente seja sabermos o que de facto pode, o
que de facto é. Quando dizemos oportunismo, fazemo-lo despojando esta noção
das suas conotações morais. Em contrapartida, falamos da disponibilidade, por
parte dos que participam nestas movimentações, para se darem rapidamente conta
de uma possibilidade que se abre de obterem um pedaço de terra, uma casa, um
projecto. A decisão rápida de participar numa acção colectiva pode acabar mal,
mas pode também mudar a vida de alguém da manhã para a noite. Da conluência
que descrevemos entre organização “punteril” e cálculo de mercado resulta uma
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ACIDADEMULTIFORME
organização rápida e lexível, na qual coabitam os poderes políticos e dinâmicas
compensatórias mais subtis, em que as expectativas das pessoas desempenham
um papel central.
Num contexto em que há riquezas para repartir, este tipo de acções consegue estabelecer negociações rápidas com as esferas oiciais, preocupadas com
a paciicação do conlito, abrindo-se sem perda de tempo a negociação entre as
partes. Neste esquema, as pessoas referem menos a sua situação a um cenário
de luta e organização colectiva e mais a uma situação pessoal ou familiar. E na
perspectiva das instâncias oiciais, trata-se menos de lidar tomando como referência elementos políticos orgânicos e representativos do que de estabelecer casos
particulares. Daí o recurso o recenseamento como primeira e principal operação
organizadora da negociação.
A sequência estabelece-se, portanto, a partir da constituição (ocasional)
de uma forte capacidade de acção colectiva, que opera por meio do excesso e da
apropriação directa com o propósito de abrir uma instância de negociação. Uma
vez aberta a negociação, a capacidade de acção transforma-se em reivindicação
ou caso, susceptível de enquadramento enquanto caso social. Nesta segunda fase,
é fundamental a participação de um funcionalismo – sobretudo a nível dos municípios – com uma sensibilidade e uma experiência resultantes da participação nas
militâncias dos movimentos sociais.
“Finalmente, e como que num io mais ténue de interesse, surge a interrogação sobre o que se passou com os ocupantes e sobre o porquê de terem sido
recenseados? Como funciona o sistema das pulseiras de controle nos acampamentos rodeados pela guarda? As pessoas obtiveram resposta ao seu problema
de alojamento? Denúncias recentes apontaram o facto de não se ter avançado na
descoberta dos responsáveis pelos três homicídios que tiveram lugar nos dias dos
acontecimentos, enquanto há processos contra os protagonistas sociais da ocupação. Depois tudo se foi silenciando. Não houve mais notícias. Para a maioria, os
factos caíram no esquecimento.
No segundo ou terceiro dia da ocupação, aparecem as famílias que vêm
comprar lotes aos ‘pibes’. ‘Pibes’ que muitas vezes ocupam lotes por conta dos
‘punteros’. É todo um mercado que se monta no local. No Indoamericano, havia
de tudo. Pessoas que vendiam e pessoas que precisavam de alojamento.
O que é interessante nas ocupações, e o que realmente motiva a mobilização de todos, é o momento em que chega o Estado ou as empresas com a sua oferta de serviços, fazendo com que as pessoas se unam para recusar a instalação dos
contadores destinados a assegurar depois a cobrança desses serviços, como a luz.
Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones
É justo ocupar. Porque o direito à habitação está ameaçado. Não há uma
relação necessária entre ocupar uma casa e comprar… Mas, de um modo geral,
este discurso não intervém na ocupação; não se faz ouvir, por exemplo, um discurso contra a propriedade privada, ou de crítica à circunstância de ter de se comprar
para se ter acesso ao alojamento”.
Cidade multiforme: excesso, mercado e planeamento
À margem de planos. Não se vive sem criar espaço. Não se vive sem
destruir espaço. Os modos de vida que a cidade produz, a cidade que resulta dos
modos de vida, entrelaçam-se, tecem alianças ou combatem-se mutuamente. O
mercado joga o seu jogo, limita e potencia essas formas de viver segundo as descubra como mais ou menos funcionais nos termos da sua lógica. A cidade excede
o cálculo com o qual mantém uma relação de estranheza familiar. Dar para receber. Gerir. Se a cidade é um entretecido, fazer cidade é a maneira como se concentram e se disseminam os percursos dos corpos, as apropriações, as ixações e as
mobilidades dos que nela estamos, dos que chegam e dos que partem. Há cidades
que urbanizam a injustiça: que segmentam territórios, que se espacializem em
vista da exploração e da distribuição dos corpos, das suas vidas e das suas mortes. Nelas ensaiam-se também outros modos de vida, há lutas (as mais diversas)
visando produzir situações de justiça urbana. Situações que alteram, reinventam o
espaço-tempo, que reorganizam o sentido de uma vida metropolitana, com os seus
anonimatos e as suas dores.
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ACIDADEMULTIFORME
Créditos: Coletivo Situaciones.
Colectivo Situaciones tem vários anos de experiência compartilhada. Uma forma
produtiva de trabalho tem sido a co-investigação ou investigação militante: um modo de fazer
alianças para pensar, discutir e problematizar o que entendem por uma vida política. Nessa linha, foram decisivos uma série de encontros e trabalhos, como parte do movimento de piquete,
de direitos humanos, de camponeses, e de gestão comunitária da educação. A partir da estrutura
de uma editora própria, a Tinta Limón Ediciones, propõem-se a editar e propagar estas discussões assim como outras relacionadas com a ilosoia e a dimensão latino-americana própria do
pensamento, exigido pela questão da emancipação. Actualmente encontram-se envolvidos em
diversas iniciativas ligadas à investigação, à edição e ao debate colectivo que procuram, de
acordo com as necessidades da época, construir um espaço enquanto comum.
A oicina do Atelier Hacer-Ciudad, funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires
(casa autogerida por grupos e coletivos múltiplos e diversos). Fazemos parte da oicina pessoas
que participam ou participaram numa ou em várias experiências de investigação e ação coletivas (Coletivo Situaciones, Simbiosis Cultural, Observatorio Metropolitano, Raíces al viento,
No damos cátedra, Juguetes Perdidos, cadeiras universitárias alternativas etc.).
LUGARCOMUMNº41,pp.185- 191
Algumas Considerações acerca da
PráticadoMapeamentoColetivo
Iconoclasistas149
Vivemos com uma noção de território herdada da modernidade
incompleta e do seu legado de conceitos puros, muitas vezes
praticamente intangíveis, atravessando os séculos. É o uso do
território, e não o território em si mesmo, que constitui o objeto da
análise social. Trata-se de uma forma impura, de um híbrido, de uma
noção que, por conseguinte, requer uma revisão histórica constante.
O que tem de permanente é o fato de ser o nosso quadro de vida. O
seu entendimento é, pois, fundamental para afastarmos o risco da
alienação, o risco da perda de sentido da existência individual ou
coletiva, o risco da renúncia ao futuro.
milton santos, O Retorno do Território.
Desde tempos passados que a produção de cartograias foi um dos principais instrumentos que o poder dominante utilizou para a apropriação utilitária
dos territórios – o que inclui não só uma forma de ordenamento territorial, mas
também a demarcação de fronteiras para assinalar as novas ocupações e planiicar
as estratégias de invasão, de saque e de apropriação do comum. Desta maneira,
os mapeamentos que habitualmente circulam são o resultado do olhar que o poder dominante recria sobre o território, produzindo representações hegemónicas
funcionais nos termos do desenvolvimento do modelo capitalista, descodiicando
o território de maneira racional para enumerar e caracterizar os recursos naturais,
as suas características populacionais e o tipo de produção mais eicaz para transformar em capital a força de trabalho e os recursos. Este olhar cientíico sobre o
território, os bens comuns, e aqueles que o habitamos é completado através de
outras técnicas que perscrutam o corpo social, como a videovigilância, as técnicas
biométricas de identiicação e as fórmulas estatísticas que interpretam situações e
oferecem a informação que permite a execução de mecanismos biopolíticos orientados para organizar, dominar e disciplinar os que habitam um território.
149 Traduzido do espanhol por Miguel Serras Pereira.
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ALGUMASCONSIDERAçõESACERCADAPRáTICADOMAPEAMENTOCOLETIVO
Chamamos “mapeamento colectivo” à apropriação da técnica de mapeamento a desenvolver em oicinas com a participação de estudantes, organizações
de moradores, movimentos sociais, artistas, comunicadores, e de qualquer um de
nós que se senta interpelado a pensar colectivamente o seu território. Em muitos
lugares da nossa América Latina, a esta técnica chama-se “mapeamento participativo”, denominação que não nos satisfaz completamente, porque consideramos
que o “participativo” implica a reunião a qualquer coisa de pré-existente, ao passo
que os mapeamentos colectivos se engendram durante o espaço de criação cooperativa e são representações originais e particulares. Outros conceitos associados a
esta modalidade de trabalho são: cartograia social / crítica / contra-cartograia /
descartograia etc. – denominações, todas elas, que têm a sua justiicação própria
e que apresentam diferenças válidas e interessantes.
Desde o ano de 2008, organizamos oicinas de mapeamento colectivo
(talleres de mapeo colectivo, TMC) juntamente com organizações políticas, movimentos sociais e colectivos culturais, impulsionando um trabalho cooperativo
em mapas e planos cartográicos a partir da concepção e da libertação de uma série de ferramentas que através da socialização de saberes não especializados e de
experiências quotidianas dos participantes permitem compartilhar conhecimentos
em vista da viabilização crítica das problemáticas mais prementes do território,
identiicando responsáveis, conexões e consequências. Este olhar amplia-se no
processo de rememoração e sinalização de experiências e espaços de organização
e de transformação, visando tecer redes de solidariedades e de ainidades. A partir
do trabalho colectivo é construído um panorama complexo sobre o território, que
permite distinguir prioridades e recursos quando chega o momento de se projectarem práticas transformadoras que em seguida adoptam diversos cursos de acção.
Os TMC potenciam a elaboração de narrativas colectivas críticas nas
quais a relexão a partir de um mapa permite articular processos de territorialização. Os mapas funcionam como ferramentas que geram instâncias de trabalho
colectivo e devem permitir a elaboração articulada de programas e narrativas que
contestam e impugnam os estabelecidos a partir de diversas instâncias hegemónicas (não só políticas, sociais e institucionais, mas também as correspondentes à
opinião pública e aos meios de comunicação de massa, bem como as associadas
ao nível das crenças, decretos e formas do senso comum).
Assim, o mapeamento colectivo é um modo de elaboração e de criação
que subverte o lugar de enunciação desaiando as narrativas dominantes sobre os
territórios para transformar a invisibilidade de saberes, situações e comunidades
em narrativas colectivas críticas. Quando falamos de território, estamos a aludir
Iconoclasistas
não só ao espaço que nos serve de suporte, mas também ao corpo social e às subjectividades rebeldes. Um dos desaios de trabalhar com mapas é a possibilidade
de abrir um espaço de discussão e de criação que não se feche sobre si mesmo,
mas que se posicione como um ponto de partida disponível para ser retomado
por outros, um dispositivo apropriado que construa conhecimento, potenciando a
organização e a elaboração de alternativas emancipatórias.
Não há requisitos nem condições exigidos para a participação nas oicinas, porque todos temos a capacidade de nos elevarmos acima do nosso território,
operando um sobrevoo que, a partir da memória, nos permita relectir e sinalizar
diversas temáticas. Deste modo, a criação crítica activa-se a partir da conversa e
da narrativa de experiências, conhecimentos e pareceres, potenciando a escuta,
aguçando os sentidos e focando o trabalho sobre uma plataforma comum. Nas
oicinas aprofundam-se as diferentes formas de compreender e sinalizar o espaço,
pondo à disposição dos participantes vários tipos de linguagem – como símbolos,
gráicos e ícones – que estimulam a criação de colagens, frases, desenhos, instruções, ao mesmo tempo que tudo isso favorece o desenvolvimento de modalidades
de produção várias, que não obstruem a diversidade de olhares culturais, sociais e
políticos dos participantes na oicina, mas que antes permitem a construção de um
horizonte colectivo a partir do qual pensar e agir visando o bem comum.
Para o mapeamento colectivo poderão ser retomadas representações hegemónicas (como um mapa cadastral com fronteiras pré-desenhadas), uma vez
que será depois subvertidas no processo de socialização dos saberes, potenciando
a visibilização dos diversos olhares que operam sobre o espaço. Se se dispuser de
tempo para tanto, os mapas poderão também ser desenhados à mão jogando com
as fronteiras e as formas; mas é importante esclarecer que o retomar de um mapa
oicial é uma questão chave, por exemplo, em situações de reterritorialização
empreendidas com comunidades de origem, nas quais a necessidade de sinalizar
com exactidão a partir das fronteiras oiciais se torna premente no momento de
usar essa informação como parte de uma exigência de reconhecimento territorial
apresentada ao Estado nacional (o caso arquetípico é o processo que arrancou no
começo dos anos 1990 no Brasil).
As oicinas integram uma instância de ‘pôr em comum’ que se torna fundamental no momento de expor narrativas de grupo, de relevar diferenças e de
constituir horizontes de abordagem e de compreensão. Todos tomam a palavra num
processo de socialização e de identiicação do comum em vista de um agir articulado. Assim, os TMC coniguram-se como espaços de formação de comunidades
temporais que permitem a elaboração de estratégias e de práticas orientadas para o
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ALGUMASCONSIDERAçõESACERCADAPRáTICADOMAPEAMENTOCOLETIVO
conhecimento colectivo e a transformação social. As oicinas, tanto no seu processo
de construção como no que se refere aos resultados, funcionam em primeira instância como dinamizadores lúdicos que depois se autonomizam a partir da autogestão
de desejos e de necessidades dos grupos, a im de recriarem um protagonismo de
desaio que se visibiliza na heterogeneidade das vozes colectivas participantes.
O mapeamento colectivo é uma ferramenta lúdico-política e não está
isento de ambiguidades. É preciso ter em conta que o conhecimento crítico que
surge das oicinas, se cair em mãos erradas, pode ser utilizado para vulnerabilizar os direitos dos participantes. Por isso, se se decidir construir uma ferramenta
comunicacional a partir do mapeamento e dar-lhe difusão pública, a informação
incluída deverá ser objecto de um consenso prévio. Os mapas são criados a partir
da multiplicidade dos participantes e devem adquirir a forma e os objectivos dos
seus criadores, circulando a partir das necessidades, das narrativas e das inquietações das comunidades, organizações e movimentos participantes.
Outro aspecto a considerar é que os mapas mostram um instantâneo do
momento em que se realizaram e não repõem na sua completude uma realidade
sempre problemática e complexa, mas transmitem antes uma determinada concepção colectiva sobre um território sempre dinâmico e em permanente mudança,
onde as fronteiras (reais e simbólicas) adquirem um carácter relacional e luido e
são continuamente alteradas pela activação de corpos e subjectividades. Por isso,
a elaboração de mapas deve fazer parte de um processo maior, constituir uma
estratégia mais num processo de organização colectiva, ser um ‘meio para’ a relexão, a socialização de saberes e de práticas, o impulso à participação colectiva,
o trabalho com subjectividades diversas, a disputa em espaços hegemónicos, entre
outras possibilidades.
Em 2011, integrámos nos TMC o traçado de uma série de suportes gráicos que nos permitiram alargar o olhar a outros estratos que não correspondem
exclusivamente ao espacial-geográico. Chamamos-lhes “dispositivos múltiplos”
(DM) porque consistem em mecanismos de relexão e criação colectivas cuja concepção e maquetagem variam, e que vamos adaptando, modiicando e aperfeiçoando de acordo com as diversas modalidades do território e as preocupações de
trabalho dos participantes na oicina. Alguns deles são:
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Linhas de tempo e rugosidades: permitem a identiicação e o relevar de
factos signiicativos, personagens chave, políticas públicas e sublevações;
através da utilização de símbolos, alegorias e signos que ilustram e acompanham as precisões elucidativas. As rugosidades são trabalhadas na sequência de um processo de construção de mapas críticos e de linhas de
Iconoclasistas
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tempo, através de uma transparência que permite relevar colectivamente
vínculos entre umas e outros, visibilizando conjunções, transformações
e embates entre planos temporais (históricos) e espaciais (geográicos).
Representações discursivas: construção de planos hegemónicos associados ao discurso dos meio de comunicação de massa, da publicidade e de
‘o que se diz na rua’, quer dizer, o nível do senso comum que impregna o
social e se exprime nessas frases e comentários naturalizados.
Constelações: colocação de transparentes sobre as cartograias ou os
dispositivos múltiplos para assinalar as resistências e os processos de
transformação e de mudança através da utilização de cartões coloridos
com diversas formas. O que potencia a criação de ‘imaginários’ onde
adquirem protagonismo as diversas subjectividades permitindo pensar os
símbolos e os protagonistas da nossa história assumidos pelas identidades rebeldes.
Deriva urbana com instruções: realização de percursos em pequenos grupos e intervenção durante o trajecto: Mapeamento em movimento (marcando lugares, situações, experiências, momentos etc., segundo um eixo
temático) e fotograias panorâmicas (capturando paisagens urbanas que
complexiiquem e articulem diversas problemáticas associadas).
A cidade e os sentidos: intervenção individual sobre um mapa, identiicando as zonas ou os lugares de trânsito quotidiano pela cidade e pondo
em jogo a memória afectiva que aina os sentidos de modo a intervir
através de ícones no que se escuta, sente, cheira, vivencia ou percebe;
identiicando lugares, instituições, momentos; o que de signiicativo dá
prazer ou causa mal-estar.
Paisagens reveladoras: criação de uma colagem fotográica em vista da
construção de panoramas urbanos que ponham em evidência uma variedade de problemáticas complexas e associadas. Intervenção posterior sobre
a imagem através da inscrição de detalhes que situam, ampliam ou referenciam a paisagem detectando responsáveis, causas, a situação actual etc.
Corpo/Disciplina, imposição e controle: sinalização operada sobre iguras humanas visando identiicar o modelo e o impacto dos discursos,
situação e instituições hegemónicas; considerando os dispositivos urbanos de controle (câmaras, radares), as instituições disciplinares (trabalho,
hospital, escola), a violência (polícia, segurança privada), as imposições
sociais, as frases publicitárias, as enfermidades físicas, a incorporação de
novas tecnologias como próteses de identidade ou de personalidade etc.
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ALGUMASCONSIDERAçõESACERCADAPRáTICADOMAPEAMENTOCOLETIVO
A utilização de DM facilita e potencia o exercício de revelação colectiva
focado sobre diversas temáticas e problemáticas referidas a um território particular. A coniguração destes dispositivos surge muitas vezes do improviso que se
promove no espaço da oicina e que activa a experimentação de recursos a partir
das particularidades subjectivas dos participantes. Estes mecanismos geram um
sistema de socialização da informação e das experiências sustentado por uma comunicação dialógica que estimula a participação e põe em cena um olhar crítico e
alerta sobre o acontecer naturalizado.
O mapa não é o território
Alfred Korzybsky (aristocrata polaco e fundador da semântica geral)
cunhou a frase que igura como título deste texto a partir da sua experiência como
oicial na Primeira Grande Guerra, na ocasião em que dirigiu uma ofensiva desastrosa durante a qual os soldados que comandava acabaram por cair numa vala que
não aparecia no mapa. Gregory Bateson (antropólogo e linguista norte-americano) completou esta frase com a precisão “e o nome não é a coisa nomeada”. O que
os dois autores tentavam exprimir é a impossibilidade de objectivar as dimensões
signiicativas e afectivas dos espaços e das representações linguísticas.
O vínculo com o território consolida-se a partir de processos de interpretação, de sensação e de experiências próprias. Os mapas não são o território
porque lhes escapa a subjectividade dos processos territoriais, as representações
simbólicas e os imaginários que se lhes referem, e a mutabilidade permanente e a
mudança a que estão expostos. Somos nós, as pessoas, que realmente criamos e
transformamos os territórios, e não há uma mimese entre a materialidade espacial
dos mapas e a percepção imaginária sobre o território, porque este é uma construção colectiva, moldado a partir das formas subjectivas do habitar, do transitar, do
perceber, do criar e do transformar.
Entendemos que as sociedades actuais são marcadas por uma precarização da existência que penetra a vida em múltiplos aspectos: atravessando a coniguração urbana como um farol de vigilância, quebrando os laços sociais através
da retórica do medo, minando os direitos sociais mais básicos nas instituições públicas, tornando no imaginário colectivo carne a violência simbólica, degradando
a experiência do comum e obturando as formas perceptivas no abismo da ansiedade. É por isso que através das oicinas de mapeamento colectivo e de dispositivos
múltiplos procuramos recriar colectivamente panoramas complexos que aprofundem os olhares críticos e potenciem subjectividades alertadas e emancipatórias,
imprescindíveis para a protecção dos bens comuns contra o saque e a depredação,
Iconoclasistas
para a luta contra os processos de colonização e privatização do público, e para a
constituição de novos mundos.
Sabemos que partimos de um limite ao trabalhar com mapas, uma vez
que estamos a tentar recortar um olhar sobre realidades que não são estáticas, mas
se encontram em permanente mudança. É por isso que adicionamos aos planos
cartográicos a concepção de dispositivos múltiplos que sinalizem luxos, processos, conexões, planos subjectivos, plataformas corporais etc., incluindo modos
de expressão e de representação populares, simbólicos, e de forte presença imaginativa. Estas ferramentas não produzem transformações por si mesmas, mas
articulam-se num processo de organização e de prática colectiva complexo e profundo que é potenciado a partir do trabalho cooperativo nestes suportes gráicos.
Trabalhamos a partir do território para potenciar os laços de solidariedade e de acção comum. Às experiências das oicinas somam-se as derivas impensadas adquiridas pelos recursos, metodologias e dinâmicas socializados, que
são retomados pelos participantes promovendo formas de autogestão em espaços
próprios. As oicinas estimulam a criação de novas territorialidades, recriam espaços vividos críticos, desvelando sentidos impostos e paisagens hegemónicas,
que estimulam a intervenção e o protagonismo na mudança. Assim, os processos
de territorialização intervêm no espaço e no tempo, alteram as imagens naturalizadas, contestam a conformidade da interiorização das narrativas hegemónicas, e
trabalham a partir do passado como forma de potenciar uma memória colectiva
que recuse o discurso oicial.
Iconoclasistas é um duo formado em 2006 por Pablo Ares (artista, animador de
ilme, cartoonista e designer gráico) e Julia Risler (professora e investigadora da Universidade
de Buenos Aires/UBA). Seus trabalhos combinam o trabalho arte gráica, oicinas criativas e
pesquisa colaborativa. Todas as produções são difundidas na web por meio de licenças creative
commons, para promover a socialização e estimular a sua apropriação e uso de derivado. Publicaram recursos gráicos e visuais que abordam vários problemas sociais, que foram impressos
e distribuídos em jornais e revistas de todo o mundo. Desde o ano de 2008, começaram a realizar oicinas de mapeamento coletivo com o objectivo de potenciar a comunicação, o tecido
de solidariedade e de redes de ainidade, e impulsionar práticas colaborativas de resistência e
transformação. A sua prática estende-se e através de uma rede dinâmica de ainidade e solidariedade construída a partir da partilha e realização de oicinas na América Latina e na Europa.
Neste enredo político e emocional foram surgindo exposições itinerantes, novos recursos lúdicos e a participação em encontros com organizações culturais e movimentos sociais. Em 2013,
eles publicaram o livro Manual de mapeamento coletivo. Recursos cartográicos críticos para
processos territoriais de criação colaborativa, onde sistematizaram metodologias, recursos e
dinâmicas para a organização de workshops. http://www.iconoclasistas.net
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