Resgatando o Feminino através da experiência somato
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Resgatando o Feminino através da experiência somato
XX Congresso Brasileiro de Psicanálise Brasília “Resgatando o Feminino através da experiência somato-psíquica : Da Dor ao Sofrimento Psíquico” Cândida Sé Holovko MESA REDONDA -- SOFRIMENTO PSÍQUICO E GÊNERO: UMA VISÃO TEÓRICA- CLÍNICA Resgatando o feminino através da experiência somato* psíquica: da dor ao sofrimento psíquico Cândida Sé Holovko *, São Paulo Este artigo visa pontuar algumas reflexões a respeito das manifestações somato-psíquicas nas sessões psicanalíticas e sua relação com integração de aspectos do feminino. A partir da evolução de um processo psicanalítico, a autora procura ressaltar como algumas manifestações somáticas de uma analisanda, podem ser vistas como sinais de um processo transformador que marca a passagem de um corpo feminino esquecido, não nomeado, para um corpo banhado pela imaginação e mais harmonioso com a psíque. Neste processo coloca em destaque o resgate do feminino- materno como suporte da Feminilidade, em uma analisanda com profunda dissociação desses elementos na personalidade. “O corpo requer uma atenção expressiva tanto como a mente, o corpo não é uma mente deficitária” Meltzer, D. O estudo psicanalítico do tema do feminino, um assunto complexo e ainda em pesquisa no campo da psicanálise, não pode dispensar sua parte inseparável, o masculino. Gostaria de destacar que parto da idéia de que em cada ser humano, tanto homem como mulher, operam vivências internas e manifestações tanto masculinas como femininas num interjogo criativo e intimamente ligado com a estruturação da identidade sexual. Essas vivências internas em masculino e feminino são constitutivas do aparelho psíquico, e geradas nas trocas afetivoemocionais, de variados matizes, que se dão nas primitivas relações com as figuras parentais de ambos os sexos. * Membro Efetivo da SBPSP e representante do Comitê Mulheres e Psicanálise (COWAP-IPA) junto a SBPSP 2 Neste texto, no entanto, procuro focalizar o feminino em uma analisanda que apresentava forte dissociação deste aspecto em sua personalidade. Em um outro texto, Holovko (2002), levantei questões sobre o processo de enraizamento da psique no soma (Winnicott,1949a), examinando como determinadas manifestações somáticas de alguns analisandos podem ser vistas como sinais de um processo transformador que marca a passagem de um corpo escondido, não nomeado, esquecido no universo de defesas, para um corpo banhado pela imaginação, um corpo mais integrado e harmonioso com a psique. Procurei enfatizar como algumas manifestações somato-psíquicas podiam cumprir um papel de atrair a psique de volta à associação original e íntima com o soma. Naquele momento a ênfase era colocada nas somatizações, que ocorriam numa fase imediatamente anterior ou concomitante a momentos de mudança psíquica evidentes. Neste texto gostaria de expandir aquelas colocações, relacionando-as com a integração do feminino dissociado. Como psicanalista, quero chamar novamente a atenção para o cuidado que precisamos ter para não confundirmos, quando a somatização é a expressão de movimentos de expansão do universo imaginativo debruçado sobre o corpo e quando é a expressão de impossibilidade de conter em nível psíquico a experiência emocional. Acredito que isso só pode ser determinado a cada momento pela experiência da dupla analítica. Mapear estes momentos, discriminálos, torná-los acessíveis ao nosso olhar me parece um exercício trabalhoso de observação contínua. Penso que um dos objetivos da análise é, além de ajudar o paciente a pensar e elaborar suas experiências emocionais através da vivência transferencial, apresentá-lo a seu corpo e auxiliá-lo a enraizar-se nele, encontrarse como indivíduo psicossomático em contínuo processo de vir a ser. Feminino, Feminilidade e Gênero Atualmente o paradigma da mulher e do feminino, assim como o paradigma do homem e do masculino, estão em pleno processo de transformação. Este fato tem levado a criação de várias iniciativas de pesquisas e estudos tal como a do 3 Comitê Mulheres e Psicanálise ( COWAP- IPA). Este Comitê vem estudando há alguns anos os fatores sociais e culturais que tem influido nas concepções teóricas psicanalíticas sobre o masculino e o feminino. Nesse sentido, os estudos sobre gênero e psicanálise, que constituem duas disciplinas diferentes, se encontraram em um momento do desenvolvimento das idéias e deram nascimento a sérias investigações. Afirma Alizade(2004) “O conceito de gênero é um conceito de encruzilhada, de confluência, que trabalha nos limites da multiciplinariedade (filosofia, religião, antropologia, psicologia, sociologia, economia, etc...). A palavra gênero foi utilizada por John Money, o qual a extrapolou da gramática para a medicina, na década de cinquenta. Com essa palavra, assinalava as condutas atribuídas a homens e mulheres ( papel de gênero ).(.... ) Os estudos de gênero enfatizam os condicionamentos culturais e as ideologias sociais que fixam padrões de conduta e estereótipos variáveis segundo as circunstâncias do tempo e da história. O corpo em sua sexualização se converte em uma sede em um nó de cultura, e as atividades sexuais se delimitam em códigos de inegável sentido cultural (...) O conceito de gênero introduz parâmetros novos ao olhar psicanalítico sobre o sexo, a saber: o relativismo, a desconstrução, a subjetividade e as heterogeneidadesi”. Partindo dos estudos de gênero foram questionados e examinados embasamentos ideológicos que se apresentavam como funcionamentos universais e naturais nas teorias psicanalíticas, como por exemplo, a teoria falocêntrica de Freud com as noções da fragilidade e inferioridade das mulheres, o superego frouxo, a inveja do pênis e etc... Essas investigações questionam as construções teóricas procurando identificar as particularidades de cada cultura e a conscientização da desigualdade que foi impressa entre os gêneros, enfatizando o peso que tiveram na constituição de suas subjetividades. Segundo Nancy Chodorowii (2003) o gênero se apresenta e se constitui a partir: de filtros contínuos projetivosos e introjetivos de cultura; de interpretações dinâmicas individuais e personalizadas; de fantasias e imagens sobre o próprio corpo; de fantasias sexuais parentais; da historia cultural; da história do psicodesenvolvimento individual, com suas particularidades conflituosas, 4 defensivas, reparadoras; de suas fantasias inconscientes sobre seu gênero enquanto homem ou mulher; de fantasias a respeito da mãe, do pai, e das outras figuras primárias, assim como do holding do ambiente, ou seja, todos esses fatores estariam implicados na criação do sentido de identidade de gênero, formariam parte da estrutura e dinâmica de cada gênero em particular, estabelecendo expectativas de papéis e funções de gênero. Além desse núcleo de identidade de gênero, segundo Alizade, é possível em função da bissexualidade psíquica, observar a vivência de experiências de masculinidade e de feminilidade em várias combinações, tanto em homens como em mulheres.”Cada ser humano é dificilmente unívoco e monolítico no estabelecimento dos movimentos subjetivos concernentes ao gênero ao longo da sua vida. Mesmo que tenha uma identidade nuclear bem estabelecida, existirão momentos vitais ou experiências nas quais se sentirá funcionado em maior medida com seus aspectos femininos ou masculinosiii“ (Alizade2004). Ela afirma que muitas vezes...”uma visão de gênero pode impedir a flexibilização da escuta na relação analítica, uma mulher não é sempre uma mulher, nem um homem sempre um homem... o teatro psicanalítico apresenta ficções em um mais além da realidade material, e a realidade psíquica requer essa escuta aberta livre de convenções de gênero no marco homem mulher...iv”. Diz que o perigo da psicologia de gênero é impedir uma escuta das identificações inconscientes, tomando erroneamente, como por exemplo, as brigas de uma mulher com seu marido como decorrentes dos pressupostos culturais de submetimento da mulher a dominação do homem num contexto patriarcal, quando na realidade inconscientemente esse marido pode estar representando a mãe dominadora a quem essa mulher está pré- edípicamente fixada. Ao mesmo tempo nos chama atenção, nos alerta, para o fato de que as teorias de gênero ensinaram aos psicanalistas a estarem mais atentos em sua escuta aos condicionamentos culturais dos pacientes e dos próprios analistas. “A auto consciência dos preconceitos e das convenções imperantes por parte do analista outorga maior autenticidade à sua clínica e permite detectar inclusive muitas vezes nas próprias teorias psicanalíticas os modelos sexuais vigentes...v” 5 A psicanalista Fiorini (2004) também nos convoca a examinar as relações entre as teorias de gênero e a psicanálise “Uma das colocações mais significativas é que não há uma equivalência fixa dos homens e das mulheres reais ao masculino e ao feminino, respectivamente (Freud: 1920). A psicanálise afirma fundamentalmente que homens e mulheres não coincidem sempre com a masculinidade e a feminilidade em um sentido tradicional. A ordem fantasmática excede a nomeação como homem ou mulher. Nesse sentido, o desejo sempre funciona como um fator de descentramentovi” (...) ”Pode-se dizer que gênero é uma referência a construção cultural da diferença sexualvii.”(...) ”Se tratarmos agora de examinar ambas as teorias, psicanálise e gênero, poderemos pensar que a psicanálise dá proeminência a sexualidade e a pulsão e que trabalha com a noção de sujeito excindido a partir dos conceitos de repressão, negação e da constituição do inconsciente. O campo psicanalítico se amplifica quando inclui o registro da sexualidade em relação com o campo do outro. Isto implica considerar o psiquismo como um sistema aberto. Desta maneira, poderíamos levar em conta contribuições das teorias de gênero, sem perder a especificidade do campo psicanalítico” Ainda segundo Fiorini, o campo dos ideais que expressam os ideais de gênero em relação a masculinidade e feminilidade convertem-se em um eixo imaginário que tem forte eficácia simbólica. “Esses ideais, por sua vez, incluem idealizações, chaves, códigos sobre os gêneros que deveriam ser desconstruidos no processo analítico. Correspondem a zonas de interseção entre os discursos vigentes e os processos inconscientes e pré-conscientes, singulares de cada sujeito... Expressam-se através de ideais parentais, que marcam também as zonas erógenas de acordo com o gênero tanto dos pais como da criança. Os contatos e as evitações, as palavras ou sua ausência, são diferentes em relação ao gênero da criança, e isso já implica um primeiro reconhecimento que confirma ou não a nomeação inicial de um recém nascido”. Gostaria de ressaltar que em um outro artigo ( Holovko 2004) utilizei o termo feminino e o termo feminilidade para me referir a aspectos distintos na constituição 6 do ser humano e da mulher. Apoiada nas concepções de “elemento feminino puro” de Winnicott chamei de feminino aquele momento originário do contato do bebê com sua mãe, no qual o bebê pode ter a experiência de, uma vez sustentado pela relação com ela, poder Ser e ter uma experiência de continuidade no tempo – a partir da vivência em que o corpo do bebê é o corpo da mãe e o corpo da mãe é o corpo do bebê. Nesse sentido, o feminino está relacionado a esse momento constitutivo em que um indivíduo é de certa forma recebido no mundo humano, através de certos cuidados e através dessa identificação intensa entre a mãe ou pessoa que está na função e o seu bebê, possibilitando um sentido de continuidade e de poder Ser. É um momento originário que funda um lugar a partir do qual o ser humano pode existir em presença de um outro e se projetar para o futuro. Nas palavras de Winnicott (1971)”...nenhum sentimento do eu (self) surge, exceto na base desse relacionamento no sentimento de ser. Este último é algo que precede a idéia de estar-em-união-com, porque ainda não houve nada mais, exceto identidade.” “... o elemento masculino faz,ao passo que o elemento feminino (em homem ou mulher ), é”. Quando esse momento constitutivo não pode ter lugar, como observamos no contato com muitos analisandos, observamos um tipo de organização em que o Fazer é reativo. Feminilidade no sentido que estou dando aqui está relacionada a todos os elementos que vão ocorrendo dentro do processo maturacional, quando a menina lidando com as diversas vicissitudes da situação edípica pode encontrar as identificações com a figura materna, assimilar os signos e os símbolos culturais relacionados com a feminilidade e também encontrar o olhar paterno - masculino que a reconhece com seus atributos femininos. Nesse sentido o Feminino é muito mais uma experiência como modo de Ser (Winnicott) e Feminilidade já implicaria em toda uma organização representacional, que está relacionada com a passagem pela situação edípica, mais relacionadas às teorias de Freud e Melanie Klein. 7 Material Clínico A constatação de que algumas somatizações que aparecem durante o processo analítico poderiam estar indicando um movimento de expansão em direção à ampliação da experiência psíquica, me foi sugerida, primeiramente, durante a análise de uma mulher a qual chamarei de Juliana. Esta experiência me tornou mais atenta a processos semelhantes em outras análises nas quais em momentos de mudança psíquica evidentes tenho presenciado o aparecimento de algumas somatizaçôes que me sugerem um movimento de elaboração imaginativa (Winnicott, 1990) de partes do corpo. Quando procurou análise, Juliana, 37 anos, casada há 10 anos, desejava examinar sua relação conjugal que lhe parecia bastante deteriorada: a vida sexual era praticamente inexistente, pois não mantinha relações sexuais com seu marido há mais de um ano, e a relação de forte rivalidade e competição com discussões diárias do casal terminavam em agressões físicas e quebra de objetos. Seu descontrole agressivo provocava-lhe muita angústia e culpa. Desejava também saber e definir finalmente se queria ou não ser mãe, dúvida que muitas vezes a atormentava. No seu dia a dia não encontrava espaço para a maternidade, pois dizia, não suportava a idéia que alguém dependesse dela, assim como não queria depender de ninguém. Apresentava um discurso que demonstrava desprezo e desvalorização por tudo que se relacionava com comportamento feminino (expressões de emoções, dependência amorosa, atitude receptiva, , cuidados com o corpo e com o vestir-se, etc.). Demonstrava, no entanto, forte admiração pelo desempenho intelectual do marido e nesse campo encontravam muitos pontos em comum. Construiu, ao longo dos anos, uma carreira profissional exitosa na qual era muito respeitada. Trabalhava como autônoma e praticamente todo o seu tempo era dedicado à profissão, com pouquíssimos contatos com a família e com os raros amigos. O início da análise foi marcado por profunda desconfiança e desprezo, muitas vezes, pelo fato de eu ser uma analista mulher. Sempre que nos 8 aproximávamos de áreas que mobilizavam suas emoções e afeto reagia com hostilidade e evasão. Queixava-se de muita dificuldade para conciliar o sono, só conseguindo adormecer quando o dia clareava. A dedicação ao trabalho era total e exclusiva, deixando transparecer desde o início como utilizava o trabalho e toda a sua formação intelectual para evadir-se do contato com suas emoções, impulsos e principalmente da intimidade com os outros. Era marcante também a intelectualização que fazia das experiências vividas, o que a impedia de senti-las verdadeiramente e pensá-las.Vangloriava-se de ter sido sempre uma pessoa ativa e “auto-suficiente”. Queixava-se muito de sua família de origem, principalmente do pai, que sempre fora visto como uma pessoa extremamente rígida e exigente, e da mãe, que era percebida como uma mulher fria, seca, distante e deprimida, com a qual mantinha uma relação de total indiferença. Durante sua análise sempre chamou-me a atenção a quantidade de somatizações que apresentava. Nos primeiros tempos, apareciam muitos episódios de enxaquecas, que se manifestavam nas sessões, quando o discurso intelectual ia cedendo ao contato com alguma manifestação emocional. Após um ano e meio de análise, três vezes por semana, começou a mostrar-se mais aberta e confiante para poder vivenciar suas emoções. Ao mesmo tempo em que surgia um maior envolvimento amoroso nas sessões (transferência francamente positiva na análise), crescia também seu interesse por uma sobrinha de 4 anos. Relatou-me, várias vezes, o prazer inesperado que sentia na companhia dessa criança. Buscava-a na escola, levava-a ao teatro, contava-lhe estórias antes de dormir, divertia-se com suas brincadeiras... Assinalo aqui como utiliza sua função materna com a sobrinha, para retomar o contato com a “sua menina esquecida”. Começa agora a liberar e reincorporar os seus aspectos maternais cindidos. Neste ponto, me recordo da noção de “materno primário”, postulada por Florence Guignard (1999), relacionada às identificações primárias da menina com o materno da mãe, expressas nas brincadeiras com bonecas e em sua 9 colaboração eventual no cuidado com os irmãozinhos que porventura venham a nascer depois dela. Tanto o bebê do sexo feminino como o bebê do sexo masculino seguem o mesmo destino “no que se refere á constituição de seus primeiros espaços psíquicos em relação identificatória com a capacidade materna de pensar, no espaço do “materno primário”, e com o desejo da mãe pelo terceiro paterno, no espaço do “feminino primário” (pg. 227). Para Guignard, “materno primário” está relacionado às experiências de descoberta do “si-mesmo-fora-da-mãe” propiciada pela rêverie e olhar materno que dão a possibilidade de um outro ser emergir: “Nos dois sexos, os processos identificatórios do “materno primário” contém a gênese da descoberta da alteridade e da diferença das gerações ao passo que os processos identificatórios do “feminino primário” contêm a descoberta inicial da diferença dos sexos” (pg. 230). O espaço do “feminino primário”, nessa concepção, está vinculado ao lugar da constituição da bissexualidade psíquica, “na complexidade quase imediata dos processos identificatórios do infans com a mãe psiquicamente ausente, por um lado, e com o objeto de desejo que a “torna ausente”, por outro” (pg. 227) Daniele Quinodoz (2003) parece comungar também com essas noções de “materno primário” e “feminino primário” quando afirma que, em relação aos órgãos sexuais femininos, o que realmente importa não são os órgãos sexuais em si, mas sim as fantasias evocadas por esses órgãos. Ela considera o útero como ponto de ancoragem das fantasias que dizem respeito “às funções do feminino maternal, enquanto a vagina é o ponto de ancoramento das fantasias ligadas às funções do feminino-amante e os seios evocam sobretudo fantasias de nutrição” (pg. 212). Depois dessa digressão teórica gostaria de retomar o andamento do processo clínico com Juliana. Nessa época, em que está profundamente envolvida, eu diria apaixonada, pela sobrinha, começa a surgir um forte desejo de ser mãe. As discussões com o marido haviam diminuído consideravelmente, já não apresenta mais descontroles 10 agressivos, porém a relação ainda é de muita competividade e pouca receptividade com ele. No mesmo período, sentimentos que não fazem parte do seu universo psíquico, tais como mágoas, ressentimentos, ódio em relação a figura materna, começam a emergir com muita intensidade. Durante alguns meses, as queixas relacionadas à mãe são muito freqüentes. Vêm para o primeiro plano fortes sentimentos de hostilidade em função das várias experiências de frustração com a mãe que agora são percebidas e registradas. Surpreende-se com tais sentimentos, pois sempre acreditara que a mãe lhe fosse indiferente e que as suas críticas e ressentimentos fossem mais fortes em relação ao pai. Começa, então, a aprofundar o contato com o seu mundo interno. Abordamos nesse período como grande parte do ódio e ressentimento dirigidos à mãe apontavam para uma hostilidade dirigida à própria feminilidade também. Surgem queixas em relação ao corpo que se estendem por 8 meses. O abdômen incha e dói muito. Procura ajuda médica, faz vários exames, mas não encontra nada que justifique suas dores. Nas sessões, lidamos com a intensidade das dores psíquicas, com mágoas e ódios dirigidos à figura materna. A somatização de Juliana poderia nesse momento ser compreendida sob a ótica da teoria Kleiniana, estando ligada às fantasias de retaliação em função aos ataques à sexualidade da mãe e ao interior de seu corpo, porém ao lado dessa leitura do sintoma eu era convocada em função da vivência transferencial a uma outra interpretação. As dores na “barriga” naquele momento pareciam sinalizar um novo momento em sua trajetória psíquica. Não se tratava de algo que a mente, por não poder tolerar e conter, descarregava no corpo, mas parecia ser expressão de uma parte visceral que estava ganhando vida. Surgia a experiência de um ódio visceral que estava vivendo a nível físico e psíquico. É possível conjeturar que ela estivesse grávida do ódio da parte repudiada de si mesma, ou seja, dos aspectos relacionados ao universo feminino, principalmente o materno – na visão de Guignard poderia ser o “materno primário”. È interessante notar que, por meio de sua somatização, ela entra em contato com o ventre, lugar corporal fundamental 11 na recuperação do feminino e da posterior feminilidade. Neste sentido, o ventre é a região significante do corpo relacionada à dependencia originária do ventre materno. Matriz somática da necessidade de depender para sobreviver. O ventre alude também à mãe que espera um bebê, e penso que a capacidade para esperar está muito associada à possibilidade de continência (de impulsos e emoções) e talvez pudesse ser vista como uma das manifestações do materno primário na mente. A raiva de Juliana, que há muito tempo não as expressa por descargas agressivas, neste momento, aparece nas sessões através da linguagem verbal e da expressão somática. Têm-se aqui corpo e psique processando tal emoção tão disruptiva. Na relação analítica está menos agressiva e defensiva. Winnicott (1949a) afirma que um dos objetivos das doenças somáticas é atrair a psique de volta à associação íntima original com o corpo. “Deve-se ser também capaz de ver o valor positivo da perturbação somática...” Nesta época, trabalhamos as muitas angústias ligadas ao término de uma dissertação de mestrado; angústias que vieram acompanhadas de fantasias de catástrofe e que remetiam, muitas vezes, aos temores de “dar á luz”. Com a maior integração e apropriação das experiências emocionais cindidas, e que agora retornam, a expressão corporal e postural modifica-se, e vai emergindo uma mulher mais feminina na maneira de comportar-se e vestir-se. O fato de que na mulher os órgãos do prazer sexual e os da reprodução sejam ocultos à visão parece ter influenciado, segundo Guignard 1999, os escritos de Freud sobre a feminilidade, pois neles “nenhuma diferença é feita quanto à figurabilidade dessas duas ordens de orgãos femininos, tratados de uma maneira geral como inexistentes dentro do modelo da teoria sexual infantil fálica que organiza o complexo de castração masculina. Entretanto, os destinos desses dois conjuntos de órgãos femininos começam a se diferenciar assim que são considerados do ponto de vista de seus investimentos pulsionais respectivos e de sua representação psíquica pelo sujeito” (pg. 227). 12 Acredito que a possibilidade de ter acesso à corporeidade feminina, como presenciamos no caso de Juliana, passa pela recuperação das experiências de intimidade com suas fantasias sobre seu corpo e o corpo de um outro que faça as funções requeridas pelas experiências pré-edípicas de constituição do si mesmo. Neste sentido, concordo plenamente com Guignard (1999) quando se refere à estruturação de uma bissexualidade psíquica equilibrada, tanto para o menino quanto para a menina, apoiada na introjeção identificatória ‘suficientemente boa” do materno e do feminino. “ Na menina tal introjeção será particularmente requerida no plano de seu ego corporal em relação com seu destino de mulher” (pg. 228). (grifo meu) No período que antecede às sessões que irei relatar, trabalhamos exaustivamente as angústias e fantasias envolvidas no seu projeto de separação do marido. Nessa época, conhece em viagem um homem com quem consegue estabelecer uma relação de tal intimidade emocional que ela mesma se surpreende. Diz que percebe que com ele (novo relacionamento) é muito mais fácil e natural colocar-se como mulher, atender às suas solicitações, entregar-se à relação sexual... sente-se mais à vontade com o seu corpo quando está com ele...diferentemente da relação que mantinha com o marido, com o qual sempre se colocava na defensiva, de maneira competitiva, opondo-se a ser mais receptiva. Será que poderíamos pensar que estaria emergindo o feminino amante em Juliana ou ainda estaríamos no espaço de constituição e integração do “materno primário”? Vinheta clínica No início da sessão Juliana revela que está mais consciente das dificuldades, das necessidades e dos desejos próprios. Não está mais, como no início da análise, atribuindo a outros, principalmente ao marido, o seu sofrimento. 13 Esta percepção comporta dor e sinaliza na direção de um maior compromisso com a própria vida e com a necessidade de uma mudança. A maior conscientização do desprezo com a função de cuidar de si mesma (função do objeto interno materno) ativa fortes angústias e desejos de reparação. Porém, há muita dúvida sobre a capacidade de restaurar esta função. A forte dor psíquica materializa-se numa dor de cabeça ... Juliana: ”Agora começou a doer a minha cabeça... (chora mansinho). Eu não sei porque faço isso... Tenho percebido que preciso fazer o que eu quero, se não fizer agora que estou com 40 anos, quando é que vou me permitir viver o que eu desejo... (chora com mais intensidade) é possível que este momento de transição, de passagem, de separação, de um modo insatisfatório de funcionamento para um outro que implica em maior autonomia – apontado pela analista – reative nela as angústias da primeira separação e a necessidade de viver finalmente uma relação de dependência básica. Digo à Juliana que ela está num momento de passagem, de mudar essa forma de relacionar-se consigo mesma... e que está triste ao constatar como andou se descuidando... Juliana: “A minha cabeça está doendo muito...” (coloca os dois punhos cruzados sobre a testa) “Estou com frio...” (o corpo treme e o choro continua aumentando). Fico em silêncio observando e acompanhando com emoção a angústia de Juliana. Neste momento, questiono se ela está me sentindo presente. Juliana: “Eu... ia... te perguntar... se você estava... aí... Eu... estava... me... sentindo... muito sozinha.” (diz com a voz entrecortada pelo choro). Percebo que estou muito sintonizada com ela e que neste momento ela está vivendo uma experiência muito importante de contato com as sensações corporais e o nascimento de novas emoções. Opto por não interromper o processo. Após falar, o choro aumenta e começo a ouvir uns chiados que me lembravam um chiado asmático, dando-me a impressão de que a respiração vai 14 ficando cada vez mais difícil, como se sufocasse. O choro evoca em mim a lembrança de um recém-nascido. Percebo que a angústia é muito intensa, sinto que a situação está insuportável. Resolvo segurar as mãos dela que estão voltadas para mim, apoiadas na testa. Quando seguro as mãos, ela as segura com força e o choro se torna convulsivo, a experiência é dramática. Sinto-me extremamente tocada por seu desespero, entretanto percebo que um processo muito importante está ocorrendo. Ela segura com força minhas mãos enquanto seu corpo é tomado por fortes sensações e emoções. Juliana: “Estou... ficando... tonta... Acho... que... estou... em.. lou.. quecendo...” (diz entre soluços e com a voz entrecortada). Cândida: “Você não está enlouquecendo, você está vivendo uma experiência forte de passagem, de mudança. A pressão na cabeça, a respiração difícil, a mudança de temperatura, lembram um nascimento. Você está nascendo para suas sensações e emoções mais íntimas." Aqui fica evidente a turbulência emocional com o respectivo temor ao enlouquecimento, característicos das vivências de mudança catastrófica (Bion, 1977). Neste instante, a presença da analista, com sua capacidade de rêverie, de observar por um outro vértice, foi fundamental. Poder nomear as sensações, integrando-as e dando-lhes um significado metafórico. Importantíssimo desintoxicar a mente dos terrores indizíveis, importantíssimo ressaltar esse momento de cesura e considerar as vivências catastróficas que podem ser mobilizadas. As sensações corporais vêm para primeiro plano na comunicação analítica: a cabeça dói muito, o corpo estremece com calafrios devido à mudança de temperatura, a respiração fica prejudicada pelo choro e um forte sentimento de solidão aparece. A analogia com um parto é a minha primeira associação, e a percepção é que estamos lidando com um nível muito primitivo de funcionamento psíquico (Fenômenos proto-mentais. Cortiñas - 1999). 15 Sentir-se separada, sozinha, faz parte da conscientização da solidão de se estar nascendo para uma relação com outra pessoa também separada (nascimento também de um corpo que não tinha uma inscrição psíquica de uma relação de intimidade). O sentimento de ser uma pessoa separada, pode ter re-atualizado um desespero antigo, ligado ao ressurgimento da experiência de vazio de significado, produzido pela falha ambiental. Esses momentos de vivência de buraco negro reatualizam as agonias impensáveis (Winnicott – 1949b) ou terror sem nome (Bion 1959). Intuitivamente guiada pela sintonia que se criou na situação, a analista intervém segurando as mãos de Juliana, não para impedir a vivência da solidão inerente à condição humana, mas para atenuar e evitar as vivências de terror sem nome (quando o gesto cai no vazio pela ausência de alguém que possa acolhê-lo). Neste ponto, o artigo de Esther Bick (1968) à respeito da experiência da pele nas vivências primitivas pode ser esclarecedor. Esta autora afirma que a necessidade de um objeto que possa cumprir a função de “pele psíquica” leva o recém nascido a voltar-se para algum estímulo, ou seja, qualquer objeto que produza uma sensação, e que possa, momentaneamente, prender sua atenção e retirá-lo de um estado de não integração: uma luz, um cheiro, a voz da mãe, um toque no corpo e até as próprias contrações musculares podem servir como ponto integrador. Quando o bebê encontra esse objeto, se sente, instantaneamente, a salvo do terror, do desamparo e, portanto, da vivência de uma angústia catastrófica, instalando-se nele a vivência de integridade. Após a fala da analista, Juliana chora com mais intensidade, é um choro diferente do anterior, parece entregar-se à experiência. Sinto-a confiante e desarmada na relação como nunca antes fora possível. Noto a importância de expressar com intensidade suas emoções numa relação de confiança e intimidade emocional. Ela, que sempre foi tão arisca à proximidade afetiva, tão desconfiada... A guerrilheira armada dissipou-se... 16 O choro que é ouvido é de alívio, possivelmente do peso das memórias e das angústias longamente asfixiadas. É também um choro de emoção pelo encontro compartilhado. O choro vai se aquietando em seguida... ela está tremendo devido à forte experiência emocional.... Senta-se no divã, e surpresa olha para mim abrindo a possibilidade de um diálogo, pergunta: “é isso mesmo? Poxa, que coisa difícil!" Conversamos sobre as angústias despertadas nos momentos de mudança. Lembramos a época da dissertação de mestrado (período das dores e de inchaço abdominal), quando os temores de desastres estavam presentes, e o clima emocional era semelhante ao atual. Na sessão seguinte conta-me que em casa sentiu que precisava de um tempo de recolhimento, que deitou no sofá no colo do namorado e ficou um momento em silêncio, depois foi falando devagarzinho... Nas palavras de Juliana : “Sentia que precisava daquilo, depois do que eu vivi aqui. Contei para o Francisco que eu tinha tido uma sessão muito impactante.... Ele é uma pessoa que não pergunta muito. Ele ficou ouvindo. Eu precisava disso. Depois, saímos juntos para jantar fora, percebi algo diferente em mim, eu estava muito solta, demos muitas risadas e foi muito bom. Hoje, quando acordei, percebi que tinha passado a dor do ombro, do braço, das mãos e da perna. Desapareceu a sensação de que estava travada. Sinto meu corpo muito mais solto hoje. Foi incrível o que aconteceu.” Na sessão seguinte, Juliana conta o seguinte sonho: "Eu estava com o Francisco (novo relacionamento), em um dos quartos da casa de minha mãe. De repente, escutei um estrondo. Levei um grande susto. Aí olhei pela janela e vi um homem consertando um poste de luz. De repente, a luz surgiu e percebi que não era nada grave". Interessante que neste sonho, ela e o namorado estão na casa da mãe. Poderia ser referência ao interior da mãe, evocando, a princípio, algo ameaçador, mas logo a seguir vivido como um lugar de acolhimento e de percepção de restaurações? O barulho que precede à luz poderia ser visto como uma metáfora do nascimento. Neste contexto poderíamos pensar que se trata de um nascimento 17 para uma relação de intimidade com um outro, nascimento para a experiência da dependência básica, que desperta nela uma automática vivência de catástrofe. Poderíamos também pensar em nascimento de significados ligado à experiência da própria corporeidade, do interior do corpo ligado às experiências do materno, numa relação de continência? Dar à luz também remete a insight. Penso que com esse sonho a paciente continua processando e digerindo o impacto vivido na relação transferencial com a analista. Quando o corpo da analisanda estava em estado de excitação convulsiva exigiu atividade mental de quem estava na função de contenção para restituir significado e vida mental a ela. Foi necessário o estado de prontidão para pensar e agir levando-se em conta o que estava ocorrendo, utilizando a intuição. Será que nesses momentos é preciso intervir não só a nível verbal mas também a nível corporal? Não podemos esquecer que estamos lidando com situações muito primitivas, nas quais existe uma indiferenciação entre psique e soma. Numa situação limite como esta, a analista precisou improvisar, e questões de neutralidade e de técnica analítica, a meu ver, precisam ser repensadas. A possibilidade de um colapso mental, isto é, de repetição da situação traumática catastrófica estava presente e necessitou ser considerada. Um mês e meio depois dessas sessões Juliana me traz um sonho: “Hoje de manhã eu estava tendo um sonho comprido no qual recebia um presente do Francisco (novo relacionamento). Era um pacote muito bonito! Quando abri o presente notei que tinha um outro papel amarelo com desenhos de uvas, muito bonito, e tinha também, além dos desenhos, palavras escritas como poesias. Este papel continha dentro o presente, cachos de uvas... As uvas eram grandes e muito bonitas. Diz que no sonho estava tentando olhar os desenhos e ler as poesias, quando o namorado a acordou, o que a deixou muito aborrecida porque queria ler a poesia que estava escrita no papel. A imagem do sonho era esteticamente muito bela! 18 A paciente associa com uvas vermelhas, com parreiras com folhas grandes, com cachos perfeitos, com vinho e, finalmente, diz que lembra alimento básico: “como o trigo e a uva”. O clima transferencial durante as associações ao sonho é de muita intimidade e forte carga afetiva, compartilhado pela dupla analítica. Nessa narrativa onírica observamos que além da fruta (uvas) há registros de desenhos e poesias, o que possibilita conjeturar que a psique de Juliana está frutificando e produzindo representações ligadas ao feminino-materno (há referência ao alimento básico, à nutrição) O sonho surgiu quando havia experenciado possuir um interior de mulher, o que propiciou a representação onírica dessa conquista. Acredito que, através deste sonho, Juliana está podendo acolher na “casa interna” um registro de um “seio-função materna” com capacidade de rêverie, continência e afetividade. O pacote com uvas além do significado de seio nutridor, também pode ser uma metáfora da “mãe interna” com capacidade pensante, ou seja, no seu aspecto desintoxicador e provedor de significado psíquico (a função primordial de toda poesia é de oferecer significado, de nomear o que não pode ser dito de outra forma). Esse pacote contento uvas também parece aludir ao interior de um corpo, ao ventre banhado pela imaginação poética, contendo uvas-óvulos-férteis, que expressam a restauração do continente interno materno-feminino: seio-úterofunção materna, associado a um continente poético prenhe de possibilidades criativas e gerador de significados, que estava em trânsito de constituir-se na experiência da somatização da barriga e na dramaticidade experenciada na sessão, na qual a expressão corporal veio para o primeiro plano. Penso que nessa seqüência de expressões do feminino, trazidas por Juliana nas vinhetas clínicas (adotar a sobrinha, apreensão do interior do corpo com seus órgãos reprodutores e sexuais – a dor no abdomem-, as narrações oníricas) referem-se ao seu percurso nesse belo caminho em direção às inscrições psíquicas e à incorporação das experiências primitivas com o objeto primário (integração do feminino-materno e esboço do feminino-amante). 19 Neste ponto, gostaria de ressaltar que acredito que quando Juliana apresentou a somatização no abdômen, já havia um início de alfabetização das vivências do feminino, que tiveram a contraparte psíquica no sonho das uvas, como a primitiva forma ideográfica de registrar a experiência com o objeto da dependência primária e com a interioridade de seus órgãos reprodutivos. Podemos assistir aqui a toda uma reconstrução do espaço interno de seu corpo, agora permeado pela fantasia. Daniele Quinodoz (2003) chama a atenção dos psicanalistas para o risco de não perceberem a angústia que muitas mulheres têm de serem amputadas de seus órgãos sexuais e reprodutivos femininos, angústia que ela equipara à angústia de castração dos meninos. Segundo ela, a teoria escolhida pelo analista para a compreensão do universo feminino, somada ao fato dos órgãos femininos não serem visíveis, podem dificultar à escuta da ancoragem corporal dessa angústia, do seu uso nas interpretações e até da nomeação desses órgãos. “A partir do momento em que o fato de não ter sexo masculino permite ter-se um feminino, toda uma nova realidade fantasiosa surge às analisandas para a descoberta das riquezas femininas escondidas... permite ter desejos por uma pessoa que possui o sexo que não se tem, de acordo com um modo de desejar que não é aquele de possuir, mas de ser em relação com”. (pg. 214) Considerações finais Procurei apontar, a partir do material clínico de Juliana, como a impossibilidade de viver o Feminino ( possibilidade de ser em Winnicott ... “feminino-materno” e “feminino amante”, Quinodoz... ”materno primário” e ”feminino primário” - Guignard) - em sua interioridade impedia a constituição da própria Feminilidade da paciente. Na minha experiência psicanalítica com mulheres tenho percebido que é fundamental examinar e permitir a emergência na relação transferencial de vivências relacionadas às relações pré-edípicas dessas analisandas. O fato de as meninas na fase pré-edípica estarem tão intensamente ligadas às próprias mães 20 ou de terem sofrido impedimentos nessa relação de amor primitivo tem um impacto importante sobre o assumir o próprio corpo, a sua sexualidade e as funções geralmente atribuídas à sua identidade sexual feminina. A experiência clínica revela que algumas analisandas, como esta que descrevi, só depois de poderem viver a dependência primária numa relação de profunda intimidade e continência psíquica com a analista ( identificação com o feminino materno), podem vir a assumir um corpo de mulher, com a abertura ao prazer da sexualidade ( identificação com o feminino amante da mãe) e as experiências da maternidade, e só assim podem construir uma Feminilidade apoiada em uma base sólida de identificações. Essa experiência de intimidade descortina possibilidades que aparentemente pareciam sepultadas, ora sob discursos racionalizantes, muitas vezes de cunho francamente feminista, ora em casos mais graves, pelas negações, cisões, identificações projetivas. A análise revela o que permanecia oculto: uma quantidade enorme de ressentimentos em relação aos pais, principalmente com relação à mãe, mágoas, ódios, dores profundas não nomeadas, vinculadas aos desencontros ou à impossibilidade de vivenciar experiências de sintonia e continência na relação primária com a mãe e/ou desencontros com o necessário relacionamento limitador e amoroso com o pai. Um fator determinante para o futuro desenvolvimento da menina no caminho de se tornar mulher é a resposta do pai à sua feminilidade. Ele facilitará ou não o sentimento de triunfo edípico da menina sobre a mãe e, ajudará ou não a lidar com as culpas em relação a ela, ao mesmo tempo que dará estímulo à sua feminilidade reconhecendo-a e valorizando-a. Como assinalou Freud (1931), a relação edípica é herdeira dos encontros felizes, dos profundos desentendimentos, enfim das vicissitudes da relação préedípica, portanto a formação da identidade sexual será marcada por essas primeiras experiências. Atualmente presenciamos nas nossas analisandas, uma série de manifestações sintomatológicas relacionadas às falhas nessas identificações 21 primárias do feminino e perpetuadas pelos padrões, valores culturais e sociais da era comtemporânea, que determina e estimula o que deveria ser o feminino O que vemos nas sessões e constatamos na mídia são muitas vezes verdadeiras caricaturas do feminino, comportamentos de feminilidade, nas quais mulheres mimetizam que no fundo encobrem um verdeiro vazio identificatório. Nessas situações, muitas vezes o que observamos, são expressões de uma corporeidade que não encontrou espaço psíquico para constituir-se. Por exemplo, na frequencia de cirurgias plásticas compulsivas, nas anorexias nervosas, nas bulimias, na compulsão a consumir roupas e objetos que configurem um corpo e um padrão de mulher a ser seguido (as Barbies por exemplo); nos encontros virtuais via internet, onde os corpos são dispensados, e etc....... E é por essa razão... que nós psicanalistas devemos redobrar o nosso olhar para as manifestações somato-psíquicas nas sessões, a fim de que ao não ignorálas possamos contribuir para o resgate de um feminino, apoiado na constituição de uma corporeidade e de um sujeito pensante, nascido no seio de uma relação de intimidade e continência psiquícas. Assim como a poesia de Drummondviii ( intitulada “Procura da Poesia” 1989) fala das palavras que se encontram em estado de dicionário e esperam ser reveladas, assim também o estudo do feminino se apresenta ainda como um campo a ser desvirginado, mapeado e nomeado. Deixemos que manifestações do feminino e do masculino dentro de nós, tal qual um casal fértil nos envolva com sua urgência de revelação. Estejamos em estado feminino-receptivo no encontro com o conhecimento, na troca com nossos pares e fundamentalmente na intimidade com nossos analisandos para que mais luz possa ser irradiada nesse campo. A busca de mais compreensão sobre o feminino também se encontra nas pausas silenciosas de nossa alma que, com seu silêncio receptivo e prenhe de significados, descortina um espaço de novas descobertas. 22 Nós mulheres carregamos em nós uma multidão de outras mulheres que nos precederam, juntamente com as concepções do que tem sido considerado feminino desde tempos imemoriais. Essa herança tem moldado e influído na constituição e conformação de nossa subjetividade. Identificar essas determinações pessoais e culturais permitirá ainda mais nos apossarmos da singularidade de cada uma de nós no momento existencial presente. Rescuing the feminine through the somatic-psychic experience: from pain to psychical suffering This article aims at punctuating a few reflections about psychosomatic manifestations during the psychoanalytic sessions of a female patient in relation to the integration of some feminine aspects. From the evolution of a psychoanalytic process, the author tries to highlight how some somatic manifestations of a patient may be seen as signals of a transformation process that marks the passage of a not nominated feminine forgotten body to a body bathed by imagination and in better harmony with the psyche. In this process she highlights the rescuing of the maternal feminine as support to Femininity in an analyzand with deep dissociation from these personality elements. Key words Somatization, feminine and masculine sexuality. pure feminine element, primary maternal, primary feminine, femininity, dream. Este artículo objetiva establecer algunas reflexiones respecto a las manifestaciones somato-psíquicas en sesiones psicoanalíticas y su relación con la integración de aspectos de lo femenino. A partir de la evolución de un proceso psicoanalítico, la autora destaca cómo algunas de las manifestaciones somáticas de una analisanda pueden ser vistas como señales de un proceso transformador que marca el pasaje de un cuerpo femenino olvidado, no nombrado, hacia un cuerpo tomado por la imaginación y en harmonía con la psique. En dicho proceso se pone de relieve el rescate de lo femenino-materno como soporte de la Femeneidad en una analisanda con profunda disociación de estos elementos en su personalidad. 23 Palabras llaves somatización, sexualidad femenina y masculina, elemento femenino puro, materno puro, materno primario, femenino primario, femeneidad, sueño Referências bibliográficas ALIZADE, M. “Relaciones lógicas y controvérsias entre gênero y Psicoanàlisis”. In: Psicoanàlisis y relaciones de gênero. Compilado por Maria Teresa Lartigue – Buenos Aires: Lumem, 2004. p. 19. (Cowap Series) BICK, E. (1968) A experiência da pele em relações objetais arcaicas. J. 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