A lógica linear dos portugueses.

Transcrição

A lógica linear dos portugueses.
A lógica linear dos portugueses.
Rui Carvalho/2005
Vou-lhes contar um segredo: sou português. Desculpem ter falado assim sem rodeios, ter
dado uma notícia dessas sem nenhuma palavra de aviso, assim de chofre, como um tiro na nuca, à
queima roupa. Mas você sabe caro leitor, uma informação de alto impacto como essa, precisa ser
cuspida sem meias medidas, para não dar tempo de nenhuma reação que ultrapasse o famoso e
indefectível “é mesmo? Nossa, mas você não tem nenhum sotaque!” Ora vão todos pro inferno...é
claro que tenho sotaque, e muito! Eu falo português com sotaque brasileiro! Ou vocês acham
que eles (nós), lá em Portugal, é que falam com sotaque? Era só o que faltava!
Bom, mas isso é apenas um pequeno exemplo das injustiças que os brasileiros nos fazem
diariamente. A mais impiedosa, porém, é a mania que todos têm de querer contar piadas de
português. Eu não me conformo, fico indignado. Qualquer um com um pouco de cultura e
conhecimento sabe que piada de português não existe...é tudo verdade.
Mas enfim, folclore à parte, a verdade é que os brasileiros cometem um grave erro quando
insistem em ir para Portugal sem se prepararem, achando que vão encontrar um país irmão, com a
mesma língua, a mesma cultura, e que por isso mesmo, dispensa maiores cuidados. Ledo engano.
Existe uma armadilha perigosíssima que espera todos os brasileiros desavisados: é o que eu chamo de
linearidade lógica dos portugueses, aquela mania de interpretar tudo ao pé da letra, de responder
exatamente ao que se perguntou e mais nada! Chega a beirar o paradoxo: como podem eles ser ao
mesmo tempo sintéticos em seu raciocínio e, frequentemente, prolixos em sua comunicação? Está aí
uma piada nunca entendida pelos brasileiros espertos que se deliciam com a pretensa burrice lusitana!
Mas vamos ver alguns exemplos da impressionante lógica linear dos portugueses, que tanto
espanta os visitantes tupiniquins, normalmente mais preocupados em encontrar um bom motivo para
mais uma piada de português do que em entender as delicadas nuances que separam as duas
culturas.
A bordo de um avião da TAP, a comissária (hospedeira de bordo em português) pergunta
solene ao executivo brasileiro sentado na primeira classe: “Ora boa noite, o senhoire açaita
jantare?” ao que o distraído passageiro responde: “E quais são as opções senhorita?”,
imediatamente a lógica linear portuguesa entra em cena e a hospedeira dispara incrédula: “Ora pois
meu senhoire, as ópções, evidentemeinte, são: sim ou não?!?”
Pois bem, quem é que pode contestar afirmação de lógica tão desconcertante que beira a
simplicidade mental? Pois não é que a dita cuja tem razão? Pois se a pergunta é se o senhor aceita
jantar, qualquer ignorante devia saber que as únicas opções possíveis de resposta, são,
evidentemente, Sim ou Não! Ponto para os portugueses.
Mas agora vejam outro exemplo: um turista brasileiro caminhando nas ruas de Lisboa
pergunta a dois rapazes com ar de estudantes secundaristas: “ô amigo, você sabe onde fica o
hotel Nacional?” Um dos rapazes olha fixamente para o turista e responde sem hesitação: “sei sim
senhoire”, e sai andando deixando para trás o perplexo turista! Virando a esquina, o rapaz que o
acompanhava, um inteligente dançarino de axé music brasileiro, pergunta intrigado: “pô meu rei,
porque é que você não disse pro otário onde é a porra do hotel Nacional?” sem hesitar, o
lusitano responde impaciente: “pra começaire eu nem sou irmão do gaijo, e depois o tipo
também não perguntou onde é o hotele, ele perguntou se eu sabia! Ou seja, podia ser
apenas uma pesquisa de conhecimento, percebes?”
Pois é caro leitor, quem é que pode discordar de uma lógica tão linear, direta e incontestável
como essa? É claro que o turista deveria ter solicitado o endereço do hotel, pois ao não fazê-lo, deu ao
lusitano a chance de exercer a terrível capacidade de síntese que só os portugueses têm. Mas às vezes
até eu, mesmo sendo português, me espanto com a religiosidade com que a lógica é tratada no dia a
dia dos portugueses. I maginem vocês que um dia perguntei a um dono de restaurante de Lisboa se
eles fechavam aos domingos. Sem nenhuma hesitação o Joaquim Manoel respondeu secamente: “Não
pá, nunca fechamos aos domingos”. Inocentemente, eu resolvi confrontá-lo e provoquei: “Mas
como é que vocês não fecham aos domingos se eu passei aqui ontem e o restaurante
estava fechado?”. Com as veias da testa saltadas de indignação, o português deu-me uma lição de
interpretação de texto baseada na tal da lógica linear: “Ó rapaz, nós nunca fechamos aos
domingos, pois nós nem sequer abrimos porra, nós fechamos aos sábados e só abrimos às
segundas, percebeste ó pá?!”
Como você pode ver, caro leitor desavisado, é bom começar a rever os seus conceitos sobre
lógica, interpretação de texto e até de idioma. Se eu fosse você, nunca mais diria que fala português.
O mais certo, é dizer que aqui, no Brasil, falamos brasileiro, e por isso mesmo, é preciso fazer um
cursinho rápido de português sempre que pretendermos visitar terras de além-mar. Eu, pelo sim pelo
não, telefono semanalmente para o meu pai, em Portugal, para nunca perder contato com a infalível
lógica lusitana. (Os amigos, maldosamente, dizem que é para eu zerar o QI!) Na semana passada,
meu telefone tocou e ao atender, reconheci imediatamente a voz do meu pai, hoje com oitenta e
quatro anos de experiência nessas coisas de lógica linear. Da forma mais portuguesa possível, assim
que eu falei “alô”, ele disparou: “está lá?”, eu, distraído, entrei no jogo e respondi: “estou sim pai”.
Imediatamente o choque cultural se fez presente e tive que engolir um irônico, mas irrefutável “eu sei
que estás aí pá, senão, nem tinhas atendido, ora pois!”.
Depois que desliguei, fiquei matutando com meus botões, preciso decidir se sou português ou
brasileiro, não sei por quanto tempo mais eu ainda consigo lidar com esse bi nacionalismo que me
confunde e me perturba. Puxa a vida, bem que eu podia dormir sem essa, percebeste brazuca?
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