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Origens do direito de asylum nas ecclesiae primitivas:
O problema do asilo junto a estátuas de imperadores romanos
Marcos José de Araújo Caldas
______________________________________________________________
Doutor em História Antiga, Letras Clássicas e Literatura Iberoromânica pela Universidade
de Bonn.
Professor Associado I de História Antiga e Teoria da História. IM\UFRRJ.
E-mail: [email protected].
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Resumo. O direito de asylum eclesiástico nos remete a uma prática com
extensa tradição histórica cuja origem remonta a uma época anterior a Igreja
primitiva. Este artigo tem por objeto realizar algumas reflexões sobre o
instituto do asilo primitivo, apresentar como hipótese o uso do ius imaginum
romano, como uma das fontes para a compreensão das origens do asilo nas
ecclesiae primitivas.
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Abstract. The Ecclesiastic Law of asylum refers to an ancient custom with a
long historical tradition which roots date back to a time earlier than the
ancient church. This article intents to set down thoughts about the ancient
Asyl Law and presents the use of the roman ius imaginum as one of the
sources to understanding of the rise of asyl’s right in early Churches.
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Palabras chave. Asilo; Igreja Primitiva; Religião Romana; ius imaginum.
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Key words. Asyl; Early Church; Roman Religion; ius imaginum.
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Até fins da década de 70, o asilo eclesiástico figurava entre as práticas
vigentes legalmente no Código de Direito Canônico de 1917 (CIC, §1179),
6
mas com a entrada em vigor do novo Código, promulgado em 1983, o direito
de Asilo foi suprimido; não obstante, segue sendo uma prática Igreja Católica,
embora
seja
reconhecido
pelo
atual
direito
canônico1.
Com
o
desenvolvimento do Estado Moderno as igrejas perderam progressivamente a
tradicional imunidade e a capacidade de outorgar indultos à margem da
legislação secular, ainda que a Igreja, nos países europeus, continue
acolhendo refugiados em busca de asilo2. O número de pessoas que buscaram
asilo na Europa nos últimos é impressionante: para se ter idéia da tragédia
humana em curso, desde o início da crise na Síria, cerca de 2.800.000 (dois
milhões e oitocentas mil) pessoas buscaram refúgio na Europa, mas apenas
96.000 (noventa e seis mil) alcançaram o continente Europeu em 20143. Esta
é uma prática que causa frequentes disputas e tensões entre a Igreja e o Estado
em numerosos países pois várias igrejas procuram acolher imigrantes a
despeito da legislação de seus respectivos Estados ou mesmo em franco
descumprimento à legislação da União Européia. Em alguns casos ocorridos
na Alemanha, padres paroquianos recebem imigrantes à margem da
legislação, e o fazem de modo velado omitindo informações a seus superiores
a respeito do acolhimento de imigrantes, ou, como ocorre frequentemente, à
pessoa que exerce a autoridade eclesiástica em uma Igreja é sugerido não
informar à comunidade local sobre a presença de um asilado, o que demonstra
a tensão no que diz respeito ao direito de Asilo disputado entre a Igreja e o
1
No novo Código de Direito Canônico os capítulos dedicados aos lugares e tempos sagrados (De loci et
temporibus sacris) se encontram no livro IV, parte III, Titulo I, §§1205-1213, não há menção do direito de
asilo como no CIC de 1917 (Cf. Retzbach, 1953, 254).
2
Não há números exatos mas se calcula que cerca de 43,3 milhões de refugiados pediram asilo em 2009.
Dados da Agencia da Organização das Nações Unidadas ONU para refugiados. Disponível em:
http://www.unhcr.at/navigation-oben/presse/einzelansicht/article/31/unhcr-weltfluechtlingsstatistik-2009433-millionen-auf-der-flucht.html?PHPSESSID=e39d3d79c470ee0bb597c99623bce2b5
3
http://www.amnistiainternacional.pt/files/Relatoriosvarios/SOSEurope_HumanCostOfFortress_Europe_Report.pdf. Pg. 06
7
Estado.4 Na França foi constituída uma comissão episcopal para tratar do
tema, com importantes avanços para a Igreja5.
O asilo eclesiástico já aparece no Codex Theodosianus (CTh. IX, 44 y
45 sqq.) promulgado por Theodosio II (408-450 d.C.) e confirmado no Codex
Iustinianus (527-565), embora tenha sido somente instituído, quer dizer
considerado um Instituto pela Igreja, no Concílio de Orleans (511 d.C.) sob
Clodoveo I (466-511), e na ocasião dizia respeito diretamente ao espaço
(local) de refúgio do asilado, comprendendo não apenas o interior do recinto
sagrado (espaço da Igreja), mas também seus arredores6. Para muitos autores
modernos, o asilo sagrado remonta à tradição bíblica, onde já está presente no
Antigo Testamento (Ex 21, 13-14, Núm. 35, 9-34, Dt.19 1sqq, 1Rs 1, 50; 2,
28-34 y Js 20, 1 sqq.), passando diretamente ao âmbito da Igreja no período
theodosiano em 392 d.C. (C. Th. 1, IX, tit. XLV, 1; UNDABARRENA, 1997,
p. 209-232)7. Depois de um grande desenvolvimento durante a Idade Média,
sobretudo em territórios de maior influência romana, o direito de asilo foi
fixado como uma prerrogativa da Igreja ante o poder do Estado. O Instituto
jurídico do asilo eclesiástico teve uma participação efetiva na construção do
4
Disponível em: http://www.kirchenasyl.de/ Wird ein »Kirchenasyl« öffentlich gemacht?
Ein öffentlich gemachtes »Kirchenasyl« wird in der Regel den Schutz der Betroffenen vor staatlichem
Zugriff verstärken und darüber hinaus Mängel im Asylverfahren und Asylrecht verdeutlichen. Deshalb ist es
wichtig, mit dem »Kirchenasyl« an die Öffentlichkeit zu gehen. Im Einzelfall aber kann es sinnvoll sein, sich
für ein »stilles Kirchenasyl« zu entscheiden, das erst nach Beendigung mediale Aufmerksamkeit erlangt. In
jedem Fall aber ist ein »Kirchenasyl«, ob öffentlich oder »still«, den Behörden bekannt zu machen. (grifos
meus)
5
Disponível em: http://www.eglise.catholique.fr/conference-des-eveques-de-france/textes-et-declarations/lesenjeux-de-la-reforme-du-droit-dasile-.html. 2003.
6
CONCILIA – CONCILIA AEVI MEROVINGICI (CAM) – T.I. recensuit. F. Maassen. Concilium
aurelianense. a. 511, Iul. 10 (CA). In: MONUMENTA GERMANIAE HISTORICA (MGH) inde ab anno
Christi quingentesimo usque ad annum millesimum et quingentesimum. Hannover: Ed. Societas Aperiendis
Fontibus rerum germanicarum medii aevi. Legum Sectio III Concilia. Tomus I. 1893. §§ 1-3. A grande
inovação deste concilium não é tanto o abrigo da Igreja ao suplicante e as proibições de violação do recinto
sagrado, pois estas existiam também previstas no Codex Theodosianus, mas antes as sanções contra os que
violassem quaisquer normas dispostas, tais como a obrigação de afastar-se da comunidade católica e não
poder receber os sacramentos da Igreja.
7
. Numeros 35:11 H¡L¥W¦N I¤X¡R (cidades de refúgio). Não se trata exatamente de um espaço de asilo e
sim de um local para ocultar-se de crimes de sangue como, p.ex., homicídio.
8
Direito Internacional Moderno cristalizada na noção sine vi, sed verbo (sem
violência mas antes com a palavra) (HOLZ, 1998, passim.).
Não obstante e sem menosprezar a existência de uma tradição veterotestamentaria incontestável, o direito de asilo eclesiástico tem também fortes
raízes na tradição pagã, mais exatamente greco-romana e, posteriormente,
visigótica (OSABA, 2006, p. 299 – 322). A presença do direito de asylon em
santuários e templos está documentada no mundo grego desde a época
arcaica, quando se garantia a inviolabilidade do recinto sagrado (BELLONI,
1984, p. 164-180; DREHER, 1996, p. 79-96; LANDAU, 1994, p. 47-61).
Delinquentes de toda sorte, fugitivos da justiça, escravos, devedores,
estrangeiros ali domiciliados buscavam refúgio e asilo em templos e
santuários gregos. No mundo romano, a prática do asilo está presente no mito
de fundação da cidade de Roma por Rômulo e em inscrições desde o período
helenístico, até a época da influência romana na Ásia Menor (T.Liv. ab urbe
condita I, 8,5). O termo latino asylum procede da palabra griega a)/suloj, -on
(asylos, -on), mas em latim é um substantivo, ao passo que em grego se
classifica como um adjetivo; ou seja, trata-se de uma condição
-
supostamente temporal - de um suplicante em busca de refúgio. Há, no
entanto, um substantivo em grego que pode aplicar-se a condição de asilado:
h( a)suli/a (he asylia) ou a inviolabilidade, a imunidade, o princípio que
acompanhará o protegido de seus detratores (DREHER, 1996, p. 80).
Os romanos conheceram o direito de asylia grego já no período
helenístico. Quando os romanos penetraram no leste, nas províncias da Ásia
Menor, pouco a pouco se fez presente a instituição do asilo. Apesar disso, o
costume da inviolabilidade do asilo ou as leis sagradas que protegiam os
santuários não evitou o assassinato das tropas romanas no santuário de Apolo
9
em Tanagra, durante o conflito militar com os selêucidas (192 a.C.). Tito
Livio em sua Historia de Roma rememora, com um ar de protesto, a sorte das
tropas romanas, já que o lugar gozava do status de asylia.
Templum est Apollinis Delium, imminens mari; quinque milia passum
ab Tanagra abest; minus quattuor inde milium in proxima Euboeae est mari
traiectus. Ubi et fano lucoque ea re(ligione) et eo iure sancto quo sunt templa
quae asyla Graeci appellant. (TITI LIVI – ab urbe condita, XXXV 51,
Sttutgart 1991)
« Delio é um templo de Apolo situado sobre o mar; dista cinco milhas
de Tanagra, e a partir daí até a costa de Eubea mais próxima há uma travessia
de menos de quatro milhas por mar. Ali (se encontram) o templo e o bosque
sagrado, lugares protegidos pelo caráter religioso e o direito dos santuarios
que ampara os recintos chamados ‘asilos’ pelos gregos». (T.LIVIUS – ab
urbe condita, XXXV 51, Stuttgart, 1991.).
Porém situações como estas são excepcionais e não correspondem à
tradição grega helenística. Uma razão comum para a concessão de asilo no
período helenístico era a ameaça constante contra as poleis (cidades-Estados)
gregas, por toda uma série de estados piratas (DREHER, 1996, ibidem ; van
BERCHEM, 1960, p. 21-33). Estas cidades buscavam proteger o comércio de
mercadorias e eran amparadas pela segurança jurídica intergovernamental, ao
garantir às cidades envolvidas e as seus respectivos cidadãos o direito de asylãn ("não arrancar por força" o “não tirar"), quando o assunto eram os
estrangeiros (STENGEL, 1896, p. 181-186). A crença de que aquele que
violassem a lei sagrada do templo seriam castigados pela ira do Deus local,
manteve-se viva ao longo de toda la antigüidade (MORANI, 1983, p. 19-32).
A fórmula grega hieros kai asylos ("sagrado e inviolável") se encontra
frequentemente em decretos de asilo (STENGEL, 1896, ibídem; DREHER,
10
1996, ibidem). A adjudicação do asilo, assim como de outros privilégios, na
cultura grega, era por este motivo, uma ferramenta de política de poder, com a
qual alguns estados buscavam lograr um grau de imunidade - ao menos para
seus santuários - e um reconhecimento oficial ante um poder mais forte
(PRICE, 1984, p.191-206; BELLONI, 1984, p. 164-180).
Uma manifestação particular do direito de asilo é aquela que se
praticava junto às estátuas dos imperadores romanos. Uma prática que nos
obriga a aprofundar duas questões. A primeira se refere ao processo de
desenvolvimento histórico do direito de asilo a partir de sua origem grega; a
segunda, o antigo costume do uso de imagens imperiais como objeto de culto.
Questões que contam com abundante bibliografía (BELLONI, idem;
DREHER, 1996, ibídem; LANDAU, 1994, p. 47-61) e que têm grosso modo
sido tratadas a partir três perspectivas diferentes:
A) De uma perspectiva jurídica: Em particular os historiadores-juristas,
especialmente italianos, se inclinam a analisar a concessão do asilo, na
antiguidade, sob as estátuas do imperador, como um conflito entre o direito
civil e, em especial, o direito costumeiro, e a realidade histórica. É uma
opinião comum entre estes que a elite recorreu, em situações de emergencia, a
common law, quer dizer, às leis antigas para garantir e manter seu poder
(BRUCK, 1949, p. 1-25; BRUTTI, 1973, p. 536-559; GIOFFREDI, 1946, p.
187-191; MANFREDINI, 1986, p. 39-58).
B) A partir de uma segunda perspectiva, a dos estudos religiosos, alguns
investigadores da religião romana afirmam que o ponto central no direito de
asilo é um problema de divisão entre o direito sagrado e o secular. Com a
11
expansão romana em direção ao oriente, a partir do século III a.C., cultos
orientais foram importados, o que se traduziu em importantes mudanças nos
valores e referências da população romana. O período romano ‘imperial’ é
visto como uma fase de restauração destes velhos valores, que favoreceram os
conflitos entre as diferentes culturas do Imperio Romano (FALK, 1979, p.
318-319; LANDAU, 1979; p. 319-327; WIßMANN, 1979; p. 315-318)8.
C) A partir de uma perspectiva histórica que considera que o direito de asilo
era um mero pretexto para os intereses econômicos. Para muitos ‘scholars’ as
representações imperiais em imagens de césares serviram aos grupos de poder
local, na Grécia e na Ásia Menor, para manter as relacões "diplomáticas" com
Roma com o objetivo de garantir seu status quo e desta maneira manter a
estabilidade do comércio local (BELLONI, 1984, p. 172-173; van
BERCHEM, 1960, p.21-23).
Theodor Mommsen em seu livro sobre o direito penal romano assinala
que a expressão asylia na época republicana não tinha um uso comum e que,
inclusive, no período imperial, teve um uso muito restrito. Afirma o erudito
alemão:
“O direito romano conheceu a paz dos templos, ou seja uma
inviolabilidade especial reconhecida a casa de Deus e a tudo o
que nela se encontrasse; assim, se compreende a circunstância
por meio da qual o roubo dos templos, o sacrilegium, era
condenado com uma pena maior do que aquele de casas
particulares e aquele das casas da comunidade. Não obstante, a
extensão dos asylia à proteção da pessoa ante o poder penal, quer
8
Segundo T. Liv. Ab urbe condita I, 8, 4-7 se encontra já o asylum na fundação da cidade de Roma.
12
dizer, a não permissão de deter um culpado enquanto
permanecesse em lugar sagrado, foi um abuso provocado pela
constante insegurança jurídica da política grega; abuso em que
não incorreu a República romana" (MOMMSEN, 1899 [1955], p.
458-459)9.
De fato, o primeiro caso de asilo junto a uma estátua foi documentado
no ano de 42 a.C., no templo do Divus Julius (Júlio divino) em Roma
(PEKÁRY, 1985, p. 107-115, 130-131). Alguns autores modernos crêem, no
entanto, que o Senado romano, anteriormente, no ano de 73 a.C., já havia tido
a necessidade de enfrentar uma questão similar para o santuário de Didyma
em Mileto, na Ásia Menor (Orientis Graeci Inscriptiones Selectae OGIS 473;
DREHER, 1996, p. 92; WEINSTOCK, 1971, p. 241-249, 391-413). Em todo
caso parece seguro que o direito de asilo junto a imagens de césares, isto é, de
imperadores romanos, se introduziu mais tarde, quiçá entre os anos 43-42
antes de Cristo.
Sobre estes fatos, o culto ao imperador morto, praticado largamente em
todo o imperio, também merece um breve comentário (FISHWICK, 1987,
Vol. p. 1, 56-82, 150-168 y Vol. II 1, 388-396, PEKÁRY, 1985, 107-115 y
130-131; WEINSTOCK, 1971, passim). O Asilo era um elemento essencial
da nova ordem política conhecida como Principado, o qual será fundado por
Augusto em 27 a.C. O ponto de partida foi deificação de Júlio César no ano
42 a. C., a primeira deificatio que se tem notícia, quando um defunto romano
9
MOMMSEN Th., Römisches Strafrecht, Darmstadt 1955, unveränd. photomechan. Nachdr. d. Ausg.
Leipzig, Duncker Humblot, 1899. - Graz: Akad. Dr.- u. Verl.-Anst.,1955. pp. 458-459.“Den Tempelfrieden,
die besondere Unverletzlichkeit des Gotteshauses und alles dessen was in demselben sich befindet, kennt das
römische Strafrecht wohl insofern, als die Beraubung des Tempels, das sacrilegium schwerer geahndet wird
als diejenige des bürgerlichen und des Gemeindehauses; aber die Ausdehnung dieser asylia auf den Schutz
der Person vor der Strafgewalt, die Unzulässigkeit der Verhaftung eines Angeschuldigten, so lange er in dem
Heiligtum verweilt, ist ein durch die dauernde Rechtsunsicherheit der griechischen Politien hervorgerufener
Missbrauch, von dem die römische Republik sich frei gehalten hat“
13
foi inscrito como um divus. A partir de então, com o culto imperial, e com
crescente autoridade do princeps, se associará a instituição do asilo. Aqui é o
momento em que o IUS IMAGINUM, quer dizer, o costume das grandes
famílias romanas de venerar os antepassados, se estabelece e se mantém nos
funerais públicos. Porque, apesar de o ius imaginum ter sido um privilégio
quase exclusivo da nobleza, - ao menos da nobreza curulis (curul - cargo dos
magistrados superiores como os cônsules, pretores, os mais altos edis,
censores, ditadores)-, também temos documentada a adoração de retratos e
estátuas de políticos populares para os populi Romani. A este respeito se pode
ver o exemplo do praetor para o ano 85-84 a.C., Marcus Marius Gratidianus,
relatado por Sêneca no livro De ira, ou por Cícero no De officiis
(CRAWFORD, 1968, p. 1-4; BLANK, 1983, p. 536; ROLLIN, 1979, p.94195).
-M. Mario, cui vicatim populus statuas posuerat, cui ture ac vino
supplicabat (...).
-“M. Mario a quem o povo havia erigido estátuas em todas as ruas, a
quem se fazia súplicas com incenso e vinho” (Sêneca, de ira, III 18).
-Et ea res, si quaeris, ei magno honori fuit; omnibus vicis statuae, ad
eas tus, cerei; quid multa? Nemo umquam multitudini fuit carior.
-“Não há dúvida de que isto lhe serviu de grande glória. Em
todos os bairros levantaram para ele estátuas, e diante delas queimavam
incenso e cera, e não houve jamais homem mais amado pelo povo” (Cícero,
de officiis, III, 20, 80)10.
Para a nobreza era particularmente importante, com consequências
sociológicas e políticas, o ius imaginum. A procissão com as imagines
10
.Tradução
de
D.
Manuel
Blanco
Valbuena.
http://www.archive.org/stream/losoficiosdecic00cicegoog#page/n8/mode/1up
Diponível
em:
14
maiorum (as imagens dos ancestrais) foi um excelente meio de propaganda
para a classe alta. A presença das representações dos familiares defuntos de
grandes famílias se interpretava como uma reaparição destes (redivivus) na
vida pública romana, consolidando, assim, seu papel como legítimos
ancestrais (maiores) da comunidade ante o povo de Roma (BLANK, 1983,
ibídem; PEKÁRY, 1985, 107-115, 130-131).
As imagens, bustos e estátuas foram, na Antigüidade, veneradas em
muitas localidades. Era, pois, um costume popular muito conhecido. Mas só
através da consagração (consecratio), as estátuas eram objeto de culto. A
consecratio e a dedicatio eram noções próximas e em alguns casos
complementares. Segundo G. Wissova, a consecratio era
"a transferência válida e permanente de uma coisa ou de uma
pessoa, da esfera da lei do ‘ius humanum’ até a do ‘ius divinum’,
que tem por conseqüência sua classificação na categoria do
sacrum. A ‘consecratio’ foi também no período imperial um
dispositivo cada vez mais freqüente" (WISSOWA, 1900, p. 896).
Pelo ato da dedicatio o oficiante do culto devia entregar um votum a
uma divindade. Para que isso pudesse ocorrer, as estátuas eram decoradas e
limpas, oferecendo-lhes comida, presente e mesmo moedas, No último
período imperial era considerado delito de lesa-majestade -crimen maiestatisa ação de fundir, causar dano ou vender estátuas consagradas ao imperador
(C. Th. 9, 23, 1).11 Após a consagração e a dedicação, as estátuas, agora
residência dos deuses, poderia "fazer milagres", tais como mover-se, curar,
chorar, suar etc.
Segundo Andreas Alföldy, durante o último século da República o ius
imaginum foi perdendo importância em Roma, mas, ao mesmo tempo, ganhou
notoriedade entre os romanos fora da Itália, em especial no exército: os
11
C.Th. 9, 23, 1.
15
soldados portavam os retratos de seus generais rodeados por símbolos de
felicidade e salvação (ALFÖLDY, 1970, p. xiii).
Não obstante, podemos afirmar que a simples existência de velhos
costumes na época da expansão romana em direção ao oriente não foi
suficiente para manter o direito de asilo tradicional, já que desde aquele
momento houve uma mudança definitiva dos valores tradicionais (mos
maiorum). Os velhos hábitos e valores foram se transformando e se adaptando
aos novos tempos. O direito de asilo se modificou, incorporando agora as
imagens dos Césares e não apenas o templo ou o bosque sagrado como em
épocas anteriores. Com a instituição da consecratio, após a morte do
Imperador -uma decisão privativa do Senado romano-, suas estátuas
adquiriam o mesmo caráter que outros objetos sagrados.
Apenas um ano e meio depois de sua morte, em janeiro de 42 a.C.,
César foi elevado pelo Senado romano e pela assembléia da plebe ao panteão
dos deuses e Octavio, seu filho adotivo, aproveitou políticamente de sua
posição como tal para ganhar legitimidade perante o senado romano.
Em razão do fato de que César tornara-se um divus (um ser divino, mas
não um deus), Octavio (40 a. C.), filho do agora divus César, se converteu
assim imediatamente em Divi Filius, ‘filho do divino’. (FISHWICK, 1987,
Vol. I p. 11, 56-82, 150-168 y Vol. II, 388-396; WEINSTOCK, 1971, p. 399).
Os Divi Imperatores (imperadores divinos) têm agora em comum com
os nobiles mortos, a circunstância de que a pessoa falecida fica ao serviço da
ideologia política em curso e favorece com isso a propaganda imperial.
Octavio Augusto utilizou claramente sua circunstância de Caesar Divus Filius
(filho do divino César) em sua luta por construir sua propia posição política.
Na ideologia política do principado os mortos reapareceriam com força e
pujança. Agora eran muito mais poderosos do que nunca haviam sido como
16
nobiles mortos. Os Césares (imperadores) mortos eran agora os Divi
Imperatores: eram elevados a categoria de quase deuses.
O respeito à Tradição e à Religião era, de fato, uma característica essencial na
época de Octavio e o título Divi Filius caesar foi um passo importante nessa
direção, uma vez pertencia a tradição mais antiga e com grande alcance entre
as classes sociais, e permitiu a Augusto (Octavio) estabelecer uma nova orden
baseada em velhos valores, enquanto, ao mesmo tempo, outros desapareciam
lentamente. O direito de asilo nas estátuas dos Césares, e também o valor do
asylon no templo grego, se convertiam, desta forma, nos dois gumes de uma
mesma espada: de uma parte o ius imaginum, e de outra o asylon. Estes são os
dois elementos que encontramos no livro As Instituições de Gaio :
“Sed et maior quoque asperitas dominorum per eiusdem principis
constitutionem coercetur; nam consultus a quibusdam praesidibus
prouinciarum de his seruis qui ad fana deorum uel ad statuas
principum confugiunt, praecepit ut, si intolerabilis uideatur
dominorum saeuitia, cogantur seruos suos uendere. (GAIUS,
INSTITUTIONES, I 53).
“Não apenas, mas também a maior aspereza dos senhores foi
restringida por outra constituição deste mesmo Imperador
[Antonino Pío]; pois ele havia sido consultado por alguns
Governadores de Província a respeito de escravos que haviam
fugido para templos de deuses e estátuas do Imperador, e ordenou
que se a crueldade dos senhores parecesse intolerável, eles
deveriam ser compelidos a vender seus escravos.”
17
Por último, um fato também digno de menção é que séculos mais tarde, no
Codex Theodosianus (438 d. C.) se cristalizou este processo, que é
considerado como a síntese da velha lei de Asilo. Mais do que uma
“compilação legal do direito imperial e da norma jurídica geral” (MAYERMALY, 1979, p. 1237-1238), o direito de Asilo no Codex mostra a força das
tradições antigas. Não menos digno de referência, contudo, é a menção do
direito de asilo na Igreja no mesmo Codex (CTh.9.45.0 y sqq. De his, qui ad
ecclesias confugiunt). É fácil sentir e saber que a lei da Igreja e dos lugares
santos de ius antiquum (direito antigo) já se fazem presentes. A partir de
então, vislumbra-se no horizonte da Idade Média outra lei sagrada
(C.Th.9.45.0.sq). 12
XLIIII. DE HIS, QVI AD STATUAS CONFVGIVNT
VT et rel. – iust. 1, 25
C. Th. IX, 44, 1 (386 Iul. 6).
IMPPP. VAL(ENTINI)ANVS, THEOD(OSIVS) ET ARCAD(IVS)
AAA. CYNEGIO P(RAEFECTO) P(RAETORI)O: Eos, qui ad
statuas vel evitandi metus vel creandae invidiae causa confugerint,
ante diem decimum neque auferri ab aliquo neque discedere sponte
perpetimur; ita tamen, ut , si certas habuerint causas, quibus
confugere ad imperatoria simulacra debuerint, iure ac legibus
vindicentur; sin vero proditi fuerint artibus suis invidiam inimicis
creare voluisse, ultrix in eos sententia proferatur.
DAT. PRID.NON. IVL. CONSTANTINOP(OLI) HONOR(IO)
N.P. ET
EVOD(IO) V. C. CONSS.
Dos que se refugiam nas estátuas
12
CTh.9.45.0.sqq. De his, qui ad ecclesias confugiunt.
18
“Imperadores Augustus Valentiniano, Theodosio e Arcadio a Cinegio,
prefeito do pretório.
Aqueles que se refugiam nas estatuas dos imperadores, seja com o
objetivo de evitar o perigo (medo), seja por criar hostilidade, não pode
ser levado à força (arrancado do lugar) antes do décimo dia por
qualquer pessoa, nem admitimos afastar-se por sua própria conta. Da
mesma forma que se estas pessoas tiverem causas justas pelas quais
tiveram que fugir para as estátuas dos imperadores, eles serão
protegidos por leis e estatutos. Mas se também for revelado que eles
desejaram por artimanhas criar hostilidades contra seus inimigos, que
seja proferida contra eles uma sentença vingadora.
Dado na véspera da nona de Julho (dia 6 de Julho) em
Constantinopla, no ano do Consulado do Imperador nobilíssimo designado
Honório e de Evódio homem ilustríssimo
Conclusão:
No período imperial o direito de asilo reconhecia outras classes de
refugiados, que buscavam asilo ao pé das estátuas dos césares ou junto aos
templos dos deuses (FISHWICK, 1987, Vol. I 1, 56-82, Vol. II. 1, 388-396;
PEKÁRY, ibídem; WEINSTOCK, idem). Em muitos casos, no período
imperial romano o direito de asilo concedido em templos (como faziam os
gregos) ou em estátuas e imagens (ius imaginum) dedicadas ao culto imperial,
poderia sobrepor-se ao direito da autoridade local e até provincial ou ainda
sobre o direito familiar (ROMAN, 2003, p. 349-361; CRAWFORD, ibídem;
BLANK, idem; ROLLIN, idem). A justaposição de varias tradições revela
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uma concepção distinta do poder do Imperador que respeitava a
inviolabilidade do recinto sagrado. A hipótese deste trabalho foi apontar as
contribuições decisivas da experiência grega com relação ao asilo político e a
influência do ius imaginum para a construção do direito de asilo eclesiástico,
demostrando assim que el espaço de asilo não se restringia, ao menos
ideológicamente, ao poder da autoridade ad hoc, ou seja com fins específicos
Por outro lado, o direito de asilo in situ era considerado como un ‘espacioausente’ daquele do poder imperial e, mais tarde, eclesiástico, em províncias
distantes de Roma; condição que, por mais incrível que possa parecer, era
necessária ao domínio do poder central.
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