Homenagem a querida amiga, professora e pesquisadora

Transcrição

Homenagem a querida amiga, professora e pesquisadora
Homenagem a querida amiga, professora e pesquisadora Dra. Patrízia
Piozzi
Como o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) pode
homenagear a querida amiga, professora e pesquisadora Dra. Patrízia Piozzi?
Como fazer jus a profunda generosidade, sensibilidade, amizade,
amorosidade, compaixão, lealdade, competência, rigorosidade e utopia que
marcaram as praticas relacionais e o trabalho acadêmico da nossa Paty?
Talvez um caminho seja tornar nossas as suas palavras e instaurar pela
mediação da linguagem sua presença/permanência entre nós.
Com a epigrafe de Pierre-Joseph Proudhon “A politica é a ciência da
liberdade: o governo do homem pelo homem”, Patrízia (2006) empresta e expressa
convicções.
Os seus trabalhos nos expõem a um conjunto de pensadores que compõem
“modelos de ordem social em que os homens dotados de sentimento e razão
convergissem para construir o bem e a prosperidade gerais, vencendo as
determinações mesquinhas do egoísmo [...] harmonizando plenamente igualdade
econômica com liberdade pessoal e politica” (PIOZZI, 2006, p.16-17) .
Ela nos descortina uma perspectiva de progresso apreendido como
“experiência histórica do trabalho e do pensamento [...] evidenciando tendências
capazes de transformar a sociedade como um todo no plano da sensibilidade e do
entendimento” (PIOZZI, 2006, p. 18). Dai a importância “das organizações e dos
movimentos populares contrários ao capital pois a democracia [...] e o espirito
cooperativo que os norteiam tendem a superar as relações predominantes na
sociedade capitalista, desenvolvendo sentimentos, hábitos e formas institucionais
capazes de realizar o destino solidário da liberdade humana” (PIOZZI, 2006, p. 18)
Patrízia foi uma mulher que viveu sob o impacto de muitos conflitos e
muitas contradições. Foi mobilizada e talvez resgatada pelas utopias da “era das
revoluções” que perspectivaram a construção de uma ordem social fundada no
bem comum.
Ela se vinculou a uma filosofia política que elaborou elementos teóricos que
cruzavam os períodos e os movimentos revolucionários fazendo-os confluir em
projetos globais de transformação, princípios de liberdade e igualdade e
participação na vida púbica. Dizia: “a Declaração de 1948 pode ser lida em linha de
continuidade com outros manifestos que, em 1776, 1789, 1848, [...] sintetizaram e
transformaram em bandeiras políticas a crença, nuclear da “era das revoluções”, no
poder da razão humana em produzir uma associação livre e sem conflito. [...] No que
diz respeito à forma de relação social idealizada, esses documentos esboçam a
imagem de uma ordem societária onde sentimento e razão convergem para erguer
o bem e a prosperidade gerais. (PIOZZI, 1998, p. 182)
No entanto, ela teve que se defrontar com múltiplas determinações do real
que obstaculizavam a efetivação de utopias igualitárias e atestou: “O retrato desse
universo fraterno, isento de terror e miséria, definitiva e abstratamente incorporado
à retórica do discurso dominante, contrasta de forma dramática com aquele
composto pelas vivências, falas e imagens vigentes no dia a dia do homem
contemporâneo. Nestas, delineiam-se alguns traços marcantes do nosso mundo real,
localizáveis, pelo menos como tendências gerais, em cada especificidade histórica e
conjuntural no mundo regido pela “mão invisível” do mercado. Dentre eles sobressai
o aprofundamento das desigualdades sociais [...] a modernização das relações de
trabalho, operada pelo desmonte de mecanismos institucionais capazes de garantir
o relativo equilíbrio entre “fracos” e “fortes”, traz no seu bojo o aumento irreversível
do desemprego e o assombroso multiplicar-se dos números da exclusão social e da
pobreza absoluta” (PIOZZI, 1998, p. 182)
Patrizia alinhou-se “as correntes de opinião e as lutas das populações que,
mundo afora, combatem e denunciam os delitos e as mentiras dos poderosos”
(PIOZZI, 2006, p. 26). Ela postulava que “a vereda da utopia e do “progresso dos
espíritos humanos” aberta pelos grandes reformadores e revolucionários do século
XVIII continua sendo trilhada por um amplo espectro da esquerda [...] homens que
ousam dissentir e agir em defesa dos direitos humanos e sociais pisoteados pela
“ditadura ultraliberal” (PIOZZI, 2006, p. 26).
E esta filiação política fez com que ela “por meio da investigação
arqueológica, desencava(sse) um universo de representações utópicas [...] para
manter viva uma longa tradição de pensamento e lutas, empenhadas em instaurar
um mundo onde a liberdade não (fosse) apenas um instrumento para obter
vantagens” (PIOZZI, 2006, p. 26).
É dessa liberdade, de sua articulação com as exigências igualitárias e dos
meios necessários para compô-la num cenário de horror econômico que levou a
Patrizia a construir mediações materiais e imateriais que sinalizavam os limites e
as possibilidades de realização de uma ordem gerida pelos ditames da razão e da
consciência. Ela diz: “à medida que o peso econômico do operariado decai na nova
configuração produtiva, marcada pela precarização e terceirização do trabalho e
pela transformação do desemprego em componente estrutural, os partidos e
sindicatos de esquerda reformista veem paulatinamente solapada a força social em
que se baseavam para negociar uma maior repartição da riqueza. Quando chegam
ao governo por via eleitoral, embora mantenham tímidas politicas distributivas,
acabam incorporando as metas neoliberais em seus projetos econômicos e
legislativos, contribuindo para desmantelar o Estado de bem-estar-social e
abandonando, até mesmo na retorica, qualquer referência aos objetivos
programáticos socialistas. A revolução tecnológica, que poderia trazer a libertação
do reino da necessidade extinguindo a escassez em escala mundial, realiza-se em
função exclusiva do incremento do lucro, desencadeando crescente concentração
das rendas e condenando grandes contingentes de seres humanos a gravitar as
margens do sistema, sem esperança de participar das benesses propiciadas pelo
avanço de produtividade” (PIOZZI, 2006, p. 22).
Diante do descompasso entre a utopia e a realidade Patrízia não se
acomoda no papel do personagem Oblomov (1966) nobre generoso e incapaz de
tomar decisões importantes e empreender ações significativas. Ela se lança no
trabalho de produção do pensamento inquieto, docência, orientação, redes
relacionais duradouras, paixão pela vida, apreciação de manifestações culturais
criativas.
No campo da cultura “a organização geral de uma instrução pública”
(CONDORCET, 1997), “o projeto de um ensino democrático que garant(isse) o
desenvolvimento pleno das capacidades e inclinações de cada pessoa [...] a
democratização das oportunidades para os indivíduos naturalmente diferentes por
talentos e aspirações [..] o trabalho sistemático e paciente da educação” (PIOZZI,
2006, p. 208) se apresentam como ações significativas, porém não suficientes, das
utopias revolucionarias e do “progresso dos espíritos humanos”.
Na Unicamp, na Faculdade de Educação, no Departamento de Ciências
Sociais, no CEDES, no Editorial da Revista Educação e Sociedade, no Grupo de
Estudos e Pesquisa em Politicas Públicas e Educação (GPPE), no Programa de Pós
Graduação em Educação, Patrízia entra em contato com arquivos, bibliotecas,
salas de aula, entidades cientificas, grupos de pesquisa. Trabalhou com livros,
monografias, dissertações, teses, revistas, textos, ensaios trazendo sempre “a
memória de eventos e debates marcados pela vontade de criar um mundo justo e
livre onde o homem é amigo do homem [..] mesmo considerando as dúvidas e os
dilemas suscitados pelo impacto das “coisas como realmente são” (PIOZZI, 2006, p.
212).
Patrízia viveu acreditando no renascimento de projetos transformadores
herdeiros da tradição socialista que “enveredando por caminhos diversos, criando
novas formas organizativas em busca de uma sociedade mais justa, os movimentos
sociais contemporâneos incorporam, também, ideias, debates, imagens oriundas da
experiência vivida pelos protagonistas da “era das revoluções”. E, como eles, não
abandonam a vontade de construir uma boa vida coletiva. (PIOZZI, 2006, p. 214).
Ficamos menores sem a presença sorridente, colorida, sedutora, inquieta e
utópica da Patrízia.
Já com muita saudade e gratidão pelos aprendizados da convivência.
Débora Mazza
25/06/2015.
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