o Brasil em cada plano O cinema de
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o Brasil em cada plano O cinema de
MuriloSalles O cinema de o Brasil em cada plano O cinema de Murilo Salles – O Brasil em cada plano Mattos, Carlos Alberto; Salles, Murilo (orgs.) 1ª Edição Julho de 2016 ISBN 978-85-66110-25-8 Coordenação editorial Carlos Alberto Mattos e Murilo Salles Capa & projeto gráfico Guilherme Lopes Moura Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização dos organizadores. A CAIXA é uma das maiores patrocinadoras da cultura no Brasil e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em espaços próprios e espaços de terceiros, com ênfase especial para exposições de artes visuais, peças de teatro, mostras de cinema, espetáculos de dança, shows musicais, apoio ao artesanato brasileiro e festivais de teatro e dança em todo o território nacional. Os projetos são escolhidos através de seleção pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. A mostra O cinema de Murilo Salles — O Brasil em cada plano traz todos os longas-metragens do diretor, fotógrafo, roteirista e produtor carioca, além de curtas e filmes nos quais ele assinou a direção de fotografia. O evento tem curadoria de Mariana Bezerra e também promove um bate-papo, dois debates e uma masterclass com o diretor homenageado. Esta é uma oportunidade de conhecer profundamente o trabalho de Murilo Salles, desde seus primeiros curtas, como Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo (1971), codirigido com Ronaldo Foster; sua estreia em longas-metragens, com Nunca fomos tão felizes (1984) – que participou da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e ganhou os prêmios de Melhor Filme nos festivais de Brasília e de Gramado, e o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno, passando por documentários para televisão e cinema que revelam sua forte ligação com as artes plásticas: Sergio Camargo, Fevereiro 1984 (1984) e Tunga – Registros (2012), até seus trabalhos mais recentes, como O fim e os meios (2014), vencedor do Prêmio de Melhor Roteiro no Festival do Rio. Através da mostra O cinema de Murilo Salles — O Brasil em cada plano a CAIXA reafirma sua política cultural, sua vocação social e a disposição de democratizar o acesso aos seus espaços e à programação artística, cumprindo, desta forma, o papel institucional de estimular a disseminação de ideias, mantendo viva a vocação de abrigar e promover a cultura nacional. Caixa Econômica Federal Sumário 11 ‧ Ver e ouvir Murilo ‧ por Mariana Bezerra textos do Murilo 17 ‧ Como é bom pensar sobre cinema 29 ‧ Depoimento a Lúcia Nagib 43 ‧ Filmes-faróis de Murilo Salles sobre o cinema do Murilo 51 ‧ Como nascem os filmes ‧ por Maurício Lissovsky 57 ‧ Crônica das afetividades eletivas ‧ por Lírio Ferreira 61 ‧ Um documentarista contemporâneo ‧ por Carlos Alberto Mattos 69 ‧ Cinema para adultos ‧ por José Geraldo Couto 75 ‧ A violência endêmica como gesto criador ‧ por Marcelo Miranda 81 ‧ Entre deslocamentos e deslocados ‧ por Cleber Eduardo 85 ‧ A arte de filmar a arte ‧ por Paulo Sérgio Duarte filmes e vídeos dirigidos por Murilo 93 ‧ Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo 95 ‧ Estas são as armas 99 ‧ Nunca fomos tão felizes 111 ‧ Sérgio Camargo, fevereiro 1984 113 ‧ Faca de dois gumes 119 ‧ Pornografia 123 ‧ Todos os corações do mundo 129 ‧ Como nascem os anjos 137 ‧ 50 anos de TV brasileira 139 ‧ Seja o que Deus quiser! 147 ‧ És tu, Brasil 151 ‧ Nome próprio 155 ‧ O espetáculo e a delicadeza 159 ‧ Tunga – registros 161 ‧ Aprendi a jogar com você 163 ‧ Passarinho lá de Nova Iorque 167 ‧ O fim e os meios alguns filmes fotografados por Murilo 177 ‧ Carro de bois 178 ‧ Lição de amor 179 ‧ Árido movie Biofilmografia 196 ‧ Índice de fotos 198 ‧ Agradecimentos 199 ‧ Créditos 183 ‧ 11 Ver e ouvir Murilo Mariana Bezerra Conheci o Murilo em Gramado, no ano de 2007. Ele estava lançando Nome próprio, trabalho que levou todos os prêmios a que estava concorrendo na competição. Um filme apaixonante e completamente sintonizado com o momento que vivíamos, quando o hábito de leitura começava a migrar dos livros para os blogs e a internet começava efetivamente a fazer parte da nossa rotina e do cotidiano dos relacionamentos amorosos. A partir daí, fui revisitando sua obra. Fiquei maravilhada com Como nascem os anjos, um dos filmes mais bonitos, sobre o absurdo social que divide os moradores das favelas e os habitantes do asfalto. Faca de dois gumes deixou-me completamente impactada com a frieza e paixão dos personagens. Chorei assistindo Nunca fomos tão felizes, que aborda a eterna busca e angustiante ausência da figura paterna como referência. Passaram-se muitos anos até que eu estava produzindo a mostra Faróis do Cinema, quando chamamos o Murilo para dar seu depoimento no projeto, como diretor convidado. Mais uma vez, me encantei com a sua capacidade de nos envolver, agora pessoalmente, com suas deliciosas histórias de cinema e de vida. Foi ali que nasceu a ideia de ouvi-lo novamente e saber mais sobre esse cineasta que, de forma tão intensa, busca o encontro com o povo desse nosso Brasil de tantas lutas. De tantas alegrias e de tantas desgraças também. Passou-se mais um tanto de anos para que eu por fim tivesse a coragem de lhe fazer um convite, no ano passado. Que tal montarmos uma retrospectiva completa de sua prestigiada carreira? E então, no final de 2015, tive a oportunidade de trabalhar com ele no lançamento 12 simultâneo de seus três filmes, e mais uma vez fiquei encantada com a sua capacidade de nos surpreender com O Fim e os meios, em que ele trouxe para esse momento político que vivemos um filme tão necessário, reflexivo, que desloca a temática da corrupção para o campo do comportamento humano. E me enchi de admiração pelo Brasil com os personagens escolhidos nos documentários Passarinho lá de Nova Iorque e Aprendi a jogar com você. Foi no início daquele mesmo ano que veio a notícia de que o projeto da retrospectiva de sua obra havia sido selecionado e que iríamos, por fim, realizar a nossa mostra. Murilo: diretor, fotógrafo, contador de histórias, mestre, ouvinte, confidente e amigo. E, principalmente, sempre apaixonado pelo nosso país e interessado por suas contradições. Que continue por mais muitos anos nos mostrando esse vasto Brasil em cada um de seus planos. Mariana Bezerra é produtora cultural, curadora e organizadora desta mostra. 14 15 Textos do Murilo 17 Como é bom pensar sobre cinema Murilo Salles 1. O filósofo Michel Foucault nos diz que a marca do Autor encontra-se na “singularidade de sua ausência”. Isso pode soar como um paradoxo, pois afirma dois conceitos opostos: a singularidade e a ausência do autor. Cabe-nos tirar proveito dessa questão, fazê-la render. Primeiro, pensar o que seria “a ausência” do Autor, aquele que pensa o filme, que conduz a narrativa, portanto a emoção do público. A aura de pequeno Deus a que os Diretores de cinema estão submetidos. O Autor nunca está ausente. Os filmes de Autor são filmes que, quanto mais original e brilhante for o autor, mais ele estará presente em sua narrativa. O exemplo claro disso é JL Godard, que, depois de uma certa evolução na sua carreira autoral, passa a estar presente fisicamente nos seus filmes. Deveríamos entender a frase então pela relação entre as palavras singularidade e ausência. Tomar isso como metáfora, não como um paradoxo. Singularidade de sua ausência pode significar um autor presente, que tem narrativa e poética próprias, mas inteligentemente se faz ausente, como estratégia, fazendo com que o filme se imponha na tela, para além do seu Autor. Portanto que não haja uma exibição narcisista da poética. Pelo contrario, haja um recolhimento voluntário e pensado da explicitação autoral. Pode ser que seja isso. Não sei se acredito que isso seja possível, o Autor produzir essa ausência estratégica dos traços que o definem como autoral, pois, quando isso se apresenta verdadeiramente, o que é raro, para mim, é desejável. O que seria de Fellini sem sua poética? Os próprios Godard, Antonioni, Buñuel... Por outro lado, ainda não estou certo de que a exibição de poética própria e origi- 18 nalidade significa autoralidade cinematográfica. O exemplo mais claro disso é Woody Allen em grande parte de seus filmes. Ele é autoral, tem poética e tem visão de mundo própria. Mas seu pensamento cinematográfico é conservador. Sua mise-en-scène serve para enquadrar atores falando o que ele quer dizer. É pouco para Woody Allen. No seu oposto, temos Gus Van Sant em Elephant, que reconta uma história já filmada, mas, certamente, pela inteligência de encontrar uma forma singular para essa narrativa inaugura um capítulo novo no pensamento cinematográfico contemporâneo. Talvez ao que Foucault se refira com “a singular ausência da autoralidade” seja o cinema que está sendo praticado por Van Sant, pelos primeiros filmes dos irmãos Dardenne, por Bruno Dumont, por Nuri Bilge Ceylan, por Carlos Reygadas e Lucrecia Martel, entre poucos outros. É um cinema que se exibe pensando o que ele é, o que significa. Aí está, sim, a renovação do pensamento do cinema, aquele que se preocupa em reinventar-se narrativamente, e que pensa a representação a partir da imagem e dos sons não entendidos apenas pelo registro do que o ator fala ou a adição do som captado, mas, sim, filmes que proponham novas formas para afetar o espectador. Foucault, na sua jornada por uma arqueologia dos sistemas de pensamento, talvez tenha querido nos lembrar que cinema é uma forma de pensar, e que os cineastas devam construir seus filmes a partir desse entendimento. O que não é nada fácil. O cinema das imagens que enquadram atores que falam para entendermos o que se deseja narrar e que agem para mover a história para frente é o cinema das imagens-clichê, que nada mais dizem por tanto se repetirem. O desafio do cineasta, hoje, é pensar e criar imagens que abram as mentes para novas percepções sensíveis, elevando e surpreendendo o espectador com as narrativas da complexidade do ser no mundo contemporâneo. 2. O cinema é tridimensional. Fala-se muito de tempo. Mas a questão do espaço é fundamental no Cinema. A cria- 19 ção ou escolha desse espaço onde se desenhe, melhor, onde se coreografe a narrativa, valorizando-se a questão da espacialidade da ação. A mise-en-scène, i.é. a relação dos atores com a espacialidade do set e a relação desses (atores e espaço) com o movimento da câmera, potencializado pela decupagem, que são os recortes exercidos para criar-se as cenas da ação, todo esse processo, objeto do conhecimento cinematográfico do Diretor, precisa ser libertado de uma visão bidimensional, herdada da pintura. A mise-en-scène pode ser pensada tridimensionalmente. Isso não quer dizer fazer travellings giratórios em torno dos personagens, que é bidimensional também, pois existem o ator e o espaço em torno. Temos que pensar a liberdade escultural do espaço. Os corpos, a ação e o movimento (ou não) da câmera utilizados numa coreografia libertadora dos limites clássicos da bidimensionalidade. Que odioso e empobrecido é o campo-e-contracampo. Ele existe para que os atores deem suas falas. Para que o cinema dê seu recado literário. Igualmente, certas “posições de olhar”, tais como over-the-shoulder, que apenas servem para dar maior visibilidade à fala (pois “estabelece” quem escuta), como se isso fosse o que interessa no cinema. Igualmente desgastados estão os closes, que apenas servem para dar destaque à emoção do ator. A emoção no cinema deve vir de saber usar com propriedade e inteligência os seus meios. E quanto mais tridimensional for nossa compreensão espacial, mais cinematográfico o filme será. 3. A câmera ocupa um lugar determinado no espaço. Ela é um olhar inteligente que se desloca criando uma narrativa, fazendo opções de olhar, que, inclusive, exclui da cena aquilo que não quer ver. A câmera é uma danada. Não dá para dissimular isso. Não existe o efeito de câmera “invisível”. A câmera é um “poder estabelecido”. Sem trabalhar essa consciência, só iremos reproduzir ideologias. 20 4. A prioridade para o diretor é o filme. Para o ator é o personagem. Algum Diretor cujo nome não me lembro escreveu isso. Trata-se de um ponto de partida a meu ver bastante equivocado. Uma visão simplificadora da questão. Se para o Diretor a prioridade é o filme, e se for um cinema narrativo, tanto o personagem quanto o ator que o encarna são absolutamente questões prioritárias. Um Diretor que não pensa a representação de seu personagem, e que, principalmente, não tem a consciência de que existe um sistema simbólico de representações estabelecido como verdade narrativa, onde cada personagem tem um valor moral e uma posição simbólica nessa estrutura, que é dada e se reproduz enquanto “modelo da narração universal”, estará apenas reproduzindo esse senso comum narrativo. E pior, talvez se torne um ideólogo desse sistema, porque existe essa máxima de que se a história contada não se encaixa nesse “sistema de valores morais da narrativa”, o filme está fadado ao fracasso. Isso cada vez mais é uma crença religiosa entre os cineastas e, principalmente, os roteiristas. O que só faz estratificar, sedimentar, e portanto banalizar as narrativas. Por esse mesmo motivo, os filmes de entretenimento têm se tornado tão previsíveis. No caminho inverso, existem Diretores/Narradores que estão questionando esse sistema, e, em certos filmes, radicalmente. Um bom exemplo disso é Embriagado de amor, de Paul Thomas Anderson, onde o protagonista Barry Eagan, representado por Adam Sandler, tem reações tais como destruir um banheiro porque entra em crise fóbica num primeiro encontro com uma mulher que acabou de conhecer, Emily Watson. Sua fobia por mulher (pois rodeado por 17 irmãs dominadoras/controladoras) leva Barry a ter essas reação de tipo “ordem do feminino”, que é uma reação histérica. Essa inversão rende cenas hilárias no filme, onde PT Anderson “inverte” os papéis do simbólico (o que é masculino e o que é feminino) dentro dessa “estrutura” chamada “narrativa cinematográfica” que pré-existe na cabeça do espectador. O protagonista masculino não pode nem deve reagir histericamente e destruir um banheiro porque está inseguro 21 num encontro, pois isso é entendido – moralistamente - como uma reação feminina. Portanto, fazer cinema é também pensar como lidar principalmente com essas “estruturas narrativas” estratificadas e monolíticas, cheias de valores que cada vez mais se solidificam nas cabeças dos espectadores. Esse é um dos grandes desafios. 5. O que leva um Diretor a escolher determinado tema para o seu próximo filme? Sempre tive problemas com essa questão. Leio entrevistas de cineastas que dizem que no seu próximo filme irão discutir “tal tema”. Escolher o tema passa a significar que se tem algo a dizer. E, por oposição, se não consigo definir com clareza, desde o início, o tema do meu próximo filme, quer dizer que não tenho nada a dizer? Isso sempre me angustiou um pouco, nunca ter o tal do “tema” como a motivação iniciante do processo cinematográfico. Mas, pensando bem, talvez isso seja bom. Sou mais simples nas minhas escolhas, tenho imagens que vão surgindo na minha cabeça, ou questões que começam a me desafiar. Na verdade sempre fui descobrindo o que estou falando durante o próprio processo de realização dos filmes. Isso é duro, porque angustiante, e parte de um ponto desconcertante: você não sabe aonde vai chegar, portanto você se coloca o tempo todo diante de um desconhecido. Isso é difícil, mas não tem jeito, é a minha forma de escolher coisas. Por outro lado, acho isso enriquecedor, pois, para mim, o que motiva fazer cinema é querer descobrir alguma coisa que não sei. Talvez por não saber, me obrigue a procurar e querer saber mais, e por não ter a arrogância do já saber o que dizer. Sou movimentado, como o cinema, por questões. Perguntas diante do desconhecido. E pelo simples desejo de aprender, compreender e responder às questões que me inquietam. 6. O plano é uma experiência em si. O plano não é uma parte. O plano é um todo. E um filme vira “de cinema” se montado com planos que possuam essa ideia. Isso não é um teoria, é uma constatação 22 a partir da História do cinema. Várias vezes, lembramo-nos de certos filmes porque lembramo-nos de alguns de seus planos. O cinema moderno tornou isso evidente primeiro com Orson Welles. Depois com Antonioni. 7. A questão da linguagem cinematográfica. No dicionário Aurélio a definição de linguagem é o uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas. O vocabulário específico numa ciência, numa arte, num metiê. Língua. Vocabulário. Tudo quanto serve para expressar ideias, sentimentos, modos de comportamento. Todo um sistema de signos que são os meios de comunicação entre indivíduos e que podem ser percebidos e articulados por órgãos dos sentidos. No cinema, a linguagem cinematográfica começou a ser codificada com Griffith. Ela se desenvolveu e ganhou corpo tal como conhecemos hoje, ligada aos desenvolvimentos técnicos e tecnológicos do cinema. O tipo de câmera, as lentes, as traquitanas para movimentar a câmera, para iluminar a cena. A grua, o steadicam, as objetivas sensíveis, o peso das câmeras, a sensibilidade dos microfones e dos negativos, o cinema digital, tudo isso interage com a gramática cinematográfica. A linguagem está ancorada nessa técnica/tecnologia. E é a nossa caneta. A linguagem também se codificou a partir da necessidade de se criar uma “narrativa”. Precisava-se contar histórias com imagens. Como fazer? Primeiro pensou-se a narrativa a partir da estrutura que usamos para falar e pensar, e em seguida, sofisticou-se, incorporando itens constitutivos da narrativa do teatro - com a dramaturgia, entre outros, e depois, com as figuras de linguagem das narrativas literárias. Esses dois vetores criativos/constitutivos da linguagem cinematográfica precisaram se codificar, se estabelecer. Hoje existe esse código, que pode ser estudado em escolas de cinema, ou conhecido através de livros. Portanto o cinema criou sua linguagem. A linguagem cinematográfica. 23 Como vimos, ela foi constituída por dois suportes: um técnico/tecnológico e outro, o narrativo, que veio do teatro e da literatura. Chegamos hoje no ponto onde se faz necessário re-pensar o cinema a partir desse código que ele estabeleceu. Pensar o cinema a partir “do cinema”. De um lado a técnica/tecnologia, mesmo atrelada ao capital e às necessidades da indústria, desenvolveu o cinema digital que agora nos liberta um pouco das amarras do grande capital. Hoje podemos usar a matriz de captação digital com resultados surpreendentes de qualidade a custos de operação bastante libertários. Outra questão que se coloca é que o tamanho e o peso das câmeras digitais abrem uma nova dimensão para a relação câmera/espaço/ator. Essa gama de possibilidades e posicionamentos da câmera vai interferir criativamente na narrativa. A câmera agora pode ser tomada como extensão do olho, com possibilidades de olhar de onde se quer. Isso coloca questões, nos faz pensar, portanto, abre novas possibilidades para o cinema. Mas o ponto relevante aqui é a construção da narrativa. O pensamento do cinema. Como vimos, a linguagem “narrativa” surge da apropriação/adaptação dos códigos da ação - dramaturgia - e de elementos das narrativas teatral e literária. E é nesse domínio que o cinema pode e deve ser repensado: no seu sistema de representação. O cineasta tem que revisar seus códigos narrativos a partir da constatação de que ele pensa com imagens, ele pensa audiovisual. Trabalhar para ir além da tradição narrativa baseada nas figuras de linguagem literárias. Tratar a imagem agora como um grande “acontecimento”. Pensar o Plano como uma “unidade em si”. Tentar fazer o espectador “sentir” o cinema pulsar na tela. Linguagem como sensação. Propor uma experiência sensorial que estabeleça algum grau de conhecimento novo no encontro com o espectador. A questão agora é, portanto, como criar esses planos, como construir essa narrativa que irá afetar o espectador de maneira que o faça perceber novas possibilidades de conhecimento? Como sensibilizar o espectador com algo novo e significativo? 24 8. O que é “Escrever” um Roteiro ? Essa função, “escrever” um roteiro, isto é, abraçar esse fluxo que impulsiona o ato de escrever nos coloca uma questão: como desenvolver uma narrativa a partir de um fluxo ancorado nas palavras? Será que estamos comprometendo/aprisionando/submetendo nossa narrativa à forma da representação literária? Quero perguntar mais objetivamente: serão “as palavras” a melhor ferramenta para descrever uma cena de cinema? Pensar o cinema é criar narrativas a partir de imagens+sons que nos remetam a um estado de “suspensão”. Que nos afetem. Essa é a contribuição que Deleuze faz para a nova equação do cinema. Nos faz pensar a partir daí. Escrever um roteiro, e então agora acho melhor dizer “fazer roteiro”, é pensar um sequencial de cenas com poderes de afetar as pessoas por conter “sentidos” e “narrativas”. Cenas que provoquem/tenham o poder de fazer pensar e afetar a partir delas próprias. Uma cena única, singela e brutal, entendida aqui como força de significação que abre canais para uma “percepção acima do senso comum”. Cada cena desse Roteiro deveria nascer de uma imagem-sensação. Da procura incessante por essa imagem. O que seria isso? Por exemplo, a Antonia Pelegrino, Roteirista, me contou uma cena escrita por ela que relata a relação conturbada de um casal onde a mulher espera um filho de um sujeito que não quer assumir essa paternidade. É uma cena onde eles estão no meio de uma discussão, e por causa disso, mas subitamente, rompe-se a bolsa d’água da gravidez de sete meses da personagem. A imagem do líquido amniótico jorrando da mulher é uma imagem poderosa. Ela tem essa contundência imagística. Procurar imagens contundentes - essa é a tarefa dos Roteiristas. Portanto, trabalhar a “Ideia do Cinema” quando se faz um Roteiro é deixar correr o fluxo do nosso pensamento e de nossa sensibilidade, através dos/pelos signos, criando a sensação de que acontecem a partir da imagem, a imagem aqui entendida como acontecimento. 25 9. O Cinema de Liturgia Procurei por um tempo um conceito que pudesse definir um certo cinema que persigo e aprecio. Não sou um cineasta que faz o “cinema de poesia” conceituado por Pasolini, tal como Ruy Guerra em Estorvo ou Julio Bressane em Filme de amor. Meus filmes são narrativos, gosto de afetar, gosto do “como contar”, quer dizer, gosto de linguagem, gosto de pensar a questão da representação no cinema. Portanto, persigo um cinema que se constrói pela imagem e, principalmente, na imagem. Por isso gosto do Elephant do Gus Van Sant, de A humanidade do Bruno Dumont e recentemente de Os três macacos do Ceylan, que são filmes que narram histórias, mas construindo sua forma específica e absolutamente criativa de narrar: pela imagem e através da imagem. Ser narrativo não é oposto de ser inventivo, criativo. Bertolucci é narrativo e Godard faz cinema de poesia. Eu gosto muito de ambos. Faço cinema para me entender no mundo e entender o mundo. Gosto de olhar, não é à toa que sou fotógrafo. Acho que o Cinema passa necessariamente por uma levada contemplativa. Radicalizo até: sem contemplação não há cinema. Temos que descobrir “a forma” para contar cada história. E pensar que essa história vai ser contada por uma linguagem, por uma narrativa que através de uma (forma) estética vai se singularizar. Então, preciso definir o que seria essa estética para o cinema que quero fazer. Fui procurar um conceito que definisse essa narrativa imagística. Nessa busca, me lembrei da minha primeira comunhão. Sim, sou de família católica, principalmente meu pai. Fiz primeira comunhão. Vivi o ato da minha “primeira comunhão” com muita intensidade. Essa lembrança me levou ao insight de que a intensidade simbólica da comunhão é muito cinematográfica e define com bastante clareza o que procuro quando penso como fazer um filme. O momento da “comunhão”, com seu ritual, com os sinos tocando, com o mantra rezado pelo padre, o eco dos sons na igreja, o gestual do padre em “elevar a hóstia”, o 26 cálice de ouro, os crentes de joelhos, tudo isso adiciona sentido, criando uma narrativa. É pura imagem, é pura encenação. A música, isto é, os sinos tocados pelo sacristão, o efeito do eco entendido como sinal da espacialidade da igreja, a locação, a igreja de estilo gótico, na rua Áurea, em Santa Tereza, onde morava, o ator/personagem, o padre, com sua reza percebida como mantra. Tudo é som+imagem, poucas falas. Tudo formatando uma narrativa de sensações para criar emoções. Poderia dizer o mesmo de uma cerimônia de casamento judaico, ou um ritual de iniciação no Candomblé. São encenações de sentido narrativo a partir de uma extrema força visual. Por isso intitulo a ideia do cinema que persigo de “cinema de liturgia”. 10. Estado de Suspensão. Gosto de dizer que o filme que realmente nos afeta nos deixa em estado de suspensão. Suspensão literalmente. Saímos do cinema imersos numa espécie de “transe”, absorvidos aleatoriamente por imagens, falas, sensações, meio anestesiados e cansados por tanta afetação, que nem sentimos os pés no chão. Mas estado de suspensão é uma das possíveis e eficazes ferramentas de atuação política do cineasta para tirar o espectador da zona de conforto das narrativas estratificadas, propondo novas formas de perceber o cinema, portanto, a vida. As narrativas (a linguagem) entraram percepção humana adentro, sedimentadas da ética e dos valores das forças dominantes dos processos sociais. As ideologias. O bem e o mal. O dominador e o dominado. O que é belo e o que é feio. O que é a força e a fraqueza. Quem vence e quem é o perdedor. O que é riqueza e o que é pobreza. Não tem jeito. É assim. Essas “verdades” alicerçam nossa relação com o mundo, mediando inclusive nossos sentimentos na relação com as narrativas. Parece que precisamos dessa ética das narrativas, somos viciados nela, no tempo em como elas são contadas, tempo esse ligado a valor. Tempo é dinheiro, não temos tempo a perder, é a 27 ética da produção e da produtividade. Só há sucesso de público dentro desse código de valores. Isso é tão claro quanto o conceito de beleza significar o que há de mais palatável com essa ideia, no senso comum. Então, para cada autor, cada cineasta que se propõe expandir a sensibilidade humana para além do senso comum, faz-se necessário ter que mexer com essa ética narrativa. Com seus valores de representação. Para encontrar novas formas de perceber o humano fora desse dualismo simplificador. Para isso, nossas narrativas têm que procurar uma forma para suspender esses valores simplificadores e moralistas. Formas que causem estranhamento no mundo do senso comum. A beleza nasce desse estranho, querendo descobrir o incomum, a complexidade dos humanos. E nas descobertas feitas na jornada para perceber isso tudo. Procurando novas formas de construir narrativas onde a suspensão da ética do simbólico leve o espectador a experimentar novas formas sensíveis, sensoriais, e que o faça repensar essa relação com o cinema. 11. O Sentido do cinema sempre foi um só: encontrar o que lhe é específico, o que o torna singular, o que ele pode conter e como ele pode narrar eventos com uma forma particularmente sua e, a partir desse ponto, pensar o mundo e o ser no mundo, que é o objetivo disso tudo. Publicado originalmente no livro Contente em ler cineastas. Renata Boldrini, Maiz de Oliveira e Fernanda Cortez (orgs.). Usina de Letras, 2009 29 Depoimento a Lúcia Nagib Murilo Salles Meu avô adorava me levar ao cinema. Com ele, assistia aos seriados infantis que passavam na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Então posso dizer que a minha formação primeira foram os desenhos animados de Tom & Jerry no Metro Passeio. Aos 14 anos assisti a Oito e meio, de Fellini, filme que certamente marcou a mudança do meu olhar sobre o cinema. Em 1968 e 1969 participei do Festival de Cinema Amador patrocinado pelo Jornal do Brasil, provavelmente “o evento” formador da minha geração. No festival de 1969, com ajuda de alguns amigos, fiz três filmes de 1 minuto que concorreram com 300 outros. Ganhamos uma menção honrosa pelo filme Amém. Foi o pontapé inicial. No ano seguinte, já sob a censura do AI-5, realizei meu primeiro documentário: ABC montessoriano – pois era obrigatório o tema educativo - sobre o método Montessori, que era a coisa mais inovadora à época. Fomos felizes, tiramos o segundo lugar, cujo prêmio era em dinheiro e latas de negativo, o que permitiu realizar meu segundo filme, o documentário Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo, em coautoria com Ronaldo Foster, em 35 mm e em cores. Cursei a ECO, Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sou formado em Teoria da Informação. Havia um cadeira de Semiótica, ministrada pela professora Heloísa Buarque de Holanda, que, nessa época, era ligada ao Cinema Novo e nos levou para assistir Macunaíma numa pré-estreia privada no Museu de Arte Moderna. Os filmes Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe foram dissecados com bisturi no curso da Helô. Uma bela formação. Durante o final dos anos 1960 e inicio dos 70, fervia um clima cinematográfico intenso no Rio de Janeiro. Assistíamos aos filmes do Cinema Novo nas salas de cinemas co- 30 merciais (principalmente no Alvorada). Existia a “Cinemateca do Cosme Alves Neto“, no MAM, que passava de tudo: os badalados cinemas polonês e húngaro, as pré-estreias dos filmes da Belair do Bressane e de Sganzerla, até uma retrospectiva completa de Buster Keaton. O máximo. O Consulado Americano, sentindo-se culpado pelo golpe de 1964, promovia ciclos sobre o cinema underground americano; o Instituto Goethe trazia cópias do que havia de melhor no jovem cinema alemão. A Aliança Francesa promovia sessões dos realizadores franceses em seu teatro enquanto o Cine Paissandu fazia retrospectivas de Godard. No Museu da Imagem e do Som havia sempre a chance de ver o filme que tínhamos perdido no cinema, como Caçada humana, de Arthur Penn, e O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais. Posso afirmar que o Rio de Janeiro, nessa época, era uma das capitais mundiais do cinema. Eu assistia a mais de 350 filmes por ano. Além disso tinha o bar da Líder, na Álvaro Ramos, onde a gente podia esbarrar a qualquer hora com o Nelson Pereira ou o Glauber. Tinha ainda o Jangadeiros, para a turma mais de Ipanema: Joaquim Pedro, o Ruy Guerra, entre outros. O que me levou a fazer cinema foi esse clima efervescente: o Cinema Novo logo ali, num cinema da esquina, as discussões radicais sobre a vida e tudo, com os amigos no Lamas do Largo do Machado, e os filmes da Cinemateca. Foi fundamental também a possibilidade de realizar filmes gerada pela existência do Festival Brasileiro de Cinema Amador do JB. Eu tinha orgulho de estar vivendo isso tudo e queria me jogar nessa história mais visceralmente. Minha formação cinematográfica se deu numa época muito sectária. A única coisa que me interessava era assistir e pensar cinema. Não queria saber muito das coisas, lia pouca literatura. O que aprendi sobre a vida se deve muito ao que se passava nas telas, nos filmes. Além disso, esta minha formação foi muito influenciada por um certo purismo de não se deixar impregnar pela estrutura narrativa literária. Então dediquei minha ignorância ao cinema: dos 18 aos trinta e poucos anos não lia romances para não me deixar influenciar. Só aos trinta e tantos fui perceber a estupidez que estava fazendo. Minha formação acadêmica foi completamente “anos 60”. Havia as leituras obri- 31 gatórias, por exemplo, quem não lesse a Antropologia estrutural de Lévi-Strauss não estava com nada. Tínhamos que sair com As palavras e as coisas debaixo do braço ou não arrumávamos namoradas. Tínhamos que estar por dentro de Althusser e Saussure. Tudo isso fez parte da minha formação e confusões. A CARREIRA Bruno Barreto era um garoto inteiramente apaixonado por cinema. Aproximei-me dele justamente por isso. Em 1968, eu tinha 17 anos e Bruno, 13, mas ele tinha uma maturidade e uma informação cinematográfica impressionantes. Foi Bruno quem me apresentou Truffaut. Eu era godardiano radical, admirador de Louis Malle e Alain Resnais, mas não conhecia Truffaut, achava meio bobinho. Ele me fez descobrir Os incompreendidos e Jules e Jim, que são dois filmes fundamentais na história do cinema. Na verdade, nessa época, eu vivia intensamente um conflito, estava me iniciando em cinema, mas era muito politizado. Tinha muitos amigos que entraram para a luta armada, alguns se exilaram, isso me dividia muito: o que fazer? Sentia-me um personagem de La chinoise. Então, na faculdade, tentando resolver essa contradição, formamos um grupo que criou a Corisco Filmes, uma produtora com pretensões de fazer cinema coletivo. Conseguimos realizar um documentário sobre a Rádio Nacional. O filme reflete bem a pretensão dessa proposta. Era difícil para mim ter uma prática pretensamente politizada na produtora e uma vida profana, mas muito produtiva, com o Bruno Barreto. Mas o coletivo da Corisco se dissolveu nas pretensões individuais de seus fundadores. Pelo menos, realizamos a produção de Carro de bois, o primeiro documentário colorido de Humberto Mauro. Foi um projeto maravilhoso criado pela Valéria Mauro, neta de Humberto, e seu marido Sérgio Santos. Tive a honra de fotografar este filme e conviver durante um mês com Humberto Mauro, nosso primeiro grande mestre na busca por um cinema voltado para as questões da brasilidade. Moramos um mês em Volta Grande, no estúdio de Humberto Mauro. Foi sensacional. 32 Voltando a 1969, realizei três filmes em 16 mm para concorrer no V Festival Brasileiro de Cinema Amador. O Bruno fotografou um deles e me emprestou a Bolex para eu fazer os outros dois. Logo depois ele começou a fazer uma série de curtas-metragens já em 35 mm, preto-e-branco, e me chamou para ajudá-lo. Agarrei-me àquela oportunidade com unhas e dentes: acabei fotografando os curtas Este silêncio pode significar muita coisa, A bolsa ou a vida e Emboscada, além de ajudá-lo na montagem e na produção. Enfim, minha escola foi essa: a prática. Um luxo. O primeiro longa do Bruno foi Tati, a garota (1972), baseado no conto de Aníbal Machado, um filme despretensioso, feito com muita garra. Bruno nessa época tinha 17 anos, eu, 21. Fiz a direção de fotografia. Tati foi “feito em casa”, com uma equipe mínima: Bruno, eu, Mariza Leão - que era a continuísta -, um assistente de câmera, um eletricista, um maquinista, a produção foi de dona Lucíola (avó de Bruno) e da Lucy (mãe). Os atores Dina Sfat e Hugo Carvana, acredito, estavam muito motivados pelo frescor de fazer um filme tão jovem. Isso passou para o filme: a paixão e a tenacidade do Bruno, mais a juventude de uma equipe de amigos e dois atores extraordinários. Não deu outra, o filme foi um sucesso de bilheteria que surpreendeu até o Luiz Carlos Barreto. Tati provocou uma revolução dentro da casa dos Barretos. Luiz Carlos cria então a ICB (Industria Cinematográfica Brasileira), que produz Guerra conjugal, de Joaquim Pedro de Andrade, e A estrela sobe, de Bruno Barreto, entre outros. Bruno me convida novamente para fotografar o filme, agora numa estrutura mais “industrial”. Foi um prazer ter feito A estrela sobe (1974), com a Betty Faria, uma grande estrela e gente muito fina. O filme tem momentos singelos de brasilidade, é talvez um dos melhores filmes do Bruno, que já era um cineasta adulto. Eu levava aquilo ainda meio na brincadeira. Muito da fotografia do filme se deve ao Bruno me desafiando sempre para fazer melhor. O Bruno daria um excelente fotógrafo, tal como o pai. Em seguida, fui convidado por Eduardo Escorel, montador de Terra em transe, um cineasta do Cinema Novo, para fotografar seu documentário de curta-metragem, Relação 33 de visita feita a fortificações portuguesas do litoral nordeste do Brasil. Foi imensa a satisfação em receber esse convite do Eduardo, ele nem imagina, sobretudo porque eu era considerado um apêndice do Bruno, que fazia filmes comerciais, então rolava uma certa indiferença dos cardeais do Cinema Novo com o filho do Barretão, quanto mais comigo. Eduardo tinha montado Isto é Pelé para o Luiz Carlos Barreto, que foi um sucesso de bilheteria. Logo depois, ele iniciou a produção de Amar, verbo intransitivo, que virou Lição de amor (1975), filme que fotografei com o coração batendo no gogó e considero até hoje um dos grandes trabalhos que realizei. Quando assisti à primeira cópia do filme fui possuído de um sentimento delicioso: a certeza de que tinha me transformado num fotógrafo de cinema. Eduardo Escorel é um grande cineasta, e sinto um baita orgulho de ter fotografado esse excelente filme, um marco de qualidade e sensibilidade no cinema brasileiro. Em seguida, Bruno Barreto embarcou no Dona Flor e seus dois maridos (1976), um megaprojeto de seu pai. Foi o filme mais caro produzido no Brasil até então, dirigido corajosamente e com uma tenacidade absurda, que o Bruno tem até hoje. Na época o Bruno tinha apenas 21 anos, e eu fiz 25 no set de filmagem, uma festa noturna inesquecível na piscina do Salvador Praia Hotel. Dona Flor era até pouco tempo o maior sucesso histórico do cinema brasileiro. O filme é um encontro de vários grandes talentos: Sônia Braga, José Wilker, Chico Buarque, Francis Hime, um roteiro magnífico do Eduardo Coutinho e do Leopoldo Serran, baseado no romance desse grande escritor que é Jorge Amado. Lembro bem quando assistimos ao filme com o público, foi emocionante. Na época, o cinema brasileiro tinha a fama de ser mal feito, sem foco, fotografia lavada, som inaudível, e Dona Flor deu um banho de rigor técnico, tudo em foco, exposição correta, impecável. Aquela música extraordinária do Chico Buarque, aqueles jovens atores magníficos, a apresentação do Rudy Bohn, a direção supermadura do Bruno; enfim, foi um puta orgulho ter participado de um produto feito com tanta excelência. Foi o terceiro filme meu com o Bruno, tudo era grandioso e demorado, era muita responsabilidade pela grana envolvida e pelo 34 equipamento muito precário: os refletores colossais e pesados, a maquinaria antiga e até a câmera, uma velha Cameflex. Foi dureza, mas o que ficou foi um sentimento muito bom. Até hoje admiro o Bruno pela coragem de, aos 20 anos, encarar um projeto desta dimensão. Tentei persuadi-lo a desistir do filme várias vezes durante a preparação. Ainda bem que não consegui. Quando terminei de filmar Dona Flor, fui para a Europa, me autoexilei. Passei dez meses em Paris, reencontrei amigos, frequentei assiduamente a Cinemateca Francesa, via cinco filmes a cada sábado, enfim, tirei meu atraso cinematográfico imposto pela ditadura. No retorno para o lançamento de Dona Flor, recebi um convite de Ruy Guerra para ir a Moçambique. A ideia era fazer um documentário por ocasião do III Congresso da Frelimo, partido marxista-leninista que tinha tomado o poder havia um ano, com o 25 de Abril em Portugal. Chegamos em Maputo cheios de tesão e o documentário acabou não acontecendo por falta de equipamento. Uma frustração. Para aproveitar a minha presença, dei algumas palestras improvisadas sobre fotografia em cinema, afinal, à época, era o fotógrafo top brasileiro, de Lição de amor e Dona Flor. As palestras foram boas (com a ajuda do Ruy) e acabei convidado para dar um curso no Instituto de Cinema durante um ano. Topei de cara. Com a bagagem para passar uma semana em Moçambique, lá fiquei por dois anos. Foi muito bom, porque era o conselheiro tecnológico do Instituto de Cinema. Ajudei a colocar o laboratório para funcionar, colaborei na montagem de um estúdio de som, tive uma cinemateca à minha disposição, com filmes de Marcel Carné a Godard na moviola, indo e voltando, discutindo cada plano com os alunos. Com o tempo, fui descobrindo antigos filmes documentários do tempo colonial e do processo da luta armada da Frelimo, que estavam nas prateleiras. Fui para a moviola e fiz um filme de montagem, Estas são as armas (1978), cuja proposta era materializar imagisticamente o conceito de imperialismo para o camponês moçambicano. Foi muito emocionante o sucesso, o filme estreou numa praça de touros local, em sessões contínuas, noite adentro. Foi cobrado o ingresso de um centavo para sabermos a quan- 35 tidade de pessoas que estavam assistindo ao filme: foi o recorde histórico de bilheteria de Moçambique. O filme ainda ganhou a Pomba de Prata no Festival de Leipzig, em 1978, até então o melhor festival de filmes documentários que existia. Esse foi o trabalho que me devolveu à condição de diretor. Fotografar, por incrível que pareça, nunca foi minha escolha, sempre quis dirigir filmes, mas esse desvio, provocado pela minha amizade com o Bruno, foi fundamental na minha formação, pois acabou por me dar muita intimidade com a câmera. Voltei para o Brasil a convite de Carlos Alberto Prates Correia para fotografar Cabaret mineiro, filmado na região de Montes Claros. É um filme agro-godardiano, impregnado do universo mineiro-montes-clarense do Carlos Alberto, com discos voadores e muitas fantasias eróticas. Enfim, uma bela volta ao Brasil. Busquei fazer uma fotografia que ressaltasse o incrível tom da terra de Grão-Mogol e os azuis e verdes dos rios. Foi isso: exploramos ao máximo as cores locais. Expusemos sempre no limite da latitude. Os interiores-dia filmávamos em sua maior parte à noite, para termos o controle total da luz e do contraste. Na época, essa radicalidade técnica teve muito impacto no circuito de fotógrafos de cinema. Com ela, ganhei os prêmios de melhor fotografia nos festivais de Gramado e Brasília. Foi um belo retorno ao Brasil. Já Eu te amo (Arnaldo Jabor, 1981), o filme seguinte que fotografei, é expressionista no sentido da pincelada forte, com exageros propositais, é a “fotografia pela fotografia”, num exercício barroco de iluminação e cor. Eu te amo, com Tabu [1982], de Júlio Bressane e Cabaret mineiro — os três filmes — talvez tenham essa coisa muito especial, a minha volta depois de quase cinco anos fora, poder ‘olhar’ novamente o Brasil. Fazer Eu te amo foi um prazer. Trabalhar novamente com Sônia Braga, madura e arrasadora; com Vera Fischer fazendo seu début cult; com o Zé Tadeu Ribeiro de assistente (mais que assistente, um amigo que fotografou meus dois primeiros longas de ficção); com o Waldir Monteiro maquinista no seu auge, numa relação de simbiose 36 comigo, fazendo travellings maravilhosos sem nenhuma marcação, ao simples sinal de meu indicador. Mas antes de tudo, fazer um filme com o Jabor, um grande “maestro’ com sua equipe e atores, um cineasta que inteligentemente sabe extrair o nosso melhor, foi um dos trabalhos mais enriquecedores que fiz. Com esse filme, ganhei meu segundo Kikito de melhor fotografia no Festival de Gramado e a ótima sensação de ter dominado completamente o meu métier. A seguir, Bruno me chamou para fotografar O beijo no asfalto (1980), uma adaptação da peça de Nelson Rodrigues. Foi ótimo, uma grande oportunidade de inventar moda. Como a locação principal era muito apertada e eu queria que a luz viesse da altura de um abajur, então desenvolvi com o Betão (o chefe eletricista) um sistema de luz móvel: eu segurava o refletor com as mãos e o movimentava na medida da evolução do plano. Era o refletor voador... Também fiz um exercício de contraste de iluminação bastante radical. Fico atormentado hoje em dia vendo a cópia de O beijo na televisão. Fizeram uma telecinagem horrível, desrespeitosa com o trabalho, clarearam tudo,provocando uma baixa de contraste artificial, o que lavou e granulou todo o filme. A ideia de alto contraste que contribuía fundamentalmente para o clima rodrigueano do filme foi para o espaço. Espero que um dia isso seja corrigido, porque é um trabalho feito com muito carinho e coragem. Trabalhar em Tabu foi juntar fome com vontade de comer. O cinema do Júlio é imagético e seu trabalho é totalmente voltado para a invenção. O que mais pode querer um fotógrafo que trabalha com essas mesmas ferramentas? Foi um belíssimo encontro. A ideia era fazer com que o filme, quase todo rodado em locações exteriores, tivesse um aura artificial. Tive que trabalhar para descolar a imagem das externas do naturalismo fotográfico que é dominante no cinema. Para realizar essa façanha, contei com o gênio foquista de César Elias, realmente meu grande parceiro no filme. Sem o César, Tabu não seria o que é. Outro principio adotado foi fazer muita filtragem na câmera. Há muito tempo vinha pesquisando criar filtros específicos que respondessem melhor ao clima fotográfico da cena. Comecei a adotar timidamente essas novas filtragens em Eu te amo, do Jabor, mas em Tabu a ideia de criar uma 37 filtragem específica para cada cena tomou conta do trabalho, em função do clima de cor que eu queria adotar: procurei muito os tons turmalina, esmeralda, azul petróleo (acinzentado), que tinham a ver com os climas. Portanto, juntava várias gelatinas de Color Correction criando uma filtragem especial que rendesse um tom de cor específico para cada cena. Enquanto fazia Tabu, comecei a querer voltar a dirigir, que era a minha intenção desde que voltei de Moçambique. Ganhei de presente de aniversário O cego e a dançarina, o primeiro livro de João Gilberto Noll, que na minha opinião é um dos escritores brasileiros mais talentosos. No livro, por causa de conversas com o João Gilberto, descobri no conto Alguma coisa urgentemente um clima que estava procurando para imprimir no que seria o meu primeiro longa. Trabalhei longamente numa adaptação com o meu primo José Joaquim Salles. Depois procurei o Alcyone Araújo, um sólido dramaturgo que se tornou grande amigo e foi quem escreveu o roteiro que conquistou financiamento na Embrafilme em dois meses. Bons tempos... Então nasceu Nunca fomos tão felizes (1984). O filme foi selecionado para o Festival de Cannes, na Quinzena dos Realizadores. Ganhou o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno e, em Brasília, ganhou o prêmio de Melhor Filme dos júris oficial e popular. Nunca fomos tão felizes é um filme muito delicado e minimalista, uma metáfora sobre a questão da ditadura militar vista através da relação entre pai e filho. Meu segundo longa-metragem, Faca de dois gumes (1989), é um thriller. Queria provar que era diretor, que sabia conduzir uma história contada através de ‘planos de cinema’. Dispunha de dois grandes atores, Paulo José, que foi um verdadeiro parceiro, e Marieta Severo. Aliás, todo o elenco do Faca é muito bom. A equipe era maravilhosa. O Faca é o meu maior sucesso de bilheteria e com ele ganhei o Prêmio de Melhor Diretor do Festival de Gramado. Foi um filme feliz, na filmagem e nos resultados. COMO NASCEM OS ANJOS Então veio a época da “grande depressão Collor”. Para reagir, escrevi Como nascem os an- 38 jos. Fiquei com aquele roteiro em cima da minha mesa por uns bons dois anos. Foi quando o Governo do Estado de São Paulo criou o Prêmio Banespa, uma luz no fim do túnel: mandei o roteiro e fui selecionado. Mas o Banespa só liberava os R$ 300 mil se comprovássemos ter o valor total da produção. O orçamento era de R$ 1,3 milhão. Aí, tudo parou novamente. O impeachment do Collor fez o Itamar Franco virar presidente e criar o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro com o saldo do caixa da Embrafilme. Anjos foi contemplado com R$ 500 mil pelo Prêmio Resgate. Em seguida, consegui patrocínio da Riofilme e, depois, do BNDES, para a finalização. Tenho a tendência de achar Como nascem os anjos meu melhor filme. É o sentimento de ter encontrado uma dramaturgia singular. Os Anjos provoca um desconforto nas pessoas: ninguém sabe muito bem que filme é esse, porque ele confunde: tem começo, meio e fim, mas não estabelece direito quem é o protagonista, quem é o personagem do bem, quem é do mal. Como gênero, é uma tragédia, mas com uma forte levada cômico-absurda que, ao mesmo tempo em que envolve o espectador, vai decompondo os elementos que o prendem à narrativa. Toda a sua construção é ambígua, pois é uma brincadeira em torno do conceito de verossimilhança: todas as cenas são inverossímeis, mas vão sendo trabalhadas e encenadas para se tornem verossímeis, críveis, como, por exemplo, a cena onde Maguila pede para usar o banheiro na casa de William porque não mija na rua. É engraçado e absurdo, eu me divirto muito, vou confundindo, quando o espectador acha que vem um sim, eu digo não, tal como na música de Caetano. O cinema está precisando de um salto qualitativo, de reinventar formas diferentes de contar e enquadrar o grande hipertexto. Estamos muito parados desde as inovações formais de Godard, Straub, Jancsó e das grandes personalidades cinemáticas como Fellini, Antonioni e Welles. Penso que ainda há grandes espaços para se pensar o discurso narrativo. Como nascem os anjos talvez seja meu primeiro passo nessa direção. Tem muita gente procurando formas singulares e sensíveis de narrar. O filme de Edward Yang, As coisas simples da vida, é um belo exemplo. 39 Nos Anjos eu quis prestar uma homenagem a O anjo nasceu, do Júlio Bressane. Sou muito impressionado pelos filmes iniciais do Bressane e pelo Rogério Sganzerla de O bandido da luz vermelha e A mulher de todos. São filmes que fizeram muito a minha cabeça. Sou carioca, nascido e criado em grande cidade, me identifiquei muito com esse tipo de cinema que surgiu no Rio com o Bressane, em São Paulo com o Sganzerla, com A margem, do Ozualdo Candeias, e com Bang-bang, do Andrea Tonacci. A estrutura básica do meu filme é a mesma da desses filmes: o diálogo com o absurdo. Naquela época havia a ditadura militar, mas ainda hoje o absurdo é matéria-prima criativa, um convincente recorte sobre o Brasil. Ismail Xavier, na revista Cinemais, disse não entender por que eu usei um personagem americano, questionando a tendência de certos filmes brasileiros de utilizarem atores americanos para “vender” lá fora. Comigo foi exatamente o contrário que aconteceu. A curadoria internacional, em geral, não gostou do fato de usar americanos no filme, achando o mesmo que Ismail. A ironia toda é que Anjos é meu filme que menos vendeu internacionalmente. Acho que até os curadores ficam confusos com o filme. Mas o Ismail? Poxa... A verdadeira razão de ter escolhido um americano foi que nenhum morador do Rio de Janeiro teria problema com o fato de Maguila chegar à sua porta e pedir para mijar. No máximo ia desconfiar desse tipo de pedido. Os cariocas já se acomodaram ao, no mínimo, desconfortável e absurdo conflito entre morro e asfalto. Um personagem burguês carioca provavelmente teria dito: “Pô, cara, agora não dá, tô de saída, atrasado... fica pra próxima...”, enquanto isso iria fechar a porta da garagem e pronto. Aí, o filme não aconteceria. Essa situação só é possível acontecer - pois ela é inverossímil - se a casa pertencer a alguém que tenha uma grande cerimônia ou uma tremenda ingenuidade, que não encaixa com quem nasceu num país com desníveis sociais tão profundos. Por isso tive que escolher um gringo. Ele obviamente não sabe lidar com essa situação. Um gringo nunca vai entender Maguila com duas crianças vestidas para o colégio pedindo para ir 40 ao banheiro. William é pego de surpresa, fica meio sem saber o que fazer, então Branquinha entra na garagem para explicar a situação e aí aparece o motorista/segurança querendo controlar a situação, fica assustado com Maguila, que grita para largarem sua mulher (“Que mulher? Esta criança andrógina é mulher do mastodonte?”). Apesar dos pedidos do patrão-gringo, o motorista atira no ameaçador Maguila, que por sua vez acaba matando-o. Tudo ao acaso, uma situação absolutamente inverossímil sendo construída e encenada de forma a tornar-se verossímil. Larry Pine é um ator impressionante. Injustamente não é muito conhecido, apesar de ter sido protagonista de Sunday, um filme que ganhou o Festival de Sundance. Além de excelente ator é uma grande pessoa, topou fazer o filme abraçando o projeto com uma garra e uma dedicação impressionantes. Passou um mês em Nova York ensaiando uma língua que desconhecia. Depois, mais dez semanas exaustivas interpretando William em português. Qualquer ator sabe a dificuldade que significa representar sem conhecer a língua que está falando: o diálogo é um dos principais suportes da emoção do ator. Hoje reconheço em Como nascem os anjos a coragem das minhas ‘brincadeiras’ dramatúrgicas. E fico contente vendo filmes semelhantes aparecerem por aí, excelentes, com uma certa ‘irmandade’ com Os anjos, como Buffalo 66, de Vincent Gallo, e, principalmente, Terra de ninguém, do esloveno Danis Tanovic. TODOS OS CORAÇÕES DO MUNDO Um presente dos deuses. Imaginem a situação: eu estava na festa do Prêmio Colunistas do Rio de Janeiro, quando Mauro Richter, um amigo produtor, encosta ao meu lado e pergunta se eu estava interessado em dirigir um documentário sobre a Copa do Mundo de Futebol! Foi exatamente assim. Eu não acreditei. No dia seguinte, estava no centro da cidade, numa reunião com os produtores do filme e, dois meses depois, estava em Chicago filmando o jogo de abertura. Parece conto de fadas, não? O grande desafio desse projeto era produzir um documentário de envergadura em 41 apenas um mês antes de começar a Copa. Conseguimos reunir um grupo de fotógrafos maravilhosos, de superprodutores, de quatro diretores talentosos para as unidades móveis e todo o resto da equipe, assistentes, finalizadores; enfim, para ser justo com a garra e o talento da galera, teria que citar todo mundo. Embarcamos 100 pessoas para os Estados Unidos uma semana antes de começar a Copa. Nas primeiras duas semanas foi aquela loucura, dormíamos duas horas por noite. Demos muita sorte com a equipe: todos, sem exceção, compraram o projeto, se dedicaram dia e noite ao filme. Era um sonho estar vivendo uma Copa do Mundo tão por dentro, com tanta intimidade. Não vou esquecer nunca que, quando terminou a final, Brasil tetracampeão, depois que o estádio se esvaziou, nossa equipe se apoderou do gramado para comemorar. O Walter Carvalho tem um registro memorável disto. Deitei no gramado debaixo do travessão do gol em que foram disputados os pênaltis. Fiquei ali, emocionado, quieto, olhando aquela baliza na qual, meia hora antes, 2 bilhões de espectadores concentravam suas atenções. Incrível, não? Comemoramos tardiamente porque, no momento da conquista, emocionados, com olhos em lágrimas, filmávamos. Eu, embargado, pedia no rádio para os 14 câmeras: filmem, não parem de filmar! Mas depois nos esbaldamos no mesmo gramado em que os jogadores brasileiros deliraram de felicidade, enquanto os italianos expunham sua amargura. Todos os corações do mundo exala a felicidade, o tesão enorme e a garra surpreendente de toda a equipe que fez o filme. Mas, principalmente, um pé-quente extraordinário: tive a felicidade de realizar o filme oficial da Fifa sobre a Copa do Mundo em que o Brasil sagrou-se tetracampeão. Precisa mais? Publicado originalmente em O cinema da retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, de Lúcia Nagib. São Paulo: Editora 34, 2002, pp. 406-415 Depoimento colhido em julho de 1999. Revisto em fevereiro de 2002 e em junho de 2016. (Pesquisa: Mariângela Coelho Jacomini Bonetti) 42 43 Filmes-faróis de Murilo Salles comentados por ele mesmo 8 e ½ (1963), de Federico Fellini Assisti no cine Petrópolis durante as férias escolares, provavelmente em 1965, com 14 anos de idade. O filme era proibido para menores de 18, mas eu estava com meus pais. Aquelas imagens, do Marcelo Mastroianni aprisionado no carro, uma outra, a dos braços pendurados às janelas do ônibus e, em seguida, a do personagem que sai voando, libertando-se daquele pesadelo, certamente ficaram muito fortes no meu imaginário. Sensualidade e religiosidade. Eu vivia essas questões. A educação católica repressora e persecutória. A história de um cineasta preparando um filme enquanto rói as unhas. As tetas de Saraghina. Mulheres: céu e inferno. Esse filme me ensinou que cinema é vertigem, tal qual o pesadelo de Guido, que em pleno voo, súbito, desaba ao mar. Corta. Cinema é magia, suspensão e vertigem. Um mergulho no desconhecido da criação. Coragem e encantamento… As dúvidas de Guido em relação ao ato criador. Honestidade? Feitiçaria? Encantamento? O que dizer, se não tenho nada a dizer? Fellini fala em seus planos, seus travellings, criando esse estado de vertigem. A imagem. Fellini é antes de tudo a descoberta da potência da imagem do cinema. Encantamento, sedução, vertigem, medo. Isso deve estar guardado em algum lugar dentro de mim. Blow up – Depois daquele beijo (1967), de Michelangelo Antonioni Assisti no Cine Odeon. Esse é “o meu filme” seminal. Em tudo, na sua forma, no seu conteúdo, nas atitudes dos personagens. Esse foi o filme que mais deixou marcas em mim. Eu queria estar ali, dentro daquele filme. O mistério, a narrativa tensa que carrego em meus filmes. Antonioni, acredito, não só em Blow up, mas em toda a sua obra, me 44 influenciou no modo de narrar e no seu recorte de mundo: o desamparo, a fragilidade, a delicadeza, o feminino. Por outro lado, o seu pensamento cinematográfico, a sua tenacidade em procurar uma estrutura narrativa própria do cinema, imagística, por mais que isso pareça hoje meio sem sentido, foram inovadores e fundamentais para mim e para minha geração. É exatamente o que anda faltando em nossos filmes atuais. Antonioni é meu cineasta predileto. Por tudo, pela atitude e política como cineasta, pelos filmes que fez e por ter-se casado (mesmo que por um tempo) com Monica Vitti. O eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni Adoro A aventura, com seus planos maravilhosos e fotografia impressionante, mas a genialidade de Antonioni ganha radicalidade em O eclipse, para mim seu grande filme, que gira em torno de uma mulher. Monica Vitti vive uma insatisfação (em seus filmes, todos os burgueses são insatisfeitos, uma ingenuidade política da época), um vazio em seus relacionamentos, até que se fixa num sujeito. Parece que encontrou alguém, mas na verdade não... Ele está ali, mas ela é inquieta, não se sacia. O que interessa nesse filme, muito acima da história, é a coragem narrativa radical de fazer desaparecer a protagonista, por completo, nos últimos dez minutos do filme. O que é novo aqui é que a câmera passa a ser a protagonista e percorre os espaços dos possíveis encontros, espera a chegada de alguém nos pontos de ônibus, nas ruas, na esquina do apartamento. Tudo está vazio e ninguém chega, porém a câmera continua lá, filmando esse vazio da vida, nos provocando... É impressionante a coragem cinematográfica. Dez minutos finais sem resolução, sem redenção e tudo mais, num profundo silêncio. No Cine Paissandu fui abduzido pela poética da Nouvelle Vague, que, pelo excesso de novidade, me encantou muito. Acossado (1960) – Godard + Truffaut – Os incompreendidos (1959). Esses dois filmes iluminam até hoje as telas com a liberdade e o encantamento de um cinema que está sendo inventado enquanto filmado. 45 O demônio das onze horas / Pierrot le Fou (1965), de Jean-Luc Godard É um “caso” especial. Talvez o filme que mais tenha visto na minha vida. É o meu “Filme de Geração”. Um filme-tese, existencial. A quebra dos gêneros. Invenção e Poesia. Música e Revolução. CHEGA? Depois dele, fica a questão: Qu’est-ce que je vais faire? Je ne sais pas quoi faire. O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais Assistido no cinema do Museu da Imagem e do Som, na Praça XV. Rigor cinematográfico & Nouveau Roman. Presente e passado se fundem e se confundem. Real, memória & imaginação. Cinema-Cérebro. Vozes suspensas no ar. Delphine Seyrig se oferecendo à câmera, num extasiante assombramento. Com certeza o cinema, com Marienbad, inventa uma forma de pensar. Talvez, vendo hoje, pareça esquemática e muito racional, mas foi uma forma que libertou o cinema da narrativa literário-hollywoodiana, nos abrindo principalmente a cabeça. Por isso continua valendo. O “Descobrimento do Brasil”: Como um garoto de classe média, urbano, descobre o Brasil? Na Cinemateca do MAM de Cosme Alves Neto. No turbulento e significante ano de 1968, assisti Deus e o Diabo na Terra do Sol. Um choque de realidade. Esse filme fez minha vida mudar. E nesse mesmo ano assisti a Terra em transe (no Ópera, na praia de Botafogo) e O bandido da luz vermelha (na Cinemateca do MAM). Com eles funda-se uma cinematografia; funda-se uma identidade; constitui-se um corpo. SIM. O Cinema Brasileiro passa a ter um corpo próprio, isto é, inventa uma linguagem própria, com luz e imagem e narrativas singulares. E isso tem fundamento conceitual: com o espírito ‘traquitana’ de Edgar Brasil – principalmente em Limite + o conceito da imagem foto-jornalística, urdido por Glauber – e que se impõem magistralmente em Vidas secas. E essa cinematografia fala com o mundo com O bandido da luz vermelha, que se pergunta ao espelho: Quem sou eu? – Tal como Ana Karina, linda, saltitante, mas casada com o Godard (coitada…) em ‘Ferdinand le fou’. 46 O bandido Giuliano (1962), de Francesco Rosi Foi um impacto. Ressalta primeiro a fotografia de Gianni di Venanzo, que atinge aqui seu apogeu, apesar de Fellini 8 e 1/2. O filme me inquietou muito, pois parece um documentário, mas com uma narrativa incrível, ousada, que não respeita cronologia, vai para frente e volta em flashbacks, e que nos mantém aparafusados à cadeira. Para mim, esse filme ‘inaugura’ o ‘mix italiano’ que influenciou enredos de filmes mundo afora: o estamento do poder, a política e a máfia. Um filme mais que marcante, um verdadeiro ‘sol’. Teorema (1969), de Pier Paolo Pasolini Assisti no Condor Largo do Machado. Vital. Brilhante. Talvez o filme dessa época que mais tenha se tornado contemporâneo. Pasolini funda a possibilidade de filmar o singular dentro de uma visão marxista da burguesia. O ‘desbunde’ de uma burguesia que não dá mais conta do mundo pós-maio de 68. Teorema é um anjo exterminador que detona o discreto charme da burguesia. Uma síntese buñuelesca com o cine-poesia de Pasolini. Teorema se tornou contemporâneo porque nasceu contemporâneo. À frente de sua época. O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci Assisti enquanto começava a fazer cinema fotografando Tati, a garota. Outro filme FODA. Para mim significa a descoberta de Bernardo Bertolucci e Vittorio Storaro. O Cinema como ‘Ética do Plano’ tão pregada por Godard, mas com uma filiação direta de Orson Welles e Gregg Toland. Um Citizen/Conformist. Mais um filme dos anos 1970 tentando dar conta da decadência da burguesia pós-68, mas aqui sob o prisma do fascismo. Dominique Sanda linda, enigmática e desafiadora + os seios e o nariz de Stefania Sandrelli! Política & Eros. Potência Imagística: a ‘cinematografia’ reinventada por Storaro. Um cinema profundamente encantado pelo próprio Cinema. 47 Bem, chegamos a ele, Luis Buñuel. Difícil dizer qual dos seus filmes me ilumina. Sua obra é marcante e única. Ele é um cineasta fora de todos os ‘eixos’. Me descarrilou já nos dois primeiros filmes, Um cão andaluz e A idade do ouro. E depois, com Viridiana, Os esquecidos, O anjo exterminador, A bela da tarde, O discreto charme da burguesia, O fantasma da liberdade. Com seu último, Esse obscuro objeto de desejo, ele me olha desafiando: ‘diz aí Murilo?!’ Sempre fiquei sem saber ‘onde estava’ ao final dos filmes de Buñuel. Isso é incrível. Seu cinema é desestabilizador. Seu espírito é indomado, surreal, iconoclasta, cruel, nega valores estabelecidos, critica cruelmente a burguesia, mas seu inconsciente é assombrado pela religião católica, e ele persegue, acima de tudo, a liberdade, por mais que negue que ela exista! Esse é Buñuel. O meu Como nascem os anjos é uma pequena e singela homenagem a esse que foi um dos grandes gênios do Cinema. 48 49 Sobre o cinema do Murilo 51 Como nascem os filmes? Mauricio Lissovsky Pátio, de Glauber Rocha, realizado em 1959, anuncia-se como um “film experimental”. Em cena, um casal de atores (Sólon Barreto e Helena Ignês) ou talvez de personagens (um homem, uma mulher). Sobre o piso quadriculado de azulejos, movimentos extenuados mas não desprovidos de desejo recusam a racionalidade do tabuleiro de xadrez. O pátio está cercado por um muro de alvenaria, mas uma de suas bandas volta-se para o mar e descortina o horizonte. Além-muros, folhas de bananeiras balançam com o vento. Talvez as plantas espiem o que acontece no pátio, pois, com o entardecer, as sombras orgânicas dos vegetais rivalizam com a geometria da cerâmica: preto sobre branco sobre preto e branco em preto e branco. O que se experimenta aqui? O cinema — é a resposta mais evidente. O jovem cineasta experimenta-se com o cinema — diz-se também. Mas essas respostas, fáceis, imediatas, descartam algo que está posto ali desde o início — o experimento. Esses corpos selvagens expostos ao sol, ao vento, ao rumor das folhas, ao odor do mar, dispostos contra a retícula civilizada, cuidadosamente observados pela retina cinefotográfica. Já vimos isso antes, nas fotografias feitas por Portman dos andamanenses, no sul da Índia na segunda metade do século XIX. O fundo pintado com pequenos quadrados regulares pretos e brancos fora desenvolvido pela Sociedade Etnológica inglesa com vistas à medição comparativa dos corpos nativos das colônias britânicas. A abstração geométrica era um requisito tão fundamental da fotometria antropológica que Portman recomendava manter a folhagem em torno do sujeito fora de foco quando não fosse possível usar o tecido xadrez. Mas em Pátio a folhagem não é mantida à parte. Ela inva- 52 de o quadro, suas sombras movediças disputam os corpos com os azulejos estáticos do piso. Glauber tem consciência do choque entre esses elementos, a catástrofe que se abate sobre os personagens. A primeira coisa que distinguimos claramente na banda sonora do film é uma sirene proclamando a urgência do cinema. Pátio não é o primeiro “filme experimental” do Brasil, mas acredito que seja nosso primeiro cinema-de-experimento, categoria em que poderíamos incluir, por exemplo, Teorema, de Pasolini, de 1968, e boa parte da obra ficcional de Murilo Salles com seus personagens confinados, deslocados, palmilhando a estreita linha imaginária que divide civilização e barbárie. Mas enquanto o pátio de Glauber se transforma na plataforma de lançamento para um cinema épico, com Murilo ele ganha uma cobertura provisória, que nos permite permanecer ali um pouco mais, na expectativa de testemunhar as histórias que as sombras farão brotar nas juntas desgastadas dos azulejos. É de lá que emerge Gabriel, de Nunca fomos tão felizes, diante do mar em Copacabana, em um apartamento quase tão despido quanto o pátio de Glauber. A penumbra ressalta o desenho dos tacos no piso. Pelos princípios experimentais de Murilo Salles, não há cinema — ou história — se não há desalojamento, se não há um por-se fora (a loggia não é um pátio, mas um corredor externo ou um pórtico, por onde se circula ou se entra nos palácios florentinos). Por-se loja afora, nos filmes de Murilo, nunca é um exercício de liberdade, mas mover-se de um confinamento a outro, de um internato a outro: dos padres católicos ao pai comunista; dos muros do colégio às paredes do aparelho. Mas o segundo confinamento não é o início ou o primeiro capítulo de uma história, é o local do experimento: “o que aconteceria se...?” Não se trata mais de um cinema de observação, mas de experimentação ativa onde o personagem é exposto à história e aos hormônios, tendo que compreender, sem manual de instruções, o efeito de ambos em seu corpo e em sua alma. Há uma aposta teórica nesse filme, como em várias obras subsequentes de Murilo: cinema é tábula rasa. Não apenas superfície de inscrição, mas lugar de raspagem, de irritação. 53 Quanto mais Camila, de Nome Próprio, lava e esfrega as escadas, mais se entrega ao experimento e menos em casa ela se sente. O “pátio” assume diversas configurações em sua obra: um apartamento vazio de frente para o mar (Nunca fomos tão felizes), a laje de um edifício em Copacabana (O fim e os meios), quitinetes em São Paulo (Nome próprio), a casa do gringo em São Conrado (Como nascem os anjos) e a própria metrópole paulistana (Seja o que Deus quiser!). O nomadismo desses protagonistas, quase todos em fuga ou acossados por forças que os transcendem amplamente, nunca os joga “na estrada”. Movem-se para que deles disponha a tábula rasa do cinema. E é ali, sobretudo ali, que eles se revelam irremediavelmente falhados, inconclusos, irredimíveis. Mas o experimento-cinema de Murilo Salles não é psicológico, é sociológico. São as marcas do socius que o diretor quer ver aflorar de seus personagens desamparados e, frequentemente, disfuncionais. Uma vez capturados pelo experimento, as pequenas ilusões que cimentam os egos vão se esgarçando, o polimento se perde, e emergem, em sua mais crua e pura forma, os males fundamentais da cultura e da sociedade brasileiras: o mandonismo, o sadismo, o preconceito, o conformismo, o improviso. O primeiro movimento, portanto, é esse esforço de abstração. Mas o cineasta está convencido de que não é possível raspar tudo, pois há algo indelével nas superfícies contemporâneas: as imagens eletrônicas. As telinhas sempre povoaram suas histórias: a TV de Gabriel e o computador de Camila ocupam o centro da sala, o mesmo acontece com o laptop de Paulo na laje de Copacabana. Os protagonistas, por sua vez, evoluem de espectadores a produtores de imagens (blogueiras, jornalistas, publicitários). Mas igualmente, cada um à sua maneira, de observadores a observados, de anônimos a infames. A exposição dos personagens à mídia eletrônica que começa a conta-gotas em Nunca fomos tão felizes assume proporções cavalares em O fim e os meios. Há uma boa razão para isso. No mundo hipermidiatizado em que vivemos, o simples desalojamento dos personagens não é suficiente. A maioria de nós já adquiriu a 54 dupla cidadania que nos confere trânsito livre no país das imagens digitais. Mas ao contrário da cidadania nacional, que nos é dada por inteiro, por meio de um ato natural (o nascimento) ou cívico (a naturalização), a cidadania digital deve ser constantemente alimentada por novas imagens. Ela é o Minotauro iconófago. Quando não lhe fornecemos seu quinhão diário de imagens perecemos no labirinto das redes sociais. Não surpreende, portanto, que Camila seja a única personagem a sobreviver íntegra ao experimento. No último plano do filme a escritora e seu duplo postam-se lado a lado. Ela aprendeu a retroalimentar-se das próprias imagens. Ao conferir estatuto de personagem literário a seu duplo, Camila escapa daquilo que Roland Barthes chamou “metafísica parva” da fotografia, a mera constatação que nos aprisiona na reiteração e na tautologia. PQD, de Seja o que Deus quiser!, não tem a mesma sorte de Camila. Desalojado de seu habitat natural no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, foge para São Paulo onde é assediado por imagens das quais não consegue mais desvencilhar-se, como a de “negão do Comando Vermelho”, por exemplo. Mas em um dos poucos momentos de paz que lhe é concedido, a única conclusão a que logra chegar — mastigando alegremente um sanduíche — é um primor de “metafísica parva”: “São Paulo é São Paulo... e um cheeseburguer é um cheeseburguer”. Será preciso aprisionar-lhe o corpo para que sua imagem agora “livre” transforme-se em sucesso musical na internet. O encarceramento de PQD é, enfim, um destino menos trágico que o de Beto, pai guerrilheiro de Gabriel em Nunca fomos tão felizes, que precisou ser assassinado para que o filho finalmente pudesse possuir seu retrato. O atravessamento do “pátio” por um crescente fluxo de imagens eletrônicas nos permite ver o que estava posto desde o início. O experimento-cinema de Murilo Salles não é apenas o lugar onde a trama dispõe dos personagens, mas o lugar onde o filme os expõe. De nada valeriam os desalojamentos e confinamentos sucessivos se não houvesse ali um dispositivo público de visibilidade. Seu lugar próprio, portanto, não é o pátio interno nem a loggia corredor, mas a verandah. 55 O escritor mexicano Salvador Elizondo dedicou um breve ensaio à palavra inglesa verandah, sem se dar conta de sua origem portuguesa — varanda, que os britânicos devem ter aprendido na Índia. “Situada entre o bangalô burocrático coberto e a selva e a ribeira” — escreve ele —, “a verandah é o ponto fronteiriço entre a civilização e a natureza, entre a ciência e a magia, entre o ‘progresso’ e a ‘barbárie’. É na varanda que se conversa e se narram as histórias do Império. Na verandah sentam-se Kipling e Conrad, fumando seus cachimbos e bebendo whisky ou gin. Se não fosse pelas varandas de Singapura e do Congo, sugere Elizondo, metade da literatura inglesa moderna não existiria. É numa verandah em São Conrado que o “gringo” William, de Como nascem os anjos, senta-se com seu bourbon, servido por D. Conceição, e contempla o “longo crepúsculo dos trópicos” que amplifica os “ruídos da selva às suas costas”, enquanto “nos campongs do outro lado do rio” os nativos acendem as fogueiras em que cozinham “sua precária noção de arroz e batak”. Mas, em virtude de uma reviravolta improvável, a mansão do colonizador é tomada por Japa e Branquinha. Borra-se a linha divisória entre a “selva” e o “bangalô burocrático”, entre o recesso e a paisagem, o bom senso e a loucura. Em uma das cenas antológicas do cinema brasileiro, sob as luzes dos refletores da TV, Japa dança. A varanda agora pertence aos bárbaros, cujos olhos não buscam o horizonte mas o próprio corpo que a cada movimento, com os novos tênis de marca, converte-se alegremente em imagem. O vazio do pátio, o vazio dos ambientes. o vazio do cinema alcança o indizível. William e sua filha não têm nada a relatar. Quedam-se por aí, perplexos, sem ação, como essas malas de dinheiro que transitam pelos filmes do Murilo, sempre prontas para viajar sem jamais chegar a lugar algum. Murilo Salles faz da reiteração de certas situações seu modo de persistir no cinema. A existência confinada de Gabriel, no colégio interno, rebate sobre a de PQD, no presídio. Os extremos das duas trajetórias se encontram no mesmo gesto: a solitária e sem graça chutação de bola contra um muro. Que motivo têm para insistir nesse arremedo de jogo? A banalidade do ato exclui a motivação. A repetição serve antes para 56 nos confrontar com a obstinação do cineasta em realizar, a cada vez, seu novo (mesmo) experimento. Pois nem tudo no cinema evapora, há sempre algo que resta, um precipitado qualquer que nos ajuda a compreender melhor a nós mesmos e ao mundo em que vivemos. Bola mole em pedra dura — será que um filme fura? Mauricio Lissovsky é historiador, roteirista e professor da Escola de Comunicação/UFRJ. 57 Crônica das afetividades eletivas Lírio Ferreira Eram os últimos suspiros da claudicante ditadura militar no Brasil e chegava eu atrasado ao antigo Cinema Veneza encravado no decadente centro da cidade do Recife para assistir a um filme que possuía um título extremamente transcendental. Já fazia tempo, o cinema brasileiro não produzia algum petardo significativo sobre a distopia do regime militar, e a película jogava delicadamente um potente refletor HMI sobre esse período sombrio da nossa história recente, que, tal qual a última noite de nitrato, estávamos vivenciando naquele instante. Ao mesmo tempo em que desnudava a relação de um misterioso pai ausente militante de esquerda com um arrogante filho carente à procura de identidade e de amor, Nunca fomos tão felizes era um thriller psicanalítico, dirigido por um jovem diretor estreante, que mergulhava de escafandro nas masmorras do horror do estado de exceção. Um filme sobre o vazio de quem sente, pulsa, ama, mas não consegue falar. Metáfora maior não havia sobre a ditadura militar. Ainda sob o impacto daquela nublada sessão vespertina de um mês qualquer do ano de 1985, de súbito, decidi: seria também cineasta. Se eu tinha alguma dúvida, naquele instante me veio a certeza. Eu tinha 20 anos de idade, estudava jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco e mal sabia o que o destino estava desenhando para mim dali por diante. Após alguns filmes curtos e outros amores líquidos, eis que me encontro no Festival de Brasília para apresentar Baile perfumado, meu primeiro longa-metragem, que acabara de dirigir junto com meu parceiro de faculdade Paulo Caldas. Na competição oficial havia outro filme dirigido por aquele, já não tão jovem assim, diretor inquieto que alguns 58 anos antes me instigara a cometer o desvario do crime da imagem. Durante o festival, o conheci de maneira informal e, feito uma rajada de vento, dissipada. Pouco tempo depois, numa noite fria de São Paulo, navegando sem mastro pela vistosa Rua Augusta, quase tropeço numa comitiva que acabara de sair da pré-estreia do filme Como nascem os anjos no cinema de Adhemar. Havia visto o filme no referido Festival de Brasília e tinha gostado muito. Uma comédia de poucos erros e de grandes acertos. À frente da turba, o crítico José Geraldo Couto me aponta o diretor do filme que, sorridente, me convida para jantar. De pronto aceito, me junto à trupe e não me arrependo. Pela primeira vez, bebemos e conversamos apaixonadamente sobre aquela luz que ao mesmo tempo nos une politicamente e nos isola poeticamente e nos torna sujeitos vulgares e silvestres. Já morando no balneário do Rio de Janeiro e com um roteiro quase pronto do próximo filme que viria a fazer anos depois, eis que me encontro no Baixo Gávea observando a liturgia da noite, sentado numa mesa tomando chopes, e à procura de um produtor que acreditasse mais na dúvida do que na certeza, mais nas perguntas do que nas respostas, que acreditasse mais no estranho do que no óbvio. Enfim, que tolerasse a liberdade em infinitas doses de loucura. Criatura difícil de encontrar naqueles tempos onde a mediocridade se mostrava assanhada nos estertores da incipiente indústria do audiovisual. Mais difícil ainda encontrar naquele antro paquidérmico, ou não? Juro, eu morava nas redondezas há algum tempo, frequentava aquelas mesas com uma devoção monástica e nunca tinha visto antes daquela fatídica noite, o cineasta Murilo Salles adentrar naquela catedral hedonista. Duas rodadas de chope mais tarde, tinha se esboçado à minha frente um dínamo contemporâneo, a “parêa” dos meus devaneios mais recônditos. O acaso, quando se alvoroça, mostra as suas garras mais afiadas. Num segundo encontro, foi logo se oferecendo também para ser fotógrafo. Seu último trabalho como diretor de fotografia fora em Tabu, de Julio Bressane, e já havia 59 passado duas décadas que não fazia uso do fotômetro. Apesar de já ter cometido uma fotografia das Gerais de Guimarães em Cabaret mineiro, nunca tinha colocado no seu matulão filmográfico uma fotografia eminentemente telúrica do sertão nordestino. Como eu procurava para o filme um retrato perdido nos anos 1970, esmaecido e desbotado pelas memórias afetivas, aquela me parecia uma excelente oportunidade. Antes de pedirmos a saideira, foi logo me dizendo: — Quero fazer em Árido movie a fotografia colorida de Vidas Secas. Se o fazer cinema é uma atividade extremamente pretensiosa, por que não exercê-la na sua plenitude? Murilo optou por uma fotografia contrastada em seus interiores encurralados por pouca luminosidade, que explodia nos exteriores em cores e luzes impressionistas superexpostas pelo sol cabralino de dois canos projetado na complexidade do cinemascope anamórfico. E assim foi a nossa primeira quimera... Murilo Salles é um animal cineasta. Um cineasta da alma. Seus poros exalam nitrato de celulose. Suas retinas fatigadas nos observam sempre na contra luz. Seus instantâneos revelam-se sempre no lusco-fusco. Seus olhares transcendem o cinema e dialogam com novas e imprescindíveis apreensões. Se desde a sua invenção o cinema é uma arte de irmãos, Murilo é meu irmão de nitrato com quem até hoje costumo dividir minhas dúvidas e os meus anseios sobre o olhar que me apraz. Costumo também dividir um cabrito à caçadora no Cesare, mas essa é outra história e o chá já está quase apitando... Recife, junho de 2016 Lírio Ferreira é cineasta 61 Um documentarista contemporâneo Carlos Alberto Mattos Embora seja mais conhecido por seus premiados filmes de ficção, Murilo Salles possui até agora um igual número (seis) de longas-metragens documentais na carreira. Por pouco, essa mostra não incluiria o seu sétimo documentário, um filme ensaístico sobre a Baía de Guanabara. Isto sem contar seus poucos curtas, quase todos conectados diretamente com o real. Vale a pena examinar como essa produção dialoga com sua faceta de ficcionista e como ajuda a forjar sua personalidade autoral. Como muitos cineastas, Murilo gosta de relativizar a distinção entre documentário e ficção, apontando os deslizamentos frequentes entre os dois registros. No entanto, para efeito desta rápida análise, consideraremos a fronteira que leva cada filme a ser classificado como uma coisa ou outra. Diante dos seis longas e seis curtas documentais programados na mostra, sem muito esforço verificamos que eles constituem uma espécie de lastro conceitual de certos temas que Murilo desenvolve no subtexto dos filmes de ficção: a formação da identidade (seja ela pessoal ou nacional), os traços de improvisação e malandrice supostamente inerentes ao caráter brasileiro. Os documentários atuam também como áreas de expansão para a veia plástica do realizador, em cuja formação destacaram-se a fotografia e as artes visuais. Filho de um jornalista estudioso de História, Alínio Tavares Ferreira de Salles, e de uma pintora e professora de História da Arte, Yedda Navarro de Salles, Murilo acredita ter deles herdado o interesse pelos dois campos. O treinamento do seu olhar para a fotografia e as obras de arte pode ter origem no hábito adolescente de fotografar livros 62 de arte para a mãe exibir em aula. Sem querer forçar ilações biográficas, parece natural que o cineasta tenha se tornado um exímio documentarista do fazer artístico. Duas grandes questões me interessam de maneira especial no Murilo Salles documentarista. Uma delas é sua constante indagação/celebração de uma identidade brasileira através das expressões artísticas. A outra é a dialética entre presença e ausência do cineasta na gênese e na filmagem de seus documentários. O Brasil dos artistas Para considerar o primeiro aspecto, tomemos os seus documentários sobre arte. A começar por Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo, trabalho de juventude realizado em parceria com Ronaldo Foster. Nesse curta influenciado pelo experimentalismo godardiano, um ícone da cultura brasileira é enfocado não pela sua face gloriosa nem pelo currículo já então consagrador. Otelo, ou bem dizendo, Sebastião é visto em trajes domésticos, na casa modesta de classe média, falando de aspectos constrangedores ou trágicos de sua vida. Sucesso (mais que conhecido), dissabores e mágoas convivem numa síntese eloquente da condição do artista brasileiro. A linguagem descontínua e “nouvelle-vagueana” do filme ajuda a compor a imagem de um ator que serviu igualmente à chanchada e ao cinema marginal, ao melodrama e ao Cinema Novo. Grande Otelo prenunciava, de certa maneira, os personagens DJ Duda e Cícero Filho dos futuros documentários Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova Iorque, que haveriam de ilustrar a vida difícil do artista periférico. Nesses dois filmes bem mais recentes, Murilo enfoca as estratégias de trabalho e sobrevivência de dois produtores de arte alheios aos grandes centros. Uma vez que a produção dos shows e CDs do DJ e empresário, assim como a dos filmes do cineasta, é sempre em escala doméstica, vale dizer que os documentários captam a um só tempo o trabalho e a vida das duas famílias. Emerge daí o retrato díptico de artistas desglamourizados, envolvidos até o pescoço no processo de “se virar” e “dar o seu jeito”. Processo este 63 que evoca as “cavações” dos cineastas brasileiros do início do século XX e pressupõe toda uma prática composta de pedidos, espera, gambiarras, esperteza, criatividade e miúdas corrupções do dia a dia. Esses dois documentários foram lançados em 2015 simultaneamente com a ficção O fim e os meios, mais um filme sobre um casal tentando ganhar a vida e enfrentando as atribulações de seu ofício. À margem das classificações, portanto, esses três filmes falavam, em níveis diferentes, de uma condição brasileira que atravessa classes sociais e áreas de atividade. Da mesma forma, Aprendi... e Passarinho... dialogam com a comédia social Seja o que Deus quiser!, que coloca um músico negro da periferia carioca na situação de objeto de um sequestro armado por playboys paulistas. A inversão de sinais e o deslocamento de perspectivas são dispositivos dramatúrgicos muito caros a Murilo Salles desde que ele renovou a temática da ditadura no cinema com Nunca fomos tão felizes. Os documentários sobre DJ Duda e Cícero Filho são enfeixados no projeto És tu, Brasil II, que previa filmes sobre quatro artistas de periferia. São também uma inversão de sinais e um deslocamento de perspectiva em relação ao documentário És tu, Brasil, que os antecedeu em aproximadamente dez anos. Aqui, ao contrário, Murilo trata de quatro artistas plenamente bem-sucedidos no mainstream nacional e internacional. Tunga, Deborah Colker, Carlinhos Brown e Alexandre Herchcovitch personificam a criatividade brasileira estabelecida como fator de identidade nacional, elemento que a coreógrafa não deixa de colocar em xeque numa fala do seu episódio. Murilo, entretanto, encampa com seus próprios rosto e fala, na abertura do filme, a ideia de que os quatro criadores representariam uma “imagem pensada” do Brasil – país que, segundo ele, é muito mais “imaginado” do que constituído como realidade palpável. Sendo assim, os processos criativos testemunhados em És tu, Brasil perpassam diversas junções formadoras da nossa nacionalidade e a projeta para cenários estrangeiros. Tunga, em sua primeira performance, leva pessoas nuas à floresta para celebrar a sensualidade das formas naturais e escultóricas; na segunda, forja e estilhaça peças 64 de vidro numa capela francesa para interferir sobre a propagação da luz no lugar. Em sua coreografia, preparada para uma apresentação em Berlim, Deborah vasculha os cantos de uma “Casa” promovendo a conexão entre brincadeira e arte, espaço real e estruturas imaginárias. Por sua vez, Carlinhos Brown, enquanto grava um disco para lançar na Espanha, passeia pelas reflexões autobiográficas e remonta a suas origens africanas. Brown é o artista que opera as pontes entre centro e periferia, entre a informalidade pré-consumo e a cultura de massa, um lado e outro do universo criativo do próprio Murilo Salles. Já o estilista Herchcovitch (o terceiro a trabalhar com corpos no filme) prepara desfiles para São Paulo, onde é celebridade absoluta, e Paris, onde é um David lutando contra Golias. Herchcovitch põe em pauta a potência imaginativa do transformismo e da mistura (de gêneros, materiais e posturas), característicos também de um Brasil urbano, contemporâneo e liberado. O olho que potencializa Isso nos leva aos filmes mais propriamente “de arte” do realizador. Já em 1984, para uma série da Rioarte, ele dirigiu o vídeo Sérgio Camargo — fevereiro 1984, em que explora as esculturas do artista como um olho visitante. A câmera varre lentamente as superfícies, circunda as peças, demora-se sobre detalhes e transfigura volumes através da iluminação. O princípio do olho visitante vai voltar em vários dos 21 ensaios visuais sobre artistas contemporâneos reunidos sob o título O espetáculo e a delicadeza, parte do projeto Arte brasileira contemporânea- um prelúdio. Nesse conjunto de ensaios, Murilo alterna o olho visitante — em galerias e exposições já montadas — com a documentação do preparo de obras e da realização de performances. O olho visitante, diga-se logo, não é uma câmera passiva que observa as obras, mas um olhar inquiridor que decompõe os espaços (como na belíssima instalação de Ernesto Neto no Panthéon de Paris), torna cinéticas as justaposições estáticas de José Resende ou “narra” a partir da descoberta gradual da obra, de suas surpresas 65 e efeitos (caso da galeria de Tunga em Inhotim). O passeio pelo ateliê de Nuno Ramos é um mergulho no caos criativo do artista, assim como as continuidades criadas entre o trabalho de Carlos Vergara no seu ateliê e no descampado das Missões Jesuíticas atestam a coerência do processo do pintor. O registro de performances é um lugar privilegiado para o diálogo entre o cinema e as artes cênico-visuais, e Murilo o tem frequentado com razoável assiduidade. Além dos vários exemplos presentes em O espetáculo e a delicadeza, despontam os quatro vídeos produzidos durante as cinco performances de Tunga na inauguração da Galeria Psicoativa em Inhotim. Embora, modestamente, afirme que nada criou, Murilo certamente potencializou o resultado daqueles atos mediante o desempenho da câmera, os pontos de vista escolhidos e a cadência adotada na edição. Se no vídeo das xifópagas ele privilegia a mobilidade e a ideia de extensão e fluxo, no das mulheres e cerâmicas ele susta o movimento da câmera para melhor capturar o movimento dos corpos, dos gestos e das formas dentro do frame. O que está sempre em evidência é a procura de uma linguagem que não só revele, mas também amplie e até comente a impressão causada pela performance. Esse envolvimento com o espaço da arte ecoa nitidamente nos filmes ficcionais de Murilo através da relação entre personagens e direção de arte. Basta observarmos o tratamento dos interiores em filmes como Nunca fomos tão felizes e Nome próprio, verdadeiras instalações, ou o estilo visual hip hop de Seja o que Deus quiser! Filmar ou não filmar Por fim, quero tratar, ainda que rapidamente, dos diversos níveis de interferência com que Murilo se presentifica nos seus documentários. Por circunstâncias de produção ou por opção metodológica, são poucos os que contaram com sua presença efetiva nos locais de filmagem. Murilo, afinal, vê a direção de documentários como uma questão de projeto inicial e de montagem. A captação seria um trabalho mais ligado à execução que à concepção. 66 Dos seis longas documentais que já assinou, três foram propiciados por convites. Em Moçambique nos anos 1970, o “Camarada Brasileiro” — como era por lá chamado — recebeu a incumbência de montar um filme a partir de materiais de arquivo das lutas de independência. Assim, nada seria filmado especialmente para Estas são as armas. Quando foi chamado para dirigir o filme oficial da Copa do Mundo de 1994, incapaz de estar em todas as cidades, Murilo optou por ficar numa espécie de central de comunicação em Nova York e dali coordenar as diversas equipes espalhadas pelos EUA. Só entrou em campo na fase final do torneio. Foi na montagem que Todos os corações do mundo ganhou sua cara de filme sobre gente — fossem os ídolos Maradona, Hagi, Brolin, Preud’Homme, Baggio, Romário, etc, fossem os torcedores de cada país com suas contribuições criativas. Aqui se faz interessante notar como esse filme planetário estende para diversas nacionalidades o tema da identidade perseguido pelo cineasta em seus filmes brasileiros. Ao destacar e dramatizar a personalidade de algumas seleções, ele procura as almas nacionais empenhadas na mística do futebol-arte. És tu, Brasil e O espetáculo e a delicadeza, ambos dedicados às artes contemporâneas, são aqueles em que a participação de Murilo é mais efetiva em todas as etapas. A intervenção é particularmente decisiva no primeiro, já a partir da aparição do diretor apresentando o projeto no prólogo. Integralmente filmados com a presença de Murilo, sendo em sua quase totalidade fotografados por ele, os quatro episódios de És tu, Brasil operam em linguagens bastante distintas. Enquanto as performances de Tunga sugerem uma abordagem cúmplice, com montagem dispersiva e nenhuma intenção de “explicar a obra”, nem mesmo “mostrar o processo criativo”, o trabalho de Deborah Colker dá margem a uma edição ágil e construtivista (a “Casa”), marcada por telas repartidas e ritmada pela verbalização energética da coreógrafa nos ensaios. Bem ao contrário, Carlinhos Brown desdobra-se em reflexões sobre suas origens e sua biografia, fala de seu método e inspirações, “tentando explicar como a música surge”. Afro- 67 brasileiríssimo, Brown quebra o projeto observacional de Murilo e se espalha por onde e como quer. Já Alexandre Herchcovitch atua em perfeita consonância, sem jamais sair de seu casulo cool. Murilo, porém, dialoga com a androginia do personagem através do falso documentário, ao colocar atores para comentarem teoricamente o trabalho do estilista como se fossem membros do seu staff. No caso dos filmes de observação Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova Iorque, Murilo comandou a busca de personagens, mas simplesmente não apareceu durante as filmagens. Não queria criar nenhum apego, mas apenas cumprir, posteriormente, o que chama de “exercício de olhar para o material”. Assim, seu trabalho final estava desde o princípio condicionado ao que seus jovens colaboradores captassem espontaneamente em Brasília ou no Nordeste. Nesse tipo de terceirização parcial, o realizador abre mão de tudo o que diz respeito ao improviso e à recriação in loco, dissolvendo um tanto da autoria em troca de uma ação colaborativa dividida em fases estanques. O método se aproxima mais do praticado em cinejornais, com suas unidades de documentação relativamente autônomas, que do vigente no cinema direto, cujo funcionamento depende de uma observação “direta” do cineasta-jornalista em ação. Seja pelo interesse em sondar a nacionalidade através das artes, seja pela postura incomum perante o fazer documental, a não ficção de Murilo Salles está a merecer uma atenção que ainda não recebeu. Oxalá esta mostra sirva um pouco para isso. Carlos Alberto Mattos é crítico e pesquisador de cinema. 69 Cinema para adultos José Geraldo Couto Na filmografia de Murilo Salles há um elemento que me parece central, embora nem sempre apareça em primeiro plano nas leituras de sua obra: o sexo. Com a possível exceção de Nunca fomos tão felizes e Como nascem os anjos, Eros permeia as relações de afeto e de poder em todos os filmes de ficção do cineasta. Mais de poder do que de afeto, a bem da verdade. Vejamos alguns exemplos, tentando evitar ao máximo os possíveis spoilers. Alguns talvez sejam inevitáveis. Em Faca de dois gumes (1989), drama policial baseado em livro de Fernando Sabino, toda a ação se desencadeia a partir da relação extraconjugal da mulher do protagonista com o sócio e melhor amigo deste. Os sócios são advogados e o ambiente em que tudo começa é o de uma civilizada e elegante classe média alta. Rapidamente, no entanto, as forças do ciúme e da vingança precipitarão uma queda no abismo da brutalidade. O Brasil, com suas fraturas sociais profundas, arrebenta a redoma inicial e entra por todos os lados. Nessa primeira abordagem frontal do erotismo, o olhar de Salles ainda é relativamente simples: há os traidores, movidos pelo desejo, e há o traído, que converterá sua própria energia libidinosa em impulso de vingança. Aos poucos esse olhar se tornará mais complexo, matizado, aberto às ambiguidades e contradições. Em Seja o que Deus quiser! (2002), as coisas começam a se embaralhar. Uma VJ paulista moderninha e descolada vai a uma favela carioca para fazer uma matéria sobre a música local para a MTV. Ela seduz um jovem músico negro e passa a noite em seu 70 barraco. Atacada por bandidos vizinhos na ausência do rapaz, acaba acusando-o de estupro e assalto, e volta para casa para retomar sua rotina de garota liberada. Procurado pela polícia, o músico também vai a São Paulo, num movimento ao mesmo tempo de fuga e de ajuste de contas. Claro que no primeiro plano dessa tragicomédia de erros está o questionamento dos estereótipos sociais e de conceitos como a “democracia racial”, mas o sexo e seu uso como instrumento de afirmação e dominação não são de modo algum secundários. Em Nome próprio (2007), baseado em livros semiautobiográficos da escritora e blogueira Clarah Averbuck, o sexo ganha finalmente o papel central, irradiador de toda a ação e de toda a tensão. Aqui, a protagonista Camila (numa atuação extraordinária de Leandra Leal) é ao mesmo tempo vítima e algoz de suas destrambelhadas pulsões eróticas. Nesse ensaio sobre a intimidade em tempos de exposição pública, há um movimento perverso e autodestrutivo em curso: ao mesmo tempo em que sofre com a solidão e falta de afeto, Camila parece destruir voluntariamente todas as pontes que a ligam ao outro, aos outros. É, em seu corpo e em sua mente, um inventário de desacertos, contradição viva, paradoxal prisioneira da liberdade. Em O fim e os meios (2014), seu mais recente filme de ficção, obra de plena maturidade ética e estética, Murilo Salles funde indissociavelmente o erótico e o político, duas linhas de força fundamentais de seu cinema. A promiscuidade da vida política brasileira, em que relações dúbias e não raro escusas se estabelecem entre empresários, políticos, jornalistas, magistrados e publicitários, atravessa o corpo e a alma de uma mulher, a jornalista Cris (Cintia Rosa). Aqui, o respeito à complexidade e ao caráter contraditório dos comportamentos individuais rendeu ao cineasta a incompreensão de muitos. Cris é uma profissional independente e bem intencionada, que busca manter um certo distanciamento crítico diante do lamaçal político-moral de Brasília, mas é também uma mulher às voltas com seu próprio desejo. Há, em sua relação com o assessor de senador para quem seu marido 71 trabalha, um evidente jogo de dominação em que entram um tanto de consentimento, um tanto de carência, um tanto de brutalidade – tudo ao mesmo tempo, numa confusão análoga à da “vida real”. É essa visão adulta e nuançada do comportamento humano, avessa ao maniqueísmo e às simplificações programáticas, em especial no tratamento das interações erótico-afetivas, que distingue, a meu ver, o cinema de Murilo Salles. Existem, por certo, outros cineastas que abordam o sexo de modo mais explícito e, supostamente, mais “ousado”. Mas é difícil imaginar uma apreensão mais aguda dos descaminhos e contradições internas do comportamento erótico. Como estamos falando de cinema, e não de ensaios teóricos, cito três cenas em que essa abordagem adulta, múltipla e generosa se concretiza. Em Seja o que Deus quiser!, há um momento em que, depois de voltar a São Paulo, a VJ Cacá (Ludmila Rosa) está fazendo sexo com seu namorado (Marcelo Serrado), playboy paulistano lutador de jiu-jitsu. Ele está deitado de costas e ela sentada sobre seu rosto, dominando a sessão de cunilíngua. No auge do ato, quando ela está “perto de um final feliz”, ele a repele com um gesto bruto: “Desloquei o maxilar”. É um anticlímax cômico e desconcertante. Num filme erótico, seria considerado um ruído “broxante”, mas por isso mesmo acaba iluminando a mecânica crua de um ato sexual aparentemente rotineiro entre o casal. Em Nome próprio, quando está no fundo do poço, a protagonista emite um S.O.S. pela internet e é acolhida por um jovem fã. No apartamento deste, embriagada ao extremo, ela adormece profundamente. O rapaz a desnuda, fotografa sua vagina e se masturba, vendo a imagem resultante na tela do computador, de costas para a garota de carne e osso estendida a menos de dois metros de distância. Não conheço uma cena tão rica (e verdadeira) sobre as refrações do erótico em nosso tempo em que tudo é mediado pelas imagens, pela construção da identidade pública, pela ruptura das fronteiras entre intimidade e exposição. Por fim, em O fim e os meios, algum tempo depois de ter sofrido um ataque sexual 72 do assessor vivido por Marco Ricca, Cris, solitária em frente ao computador durante uma das longas ausências do marido, faz nudes para enviar a este. Depois de hesitar um pouco, acaba mandando suas fotos eróticas também para o assessor/agressor. Os instantes em que ela vacila, escrevendo e apagando endereços de e-mail na tela do computador, são de uma tensão erótica tremenda. E a própria cena prévia, do ataque sexual propriamente dito, é filmada de modo perspicaz e revelador. O homem se impõe não apenas com a força física, mas também com um discurso em que comparecem a arrogância do poder, o machismo e o “racismo cordial”. Ela acaba cedendo, mas só vemos o início do assédio. Depois a câmera se afasta progressivamente do local do ato, percorrendo os andares e ambientes amplos da casa, com os sons cada vez mais amortecidos e a reação silenciosa dos empregados. É como se, nesse momento, Murilo Salles nos dissesse que as relações mais íntimas são incomunicáveis, se não incompreensíveis. É só o reflexo exterior delas que nos chega, refratado e distorcido. Como podemos ter a pretensão de julgá-las? José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor Filho e pai Pai e filho 75 A violência endêmica como gesto criador Marcelo Miranda No cinema de Murilo Salles, a violência é endêmica. Ela não aparece somente nos temas ou pontos de partida à narração, e sim na estrutura da dramaturgia, a desvelar caminhos por onde a estética é atravessada e a definir escolhas que fazem dos filmes objetos artísticos orgânicos e em constante movimento. A violência na ficção de Salles impregna os planos e a fotografia, as falas e os movimentos, os olhares, as distâncias e as aproximações entre os corpos; ela é dolorida, pulsante, trágica e castradora dos afetos, que se impossibilitam enquanto base de encenação. As relações ora se interrompem, ora nem acontecem, por conta das explosões de sangue e brutalidade a dominar todos os estratos sociais por onde os indivíduos circulam. Nem sempre explícita, às vezes totalmente oculta da nossa visão direta, essa violência vai das classes altas às classes desfavorecidas, sempre perversamente democrática, talvez a única (e mais desgostosa) verdadeira democracia a prosperar no Brasil em mais de 515 anos de história. Os três primeiros longas-metragens de ficção de Murilo Salles - Nunca fomos tão felizes (1984), Faca de dois gumes (1989) e Como nascem os anjos (1996) - são os mais violentos de sua carreira. Neles, a contaminação, venha de onde vier, infecta e agride, “fere, mata e come”, como entoava Maria Bethânia. A trinca inicial de Salles resume parte de certa historiografia recente do Brasil, tendo por marco os efeitos do golpe civil-militar de 1964 nas relações afetivas nem sempre diretamente relacionadas ao contexto político. Nunca fomos tão felizes fala sobre um pai e um filho cuja proximidade é, como a democracia no período retratado, também interditada. Gabriel (Roberto Bataglin), estudante de colégio interno, acredita ter sido redescoberto pelo pai como efeito de al- 76 guma ação carinhosa e apaixonada, mas se decepciona ao perceber que Beto (Cláudio Marzo) continua a se esquivar mesmo depois de instalar o jovem num apartamento em Copacabana. Os motivos da ausência continuada de Beto são ocultos, mas o espectador sente pela atmosfera que se trata de clandestinidade contra a ditadura. A ação se ambienta em meados dos anos 1970. A violência do Estado, no auge, reverbera na incapacidade do pai em ser, de fato, o pai que o filho anseia. O sangue como elemento líquido e vermelho escorre pouco em Nunca fomos tão felizes, mas, como símbolo da derrocada familiar, ele é expelido aos litros. O ferimento derradeiro em Beto não é o que de fato o elimina. Para Gabriel, o pai já era um corpo morto, o qual era preciso carregar e suportar durante a própria ausência e que se recusava a se fazer presente quando diante do olhar do filho. O instantâneo fotográfico do defunto - num dos instantes mais devastadores do cinema brasileiro nos últimos 30 anos - carrega mais vida do que o corpo físico de Beto, porque agora haverá a fisicalidade de uma memória. A lembrança, materializada em fotografia e inserida a fórceps nas fantasmagorias do filho, vai sempre insistir em existir por ser, como escreveu Beatriz Sarlo, “soberana e incontrolável”. Gabriel está condenado a esta presença alternativa do pai, queira ele ou não. Talvez seja a que lhe baste. Da violência do Estado a invadir os afetos, Salles aponta as lentes para a violência íntima e pessoal em Faca de dois gumes. Exercício de cinema policial à brasileira, o filme é antes de tudo um amontoado de situações-limite pelas quais a contaminação do tecido social está completa e incurável. A ditadura, aqui, nem precisa mais existir, pois os atos totalitários, excessivos e truculentos vêm das pessoas de cotidiano comezinho, incapazes de agir para além do individualismo e dos interesses escusos, sejam eles passionais ou financeiros. A endemia se espalhou por igual, o sangue agora escorre e explode simbólica e literalmente, o esfacelamento desestrutura as poses das classes abastadas que prescindem do “outro de classe” (expressão de Jean-Claude Bernardet) para a existência de tensões e conflitos. Eles destroem-se entre si mesmos. 77 O advogado Jorge (Paulo José) é o homem perdido entre o terror do regime militar recém-terminado (e nunca mencionado pelo filme) e o ímpeto da violência dentro de casa. Numa linha sucessiva de atos extremos, não há diferenças entre um ponto e outro: todos terminam em tragédia e destruição. Como em Nunca fomos tão felizes, Murilo Salles faz um filme de limitações físicas e afetivas: se Gabriel precisava se isolar num apartamento e numa Copacabana cuja amplitude de espaço soava apenas ilusória ao rapaz, Jorge também padece de um confinamento, caracterizado pelas ações e reações que o mantêm constantemente sem saída, girando num ciclo infinito de sofrimentos infligidos por ele aos outros ou a ele pelos outros. Das mansões de Faca de dois gumes à favela de Como nascem os anjos, o trajeto parece se alterar, mas essa impressão é superficial. Logo se retorna ao universo das classes altas, quando o trio protagonista Maguila (André Mattos), Branquinha (Priscilla Assum) e Japa (Silvio Guindane) toma como refém uma família norte-americana residente em São Conrado, na zona sul do Rio de Janeiro. A contaminação pela violência pode dar a impressão de vir de fora para dentro, porém não se pode deixar enganar-se por ataques sociologizantes: não é que os pobres infernizam a vida dos ricos em Como nascem os anjos, e sim que a infecção é irrestrita, como deixam evidentes os filmes anteriores de Salles. A serenidade do advogado William (Larry Pine) durante toda a ação de Como nascem os anjos, vista num retorno ao filme duas décadas após seu lançamento, se revela num sentido de caricatura e da idealização algo debochada da figura do estrangeiro. Os modos educados e austeros do “gringo”, mesmo diante da tensão máxima de armas apontadas a ele e à filha por dois pré-adolescentes do morro, são um fracasso absoluto, incapazes de conter os ímpetos da pequena dupla. Branquinha e Japa, como escreveu Andrea Ormond, “barbarizam, mas preservam a ternura, pela total falta de consciência. Estão dentro e fora dos eventos, pois do nada se dissociam deles e vão morar nas nuvens da alienação infantojuvenil”. 78 Murilo Salles problematiza, entre a crítica e a ironia, o papel da mídia na construção de mentes e atitudes de parte da juventude brasileira. Há um instante singular em Como nascem os anjos que, em sua crueldade, resume o sentido do olhar desiludido de Salles. Encantada pela beleza da “gringa” Julie (Ryan Massey), Branquinha pede que a moça tire a camisa e mostre os seios. A menina chama Japa para também ver. Ambos se sentam ao chão, diante de Julie desnudada, e pedem que ela se imagine como se fosse a tela de uma TV, e eles dois os telespectadores. Diante da imobilidade em choque da estrangeira, Branquinha reclama de que “nada acontece” e finge “desligar” a TV com um movimento de controle remoto, ordenando que a garota volte a se vestir. Construída como a possível perversão precoce de Branquinha, a cena é, na prática, a materialização de um imaginário puramente lúdico, pelo qual atravessam os anseios de uma menina com o corpo em formação e que vê no outro (estrangeiro ou não) algo que não lhe parece real, restando então enquadrar, pela mediação da mídia, aquilo que lhe surge como beleza. O meio é a mensagem. Ao fim, Japa e Branquinha vão se tornar eles mesmos parte do imaginário midiático de viés sensacionalista, já adiantado num diálogo na primeira metade do filme, quando o menino debocha de não querer virar manchete de jornal popular. Ironicamente, com o sequestro em andamento, a repórter não convence a emissora de TV a noticiar a ação “durante a novela das sete”, restando apenas “o noticiário da noite”, relegando as crianças a um tipo entortado de marginalização e invisibilidade eletrônicas. Após o desenlace abrupto que sela o destino de Branquinha e Japa - numa cena filmada por Salles com secura nunca antes vista em seus filmes (e talvez nem depois) -, todas as emissoras se interessam imediatamente pela história. A repórter tenta saber de William o motivo de tudo aquilo ter acontecido e recebe apenas silêncio como resposta. Pois o resto é mesmo silêncio. A violência endêmica desses filmes não encontra razões concretas para existir, exceto na disposição de Murilo Salles em transformá-la em cinema de choque e em fazer com que ela extravase os sentidos dos enredos para 79 se fixar como imagem construída com exuberância formal. Da amplitude da ditadura, ficam os olhares vagos de Gabriel em Nunca fomos tão felizes; da crueldade criminosa de assassinos enciumados e gângsteres de classe alta, resta a frieza do olhar de Jorge em Faca de dois gumes; do abismo social brasileiro representado pelos limites entre a favela e o asfalto, sobra o abraço entre uma menina e um menino que, antes de se matarem, declaram amar-se como irmãos em Como nascem os anjos. Em todos esses filmes, o gesto de Salles é o de fazer da ação narrativa (daquilo que compreendemos a partir do que acontece) o enquadre desses pequenos instantes únicos e simultâneos espalhados pelos filmes. O diretor não ambiciona algum hiperrealismo ou naturalismo, muito pelo contrário: o artifício é o elemento a dar a liga. José Carlos Avellar explicitou lindamente esse mecanismo em relação a Nunca fomos tão felizes, num pensamento que aqui ousamos estender aos outros filmes comentados: “A narração segue contínua porque ao ver os fragmentos o espectador vê também o princípio usado para fragmentar a ação. Vê a ação fotografada e vê também a fotografia. Ou mais exatamente, vê a fotografia (...) e vê também a ação fotografada”. Marcelo Miranda é crítico de cinema, pesquisador e jornalista 81 Entre deslocamentos e deslocados Cleber Eduardo Há uma premissa recorrente nos quatro filmes de Murilo Salles protagonizados por jovens e adolescentes. Há também pequenas variações na extensão do tempo dramático e dos espaços nas quatro narrativas. E há ainda uma grande diferença de tom, intensidade e estilo visual entre sua estreia na direção, em 1984 (Nunca fomos tão felizes), e os outros três filmes, lançados entre 1996 e 2007 (Como nascem os anjos, Seja o que Deus quiser! e Nome próprio). São pontos de contato e de diferenciações apresentados em variadas contingências da recente cinematografia brasileira durante 23 anos. Da Embrafilme à Retomada, da película ao digital, os contextos são distintos Comecemos pelas premissas e pelas recorrências. Em todos os quatro filmes, logo de cara, protagonistas sofrem um deslocamento. Sofrem porque saem de onde moram no início e passam as próximas horas, dias ou semanas em lugares onde vivenciam os efeitos desse deslocamento físico/geográfico e o descontrole de novas contingências negativas. Os jovens e adolescentes lidam com novos ambientes, situações e pessoas diante dos quais não têm entendimento preciso sobre as circunstâncias ou sobre si mesmos. No encaminhamento para os desfechos dos percursos, há adensamento das tensões, encolhimento das opções e mortes violentas no horizonte (ao menos em parte deles). O adolescente Gabriel é retirado pelo pai misterioso, em Nunca fomos tão felizes, de um colégio de padres no interior e, sem saber os motivos, passa a morar em um apartamento vazio no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1970, onde fica por poucos dias na companhia de guitarra e televisão, com a presença esporádica do pai envolvido com a luta armada (algo que Gabriel ignora). As crianças Branquinha e Japa saem a 82 contragosto da favela do morro onde moram no Rio de Janeiro em Como nascem os anjos, por conta de uma confusão com o tráfico, e acabam invadindo após um mal entendido a mansão de um americano. O descontrole da situação, quase sempre por acidente, é maior e mais violento. O jovem pagodeiro PQD também tem de sair de seu morro em favela carioca em Seja o que Deus quiser!, por conta de uma equivocada acusação de sequestro, e vai a São Paulo pedir a sua acusadora para retirar a queixa, mas passa a ser usado, após outro mal entendido, pelo irmão dela em golpes condenados ao fracasso. Já a jovem blogueira Camila é expulsa do apartamento de seu namorado na primeira cena de Nome próprio e, no decorrer do filme, mora em diferentes lugares sozinha ou em companhias efêmeras. Em relação aos demais protagonistas, sua questão é mais interior, mas exposta em seu corpo pelo sexo, pela bebida e por comprimidos. Há outras opções do diretor que variam minimamente de acordo com o filme. Nunca fomos tão felizes e Seja o que Deus quiser! passam-se em alguns dias. Como nascem os anjos, em algumas horas. Nome próprio, em algumas semanas. São filmes condensados no tempo dramático, atentos a um momento específico de seus personagens, justamente aqueles em que estão fora de controle, sem saberem quais seus próximos passos. Em relação aos espaços, há também variações. Nunca fomos tão felizes e Como nascem os anjos têm uma locação principal onde os personagens ficam confinados. Há o fora e o dentro. Os outros dois filmes transitam pela geografia e por diferentes ambientes. Essas recorrências e variações evidenciam padrões e mecanismos de criação nos quais o diretor parece se sentir à vontade para explorar o teor mais dramático de seus personagens. Os deslocamentos físico e existencial de jovens postos em novas contingências e lugares emergem nos quatro filmes como matriz dramática para expor a vulnerabilidade em relação à novidade não desejada. No entanto, em relação ao tom e ao estilo de cada filme, é necessário destacar diferenças. Com experiência como diretor 83 de fotografia antes e depois de Nunca fomos tão felizes, Murilo Salles segue dois caminhos opostos entre a estreia em 1984 e os filmes dos anos 90/00. Nunca fomos tão felizes é um filme de tom baixo, com poucos diálogos, muitas dúvidas, poucas certezas e um fora de quadro informativo, ao menos para o protagonista. Como elogiaram em seu lançamento diferentes críticos, entre os quais José Carlos Avellar no Jornal do Brasil (23/04/1984) e Bernardo Carvalho na Folha de São Paulo (17/05/1984), a imagem se impõe à palavra para criar um pacto de atmosferas silenciosas. O filme perde esse poder formal, justamente, quando há necessidade da palavra. Trata-se de uma narrativa sobre uma busca de narrativa (do jovem sobre seu pai). Avellar chega a afirmar sobre o filme que “são pedaços que se quebram de um conjunto e não se encaixam mais em conjunto algum”. Não é uma reprovação. “Vemos o pé e a cabeça, imaginamos o corpo”, conclui o crítico. O próprio Murilo Salles, em entrevista à revista Filme Cultura na época do lançamento, afirmou que, quando escolheu um conto para adaptar de João Gilberto Noll, não estava interessado no contexto histórico (ditadura, luta armada), mas na possibilidade de um cinema lacunar. Há vazios dramáticos e, visualmente, além de economia, há rigor de enquadramento. A câmera está no tripé, calma, mas atenta à tensão. Parece ser quase o exato contrário de seus filmes seguintes, com câmeras mais soltas, com a decupagem mais frouxa, com uma sensação de improviso, em busca de um naturalismo histriônico, como se atores e câmera solassem. O tom é mais intenso, o diálogo é mais gritado em alguns momentos, o descontrole das coisas é mais enfatizado. O fato de Como nascem os anjos, Seja o que Deus quiser! e Nome próprio terem personagens contemporâneos ao momento de existência do filme, ao contrário de Nunca fomos tão felizes (realizado uma década depois do tempo histórico de seus personagens), talvez explique essa adrenalina visual em sintonia com a pulsação das situações às quais os jovens estão submetidos. Pode-se contatar por dentro dos filmes, sem levar em consideração a intenção 84 autoral, que a contemporaneidade retirou o distanciamento e a visão da câmera em perspectiva de Nunca fomos tão felizes, apesar de seu cultivo do fora de quadro (em relação ao pai e ao país). A distância histórica, apesar de pequena, gera uma calma. A proximidade com o presente dos personagens gera uma proximidade de câmera com seus corpos e com seus sentimentos sem muitas possibilidades de economia e de fora de quadro, como se fosse necessário colar-se a esses jovens para entender, com o que há à mão, um pouco mais da complexidade do presente, como se essa proximidade fosse a estratégia para se ver mais — e não necessariamente melhor. Cleber Eduardo é crítico de cinema, pesquisador e professor no curso de Bacharelado em cinema do Centro Universitário Senac SP 85 A arte de filmar a arte Paulo Sergio Duarte Murilo Salles é um dos mais versáteis e bem sucedidos cineastas de minha geração. Muito jovem, ainda no final da década de 1960 e início dos anos 70, realiza curtas-metragens, para logo se afirmar como excelente diretor de fotografia. Com Ruy Guerra, na segunda metade dos anos 1970, segue para Moçambique, e ali acompanha o então presidente do recém independente país, Samora Machel, o líder da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em inúmeras viagens pelo país e ao exterior, como seu cinegrafista oficial. Depois, numa temporada em Paris, assiste em média a três longas por dia — façanha realizada para aproveitar a cidade que apresentava cerca de 200 diferentes filmes por semana, sem falar no cardápio histórico e diversificado da Cinemateca Francesa. Ao retornar ao Brasil, retoma seu ofício de construtor de imagens como diretor de fotografia, mas já começa a preparar-se para os longas de ficção. Começa logo com dois filmes muito bem sucedidos pela narrativa clara, as imagens bem cuidadas e as questões política e existencial no centro de gravidade: Nunca fomos tão felizes (1984), baseado num conto de João Gilberto Noll (Alguma coisa urgentemente), e Faca de dois gumes (1986), cujo argumento tem origem no romance homônimo de Fernando Sabino. Faca de dois gumes antecipa a tese do historiador Daniel Aarão Reis, que demonstra o estreito vínculo entre poderosos civis e as Forças Armadas, durante a ditadura, agora compreendida como civil-militar, sem falar na dimensão da corrupção já entranhada no sistema político brasileiro, hoje tão em evidência. Continua seu trabalho, tanto na ficção como nos documentários. Tendo um documentário que merece ser visto com muita atenção — Aprendi a jogar com você (2014) —, 86 sobre uma família de classe média que vive numa cidade-satélite de Brasília, uma espécie de continuação da série exemplar És tu, Brasil (2003), agora voltando-se para figuras anônimas do cotidiano brasileiro. Mas tudo isso que falei até agora é do conhecimento dos cinéfilos brasileiros. O que eu vou narrar talvez não seja. Os pais de Murilo – Yedda e Alínio Salles, tinham um gosto refinado. Yedda Navarro Salles tinha a formação em Belas Artes, foi uma excelente aquarelista e possuía um extenso conhecimento de História da Arte. Mantinha em sua casa grupos de estudo de aquarela e de História da Arte que orientava. Foi minha primeira professora de História da Arte, tendo me iniciado, ainda na infância, nos códigos de representação da hierarquia angélica, a partir de reproduções de ícones bizantinos e russos. Com ela, aprendi como se representavam anjos, arcanjos, serafins, querubins e tronos, e porque não podia haver perspectiva na representação da igreja ortodoxa: representar a profundidade era uma mentira, a antecipada planaridade dos ícones russos tinha razões teológicas. Depois, verifiquei, graças às precoces lições de Yedda, e pude entender melhor o salto de Malevich para o quadrado preto sobre preto e o branco sobre branco. Aquele elogio da verdade do plano estava instalado numa longa tradição popular religiosa. Alínio foi, durante muitos anos, o gestor do Correio da Manhã, o cotidiano por excelência do Rio de Janeiro na época de Paulo Bittencourt, junto com O Jornal, do grupo Diários Associados de Assis Chateaubriand, o Diário de Notícias, de Orlando Dantas, e os então vespertinos O Globo, dirigido por Roberto Marinho, e Última Hora, de Samuel Wainer (para os jovens: vespertino era um jornal que só saía à tarde, com notícias mais recentes, para as famílias lerem à noite). Vejam como se lia jornais naquela época, isto sem falar nos populares O Dia, de Chagas Freitas, e a Luta Democrática, de Tenório Cavalcanti. O Correio da Manhã se afirmou como um símbolo da resistência da imprensa à ditadura, já sob a direção de Niomar Moniz Bittencourt, viúva de Paulo, e uma das fundadoras e presidente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Alínio, pai de 87 Murilo, cultivava a música clássica, mas, graças a Yedda, mantinha sua atenção para as artes visuais e fazia pesquisas de opinião, em família, sobre as histórias em quadrinhos publicadas no caderno dominical infantil do Correio da Manhã. Isto bem antes das histórias em quadrinhos se tornarem uma moda pop. Foi nesse meio que Murilo foi educado, a formação de seu olhar não caiu do céu. Nada estranho que toda uma parte da obra de Murilo esteja voltada para a arte de filmar a própria arte. Uma das mais importantes obras da arte contemporânea sobre suporte fílmico, Ão (1981) de Tunga, exibido pela primeira vez no Centro Cultural Candido Mendes, em Ipanema, Rio de Janeiro, posteriormente apresentada na Bienal de São Paulo (hoje em exibição permanente no Instituto Cultural Inhotim, Brumadinho, Minas Gerais), teve como artífice da realização da ideia de Tunga o nosso Murilo Salles. Não era tarefa fácil. A obra de Tunga estava explorando, nesse momento, a figura topológica do toro. Em topologia o toro é uma figura homeomorfa. Não vamos entrar aqui em detalhes matemáticos topológicos. Vamos apenas lembrar que qualquer câmara de ar de um pneu, seja de uma bicicleta, seja de um caminhão, cheia de ar, se assemelha a um toro (retirando o bico para enchê-la, é claro). Tunga havia materializado o toro em diversas esculturas em aço. Até segmentando-o. Mas a ideia de Tunga era filmar o interior de um toro. Para isso, Tunga e Murilo escolheram o segmento em curva de um túnel do Rio de Janeiro. Murilo se pôs numa câmera subjetiva, na qual vemos a vida interminável no interior de um túnel que não tem entrada nem saída. Para completar a obra, não basta a projeção, ela se realiza no espaço, com o imenso loop materializado no filme que materialmente atravessa a sala, reproduzindo o loop do filme na sua materialidade concreta. Só vendo para se ter ideia de como a inteligência pode conciliar conceito e materialidade física com realização visual. Mas isso foi só o início de uma longa parceria entre Tunga e Murilo. Murilo realizou mais do que documentários de performances de Tunga, produziu uma documentação plástica de uma sensibilidade ímpar sobre performances em riachos das montanhas da 88 Barra da Tijuca até salas de exposição de Marseille. Uma dessas realizações encontra-se no DVD de Arte brasileira contemporânea – um prelúdio, parte do livro de minha autoria, sob o mesmo título, no momento da reinstalação da obra True Rouge, em Inhotim. As performances das atrizes dirigidas por Lia Rodrigues são captadas de forma impecável no limite da beleza plástica do corpo feminino com a erótica interação com os materiais da obra que está sendo construída diante de nossos olhos. A delicadeza da filmagem faz, efetivamente, o espectador participar, no melhor sentido, da construção da obra. Se nós formos relembrar És tu, Brasil, vemos a amplitude de interesses de Murilo em relação à arte. Além de Tunga, temos Deborah Colker e sua invenção de um balé físico que literalmente escala paredes, Carlinhos Brown e a timbalada, até Alexandre Herchcovitch e a invenção na moda. Essa preocupação com diversas vertentes exemplares da criação artística no Brasil cedeu lugar a uma investigação sobre as personalidades anônimas. O mesmo foco, a mesma atenção, a mesma sensibilidade estão mantidas por toda parte de sua obra, desde a ficção, os documentários, até as filmagens de obras de arte que são outras obras de arte. Este é o Murilo Salles. Rio de Janeiro, 6 de junho de 2016. Paulo Sergio Duarte é crítico de arte, professor-pesquisador da Universidade Candido Mendes. 89 90 91 Filmes e vídeos dirigidos por Murilo 93 Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo Filmado na intimidade de sua casa e junto à família, Grande Otelo fala do homem Sebastião Prata. Cenas de filmes e curtos depoimentos complementam esse sintético perfil em linguagem de documentário experimental. Brasil ∙ 1971 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 11 min Fotografia Murilo Salles e Ronaldo Foster Direção Murilo Salles, Ronaldo Foster Montagem Murilo Salles e Ronaldo Foster Produção Murilo Salles e L B Barreto Som direto Juarez Dagoberto “Ainda muito jovem, era metido a godardiano. Junto com o Foster, nos lançamos na aventura de fazer um filme experimento, não narrativo, com uma montagem desconstrutiva, tomadas longas, mas sobre o Grande Otelo! Acho que fomos de uma enorme e descabida pretensão diante do grande ator que estava à nossa frente, um ícone brasileiro. Vendo de hoje, ainda bem que restam momentos incríveis: principalmente um precioso e emocionado depoimento de Otelo sobre seus fantasmas. Um ator e um ser humano maior, aberto, ao lado de sua família, disponível para aqueles dois garotos que, pretensiosos, estavam mais preocupados com afirmações canônicas europeias. Os Tristes Trópicos nos levam a essas imaturidades.” Murilo Salles 94 Grande Otelo doc Maria do Rosário Caetano Em 1971, os jovens Murilo Salles e Ronaldo Foster realizaram ótimo curta-metragem sobre Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo. O artista, então com 55 anos, é visto em sua modesta casa, ao lado da volumosa esposa e dos três filhos pequenos (Mário Luiz, Carlos Sebastião e José Antônio). Fala de seu trabalho, mostrando sempre invejável domínio da língua portuguesa. E apresentando raro jogo de cintura ao fugir de dois assuntos complicadíssimos: o suicídio de sua primeira mulher (que antes do trágico gesto matara o filho) e a má fama, naquele começo dos anos 1970, de estar faltando a compromissos de trabalho por razões etílicas. (Publicado originalmente na Revista de Cinema, 02.12.2015) 95 Estas são as armas Documentário que conta 30 anos de história de Moçambique, do colonialismo português à independência e ao conflito com a Rodésia, atual Zimbábue. Moçambique ∙ 1979 ∙ 35mm ∙ Preto e branco ∙ 60 min Montagem Murilo Salles, com a assistência de Direção Murilo Salles. Ophera Hallis Assistente de Direção Luís Simão Som Direto Luís Simão Texto Luís Bernardo Honwana Técnico de som e mixagem Ron Hallis Produção Instituto National do Cinema Locução Américo Soares e Maria Cremilda Imagens Fernando Silva, Murilo Salles e Luiz Simão « Festival de Leipzig, Alemanha – Pomba de Prata 96 “Estas são as armas é o meu primeiro longa-metragem como diretor. Tive que sair do Brasil para realizar o rito de passagem da fotografia para a direção. Isso se deu com um filme militante. O Presidente Samora Machel insistia ser necessário que se fizesse um filme para explicar aos moçambicanos o que era imperialismo. Assumi a tarefa. Tinha à minha disposição um precioso material de registro da luta armada da Frelimo, além dos arquivos de centenas de cinejornais portugueses da época colonialista. O filme foi montado para emocionar um povo que se esforçava para entender o que era uma revolução marxista-leninista, mas estava muito orgulhoso de poder construir sua própria nação.” Murilo Salles 97 98 99 Nunca fomos tão felizes Após oito anos de isolamento num colégio interno religioso, um adolescente, órfão de mãe, recebe a notícia de que seu pai, desaparecido há oito anos, veio buscá-lo para viverem juntos no Rio. Na viagem entre o colégio e a nova residência, as atitudes do pai dão a entender o quanto será difícil o reencontro afetivo com o filho, perplexo diante daquela pessoa distante e misteriosa em sua memória. Na ânsia pela busca da figura paterna, Gabriel acaba se deparando inevitavelmente com os percalços de sua própria identidade. Brasil ∙ 1984 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 90min Direção Murilo Salles. Produção Murilo Salles, Morena Filmes Baseado no conto Alguma coisa urgentemente, de João Gilberto Noll Adaptação cinematográfica Jorge Durán, Murilo Salles Roteiro Alcione Araújo Montagem Vera Freire Produção executiva Mariza Leão Produtor associado Fabio Barreto Fotografia José Tadeu Ribeiro Diretor assistente José Joaquim Salles Coordenador de Produção Rômulo Marinho Jr., Gilberto Loureiro Montagem Vera Freire Música Sérgio Saraceni Cenário, figurinos e maquiagem Carlos Prieto 100 Edição de som Valéria Mauro « Festival de Locarno, Suíça, 1984 Abertura e letreiros Jair de Souza, Valeria Leopardo de Bronze Naslausky « Festival de Brasília 1984 Técnico de som e mixagem Roberto Carvalho Melhor Filme” dos júris oficial e popular; Melhor Efeitos especiais José Farjala Roteiro e fotografia Elenco Roberto Bataglin, Claudio Marzo, Susana Vieira, Antonio Pompeo, Meiry Vieira, Enio Santos, Ângela Rebelo, Fábio Junqueira, José Mayer, Marcos Vinicius, Tonico Pereira « Festival de Gramado 1984 Melhor Filme do Júri da Crítica; Melhor Roteiro e Fotografia Seleção Oficial Quinzena dos Realizadores Festival de Cannes, 1984 “Enquanto a esquerda revolucionária se exterminava numa guerra contra a ditadura, a nação brasileira, em nome de quem ela lutava, se prostrava diante da televisão, entorpecida com as novelas e se encantando com as promessas do ‘milagre brasileiro’. Esta é a questão do filme: olhar essa relação tortuosa, metaforizando-a numa relação entre pai e filho. Assim chegamos ao cerne desse intrincamento, descobrindo que estas questões estão embaraçadas em nossa identidade profunda. Restou-nos, portanto, chorar pelos afetos tronchos, desfeitos e perdidos. E pelas mortes. Mas é morrendo que renascemos.” Murilo Salles 101 Perdidos no espaço Bernardo Carvalho As interpretações já começam a se esboçar. Triste necessidade, essa nossa. Não poderia ser de outra forma. Até o próprio diretor ameaça cair na mesma armadilha: Nunca fomos tão felizes começa a ser cimentado — triste sina — como metáfora do Brasil dos anos da repressão. Tudo bem, isso é até possível (vale tudo nesses lados ocidentais). Só que, aqui, esse eterno retorno em busca de um mesmo graal da cultura brasileira recente não tem outra realidade senão esconder o que este filme tem de verdadeiramente significativo, o lugar que ocupa na situação estética do cinema brasileiro atual. Fala-se muito em crise econômica no cinema, mas se esquece talvez propositalmente da crise estética. A bem dizer, o cinema no Brasil não possui uma possibilidade estética reconhecível (afasto o termo identidade, intencionalmente, pelo vício que carrega, levando a conotações fáceis de nacionalidade e a leituras psicanalistas baratas) desde o Cinema Novo. Na massa da produção desde então, vê-se em geral a presença de um espírito tributário, talvez por isso mesmo desprovido de inovações significativas ou de maior criatividade. A classificação exata seria diluição. E, nesse caso, convém abordar a principal herança, vulgarizada, pelo excesso, ao longo de aproximadamente 15 anos: a alegoria. Se no Cinema Novo — independentemente das críticas que pode e deveria suscitar, para o próprio enriquecimento dos filmes realizados no pais — o procedimento alegórico marcava sua entrada no cinema brasileiro, constituindo-se como uma de suas características mais fortes, numa certa produção subsequente (existem exceções, é claro), a alegoria se transformou numa das principais camisas-de-força, marca imprescindível, na maior parta das vezes, para o reconhecimento da identidade brasileira na película. Como uma rígida determinação, uma regra (culpa?), os cineastas, na grande 102 maioria, não conseguiam mais justificar seus filmes sem o apelo à dimensão do simbólico. E, na radicalização desse procedimento, chegou-se a fazer da alegoria até mesmo justificativa para a ausência de qualidade. O filme podia ser ruim (digo esteticamente, e sem o menor escrúpulo quanto às possíveis objeções ao caráter subjetivo da qualificação), mas lá no fundo, bem no fundo, não era mesmo a metáfora do Brasil que estava representada? Brasil grande, vale frisar, como a sede dessa arte impotente de abarcar uma totalidade. Um mecanismo que acabou se tornando patológico, a tal ponto que, no momento em que um filme parece quebrar essa limitação ideológica, tudo no aparelho ao redor (viciado pela prática dos anos) continua puxando-o para o mesmo terreno significante. Metáfora por metáfora, seria mais interessante, inclusive, colocar Nunca fomos tão felizes como imagem do próprio cinema brasileiro, essa entidade que, como o adolescente do filme, encontra-se num impasse, sem pai, ao invés de circunscrevê-lo no mesmo e desgastado espaço da representação — de intenções grandiosas — da nação. O pai, por exemplo, diz, sintomaticamente, em várias seqüências, que é melhor não falar nada. Como um cinema que atravessa uma crise profunda e ainda não encontrou uma forma definida para se expressar. Mas isso seria apenas deslocar o sentido simbólico para cair no mesmo círculo vicioso de interpretações. Apenas mais outra, que também não seria suficiente para fazer de Nunca fomos tão felizes o grande filme que ele realmente é. Se o planeta se resumisse ao Brasil (pelo menos ao que conhecemos), é quase certo que manifestações como o Zen e outras ideias e práticas que privilegiam o microscópico, o mínimo e o aparentemente banal, deslocando-os para fora dos códigos significantes estabelecidos, jamais encontrariam espaço para germinar. Todos estariam preocupados com coisas mais importantes e nobres, como a busca de suas identidades (todas elas, inclusive e principalmente a nacional) e a construção de uma cultura essencialmente brasileira (a tão aclamada brasilidade, funcionando mais por acúmulo que por seleção) para poderem prestar atenção a assuntos tão desprezíveis como aqueles. Acontece que, em última instância (e convém lembrar que essa também é uma interpre- 103 tação; afinal, se por um lado, para se sustentar uma obra, não deveria ser necessário recorrer a interpretações, por outro, como combatê-las sem entrar no mesmo ringue?), Nunca fomos tão felizes é um filme sobre o vazio. Vejamos, inicialmente, como funciona o cenário. Grande parte do filme de Murilo Salles se passa dentro de um apartamento. A tradição do cinema brasileiro (à que vinha me referindo) daria um tratamento bastante especifico — e já quase clichê — a um filme que possuísse essa característica. Em primeiro lugar (e sem intenções caricaturais), encheria o apartamento de tucanos, araras, bananas, abacaxis e coqueiros, ou, se pretendesse ser ligeiramente sutil, espalharia apenas alguns indícios tropicais em algumas poucas sequências, deixando que as próprias contradições da sociedade aflorassem nos outros objetos comumente encontrados no cotidiano de tais apartamentos. Em seguida, o povoaria com personagens-tipos, alegorias de classes, de forma que toda a sociedade — ou a parte que o cineasta pretendesse focalizar — estivesse representada. Esses personagens passariam então a gritar ou fazer discursos, ou, caso mais raro, apenas agir e falar, de maneira que pudessem ser socialmente reconhecidos como personagem alegóricos. O microcosmo estaria formado e o apartamento seria, sem tirar nem pôr, um grandioso resumo especular da nação brasileira. Nem frutas nem aves tropicais O apartamento de Nunca fomos tão felizes, no entanto, é radicalmente outro. Murilo, tratando de um tema aparentemente político (suas dimensões, na realidade, escapam a todas as definições oficiais), utiliza-se do apartamento sem se aproximar, em momento algum, desse reconhecimento de microcosmo evidente (mesmo que, fora do filme, ainda esboce, às vezes, tal definição, gênero pai subversivo, filho classe média/povo). O apartamento foi esvaziado das frutas e aves tropicais empalhadas. Não existem mais gritos nem discursos, apenas poucas palavras, poucos móveis, as janelas, um luminoso de hotel (bem mais característico de uma mitologia americana ou, por consequência, 104 cinéfila, do que brasileira) e a imensidão do mar. É o nada, o vazio que é central. E isso se dá principalmente pelo trajeto de Murilo. Não é o discursivo que o interessa, mas a própria imagem no que possui de especifico e poético. Murilo esvazia o ambiente em prol do cinema; uma opção radical pela imagem. “Sempre pensei muito em imagem. O filme é interior à imagem, recusa a tradição verbalizante”. Neste cenário seco, silencioso, a câmera se movimenta intermitente, como numa coreografia delicada, frisando, com seus deslocamentos suaves, um pequeno gesto ou objeto, um pequeno ângulo, minimalidades. O normalmente banalizado é sublinhado pelos travellings microscópicos e pela música incidental, criando uma poética sobre objetos menores e desprezíveis. Com isso, o que ocorre não é exatamente o privilégio desses objetos, mas da própria imagem. O filme aponta para uma experiência eminentemente cinematográfica, interior à imagem (como diz o cineasta), de quem vê cinema. “A lente é um pouco a continuidade dos meus olhos.” As imagens se remetem umas às outras, não dentro de um espaço fechado, mas aéreo, amplo (o mar, o horizonte, as janelas abertas); elas se sucedem como tomadas de ar, reincidindo umas sobre as outras num espaço aberto onde não existe nada além delas mesmas. Em duas passagens esse mecanismo chega a ser explicitado pela própria narrativa. Na primeira, quando o adolescente chega no apartamento, examina-o, e, abrindo um armário, não encontra nada além de sua própria imagem refletida num espelho em seu interior. A outra, quando tendo colocado uma fotografia de mulher (a também misteriosa e esquiva dona do apartamento) na janela, o rapaz dá um violento soco no vidro (a transparência), arrebentando-o e derrubando a fotografia numa tentativa impotente, para descobrir que atrás das imagens existem apenas outras imagens (a paisagem). Na realidade, isso fica bastante claro em todo o filme. A impossibilidade de conhecimento, de comunicação, não é mais que consequência dessa intransponível descoberta: não existe nada além de imagens superpostas. Os personagem não podem habitar outro meio que não o da própria imagem. Por ela são forjados. Só lhes resta 105 saber como apropriá-la para suas próprias vidas. Nesse sentido, o apartamento transforma-se em espaço neutro, imaginário, deserto, onde tudo está por se construir, e o espectador passa a ser astronauta, nômade, vagando pelo espaço infinito da tela de cinema, numa viagem imóvel dentro da sala de projeção. A televisão, com seus noticiários (os outros seriados apenas contribuem para o estabelecimento de uma dimensão fantástica, de ficção), e algumas manchetes de jornais são os únicos indícios de um possível real nesse espaço onde os personagem se encontram perdidos, flutuantes, sem territórios significantes fixos onde possam estabelecer suas identidades (alegóricas ou não), efetivamente inexistentes. Se o pai é terrorista, traficante de tóxicos ou o que quer que seja, isso pouco importa. Esse conhecimento não é mais possível (imagem sobre imagem). Tudo, no final das contas, pode ser apenas a produção imaginária do adolescente. A sequência em que a polícia cerca o edifício e vai embora, momentos depois, sem explicações, com outro preso provavelmente, ou a morte do pai, também inexplicável, sem ferimentos, são exemplares. E é isso que torna o filme interessante. A ambiguidade e a sutileza foram introduzidas, fazendo do apartamento esse lugar imaginário, sala de cinema, centro de produção de imagens, onde a Polaroid, a televisão e a guitarra (elementos — som e imagem — primordiais para uma construção cinematográfica) adquirem uma importância fundamental. O vazio tem por finalidade a inauguração de uma outra sensibilidade até então ausente no cinema brasileiro recente. Não existe mais a grandiloquência do discurso, mas o silêncio. “Não sou intelectual que usa o cinema para se expressar, eu sempre estive dentro do cinema (...) O filme é fiel ao conto e ao roteiro, só que ficou mais haicai.” Não se trata de atiçar uma guerra (entre estrelas). Mas apenas alertar para uma nova condição, uma saída, que é colocada concretamente dentro do próprio cinema brasileiro e que, subitamente, começa a ser boicotada pelas leituras que insistem em remetê-la ao que lhe é anterior e completamente oposto. Uma nova condição, sim. Uma sensibilidade delicada. Perdidos no espaço da tela de cinema, nós (espectadores) 106 e os personagem, sem identidades reconhecíveis, nos encontramos numa experiência estritamente cinematográfica. E por que não? Quantas outras aventuras não podem ainda surgir daí? (Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 27.03.1984) 107 A literatura fotográfica José Carlos Avellar Um detalhe a destacar em Nunca fomos tão felizes: a fotografia. O filme procura mostrar para o espectador que cinema se faz em parte da cena que se passa diante da câmera e em parte da fotografia dessa cena. E essa forma de construção se deve não apenas ao fato de que seu realizador venha de uma experiência de dez anos como fotógrafo de filmes. Ela se deve a uma exigência interna da história que ele se propõe contar. O protagonista vive uma situação que se mostra para ele como um conjunto de fotografias. Fixas. Isoladas. Fechadas sobre detalhes. Uma cena, um detalhe pode explicar melhor. Gabriel está sozinho no pátio do colégio interno. Não quis sair para passar o fim de semana em casa de um colega de turma. Preferiu ficar no colégio. Sozinho, joga bola com a parece. A ação é filmada em dois planos. No primeiro a câmera está quase deitada no chão. Colada no calcanhar de Gabriel, vê o chute, a batida da bola contra a parece, a volta, o novo chute, a nova rebatida da parede, mais um chute. No plano seguinte a câmera está de pé diante do rosto de Gabriel. Cabeça baixa, ele olha para o chão e se mexe de um lado para o outro. Acompanha a corrida da bola entre seu pé e a parede — imaginamos. A cena não aparece inteira na imagem. Vemos detalhes. Um pé. A bola. A parede. A cabeça baixa. A ação propriamente dita se completa em nossa imaginação, de modo natural e imediato. Não importa a brusca mudança de ângulo de visão, do calcanhar para o rosto de Gabriel. O movimento da cabeça, o olhar atento para baixo e mais a continuidade do som, o ruído do chute e da rebatida na parede mantido sobre a imagem do rosto de Gabriel, liga o segundo plano ao primeiro. Os detalhes aparecem como partes de um todo e não cada um deles como um todo à parte. Talvez seja melhor e mais exato dizer que cada um dos detalhes aparece ao mesmo tempo como um todo à parte e como parte de um todo. 108 Cada plano de Nunca fomos tão felizes é construído como se fosse coisa independente. Como um fragmento que só pode mesmo ser percebido como um fragmento. Pedaço que se despregou de um conjunto. Pedaço que não se encaixa mais em conjunto algum. Vemos o pé. Vemos a cabeça. Imaginamos o corpo que não se vê. De um certo modo cada detalhe é absolutamente independente do conjunto a que pertence. Enquanto está na tela não pode ser apanhado como continuação do gesto iniciado no plano anterior nem como o início de um gesto que continua no plano seguinte, é algo acabado em si mesmo. De um certo modo cada detalhe é absolutamente dependente do todo, da forma de ser do todo, do que determina que cada uma de suas partes apareça assim, como fragmento independente. Na verdade, no cinema a compreensão e o sentimento do que se vê não depende exclusivamente do reconhecimento da ação ou dos objetos dentro do plano. Depende também e principalmente da estrutura que dispõe esses detalhes numa determinada ordem. Cada coisa acabada em si se relaciona com outra coisa acabada em si. O que recebemos, compreendemos, sentimos e vemos de fato é esta relação, é a informação de que o que quer que se passe aí se passa num tempo e espaço fragmentado, estilhaçado, sem corpo. A narração é assim porque o autor faz de conta que vê do mesmo ponto de vista e com o mesmo sentimento de Gabriel. Para contar a sua história o filme situa seu narrador, seu personagem invisível (a câmera), na pele de Gabriel, para narrar como se percebesse o mundo tal como ele é visto pelo garoto que, um dia, oito anos depois de abandonado num colégio interno, é apanhado pelo pai que mal conhece e levado para um apartamento vazio em frente à praia de Copacabana, que ele nunca vira antes. 109 Deixado lá, diante do mar, abandonado de novo, ele tenta descobrir onde se encontra e quem é o pai que sumiu, apareceu e sumiu de novo. Mexe nas poucas coisas esquecidas no armário: caixas de fósforo, um pacote de dinheiro, um jornal, uma fotografia, roupas no cabide, passagens de avião, una pequena mala fechada. No cinema o espectador vê o filme mais ou menos como Gabriel vê as coisas largadas no apartamento vazio. Ou o mar e o letreiro luminoso do lado de fora da janela. Ou o vendedor de cachorro quente. O pedaço de filme na televisão. As mulheres no clube noturno. A torta de chocolate – fragmentos aparentemente desligados de tudo. E deste modo, na visão, na maneira de ver, no primeiríssimo momento da imagem, antes mesmo de ver as pessoas, os objetos ou as ações, no lado mais aparente e exterior da a imagem, o espectador compreende o que o personagem sente. Compreende que o mundo se revela para Gabriel assim como o filme se revela para o espectador: algo essencialmente fragmentado. E ao mesmo tempo o espectador vê esta coisa fragmentada como uma narração organizada, coordenada, linear, contínua. Compreende a fragmentação não como uma falha de construção, mas como um artifício de composição, como uma forma de revelar algo que é própria ao contexto (o Rio de Janeiro na década de 1970, às vésperas do seqüestro do embaixador suíço), um artifício que da à coisa filmada um significado duplo: aquele que a pessoa, paisagem ou o objeto filmado tem e mais o significado que adquire dentro daquela particular forma dramática que ele ajuda a compor. A narração segue contínua porque ao ver os fragmentos o espectador percebe também o princípio usado para fragmentar a ação. Vê a ação fotografada e vê também a fotografia em ação. Mais exatamente: vê a fotografia que aparece aqui em primeiro lugar e também a ação fotografada. (Publicado originalmente no site Escrever Cinema: www.escrevercinema.com) 111 Sérgio Camargo, fevereiro 1984 As esculturas em mármore de Sérgio Camargo são vistas em plena interação com a luz e o movimento do olho-câmera. Vídeo realizado para a série Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea. Brasil ∙ 1984 ∙ U-Matic ∙ 13 min Música Robert Fripp, Meredith Monk, Brian Eno Direção, roteiro e edição Murilo Salles Produção executiva Solange Padilha Coordenação geral Everardo Miranda Produção Rioarte, Prefeitura da Cidade do Rio Câmera Luís Gustavo Hadba, Pedro Varella de Janeiro “Este vídeo é a materialização de um exercício para perceber o processo escultural de Sérgio Camargo, a lógica do acaso, fenômeno essencial na produção desse artista que muito me ensinou sobre o tempo e o pensamento necessários para abordar uma forma. O vídeo é a tentativa de homenagear essa sabedoria.” Murilo Salles 112 Diálogo íntimo Glória Ferreira e Viviane Matesco Explorando as nuances das formas com particular atenção à incidência da luz, o vídeo de Murilo Salles é um leitura extremamente poética e autoral do trabalho de Sérgio Camargo. Assim como o método do artista se afirma como processo de decantação, a ação da câmara e da iluminação vai apresentando imagens cada vez mais limpas e abstratas, minimalistas, poderíamos dizer. Parte dos mármores brancos, em que se acumulam estruturas geométricas em uma relação de tensão e equilíbrio, para chegar ao limite das formas nas esculturas em mármore belga. Optando por um tratamento não-documentário, o cineasta utiliza-se da câmara como um elemento para nos fazer ver curvas, reentrâncias e imagens, enfim, para desvelar volumes. Dialogando intimamente com as esculturas, busca evidenciar sua dinâmica e fluxo. (Publicado originalmente no catálogo da série “Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea”) 113 Faca de dois gumes Jorge Bragança, advogado, marido apaixonado, descobre que sua mulher o está traindo com seu sócio e melhor amigo. Jorge planeja uma vingança, meticulosamente bem preparada. Mas sua atitude passional acaba por levá-lo a se envolver numa série de acontecimentos imprevistos que transformam sua vida. Brasil ∙ 1989 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 97 min Diretor Murilo Salles Produtor Patrick Moine Produtores associados VideoFilmes e Murilo Salles Adaptado do livro Faca de Dois Gumes de Fernando Sabino Adaptação cinematográfica Leopoldo Serran, Murilo Salles e Patrick Moine Roteiro Leopoldo Serran com colaboração de Murilo Salles Produção Executiva Flavio Tambellini Fotografia José Tadeu Ribeiro Música Victor Biglione Cenografia Maria Helena Salles Montagem Isabelle Rathery Figurinos Bárbara Mendonça 114 Edição de som Valéria Mauro, Virgínia Flores « Festival de Gramado. 1989 Diretor de produção Jaime Schwartz Melhor Direção, Fotografia, Cenografia, Som. Assistentes de direção Alice de Andrade, « VI Rio Cine Festival. 1990 João Henrique Jardim “Sol de Ouro” de Melhor Filme do Júri Oficial , Títulos Fernando Pimenta Melhor Montagem e Música Maquiagem Luiz Michelotti « Air France (Lumière) Cabelos Renato David, Miro Messias Melhor Diretor Mixagem Roberto Lima (CTAV) « Golden Metais Elenco Paulo José, Marieta Severo, José de Melhor Filme, Diretor, Ator - Paulo José, Monta- Abreu, Flavio Galvão, José Lewgoy, Imara gem, Roteiro, Música, Som. Reis, Rosita Tomás Lopes, Ursula Canto, Pedro « Seleção Oficial New Films, New Directors – Vasconcelos, Paulo Goulart, Fernando Peixoto, MoMa / Lincoln Center – Nova Iorque 1990 Raí Alves “O filme é sobre paixão e poder, tentando arriscar caminhos para além do gênero thriller, mergulhando fundo com seu protagonista. Tinha que ser assim. Jorge — Paulo José, numa magistral performance — é um advogado cerebral e sofisticado. Mas é engessado em sua educação elitista. Descobre-se traído. Sua vingança vem carregada de ódio, um ódio perverso que faz explodir uma caixa de pandora que revela as veias do Brasil.” Murilo Salles 115 Murilo Salles e a ética do alheamento Jurandir Freire Costa O que dirão os críticos, não sei. Para um leigo como eu, Faca de dois gumes, de Murilo Salles, é certamente um dos mais interessantes produtos do recente cinema brasileiro. O filme, livremente baseado num conto de Fernando Sabino, narra uma estória com outros ingredientes comuns ao gênero policial: ciúme, crime, culpa e castigo. As primeiras imagens evocam A hora e a vez de Augusto Matraga e previnem o espectador de que um acerto de contas está por vir. A seguir, tudo corre em ritmo de suspense. Mas, longe do estilo whodunit, como chamava pejorativamente Hitchcock, desde o início sabemos quem é o culpado. A surpresa está na culpa. Personagens e público esperam a resolução de um crime, quando o que está em causa é um outro crime. Na expectativa do desfecho a tensão cresce e, no final, quase tudo se desvenda, entendemos que a faca não tem dois, tem muitos gumes. Até aí, pode-se pensar, nada além de um thriller como tantos outros: tempo da narrativa adequado; enredo plausível e solução convincente. Falsa impressão. Como no filme noir ou nos romances de Chandler ou Hammett alguma coisa transborda a intriga e fala do mundo social e humano em que se movem mocinhos e bandidos. Já se disse que o mérito da literatura e do cinema policiais feitos nos Estados Unidos nos anos 1930 e 40 foi mostrar o avesso do sonho americano. Detetives e criminosos, perseguindo uns aos outros, acabam revolvendo e trazendo à tona a sordidez subjacente à riqueza das nações e dos donos do poder. Grand monde e bas fond, unidos, montaram uma sociedade inabalável no culto ao dinheiro e na exploração inescrupulosa das fraquezas humanas. A contraface da democracia institucional, mostrava a ficção, era o medo, a insegurança, o arrivismo, a hipocrisia e a canalhice dos convertidos ao mito do american way of life. 116 Em Faca de dois gumes, ao contrário do sonho, fala-se do pesadelo: da galhofa geral brasileira. Além do fuso horário, outras pequenas coisas distinguem as duas situações. Uma é fundamental. Lá se esbanjava dinheiro; aqui, falta muito. Por isso as disputas são talvez mais ferozes, e o que sobra delas mais feio. Ninguém pode permanecer indiferente ao que se passa neste país, adverte Murilo Salles. E, tendo ou não consciência disto, cedo ou tarde paga-se o preço. Este é o drama dos personagens. Alheios ao que acontece ao redor, Paulo José e Marieta Severo — soberbos! — perguntam, numa certa cena: por que nós? Nós que fomos educados na Suíça! Nós que aprendemos tudo o que era conveniente saber e tudo o que convinha ignorar! Por que agora, parecem dizer, esta terra e essa gente pedem-nos o que não podemos dar? Implacável, Murilo Salles manda que olhem em volta. E, como um clínico diagnosticando a doença, aponta para o principal sintoma: a ligação do pai com o filho. Com sensibilidade, a câmara vasculha pai e filho, pelo interior, perguntando: o que não deu certo? Por que em vez de se amarem, eles sempre foram tão infelizes? O que é ser pai e o que é ser filho, naquela exata circunstância social? O pai, complacente na autocomiseração, vive para o tédio blasé dos que se habituaram a ter tudo, sem perguntar por quê. Bastam-lhe o pequeno sofrimento de hoje, o ciúme de amanhã e o gozo hic et nunc. O resto é resto. Com dinheiro no bolso e sobrenome famoso, tudo o mais vem por acréscimo. Quando o filho pede reconhecimento, responde com o olhar vago de quem não sabe se, de fato, é o destinatário do pedido. Quando o filho insiste na demanda do amor, ameaçando-o de trocar de time, reage com a apatia de quem nada tem a defender. Nem mesmo a suposta paixão pelo Botafogo contra o arquiinimigo Flamengo. Quando por fim dá-se conta de que o mundo em torno ruiu, ainda assim, é incapaz de reconhecer no filho um filho. Aproxima-se dele, mas para suborná-lo: para fazê-lo cúmplice de uma culpa que é sua, e não para restituir-lhe o amor negado. Do desencontro do mau encontro nasce a tragédia. Em Nunca fomos tão felizes, foi preciso que o pai morresse para que o filho pudesse dizer “este é meu pai”. Agora, é 117 preciso que o filho aceite o pacto da culpa, em troca da ilusão do acesso ao pai. Tudo é preferível ao alheamento paterno. A violência que se segue seria excessiva se não metaforizasse o subsolo social brasileiro e o sacrifico como prova de amor. As cenas truculentas dizem que o alheamento é o grande crime; a mais dura das impiedades. É uma faca de dois gumes, que não poupa os indiferentes nem as vítimas de suas inconsequência. Vivendo parasitariamente da corrupção e da injustiça, os personagens centrais do filme são perfeitos inocentes inúteis, para parafrasear um jargão da direita política dos anos 1960. Belos em modos e aparências, existem para enfeitar as fachadas de um mundo sujo. Sem tempo para amar ou para pensar, fazem da vida um desfile de modas, na crença tola de que o mal é sempre destino dos outros, dos que não são de chez nous. Até que a miséria invade a sala de jantar. Nesse instante, como os Finzi-Contini, perguntam: por que nós? E espantam-se com as respostas cínicas de seus pares. No trecho do filme em que a trama se esclarece, cinismo e credulidade confrontam-se num diálogo empolgante. Mas como?, diz o corrupto. Então você não sabia? Não acredito! Na tela é só isso: ou pouco mais que isso. Na cadeira, o eco da conversa prossegue: então você não sabia de onde vem seu dinheiro e seu bem-estar? Não lhe ensinaram que abaixo do Equador não existe pecado? Pois bem, aprenda: entre nós não se morre por amor. Vive-se, mata-se por dinheiro e poder. Se desconhecia a regra, por que sentou-se à mesa? Ao mau jogador, as contas do jogo! O inocente inútil compreendeu, tarde demais, a estupidez da vida vivida e a crueldade da inocência. Reservaram-lhe o papel de fantoche, sem direito a voz e sentimentos próprios. Por comodidade, ele aceitou. Só que, na hora H, quem puxa os fios diz como, onde e quando quer ser obedecido. O que aconteceu não tinha conserto. O crime era sem perdão, porque quem poderia perdoar não tinha como estar presente ao julgamento. Restava assumir a culpa e representar a farsa do crime punido, destinada a reabilitar a lei, quando a lei já não mais importava. No universo da desfaçatez, as vítimas têm carteira de identidade, mas o crime não se paga com a prisão de um e sim com a 118 responsabilidade de todos. Coisa que muitos teimam em não entender. Faca de dois gumes é um filme dos tempos presentes para os homens presentes, como diria Drummond. Dele pode-se dizer tudo, salvo que pecou por alheamento. (Publicado originalmente no Jornal do Brasil) 119 Pornografia Um filme-manifesto. Um desabafo contra a execução sumária do cinema brasileiro pelo Governo Collor. Simples e direto: sexo explícito, texto na tela e o Hino Nacional. Brasil ∙ 1992 ∙ 35mm ∙ 6 min Assistente de direção e elaboração de textos Direção Sandra Werneck e Murilo Salles Bebeto Abrantes Fotografia Murilo Salles Elenco Gaúcho e Luciana Edição Toth Brondi Narração Paulo César Pereio Produção executiva Sandra Werneck “Pornografia tem a contundência das coisas que vêm das entranhas: polemiza e emociona. Fala de perdas e danos. O filme é um relacionamento que não acontece — é pura performance. Curto, cru e grosso, Pornografia é uma pancada na razão cínica. Filme-síntese, é a afirmação de uma vontade, é um troco — coisa de cineasta indignado. O cinema brasileiro informa.” Murilo Salles 120 Um desabafo poético em forma de hino erótico Artur Xexéo Na tela, durante seis minutos, um casal – profissional de shows de sexo explícito em boate – mostra suas habilidades artísticas. A iluminação da cena utiliza um tom verde e amarelo. A trilha sonora se limita a uma execução do Hino Nacional. O filme — o curta-metragem Pornografia, de Sandra Werneck e Murilo Salles — promete sacudir o Festival de Gramado. Mas por mais que a mistura de cenas de sexo explícito com as cores da bandeira brasileira e o Hino Nacional seja explosiva, Pornografia bate forte no espectador com o manifesto que em letras garrafais cobre, durante todos os seis minutos, a cena erótica. Pornografia é o desabafo poético de uma classe — a cinematográfica — arrasada pelo governo Collor. Nunca se fez tão pouco cinema no Brasil como no período em que descidas de rampa se tornaram a mais criativa manifestação artística que o Estado consegue patrocinar. Pornografia não é pornográfico nem desmoraliza os símbolos nacionais. É verdade que o filme se apropria do Hino Nacional (hino que simboliza uma nação, de acordo com definição do Aurélio), mas só para ajudar o espectador a se apropriar também da revolta da classe cinematográfica. Sem o hino, o manifesto de Murilo Salles e Sandra Werneck diz respeito apenas a eles e a seus colegas. Com o hino, a revolta dos diretores, atores e técnicos que estão impedidos de trabalhar é a mesma revolta dos cidadãos que tiveram suas contas bancárias confiscadas e espantam-se com as revelações da CPI do PC. Pornografia é chocante. Vai escandalizar as senhoras de alguma cidade do interior de Minas, alguns militares vão reclamar da má utilização do Hino Nacional, os habitantes da Casa da Dinda vão ficar com raiva. Mas ninguém, nem mesmo os fantasmas do PC, vão poder dizer que é um filme ruim. É bonito à beça. E emocionante. E a utilização 121 do Hino Nacional só reforça a emoção que o filme transmite. Além do mais, escândalo por escândalo, os que a arte provoca são sempre mais estimulantes. (Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 16.08.1992) 123 Todos os corações do mundo (Two Billion Hearts) Muito mais do que o filme oficial sobre a Copa do Mundo de 1974 nos Estados Unidos, esta é uma viagem através da paixão pelo futebol, da alma dos torcedores, das façanhas de seus ídolos. O filme mostra os melhores momentos da Copa e acompanha o show das torcidas dos 24 países nos Estados Unidos, para onde viajaram 300 mil amantes do futebol de todo o mundo. As câmeras caçam ainda corações apaixonados em outros seis países, em lugares tão distantes como a Floresta Amazônica, no Brasil, e a Fontana di Trevi, em Roma. Brasil/EUA ∙ 1995 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 106 min Direção Murilo Salles Produção Leonardo Gryner, Carlos Roberto Osório, Sergio Villela Produção executiva Mauro Rychter, Richard A. Levine Diretor de produção Romulo Marinho Jr. Diretores das equipes móveis Andrucha Waddington, Belisário Franca, Luciano Moura e Roberto Berliner Diretor assistente Vicente Amorim Concepção fotográfica César Charlone Direção de fotografia Carlos Pacheco, César Charlone, José Roberto Eliezer, Lúcio Kodato e Pedro Farkas Direção de fotografia das equipes móveis Breno Silveira, Nonato Estrela, Roberto Amadeo e Walter Carvalho 124 Montagem José Rubens Hirsch, com a participação 1º Assistente de direção Rosane Svartman de João Lourenço Tuco e Gustavo Cascon 2º Assistente de direção Ricardo Favilla Trilha original Lalo Schifrin e Gary Stockdale. Som direto Jorge Saldanha Vídeo grafismo Jair de Souza Produtor de pós Rosane Svartman Câmeras Adrian Tejido, Jacques Cheuiche, Edição de som Miriam Biderman, Eliza Paley, Toca Seabra, Joel Lopes, Christian Lesage, Barbara Parks, Ron Bochar Jorge Pfister, Claudio Leone, Pompilho Tostes, Texto George Vecsey, Armando Nogueira Francisco Tortuga, Lito Mendes, Gilberto Otero, (versão brasileira) Tuca Moraes, Guy Gonçalves, Felipe Daviña Narração Liev Schreiber, Antonio Grassi (versão Equipe de produção Alex Mehedff, Jaime A. brasileira) Schwartz, Fernando Serzedelo, Lula Leite Franco, Fernando Zagallo, Paulo Callado, Flavio « The New York TV Programming & Promotion Chaves, Simon Gregory. José Joaquim Salles e Festival, 1996 — Medalha de Bronze Tereza Gonzalez “O filme foi construído para contar uma história, tal como ficção. A história da emoção da Copa, dos torcedores e sua paixão pelo futebol. Acho que conseguimos realizar um documentário que emociona apesar de ser um evento muito exposto. Foi uma aventura muito especial. Um filme feito para que as pessoas se transportem novamente para o evento. Foi nossa primeira experiência de fazer um documentário que se impusesse pela sensorialidade. Num misto de montagem eisensteiniana com um beat Rei Leão. Nosso ponto de vista nunca foi o factual, muito menos o jornalístico. Quisemos fazer uma experiência eminentemente cinematográfica sobre o evento esportivo mais importante desse planeta.” Murilo Salles 125 Murilo Salles filma um épico do futebol Luiz Zanin Oricchio Todos os corações do mundo – A paixão do futebol não é apenas uma proeza técnica. Esta justificaria elogios a um produto impecável, o que também é o caso. Mas a maior virtude do filme talvez não esteja propriamente no uso de 22 câmeras, 30 toneladas de equipamento pilotado por profissionais de primeira, etc., e sim em sua concepção de produto cinematográfico, que vai além do registro meramente documental. A prova dos noves foi tirada na exibição para convidados terça-feira à noite no (hotel) Maksoud Plaza. Muita gente que não gosta de futebol, e nem acompanhou direito a Copa nos Estados Unidos, se emocionou com a projeção. Isso porque Murilo Salles, ao receber a incumbência de dirigir o filme oficial da Fifa, driblou qualquer obrigação de seguir o modelito chapa branca. Equilibrou e distribuiu os espaços de cada seleção segundo importância e méritos. O que dá ao filme um tom de imparcialidade emocionada, que não cai nunca na patriotada, apesar de o Brasil ter se sagrado campeão do mundo. Mas o maior acerto do cineasta foi ter concebido Todos os corações do mundo como um épico, com suas figuras trágicas, seus heróis, um ou outro vilão, o grande coro grego representado por uma plateia planetária. Murilo devolve ao futebol o que é do futebol: mais que um jogo, é uma fatia de vida em 90 minutos, de função catártica, que revela muito do caráter de seus participantes e da nação que representam. Nelson Rodrigues dizia que a seleção brasileira era a pátria em chuteiras. Murilo Salles assumiu esse espírito, deixando de lado apenas a parcialidade contida na frase. Mas é no eixo da paixão que trabalha o tempo todo. Medida certa — Emoção com inteligência. Como cineasta e narrador, sabia que é difícil dar coerência dramática a um torneio fragmentado em 52 jogos. Para driblar 126 essa dificuldade estrutural, construiu alguns bolsões temáticos iniciais, acompanhando mais de perto três seleções: a Bulgária, que foi mais longe do que se poderia acreditar; a Alemanha, que chegou aos Estados Unidos vergada pelos seus sucessos anteriores; e a Itália, que como sempre começou hesitante e cuja escalação era, a cada jogo, uma equação quase impossível de ser fechada pelo treinador Arrigo Sacchi. Os outros países não desempenham papel periférico mesmo nesse mosaico inicial. Algumas figuras da saga se destacam. A principal e a mais trágica delas: Maradona, em seu tango triste, eliminado quando o exame antidoping acusou uso de substâncias proibidas. No contraponto, o romeno Hagi, sensação de algumas das primeiras partidas, artista da bola, dono de jogo refinado, sutil, sistemático sem deixar de ser inspirado. Quando surge a seleção nacional, um gigante se destaca: Romário. A cada jogo, em cada jogada, vai surgindo na tela uma verdade que se impõe como evidência matemática: dificilmente o Brasil teria ganho aquela Copa sem ele. Guardadas as devidas proporções, Romário talvez tenha sido para a Copa dos Estados Unidos o que Garrincha foi para a do Chile: individualidade tão forte que parece se sobrepor a um jogo coletivo por excelência. Impossível imaginar quem poderia ter substituído esses dois jogadores. Há também a participação das seleções menos badaladas, que causaram sensação. Em 1994, foi a Nigéria, como em Copas anteriores tinha sido a de Camarões. Os nigerianos encantaram pelo futebol alegre – e também pela euforia de sua torcida. O filme registra, e enfatiza, esse aspecto ecumênico, que é também próprio do futebol. Há sacadas de cineasta para caracterizar cada seleção. Se a Nigéria é filmada de maneira descontraída, quase casual, quando se fala do caráter militar do time alemão a técnica se altera: as cenas são tomadas em contraplongée, de baixo para cima, para criar a sensação de grandiosidade marcial. O filme tem essa preocupação de unidade estrutural e se apega também a pequenos detalhes decisivos. Há aqueles momentos ternos, como o dos brasileiros comemorando a vitória sobre os Estados Unidos e sendo cumprimentados pelo zagueiro 127 americano. Há a cena engraçada do goleiro italiano Pagliuca acariciando a trave que rebateu uma bola do ataque brasileiro. Salles conduz o filme para seu clímax lógico, aquele 0 a 0 infernal com a Itália, no tempo normal e na prorrogação. O texto da narração é suspenso e só se ouve a trilha sonora (o Réquiem de Siegfried, de Richard Wagner) e, no fundo, sons abafados do jogo, uma chuteira batendo na bola, o apito do juiz, o ruído da torcida. Um final arrepiante. Todos os corações do mundo é um filme à altura do seu tema. Não é dizer pouco, quando esse tema é o futebol. (Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 02.02.1996) 129 Como nascem os anjos O bronco Maguila mata sem querer o chefe do tráfico no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Perseguido pelos “soldados” do tráfico, ele é obrigado a fugir da favela com Branquinha, uma menina de 13 anos que, apesar da diferença de idade, diz ser mulher de Maguila. Na confusão, acabam levando também o menino Japa. Na fuga, invadem a mansão de um advogado americano, onde viram reféns de uma situação que, num crescendo de tensão, nos leva a rumos inesperados. 1996 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 96min Direção Murilo Salles Produtores Murilo Salles, Romulo Marinho Jr., Cláudio Kahns Coprodutores Secretaria do Audiovisual do MinC, Riofilme, Banespa, Quanta Roteiro Murilo Salles, Jorge Durán, Aguinaldo Silva e Nelson Nadotti Fotografia César Charlone Direção de arte Marlise Storchi Figurinos Maria Helena Salles Som direto Marc Van Der Willigen Montagem Isabelle Rathery, Vicente Kubrusly Música Victor Biglione Produção executiva Romulo Marinho Jr. Elenco Larry Pine, André Mattos, Priscilla Assum, Silvio Guindane, Ryan Massey, Maria Silvia 130 « XXIII Festival de Cine Iberoamericano de Prêmio Andi pelos direitos da infância, Prêmio Huelva, Espanha. 1997 Saruê de melhor momento do festival pelo Correio Melhor Filme do Júri Oficial – Prêmio Colón de Oro Braziliense, Prêmio Melhor Filme da OCIC - Orga- « Festival de Gramado. 1996 nização Católica Internacional de Cinema Melhor Filme do Júri da Crítica, Melhor Diretor, « Festival de Berlim, Seleção Oficial FORUM Prêmio Especial do Júri para os atores Silvio Guin- « Melhor Filme do Ano: Associação de Críticos dane e Priscila Assum, Melhor Fotografia, Melhor de Cinema do Rio de Janeiro Música, Melhor Montagem « Melhor Filme do Ano: Associação Paulista de « Festival de Brasília. 1996 Críticos de Arte Melhor Filme do Júri Popular, Prêmio Especial « Melhor Filme, Melhor Diretor: Prêmio da do Júri para os atores Silvio Guindane e Priscila Crítica e do Júri Popular - SESC SP. 1997 Assum, Melhor Atriz Coadjuvante para Maria Silvia, “O filme surge da minha inquietação, como cidadão, com o conflito favela/asfalto, tão presente no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Como cineasta, tento pensar uma nova forma de encarar esse conflito que o cinema brasileiro vem retratando ao longo de sua história. O que mais me motivou foi não fazer um painel moral desse conflito. Não se trata de um filme que aposta no politicamente correto, no bom personagem, tampouco no mau. É um filme que ousa explorar o humor do lado patético da tragédia social e de incorporar o acaso como condutor da narrativa e levar o espectador a um estado para além das questões simplificadoras das sobredeterminações, para remetê-lo a um estado de puro absurdo, experimentado na violência das desigualdades sociais no Brasil” Murilo Salles 131 Os diálogos afiados e o humor nervoso dos anjos Ivana Bentes Um filme de roteiro, que se sustenta nos diálogos afiados e no humor nervoso que nasce de uma situação de confronto social insuportável. O novo filme de Murilo Salles não tem nada do lirismo de Nunca fomos tão felizes nem a estrutura de thriller policial de Faca de dois gumes. É um filme seco, de grande tensão, um “laboratório” social que explora o intolerável no cotidiano brasileiro. Como nascem os anjos começa frio, com uma espécie de prólogo no morro Santa Marta. Mas o “filme do morro” não é o eixo da narrativa. O cinema brasileiro dos anos 1990 ainda procura saber como filmar a favela. Uma relação com o “outro” que o cinema, ao longo de sua história, vem tentando mapear e explorar: Cinco vezes favela, filme coletivo ligado ao projeto CPC, Rio 40 graus e Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, O anjo nasceu, de Júlio Bressane, além do cinema que romantizava a favela, como Orfeu do Carnaval ou Favela dos meus amores. Em Como nascem os anjos, a favela não é o território a ser explorado, é um espaço virtual e um trampolim, um espaço de ambientação e apresentação dos personagens, que não se impõe como cenário real. Uma favela é uma rede intrincada, tem uma vida e uma aparente desordem de colmeia, uma topologia de labirinto vertical que faz dela um território singular que resiste a qualquer invasão dos curiosos, da polícia, da TV e do cinema. As câmeras, os equipamentos, a equipe de um filme têm de se adaptar a uma topologia e cultura singular para entrar nesse território e chegar a ver algo. Daí a solução radical da televisão de montar favelas cenográficas que facilitam o deslocamento das equipes e criam um puro espaço televisivo. Ficcionalizar a favela? O cinema brasileiro ainda não encontrou a forma de subir os morros para fazer ficção. Nesse ponto, a referência ainda são os filmes e a experiência estética radical do Cinema Novo. 132 No filme de Murilo Salles a favela, enquanto território real, é quase pano de fundo. A câmera toma distância dos “figurantes” do Santa Marta que atravessam o quadro de forma indiferente. Só interessa aí caracterizar e tornar verossímeis os três personagens principais, saídos da favela: Branquinha, Japa e Maguila. Ao mesmo tempo, a favela atravessa todo o filme como território virtual. A favela estará presente virtualmente nas luzes da Rocinha vistas da mansão e, o que é mais importante, nas referências diretas à cultura do morro: na fala suingada e ferina, nos gestos e atitudes dos personagens. A história engrena quando esses três personagens vindos da favela são deslocados do seu meio e colocados numa situação de confronto dentro de uma mansão. De um lado, duas crianças do morro, Branquinha e Japa (Priscila Assum e Sílvio Guindane) e um adulto meio bronco ligado ao tráfico de drogas, Maguila (André Matos); e de outro lado, um empresário americano, William (Larry Pine), sua bela filha (Ryan Massey) e a empregada, Dona Conceição (Maria Sílvia). O filme começa quando os seis personagens tornam-se reféns uns dos outros. A situação simbiótica, de confronto e dependência entre os sequestradores acidentais e seus reféns, é exemplar de um jogo social que dissolve as fronteiras do que é justo ou injusto, certo ou errado, amoral ou ético. Como nascem os anjos cresce pela ambiguidade dos personagens e ausência de moralismo. As crianças do morro são espertas, cruéis e adoráveis ao mesmo tempo. Os dois jovens atores seguram o filme com falas incisivas e todo um gestual trabalhado. O bandido bronco Maguila é simpático na sua boçalidade. O grupo dos pobres não é caricaturado. Em muitos momentos o espectador oscila e se pergunta se o sofrimento dos personagens (os ricos, cidadãos americanos ou os pobres) vai comovê-lo. Na maior parte do tempo, o espectador se identifica com o olhar das crianças do morro, ponto de vista privilegiado a partir do qual a narrativa evolui. Mas a narrativa tem mobilidade para deslocar o espectador para o ponto de vista oposto, o drama e humilhação dos ricos, o ódio ou sadismo das crianças que surge nos momentos de tensão. 135 O fato de duas crianças do morro tornarem-se circunstancialmente marginais, “sequestradores”, e exercitarem sua dose de crueldade cotidiana não os torna abomináveis. Ao espectador não é dado julgar ninguém. A situação é quase de cumplicidade cortada pelo cúmulo, o humor nervoso, de algumas situações. O filme, e esse é outro dos seus méritos, não trabalha com a piedade. A câmera é frontal e fria. A fotografia, neutra. Não há virtuosismo cinematográfico nenhum. O set é teatral. As cenas se passam entre quatro paredes, em suspense e suspensão. O filme não esconde seu artificialismo, o de tornar verossímil uma situação de “laboratório”. Entretanto, o “racionalismo” do roteiro é atravessado por momentos de clímax e cúmulo. Daí o impacto das sequências em que a tensão se mistura com um certo deslumbramento e gosto pelo espetáculo: o garoto que dança funk para os jornalistas da TV, sob os holofotes e a mira da divisão antisequestro da polícia, ou a menina que exige que a loura americana fique nua e assiste a tudo como se visse uma cena de nudez na telinha. A televisão é um personagem importante na narrativa. Já nas primeiras cenas do filme, uma equipe de TV alemã surge no Santa Marta fazendo jornalismo e sociologia. A disseminação da miséria e da violência a níveis planetários faz das favelas cariocas produto número um da globalização. “Miséria é miséria em qualquer canto”, cantam os Titãs. Michael Jackson e Spike Lee no Santa Marta já tinham nos ensinado que a folclorização e estetização da miséria é uma tendência internacional. Daí terem escolhido o morro para cenário de um videoclipe. As revistas de modas também já descobriram o Terceiro Mundo e a miséria urbana como pano de fundo da publicidade e do mercado da moda. Pobre is beautiful ou fashion! No filme de Murilo Salles trata-se de avançar um pouco mais nessa realidade. A televisão é ponto de referência para os três personagens da favela. Como disse o traficante Marcinho VP, numa entrevista ao Jornal do Brasil, ele não precisa ir à universidade para estar antenado e informado com o que acontece — a televisão é a sua escola. 136 Todos os barracos do morro têm parabólicas captando o mundo via satélite. Se os policiais do filme parecem tão caricaturais é porque a polícia brasileira tem como modelo o policial americano dos seriados de TV e do cinema. Não é o filme que usa clichês, é a realidade que copia a TV, o mundo que é um clichê e um decalque da TV. “Você não assiste TV?” — é a pergunta irônica do moleque ao americano que tenta enganá-lo com um truque manjado dos seriados policiais. Os ídolos do menino do morro são os jogadores de basquete americanos, a menina fica deslumbrada com a estética Barbie de sua refém. A relação de fascínio dos meninos por esses personagens que moram bem, vestem bem e falam inglês é total. A televisão também aparece como mediadora na resolução do sequestro. A possibilidade de se ver na TV, de existir no telejornal, leva os garotos a correr todos os riscos. Se o filme é uma tentativa de tirar o horror da banalidade cotidiana, ao mesmo tempo se alimenta dele, um pouco como na TV. Mas o tratamento que o filme dá a esse horror e violência é mais cru e cruel. Em geral, a violência se dá na fala e nos gestos, não em cenas de violência espetacularizada. Como nascem os anjos não faz hipóteses sobre o que narra, se contenta em contar de forma distanciada o conflito entre excluídos e incluídos. É sintomático que no filme os pobres se matem entre si. Constatação que tem algo de sinistro socialmente. O filme não chega a se indignar com isso, simplesmente narra. Os anjos brasileiros, conta Murilo, já nascem mortos. (Publicado originalmente em folder da distribuidora Riofilme) 137 50 anos de TV brasileira Vídeo criado para a exposição 50 anos de TV e +, onde era exibido em looping permanente. Brasil ∙ 2000 ∙ Betacam ∙ 9 min Direção Murilo Salles Edição Murilo Salles, Felipe Lacerda O evento apresentou também vídeos realizados por Eduardo Coutinho, Arthur Omar, Belisário Franca, Alice Andrade, Raquel Couto, Eder Santos, Gabriela Greeb, Carlos Nader, Marcelo Tas, Andrea Tonacci, Chico Faganello, Hique Montanari, Renato Barbieri, José Araripe Junior, Kátia Mesel, Torquato Joel e Rosemberg Cariry. “O vídeo propõe um insight gestaltico sobre a TV brasileira, no dia do seu aniversário de 50 anos. De meia-noite de 17 de setembro de 2.000 até a meia-noite seguinte, no limiar do dia 18, foi gravado tudo o que entrou no ar em todos os canais abertos no Rio de Janeiro, durantes essas 24 horas. Rendeu 1.440 minutos de gravação. Depois foi realizada uma edição randômica, onde foram pinçados quatro segundos de imagem de cada canal, de 28 em 28 minutos. Esses quatro segundos foram montados em ordem, repetindo-se sempre a mesma, dos canais em números crescentes. Foram feitos, em alguns momentos, pequenos ajustes para que os quatro segundos pinçados cortassem melhor. Nesses nove minutos da projeção, temos uma ideia clara do imaginário televisivo brasileiro.” Murilo Salles e Felipe Larcerda 139 Seja o que Deus quiser! Após se envolver com uma VJ da MTV, músico que vive em favela carioca acaba sendo denunciado sob a acusação de ter armado um assalto contra ela. Decidido a limpar seu nome, ele parte rumo a São Paulo para encontrá-la, mas acaba se envolvendo com um universo de personagens de outro “planeta”. 2002 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 90 min Direção e produção Murilo Salles Roteiro Murilo Salles, com a colaboração de João Emmanuel Carneiro e Maurício Lissovsky Produtora associada Zita Carvalhosa Produção executiva Flávio Frederico, Rômulo Marinho Jr. Fotografia Gustavo Hadba Montagem Pedro Amorim Música Instituto, com participação de Fernandinho Beatbox Direção e produção de arte Dárida Rodrigues, Mônica Costa Figurinos Laís Salles, Marise Vonklay Produção de elenco Sérgio Luz, Pedro Paulo de Souza 140 Conceituação da direção de arte Jair de Souza, Rômulo Marinho Jr., Paula Garcia, Jonathan Pedro Paulo de Souza Haagensen, Daniel Granieri, Stela Prata, Nicete Direção de produção Mirela Zunino, Guto Vaz Bruno, Marcelo Serrado, Antônio Pompeu, Elisa Elenco Marília Pêra, Rocco Pitanga, Ludmila Lucinda, Nildo Parente, Frejat Rosa, Caio Junqueira, Débora Lamm, Sabrina Greve, Bárbara Paz, Silvio Guindane, Tânia « Festival do Rio Br 2002 Ripardo, Lúcio Andrey, Fernando Fechio, Melhor Filme Júri Popular “SqDq! é um chute no pau da barraca. Escancaramos o confronto Rio/São Paulo como metáfora de Brasil, mas sem fazer sociologia. O negócio aqui é a ironia, a comédia sarcástica sobre as diferenças de classes e de culturas. Começamos pelo país da origem, negro e popular: o país de PQD, músico do Morro do Alemão, espaço onde a música e o tráfico — por mais condenável que seja — são índices de afirmação de identidade e de sobrevivência econômica. Esses são signos do Rio de Janeiro. O ‘negão’ cheio de boas intenções vai para o país que dá certo, que produz 60% do nosso PIB, país de Cacá, repórter de TV, seu irmão, Nando, e a amiga Ruth. PQD quer provar a inocência do morro. Para ‘suspender’ os espectadores, criamos uma grande confusão, invertendo os clichês: o malandro carioca se torna refém de dois paulistas cujo objetivo imediato é ir numa rave em Botswana. No confronto dessas culturas e raízes tecemos narrativas possíveis do Brasil, numa cruel, mas sincera homenagem a Gilberto Freyre. Seja o que Deus quiser!” Murilo Salles 141 O que “Deus quer” é cruel Ismail Xavier e Leandro Saraiva Em 1996 Murilo Salles já era um cineasta experiente, formado nos tempos em que Cinema Novo e Cinema Marginal disputavam os rumos de nosso cinema, com uma carreira de diretor de fotografia, seguida pelo trabalho como diretor de vários curtas e cinco longas. Naquele incerto momento pós-Collor, Murilo apresentou ao país Como nascem os anjos, filme fundamental para o chamado “cinema da retomada” por ter reposto em pauta, sob formas contemporâneas, a escandalosa desigualdade social brasileira. O filme foi inaugural na criação de motivos que se tornariam marcantes ao longo da década seguinte: uma situação de impasse criada pelo encontro inusitado entre personagens vindos de pólos sociais opostos, a TV como referência onipresente e mediadora das ações, os favelados tentando superar o estigma (e a opressão) do narcotráfico pela alternativa integradora da performance musical. Seja o que Deus quiser! retoma e aprofunda caminhos abertos pelo pioneiro filme anterior. Novamente, a comédia de erros é o modo de dar forma dramática às relações entre ação individual e padrões sociais. Em Como nascem os anjos a sucessão meio absurda de equívocos envolvia não só tensões interclassistas, como “mancadas” entre os pobres, que acabavam por precipitar a catástrofe. Na História de PQD, jovem músico negro e pobre que se vê enredado num mundo que lhe é estranho, quem age, de golpe em golpe, são os jovens “moderninhos” da elite. O título já anuncia a ironia: a aparência errática e vertiginosa assenta- se sobre os pilares de nossa tradição de “ordem e progresso”. O que “Deus quer” é cruel, como descobre PQD. Sujeito cordato e de boa vontade, armado de versos de rap e partido alto, ele é exceção, vítima de um enxame de figuras vampirescas “plugadas” nos circuitos de um “outro planeta”, movidos a narcisismo e música eletrônica. 142 De início, vislumbra-se uma ponte sobre o abismo do quase-apartheid nacional: a aproximação charmosa do músico da favela e da VJ da MTV, Cacá, sugere a possibilidade de uma comédia romântica de integração social, na qual o valor de PQD poderia sobrepujar percalços e mal-entendidos. Mas o tom farsesco não demora a se estabelecer, ganhando impulso nos comportamentos grotescos dos malandros do asfalto virtual. O traço caricatural do desenho dos personagens que cercam PQD ajuda a compor a imagem da sociedade como engrenagem implacável, que tritura o herói e sua ingênua crença ética, segundo a qual “tudo vai se resolver se a gente conversar numa boa”. Nando, o irmão de Cacá, é mestre de cerimônias da comédia de erros. Ele é “puro estilo” em roupas, trejeitos, fala, sexo, drogas e baladas. Sua amiga Ruth, com seu apartamento de história em quadrinhos, lhe faz par na vida vivida como videogame canalha, onde tudo e todos são ou objetos de prazer, ou instrumentos para o próximo lance, o próximo golpe, que os fará mudar de fase e ir para “uma rave em Botswana”. Tudo ágil, mágico e colorido, como uma navegação speed na internet. Através da mãe de Nando a farsa amplia seu diagnóstico social. Ele e Cacá vêm de uma família de ares aristocráticos e antepassados militares, que vivem momentos finais de decadência, deixando aos filhos somente a herança da desenvoltura dos bem nascidos. Marília Pêra interpreta Dona Fernanda num tom levemente maluco, de quem perdeu o pé mas não perdeu a pose. Murilo Salles caracteriza o clima de dissolução que envolve a família pelo esvaziamento do “palácio” (como chama Ruth) onde vive Dona Fernanda, entre poucos móveis e objetos de arte, prontos para serem vendidos. O diretor retoma, noutra chave, um recurso de Nunca fomos tão felizes, onde o esgarçamento do laço familiar causado pela ausência do pai militante tinha como cenário um apartamento vazio. É deste vazio que vem a palavra final concedida à matriarca, que abençoa o sucesso da prole numa cena social feita de aparências, pose e oportunismo ágil, navegando entre “virtualizações” de tempo, espaço, subjetividades e história. A nova onda recobre, com estilo, seu compromisso de continuidade da tradição, pois não é outra sua lógica senão a da violência e da exclusão. 143 Seja o que Deus quiser! acaba por concluir que, apesar de tantas novidades, as coisas não mudaram muito. (Publicado originalmente em folder do evento Encontros com o Cinema Brasileiro, do Centro Cultural Banco do Brasil SP) 144 Murilo Salles radicaliza clichês em comédia cruel José Geraldo Couto Cacá (Ludmila Rosa), uma VJ da MTV, vai fazer uma reportagem de música numa favela carioca e acaba na cama com o sambista PQD (Rocco Pitanga, filho de Antonio e irmão de Camila). Atacada por desconhecidos, ela denuncia o rapaz à polícia, por suspeitar de sua conivência com os bandidos. PQD foge para São Paulo à procura da moça para limpar a própria barra. Por uma série de acasos, acaba ficando à mercê de Nando (Caio Junqueira), o irmão clubber de Cacá, que quer usar o músico para dar um golpe e faturar muita grana. Desse entrecho Murilo Salles construiu uma comédia de erros sobre o choque de classes e culturas no Brasil de hoje, tema já presente, num outro registro, em seu Como nascem os anjos”. O filme tem causado perplexidade, se não mal-estar, em suas pré-estreias e exibições especiais. Não é difícil entender por quê. Seja o que Deus quiser! realiza uma operação de risco ao desprezar simultaneamente dois elementos que estão se tornando dogmas no cinema nacional: o naturalismo e a catarse pacificadora. Vejamos um de cada vez. Exige-se hoje de um filme brasileiro que mostre “a favela como ela é”, “o Carandiru como ele é”, ou “o sertão como ele é”. Nada contra as obras que buscam essa veracidade documental. O problema é o retorno à crença ingênua na arte como reprodução fiel do mundo existente, que faz lembrar o caso de alguém que, diante de uma pintura de Matisse, exclamou: “Mas essa mulher tem a barriga verde!” Ao que o pintor respondeu: “Isso não é uma mulher, meu senhor. É um quadro”. Pois bem. Já em suas primeiras imagens, tomadas por uma câmera acoplada ao lado de um carro que entra na favela, fazendo os transeuntes se desviarem e olharem para esse objeto invasor, o filme se apresenta como uma intervenção na realidade, e não uma tentativa 145 de retrato servil. O que se verá a seguir, dizem as imagens, será uma construção cinematográfica, que tem aspectos do real - o morro do Alemão, o prédio da MTV, a rua Augusta, automóveis, computadores e gente de todas as tribos - como elementos de composição. E a composição que Salles escolheu fazer é uma comédia cruel, uma fábula sem moral sobre as fraturas sociais e culturais brasileiras, conduzida por uma narrativa cartunesca, no limite do verossímil, com personagens unidimensionais, à beira da caricatura. Mais que na injustiça social e na opressão de classes, Seja o que Deus quiser! coloca seu foco nos descompassos culturais e de linguagem, nos deslocamentos de sentido que ocorrem quando algo ou alguém de um meio social ingressa em outra esfera - um pouco como acontecia em O invasor, de Beto Brant. A diferença é que Murilo Salles radicaliza o embaralhamento de clichês. Ao sair da favela e adentrar o universo da “nite” paulistana, o pacato e afável PQD (já em si um clichê do sambista gente boa) se transforma à revelia no “negão do comando vermelho”. Uma operação oportunista de marketing em torno da vitimização de PQD é apresentada na TV como “campanha política de solidariedade”. O filme transborda sarcasmo e ironia. Numa cena surpreendente e controvertida, uma senhora aparentemente indefesa (Nicette Bruno, excelente) saca um 38 e mete bala no jovem que supostamente tentava roubar seu carro. Noutra, uma perua que torra seu dinheiro no bingo (Marília Pêra, impagável) regateia com sequestradores o resgate do filho. Passemos ao segundo dogma ignorado por Seja o que Deus quiser! - e, de resto, também por O invasor -, o da catarse. A maioria dos novos filmes brasileiros centrados em problemas sociais acaba por anestesiar as plateias por uma dessas duas vias (se não por ambas): as lágrimas piedosas ou o banho de sangue. Seja pela violência espetacular, seja pela purgação sentimental da culpa, são filmes dos quais o espectador sai “de alma lavada”. De Seja o que Deus quiser! ela sai tão suja quanto entrou. (Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 26.09.2003) 147 És tu, Brasil Uma investigação sobre o que se pode entender como “identidade brasileira” através dos perfis de quatro artistas brasileiros arrojados, cujos trabalhos ganham notoriedade no cenário cultural internacional. Em cena, os processos criativos do músico Carlinhos Brown, do estilista Alexandre Herchcovitch, do artista plástico Tunga e da coreógrafa Deborah Colker. Em seu conjunto, esses quatro perfis revelam atos de produção criativa carregados de traços dessa tal brasilidade. Brasil ∙ 2003 ∙ Betacam ∙ Cor ∙ 110 min Direção de arte Rodrigo Lima, Apavoramento Direção e roteiro Murilo Salles Sound System Projeto Beatriz Jaguaribe, Mauricio Lissovsky, Trilha sonora da abertura Apavoramento Sound Murilo Salles, com a colaboração de João System Ximenes Braga Músicas de Tunga Paulo Vivacqua / Henrique Fotografia e câmera Gu Ramalho, Murilo Drach / Chelpa Ferro / Tom Zé / Pedro Amorim Salles e Janice D’Avila com a participação de Deborah Colker Berna Ceppas e Alexandre Isaac Chueke, Markão e Tijz Van den Donk na Kassin (Trilha Casa) performance Energia da separação / Energia da Carlinhos Brown Carlinhos Brown e Concerto conjunção. para piano, opus 16 de Grieg Montagem final Pedro Amorim Alexandre Herchcovitch Malu Miranda e Pedro Marcelo Moraes montou Tunga; Alexandre Amorim e trilhas dos desfiles Herchcovitch foi montado por Célia Freitas, Produção executiva Suzana Amado Carlinhos Brown por Pedro Amorim e Tina Direção de produção Ana Murgel e Gabriela Saphira; Deborah Colker por Ana Teixeira, José Weeks, assistidas por Jenifer Marques Rubens Hirsh e Edson Mandu. 148 “Sabemos que nenhum país existe só por causa de suas fronteiras. Como todas as nações, o Brasil foi primeiro imaginado, inventado, reinventado, muitas vezes e por muita gente ao longo de nossa história. E esse país imaginado sempre foi, para nós, muito mais verdadeiro do que o país dos heróis da nossa história oficial. Essa questão é que nos leva aos artistas, pois foram eles, principalmente, que cunharam a ‘imaginação que fazemos de nós mesmos’ e ainda são eles que estão dando forma aos ritos em que a brasilidade está sendo reinventada todos os dias. É daí que surge esse nosso projeto. O desejo de olhar com delicadeza e atenção alguns artistas operando seus processos cotidianos de criação. Dá para sentir, nos rituais onde nascem suas obras de arte, as forças da imaginação criando e recriando, em procedimentos que no fundo nos pertencem. Foi assim que surgiu a ideia de um tu, um tu pessoal e autoral, mas que é também um tu coletivo: Tu, Brasil! Foi assim que surgiu: ‘És tu, Brasil!’” Murilo Salles 149 Murilo Salles apresenta faces brasileiras José Geraldo Couto Um documentário sobre a identidade cultural brasileira – tema tão velho quanto a carta de Caminha – poderia descambar para o óbvio. Nas mãos de um cineasta inquieto como Murilo Salles (Como Nascem os Anjos), entretanto, a única coisa óbvia que restou foi o título: És tu, Brasil. Para investigar o que chama de “novas faces da brasilidade”, Salles resolveu retratar quatro artistas brasileiros atuais de expressão internacional: a coreógrafa Deborah Colker, o músico Carlinhos Brown, o artista plástico Tunga e o estilista Alexandre Herchcovitch. Tunga e Colker estão na primeira parte. Salles procura filmar o corpo a corpo de cada um deles com seu trabalho, seus materiais, seu desejo de expressão. No segmento dedicado a Tunga, por exemplo, a voz do artista em off se sobrepõe a imagens de suas obras/performances, uma delas ao ar livre numa floresta brasileira, outra numa antiga capela de Marselha, na França. A câmera de Salles capta cada nuance de luz, a sensualidade das formas e dos movimentos, assim como o tanto de mistificação que envolve o retratado. Ao mostrar um espetáculo de Deborah Colker para a Ópera de Berlim, o cineasta a certa altura divide a tela em duas: numa delas mostra os ensaios; na outra, as mesmas cenas durante a apresentação no teatro. Herchcovitch é flagrado na preparação e nos bastidores de dois desfiles: o São Paulo Fashion Week e a Semana da Moda de Paris. Acompanhamos em cada detalhe a concretização de sua visão da moda como expressão teatral. Brown, por sua vez, apresenta o mundo em que foi criado, o bairro do Candeal, em Salvador, e dialoga com seus mestres no batuque e no candomblé. Há um momento especialmente inspirado: sobre a imagem do músico regendo os tambores de sua timbalada, uma peça de Grieg. O Brasil de Murilo Salles tem muitas caras – e não se envergonha de nenhuma delas. (Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 15.08.2003) 151 Nome próprio Camila tem a escrita como sua grande paixão. Intensa e corajosa, busca criar para si uma existência complexa o suficiente para que possa escrever sobre ela. Sua vida é sua narrativa. Quer a literatura como ato de revelação. Para tal, cria vínculos. Carente, os destrói. Por excesso, apego, paixão. Ela escreve compulsivamente em um blog, que, paradoxalmente, faz com que ela se sinta cada vez mais sozinha. Para Camila, a vida floresce das cicatrizes de seu processo de entrega absoluta e vertiginosa. Brasil ∙ 2007 ∙ HD ∙ Cor ∙ 120min Direção Murilo Salles Produção executiva Flávio Frederico Produtores associados Suzana Villas Boas, Lionel Combecau Roteiro Elena Soarez, Melanie Dimantas, Murilo Salles, baseado no livro Maquina de pinball e em textos publicados no blog de Clara Averbuck Textos escritos e narrados no filme Viviane Mosé Fotografia Fernanda Riscali, Murilo Salles Montagem Vânia Debs Música Sacha Amback Direção de arte Pedro Paulo Souza Figurinos Marina Pamplona Iavelberg Direção de produção Priscila Torres Diretora assistente Marcela Lordy Design gráfico e letreiros Rodrigo Lima, Inez Torres 152 Edição de som Virginia Flores « Melhor Filme e Direção de Arte no Festival de Mixagem Cláudio Valdetaro Gramado 2008 Elenco Leandra Leal, Juliano Cazarré, Munir « Melhor Atriz (Leandra Leal) nos festivais de Kanaan, Reginaldo Faidi, Alex Didier, Martha Gramado (2008), SESC e Cineport (2009), no Nowill, Frank Borges, Fabio Frood, Milhem Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2009) e no Cortaz, David Katz, Norival Rizzo, Rosanne Prêmio Qualidade Brasil (2008). Mulholland, Ricardo Garcia, Paulo Vasconcelos, Alan Medina, Gustavo Machado, Luciana Brites, Ricardo Galli “Quando descobri o livro Máquina de pinball, de Clara Averbuck, achei que a internet pudesse ser o meu tema, pois é um espaço que os brasileiros estão conquistando, fruto de uma nova individualidade que brota nos poros das grandes cidades, sem complexo de nascença, sem problema de afirmação de origem. Uma geração que simplesmente procura seu espaço identitário fora do complexo de vira-lata ou da barbárie. Descobri que o tema da história que procurava era o feminino em sua complexidade, seu transbordamento. Para essa tarefa, com muito esforço e concentração, me tornei a melhor Camila. Foi a forma que encontrei para poder estar no filme, só assim isso ia ganhar sentido e verdade para mim.” Murilo Salles 153 Com a alma nas pontas dos dedos Carlos Alberto Mattos É particular e apreciável a maneira como Murilo Salles tem se inserido no discurso geral do cinema brasileiro desde os anos 1980. Quando começávamos a refletir sobre a ditadura militar como parte do nosso passado, ele retratou a solidão e o vazio de uma nova geração vivendo certa orfandade. Era Nunca fomos tão felizes, um primeiro filme que a gente nunca esquece. No momento em que o governo Collor fodia com a vida brasileira, ele e Sandra Werneck traduziram a situação no curta-protesto Pornografia. Mais adiante, quando apenas se insinuava a onda de violência urbana que assola o cinema brasileiro recente, ele deslocou o ângulo para o imaginário de crianças da favela durante uma ação desastrada. Era Como nascem os anjos, um clássico do gênero. Mesmo no aparentemente menos ambicioso — e muito incompreendido — Seja o que Deus quiser!, Murilo não deixou de surpreender com uma inversão de estereótipos que dizia muito sobre equívocos e obsessões do Brasil atual. A juventude continuava a ser o seu plantel predileto de personagens. E nada mais é que um porre de juventude a sua obra-prima que chega agora às telas. Nome próprio é talvez o filme mais contemporâneo que o cinema brasileiro poderia produzir neste momento. Estamos a muitas milhas de distância tanto dos chavões da violência quanto dos xavecos das historinhas bem comportadas que têm garantido ao filme brasileiro alguns favores do público. Nome próprio disputa plateias com os bons filmes europeus e asiáticos da praça, ou com os melhores quitutes provenientes dos EUA. Isso porque, como poucos outros, troca a cor local pelos tons de um “país” interior, mais recôndito e insondável. Sua ação se passa dentro de uma cabeça, e não é de uma cabeça qualquer. Camila Lopes, filtrada da autobiografia ficcional de Clara Averbuck, é uma criação arrebatadora de Murilo Salles e Leandra Leal. Uma menina com a alma nas pontas dos de- 154 dos e o destino a curto prazo condicionado pelo tempo da conexão discada (estamos em 2001). Algo predadora, dada a barracos, criança e tigresa alternadamente, Camila tenta destilar sua solidão nos encontros de bar, nos copos de vodca e na devora de cigarros, na fantasia de um príncipe online, no corpo-a-corpo com as palavras que espalha pela rede sem esperar retorno nem compensação. Tudo é mar onde ela quer se dissolver. Tudo é vício, paixão e poesia. Ela é a síntese de uma sensibilidade nova, que o cinema brasileiro ainda não tinha conseguido (na verdade, nem procurado) representar. E o desafio brilhantemente vencido por Murilo Salles foi o de tornar palpável diante de nós os sinais dessa sensibilidade. Sua câmera flutua sobre os corpos, acaricia-os ou espreita-os como um olho livre, sem peso. Mas o que esse olho desmaterializado vê é de uma visceralidade transbordante. As unhas raspadas de Camila; sua relação corporal com o set, os objetos e os demais personagens; a exteriorização das frases como textos sobre a tela – tudo isso remete a um movimento no sentido de transformar o sentimento em matéria exposta. Todas as dicotomias que dilaceram e ao mesmo tempo produzem essa Camila que nos é dado conhecer — angústia e hilaridade, decepção e dissipação, virtualidade e fisicalidade — ganham expressão poderosa nesse objeto fílmico singular. Ao final, depois de desnudar-se em tantos sentidos quantos possamos imaginar, Camila se reparte em duas para, quem sabe, se apaziguar. A quebra da identidade é a suprema realização de um desejo de dar-se ao mundo e ao mesmo tempo manter-se coladinha a si mesma. Desconfio que Nome próprio é sobre essa inquietação tão comum em tempos de desmaterialização, interação desenfreada e, contraditoriamente, isolamento cada vez maior. (Publicado originalmente no site Críticos, 12.08.2008) 155 O espetáculo e a delicadeza Um registro de obras de 21 artistas que acompanha o livro Arte brasileira contemporânea – um prelúdio, organizado por Paulo Sergio Duarte e destinado a oferecer uma articulação de informações de especialistas, relacionando as múltiplas manifestações de arte e oferecendo algumas chaves para sua compreensão e fruição. O trabalho é composto por ensaios visuais feitos por Murilo Salles sobre obras desses 21 artistas, envolvendo seus processos criativos e lançando um olhar atento sobre as obras. Brasi ∙ 2008 ∙ HD ∙ Cor ∙ 57 min Obras Hélio Oiticica, Carmela Gross, Iole de Direção Murilo Salles Freitas, Lenora de Barros, Eder Santos, Adriana Curadoria Paulo Sergio Duarte Varejão, Carlos Vergara, Chelpa Ferro, Paulo Vi- Fotografia Murilo Salles, Markão Oliveira, vacqua, Fernanda Gomes, Brígida Baltar, Marce- Léo Bittencourt, Gustavo Moura lo Silveira, José Damasceno, Lucia Koch, Marilá Montagem Silvia Hayashi Dardot, Ernesto Neto, Nuno Ramos, Waltercio Música Sacha Amback Caldas, José Resende, Cildo Meireles, Tunga Locução Julia Lemmertz 156 “Sempre gostei de filmar obras de arte, pois o desafio é perceber a relação entre elas e o espaço que as ampara. Isso requer olhar preciso, exato, que dê conta dessa ‘relação’. É um exercício delicado, pois essa transmutação acaba ressignificando a obra. Portanto é uma relação ética. Uma ‘negociação’ entre o cineasta e a obra de um outro artista. Nesse tipo raro e prazeroso de fazer cinema, desenvolvo uma visualidade puramente escópica, que está presente quando faço um filme ficcional, mas aqui é onde essa intuição se impõe radicalmente. Um desafio maravilhoso.” Murilo Salles 157 Dois polos Paulo Sergio Duarte No livro, afinamos ideias e conceitos para nos aproximar desse terreno muito complexo que se encontra em formação há mais de 50 anos, que é a arte contemporânea. Esta aproximação, no DVD, feita em livres improvisações sobre 21 artistas, possibilita distinguir a arte contemporânea se desenvolvendo entre dois polos: o espetáculo e a delicadeza. No mundo em que a cultura se tornou a commodity por excelência, o espetáculo é visto por muitas pessoas de uma forma negativa. A arte estaria submetida à mercantilização generalizada vigente no mundo de hoje. Não é verdade. As dimensões espetaculares que podem adquirir obras de artistas que preservam uma força crítica e mantêm desafios à sensibilidade comum vão na contramão do universo de comunicação fácil da publicidade. Pelo seu impacto e visibilidade, essas obras de arte nos levam a pensar sobre o que estamos vendo. E como estamos viciados pelo que nos é oferecido pelos meios de informação. De outro lado, outros artistas trabalham no outro polo, o da delicadeza. São obras que passam despercebidas pelo olhar leigo e viciado pela velocidade do mundo da comunicação de massa. Deslocadas para o meio de arte, essas obras nos formam e nos educam, nos despertam para dimensões inusitadas da presença de arte no meio de tanta grosseria e brutalidade da cultura que absorvemos na vida cotidiana. Aí, na delicadeza, podemos flagrar o momento do aparecimento da arte no mundo, seu primeiro instante de vida. E se ela sobrevive, é porque nas brechas, nos interstícios de um sistema muito bem articulado, existe espaço para se explorar um campo simbólico que está aceso em cada um de nós e que não podemos deixar apagar. Entre esses dois polos, o espetáculo e a delicadeza, todo um continente se des- 158 dobra diante de nós. Como não existe uma linguagem e não existe um tradutor, são inúmeras as linguagens desenvolvidas pelos artistas. E a aproximação de cada um produz a sua própria tradução. (Texto de introdução do DVD) 159 Tunga: registros Registro de cinco performances do artista na abertura da Galeria Psicoativa Tunga em Inhotim, em 6 de setembro de 2012. Brasil ∙ 2012 ∙ HD ∙ Cor ∙ 33 min Make up coincidence – a prole do bebê (7 min) Direção Murilo Salles Montagem Vinícius Nascimento Fotografia Luz Guerra, Gu Ramalho, Música Sacha Amback Leo Bittencourt, Markão Produção Fernanda Abreu Experiência física sutil & Inside out, upside down a walk in Venice (10 min) Xifópagas capilares (9 min) Montagem Vicente Kubrusly Montagem Marília Moraes Música, edição de som e mixagem João Jabace Música Sacha Amback Tereza (7 min) Montagem Murilo Salles, Silvia Hayashi Música Arnaldo Antunes Base sonora, edição de som e mixagem João Jabace 160 “São propostas de olhar experiências — um cinema specific. Como filmar cinco performances simultâneas num espaço e tempos determinados. Foi muito difícil, pois as performances aconteciam junto à participação do público na abertura da galeria. No mais, essas ‘construções’ que apresento foram pensadas pós registro — montagem — tentando dar conta da relação da imagem captada com as performances. Existia para nós — cineasta e artista — a preocupação de fazer perceber a imantação proposta pela galeria. Isso foi construído em Xifópagas capilares. É sempre muito enriquecedora e formadora essa relação da imagem cinematográfica com as performances do Tunga. Um prazer e um desafio. Enormes.” Murilo Salles 161 Aprendi a jogar com você A luta e o empenho do DJ Duda e de sua esposa, a cantora Milka Reis, para transformar o sonho de ‘estourar’ uma música em realidade. Um filme sobre como viver de arte na periferia dos grandes centros culturais. O dia a dia dessa família de Samambaia, cidade-satélite de Brasília, se desdobrando para dar conta da sobrevivência. Salta à tela a performance de um saber bem brasileiro. O documentário integra o projeto És tu, Brasil II. Brasil ∙ 2013 ∙ HD ∙ Cor ∙ 87 min Direção e produção Murilo Salles Projeto És tu, Brasil II Beatriz Jaguaribe, Maurício Lissovsky, Murilo Salles Fotografia, câmera e som direto André Lavaquial, Leo Bittencourt Roteiro Eva Randolph, Murilo Salles Montagem Eva Randolph Produção executiva Mariana Vianna, Tainá Prado Edição de Som Rodrigo Sacic Mixagem Vinícius Leal 162 “Depois de quase dois anos de pesquisas, em Samambaia, na periferia de Brasília, encontramos o DJ Duda e sua esposa Milka Reis. Um casal que se joga, com a cara e a coragem, na luta para fazer acontecer uma música que transforme suas vidas. Nem Duda, nem Milka têm empregos que lhes deem sustentação. O que percebemos é uma disponibilidade/coragem para arriscar e romper barreiras em busca do sucesso. Somos surpreendidos por seus expedientes transgressores, limítrofes, mas que transbordam verdades de quem vive no mundo onde a ‘viração’ é a lei, regida pela crueza do econômico. Quem somos nós para julgá-los? Sobre o procedimento documental: o filme é tributário da tradição do cinema-direto, e nisso se distancia de um dos paradigmas do documentário brasileiro, que é a entrevista, com a intervenção em cena do realizador. Nosso filme foi realizado com um procedimento de direção que vem da experiência de Dziga Vertov. Não estive presente em nenhuma das filmagens. Minha atuação foi na escolha dos personagens e na conceituação de filmar sem julgamentos apriorísticos, para depois, sem estar envolvido com o material, descobrir o filme que está ali contido. Para tal contamos com a participação dos fotógrafos e codiretores Leonardo Bittencourt e André Lavaquial, mas principalmente da montadora Eva Randolph, com quem durante quase dois anos fiquei tentando descobrir como ficcionalizar essa história. Fazer documentários é a melhor forma de aprender a fazer ficção. Personagens contundentes, inimagináveis, e que, principalmente, não controlamos. O que se impõe, então, é o desafio de construir as narrativas. O maravilhoso desafio do cinema.” Murilo Salles 163 Passarinho lá de Nova Iorque Autor do filme de enorme sucesso popular Ai que vida!, o maranhense Cícero Filho luta para finalizar seu novo trabalho, o romance dramático Flor de abril. Ele encara a burocracia, a demora dos patrocinadores e a crise com sua atriz para refilmar uma sequência. Um documentário que narra o sonho de um cineasta. E integra o projeto de outro cineasta, És tu, Brasil II. Brasil ∙ 2014 ∙ HD ∙ Cor ∙ 89 min Direção, roteiro e produção Murilo Salles Projeto És tu, Brasil II Beatriz Jaguaribe, Maurício Lissovsky, Murilo Salles Diretor assistente, fotografia, câmera e som direto Leo Bittencourt Montagem Murilo Salles, Eva Randolph Pesquisa de personagem Eva Randolph, André Lavaquial Edição de som Rodrigo Sacic Mixagem Vinicius Leal 164 “Passarinho é um documentário sobre o esforço de um cineasta para conseguir refilmar uma cena. Sobre sua paixão, o cinema. No decorrer da narrativa percebemos que o procedimento de Cícero é criar ‘famílias’ por onde passa e atua. Essas famílias são a sustentação de seu processo de produção criativa. Na montagem, descobrimos, por tanto olhar, novas camadas de significação de que tentamos dar conta, os verdadeiros afetos que ligam Cícero a suas famílias.” Murilo Salles 165 Cícero Filho, um diretor que chora e resiste Luiz Carlos Merten Depois de Aprendi a jogar com você, que apresentou na Semana dos Realizadores, no Rio, Murilo Salles trouxe à Mostra de Tiradentes seu novo documentário, Passarinho lá de Nova Iorque. O diálogo é total com o filme anterior. Se em Aprendi a jogar com você Salles traçou o perfil de um animador cultural à margem do sistema formal de entretenimento, ele apresenta agora um cineasta totalmente fora do eixo. Cícero Filho, do interior do Maranhão, é um artesão do seu oficio, mas sonha com o profissionalismo. Filma em digital, exibe seus filmes — cobrando ingresso — em escolas. E como Woody Allen, ele acredita nos retakes. Toda a luta de Cícero, enquanto finaliza o novo filme — que Saltes não mostra —, é para refazer uma cena com a qual não ficou satisfeito. É uma cena intensa no estrutura do filme que não vemos. Uma mãe que chora o filho morto. Câmera na mão, olho no visor, Cícero chora acompanhando a cena. O diretor que chora não é um personagem estranho nessa 17ª Mostra de Tiradentes. Passarinho lá de Nova Iorque passou no domingo à noite. À tarde, o evento exibiu Amador, de Cristiano Burlan, em que outro cineasta também chora. Burlan ficcionaliza sua dor. O título, Amador, não é casual. O diretor do admirável Mataram meu irmão terminou com a mulher, que também era sua produtora. E agora procura um rosto feminino para outro filme. Na cena em que chora, a câmera executa um movimento e capta outra câmera que, sozinha, sem operador, continua filmando (gravando?). Tiradentes apresenta este ano uma programação inteiramente digitalizada. Filmes feitos e projetados digitalmente. Numa cena de Amador, o diretor do filme dentro do filme fala com o projecionista. Nesta nova economia do cinema, o projecionista vai desaparecer. Ele projeta suas últimas películas. A luz do projetor, incidindo na película que roda, lança uma imagem no chão. Cristiano filma aquilo, enquanto o projecionista diz que aquela imagem no chão também vai acabar. 166 O projecionista, o rebatimento do filme no chão — além de emocionante, a cena é exemplar dentro dessa transição que Tiradentes celebra. É uma outra forma de focar a mudança da película para o digital. Passarinho já pertence a essa outra economia do cinema. O digital, a internet, eis o que torna o fenômeno Cícero Filho possível. É um personagem maravilhoso, que permite a Murilo Saltes levar adiante sua reflexão sobre o que é, afinal, a brasilidade. Salles é um diretor político, um autor. Cícero é ele e, no personagem, Salles celebra a resistência, a capacidade que o cinema brasileiro tem de se (re)inventar. Qual é a vida desse cinema de Cícero, de Salles? Murilo diz que o importante é fazer. Os filmes encontrarão seu espaço. É belo, é romântico, mas existe outra questão. Hollywood domina os mercados. Não vai desistir. As salas terão de continuar existindo, a pirataria será combatida, porque o dinheiro vem das milhares (milhões?) de salas e do mercado legal de home. Cícero, que quer se profissionalizar, continuará sendo um amador. Amando a dor? (Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 28.01.2014) 167 O fim e os meios Paulo e Cris são um jovem casal que se muda para Brasília a fim de tentar resolver os impasses da relação. Ela é jornalista, ele é publicitário. A campanha eleitoral de um senador da república desencadeia um jogo de poder em que a mídia e a política convivem de forma perigosa com os desejos e as fraquezas da relação entre homem e mulher. As raízes do Brasil são expostas através dos sentimentos daqueles que vivem dentro do furacão do poder. Brasil ∙ 2014 ∙ HD ∙ Cor ∙ 105 min Direção Murilo Salles Produção Júlia Moraes Roteiro Murilo Salles, Fellipe Barbosa Fotografia Janice d`Ávila Montagem Karen Harley Trilha sonora Sacha Amback Elenco Cintia Rosa, Pedro Brício, Marco Ricca, Hermila Guedes, Emiliano Queiroz, Elisa Lucinda, Narciza Leão, Tessy Callado, Murilo Grossi, Fernanda Rocha e Sérgio Sartório. « Prêmio Redentor de melhor roteiro no Festival do Rio 2014 168 “O fim e os meios nasce de um desconforto com o Brasil, de como se configura a crise ética que nos atravessa. A corrupção no Brasil é uma endemia, uma doença. Queríamos perceber a forma como a corrupção se estabelece, corroendo as pessoas e o país. Não existe mais, a essas alturas do campeonato, a necessidade de uma busca pela ‘gênese’ da corrupção no Brasil. Ela virou uma ‘forma’. Todos nós, de alguma maneira, e com envolvimentos diversos, somos, no mínimo, coniventes e até mesmo cúmplices da corrupção. Não faz muito sentido perder tempo com um filme-denúncia. A corrupção está nas páginas dos jornais absolutamente todos os dias. O filme tenta agir na epiderme, contando a história de uma relação implausível entre duas pessoas, forjada por uma gravidez não desejada, que encontra na decisão de mudar para Brasília a solução para seus impasses. A partir daí começa-se a perceber nossa capacidade adaptativa, a nossa conhecida acomodação às situações de conflito. O filme torna-se fluido, impalpável. Não estabelece com clareza com quem identificar-se. Melhor, o filme suspende a identificação. Esse desconforto serve para sublinhar como somos implicados em tudo. Talvez esteja aí uma possível abordagem desse tema tão esgarçado. Com a corrupção não há vencedores nem vencidos, ela destrói, silenciosa e lentamente, a tudo e a todos. O Poder reina sobre aquilo que ele consegue interiorizar. O fim e os meios é um filme-impasse. É a tentativa de fazer com que ‘imagens de pensamento’ fiquem no inconsciente, nos incomodando, nos questionando.” Murilo Salles 169 Brasília, labirinto sem saída? José Geraldo Couto Numa semana trepidante na política e repleta de estreias nos cinemas, destaco aqui um filme tão oportuno quanto incômodo: O fim e os meios, de Murilo Salles. Aliás, num gesto inédito, o diretor está lançando simultaneamente dois outros trabalhos: os documentários Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova Iorque, ambos sobre artistas populares (um DJ, uma cantora, um cineasta independente) tentando “se virar” no Brasil atual. Mas, se a terra treme em Brasília, o filme da hora é O fim e os meios, que acompanha os percalços de dois peixes miúdos — uma jornalista e um publicitário — no mar de tubarões do poder político e econômico. Não é um filme-denúncia, não toma partido desta ou daquela facção, não moraliza: simplesmente apresenta dois personagens “comuns” tragados pelo olho do furacão. Nas bordas da engrenagem São eles o jovem publicitário carioca Paulo Henrique (Pedro Brício) e a jornalista Cris (Cíntia Rosa), que só passam a formar um casal depois que nasce a filha deles, fruto de uma relação casual. Eles vão morar em Brasília quando Paulo é convidado a trabalhar de “gestor de imagem” para um velho senador (Emiliano Queiroz) e Cris se transfere para a sucursal brasiliense do seu jornal. Ambos falam em topar um “desafio”, uma das palavras mais faladas no filme, quase um eufemismo para “vender a alma, mas só um pouquinho”. Não cabe aqui entrar em detalhes do enredo. O que importa é que o jovem casal vai transitar pelas bordas da perversa engrenagem do poder — e sofrer os efeitos psicológicos, afetivos e morais disso. Dinheiro, intrigas, confusão entre o público e o privado, promiscuidade entre imprensa e poder, em suma tudo isso que conhecemos dos livros ou de ouvir falar, só que aqui mostrado “por dentro”, vivido por “gente como a gente”. 170 A maneira como Murilo Salles encena e filma esse drama não deixa espaço para o maniqueísmo, a identificação com um dos lados, a catarse. Sob um céu permanentemente carregado, uma paleta de cores reduzida quase ao preto e branco (até mesmo quando se filma uma praia paradisíaca do Nordeste), há uma predominância dos planos gerais, em que os personagens aparecem pequenos, como que oprimidos pelo espaço que os engloba. Poucos closes, recusa sistemática do campo/contracampo, raros momentos de câmera subjetiva, quase nenhuma música. Ou seja, nada dos recursos habituais que, na decupagem clássica, induzem à identificação emocional do espectador com este ou aquele personagem. Desconforto Tudo é desconforto, como costuma acontecer no cinema de Murilo Salles, em que ninguém é totalmente virtuoso ou totalmente canalha. Inútil tentar buscar aqui referências a personagens individuais da nossa política. Não é um roman à clef. O senador que contrata Paulo Henrique tem um pouco de Sarney, um pouco de ACM, mas vai além desses modelos: é, sim, um coronel nordestino arquetípico, um “faraó embalsamado” da nossa sociedade oligárquica, mas ao mesmo tempo um personagem de carne e osso, que não abre a boca durante todo o filme, mas transmite pelo olhar uma gama enorme de ideias e sentimentos. É quase uma esfinge que nos desafia à decifração. (Diga-se entre parênteses: que ator extraordinário esse Emiliano Queiroz!) Oriundo da direção de fotografia, Murilo Salles é um cineasta essencialmente visual, isto é, alguém que sabe que o cinema, mais do que com ideias e palavras, se faz com imagens e sons (o que inclui as palavras, mas não se resume a elas). Parece óbvio, mas quando examinamos nossa filmografia política vemos que há, em geral, muito discurso e pouco cinema. E O fim e os meios, filme em que a primeira fala só surge depois de dez minutos (e ainda assim dirigida a um cachorro!), está repleto de imagens fortes e originais: um homem escondido numa laje na cobertura de um prédio em Copacabana, 171 tomando banho na caixa d’água, mijando numa garrafa de plástico ou procurando um canto onde o sinal da internet seja melhor; fogo consumindo malas de dinheiro numa estrada de terra em meio a um canavial; dois casais conversando em volta da mesa numa mansão em Brasília, com o espaço fragmentado e duplicado por espelhos. Ao controle absoluto da profundidade de foco soma-se uma “profundidade de som” que nada tem de naturalista ou aleatória. Há, por exemplo, uma cena em que Cris conversa com uma possível “fonte” para uma matéria. Os dois estão bem distantes no fundo do quadro, mas ouvimos perfeitamente a conversa, quase como se eles estivessem “grampeados” por aparelhos de escuta. O procedimento nos estimula a imaginar o teor das conversas ao pé do ouvido que vemos à distância nas reportagens televisivas nos espaços do poder em Brasília. Herança patriarcal A personagem Cris — jovem, bela, inteligente, altiva, negra — condensa, de certa forma, as principais tensões em curso. Tudo passa por ela, ou antes, a atravessa: o racismo, o machismo, a exploração profissional, toda a herança patriarcal da nossa sociedade. O que provavelmente incomodará muita gente é o fato de que ela não é uma vítima e tampouco uma heroína: é uma mulher plena de fraquezas e contradições. Sua atitude ambivalente diante do homem que a agride sexualmente talvez gere revolta entre feministas mais afoitas. A questão é que ela não está lá para representar a luta das mulheres, mas o drama de uma única mulher, ela própria. Mais vale, a meu ver, atentar para a sutileza com que é filmada (ou melhor, omitida) a cena da violência sexual propriamente dita. Numa elipse visual, a câmera percorre, em contre-plongée, escadas, forros e tetos da casa, enquanto ouvimos os sons abafados e distantes do casal no ato. Os olhares silenciosos das empregadas mostram que elas também ouviram, e isso é o que importa. Mais do que na frase grosseira do violentador (Marco Ricca) — “Seu marido te cha- 172 ma de ‘neguinha gostosa’?” —, nosso racismo velado, naturalizado, se revela quando um entregador toca a campainha e diz à protagonista, assumindo que ela seja a empregada: “Entrega para a dona Cris”. “Eu sou a dona Cris”, ela responde, ofendida. (Publicado originalmente no blog do Instituto Moreira Salles, 04.12.2015) 174 175 Alguns filmes fotografados por Murilo 177 Carro de bois Mesmo que superado por modernas técnicas, o carro de bois ainda faz parte das paisagens do sertão, indo aonde o caminhão não vai, numa mistura de utilidade e poesia, e transportando o mais variado tipo de carga. O filme mostra como ele é feito e o artesão que o fabrica. Último filme de Humberto Mauro e sua única experiência com o filme colorido. Brasil ∙ 1974 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 10 min Montagem Sérgio Santos, Gustavo Praça Direção Humberto Mauro Narração Hugo Carvana Fotografia Murilo Salles Música Walter de Souza 178 Lição de amor São Paulo, anos 20. Felisberto, criador de gado e pequeno industrial, contrata os serviços de uma governanta alemã para iniciar seu filho adolescente nas “coisas da vida”, temendo as experiências que ele possa viver fora de casa. Carlos, adolescente perfeitamente normal, a princípio prefere o futebol de rua às aulas de alemão e piano, mas acaba envolvido por Elza, a “Fräulein”, sem saber ainda exatamente o que eram as coisas que passara a sentir. Brasil ∙ 1975 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 80 min Direção Eduardo Escorel Roteiro Eduardo Escorel, Eduardo Coutinho, baseado no livro Amar, verbo intransitivo, de Mario de Andrade Produção Luiz Carlos Barreto, Eduardo Escorel Fotografia Murilo Salles Montagem Gilberto Santeiro Música Francis Hime Direção de arte Anísio Medeiros Elenco Lilian Lemmertz, Rogério Fróes, Irene Ravache, Marcos Taquechel « Prêmio Governador de Estado de São Paulo para melhor fotografia, 1976 179 Árido movie Um repórter de TV que mora em São Paulo retorna à sua cidade-natal, no interior do Nordeste, para o enterro do pai, que foi assassinado. No caminho, conhece uma videomaker que investiga a questão da água no sertão. Ao chegar a seu destino, ele encontra uma parte da família que ainda não conhecia, e que lhe cobra a vingança da morte do pai. Brasil ∙ 2005 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 115 min Direção Lírio Ferreira Roteiro Hilton Lacerda, Eduardo Nunes, Sérgio Oliveira, Lírio Ferreira Produção Murilo Salles, Lírio Ferreira Fotografia Murilo Salles Montagem Vania Debs Música Otto, Berna Ceppas, Kassin, Pupilo Elenco Guilherme Weber, Giulia Gam, José Dumont, Luiz Carlos Vasconcelos, Mariana Lima, Selton Mello, Matheus Nachtergaele, Gustavo Falcão, José Celso Martinez Correa « Prêmios de Melhor Filme, Diretor, Ator Coadjuvante (Selton Mello), Fotografia, Edição e Prêmio da Crítica no Cine PE 2006 180 181 183 Biofilmografia 1950, 2 de outubro Nasce Murilo Navarro de Salles no Rio de Janeiro 1958 Frequenta seriados infantis e animações na Cinelândia com o avô e se apaixona pelo seriado Tom & Jerry 1964 Assiste a Oito e meio de Fellini e muda seu olhar sobre o cinema 1966 Começa a fazer fotografia consistentemente, montando laboratório amador em casa 1967 Frequenta a Cinemateca do MAM, o Museu da Imagem e do Som e pontos de encontro do pessoal do Cinema Novo. Nos porões da Difilm, levado por Bruno Barreto, acompanha os estudos sobre o cinema de Eisenstein feitos por Glauber Rocha, Leon Hirszman, José Carlos Avellar e outros 1968 Passa a frequentar o Festival JB-Mesbla de Cinema Amador 184 1969 Premissa menor, Primatas e Amém Dirige os primeiros curtas realizados para o Festival JB-Mesbla. Ganha uma menção honrosa por Amém Divina maravilhosa Curta: direção de fotografia 1970 ABC montessoriano Curta documentário: direção, fotografia, montagem 2º Prêmio de Melhor Filme no VI Festival Brasileiro de Cinema Amador Este silêncio pode significar muita coisa Curta: direção de fotografia e montagem Inicia o curso de Comunicação na ECO da UFRJ 1971 Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo Curta documentário: direção com Ronaldo Foster, fotografia e montagem O Barão Otelo no barato dos bilhões Longa-metragem: assistente de câmera e fotografia adicional A bolsa e a vida Curta: direção de fotografia Funda a produtora Corisco Filmes com Sergio Santos, Roberto Moura, Valeria Mauro e Monica Segretto 1972 Filmagem de Tati, a garota, o primeiro longa como diretor de fotografia 185 Coisas do arco da velha Curta documentário da Corisco Filmes: co-direção de fotografia e montagem Sai dessa, Exu Curta documentário da Corisco Filmes: direção de fotografia Emboscada Curta: direção de fotografia Lira paulistana Curta: direção de fotografia 1973 Um edifício chamado 200 Longa-metragem: direção de fotografia Chega de demanda – Cartola Curta documentário da Corisco Filmes: direção de fotografia 186 Ataulfo Alves Curta documentário: direção de fotografia Augusto dos Anjos Curta documentário: direção de fotografia Relação de visita feita a fortificações portuguesas do litoral nordeste do Brasil Curta documentário: direção de fotografia Filmagem de A estrela sobe Longa-metragem: direção de fotografia Gradua-se em Teoria da Informação pela ECO-UFRJ 1974 Filmagem de Lição de amor Longa-metragem: direção de fotografia Carro de bois Curta ensaístico: direção de fotografia 187 Antonio Maria Curta documentário: direção de fotografia Noel Nutels Curta documentário: direção de fotografia Tiradentes-Portinari Curta documentário: direção de fotografia 1975 Filmagem de Dona Flor e seu dois maridos Longa-metragem: direção de fotografia 1976 Viaja para uma estada de um ano na Europa 1977 Vai para Moçambique e atua como consultor técnico e professor no Instituto Nacional de Cinema, em Maputo, por dois anos. 1978 Estas são as armas Longa documentário: direção e montagem 1980 Cabaret mineiro Longa-metragem: direção de fotografia 188 1981 Eu te amo Longa-metragem: direção de fotografia O beijo no asfalto Longa-metragem: direção de fotografia Filmagem do túnel/Toro Parte integrante da Escultura Ão do artista Tunga 1982 Tabu Longa-metragem: direção de fotografia Tensão no Rio Longa metragem: direção de fotografia parcial 1981 a 1990 Dirige e fotografa filmes publicitários para diversas produtoras do Rio e São Paulo. 189 1984 Nunca fomos tão felizes Primeiro longa de ficção como diretor Sérgio Camargo fevereiro 1984 Vídeo para a RioArte: direção 1986 Faca de dois gumes Longa-metragem: direção 1987 Cria a Imagine Cinema Produtora de filmes publicitários que toca até o ano de 1999 1992 Pornografia Curta: direção com Sandra Werneck Cria a produtora Cinema Brasil Digital para concorrer ao edital do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, que vence com o roteiro de “Despertar dos Anjos”, mais tarde filmado com o título Como nascem os anjos 1994 Todos os corações do mundo Longa documentário: direção 1996 Como nascem os anjos Longa-metragem: direção 190 1998 Magnifications Intervenção/instalação na exposição Fotogramas: arte e cinema na Marieluise Hessel Collection 2002 Seja o que Deus quiser! Longa-metragem: direção 2003 És tu, Brasil Longa documentário: direção e fotografia 2004 Árido movie Longa-metragem: direção de fotografia e produção 191 2005 Estereofonia Videoinstalação a partir de obras de Daniel Senise: direção e fotografia 2007 Nome próprio Longa-metragem: direção, co-fotografia e câmera 2008 O espetáculo e a delicadeza /Arte brasileira contemporânea - um prelúdio (DVD): direção e fotografia 2013 Registro de cinco performances de Tunga em Inhotim (vídeo): direção 192 2010/2013 Aprendi a jogar com você Longa documentário: direção 2011/2014 O Fim e os meios Longa-metragem: direção 2012/2014 Passarinho lá de Nova Iorque Longa documentário: direção 2016 Filma novo documentário sobre a Baía de Guanabara. 194 195 196 Índice de fotos Capa Filmagem de Cabaret Mineiro. Foto: Inês de Teves Contracapa Filmagem de Nunca fomos tão felizes. Foto: Vera Bungarten Pág. 4 No set de Eu te amo. Foto: Vera Bungarten Págs. 8 e 9 Com Marieta Severo no set de Faca de dois gumes. Foto: Maritza Caneca Pág. 10 Silvio Guindane em Como nascem os anjos. Foto: Estevam Avellar Pág. 13 Leandra Leal em Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes Pág. 16 Com Bruno Barreto no set de Esse silêncio pode significar muita coisa Pág. 28 Com Lilian Lemmertz e Irene Ravache nas filmagens de Lição de amor. Foto: Ruth Toledo Pág. 42 Filmagem de Árido movie. Foto: Gilvan Barreto Pág. 50 Fachada do cinema Paissandu nos anos 1960 Pág. 60 Cícero Filho em Passarinho lá de Nova Iorque. Frames: Leonardo Bittencourt Pág. 68 Paulo José em Faca de dois gumes. Foto: Maritza Caneco Pág. 73 Rosane Mullholand e Leandra Leal em Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes Pág. 74 Claudio Marzo e Roberto Bataglin em Nunca fomos tão felizes / Paulo José em Faca de dois gumes. Frames: José Tadeu Ribeiro Pág. 80 Claudio Marzo e Roberto Bataglin em Nunca fomos tão felizes. Foto: Vera Bungarten / Caio Junqueira, Débora Lamm e Rocco Pitanga em Seja o que Deus quiser!. Foto: Ching C. Wang Pág. 89 Filmagem da instalação Através, de Cildo Meirelles, para O espetáculo e a delicadeza. Foto: Leonardo Bittencourt Pág. 92 Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo. Frames: Murilo Salles e Ronaldo Foster Pág. 98 Com Claudio Marzo e Roberto Bataglin no set de Nunca fomos tão felizes. Foto: Vera Bungarten Pág. 122 Equipe de Todos os corações do mundo no gramado do Estádio Rose Bowl logo após o Brasil se sagrar tetracampeão. Foto: Walter Carvalho Pág. 128 Com Larry Pine no set de Como nascem os anjos. Fotos: Estevam Avellar 197 Pág. 133 Priscilla Assum em Como nascem os anjos. Foto: Estevam Avellar Pág. 134 Silvio Guindane e Priscilla Assum em Como nascem os anjos. Foto: Estevam Avellar Pág. 143 Rocco Pitanga e Caio Junqueira em Seja o que Deus quiser! Foto: Ching C. Wang Pág. 146 Alexandre Herchcovitch, Carlinhos Brown, Tunga e Deborah Colker em És tu, Brasil. Frames: Murilo Salles e Gu Ramalho Pág. 150 Leandra Leal em Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes Pág. 156 Filmagem de O espetáculo e a delicadeza. Foto: Leonardo Bittencourt Pág. 160 Ão, instalação de Tunga na Galeria Psicoativa em Inhotim. Foto: Murilo Salles Pág. 173 Marco Ricca, Cíntia Rosa e Pedro Brício em O fim e os meios. Frames: Janice d’Ávila Pág. 176 Filmagem de Carro de bois. Foto: Ruth Toledo Págs. 180 e 181 Com Geraldo Tolentino e Roque Araújo nas filmagens de A estrela sobe. Foto: Euclydes Marinho Pág. 182 Com a câmera Arri II no set de Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo. Foto: Ronaldo Foster Pág. 185 Com Dina Sfat, Hugo Carvana e Bruno Barreto no set de Tati, a garota. Foto: Kunka Pág. 186 Com Humberto Mauro e Sérgio Santos nas filmagens de Carro de bois. Foto: Ruth Toledo Pág. 188 Caetano Veloso e Antonio Cícero em Tabu. Foto: Lita Cerqueira Pág. 190 Selton Mello, Mariana Lima e Suyane Moreira em Árido movie. Foto: Gilvan Barreto Pág. 191 Set de filmagem de Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes Pág. 193 Autorretrato no set de Dona Flor e seus dois maridos Págs. 194 e 195 Com José Wilker, Bruno Barreto e Sonia Braga no set de Dona Flor e seus dois maridos. Foto: Leonardo Gandelman Pág. 201 Set de filmagem de Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes 198 Murilo Salles dedica esta mostra à memória do querido amigo, companheiro e mestre José Carlos Avellar. Agradecimento Especial Murilo Salles Agradecimentos Jurandir Freire Costa Antonio Laurindo Leandro Saraiva Artur Xexéo Lúcia Nagib Bernardo Carvalho Lucy Barreto Claudia Duarte Luiz Carlos Barreto Charly - Charleston Bubble Lounge Luiz Carlos Merten Christiane Pereira Luiz Zanin Daniella Guimarães Marcio Lima Eduardo Santana Toledo Maria Cristina Cabral Editora 34 / Nina Schipper Maria do Rosário Caetano Frederico Guedes Octávio Bezerra Gabi Moscardini Paula Barreto Glória Ferreira Paulo Henrique Veloso Hernani Hefner Renata Boldrini Ismail Xavier Rosane Nicolau Ivana Bentes Rosângela Sodré Joana Nogueira Lima Sandra Werneck João Vinícius Saraiva Suzana Pereira Lima José Carlos Avellar (in memoriam) Vivianne Matesco José Geraldo Couto Walter Carvalho 199 CURADORIA Mariana Bezerra COORDENAÇÃO GERAL & PRODUÇÃO Claudia Oliveira & Mariana Bezerra PRODUÇÃO EXECUTIVA Breno Lira Gomes ASSISTENTE DE PRODUÇÃO Bianca Borges marketing Daniela Barbosa WEB DESIGNER Fernando Alvarez COORDENAÇÃO DE REDES SOCIAIS Bianca Borges MONITORIA Yasmin Cavalcanti & Urion Castilho ALIMENTAÇÃO Silvia Nascimento COORDENAÇÃO EDITORIAL Carlos Alberto Mattos & Murilo Salles PROJETO GRÁFICO Guilherme Lopes Moura VINHETA Fernanda Teixeira ASSESSORIA DE IMPRENSA Claudia Oliveira REGISTRO FOTOGRÁFICO E VIDEOGRÁFICO Miguel Pinheiro Crédito fotos: acervo Murilo Salles apoio 19 a 31 de julho de 2016 CAIXA Cultural Rio de Janeiro Cinema 1 www.caixacultural.gov.br Av. Almirante Barroso, 25, Centro Baixe o aplicativo CAIXA Cultural facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro Tel: 21 3980-3815 www.mostramurilosalles.com.br R$ 4,00 (inteira) e R$ 2,00 (meia entrada) www.facebook.com/ocinemademurilosalles Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento. 200 Este catálogo foi composto com a família tipográfica Helvetica Neue, o miolo foi impresso em papel couché matte 150g/m2, e a capa em papel Supremo Duo Design 300g/m2 na Gráfica Stamppa.