Crônicas - Livro - Artistas Gaúchos
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Crônicas - Livro - Artistas Gaúchos
Scyla Bertoja Crônicas ® 1ª Edição/2005 EDITORA CRÉDITOS Capa: Editora Ottoni Revisão Ortográfica: Pela autora Ficha Catalográfica: B461c Bertoja, Scyla. Crônicas / Scyla Bertoja. -- Itu : Ottoni Editora, 2005. 126 p. ; 21,5 cm. ISBN 85-7464-186-3 1. Crônica brasileira. I. Título. CDD 869.985 Ficha Catalográfica elaborada por Maria Cristina Monteiro Tasca – CRB 8º 5803 Composição e Impressão: Rua Garcia Moreno, 55 – Centro – CEP 13300-095 – ITU-SP Fones/Fax: (0xx11) 4022-5309 – 4022-5312 – 4023-0197 www.ottonieditora.com.br – e-mail: [email protected] Apresentação Ler Scyla é entrar no mundo da poesia, do romance, da literatura, da filosofia. Suas crônicas transgridem. No envolvimento de pensarmos o fato, serpenteamos por informações seculares, cultura milenar, devaneio. A atemporalidade de suas crônicas fazem-nas permanentes, e aí se aproximam da arte. Ler Scyla é apaixonar-se. É enriquecer-se. É vê-la com a simplicidade de quem assim se define: Descobri que às vezes sou Dom Quixote, acreditando em sonhos e ilusões, confirmando a opinião dos que me vêem crédula e ingênua. (Decifrando a mensagem da arte – p. 30) Ler Scyla é, sobretudo, desestabilizar conceitos. Alzira Collares Pedagoga AO LEITOR Por que escrevo Crônicas? Seria do meu estilo enfocar primeiramente um assunto qualquer, produzindo um link que levaria à resposta da pergunta título, ao final do texto. Normalmente, é assim que escrevo. Mas, desta vez, quero dar as respostas já no início da conversa. Quero ser direta e clara para com o leitor. Escrevo crônicas simplesmente porque um dia escrevi poesia. E um dos meus poemas foi parar em Paris, na telinha do computador do escritor, poeta, tradutor e editor de poesia FERNANDO OLIVEIRA. Ele leu, gostou e deu-me a chance de publicar poemas num dos espaços do seu site, O DONO DA LOJA. Ele me respeitou como poeta. Acreditou em mim. E as crônicas? O que têm a ver com isso? – Tudo. Fernando Oliveira, logo a seguir, convidou-me a assinar uma coluna como cronista de seu JORNAL ECOS (do mundo lusófono), eletrônico, quinzenal. Lá há cronistas de todos os cantos do globo terrestre onde se fale a Língua Portuguesa. Mas Fernando não estava sozinho nessa sua cruzada de divulgação de literatura no idioma luso. Tinha e tem a seu lado a sua brilhante e incansável co-owner VÂNIA MOREIRA DINIZ, escritora, poeta, humanista. E Vânia possui vários espaços eletrônicos de sucesso, entre os quais o VMD-NASCENTE, com atualização semanal. Resultado: Fui honrada com o convite de Vânia que me ofereceu uma coluna para publicar minhas crônicas no VMD. Bem, depois disso, foi só paixão, emoção, enlevo. E eu, que estava tentando há algum tempo, escrever contos, descobri que o meu habitat natural eram as crônicas. E as escrevo com tanto prazer, que, espero, transmitam ao leitor um pouco deste transe que me acomete sempre, a qualquer momento em que inicio um novo texto, por despretensioso que ele possa ser. Amo as palavras, os textos, a Língua Portuguesa. Mergulho prazerosamente na tradução, a meu modo, da observação que faço da vida, das pessoas e das coisas. Exponho-me de corpo e alma, oferecendo ao leitor a minha verdade. E se ao menos um deles com ela se identificar, se divertir, se emocionar, terei cumprido a minha finalidade como cronista. Um abraço da Scyla. Scyla Bertoja Índice Antes que o mundo acabe ................................................................ A batalha perdida (ou não) ................................................................ Açorianos .......................................................................................... Ao pé da letra ................................................................................... Iemanjá .............................................................................................. Carta a um cronista amigo ................................................................ De repente você fica só .................................................................... Desabafo ........................................................................................... Domingo no brique ............................................................................ Decifrando a mensagem da arte ...................................................... Observações bem humoradas sobre o esquema Lupiciniano ......... Inexorável ........................................................................................... Intertextualidades e curiosidades sobre temas recorrentes ............. Os pastéis ......................................................................................... O panetone ........................................................................................ Rolo compressor ............................................................................... Os frutos da insônia .......................................................................... Patropi ............................................................................................... Campanhas ....................................................................................... Busca incessante .............................................................................. A primeira vez é inesquecível ........................................................... Além do limite do suportável ............................................................ A propósito de vôos .......................................................................... Camilla .............................................................................................. Chattare ............................................................................................. Pensadores ........................................................................................ Descobri que sou flor ........................................................................ Ela quer se casar .............................................................................. Fazer literatura ................................................................................... O fantasma da Ópera ....................................................................... Secretária desmemoriada ................................................................. Tudo acaba em texto ......................................................................... Memória ............................................................................................ Amigos .............................................................................................. O número Um ................................................................................... A hora do sapo .................................................................................. 09 11 13 15 17 19 22 25 28 30 32 34 37 39 41 43 45 48 51 53 56 60 63 65 67 69 71 73 75 79 81 83 86 88 90 92 Deuses infiéis Deusas vingativas ...................................................... Evolução zero .................................................................................... Graças alcançadas ............................................................................ O homem do piano ........................................................................... O mar não era importante ................................................................. O triste fim das esperanças ............................................................. Tarantella com polenta ...................................................................... A primeira vez é inesquecível II ......................................................... Bolha ................................................................................................. Proporções ........................................................................................ Vou sair nua na revista ...................................................................... Achados e perdidos .......................................................................... Loteria da violência no Novo Oeste ................................................... 96 98 102 104 106 109 112 115 117 119 121 123 125 Antes que o mundo acabe A internet aí está para ficar, certamente, e me parece que tudo já foi dito sobre ela. Já foi acusada de veicular bobagens, péssimos textos, pornografia. É a culpada pelas tendinites, que tanto fazem sofrer os digitadores, e ao mesmo tempo movimentam os consultórios dos médicos especialistas da área. Catapultou para o sucesso os móveis desenhados especialmente para acomodar toda a parafernália necessária à informatização de todos os escritórios, fábricas, escolas, enfim, incluindo as instalações dos nossos amados micros domésticos. Promove amizades e encontros virtuais, criando um mundo realmente novo. Oferece o material para todo o tipo de pesquisa. Pessoas lêem o jornal, ouvem rádio e copiam músicas pela internet. Pessoas recebem aulas através da rede. Inúmeras indústrias iniciaram suas atividades exclusivamente para fabricar pequenas, médias e grandes peças que são necessárias à montagem, manutenção e funcionamento dos computadores e seu aparato. Nunca li profundamente sobre este assunto porque me cansa. Não é o tipo de leitura que consegue me manter atenta. Basta que consiga digitar, receber e passar mensagens, escrever, arquivar, copiar. Acho que está de bom tamanho. E aí está a parte que eu gosto. As mensagens. E, entre elas, às vezes, vem aquela que provoca a imaginação, faz pensar, faz sonhar, ou mostra caminhos. Hoje recebi uma “carta escrita no ano 2.070”, que muitas outras pessoas devem ter recebido, também. Aquilo me deixou impressionada. Não que eu já não tenha imaginado isso antes. Há muito que se fala que a água vai acabar, que dentro de alguns anos não teremos mais nem o que comer. Não estarei mais aqui, certamente. Mas me preocupam os que ainda vão estar, como, possivelmente, meus descendentes. Opa! Então sou responsável. Procurarei, de agora em diante, colaborar de maneira mais consciente e ativa. Tudo bem! Mas também acho que de agora em diante devo olhar mais vezes o pôr do sol, devo ir mais seguidamente à praia contemplar o mar, olhar mais demoradamente as flores do jardim, agradecer às bondosas árvores que nos dão a sombra e a madeira, outras os frutos; proteger os animais que CRÔNICAS 09 nos dão segurança, que nos transportam ou nos fazem companhia. Transmitir bons hábitos às crianças, ensinando-as a respeitar a natureza, na qual tudo funciona bem se houver equilíbrio. Chegou o outono com seus dias frescos e cinzentos, tão lindos. Vou parar de dizer que o dia está feio só porque não apareceu o sol, ou porque está chovendo. Vou sair mesmo com chuva e gozar a delícia de caminhar sob as gotinhas brilhantes da água que, dizem, um dia não vai mais existir. Vou viajar para lugares que ainda não conheço, e retornar àqueles onde fui feliz. Vou procurar as pessoas que amo e dizer isto a elas. Vou agradecer àquelas que me deram momentos de felicidade, que me apoiaram nas minhas loucas empresas, que ouviram meus desabafos e não riram dos meus sonhos, nem das minhas ilusões, mesmo sabendo que eu não teria sucesso. Elas são maravilhosas. Vou procurar a pessoa que, por um motivo seu que não me compete julgar, não correspondeu ao meu amor. Vou agradecer, porque, mesmo sem intenção, ela semeou esse amor no meu coração e transformou minha vida, fazendome desabrochar para a beleza que ainda existe em mim, nos outros, e em todas as coisas. Quando comecei a escrever esta crônica, eu estava triste por causa da mensagem recebida, do ano 2.070. No entanto, agora, depois de ter escrito sobre todas estas providências que vou tomar para desfrutar ao máximo o mundo que ainda tenho, estou feliz. Deve ser pelo equilíbrio que consegui entre reconhecer o que precisa ser feito para evitar a catástrofe ou retardá-la, e aproveitar da melhor maneira o que me resta neste mundo. 10 SCYLA BERTOJA A batalha perdida (ou não) Penso que qualquer pessoa adulta, jovem ou não, lembra-se de ter ouvido ou lido, ao menos uma centena de vezes, o argumento de que precisamos produzir alimentos para matar a fome do mundo. Pois eu também, e confesso que nas primeiras vezes que ouvi isso, achei bonito: Alimentos para saciar os famintos do mundo, que coisa linda, que gente boa essa, que espírito de humanidade, de fraternidade. Agora sim, parecia que o mundo ia tomar jeito. Desapareceriam aquelas tristes figuras de mães esquálidas trazendo ao mundo filhos esqueléticos para servirem de posters decorativos nas ante-salas das sociedades beneficentes, e assunto para documentários de televisão, aos quais assistimos tomando sorvete na nossa confortável poltrona. Mas o tempo ia passando, a gente se envolvendo com os interesses do próprio umbigo, a luta pela vida, e esquecia o assunto. Lá de vez em quando, porém, voltava o argumento, até porque as grandes conferências que acontecem pelo mundo o tempo todo precisam de alguma causa e essa é sempre um prato cheio (que ironia!). Assim, eu esperava em vão. As coisas não mudavam. O refrão, contudo, continuou em uso. Eu, bem ou mal, ganhei meu pão sem precisar recorrer aos alimentos tão apregoados. Mas eu sou uma felizarda, não nasci no Sujistão, Sedistão, Fomistão, eu nasci no Brasilzão. Ah, dirão, mas aqui também há bolsões de miséria, e já comecei a cansar dessa conversa também. É! Há! E existem meritórios trabalhos isolados, voluntários ou não, que procuram amenizar esse problema, mas isso parece gota d’água no deserto. Agora, a pergunta que há anos me faço: – E daí? Quando a produção for bem grande, abundante, que permita alimentar os milhões de seres famintos ou subnutridos, e daí? Como é que essas populações vão chegar perto desses alimentos? Vai ser tudo doado? Não? Isso foi produzido com financiamentos que deverão ser pagos com CRÔNICAS 11 juros. Então isso tudo deverá ser vendido. Quem plantou quer ser remunerado, quem transportou quer ser pago, quem intermediou quer ser comissionado. Quer dizer que isso vai ter um custo altíssimo. E os pobres famintos vão pagar com quê? Bom, daí já começa a dar um nó na minha cabeça e, do alto da minha ignorância econômica, política e financeira, fico pensando: Não seria melhor eu colocar novamente o meu nariz de palhaço, a peruca vermelha, as roupas coloridas e recomeçar a dançar no picadeiro, para ver se alguém acha graça em alguma coisa? Sim, porque eu não acho mais graça em nada. E dizem que agora recomeçam as vozes a respeito do planejamento familiar. Mas isso é o óbvio, só que é antipático e eu duvido que alguém vá querer desgastar-se politicamente. Mas como seria bom se medidas fossem implantadas nesse setor. As pessoas esclarecidas já agem corretamente há muito tempo e suas vidas não vão mudar por causa disso. Mas os miseráveis, que precisam tanto melhorar de vida, que necessitam galgar alguns degraus a mais em civilidade, em saúde, em educação, em autoestima, estes sim, iriam ser beneficiados. E, antes que me esqueça, aborto legalizado ou não, é uma coisa muito desumana. Não sei se o feto sabe que foi eliminado, mas a mãe, de quem foi arrancado, esta saberá por toda a vida. O certo mesmo é evitar a gravidez. Eu ficaria muito feliz se pudesse ver ao menos o início desta mudança. O nascimento de uma consciência de responsabilidade. A pobreza nunca vai ser eliminada, porque há grupos humanos que se contentam em apenas viver, sem ambições. Mas a pobreza digna é uma coisa bem diferente da miséria desumana. Sei que demanda tempo e sacrifícios, mas, com pessoas sérias na coordenação de uma campanha, e com recursos, é possível. Estarei sonhando de novo? Desculpem-me. 12 SCYLA BERTOJA Açorianos Aqui em Porto Alegre, no extremo sul do Brasil, existem alguns ápices de cultura, aspirados por todos quantos gravitam naquelas áreas específicas de atividade intelectual ou política. Eventos como a Feira do Livro de Porto Alegre, em outubro, que além de trazer à praça a população da cidade e arredores para comprar com grandes descontos, propicia o momento ideal para uma infinidade de lançamentos de novos livros, de todas as categorias, gêneros e idiomas. Quem dentre nós não almeja autografar durante a Feira do Livro? E aqui aportam escritores do centro do país e de países vizinhos. O Fórum Social Mundial, de mais recente existência, já se firmou internacionalmente como point das culturas, minorias e facções no global, transformando a capital gaúcha, em janeiro, num grande cenário multirracial coloridíssimo, em que se ouvem dos idiomas mais conhecidos aos mais exóticos dialetos da terra. Em janeiro Porto Alegre brilha como tribuna do mundo. Não muito distante da capital, mas sempre no Rio Grande do Sul, o Festival de Cinema de Gramado tem reunido a nata dos atores e cineastas do Brasil, bem como, de outros países, em estréias concorridíssimas. A noite dos Kikitos é o ambicionado pódio para quem se dedica a fazer a sétima arte. Mas, para quem escreve e edita, o envolvimento se direciona ao PRÊMIO AÇORIANOS DE LITERATURA, uma disputa que dura muitos meses, entre indicações, grande júri (do qual fiz parte em 1998), e, por etapas, até a apuração dos três candidatos em cada categoria. Por longos meses a ficção, o humor, a poesia, a história, os ensaios, os livros infantis e infanto-juvenis borbulham no caldeirão da bruxa, sábia mas nunca previsível. Depois, a explosão e o momento solene do reconhecimento ao valor literário da obra, ao talento e ao estilo do autor que somou mais pontos na preferência dos jurados. Daí aplausos aos vencedores, louros aos heróis do mais ambicionado pódio literário gaúcho, o AÇORIANOS. Alegria, tristeza ou resignação. A verdade é que se curvam todos em reconhecimento ao mérito do intelecto, CRÔNICAS 13 da imaginação, conhecimento, estilo e esforço dos vencedores. A entrega dos prêmios foi na sexta-feira, dia dezessete do corrente mês, no Teatro Renascença. Entre as obras vencedoras, quero destacar A CRONOLOGIA DOS GESTOS, Categoria Contos, de JUAREZ GUEDES CRUZ.. Médico de profissão, o autor estreou na literatura com esse livro, já com sucesso comparável ao de um veterano – mais de duzentos autógrafos por ocasião do lançamento, em outubro de 2003. Compareci ao evento há pouco mais de um ano e confesso que fiquei surpresa, apesar de conhecer o trabalho de Juarez – ele faz parte do grupo de colaboradores da revista FOLHA DE LETRAS, ao qual também pertenço, publicação dedicada somente a textos literários –. Já no ano passado, por ocasião do Natal, presenteei algumas pessoas com A Cronologia dos Gestos. O efeito foi quase unânime. Gostaram muito. São contos escritos por quem conhece os mistérios do pensamento humano, os escaninhos mais escondidos, os caminhos tortuosos, as deformações da visão da realidade, os traumas, os comportamentos estranhos do ponto de vista dos ditos normais. Isso somado a uma capacidade de síntese no escrever, e a uma imaginação rica que se expressa através de uma linguagem clara e delicada, é sinônimo de sucesso. Já estou esperando pelo próximo livro de Juarez Guedes Cruz, que continua escrevendo. Mas, como sei que é muito ponderado, nem me atrevo a adivinhar quando virá. Perguntado por Gilberto Wallace, em 2003, a respeito de seu próximo livro, disse o autor que isso dependeria muito da acolhida de A Cronologia dos Gestos e de um outro fator, qual seja, a sua própria necessidade de escrever. Não vou tirar conclusões, mas depois do sucesso no lançamento, e de receber, agora, o prêmio Açorianos, a primeira parte de sua resposta não deixa dúvidas. 14 SCYLA BERTOJA Ao pé da letra Paradoxalmente, para mim, o horóscopo tem sido uma fonte inesgotável de frustrações. E, no entanto, não consigo deixar de consultá-lo toda manhã. É uma atração irresistível. É a primeira coisa que leio quando apanho o jornal na porta de casa. Ele traz, invariavelmente, bons presságios, ótimas indicações. E naquele momento, com o matutino ainda nas mãos, eu digo para mim mesma que nem é necessário ler as notícias. As coisas boas que vão acontecer comigo constituem a mola que vai impulsionar minhas ações naquele dia. E assim será toda a semana, possivelmente. Tenho uma sorte que faz inveja a qualquer mulher. Tempos atrás, eu lia o horóscopo mas não saía de casa, e daí não acontecia nada. Pensando nisso, comecei a sair mais, freqüentar lugares onde pudesse conhecer mais pessoas, me divertir um pouco. Saio em busca da concretização dos desígnios dos astros. Uma pessoa solitária, enjaulada dentro de uma casa ou apartamento, não ajuda em nada ao (quem sabe?) feliz destino que a espera. Pois às vezes me surpreendia feliz e entusiasmada porque lá estava escrito que o dia era propício aos encontros românticos. Alguém iria surgir em meu caminho e trazer de volta (pensava eu, cheia de ilusões infundadas) aqueles tempos de namoro, olhos nos olhos, passeios pelas praças da cidade, quem sabe até, no Parque da Redenção. Depois, o Bar do Lago, papo interessante, muitas risadas, confidências. Claro que tudo isso tinha muito a ver com a chegada do verão, estação que nos traz uma sensação de juventude, de renovação, como muito apropriadamente traduz Olci Y Soria: “Atração irresistível convidando ao portal do verão, onde as energias dos luaus e das peles bronzeadas alimentam salamandras astrais sequiosas dos viços da estação” (No olho líqüido de Sobek). Mas – e esta palavrinha é fundamental para se voltar à realidade –, a seguir, reflito melhor e dou-me conta de que é preciso retirar da minha cara o ridículo ar de moçoila sonhadora. Releio o danadinho do horóscopo. É claro que ele incita ao sonho, mas também é claro que não se refere às senhoras da terceira idade. É lógico que essas coisas acontecem somente CRÔNICAS 15 a quem se encontra naquela faixa de idade em que os arroubos do amor são até um imperativo da natureza. E é aí que entra a frustração. Depois de ler aquelas previsões maravilhosas, vou para a praça fazer uma caminhada. As crianças me chamam de vovó, e os jovens, de tia. É o que sou, já sei. Mas aquela alegria que sinto ao ler o horóscopo pela manhã, até me faz esquecer disso. Bem, a solução é apanhar dos astros somente as dicas relativas ao trabalho, os números para tentar a sorte na loteria e esquecer a parte romântica, porque esta já não me atinge mais. Eu até que tento este posicionamento racional, mas no fundo, no fundo, fica sempre aquela minúscula pergunta (deslocada no tempo) insistindo baixinho: Será? 16 SCYLA BERTOJA Iemanjá Desde a infância estou familiarizada com a imagem de Iemanjá. Aquela moça santa, bonita, de negros cabelos, vestida de azul e branco, flutuando sobre as espumas das águas do mar, mãos espalmadas que distribuem raios de bênçãos aos seus protegidos. Ela gosta muito de espelhos (abebê), flores e perfumes. E são estes os presentes lançados ao mar no dia de sua festa, em dois de fevereiro. Mas eu não sabia, até poucos dias, que ela era a mãe de todos os orixás. E que seu nome é formado por três palavras do dialeto Yorubá: iya+omo+eja, que significam, respectivamente, mãe, filho, peixe. E, como as histórias comunicam-se apesar das distâncias, não só a oralidade deve ter sido responsável pela divulgação em todo o lugar, dessa figura maravilhosa, evocada com grande fé por grupos nos quais a ascendência e a cultura africanas estão presentes, caso do Brasil. Juntamente com a fé católica e a imagem de Nossa Senhora, mãe de Jesus, como resultado do sincretismo religioso, as duas entidades são reivindicadas como protetoras de tantas populações. Dizem que a maior festa de Iemanjá acontece em Salvador, na Praia do Rio Vermelho. Reúnese uma multidão das mais diversas religiões, incluindo católicos, umbandistas e adeptos do candomblé. Os pescadores do lugar desempenham o papel de procuradores da população, pois que, recebem desta os bilhetes e presentes para a santa e providenciam a entrega, saindo em procissão em barcos mar adentro. Os bilhetinhos contém pedidos feitos pelos devotos. O dia de Iemanjá é o sábado. Uma novela da Rede Globo popularizou, alguns anos atrás, a saudação dos fiéis a ela: O’ doiá. Ela domina o mar e os rios. É a Rainha das Águas. Esta tradição veio da África, é claro. Iemanjá provém de uma nação chamada Egbá, na Nigéria. Nesse local também existe um rio com o nome da Deusa. Olokum (mar) era o nome de sua mãe. Iemanjá e Oxalá, ambos Orixás, estariam ligados à criação do mundo. Ela representa fertilidade e fecundidade, é a Grande Mãe na tradição Yorubá. E sua imagem original não era exatamente como conhecemos. Seria uma jovem de seios enormes, característica da grande CRÔNICAS 17 mãe, fértil e fecunda. Segundo informações encontradas no livro de Tereza Marques de Oliveira, intitulado “A Senhora das águas salgadas”, pesquisando a obra de Luiza Leonardo, escritora baiana do século XIX, a lenda conta que Iemanjá, dona dos seios volumosos, casou com Oquerê, que ostentava grandes testículos, mas esta união trouxe a ela sofrimentos insuportáveis motivados pelo temperamento violento de Oquerê. Ela, então, resolveu voltar para sua mãe, Olokum, que habitava (ou era) o mar. Concluo que, além de padroeira dos pescadores, Iemanjá é também a protetora das grandes mulheres fortes e inquebrantáveis, que muitas vezes vêem cerceados seus direitos e aspirações, por homens dominadores e violentos como Oquerê. E, nesses casos, metaforicamente, têm de abrir caminho dentro do mar, para poder escapar da infelicidade, refugiando-se no sempre amoroso seio materno. Segundo Luiza Leonardo, o mar significa a ambivalência. É símbolo da vida e da morte. Em Porto Alegre, em dois de fevereiro, comemora-se o dia de Nossa Senhora dos Navegantes. Sua estátua foi trazida pelos portugueses, no século XVIII. É a mesma data de Iemanjá, e por isto, em todo o Rio Grande do Sul, as figuras das duas protetoras mães das águas, recebem homenagens muito especiais. Para se ter uma idéia da devoção dos gaúchos, a festa de Nossa Senhora dos Navegantes reuniu, neste ano, perto de 40.000 fiéis, só na capital, Porto Alegre. Mesmo assim, esteve muito abaixo dos números do ano passado, quando contou com, aproximadamente, 100.000 participantes. Em barcos ou à pé, os peregrinos querem mais é estar ali, agradecendo, prometendo, reverenciando, ofertando. Esses números me impressionam profundamente, porque sempre ouço dizer que a fé não existe mais, que as pessoas não vão mais às igrejas como em outros tempos. Talvez as igrejas não estejam cheias, mas nos barcos no Rio Guaíba e em São José do Norte, na Praia do Cassino, nas ruas de tantas cidades do interior – onde há mar ou rios –, tambores e atabaques se fizeram ouvir, juntamente com os cânticos católicos, reunindo milhares de fiéis. Os números de Nossa Senhora dos Navegantes e Iemanjá, Nossa Senhora Aparecida – padroeira do Brasil (Oxum)—, Nossa Senhora de Fátima (Cruz Alta-RS), Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças (Santa MariaRS), Nossa Senhora de Caravaggio (Farroupilha-RS) e demais acontecimentos e romarias, desmentem alguns boatos. E aqui só mencionei comemorações do Rio Grande do Sul. O restante do Brasil é pródigo em festas religiosas. Pensando bem, lembro de já ter alcançado algumas graças, em momentos de grande atribulação e desespero. Orei, pedi, e recebi. Graças a Deus! Obrigada, Senhora! O’ doiá, minha mãe! 18 SCYLA BERTOJA Carta a um cronista amigo Cidade Morta, 22 de não lembro de 2.033. Hoje pela manhã quando ouvi o barulho do envelope contendo o chip do JC (jornal comunitário) sendo jogado no capacho da porta do meu alojamento, lembrei do tempo em que brigava com o porteiro do edifício onde morava, tentando convencê-lo de que não devia enfiar o jornal por baixo da porta. Se ele assim o fizesse, estragaria o revestimento de cerejeira da porta do meu apartamento. Durante quantos anos cuidei daquelas aberturas, daqueles pisos de tabuão. Se naquele longínquo ano eu tivesse sabido que brevemente os sem-teto iriam invadir minha casa e me jogar na rua, eu não teria me preocupado tanto com essas bobagens. Sabes, amigo cronista, que aquele prédio há anos não existe mais? Os novos moradores tanto usaram as partes de madeira para fazer fogo, já no primeiro inverno, que acabaram transformando o edifício num esqueleto esburacado e inóspito que hoje só serve mesmo como atração turística para os estrangeiros que aqui vêm conhecer o nosso maravilhoso mundo igualitário. Sim, porque isso tem de ser dito e reconhecido. O que nos foi prometido foi cumprido à risca. Hoje, realmente, somos todos iguais. Sei que vocês, ex-operários da imprensa, não recebem notícias, a não ser o JC, o que quer dizer que nada sabem. Eu possuo meus meios de saber das coisas – há sempre alguém que abre o bico em troca de dois comprimidos (isto não mudou). Estarás indagando se não houve alternância no poder. Claro que sim. A cada período, eles renovam a cúpula central, mas de nada adianta, se é que me entendes. São todos iguais, só mudam os nomes e siglas. A única vantagem das ditaduras que se alternam e por isto se autodenominam democráticas, é que não somos mais responsáveis pela “escolha”. Não somos obrigados a votar, como antigamente. O sistema consiste em permitir aos cidadãos descontentes, manifestarem-se “contra”, formalmente (alguém tem coragem?). Se estes formarem um grupo superior a 50% da população ativa, então cai o gabinete que está no poder e entra outro, e assim CRÔNICAS 19 sucessivamente. É meio parecido com parlamentarismo (era isso?), só que não tem parlamento, mas, executivo. Aqui nos alojamentos CMPD (classe média provisoriamente desalojada), onde estou (des)acomodada há quase 20 anos esperando os novos conjuntos habitacionais, estão todos satisfeitos com as mudanças dos últimos anos. É verdade também que há os que não gostam, mas a gente não fica sabendo, pois é proibido reclamar – lembras como se protestava por qualquer coisinha naquele tempo? A gente “entrava na justiça” contra qualquer coisa. Agora, caso os descontentes fiquem muito salientes, há sempre um companheiro aplicador dos MLDPRP (meios legais, democráticos e populares para reeducação do povo) para lhes dar um “paratiqueto”. Sei o que vais dizer. Mas a violência acabou. Os bandidos estão todos desempregados e nem sequer fazem uma passeata de protesto. Tens razão nisso. Afinal, sua fonte de renda éramos nós, os remediados, que agora viramos remendados. Dirás Essa mulher ainda existe? E tem coragem de escrever uma carta dessas pra mim? Deve estar louca, completamente doida. Vai me comprometer e comprometer-se. – Não te aflijas. Depois de ler, deleta-a! Eu já estarei voando em espírito para o mundo desconhecido do além. As pílulas que o governo distribui estão guardadas aqui ao meu alcance, portanto... Está delirando quem pensa que eles ainda costumam perseguir, prender ou matar seus desafetos políticos. Humanizaram-se. Como sabes, eles fornecem os meios para nos autodestruirmos antes de tentarmos alguma bobagem que possa colocar em risco a consecução dos planos superiores. Tudo mudou, exceto algumas características da raça humana que não podem ser modificadas e nem copiadas pelos robôs. Não se dão conta de que a memória não é um simples armazenamento de dados. É memória humana, sentimental, afetiva. Ainda temos a saudade, o humor, o amor e o ódio, mesmo que não os possamos expressar abertamente. A ciência está tentando um meio de eliminar alguns problemas como o apetite. Isso está se tornando um grande inconveniente. O alimento agora é pouco e a água também é escassa. Aquelas previsões dos ecologistas se confirmaram, e as fontes estão a cada dias mais raras. Eu recebi uma represália on-line ontem porque gastei mais de dois litros de água na semana passada. Argumentei que precisava beber porque sou velha, mas não consegui convencê-los. Deverei pagar a multa e o meu suprimento de água não será mais conseguido no AR (abastecimento responsável), onde os cidadãos sensatos se servem por conta própria, sem supervisão e não excedem a quota legal. Um funcionário virá trazer minha quota de água. Fui considerada irresponsável. Caro cronista, depois que foste levado para o AAOI (abrigo dos antigos operários da 20 SCYLA BERTOJA imprensa), nunca mais tivemos a oportunidade de ler uma coluna tão apaixonada como a tua. Deleta esta carta, pois não se pode falar de paixão e saudade, sabes bem. Agora, neste chip infeliz do JC não há novidades, somente estatísticas, ameaças, conselhos “úteis” aos cidadãos, xenofobia e nomeações dos mais amigos do pessoal lá de cima, eles sim, vivendo a melhor parte de suas vidas, sem nenhum pudor. Mas, como dizia o finado, nós tivemos oportunidade de viver no melhor dos mundos e ver e vivenciar as maiores invenções, a maior liberdade, um mundo maravilhoso que tentamos de todas as formas arruinar. E fomos brilhantes. Conseguimos. Adeus. Um beijo. Se ainda sabes o que é isso. CRÔNICAS 21 De repente você fica só Nos primeiros meses do primeiro ano você só pensa nele, idolatra sua lembrança e fala muito sobre ele. Encontra uma pessoa conhecida, ela toca no assunto e, como náufrago a um galho, você se agarra a essa oportunidade de falar dele. Não se dá conta – ou quando nota já é tarde – de que está sendo maçante, chata. As pessoas querem falar de outras coisas, de assuntos que lhes interessam, ou qualquer bobagem, mas não dele. E aí você odeia todos os que acenam com outros argumentos. Você os odeia porque, além de não participarem do seu sofrimento, não entendem sua necessidade. Estão ótimos, indo para os seus locais de trabalho, saudáveis e entusiasmados com o dia lindo que faz hoje. E se estão voltando do trabalho, felizes de retornar ao lar, você os odeia porque eles têm em casa alguém que os espera. Na sua não há ninguém. E assim o tempo vai passando e você na solidão e querendo morrer porque não vê saída para a sua dor. Mas não investe muito na idéia da morte. Quem sabe, mais adiante. No segundo ano tudo continua na mesma, mas parece que você está começando a inventar novos interesses, apesar de continuar falando muito dele e manter os rituais de adoração. Já consegue criar novas rotinas, inventar metas, mas as lembranças estão ainda muito frescas e voltam a todo momento que você deixa sobrar. Precisa envolver-se ainda mais com outras coisas. – Mas isso não é justo, pensa. Por que deveria esquecer assim uma parte tão importante de sua vida? Na verdade há uma luta interior. Um lado aconselha o esquecimento total e o outro quer manter viva a lembrança. Nesse momento você descobre que não há lembrança suave e indolor. Era mentira quando lhe diziam que em pouco tempo tudo seria apenas uma doce recordação. Era falsa também a possibilidade de começar uma nova vida. E você alimentou essa esperança, acreditou nisso. Você entra no terceiro ano tão só como estava nos dois anteriores. Porque as outras pessoas têm suas vidas, seus afazeres, suas famílias. Elas não têm tempo para você. No máximo, consegue atenção de pessoas que depois vão lhe cobrar pelo tempo dispensado. Alguém de repente lhe 22 SCYLA BERTOJA telefona para conversar, mas na verdade está querendo lhe pedir algo. Outra a procura, mas quer impor seus hábitos, horários e gostos. Para contar com ela você teria de deixar de ser quem é e tornar-se uma escrava. Continua procurando contatos novos, freqüentando cursos, palestras, eventos que possam render-lhe alguns conhecimentos. Mas a arte de fazer amigos é, definitivamente, uma matéria que você não domina. É o quarto ano e você agora começa a sentir-se ridícula. As pessoas a evitam. Ou será impressão sua? Aos poucos começa a redimensionar o passado e ver as coisas (e as pessoas) como elas realmente eram e são. E, principalmente, aprofunda a autocrítica, vendo-se por todos os ângulos. Deixa de sentir-se a coitadinha, a vítima. Começa a ver que aquele mundo onde você viveu nos últimos anos nunca existiu. Havia criado uma imagem dele e do mundo. Agora nada mais existe, além da realidade. E esta é o resultado de suas opções, de seu passado. É agora a culpada de tudo o que de mau lhe acontece, mas também é responsável pelas coisas boas, porque irá buscá-las, diariamente, passo a passo, através de suas atitudes e decisões. Está amadurecendo. É capaz até de prever o futuro. Não, você não o esqueceu. Apenas mudou sua perspectiva. Agora o vê como ele realmente era. Nem tão bom como o via, nem tão mau como o viam os outros. Humano, como todo mundo. Com qualidades e defeitos. E agora? Você ainda tem um problema. Quer começar algumas atividades mas não está preparada como gostaria. Além disso, é tímida. Não consegue fazer propaganda de si mesma. Não sabe vender seu peixe. Tem vergonha de dizer que precisa de ajuda. Deve ter cara e comportamento de otária, porque muitas das pessoas que se aproximam, o fazem com segundas intenções. Dizem que é generosa, compreensiva, bondosa, e você não consegue segurar a vontade de ceder. Aí está um ponto importante. Tem de aprender a dizer não. Pense bem: as pessoas vão continuar se aproximando de você para tirar proveito, mas se disser não, estará salva do assédio. E também dos amigos (se tiver algum). Mas há pessoas que gostam de você incondicionalmente. Não se entusiasme demais. São poucas, mesmo na família. Estas merecem sua dedicação. Com exceção delas, o resto é negócio. Bem, não se deve radicalizar. Será mesmo que não existem afetos verdadeiros fora da ternura entre pais e filhos, família, enfim? Ninguém sabe a resposta. Talvez o problema esteja no fato de que os outros amores são momentâneos, circunstanciais, limitados. As amizades, idem. Chega um dia em que até os amigos se cansam. Estão vivendo um momento de suas vidas em que não cabe mais uma pessoa. Não fique triste. Você tem CRÔNICAS 23 o mesmo direito de um dia dispensar a amizade de alguém, sem que isso se transforme num drama. Aprenda a bastar-se. Segure a ansiedade de ligar para alguém que não liga para você. E não guarde rancor. Deseje felicidade a essa pessoa. Neste momento é importante lembrar do passado. Quantas vezes precisou de alguém que a ouvisse e foi a esse(a) amigo(a) que você recorreu? Quantas vezes ele(ela) deixou de fazer algo importante, perdeu seu tempo, gastou sua paciência ouvindo as coisas que você precisava contar? Guarde-o(a) num cantinho especial do seu coração, mas deixe-o(a) em paz. Ele(ela) merece ser feliz. E você também. Ouça aquela voz que diz: – Que tal viver comigo? Sim, você entendeu. Eu sou você. Viver com você mesma pode até dar certo. Acredite! 24 SCYLA BERTOJA Desabafo Há algum tempo, uma amiga minha muito atenta aos noticiários de rádio e televisão, pediu-me para fazer algumas correções num texto que havia escrito. Ela queria enviá-lo a um comentarista de um programa de TV. O tema era o APAGÃO (lembram?). Ela estava indignada e precisava desabafar. E como havia imaginado que esse jornalista era muito procurado por pessoas que o admiravam por suas opiniões, tinha receio de que sua carta nem chegasse a ser lida. Lascou: Prezado Jornalista. Vou eliminar o suspense já na primeira linha. Não sou Martha Medeiros, com ou sem h, portanto não espere um texto brilhante, claro e conciso. Aliás, acho que Martha é mais chique do que Marta. Mas, grafias à parte, e já que o senhor leu até aqui, vou continuar, ou melhor, vou começar. Por favor, não desligue, não coloque a folha embaixo da pilha da correspondência sem importância. Não tenha medo, eu nunca vou ficar sabendo se o senhor leu ou não. Isto já é uma garantia de que o senhor não será importunado por mais uma nulidade que quer aparecer através do seu sucesso. Não vou lhe pedir para prefaciar meu texto, carta, crônica, ou talvez narrativa curta sem nenhum estilo. E para ficar tranqüilo imagine que eu tenha enviado esta carta para mais 99 pessoas, só para disputar espaço com Santo Expedito (Perdão, meu Santinho, mas não agüentei). Sabe aquela conhecida exclamação “Parem o mundo que eu quero descer!”? Não sei quem disse isso, mas é a expressão perfeita para definir a agitação louca em que vive a nossa mente nos dias atuais. A verdade é que, sem desaprender tudo o que aprendemos nesses anos supercriativos do século passado (XX), entramos em alta velocidade no atual (XXI), e parece que agora tudo o que foi inventado nos últimos anos e funcionou e nos deslumbrou está sob ameaça de desaparecer, de se tornar inoperante frente à falta de previsão e planejamento das pessoas que disso deveriam cuidar. Refiro-me ao apagão. CRÔNICAS 25 Parece-me que tudo o que foi colocado à nossa disposição nos últimos anos deverá agora ser desativado e guardado em museus que as gerações futuras visitarão com curiosidade. E nós deveremos, mansa e alegremente, voltar aos velhos hábitos, que, por sorte, alguns ainda lembram. Como costuma falar o meu lado ecologista, vamos nos dar conta de que não soubemos usar conscientemente os recursos naturais, imensos, gratuitos, porém, finitos, que a natureza nos ofereceu desde o início dos tempos. Na realidade, abusamos sempre. No varejo, se sabe, comemos mais do que o necessário, bebemos sem ter sede, fazemos sexo sem amor e procriamos sem controle, sem contar nosso descaso com a água, o ar e demais elementos vitais. Como resultado temos a poluição, as doenças e um número crescente de pessoas na miséria, com o destino de se transformarem em estatística da fome e da dor. Imagine o senhor se de repente Deus se der conta de que o oxigênio destinado ao planeta Terra está em níveis baixos (imaginação ou já está ocorrendo?) e que o Arcanjo responsável por esse precioso gás não O informou a tempo de providenciar volumes extras. Daí Deus aparece na TV (bem no meio do jornal nacional), conta o que está acontecendo e pede para respirarmos com mais comedimento, inicialmente. Em seguida lança a campanha 2 x 1 – uma inspiração para cada duas expirações. E, claro, Ele ameaça cortar a respiração de quem não colaborar. Começaríamos a pagar uma taxa mensal pelo oxigênio (azar de quem não pudesse), e teríamos, agora sim, de controlar a natalidade, porque mesmo antes de nascerem, os anjinhos já seriam considerados concorrência no consumo de ar. Pensei até em coisas piores, mas não escrevo para não expor demasiadamente o meu lado perverso. Mas que dá para imaginar coisas, dá. Criamos algumas armadilhas que agora precisam ser desarmadas, ou, ao menos, mais controladas, pois as presas somos nós mesmos. Minha vizinha tem 70 anos, sofre de artrose, é deficiente visual e mora no 10º andar. Será que ela conseguiria contornar a falta de luz ou de água sem grandes transtornos? Tenho um parente com problema nas pernas, usa muletas e mora no 8º andar. Eu poderia aqui enumerar uma série de situações difíceis, mas não é necessário, porque o senhor, como todo mundo, sabe perfeitamente disso. Fico pensando que absorvemos muito rapidamente o mundo do conforto, como consumidores compulsivos de alguma coisa boa que depois faz mal. E não fomos educados para conviver de maneira saudável com essa enorme gama de maravilhas. Esbanjamos à grande, sem pensar que, como diziam os antigos, “dia de muito é véspera de pouco”. 26 SCYLA BERTOJA O senhor sabe que há povos que sofreram com muitas guerras, conseguiram tudo com muita luta, e aprenderam a poupar, a consumir com discernimento os recursos de que dispunham, e após a metade do século XX diminuíram drasticamente a sua própria reprodução. Fizeram isso para que o maior número possível de pessoas pudesse usufruir de um certo conforto em tempos de paz e desenvolvimento. Uma pena que seus exemplos não conseguiram alcançar ao mesmo tempo todos os povos do planeta, e eu não fico aqui perguntando por quais motivos. Talvez a busca das razões nem seja mais necessária. Talvez já não adiante mais. Conheço poucas pessoas que aprendem pelo exemplo. Essa não é uma característica muito forte no homem. Assistimos no século XX aos maiores avanços em todos os campos da atividade humana. Ao quê será que vamos assistir neste século? Comecei a escrever com espírito de ironia, passei a falar de coisas sérias e agora encerro com a sensação de angústia e desalento. Que isto não o contagie. Obrigada, caso tenha lido até o fim. CRÔNICAS 27 Domingo no brique Apesar de morar em Porto Alegre há trinta e três anos, eu jamais havia visitado o famoso Brique da Redenção, o que fiz hoje por sugestão de um amigo. Solitária em meio à multidão que se acotovelava entre os estandes de exposição e venda das mais variadas formas de artesanato, comecei a ver pessoas com caras de domingo, expressões relaxadas, rindo alto entre comentários com seus acompanhantes. Grupos de mulheres maduras alegres em seus trajes esportivos colados aos corpos esguios malhados e carentes de glicídios, lipídios e carboidratos. Pensei: Como elas conseguem nessa idade? Possivelmente a genética me daria uma resposta satisfatória. E a nutricionista me daria um programa especial para ficar igual a elas. E, claro, eu morreria poucos dias após iniciada a dieta. Encontrei conhecidos que não me reconheceram, e outros que agarrei, literalmente, para que notassem que eu era eu. Abracei gente querida, almocei com parentes, comprei alguma coisa antiga e voltei para casa cansada. Nada como a grande janela do décimo andar para reafirmar convicções relativas à imensa graça de estar viva. Mas não é tão simples assim. O sol se pôs. Hoje, de modo especial. Aquarela inimitável e fugaz. Fui rápida. Providenciei o fundo musical adequado, meu sonho recorrente, trilha sonora de Manhattan (Woody Allen), Gershwin. Observei todos os detalhes do trabalho da natureza desmontando o cenário da tarde, ao mesmo tempo em que, não sei de onde, surgia delicada e célere, a noite. A rapsódia azul injetava encantamento em minhas veias atrofiadas pela rotina de quem vive à espera. Enlouquecida pela presença das lembranças, dancei pela sala, esquecida do tempo e da minha realidade. Naquele momento só havia acordes, ritmos, melodia. Lá fora o manto negro se instalara e a lua e as estrelas pálidas de espanto não conseguiam despregar seus olhos iluminados da cena insólita que eu lhes oferecia. 28 SCYLA BERTOJA Quando a música terminou, caí exausta sobre a poltrona e comecei a chorar. A lâmina brilhava sobre a mesa, mas não tive forças para alcançála. Mariposa estonteada pela profusão de luz, asas chamuscadas, cansada de dançar, desisti. Quem sabe num próximo pôr do sol, quando a loucura voltar com as cores do crepúsculo derradeiro. CRÔNICAS 29 Decifrando a mensagem da arte Estou em Porto Alegre, no Sul do Brasil. Esta é uma cidade fundada por casais açorianos que aqui vieram para garantir a posse e povoação das terras que, pelo Tratado de Madri – entre Portugal e Espanha (1750) –, couberam a Portugal. Sobrava população no arquipélago português. Faltava gente nova aqui. Os reis decidiam. Os grupos humanos tinham menos opções sob as monarquias da época (hoje teriam mais?). Enfrentaram o desconhecido, sofreram, regaram estas terras com seu suor e sangue. Aqui era o Porto dos Casais. No interior do estado havia reduções jesuíticas com muitos índios. O maior conflito foi a Guerra Guaranítica. Mais tarde vieram outros povos da Europa para o sul do Brasil, buscando sobrevivência e um futuro digno para suas descendências. Meus ascendentes italianos chegaram por volta de 1870 e já encontraram aqui alemães e outras etnias. Mas eu não sou historiadora. E o que isso tem a ver com o que quero comentar em minha crônica de hoje? Talvez nada, mas, ao menos, saberão os leitores como teve início o tipo de contexto em que vivemos hoje, nesta cidade de aproximadamente um milhão e meio de habitantes. Por uma questão de estratégia de mercado e solução para o problema da segurança, os shopping centers proliferam por aqui. É onde encontramos tudo o de que necessitamos, sem nos arriscarmos pelas ruas movimentadas e às vezes perigosas. Existem mais de dez desses monumentos dedicados ao consumo e ao bem estar, em nossa cidade. Confesso que adoro shoppings. E lá estava eu comprando produtos para a decoração da casa, e logo, almoçando, e após, caminhando pelos corredores cheios de belas lojas, quando encontrei pelo caminho uma exposição de objetos de arte, de pequeno porte, em bronze. Interrompi minhas andanças e comecei a conversar com Arturo, o escultor, e sua assistente. Eu indagava uma porção de coisas a respeito dos trabalhos, mas meus olhos estavam pregados numa estatueta representando Dom Quixote de La Mancha. A criação do espanhol Miguel Cervantes de Saavedra deu vida à figura mais famosa do mundo. Seu romance, de mesmo título, 30 SCYLA BERTOJA é uma das mais admiráveis obras primas do gênio humano. Imortal. Mas por que nos fascina tanto esse insensato que vê beleza e encantamento nos mais simples episódios da vida? Que encontra poesia em meio a situações e personagens grotescos? Cuja fé, generosidade e nobreza de alma provocam sempre ternura e simpatia? Suas manias expõem Sancho Pança, o fiel escudeiro, a ridículos inimagináveis, ao mesmo tempo divertidos. A resposta a essas indagações não se fez esperar. Descobri que muitas vezes sou Dom Quixote, acreditando em sonhos e mentiras, confirmando a opinião dos que me vêem crédula e ingênua. Outras vezes sou Dulcinéia, cortejada com fidalguia por um nobre tresloucado que me imagina merecedora de sua atenção. Em outras ocasiões sou Sancho Pança, oferecendo devoto respaldo a um amigo que sei delirante, mas cuja beleza d’alma respeito e admiro. Desvendado estava o mistério do encanto do Cavaleiro da Triste Figura, seus amigos e sua história. Li em algum lugar que “Narciso acha feio o que não é espelho”, ou encontrei esta expressão numa canção de Caetano Velloso. Não importa. A empatia é o segredo de Dom Quixote. Comprei a estatueta e a coloquei na sala, em lugar do portaretratos com minha antiga fotografia. CRÔNICAS 31 Observações bem humoradas sobre o esquema Lupiciniano Que me desculpem os felizes, mas o sofrimento é fundamental. Poderia ser uma frase de Lupicínio Rodrigues parafraseando Vinícius de Moraes. Afinal, ambos tinham em comum: a música, o amor, a paixão, o poema, a noite, a mesa de bar, o copo, o sofrimento, a genialidade e a simplicidade. Tudo pela, tudo para, todo por... causa da mulher amada. Sem ela, nada mais faria sentido na vida; sem ela, se deveria procurar o fim, lenta e dolorosamente, de preferência assistindo no camarote da humilhação e da derrota a “volta por cima” que as mulheres costumam dar em contrapartida à entrega total desses eternos pierrôs. Eles, desesperados, se afogam em misturas etílico-masoquistas, sem nenhum pudor e, muitas vezes, na presença do arlequim de plantão. Numa comparação com os dias atuais, esses apaixonados seriam verdadeiros kamikazes do amor, porque, envoltos em grandes cargas de paixão, se jogam sobre seus alvos, sabendo, de antemão, que não há outro fim que a destruição fulminante de suas vidas. E escolhem-nas a dedo, cuidadosamente. Devem ser sempre mulheres que, fatalmente, vão lhes oferecer traição e sofrimento. Parece que estou a ouvir – “... me fazer passar tanta vergonha com um companheiro, e a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou”. As letras das canções são claras. As mulheres têm de ser “perfeitas” para o papel que vão desempenhar. Havia aquela que, ao falar, no recinto do cabaré, provocava um fenômeno físico na iluminação do local – “ ...repare bem, que cada vez que ela fala, ilumina mais a sala do que a luz do refletor... .” Hoje, até haveria quem dissesse que dita Afrodite seria possuidora de uma brilhante aura vocal, controlada pelo chakra laríngeo. Bem, mas esta já é uma incursão em seara alheia. Não sei se estou inventando uma 32 SCYLA BERTOJA bobagem alternativa ou demonstrando minha total ignorância no assunto, que é atual e sério. Desculpem-me os experts. O fato é que, às vezes, não resisto à tentação de fazer algumas brincadeiras. Mas, voltando às paixões de Lupicínio, na composição de suas músicas, que graça poderia ter uma relação de amor em que as duas partes são fiéis, cumprem suas obrigações, casam-se, enchem-se de filhos, bebem refresco de groselha e vão dormir cedo, porque amanhã é dia de batente, minha nega? Isso seria comum, seria o trivial, politicamente correto. Estaria de acordo com as normas sociais, religiosas e jurídicas; não constituiria transgressão; não produziria sofrimento; não provocaria dor-decotovelo; não terminaria em crime passional ou reações do tipo Me segura, senão eu mato essa mulher; não resultaria em samba-canção. Acho que foi por isso que o eu lírico de Quem há de dizer não aceitou o conselho do amigo que lhe dizia para regularizar a situação com a tal mulher e construir um lar, como todo mundo. Se o fizesse, destruiria a paixão e o drama. E quem mais sairia perdendo seríamos nós, o público, este sim, fiel ao gênero e ao Mestre. Além do mais, só houve uma mulher que foi parar num samba por ter sido fiel e honesta: Amélia. Mas acho que Lupi não a conheceu. CRÔNICAS 33 Inexorável Agora vejo que, quando se compra um imóvel, vale a pena fazer algumas investigações antes de fechar o negócio, e, ainda assim, podem ocorrer problemas inesperados. A gente compra um lindo apartamento num bairro nobre de Porto Alegre, em edifício recuado, andar alto, com orientação solar correta, etc. Muda. As manhãs são radiosas de início. A sinfonia de pássaros nos saúda com tamanha alegria que até nos parece estar morando em área rural. O silêncio das noites proporciona-nos o merecido descanso após o corre-corre do dia da cidade grande. Nos fins de semana o ar é limpo e a gente faz longas caminhadas para conhecer os arredores, zona de lindas residências das décadas de 50 e 60. Os estilos vão do germânico ao português, passando pelo anglo-saxão e romano, sem contar as construções mais modestas, nem por isso menos dignas, nas ruas transversais. Os jardins bem cuidados nos enchem os olhos de cores e variados tons de verde. E, quando os amigos e parentes vêm do interior, a primeira coisa que fazemos é levá-los para um passeio de carro para que conheçam um dos cartões postais da capital. E, claro, ostentamos uma ponta de orgulho pelo fato de também morarmos ali pertinho. Mas não somos bem vistos pelos moradores tradicionais dessas zonas. Somos o primeiro sinal de alerta de um problema de proporções ainda não mensuráveis, mas que, rapidamente, vai avançar como aquelas cadeias de dominós, só que ao contrário, com as peças que se erguem uma após outra, sem algum dispositivo que as faça parar, até chegar à última pedra. E os moradores antigos têm razão em nos olhar daquela maneira, já que somos os arautos do caos. De fato, em poucos anos as casas dos arredores foram dando lugar aos edifícios, as árvores desaparecendo da paisagem, e os pássaros, certamente apavorados, tiveram de buscar outros ninhos. Alguns, no entanto, ainda resistem, e seguidamente vêm cantar em nossas janelas, talvez para nos consolar. O cheiro do ar agora é o mesmo que o dos arredores da rodoviária, piorando sensivelmente nas horas de pique do trânsito confuso, 34 SCYLA BERTOJA nervoso e barulhento. Com o avanço da selva de pedra já havíamos perdido a companhia imponente de muitos palacetes da grande avenida e arredores. Vieram os bancos, os caixas eletrônicos, e com eles os assaltos, as sirenes da polícia, a todo momento, nos mostrando que não somos mais privilegiados. Podemos levar um tiro a qualquer hora, sem motivo algum, sem precisar sair do nosso bairro ou, até mesmo, do nosso condomínio. Grades de ferro, portas com alarme, poluição, nenhum requinte, nenhuma elegância. Quem pode, vai à Europa auferir outras culturas, ou a Nova York para ver os espetáculos da Broadway ou, ainda, a Buenos Aires para uma temporada. Na impossibilidade de ir ao shopping mais próximo, e se tiver a sorte de chegar ao aeroporto, pode ir fazer compras em Miami. Não é o meu caso. Mas até poucos dias ainda havia jardins, e eu, distraída como sempre, e sem nenhum senso de oportunidade, não os fotografei. As patrolas chegaram primeiro, e, dia a dia, impiedosa e friamente, e me parece até que com algum prazer perverso, os reduziram a montes de terra vermelha, tendo literalmente “comido” os terrenos até o primeiro degrau junto às portas das casas. Aquela cena prosaica de sair pela porta da frente, atravessar o jardim e chegar ao portão que dá para a avenida, nunca mais se repetirá. As placas de VENDE-SE e ALUGA-SE multiplicam-se, e o prejuízo é certo, pois tudo desvalorizou por aqui. E a municipalidade quer aumentar impostos. Absurdo, pois aqui tudo perdeu valor. Se eu suspeitasse que em tão poucos anos as coisas iriam se transformar assim, talvez tivesse ido morar na Itália, onde, em alguns lugares, ainda se encontram intocados trechos da Via Aurelia ou da Via Appia (iniciada em 312 a.C.) e de outras estradas construídas pelos romanos, mesmo após dois mil anos e muitas guerras, incluindo-se as duas mundiais. Será que só podemos planejar e construir destruindo? Ou até, pensei, pagamos o ônus de, talvez, estarmos testemunhando a construção da grande via que será um marco da civilização a ser admirado daqui a algumas centenas de anos? Mas desse modo as gerações do futuro não poderão comparar seus modestos cubículos sem nenhum terreno, com as construções elegantes e majestosas de outrora. Entretanto, isso também é um modo de não precisarmos dar explicações. Pode ser que um dia todos habitem gavetas iguais, usem roupas iguais e pensem da mesma forma. Será um mundo de muita harmonia. Huxley e Orwell já anteviam isso. E essa humanidade que vem aí não estará interessada em casas bonitas e seus jardins floridos, terá outras prioridades, certamente. CRÔNICAS 35 Não posso encerrar estes comentários sem uma saudação de adeus à Avenida Carlos Gomes, cartão de visitas de um tempo que se foi. Espero que alguém a tenha fotografado antes de seu sepultamento sob as toneladas de concreto da grande perimetral, que promete resolver todos os problemas do trânsito da capital gaúcha. E eu, a partir de agora, só abrirei minhas janelas à noite, porque acredito que vai levar ainda algum tempo para que as patrolas cheguem à lua e às estrelas. 12/6/2001 36 SCYLA BERTOJA Intertextualidades e curiosidades sobre temas recorrentes A vida e a arte Quando estive na Itália, em junho deste ano, assisti pela segunda vez ao filme Moulin Rouge, do australiano Baz Luhrmann, com Nicole Kidman e Ewan Mc Gregor, desta vez em vídeo, e na companhia de minha filha, grande cinéfila. A história passa-se na Paris do final do século XIX. Uma cortesã do show do famoso teatro parisiense e um jovem escritor inglês, pobre e desconhecido, apaixonam-se. Eles têm a simpatia e a proteção do diretor do show, mas em contrapartida, a oposição feroz do rico e nobre patrocinador. Até aqui tudo normal. Mas, algumas constatações me deixaram com vontade de escrever algo a respeito. Não sei se os demais espectadores dessa bela película fizeram as mesmas ilações. Inovação do produtor do filme: na Paris boêmia de 1899 ele colocou as músicas das últimas décadas do século XX, com arranjos de orquestra e canto lírico. A heroína belíssima e jovem é obrigada a renunciar ao seu amor (e morre tuberculosa – mal do século) para que o show possa continuar. Tudo lembra La Traviata, ópera de Giuseppe Verdi que estreou em 1853 em Veneza e cujos personagens românticos são Alfredo e Violeta, um estudante bem nascido e uma prostituta de luxo. Num gesto de grandeza, ela renuncia ao amado e morre tuberculosa. Mas Verdi se havia inspirado na peça A Dama das Camélias, montada em Paris daquela época e baseada na novela do mesmo nome, de Alexandre Dumas Filho, cujo enredo era o mesmo, e os personagens, Armand Duval e Marguerite Gouthier. Essa receita de drama fez sucesso ao longo dos anos e agora, pode-se dizer, dos séculos. CRÔNICAS 37 Entre os anos 30 e 40 Greta Garbo e Robert Taylor protagonizaram o filme A Dama das Camélias, em preto e branco, que continua sendo visto e tido como fonte inspiradora para novos e consagrados diretores de cinema. Um clássico. Receita infalível. Mas como nada se inventa realmente, e já houve quem dissesse que mesmo quando se escreve sobre pedras, está-se expondo as próprias entranhas, ouvi a respeito de uma relação, na vida real, de Alexandre Dumas Filho com Marie Plessis. Esta mulher, que depois se autocognominou Marie Duplessis, era de origem obscura e levava vida moralmente discutível. Dumas Filho estava apaixonado e com ela mantinha um relacionamento não muito discreto. Depois de algum tempo, ela o teria deixado para se casar com um Holandês, homem de posição e fortuna. Ela morreu com cem anos de idade e não jovem como a heroína da novela de Dumas, que escreveu a história da maneira como preferiu, e como agradaria ao público: romance, drama e nobreza de caráter. A heroína deve morrer, porque a morte a redime. É a fórmula do sucesso. No caso de Verdi há também uma ligação entre sua Traviata e seu relacionamento, na vida real, com Giuseppina Strepponi, cantora lírica com quem viveu por muitos anos, e que, segundo sei, amava-o tanto que por ele deixou sua grande paixão, o canto. Há quem diga que quando ligou-se a Verdi já estava em decadência, mas a verdade é que foi nobre e dedicada e representou o equilíbrio na vida do maestro de temperamento difícil e obstinado. Excelente pianista, ela o ajudava muito nas composições. Nunca puderam casar-se, pois ela já havia sido casada quando muito jovem e tivera dois filhos que não pudera criar. Assim, não poderia dar filhos ao seu grande amor numa situação legal. Só era aceita no meio artístico. A família dele, a sociedade tradicional e a Igreja não a aceitavam. Moulin Rouge, A Dama das Camélias, La Traviata, certamente vão continuar se repetindo, enquanto houver homens e mulheres dispostos a passar por cima das leis e das convenções da sociedade, para viver o seu amor. Que não temam as famílias. Sempre haverá uma grande maioria disposta a colocar em primeiro lugar as obrigações assumidas com o casamento e com a chegada dos filhos. Os casos de transgressão são mais raros, e, por isto, ganham notoriedade, transformam-se em romances, óperas, filmes e peças de teatro, e, não raro, em dramas familiares obscuros, sem manchetes nem luzes. 38 SCYLA BERTOJA Os Pastéis No ano passado fui à Itália rever familiares e com eles dividi momentos de grande ternura e alegria. É necessário regar essas flores de vez em quando ou corremos o risco de ver secarem os arbustos, as folhagens, os brotos. Foi uma verdadeira primavera para o meu coração e para os meus sentidos, apesar do frio e da chuva. Aproveitei para rever alguns lugares de minha preferência, que trazem belas lembranças e também visitei alguns poucos amigos. Mas, passado o período programado para essas férias, eu voltei. E como é bom voltar. Admiro os italianos – trabalhadores, empreendedores, cheios de garra, gente de espírito prático; são sensíveis, amam o belo, na sua grande maioria perfeccionistas, éticos e humanistas. A Itália é cheia de obras de arte, de história e de belezas naturais, e é onde todos nós, latinos, vamos encontrar nossas raízes. E o que dizer da música? Poderia falar tanta coisa da Itália que amo, mas seria redundante, todo mundo sabe. Mas, em que pese a grande admiração que tenho pelos italianos, há um momento em que é preciso voltar ao meu habitat. É necessário, porque a Itália cansa. E cansa num sentido que nada tem a ver com cansaço físico, mas com tensão, como aquela que sentem os vestibulandos após a entrega das questões e das grades para respostas; aquela obrigação de acertar, aquela necessidade de tomar decisões com o tempo contado. No meu caso essa sensação se alia ao fato de ter de falar outra língua por um período relativamente grande. Minha família fala italiano o tempo todo. Eu me esforço. Não quero desgostar a ninguém, já que há aqueles que não falam português. E gosto de me sentir um deles quando estou lá. O idioma é lindo. Retornando à pátria, a chegada ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, foi relaxante, deliciosa. Pisando em solo brasileiro depois de um mês na Itália, me senti calma, normal, sem aquela necessidade de decidir rapidamente, de saber imediatamente o que vou comer ou beber, de apertar o botão certo sem hesitação. Por que digo isso? – Simples. Porque na Itália, CRÔNICAS 39 desta vez muito mais do que nas anteriores, senti a grande diferença que existe entre eles e nós. É uma questão de estarmos permanentemente ligados, como eles, ou ter o direito de ficar em dúvida entre o pastel de frango e o de carne, sem ser olhado como deficiente por quem está do outro lado do balcão. Aqui no Brasil pode-se ficar por tempo indefinido olhando para os pastéis. No máximo, o que pode acontecer é alguém perguntar se precisamos de ajuda. Mas podemos tranqüilamente responder que estamos em dúvida entre os dois pastéis. Ninguém vai estranhar ou olhar para a gente com aquela expressão que significa: Não sabe o que quer? Então te manda, abobado, tenho mais o que fazer! Aqui, não. Aqui o fato de dizer que estou em dúvida pode até ensejar um bate-papo com a moça do balcão. Podemos falar a respeito de... qualquer coisa, não importa, tanto, é só para a gente se comunicar até o momento da decisão: “Me dá um pastel de frango e um refri.” Pronto! Ela agora se sente liberada para atender outro cliente, lavar copos, ou qualquer outra coisa, e eu, tendo resolvido, enfim, relaxo e vou comer o meu pastel, tranqüila e sem traumas, e vou lançar um olhar simpático para a gentil balconista, que retribuirá com espontaneidade, quase carinho. Afinal, isto é o Brasil. Possivelmente vou viajar outras vezes, não só para a Itália, mas para outros países, quem sabe, mas a sensação de não conseguir viver fora do Brasil sempre me assalta. O ritmo europeu é estressante. E o retorno é uma das melhores partes da viagem. 40 SCYLA BERTOJA O panetone Logo que entrei no supermercado notei aquela figurinha mignon, excessivamente curvada, cabelos brancos, lutando com a dificuldade de verificar os preços que se encontravam na parte superior das gôndolas. Ela girava para lá e para cá sem conseguir atingir as mercadorias que se encontravam acima de um metro de altura. Eu a observava discretamente, procurando evitar que notasse o meu interesse nos seus movimentos. Alguém que visse a cena até poderia ficar irritado com o fato de, até aquele momento, eu não ter me oferecido para ver os preços que estavam fora do alcance dela, e ainda ficar olhando. Poderiam pensar até que eu estava insensível ao problema da pequena senhora, o que não era, absolutamente, verdade. Eu estava louca para ajudar. Só que tenho a felicidade de conhecer muitas pessoas idosas com as quais convivo amiúde ou esporadicamente, sem contar as que já foram de minha estreita convivência e já partiram, e tenho a certeza de que aquela senhora sabia muito bem como conseguir as coisas de que precisava e estava habituada a enfrentar aquelas dificuldades sem a ajuda de ninguém. Ela me parecia do tipo que, se precisasse, tomaria a iniciativa de pedir auxílio. Muitas pessoas idosas que conheço se orgulham de serem independentes, de saírem sozinhas para fazer compras, ou de tomarem conta de suas casas. Não raro abrigam parentes que necessitam de sua ajuda em vários sentidos. E também há muitas delas que não gostam nem de serem chamadas genericamente de vovós ou vovôs, afinal, são indivíduos, são cidadãos com CPF e Carteira de Identidade, muitos ainda eleitores, e sentem-se e são universos diferentes entre si, não cabendo a quem quer que seja, rotulá-los, ainda que carinhosamente. Acho bom lembrar, inclusive, que alguns deles nunca se casaram ou tiveram filhos, até por opção de vida. Respeitemos, pois, suas individualidades. CRÔNICAS 41 Mas, voltando à pequena senhora que eu observava no mercado, a um certo momento notei que se dirigia a um jovem de seus trinta anos, que passava por ali. — O senhor é daqui?, perguntou. Ao que o homem respondeu que não, e passou direto, sem ao menos dar um segundo de atenção. Vi que estava na hora de fazer contato. – Eu também não sou daqui, mas venho diariamente. A senhora quer alguma informação? falei. Então ela sorriu com doçura, fixando em mim seus grandes olhos escuros. – Eu pensei que ele fosse funcionário do mercado. Ia apenas pedir que retirasse para mim um panetone daqueles ali em cima, disse ela, e completou: – Ele é um homem alto. Eu me dirigi à gôndola, retirei o panetone e o entreguei a ela, dizendo: — Até que enfim descobri uma utilidade para a minha altura. Ela sorriu novamente e agradeceu, desejando-me um feliz ano novo. O que eu quisera dizer a ela, realmente, era que ser alta não me servia de nada, a não ser que aparecesse uma pessoa como ela para dar sentido a essa característica genética com que a natureza me distinguiu. Nem que eu viva mais de cem anos chegarei à envergadura de sabedoria daquela pequena octogenária, tenho certeza. 42 SCYLA BERTOJA Rolo compressor Este texto foi escrito num momento de inconformidade com as constantes despesas extraordinárias agregadas às taxas do condomínio onde resido. Distribui cópias a todos os moradores do edifício. Haveria uma reunião, no dia seguinte, para discutir e aprovar mais obras e despesas. Depois disso, comecei a ser considerada uma espécie de agitadora, líder de algumas senhoras cujo objetivo era impossibilitar o trabalho da administração. Na verdade, meu único escopo era oferecer minha opinião a todos e demonstrar meu descontentamento com o rumo das coisas. Nas redondezas, não há algum edifício que apresente mais altas despesas de condomínio. Acho até que é hora de promover reuniões entre administrações de vários condomínios, para ver se conseguem aprender uns com os outros, e evitar sacrifícios maiores aos proprietários de apartamentos. O que temo é que em seguida essas reuniões de mútuo auxílio, se confirmando, venham a constituir-se em grandes castelos de poder, causando o efeito contrário aos objetivos iniciais. É sempre um grupo humano, com as características inerentes à espécie. “Vivemos uma era de incertezas, como já vêm dizendo há tempo os grandes da economia mundial. Sem falar no terreno da política e da ecologia. Afortunadamente, porém, a maioria das pessoas ainda sentem um mínimo de segurança em seus lares, quer na periferia, quer em bairros nobres. Fazer melhorias e agregar conforto às instalações das nossas casas ou apartamentos é, sem dúvida, um bom investimento. Nós merecemos alguma recompensa em bem-estar. Afinal, trabalhamos para isto. Vejo com muita simpatia a preocupação da administração do condomínio com a conservação, a funcionalidade, a segurança e o embelezamento das partes comuns e das economias do prédio. No entanto, não concordo em que se construam instalações desnecessárias, que venham a aumentar as despesas que já são muito altas. Pode ser lícito, mas não é ético criar um processo de exclusão através de obras constantes e a cada dia mais pesadas em termos de valores, provocando inadimplência, CRÔNICAS 43 intranqüilidade e constrangimento entre os condôminos/proprietários. E obrigando as pessoas a saírem de suas casas. Não sei se estou falando apenas por mim, que aqui vivo há trinta anos, ou se haverá mais moradores na mesma situação. A vontade que tenho é de vender meu apartamento amanhã, por qualquer preço, para dar lugar ao rolo compressor que se aproxima com toda a força: ou me esmaga ou me expulsa. Há um poder com o qual não tenho nenhuma intimidade, e que me assusta. Mais cedo ou mais tarde me obrigará a sair do caminho. A próxima “perimetral” será aqui e passará por dentro do meu lar. Sei que esta pode ser considerada uma crônica piegas. Continuo inconformada com o INEXORÁVEL. O que, no entanto, me conforta, é saber que muitas pessoas sairão ganhando com tudo isto: empreiteiras, engenheiros, arquitetos, fabricantes e fornecedores de material de construção, capatazes, mestres de obra, pedreiros, carpinteiros e tantos outros grupos que, afinal, também precisam ganhar e viver. Lamentavelmente, precisam construir aqui onde já estão construídas as nossas casas. Minha ignorância não me permite entender por que não constroem um outro edifício, totalmente novo, num grande terreno, em condições ideais para a realização de todas as possíveis e desejáveis maravilhas que merecem ter os que assim querem e podem. Não entendo por que devo pagar pelo seu sonho, com o dinheiro que não possuo.” 44 SCYLA BERTOJA Os frutos da insônia Às vezes não consigo dormir e então começam a chegar aqueles pensamentos indesejáveis: problemas que não foram resolvidos, suposições sempre negativas a respeito de tudo. Faço cálculos e tento planejar o futuro. Impossível, num momento desses. Levanto-me, faço um chá e ligo o rádio ou a televisão. Numa dessas noites comecei a assistir a uma reportagem num dos canais da NET. Onde fica a Macedônia?, pensei. Sempre fui péssima em geografia – minha neta sabe tudo e só tem doze anos. Macedônia. O repórter falava inglês e repetia muitas vezes esse nome, e se movimentava muito e falava de disparos, feridos, avião, soldados, civis, mas eu não conseguia entender o que havia acontecido. Parecia-me haver um problema técnico. Talvez houvessem colocado a fala relativa a um acontecimento enquanto mostravam as imagens de outro. Pensei que Macedônia poderia ser um daqueles paises do grupo da ex-União Soviética, que lutam para manter sua independência após o desmembramento da mesma. Ou seria um daqueles pontos de conflito do Sudeste Europeu da região da exIugoslávia? Sim, um país que faz fronteira com a Bósnia-Herzegovina (exIugoslávia), Albânia, Bulgária e Turquia. Tive de me valer do velho mapa. Mas meu conhecimento também não alcança as questões étnicas, religiosas ou políticas que geram as guerras. Achei melhor não aprofundar a pesquisa. Quem sabe em outro momento, com a ajuda de minha neta. Eu olhava a imagem na TV e via um vilarejo com arredores verdes, campos cheios de flores – maio é primavera na Europa – e, ao fundo, montanhas recortadas contra o céu azul. Melhor que se tivessem enganado com a reportagem, pois esse era um lugar lindo, que fazia imaginar férias em ambiente rústico e aconchegante. Em seguida apareceu o jovem repórter apontando em uma determinada direção e mostrando qualquer coisa destruída, um muro de pedras desmanchado até a metade, a câmera girou mais alguns graus e pronto, estava desfeito o pretenso engano. Um bombardeio havia acontecido ali, há poucas horas, matando e ferindo civis CRÔNICAS 45 e destruindo casas, fábricas, a escola e o hospital. É incrível a insensatez humana. Governos planejam e executam matanças nos mais diversos pontos do globo terrestre, sob os mais diversos pretextos, para impor seu ponto de vista e fazer prevalecer o seu interesse. O outro lado se defende como pode, matando e ferindo também, na certeza de que sua opinião é a correta. Ambos pensam que vale a pena dar a vida (dos outros) pela causa que defendem, pela religião que professam ou pela manutenção das tradições de seus povos. Enlouquecidos pela ganância, ou por ideologias de rancor e intolerância, seduzem os jovens à idéia do ódio e da destruição, para que as guerras não terminem nunca. Estão fazendo o jogo de um terceiro, que fornece armas. Alguém ganha com isso, mas não são as crianças, as mulheres e os homens comuns do povo. Até quando o mundo será governado e guiado por essas criaturas horríveis? Como é que essas pessoas podem viver, dormir e encarar seus filhos sabendo que seus projetos, suas políticas e suas decisões provocam a morte, a dor e a infelicidade de tantos inocentes? Que coisa absurda! Mudei de canal. E descobri que, apesar disso tudo, há festivais de música pelo mundo, há lançamentos de livros maravilhosos, há o cinema, a poesia, o amor, existem Pepi Garroux, Eros Ramazzotti, Emma Chaplin; existem Djavan, Milton Nascimento, e tantos outros, e as palavras de Lennon ainda ressoam nos quatro cantos do mundo: Imagine all the people sharing life and peace..., e a voz de Louis Armstrong embala nossa emoção: What a wonderful world. O homem é mesmo estranho, surpreendente, e, por vezes, odioso. Será que merecemos tudo o que o planeta nos oferece? Daí, no meio da noite, insone, triste e impotente diante de tanta barbárie, e ao mesmo tempo encantada com tantas beleza que existe e que é nossa, pensei que talvez devêssemos mudar de tática. Ao invés dos profissionais da área, quem sabe experimentássemos escolher nossos governantes entre aquelas pessoas que fazem trabalho voluntário sem partido político ou ideologias, educadores da melhor qualidade, historiadores, poetas, e, por que não, um congresso formado por artistas representantes de todas as artes, tendências e manifestações, e, por fim, um grupo de idosos com mais de 80 anos, que não possuíssem fortuna maior do que um passado de trabalho e honestidade? Concluo, em seguida, que o problema não está na profissão, mas no homem, que se transforma quando investido de poder. Tantos já foram testados e o resultado é sempre o mesmo. 46 SCYLA BERTOJA Adormeço na poltrona. Quem sabe quantas guerras passaram pela pequena tela da TV enquanto eu sonhava com um mundo de paz? Mas, quantos festivais de música, concertos, exposições de pintura, e lindas paisagens verdes, céus azuis, rios e mares límpidos? E crianças felizes, brincando despreocupadas nas praças cheias de flores? CRÔNICAS 47 Patropi Eu morava em um país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza. Melhor dizendo, ainda moro. E ainda penso que este é o melhor país do mundo. Desafio qualquer pessoa a mostrar-me terra que o supere, em vários setores. Mas começam a acontecer coisas que transcendem a minha capacidade de entendimento e me fazem temer reviravoltas desagradáveis. Começando pelo clima, que, como em toda parte, também está mudando aqui. O meu Sul maravilha, confirmando uma profecia de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, está virando sertão. Parece que agora chove só do outro lado, aquele onde antes havia seca. Portanto, até pode ser que o norte vire mar, como ele disse. A tranqüilidade com que sempre vivemos aqui, sem a violência que assola outras regiões do país, está desaparecendo. As pessoas estão matando e morrendo por qualquer motivo. Não há mais surpresa quando se ouve ou lê sobre as estatísticas do crime e da tragédia nos jornais, nas rádios, pelas ruas. Os professores, dentro das escolas, têm dificuldades para poderem ministrar aulas, porque, em alguns casos, parece que os alunos é que comandam e os mestres obedecem, por medo. Há apelos das autoridades para que não se dêem esmolas aos meninos que estão nas sinaleiras (semáforos), pedindo. Mas se a gente não der, o problema será resolvido? Quando? Os meninos crescem rapidamente. Daqui a pouco não vão mais pedir. Vão tomar aquilo que querem. Muitos já estão fazendo isso. E como fica a segurança de quem precisa andar na rua para trabalhar, sustentar família, estudar, comprar, passear? Detesto estar escrevendo sobre isto. Gostaria tanto de falar de praias, de jardins, de florestas. Mas como falar de florestas sem lembrar que uma freira idosa foi assassinada no meio da floresta na semana passada? E antes dela e depois dela muitos outros tiveram o mesmo destino? Quem mora nas selvas, agora não tem mais medo de cobra venenosa, de mosquito que transmite doenças letais, de jacaré que ataca o que estiver por perto. Tem medo é de outros seres, humanos que empunham armas de fogo. É proibido ter esse tipo de arma, a não ser em 48 SCYLA BERTOJA casos muito específicos, mas parece-me que essa norma não está sendo cumprida por enquanto. Ou esqueceram de avisar aos bandidos. Recebi um e-mail onde estão listados setenta e quatro tipos de impostos e taxas que os brasileiros pagam aos poderes constituídos. Nem li todos porque não adianta. Vamos continuar pagando. Essas receitas seriam supostamente para garantir um mínimo de atendimento e segurança à população. Parece ser insuficiente. Agora termina o período de férias escolares, veraneio e grande movimento de turistas de verão, e todos os dias somos informados do total de mortes no trânsito, fora as mutilações e os demais prejuízos causados pelos acidentes. Fico imaginando que deve haver um grande número de irresponsáveis, incapazes e doentes correndo por aí, pelas estradas do país. As campanhas são desenvolvidas pelas autoridades, pela imprensa, patrocinadas por empresas e muita gente se engaja fazendo sua parte pela paz no trânsito. Só que o verão começa e os índices voltam a surpreender, superando sempre os de anos anteriores. Não freqüento praias há muito tempo, mas acompanho a angústia das famílias cujos membros para lá se deslocam a cada ano em férias, ou nos fins de semana. Fico em casa lendo, escrevendo, gozando a delícia de ter as ruas da cidade só para mim quando faço meus passeios, porque a população muda-se para o litoral neste período. Mas preciso estar atenta: os assaltos e roubos podem acontecer a qualquer momento. Deus! Esse é o preço da civilização e do progresso? Vou sair menos. Um pouco de solidão, sim, mas tenho um computador, meio antigo mas que funciona. Só tem uma coisa: a qualquer momento podem estar entrando vários tipos de vírus que destroem o trabalho que fiz e armazenei. Por isto, tenho de imprimir tudo em papel. Mas o computador não era o meio perfeito para evitar o corte de tantas árvores que servem para a fabricação do papel? É, nem ficando em casa consigo evitar os acontecimentos negativos. A lista de pontos de descontentamento é imensa. Seria cansativo enumerar. Mas, no caso de ir embora para outro lugar, para onde iria? Começo a pensar: quero um lugar onde não aconteçam as coisas que mencionei, e não propenso a abalos sísmicos. Morro de medo de terremotos, tsunamis, vendavais, vulcões, enchentes, furacões, tufões, avalanches de terra ou neve, calor ou frio intensos. Terei de procurar um lugar onde não haja atentados terroristas, revoluções ou guerras convencionais e de outro tipo. Está difícil. Aqui multiplicam-se os movimentos sociais reivindicando segurança, mais escolas, terras, casas, trabalho, salários, pensões, melhora no atendimento aos doentes, aos idosos, às crianças, aos incapazes (handicap). CRÔNICAS 49 É sinal de que toda essa gente está descontente também. Chego a ter pena de quem faz parte dos governos. A gente fala que eles têm bons salários, mas eu não gostaria nem um pouco de ter de administrar essa situação de carência de tudo, ausência de tudo, insegurança em toda parte, pedidos de toda sorte, falta de recursos e alguma falta de capacidade. Há os sem-terra, sem-teto, sem-comida, sem-escola, sem-trabalho, e assim por diante. Nem tudo, porém, é tragédia e tristeza. Uma das características do nosso povo é o bom humor. E para aplacar a síndrome de catastrofismo, alguém lembrou de mim de maneira positiva. Vejam. Chegou-me um convite pela internet para fazer parte de um movimento novo, O MMSA (movimento das mulheres sem amor). Achei maravilhoso, forneci meus dados e solicitei inscrição, mas primeiro preciso saber qual território invadiremos para conseguir o intento de ver reconhecidos os nossos direitos. Ainda não recebi resposta. Receio que tenhamos de atacar algum exército de homens solteiros, viúvos, divorciados, indefesos, colocando-os contra a parede (metáfora) com ameaças nem sei de que ordem. Afinal, os movimentos reivindicatórios agem assim em sua maioria, tentando intimidar o opressor indiferente que nega resposta às justas aspirações da classe submissa. Se, para atingirmos nossos objetivos, precisarmos (ao menos) da simpatia deles, haverá assembléias em busca de consenso. Seria o começo de um entendimento? É complicado. Cansa-me o raciocínio. Pensando bem, ainda posso mudar de país, mas nunca poderei ter certeza de que os males de lá serão menos piores do que os males daqui. Vou ficar mais algum tempo para ver se melhora, mesmo porque, estou esperando a resposta do MMSA. 50 SCYLA BERTOJA Campanhas Sempre vejo na TV as entrevistas feitas na rua, com pessoas que vão passando, por acaso, no local onde se encontram os repórteres e os cinegrafistas. O repórter faz a pergunta, a pessoa inquirida responde e passa, às vezes meio apressada, outras vezes nem tanto, mas sempre um pouco surpresa com aquele contato que não estava no seu programa. Sinto que a maioria responde sinceramente às perguntas, mas há aqueles que ficam na dúvida ou desconversam. Imaginando-me na situação dessas pessoas, penso que teria gostado de ser entrevistada algumas vezes, dependendo dos assuntos abordados. Afinal, é uma oportunidade sem par. Dizer o que se pensa na sala de jantar da nossa casa para, no máximo, cinco pessoas, é uma coisa. Falar para mais de um milhão de pessoas sem ao menos ter sido avisada com cinco minutos de antecedência, é outra situação, completamente diferente. Pois é, isso me aconteceu hoje, não sei qual o canal de TV, não sei se vai ao ar ou se será cortado, só sei que foi horrível. Perguntaram-me se já havia contribuído para a campanha X. Eu respondi que sim. Pediram-me que explicasse por que havia contribuído. Eu disse que a campanha era séria e que sabia da necessidade desse ato em benefício das pessoas a quem a promoção se destinava. Daí fizeram a pergunta que eu poderia ter aproveitado para dizer ao mundo o que realmente pensava: – Como a senhora se sente pelo fato de haver contribuído? perguntou a entrevistadora. Eu, completamente abobalhada pela situação e pela surpresa, respondi que estava contente. É, só isso, contente. Na verdade, como a campanha era para arrecadar alimentos para os necessitados, por ocasião do fim de ano, o que eu deveria ter dito era o que realmente penso, ou seja, que gostaria muito que essas campanhas de alimentos, agasalhos, etc, não precisassem existir em nenhum período do ano e em nenhum lugar do mundo; que o que eu realmente queria era ver chegar o dia em que todos tivessem condições de viver do seu próprio trabalho, o dia em que todos só trouxessem ao mundo o número de filhos CRÔNICAS 51 que pudessem sustentar e educar, o dia em que o ato de alcançar um alimento a alguém que estivesse necessitado fosse uma atitude normal, simples, que dispensasse as luzes e a atenção da mídia. E que, nesse dia que eu espero ver, não fosse necessário o ato de pedir, mas que essas coisas básicas fossem direitos, não somente escritos em códigos amarelados pelo desuso, mas garantidos na prática, para a efetiva dignidade de cada ser humano. Ora, que estupidez a minha! Como poderia estar contente em doar uma ninharia e ainda deixar de aproveitar talvez a única chance de minha vida para falar o que penso a um grande número de pessoas? 52 SCYLA BERTOJA Busca incessante Descobri que, depois da palavra AMOR, a segunda mais difícil de definir é FELICIDADE. Encontrei esta afirmação numa revista, em artigo escrito por Bárbara Axt, que não conheço, mas que deve ser uma jornalista e articulista de respeito, pois que fez uma excelente pesquisa para poder escrever sobre esse assunto tão interessante. Sempre pensei em conceituar FELICIDADE e não consegui. Mas conservo na lembrança a sensação de felicidade que senti em alguns específicos momentos de minha vida. Então procuro visualizar mentalmente esses momentos, para ver o que exatamente me proporcionava esse estado de bem-estar exacerbado, e quanto tempo durava. E me dei conta de que variava muito o período pelo qual permanecia. Dependendo do que o causasse, o tempo de duração era maior ou menor. Lembro que algumas vezes chorei de felicidade, e em outras, sorri, ou melhor, ri muito, sem parar, sem conseguir me recompor e fechar a boca. Não tinha a noção de se eu estava feliz porque ria ou se ria porque estava feliz. Semelhante à euforia. E a felicidade não é só prazer, mas a expectativa de momentos prazerosos. Pensar no momento feliz nos faz tão felizes quanto o estarmos vivendo-o. Da mesma forma a lembrança dos bons momentos nos compraz imensamente. Essa satisfação também ocorre no momento da constatação de um fato ou situação esperados com ansiedade. Há um fio tênue que a separa da alegria. No artigo de Bárbara Axt confirmei uma de minhas teses. Diz ela, citando um pesquisador: “A felicidade não existe concretamente. É um truque da natureza.” Sempre pensei que estamos cercados de armadilhas. E tudo o que acontece nos impulsiona a reagir. E reagindo, fazemos o que a natureza quer que façamos. Desconfio que é o motivo pelo qual nunca queremos morrer, mesmo em caso de grandes sofrimentos e na falta de esperança. Algo nos move a reagir e a continuar vivos, na expectativa da cura, da mudança da situação, do milagre. Segundo o escritor e psicólogo americano Robert Wright, “as leis que governam a felicidade não foram desenhadas para nosso bem-estar CRÔNICAS 53 psicológico, mas para aumentar as chances de sobrevivência de nossos genes a longo prazo”. Assim, vejo que todas as coisas que fazemos na vida têm o objetivo de nos perpetuarmos, e a isca é a busca da felicidade. Mas é claro que, à medida que as metas são alcançadas, esgota-se a motivação, e devemos, urgentemente, sair à cata de outra coisa que nos faça lutar para atingí-la. E assim sucessivamente. No artigo que li havia uma comparação muito simples e interessante. A felicidade seria como uma cenoura pendurada numa vara amarrada ao nosso corpo, sempre adiante de nossos passos, de maneira que, à medida que caminhássemos em sua direção, a cenoura se distanciaria mais um pouco, nos impulsionando a buscar alcançá-la. Durante o tempo e o caminho dessa busca, iludidos pela possibilidade de chegar ao ponto desejado, iríamos resolvendo os problemas da vida, construindo, trabalhando. Penso que pode-se estar feliz, mas não se pode ser feliz. Porque estar denota uma situação temporária. Ser denota uma condição inerente e permanente: eu sou feio, ou bonito, ou inteligente, ou simpático. Mas não se pode dizer “eu sou feliz”. Sempre dizemos isso, mas não é adequado. Um pesquisador (Seligman) que também trabalha no sentido de definir esse estado que todos nós buscamos, chegou à conclusão de que a felicidade é a soma de três elementos: prazer, engajamento e significado. Enfim, vê-se que não é fácil conceituar esse estado de quase perfeito bemestar. As pessoas o buscam loucamente no trabalho, na arte, no amor, nas igrejas, nos ensinamentos de gurus, nas seitas, nos esportes, nas ideologias, nas utopias. E o problema se agrava quando envelhecemos, porque muitas coisas que seriam motivo de momentos felizes, já não são mais possíveis de alcançar. O exemplo mais encontradiço é aquele das pessoas que colocam a fonte de sua felicidade no companheiro(a). Isto não é seguro, porque o outro pode não pensar da mesma forma. Pode partir para sempre. Ou esperam encontrar felicidade na família, e esta se afasta para poder estar feliz e ainda reprova o modo de viver do idoso, como se ele não tivesse mais direito às coisas boas da vida. A diminuição ou desaparecimento do prazer, do bom humor, da beleza, do frescor daquilo que primeiro se vê: aparência física, têm muita influência na depressão dos velhos. O espelho vira um carrasco, e, salvo em alguns casos, a maioria o deve encarar ao menos uma vez ao dia. A primeira parte da teoria de Seligman, (PRAZER), nesta parte da vida, estaria prejudicada, segundo o meu entendimento. Então eu os encontro nas academias de ginástica, caminhando nas praças, tentando manter a forma e a saúde. Buscando a qualidade de vida. 54 SCYLA BERTOJA Eles também estão nos cursos e oficinas de artes. Talvez aí se encontre o ENGAJAMENTO, que é a segunda parte da teoria do pesquisador americano, neste caso válida também para os idosos. E talvez o terceiro elemento, SIGNIFICADO, esteja sendo buscado nas igrejas, nos grupos de oração, nas obras de caridade, no trabalho comunitário. Acreditar que estamos aqui por algum divino desígnio, como parte do Plano de Deus, dá-nos uma maior dimensão, a certeza de fazermos parte de uma unidade maior. Desta forma, conseguimos evitar o desalento, a depressão, o suicídio, e muitas doenças que têm seu fator desencadeador na ausência dos estados de felicidade. Precisamos sempre encontrar motivos para ter momentos, ainda que ínfimos, de felicidade. Os amigos podem ajudar. Melhor reunir uma turminha com interesses e gostos afins. Precisamos estar felizes, ao menos de vez em quando. E é um consolo pensar que a felicidade não é permanente nem para os jovens. Como as ondas do mar, como as lufadas de vento da primavera, ou as tempestades estivas, os momentos de felicidade vêm e vão. Seria o marasmo total se ela (a felicidade) se instalasse para sempre, de maneira imutável. Precisamos sofrer um pouquinho, ser infelizes, às vezes, ou então nem mais reconheceríamos os momentos bons. Seriam todos iguais. CRÔNICAS 55 A primeira vez é inesquecível Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. Quando entrei no avião, a sensação era de que houvesse mudado tudo, passado, presente e futuro, e até meu aspecto físico. O sonho acalentado por tantos anos se tornava realidade: eu estava embarcando para a Itália. Outra coisa interessante era o fato de estar fazendo isso sozinha, por minha própria conta. Não tenho espírito de aventura e nem me arrisco em situações desconhecidas. Por isso era excitante e um pouco assustador. Dentro da aeronave, aquele idioma que não era o meu, forçava-me a tentar entender o que diziam as pessoas. Meu italiano era somente para pequenos diálogos muito sucintos. Onze horas de viagem e chegava a Roma. No aeroporto de Fiummicino, muita gente e muita confusão. Pessoas das mais diversas nacionalidades e etnias. Vi-me, de repente, junto ao balcão de vôos domésticos, disputando lugar no primeiro avião que me levasse a Milão. Quando senti que precisaria gritar, gritei, e também empurrei gente. Não havia o sistema de filas. Ficava todo mundo amontoado junto às atendentes, tentando, cada qual a seu modo, chamar a atenção. A temperatura era altíssima. Suavam todos. Procurei um bebedouro nas proximidades. Encontrei, mas não havia água. Sentia muita sede. Vendo, porém, atendida minha reivindicação por parte da funcionária da companhia, e visto que o vôo para Milão partiria em poucos minutos, corri para o check-in, arrastando uma enorme mala que até hoje não sei para que me serviu, se depois não usei nem vinte por cento das roupas e calçados que continha. Cansada, com sede e começando a sentir fome, embarquei para Milão. O serviço de bordo era somente para esclarecer aos passageiros sobre poltronas e compartimentos de bagagens, e aquela demonstração pela qual poucos se interessam, de como usar os equipamentos de segurança. Nada de água ou alguma merendinha. O vôo era muito curto. Já no aeroporto de Linate, em Milão, após apanhar a valise gigantesca, fui procurar o sonhado copo d’água ou refrigerante. Eu me sentia como burro de carga, suando em bicas, precisando beber, comer, e afrouxar um pouco os arreios. Mas nada encontrei. Lá também não havia 56 SCYLA BERTOJA água. Nem nos banheiros. Uma senhora italiana que chegara nem sei de onde, mas precisava apanhar um táxi para ir até a Central dos Trens, à qual eu também me deveria dirigir, convidou-me a rachar a corrida. Olhei bem para ela. Pareceu-me confiável. Topei. E aprendi mais uma palavra: risparmio, poupança. Deu tudo certo. Lá estava eu na estação dos trens. E como havia trens, e como havia trilhos, e como havia gente com malas, e como havia painéis enormes indicando horários e binários. Abreviaturas, códigos, números, siglas. Ai, meu Deus! Nisso eu não era boa. A muito custo, descobri onde comprar o bilhete. Quero ir para Trento. Não há trens para Trento, Signora. Como? Então não posso ir para Trento? Primeiro tem de ir para Verona, Signora. Oba, daí chego lá e falo com os Capuletto ou com os Montecchio...! Mas o funcionário de cara enfarruscada e já meio irritado com minhas explicações e perguntas, não gostou da piada. Ou não havia lido Romeu e Julieta. Ou já havia atendido a novecentos e cinqüenta e cinco turistas chatos e atrapalhados na última meia hora. Mas eu comprei a passagem que ele sugeriu, e fosse lá o que Deus quisesse. Onde pego esse trem? Binário undici, Signora! Brava, eu sabia que undici era onze. Saí puxando a mala, já meio torta, boca seca e olhos arregalados. Os trens não ostentavam indicativo de localidade de destino. Eram todos iguais, e iam para todas as localidades, mas, onde estava o meu? O que queria dizer binário? Eu não suportava mais a sede, e entrei porta a dentro num restaurante da estação. Fui barrada. Aprendi outra palavra: Schioppero, Signora, greve. Não sei o que é isso, mas quero água, acqua, bere, bere, acqua, per piacere! Fiz aquilo que restava da minha cara de anjinho suplicante, mas recebi um solene NO, Signora. Niente acqua. Siamo in scioppero. Percorri mais outras portas e portinholas em todos os cantos da estação. Meu trem partiria em meia hora. O tempo era suficiente para um cachorro quente e uma cocacola. Todos fechados, com cartazes de SCIOPPERO. Pensei em subornar alguém para conseguir um copo d’água, mas fiquei com medo de apanhar dos sindicalistas coesos em torno de suas reivindicações, bem no momento em que a Itália era invadida pelos estrangeiros em férias – isso era, e continua sendo, uma grande oportunidade para as greves dos bares e restaurantes –. Perguntei a alguém o que era o binário, só para aprender mais uma palavra. Era trilho, sua besta quadrada! Vencida pelo poder do sindicato e pelo respeito dos cidadãos para com as causas dos trabalhadores – ninguém aproveitava para vender um refrigerante por baixo do pano e ganhar algum com a greve –, tentei entrar na porta do trem, que a muito custo encontrei, já quase partindo sem mim. Um homem sentiu pena e içou o malão para dentro, mas não me estendeu a mão. Enfim, com CRÔNICAS 57 algum esforço, consegui embarcar com o trem já em movimento. Foi por pouco! Quase que a mala vai e eu fico. Dentro do trem, acomodada na cabine de quatro lugares, um rapaz italiano teve paciência para me ouvir. Deu-me uma esperança. Na primeira estação onde o trem parasse – em quinze minutos – haveria pessoas vendendo, pelas janelas, tudo o que eu almejava. E era verdade. Aprendi mais uma palavra útil: panino. Não é um pão pequenino. É um sanduíche com pão tipo cacetinho ou francês. Nunca comi coisa tão deliciosa em toda minha vida. A fome é mesmo o melhor tempero. E a cerveja em latas supergeladas entrava pelas janelas do trem como uma invasão de gafanhotos metálicos. Do lado de fora do trem pessoas com tabuleiros contendo os mais diversos tipos de salames, queijos, pães, vinho e cerveja. Havíamos saído do perímetro urbano oficial, e ali o sindicato não tinha mais o poder de proibir-nos de comer ou beber. Em Verona, a famosa cidade dos amantes, fiquei preocupada com a troca de trem que deveria fazer. Mas isto não aconteceu. Fui informada, pelo fiscal, de que não haveria baldeação. Seguiríamos no mesmo trem até Trento. Ótimo. Menos um problema. E eu, com duas cervejas geladas e mais um sanduíche no saquinho plástico, pensava em Scarlett O’hara, em O Vento Levou (nunca mais sentirei fome em minha vida), olhando a paisagem que começava a mostrar-se cada vez mais verde, e sentindo o vento cada vez mais fresco, pela aproximação dos Alpes. O trem agora subia e fazia mais curvas do que no início da viagem. O ar vinha perfumado e frio e delineava-se no horizonte a silhueta das montanhas. Meus cinco sentidos tentavam absorver tudo aquilo de que sempre ouvira falar. Os rios que correm por lá não são fundos nem largos. Parecem córregos de águas verde-azuladas, meio leitosas, estranhos para quem os vê pela primeira vez. Assemelham-se a madrepérola. Margeando o caminho de ferro dos binários, cada centímetro de terra é cultivado, formando colchas de retalhos verdes de variados matizes. Casas de dois pisos, com jardins e hortas, nunca faltando a tradicional videira e os gerânios. Vacas de leite com sininhos ao pescoço, pastam solenemente, movendo-se de modo a produzir um som delicioso que chega junto com o odor acre dos currais. O trem segue. As pequenas cidades ficam para trás e o sol se põe. O frio me obriga a retirar o casaquinho de lã da valise de mão. Estamos chegando a Trento, que já não posso ver muito bem, pois anoitece. Não tivesse perdido tempo em Verona, a composição ferroviária teria chegado ainda com dia claro, e eu teria visto melhor a arquitetura austera dos palácios prussianos do Império Austro-Hungaro, que influenciou e dominou essa região por muito tempo. Basta dizer que até agora há um grande número de cidadãos italianos 58 SCYLA BERTOJA dessa zona da península que preferiria ter continuado sob o governo austríaco. Têm grande reverência à memória de Francisco José da Áustria, o popular e carinhosamente chamado Cecco Beppe. É, de fato, uma região diferenciada. Fala-se não só o italiano, língua oficial, mas também o alemão. E nos restaurantes e hotéis o cardápio é igualmente ao gosto de austríacos e italianos. Na estação de Trento, apresso-me a arrastar a mala para fora do vagão. Meu coração e meus olhos já desembarcaram e voam na direção da pessoa que me espera com um grande sorriso no rosto bronzeado pelo sol dos Alpes, olhos felizes de azul celeste, enquanto tenta avançar entre a multidão que acotovela-se na gare. Já no solo, sou envolvida pelos braços fortes e protetores que, dali em diante, me livrarão de todos os problemas práticos e me conduzirão como em sonho, ao mais belo lugar do mundo, a mil e quinhentos metros de altitude. A viagem continuará em automóvel, após um lauto e delicioso jantar regado a bom vinho, pelos caminhos que serpenteiam entre bosques e abismos, lagos e montanhas. Uma aventura de gelar a espinha. Rumo ao paraíso. Mas isto é assunto para outra crônica. CRÔNICAS 59 Além do limite do suportável No Brasil dos anos cinqüenta e sessenta, em cidades do interior do Rio Grande do Sul, e mesmo nos bairros da capital, Porto Alegre, os caminhantes cansados ou com sede, os desempregados sem qualificação oriundos do setor primário e os habituais mendigos, alguns doentes ou deficientes físicos sem recursos, costumavam bater à porta das nossas casas, ou bater palmas em frente ao portão, para pedir o que lhes fazia mais falta naquele momento. Às vezes era comida. Outras vezes pediam roupas usadas, calçados, um agasalho de tricô. Chegavam ao meio-dia, a gente servia um prato completo com tudo que havia sobre a mesa da família, e oferecia uma cadeira para que pudessem comer com maior conforto, no jardim. Outras vezes sentavam-se no degrau da porta e se fartavam de arroz, feijão e carne, bebiam água ou leite, agradeciam e se afastavam, bendizendo a pessoa caridosa que lhes havia servido. A frase característica desses necessitados era “Deus lhe pague!” Também era costumeiro ouvir-se “Deus lhe dê em dobro!”. Na verdade afastavam-se dali com as suas necessidades satisfeitas. Precisavam comer, beber e vestir-se. Mas normalmente acabavam levando ainda pacotes com bananas, pão, rapadura, farinha, e algumas roupas. Ninguém temia abrir a porta para falar com estas pessoas, porque elas não eram agressivas e nem procuravam roubar coisa alguma. Nossos equipamentos de jardinagem, como enxadas, rastilhos e pás, anoiteciam encostados do lado de fora da casa e pela manhã continuavam ali. O mesmo acontecia com o carrinho de mão ou com os nossos brinquedos. O único receio era que aparecesse algum louco furioso com o qual não saberíamos lidar. Esse tempo do qual falo não é a pré-história. Não está tão longe assim. Mas acabou. E tudo mudou vertiginosamente para pior. Hoje, quando se aproxima um pedinte, em primeiro lugar ele já nos olha com raiva, para ameaçar. Oferecer algum tipo de comida ou lanche é um insulto para eles. Possivelmente estão bem alimentados, e quando nos encontram, a última coisa que pensam é em comida. Mas então o que querem? Dinheiro vivo, meu amigo, e ainda dizem 60 SCYLA BERTOJA quanto é que tu vais ter de desembolsar. Tem aí dois reais, tia? Os mais modestos pedem um real só. Hoje pela manhã, quando tentava estacionar em frente à academia que freqüento, suando para conseguir colocar o carro numa pequena vaga, saltou na minha janela um menino de seus quatorze anos, enfiou a cabeça para dentro do carro, possivelmente procurando bolsa ou algum CD. Tive de acionar o freio, porque com ele pendurado ali eu não conseguiria o meu intento. Perdi a paciência e, ironicamente, lhe disse: Por gentileza, poderias deixar-me estacionar, primeiro? Depois tu começas a pedir, está bem? Mas ele não gostou. Queria “seu” dinheiro com o carro ainda em movimento. Não podia esperar. Mostrou-me um grande beiço, uns olhos furiosos, virou as costas e foi embora. A meia quadra dali, pouco tempo faz, eu encontrava sempre uma mulher, que todas as pessoas conheciam, caminhando entre os carros que paravam no semáforo, com uma criancinha no colo. E de uma semana para outra, mudava de criança. Não se importava de expor os pequenos a um sol de 34ºC ou mais, porque, afinal, não eram dela. Serviam apenas para amolecer os motoristas na hora da esmola. Eram alugados pelas mães, me disseram depois. Não fui confirmar isto, mas um dia lhe disse: Não vês que vais matar esta criança que já está possivelmente com o cérebro cozido neste sol? Espera-me sob as árvores da praça e vou chamar as autoridades para te darem auxílio. Foi o que bastou para que ela começasse a correr para longe, levando o inocente junto ao corpo suado e escaldante. Bandos de meninos em bicicletas, desafiando o trânsito descontrolado da cidade grande, fazem acrobacias enquanto o sinal está fechado, e depois correm para as janelas dos carros para arrecadar a contribuição de seu cativo público. Uma mulher aproveita a igreja cheia de gente no sábado à tarde, e percorre as fileiras de bancos onde estão os fiéis, pedindo ajuda para seu filhinho, que traz ao colo. Estende a mão com um bilhetinho onde se lê que a criança é doente e ela não tem recursos. O padre perde a paciência e solicita que ela se retire porque ali é proibido este tipo de atividade. Que procure a secretaria da Igreja depois da missa. Uma empresa abre seleção para preenchimento de uma vaga e logo se forma uma fila que se estende pela quadra toda e dura um dia inteiro com sol ou com chuva. Cem pessoas para uma vaga? É brincadeira, direis! Não, não é! Trinta mil candidatos para 28 vagas no concurso do serviço público? É brincadeira! Não é, não. É a nossa realidade. Nossos números são aterradores. Ganhamos qualquer concurso de horrores. Hordas caminham pelas estradas rumo às propriedades rurais para promover ocupações. Levam velhos e crianças e enfrentam tudo. Mas estes têm fornecimento de comida, roupas, escola itinerante, remédios, organização. CRÔNICAS 61 É diferente. Em nossa cidade o clima de caos está ficando a cada dia mais nítido. Nas grandes vias e nas calçadas o mau cheiro é uma constante. O lixo toma conta do riacho que corta uma das mais importantes avenidas da cidade. Vi isso ontem, quando percorri toda a extensão desse valão infecto, sob cujas pontes alojam-se famílias inteiras. São pessoas que trabalham normalmente, mas cujos salários não são suficientes para alugar, e muito menos construir uma casinha. Então, pensei agora, na década de sessenta éramos uma comunidade nacional (ou regional) que conseguia viver dentro de uma estrutura adequada para o número de pessoas que ali se encontrava. O número de moradores foi aumentando, aumentando, aumentando, e a estrutura continua do mesmo tamanho. Parece que poderemos ter um esfacelamento da estrutura, já que não se pode mandar embora as pessoas. Elas já existem. O problema é gigantesco. Pensando nisso tudo, hoje procurei na prateleira o livro-reportagem escrito pelo cartunista Henfil, durante sua visita à China, em 1977. Foi até divertido quando achei o livro e li a minha anotação na primeira página. Diz assim: ESTA É A TERCEIRA VEZ QUE COMPRO ESTE LIVRO (as pessoas pediam e não devolviam), VAI SER BOM ASSIM NA “CHINA”. Trata-se de “Henfil na China” (antes da coca-cola), Ed. Codecri, a do Pasquim, editor Jaguar, 11ª edição, Rio de Janeiro. É o relato minuto a minuto da viagem de Henfil à nova China, a de Mao, conhecendo o país depois da libertação. Faz rir e faz pensar. Não sei se encontra-se em livrarias, mas certamente nos sebos, sim. Mas a leitura desse livro tem implicações profundas nas nossas convicções. Balança as nossas estruturas. Ninguém mais é o mesmo depois de sua leitura. Claro que o que encontramos ali é um exagero, caricatura proposital, mas pode-se colher lições de dignidade e aprender a resolver problemas sociais que já estão ultrapassando os limites do suportável em alguns países do terceiro mundo, como o nosso, guardadas as devidas proporções e observadas as diferenças de caráter entre um povo latinoamericano e um povo oriental de cultura milenar. Não gostamos da idéia de perder nossa liberdade e nossos direitos individuais, como aconteceu lá, mas somos criativos. Será que as lições não podem ser adaptadas, usando-se aquilo que combina mais com nosso jeito, dispensando a força bruta e utilizando nosso “jogo de cintura”? Algo tem de ser feito. Nossos irmãos depossuídos não podem se contentar eternamente só com o “título” de cidadãos e vivendo como párias. 62 SCYLA BERTOJA A propósito de vôos De repente, eis-me na cidade de Canoas/RS/Brasil, na Avenida Victor Barreto, também conhecida como faixinha, em frente ao Instituto La Salle, às dezenove horas do dia 20 de abril do ano 2005, participando de uma Oficina de Crônicas, intitulada O Vôo da Palavra. Walter Galvani, jornalista e escritor, ex Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, autor de obras bastante conhecidas e premiadas, leva-nos a sobrevoar os mais famosos cronistas brasileiros e portugueses, mostra-nos belos trabalhos no gênero, enumera conceitos emitidos pela intelectualidade a respeito da crônica, comenta as que falam da falta de assunto para escrever a própria crônica, sugere leituras pertinentes. É um exemplo de como podemos empregar bem o nosso tempo livre, aumentando nossos conhecimentos e encontrando pessoas interessantes. Por acréscimo, eu, particularmente, estou emocionada. Não com os belíssimos textos, que até mereceriam um certo exacerbamento da sensibilidade. Amo os textos. Mas, estou enternecida com o barulho dos trens, em sua cadência férrea característica. E eles passam a poucos metros deste local. Estamos dentro da antiga Estação da Estrada de Ferro, que hoje restaurada, abriga a Fundação Cultural de Canoas. Impossível controlar as lembranças que correm céleres diante dos olhos de minha alma. Provenho de uma família de ferroviários. Nasci perto da linha do trem, viajei por todos os recantos do Rio Grande do Sul servidos pelas paralelas negras que uniam pontos estratégicos para a economia e a integração gaúchas dos velhos tempos. Conhecia o cheiro das Estações, as peculiaridades e o conforto do trem, veículo encantado onde podíamos, quando crianças, comer maçãs argentinas, beber guaraná Cirilla, comprar revistas (Jornal das Moças) com fotografias das estrelas do cinema americano e dos talentos do Rádio Brasileiro. Traziam anexo folheto com as letras das marchinhas de carnaval. Meu avô viajava em carro especial, era o Inspetor da Estrada de Ferro. Meu pai foi telegrafista das pequenas CRÔNICAS 63 estações do interior e todos nós em casa conhecíamos o código Morse. Era o nosso segundo idioma. Não perco, no entanto, palavra alguma que seja proferida pelos integrantes da oficina. Na canção Felicidade, o caboclo já dizia que “o pensamento parece uma coisa à toa, mas com’é que a gente voa quando começa a pensar”. É o que me tem acontecido, diariamente, dentro desta Estação. A palavra também pode voar, mas a crônica, às vezes, vem de trem. 64 SCYLA BERTOJA Camilla Estou tão contente com o casamento do Príncipe Charles com Camilla, em abril próximo, que consegui até desencadear uma discussão acalorada com pessoa da minha família a respeito deste assunto. Atropelada pelos meus argumentos, minha tia quase sucumbiu, concordando em parte com meu ponto de vista. Não adiantaria muito uma manifestação contrária da parte dela, porque esta manhã – portanto, antes de falar com ela – eu já havia anotado na agenda: VIVA CAMILLA. Se pudesse, viajaria à Inglaterra para presenciar a realização desse sonho, o final feliz desse romance, que resistiu a tudo e a todos. Finalmente unidos contra a cara do mundo, este mundo babaca, que só quer contos de fadas: o príncipe, a noivinha jovem e bela como aquelas do cinema, a família de acordo porque tudo se encaixa nos interesses da coroa e tantos outros elementos que, em ordem de importância, vêm antes do amor, “essa bobagem piegas”. Charles conheceu Camilla em 1971 – ambos solteiros. Ela casouse com outro, mas os dois anos de namoro com o príncipe criaram laços muito fortes. Ela teve seus filhos, viveu casada um tempo, e depois divorciouse. O tempo passou. Charles casou-se com Diana, amando Camilla. Entendo que mesmo que ela fosse livre naquele momento, não poderia pretender a posição mais alta para uma mulher na casa real, abaixo apenas da Rainha, e ainda por cima parir os herdeiros de Charles. A Igreja não estava de acordo. Isso poderia levar o povo britânico a desencantar-se e exigir do parlamento o fim do regime monárquico, que, aliás, está super maduro há muito tempo. Charles e Camilla cumpriram suas obrigações de súditos da coroa e cidadãos ingleses. Sacrificaram o sonho. Mas não mataram o sentimento. Depois de todos os revezes do casamento com Diana, durante o qual parece-me que a ligação do príncipe com Camilla continuava veladamente, sobreveio a tragédia e o par romântico estava novamente livre para assumir seu amor publicamente. Mas não era assim na prática. Precisavam deixar passar algum tempo. E deixaram. Precisavam esperar pelo sinal verde da coroa. E esperaram. Os deuses do amor lhes foram CRÔNICAS 65 favoráveis sempre. A casa real, os súditos britânicos e demais autoridades, não. O mito Diana precisava desbotar um pouco na memória do povo. E, tenho comigo que aquela história de que o real consorte da rainha é que a convenceu a aceitar Camilla como nora, é só para dar a impressão ao povo britânico e ao mundo, que a rainha ainda nutre preconceitos e conserva tradições. É cômodo dar a responsabilidade ao duque. Ele tem de desempenhar esse papel. Aquelas decisões antipáticas ele assume, e a rainha fica sempre resguardada frente à opinião pública. É claro que ela quer a felicidade do filho, só que não pode demonstrar fraqueza no cumprimento das tradições da casa real. Mas, seja como for, agora todos concordam. E ela, a rainha, pode finalmente dar a entender que “suportará” Camilla como nora. Tenho para mim que ela até admira a altivez, a firmeza e a capacidade de amar de Camilla. É a mulher que faz seu filho feliz. Eu disse que agora todos concordam? Ah, mas não é assim. Noventa e nove vírgula nove por cento das pessoas com as quais falei – não por acaso mulheres –, disseram estar descontentes com esse casamento. Motivos? A Diana era linda e a Camilla é feia; O Charles foi infiel e elas estão com ódio dele; Charles é feio; A rainha não deveria permitir isso; Os filhos serão cobertos de vergonha perante o mundo; A avó de Camilla teria sido amante de um príncipe de Gales – a neta seguiu o mau exemplo, e assim por diante. Credo!!! Mas esse preconceito é aqui no Brasil? Concluo até que há contingentes substanciais para levarmos a efeito uma marcha pela família e pelos bons costumes. Britânicos, claro, porque aqui nada há para ser mudado. Entre todas as opiniões ouvidas, não consigo lembrar de uma que imediatamente fosse a favor da união. A ninguém – fora jornalistas polêmicos – ocorreu que isto fosse uma prova de que o amor existe, e não tem preconceitos, e é duradouro, e aceita sacrifícios, e às vezes, como neste caso, vence estrondosamente a tudo e a todos. Em uma fotografia veiculada pelos jornais, onde aparece o casal sentado em arquibancada, assistindo possivelmente a uma corrida de cavalos, a felicidade estampada nos rostos sorridentes dos dois – e não faziam pose – é a tradução fiel da harmonia de gostos, humor e atitudes. Eles não precisam da nossa opinião ou dos nossos votos de felicidades. Seriam felizes em qualquer circunstância. Eles se amam. 66 SCYLA BERTOJA Chattare Por qual motivo procuramos, cada vez mais freqüentemente, falar com pessoas que não conhecemos, e que certamente nunca encontraremos? Tenho pensado nisso, após algumas investidas nos chats que existem por aí afora. Fiz isso, primeiramente, por curiosidade. Fiquei decepcionada com o nível das conversas que encontrei nas primeiras vezes. Mas, continuei procurando coisas melhores, e digo-vos que um novo papo é possível. Encontrei pessoas muito interessantes e com bons conhecimentos. Principalmente em chats estrangeiros. E por que fiz e vou continuar fazendo esses passeios virtuais? Simplesmente porque preciso de contraponto para minhas idéias; necessito de interlocutores inteligentes, intrigantes, alegres, atualizados, e que não tenham nenhum outro compromisso comigo, a não ser conversar. Somos mais verdadeiros com alguém que não nos vê – por este motivo devem ter sido inventados os confessionários –. E mais sinceros ainda quando utilizamos outros idiomas. Isso me desafia. Devo ter respostas prontas, rápidas, diria, na ponta da língua, ou dos dedos. Fala-se dos mais diversos assuntos. Há pessoas com uma tal ironia ao chatarem com a gente, que nos obrigam a performances de ginástica olímpica cerebral, para não perder o jogo. Cada qual quer ser mais genial, e isso é ótimo. Também há pessoas que começam a perguntar coisas e em seguida se desinteressam e saem. Sinto que minhas respostas não agradaram. Não era isso o que a outra esperava. E, de forma diferente dos nossos costumes “de verdade”, há o adeus e a aceitação instantâneos, sem dor nem lágrimas. Partimos para o seguinte na mesma hora sem ao menos nos indagarmos “onde foi que eu errei?”. Isso não é necessário, porque nos chats não se erra e nem se acerta. O que existe é um jogo de ping-pong de idéias ou troca de informações sem compromisso. Não temos culpa por não conseguirmos agradar a este ou aquele interlocutor, e nem fazemos esforço para isso. Não queremos ser aquelas “gracinhas” que passamos a vida toda fingindo ser. Somos verdadeiros e nos damos bem, ou somos uma farsa e preenchemos os sonhos de alguém e/ou os nossos. Quem ainda CRÔNICAS 67 não entrou em chats não sabe o que está perdendo. Claro, temos de escolher bem, e falar somente com pessoas que estão interessadas no que também estamos. A turma da bobagem, que fique trocando seu besteirol, suas loucuras e obscenidades, que o façam a seu bel prazer. Os bons e os maus estão juntos ali, mas nós fazemos a diferença. Vamos em busca do que nos interessa. As pessoas verdadeiras, de carne e osso, nos prendem pela emoção, pela possessividade, pelo interesse, e, quando nos damos conta, em alguns casos, não dá mais para sair. E as decepções são sérias. Minha opinião e simpatia pelos chats não serve de conselho às pessoas que querem namorar, casar, constituir família. É claro que nestes casos há necessidade dos verdadeiros contatos de confiança e conhecimento mútuos, para alicerçar a vida presente e futura. Minha opinião é para mim mesma e para outros como eu, que já fizeram seu papel na vida, já cumpriram suas obrigações e agora estão sozinhos. É um passatempo. Eu já consegui até falar sobre receitas de pratos interessantes. E também sobre coisas nossas, livros, costumes, tudo, enfim. As pessoas de outros países são curiosas a respeito do Brasil. Esse universo parece ilimitado. É uma opção. E mexe com os neurônios. Aqueles dois (Tico e Teco) que pensavamos que não se entenderiam nunca mais. — Ciao, vuoi chattare con me? – Would you like to chat? – Quieres hablar conmigo? – Oi, alguém quer TC? Ainda podemos apelar para a imaginação: – Oi, pessoal, sou uma princesa egípcia, escondida numa gruta junto ao lago XXYY, que se comunica com o mar nas noites de lua cheia e... Preciso conversar com alguém para me manter com hábitos humanos. Ah, ia esquecendo: às vezes me transformo numa pantera negra... Bem, não custa tentar. Alguém pode acreditar. 68 SCYLA BERTOJA Pensadores Como não tenho muito tempo para ler os artigos e reportagens de fôlego veiculadas pelos jornais, trabalho com um esquema de eliminação dos excessos, que respeita apenas os meus interesses. Leio as manchetes, seleciono rapidamente o que quero ler, e mesmo assim faço uma leitura dinâmica das notícias. Gosto mesmo é de crônicas e humor. Mas às vezes me caem sob os olhos aquelas frases de sabedoria dos pensadores de todos os tempos, cuja validade atravessa os séculos e cujo conteúdo lógico e moral suscita um turbilhão de idéias. Pois hoje encontrei a máxima A AMBIÇÃO UNIVERSAL DOS HOMENS É VIVER COLHENDO O QUE NUNCA PLANTARAM, atribuída a Adam Smith. Fiquei a meditar por alguns minutos sobre essa expressão. Verifiquei os dados: Adam Smith nasceu em 1723 e morreu em 1790. Era escocês, estudou em Oxford e lecionou Filosofia. Escreveu obras importantes como A Riqueza das Nações. Poucos duvidam de que ele foi o formulador da Teoria Econômica. Ele pensava que, se cada um fizesse somente aquilo que sabia fazer melhor, o resultado seria o aumento da produtividade e da riqueza. Estava convicto de que, mesmo que o homem se dedicasse a fazer unicamente o seu interesse, fatalmente atingiria o resultado ideal de fazer os interesses da coletividade. Acreditava na auto regulamentação do mercado e via como desnecessária a excessiva intervenção do poder público nessas questões. A concorrência e a produtividade ditariam, segundo ele, as normas. Produzindo mais, baixariam os preços. Quando alguém estivesse ganhando muito dinheiro com um tipo de negócio, outros entrariam também no ramo e a competição estabeleceria o patamar verdadeiro. No entanto, e isto já são considerações minhas, ao longo da formulação de suas teorias sobre a economia, acredito que tenha se decepcionado com um fator para o qual não dera muita importância de início. Quando formulou suas teorias, penso eu, imaginou uma sociedade constituída por pessoas honestas e trabalhadoras que gostavam de produzir para si, para vender e ganhar, vivendo com abundância, formando um grupo humano feliz, transacionando com outros grupos CRÔNICAS 69 humanos com os mesmos objetivos, e assim por diante. Ele imaginou um mundo feliz, uma humanidade satisfeita e equilibrada. Este foi o seu erro, sempre segundo o meu pensamento. Não conheço economia, filosofia ou política, mas acho que Adam Smith foi muito ingênuo. Não levou em consideração a possibilidade de os homens serem desonestos, gananciosos e cruéis. Não viu que o homem escravizava seus semelhantes, roubava o ganho sacrificado do trabalho alheio, queria sempre mais, mesmo que já houvesse obtido o supérfluo, vendia venenos, armas e drogas para locupletarse, mesmo que isso significasse a morte, a miséria e o sofrimento de outras sociedades. Acho que quando deu-se conta de que esse fator, homem, estragaria tudo, proferiu a frase lapidar A AMBIÇÃO UNIVERSAL DOS HOMENS É VIVER COLHENDO O QUE NUNCA PLANTARAM. Porque assim sempre foi, desde muito antes de Adam Smith. Muitos impérios da antiguidade sucumbiram diante da ambição de um outro que conseguia, através da violência da guerra, COLHER o que aquele havia PLANTADO, apossando-se até das populações para fazê-las escravas. Pergunto-me se algo mudou de lá para cá nesse sentido. Os códigos nos obrigam a deveres que, uma vez cumpridos, garantem os mais sagrados direitos, como de propriedade, de opinião livre, de ir e vir, não ser condenado por atos que não estejam previstos em lei regulamentada e sancionada, tanto para citar alguns. Mas quando as autoridades querem um determinado resultado que dentro da lei não é possível, cancelam a lei e voltam aos antigos impérios, através dos mesmos métodos, e os direitos dançam. No terreno pessoal acontece a mesma coisa. Quando um ser humano sem moral, sem caráter, quer muito alguma coisa que outro possui, passa por cima das leis e toma através da violência aquilo que o outro sacrificou-se para conseguir. Ou subtrai sorrateiramente o alheio simplesmente para satisfazer suas ambições. Vale magoar, vale matar, vale mentir, vale tudo. Querem mesmo é COLHER O QUE NUNCA PLANTARAM. Adam Smith pode ter-se enganado quanto à natureza perversa dos homens, mas arrependeu-se a tempo de construir essa frase que me provocou tanta inquietação. 70 SCYLA BERTOJA Descobri que sou flor Sou daquelas pessoas antigas, que só acreditam no comprimido comprado na farmácia convencional, receitado pelo médico, etc.... Mas é claro que às vezes fujo desse comportamento ortodoxo e tomo um chá com mel ou coisas desse tipo. O problema é que quando tento modificar meus hábitos antigos, arraigados e até perniciosos, bato de frente com novidades de difícil administração, como a necessidade de me movimentar mais, levantar mais cedo ou comer menos. Isso sem falar da escolha dos pratos adequados às refeições na minha faixa etária, atividades costumeiras, problemas de saúde e limitações. Nesta semana resolvi, visando ao descanso e à saúde, passar alguns dias em hotel localizado na zona das fontes de águas minerais de Santa Catarina, com estrutura para tratamento de águas termais. Há de tudo, massagens, hidroginástica, trilhas para caminhadas, hotelaria completa e eficiente. Casualmente, e por sorte, assisti a uma palestra sobre iridologia. Segundo o palestrante, um estudioso profissional da área, trata-se de “ciência que estuda as disfunções orgânicas através dos sinais presentes na íris, a parte colorida de nossos olhos”. Ali, na íris, há zonas específicas que mostram o funcionamento dos órgãos do corpo humano. Se alguma coisa não está funcionando como deveria, as marcas na íris o acusam. E a partir dessa constatação, são sugeridas terapias e complementos alimentares adequados, para fazer retornar à normalidade o organismo, aliviando ou curando os males do paciente. Este trabalho é feito em concerto com a medicina tradicional, com médicos e terapeutas devidamente engajados na realização do objetivo comum, que é a saúde e a mudança de hábitos das pessoas. Na verdade, o grupo do qual faz parte o profissional em questão, é formado por terapeutas de diversas especialidades, cujo propósito é integrar os diversos tratamentos, já que o funcionamento do corpo humano é complexo e requer diferentes ações para o atendimento satisfatório de suas CRÔNICAS 71 necessidades. Não posso dar informações técnicas ou científicas, obviamente, porque não conheço a matéria e nem ao menos ainda me submeti a tratamento similar, mas, sugiro aos curiosos que acessem o site www.maoressonante.com.br. É o que eu também vou fazer quando voltar para casa e confortavelmente me sentar à frente do meu querido PC. Não estou fazendo propaganda, mas, relatando uma experiência. A palestra foi muito interessante. Edson Miguel Bonotto (Naturopata e Iridólogo), com um discurso bastante didático e simples, e o auxílio de um monitor de PC e uma iridiocâmera, colocou na tela, para todos verem, a íris de um olho humano, e mostrou como tudo funciona. Além disso, distribuiu folheto contendo um mapa detalhado das regiões da íris onde se encontram as marcas dos órgãos humanos. Utilizou um esquema de padrões de comportamento, em três tipos principais, aos quais chamou de JÓIA, FLOR e CORRENTE. Eles estão retratados na íris dos nossos olhos. Uma rápida observação da nossa íris permite reconhecer o tipo metódico, rotineiro, “certinho”, o tipo emotivo e apaixonado, ou aquele contemporizador, compreensivo, intuitivo. Descobri que sou CORRENTE e FLOR, meio a meio, e, conseqüentemente, jamais serei JÓIA. Tive minha íris (olho esquerdo) mostrada na telinha, e me arrisquei a ver meus segredos desvendados para uma platéia de pessoas distintas e inteligentes. Claro é que ninguém estava interessado nisso, mas em informações sobre o método científico em apresentação. O nome da organização é Mão Ressonante – Terapias Complementares. A palestra foi levada a efeito nas dependências do Hotel Internacional – Grupo Gravatal. Não vou ganhar terapia gratuita, não. Só queria contar alguma coisa interessante para aqueles que ainda não conhecem essa ciência, que não é nova, de acordo com o que contou o profissional citado. Possivelmente tenha ganhado agora um maior espaço no âmbito da divulgação das terapias, porque combinada com as demais e aperfeiçoada pela utilização da informática. Agora vou voltar à minha caminhada pelos lindos jardins com vegetação luxuriante, exótica e nativa, que tornam incomparável o paisagismo dos arredores do meu hotel. Com licença. 72 SCYLA BERTOJA Ela quer se casar Minha amiga italiana, solteira, economista, disse-me que quer se casar. No momento, concordei, mas argumentei que, embora não haja uma proibição legal a esse tipo de decisão por parte das pessoas de meiaidade, ou, mesmo, contra a efetiva mudança de estado civil na maturidade, é de se pensar muito, antes de enveredar por um caminho desconhecido e dividir a vida com alguém. Casamento não tem teste drive. Recomendei prudência, atitude que pouco utilizo, mas, que gosto muito de aconselhar aos outros. Ela é uma mulher muito inteligente, cheia de sabedoria; age com lógica e racionalidade; é estudiosa; é pontual. Apesar de já aposentada, continua a trabalhar com entusiasmo e constância. É elegante e recebe amigos com um savoir faire invejável, sem cair no vedetismo ou no modelo deslumbrada. Pelo contrário. Faz tudo isso com a maior naturalidade, sem afetação. Suscita respeito, admiração e confiança. Fiquei pensando que, se possui todas estas qualidades, é estranho que já não esteja casada. Mulheres assim são como o dinheiro: não se encontram em touceiras. Seria a companheira certa para um executivo de sucesso, que precisasse ao mesmo tempo o apoio familiar e o auxílio nos negócios; a mulher elegante que sabe conversar e se comportar nas reuniões sociais e, ao mesmo tempo, a parceira dos momentos de lazer e de intimidade. Pensei muito sobre isto e, porque a conheço de longa data, cheguei a uma conclusão, que não é definitiva, mas se aproxima de uma resposta aceitável e muito provável. Ela precisa de uma vitrine onde possa expor seus dotes. Lamentavelmente, na meia-idade ou na maturidade, há uma certa timidez por parte de mulheres e homens sozinhos, e falta um ambiente apropriado para que se conheçam sem riscos de serem magoados ou explorados, ridicularizados ou até enganados por elementos sem escrúpulos, que, digase a verdade, estão espalhados por toda parte. Como saber aonde ir sem correr esses riscos? Muita gente se conhece pela Internet, mas é um pouco arriscado. Outros vão aos conhecidos bailes, mas não me parece o local onde se encontram pessoas desta categoria. O que fazer? Estou a pensar, CRÔNICAS 73 louca de vontade de ajudar a esta mulher tão especial e querida, que não quer envelhecer sozinha, que possui uma carga enorme de carinho e ternura para oferecer a alguém, mas tem de se contentar em conversar com o gato velho e rabugento que demonstra ciúmes até quando ela fala ao telefone com as amigas. Pois eu esqueci de dizer uma coisa importante. Ela tem muitas amigas, todas pessoas encantadoras e que a conhecem e querem bem desde muito tempo. Sinto-me honrada em ser uma delas. Mas, haverá neste mundo um homem especial que esteja procurando esse tipo de mulher? Ou todos esses senhores preferem o tipo extrovertido que vive em festas, badalando, fazendo plásticas e lendo revistas da moda, gastando tudo o que têm e o que o marido ganha, com futilidades? O papo sério, inteligente e criativo, muitas vezes divertido – sim, porque ela tem um humor cativante e fino –, não tem mais uma boa cotação no mercado? A mulher que, em ocasiões especiais, sabe até cozinhar com competência, satisfazendo paladares exigentes, não consegue mais, como antigamente se dizia, prender o homem pelo estômago? Acho que tudo é possível, mas concluo que minha amiga italiana deve fazer um curso de propaganda e marketing, porque, apesar de ser um tanto grosseiro dizer, o que ela não soube foi vender o seu peixe. Ah! Ela faz um dourado inesquecível. E, não é demais informar: é bonita. 74 SCYLA BERTOJA Fazer literatura Há uma infinidade de lançamentos de livros a respeito de assuntos os mais variados. Nunca houve tanta gente escrevendo como agora. Os jornalistas estão se destacando nos últimos anos no gênero do romance histórico, já que possuem o conhecimento da metodologia investigatória, conhecem os fatos históricos e saem na frente quando o assunto é palpitante ou quando querem unir num romance as facetas da vida privada e pública de alguma personalidade importante. Invariavelmente fazem sucesso. Além do talento, contam com as boas relações com a mídia. Os médicos fazem poesia, escrevem contos e romances, documentários que depois chegam às telas de cinema do mundo inteiro. Obras sobre comportamento, saúde, lazer, batem recordes de venda nas feiras do setor livreiro. Os professores de língua portuguesa conseguem reunir em pequenos volumes uma série de regrinhas e macetes para nos auxiliarem a bem falar e escrever. Mas, será que tudo é literatura? E quais obras serão realmente arte? Os dicionários falam de literatura de modo setorizado: literatura médica, literatura religiosa, literatura de auto-ajuda, literatura nacional e estrangeira, enfim, há literatura sobre todos os setores da atividade humana. Há o livro didático, técnico, científico. Poderíamos enumerá-los ad nauseam. Estas divisões servem muito à organização das estantes das livrarias, facilitando a procura pelo assunto da preferência do cliente. Mas o ficcionista e o poeta certamente não estão muito preocupados com isto, porque seu ofício é escrever e não conceituar, especificar, ditar normas ou criticar. Eles escrevem e querem ser lidos. À crítica literária compete o veredicto: é ou não é arte literária. O texto tem ou não a tão perseguida literariedade. Uma aluna recém chegada ao Curso de Letras do UNIRITTER (Porto Alegre-RS), em 1995, durante a aula inaugural, encantada com a análise feita pelo Professor Flávio Loureiro Chaves sobre “O caderno azul”, de Ruben Braga, não conseguindo conter seu espanto, perguntou ao fim da exposição magistral: – Professor, será que o escritor sabia tudo isso quando escreveu CRÔNICAS 75 o texto? – Claro que não, disse o professor. O escritor escreve, e nós, à luz do conhecimento teórico, analisamos. A perplexidade da caloura diante do leque de constatações e possibilidades de significado extraídas do conteúdo daquele pequeno texto, estava vinculada ao fato de que, abrigando um grande desejo de tornar-se escritora, sentia o temor, quase terror, de nunca vir a realizar seu sonho, já que “escrever” – pelo que inferiu das palavras do professor – não era somente colocar no papel a emoção que lhe ia na alma ou contar uma história inventada a partir de suas vivências ou de outrem. Quando seu hipotético trabalho fosse “analisado”, pensava, viriam à tona as interpretações dos teóricos. Cada expressão, cada frase, seria dissecada, rotulada, e, portanto, o que menos interessaria ao crítico especializado, seriam o enredo, a emoção, a história que ela contaria. E se não conseguisse satisfazer a estes, agradaria ao menos ao leitor? Penso que quase todos os escritores já passaram por estas angústias. O que é a literatura? Bem, parece que primeiro é necessário que a obra escrita se enquadre dentro de alguns requisitos básicos. Na poesia, dizem alguns mestres, deve haver metáfora. Se não há metáfora, não há poesia. Ainda quanto aos poemas, as rimas podem, em certos casos, arruinar a obra, quando mal colocadas, quando exageradas, quando pobres. Na narrativa ficcional, a história ou conto deve ter um mote, crescer em dramaticidade e impactar o leitor com o final inesperado. Mas nem sempre é assim. Este, aliás, é o gênero de mais difícil conceituação. Conforme diz a Dra. Regina Zilberman em As Estações do Conto, no livro A Poética do Conto, de Charles Kiefer, esse gênero “desafia teóricos formuladores de conceitos e definições”. Sabemos, por experiência adquirida em nossas leituras, que muito se tem editado em narrativa curta. As oficinas de literatura reforçam os exercícios de enxugamento dos textos para obter efeitos mais fortes. No entanto, os italianos contemporâneos escrevem contos longos, ricos em descrição de pormenores, seguindo uma linha que se assemelha aos belos trechos descritivos de Marcel Proust, diluindo a força dessas narrativas, que nem por isso são menos interessantes. Muitos leitores de contistas seguidores de outras vertentes – narrativas curtas – se ressentem da falta de detalhes descritivos. As conceituações de literatura são muitas e variadas, mas sempre vale mencionar algumas: “Aqueles produtos artísticos – ou simbólicos – em que a palavra é o componente essencial” (J.H.Dacanal, em Era uma vez a literatura, Editora da Universidade, p 10). 76 SCYLA BERTOJA “Literatura é uma forma de conhecimento da realidade (verdade), que se serve, preferencialmente, da ficção, e tem como forma de expressão a palavra artisticamente elaborada.” (Prof. Mara Jardim, Doutora em Letras e Literatura-FAPA) Quanto à universalidade, lembro uma definição simples e abrangente, da qual, lamentavelmente, não conheço a autoria: “A obra literária de valor, mesmo de cunho regional, não deixa de ter sempre as marcas da universalidade.” As normas que restringem a liberdade dos escritores ao criar seus textos são muitas, e têm origem nos pensadores da antiguidade. Da civilização helênica nos vêm os ensinamentos de Aristóteles (séc. IV a.C.), um dos maiores filósofos da Grécia Antiga. Seus conceitos sobre todas as acepções da arte, influenciam e são estudados até os dias atuais. Vale a leitura da sua Poética. Um dos grandes problemas do escritor que inicia-se neste mister é justamente conformar seus escritos dentro de um gênero determinado pelos ditames cultos de seu meio. A melhor maneira de inteirar-se dessas teorias é através da leitura, de preferência guiada por professores de literatura. Este espaço não poderia, evidentemente, conter uma pesquisa mais profunda ou extensa sobre o tema. E também não se propõe a sugerir uma receita de como escrever. Isso não existe. O primeiro romance de Machado de Assis, Ressurreição, publicado em 1872, foi considerado “quase inteiramente mau”, por Lúcia Miguel Pereira, em um estudo crítico e biográfico intitulado “Machado de Assis” (Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988, p.133). Segundo Jaime Ginzburg em trabalho apresentado ao Prof. Dr. Flávio Loureiro Chaves, em 1993, Lúcia Miguel Pereira diz que Machado de Assis, em Ressurreição, “tenta enquadrar-se no romantismo”. Ele estaria apenas aderindo a um cânone, prejudicando essa obra primeira pela falta de interioridade do autor. Ainda segundo Ginzburg, LMP observa: Machado de Assis escreveu sobre figuras que conhecia de vista, desprezando a fonte imensa de observação que lhe era a própria alma ambiciosa e sensível. Olhou para fora, quando devia olhar para dentro. (Nonada, Letras em Revista, ano 2, nº 2, 1999) Fica uma grande certeza, que é também incerteza, a respeito do escrever: o escritor nunca sabe exatamente o que está fazendo. Escreve, apenas. Trata-se de uma necessidade, um gosto, a escolha de um ofício. Confissão, missão, testemunho, denúncia, seja o que for que o move a escrever, será e deverá ser sempre uma força retirada de dentro de sua CRÔNICAS 77 alma, inspirada em suas experiências, em sua pequena aldeia. Só assim poderá chegar à universalidade. Somente falando de si poderá falar do outro e por este ser compreendido. Para consertar os problemas de gramática haverá sempre um revisor de plantão. Para opinar sobre a qualidade, a literariedade, o estilo, a originalidade, a validade da obra como literatura, haverá sempre um crítico, impiedoso mas necessário. E para imortalizá-la, nada como o passar dos séculos. 78 SCYLA BERTOJA O fantasma da Ópera Gostaria de ter sido capaz de penetrar nas sensibilidades das pessoas que estavam dentro do cinema assistindo ao filme O FANTASMA DA ÓPERA. Queria saber se o sentimento era de nojo, de compaixão ou de indiferença ao verem aquele homem de rosto mutilado e possuidor de uma belíssima voz, compondo músicas de grande beleza, motivado pelo amor que sentia pela linda jovem que viu crescer e ensinou a cantar. Queria saber o que pensavam as outras pessoas a respeito das expectativas daquele desgraçado e solitário “fantasma” que, oculto no interior dos labirintos do antigo teatro, vivia somente pela devoção, pela música, e pelo sonho de um dia concretizar uma relação que, no fundo, receava impossível. Não tive oportunidade de observar as pessoas que se encontravam ao meu redor, porque fiquei tão comovida que chorei o tempo todo. Não contente, assisti pela segunda vez no dia seguinte. E repetiu-se o drama. O pranto me impediu de observar a reação dos demais. Se bem que, ouvi alguns sons característicos de narizes sendo enxugados. O que me autorizou a chorar ainda mais. Esse tipo de trama que mostra a atração entre criaturas diferentes, como A Bela e a Fera, A Dama e o Vagabundo, Quasímodo e Esmeralda em O Corcunda de Notre Dame, e o Fantasma da Ópera, fora tantos outros que não vou citar, fazem (ou faziam) parte do imaginário infantil e adolescente. Desconheço os motivos pelos quais alguém cria histórias sobre amores impossíveis, mostrando a dor e a delícia de admitir que se ama alguém contra todas as convenções e imposições sociais, estéticas, religiosas, e até mesmo contra a vontade do objeto do nosso amor. Este último seria o amor não correspondido, a mais dolorosa de todas as torturas. Mas tenho para mim que todo o ser que se sente rejeitado vê a si próprio como um monstro, e às vezes desencadeia dramas passionais, transformando um belo sentimento em ódio. No Fantasma da Ópera me impressionou o momento em que a jovem heroína, após descobrir a deformidade no rosto de seu protetor e mestre apaixonado, num momento posterior diz a ele que não é seu defeito físico que lhe provoca medo, mas CRÔNICAS 79 a maldade que há em sua alma, querendo a tudo e a todos destruir porque não conseguiu seu intento. Lembrei que assim se comportam muitas pessoas, no plano material, quando não alcançam seus objetivos ou não levam a bom termo os planos arquitetados ou, mesmo, não conseguem tirar de um relacionamento todas as vantagens que almejavam. Isto sem contar, já no plano do amor, os momentos em que a paixão nos cega e nos sentimos capazes de qualquer coisa. É claro que, após a necessária reflexão à luz de pensamentos racionais, quando somos adultos equilibrados, conseguimos contornar os tropeços e, lenta e dolorosamente, transformar em esmaecidas aquarelas as lembranças de uma unilateral e tumultuada paixão. Gosto muito de óperas, talvez por isso mesmo. São pródigas em exemplos de amores impossíveis. Aliás, também a música popular de um tempo nos trazia muitas dessas histórias. Vem-me agora à lembrança uma outra crônica que escrevi há algum tempo e que iniciava dizendo “Os felizes que me perdoem, mas o sofrimento é fundamental”. Tentei ali parafrasear Vinicius de Morais, pelo avesso, quando disse “As feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental”. Possuo a tentação da tristeza porque penso, como Lupicínio Rodrigues, que a alegria, a felicidade e as pessoas normais não inspiram boas letras de sambacanção. Mas, voltando ao Fantasma da Ópera, penso também que, como todos nós, ele possuía seu lado belo, e a máscara escondia-lhe o lado repugnante. Talvez não devamos, como a jovem soprano, arrancar à força as máscaras dos fantasmas que amamos, porque podemos encontrar surpresas desagradáveis. Ali pode se revelar o monstro e determinar o triste fim de um grande amor. O Fantasma da Ópera, nesta terceira versão, possui uma lindíssima trilha sonora, o que nos ajuda a penetrar ainda mais fundo no drama e na paixão da história. Iria vê-lo pela terceira vez. Juro! 80 SCYLA BERTOJA Secretária desmemoriada Nasci numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, no Brasil, e fui criada em algumas outras cidades, porque meu pai era funcionário público, e sofreu algumas transferências inerentes ao serviço que desenvolvia. Eu sempre tive muito orgulho pelo fato de meu pai ser um homem de comunicações. Ele era um telegrafista, o que quer dizer que, na época em que eu era criança e mal sabia ler, ele era um expert em código Morse, uma linguagem constituída de pontos e traços, transmitida através de fios elétricos (ou no telégrafo sem fio, em ondas hertzianas). No recebimento, o telegrafista ouve os sinais e vai decodificando, formando assim a mensagem que geralmente é reduzida ao máximo, visando a rapidez e a economia nas comunicações. E para transmitir, ele utiliza um aparelhinho de apenas uma tecla, onde, com som de ponto e traço(barra), escreve a mensagem letra por letra, para ser decodificada no destino. O telégrafo foi inventado por Samuel Morse, norte-americano (1791-1872), e acredito que tenha sido utilizado por aproximadamente cento e cinqüenta anos, absorvendo, juntamente com as cartas, através do serviço público dos Correios e Telégrafos, toda a comunicação escrita entre pessoas e empresas. As cartas continuam circulando, mas acho que o telégrafo já foi substituído na maioria dos países pelo correio eletrônico. Muitas vezes ainda assistimos em antigos filmes ao tradicional e conhecido pedido de socorro dos navios e submarinos, SOS, no alfabeto Morse. Na minha casa todos os membros da família conheciam o alfabeto Morse, o que fazia com que nos sentíssemos diferentes. Era como se dominássemos uma segunda língua. De lá para cá o desenvolvimento das novas tecnologias transformou completamente as comunicações e nem mais lembramos do telégrafo antigo. Hoje temos os meios eletrônicos todos em nossa própria casa. É quase desnecessário sairmos à rua. Só o fazemos por prazer e como exercício. De resto, tudo conseguimos facilmente, através dos meios que a alta tecnologia e a informática colocam à nossa disposição. CRÔNICAS 81 Hoje não consigo mais sair sem o telefone celular na bolsa. Às vezes passa uma semana sem que alguém me chame, mas, de qualquer modo, eu sempre penso que, se o deixar em casa perderei uma notícia importante, um convite do Palácio de Buckingan para o casamento, ou não poderei atender ao pedido de socorro de alguém de minhas relações. Outra coisa da qual não posso prescindir é a secretária eletrônica. Mas neste caso acontece um problema para o qual não encontrei ainda solução. Talvez tenha de adquirir uma com tecnologia mais avançada, que marque as datas e horários das chamadas. Nem sei se existe. O problema é que minha antiga secretária não tem essa sofisticação, e os recados que recebo se transformam em verdadeiras charadas. Eu viajo por alguns dias e, quando retorno, há algumas mensagens gravadas. Quase sem exceção, as pessoas que ligam dizem que precisam falar comigo “hoje sem falta” ou “amanhã à noite” e outros tipos de recados dos quais não constam data e horário do telefonema. Se, no caso do “hoje sem falta”, a chamada foi feita há dois dias, já não vai adiantar que eu ligue imediatamente, porque o “hoje” era anteontem. Ou, chego em casa à meia-noite, vejo os recados, e tem alguém que disse “liga-me quando chegares”. Isso me causa um problema de consciência porque penso que não devo chamar alguém numa hora dessas. Possivelmente a pessoa já estará dormindo, e ao invés de me mostrar atenta e gentil eu me transformarei no pesadelo que vai acordá-la. Seria uma falta de sensibilidade da minha parte. Mas, penso, e se por acaso aquela pessoa estiver passando por um drama naquele momento e precisar da minha atenção imediata, como é que fica? Serei a amiga relapsa que não atendeu ao pedido de ajuda quando a outra mais precisava. Esta pessoa me dirá, talvez, no dia seguinte: “Agora é tarde. Tudo já aconteceu. Devias ter-me chamado mesmo que fosse na madrugada.” Por todos esses motivos, sempre que telefono e não encontro interlocutor, deixo gravados recados completos, com data, hora e, ainda, o número dos meus telefones. Assim, tenho a certeza de não provocar nenhum desconforto. Resta-me a esperança de, num futuro muito próximo, adquirir aparelhagem tecnologicamente superior, que me evite as angústias da comunicação incompleta, através de secretárias desmemoriadas. 82 SCYLA BERTOJA Tudo acaba em texto Eu e uma amiga viajamos recentemente para o Rio de Janeiro a fim de participar de um congresso de escritores lusófonos. Foram discussões de muito proveito, mas a coisa mais importante foi o congraçamento das pessoas que, mesmo vivendo tão distantes umas das outras, conseguiram fazer amizades, conversar sobre temas de interesse de todos. Enfim, descobriram-se iguais, padecendo das mesmas dores intelectuais, sentindo falta das mesmas condições ideais das quais sempre se fala, mas que, passado o momento do discurso, são esquecidas pelos ministérios e secretarias que deveriam dar andamento a ditos projetos expostos. Foi muito interessante a convivência por quatro dias em hotel sem muitos luxos, mas muito simpático e com atendimento excelente. Os cariocas são alegres, soltos e muito calmos. A cidade é realmente maravilhosa. Aproveitamos para passear. E a melhor maneira de conhecer os melhores pontos é o passeio turístico em ônibus especiais, que apanham as pessoas em seus hotéis, e as levam para ver as belezas do Rio. Participamos de um deles. Guias especializados vão contando a história de monumentos, avenidas, palacetes, praças. E em dado momento do passeio as pessoas se reúnem ao redor de grandes mesas para o almoço, que faz parte do tour. E conversam muito, falam em vários idiomas, sorriem e parecem felizes. Acho até que, naquele instante, o são. Retornamos do Rio com nossa agenda lotada de novos endereços e nomes de professores, escritores, poetas, pesquisadores, enfim, tanta gente que lá encontramos pela primeira vez e que se interessam pela nossa bela língua portuguesa e pela literatura contemporânea. Enfrentamos o desconforto do retorno, vôos lotados e atrasados, apanhando passageiros em todos os aeroportos do Brasil, para diminuir custos e aumentar o rendimento dos serviços das companhias aéreas. Serviços nem por sombra parecidos com os de alguns anos atrás. Na chegada, bagagens que demoram a aparecer na esteira negra, e que às vezes nem aparecem. Mas as nossas chegaram, por sorte. CRÔNICAS 83 Em Porto Alegre, já estávamos acomodando as malas no carrinho, quando minha companheira notou que um volume girava e girava e retornava sempre, passando por todos os passageiros ainda reunidos ali à espera, e, curiosamente, ninguém parecia reconhecer como sua a original valise. Seguindo a observação dela, eu também comecei a prestar atenção naquela mala cor-de-rosa, arredondada nos cantos, sem etiqueta de identificação, e que lembrava muito a mala de uma boneca muito conhecida no mundo todo. Claro! A mala da Barbie! Quem mais usaria esse acessório tão charmoso, feminino, e ao mesmo tempo, infantil? Bem, isto nos deixou criando mil histórias. Afinal, somos escritoras. Vivemos observando coisas insólitas para depois colocar no papel e transformar em contos. Minha amiga disse que não sairia dali enquanto não descobrisse quem era a dona daquela mala. Eu achei a idéia ótima e imediatamente comecei a prestar atenção nas pessoas – já poucas – que se encontravam na sala. De repente, a mala rosa ficou sozinha a girar. A mim pareceu até que aquela mala não era o que pensávamos. Esconderia um tesouro? Ou algum negócio escuso? Estávamos ali, cada vez mais intrigadas com o objeto estranho e solitário a girar como em uma coreografia de musical da Broadway. Foi quando prestei mais atenção ao único passageiro, além de nós, ainda no recinto. Comportamento estranho o daquele senhor grisalho, alto, elegante. Um terno cinza e uma gravata bordeaux emprestavam ao cavalheiro uma aparência acima de qualquer suspeita. Era um gentleman, um executivo, laptop na mão direita e uma maleta na esquerda. Sapatos de cromo alemão, certamente. Olhos de um azul nórdico, frio, lembrando um pouco Peter O’Tool. Olhava para a valise e esquadrinhava o ambiente ao redor como quem aferia regularidades misteriosas, inacessíveis para nós, observadoras comuns. Em determinado momento, resolvemos nos mover em direção à saída, e ele, sem demora, aproximou-se da esteira e apanhou a mala corde-rosa. Por falta de jeito, ou até pelo nervosismo, deixou-a cair e ela se abriu, espalhando seu bizarro conteúdo por uma área de três metros quadrados no mínimo. O que vimos foi um festival de roupas íntimas do tipo sexy, duas perucas de cabelos longos platinum blonde, uma lisa e outra com baby lizz, um par de sandálias de salto alto, meias arrastão pretas, uma bolsinha bordada com lantejoulas pink, e um soutien daqueles que já contém enchimento. Legs pretas da melhor qualidade, roupas e bijuterias finas. O estojo de maquilagem era um verdadeiro sonho. Coleção de fetiches que faria a felicidade de qualquer boneca que se preze. Não sabíamos o que pensar. Nem para onde olhar. Ficamos muito constrangidas frente àquele homem de aparência tão distinta, a recolher, quase de joelhos, 84 SCYLA BERTOJA mercadorias que, por certo, comprara no exterior ou no Rio, não sabíamos para qual propósito. Demos-lhe as costas, impossibilitadas de falar. As perguntas que gostaríamos de fazer eram por demais desapiedadas, a meu ver. E maliciosas. Desaparecemos dali rapidamente, e apanhamos um táxi. Ao nos despedirmos em frente ao edifício onde mora, minha amiga perguntou qual a primeira coisa que eu faria ao entrar em casa. Respondi que escreveria um conto ou uma crônica. Eu também, disse-me. CRÔNICAS 85 Memória Fui convidada para assistir a um curso de reciclagem em correção de redações de vestibular. Não é a primeira vez que compareço a eventos desse tipo, mas, uma coisa muito interessante me aconteceu desta vez. Ao término do curso, a professora solicitou uma redação, como se fôssemos candidatos a uma vaga na universidade, portanto, vestibulandos. Deveríamos escrever sobre MEMÓRIA. Eu levei muito tempo pensando no que deveria dizer sobre um assunto tão complexo, que talvez exigisse até conhecimentos de medicina especializada em neurologia. O tema me parecia abrangente demais e de difícil argumentação. Depois, passado o primeiro momento, e mesmo sem o conhecimento científico, resolvi colocar no papel minha própria opinião sobre o que seria memória. “Do latim memoria, e não querendo repetir o que está no dicionário, até porque, muito extenso, poder-se-ia dizer que é a faculdade de lembrar os acontecimentos, as datas, os locais, etc... E poderia ser setorizada, contemplando os vários tipos de memória que apresentamos como seres saudáveis, em tenra idade, adultos, ou maduros. Há também quem faça a divisão de acordo com os nossos cinco sentidos. Então haveria memória olfativa, visual, auditiva, gustativa, táctil, e assim por diante. A possibilidade de divisão dos campos da existência da memória é quase infinita. Não é exagero dizer isso, porque a memória genética vem sendo dissecada pelos cientistas e nem podemos imaginar do que se lembraria uma única célula de um ser vivo. Na mitologia grega tem-se Mnemosine, uma mulher-titã, personificação da memória e mãe das musas. Aliás, os precursores da nossa cultura sabiam muito bem utilizar essas míticas figuras para, sem grandes problemas, explicar a vida. Quem fizesse o mal, ou caísse em desgraça em relação aos deuses, era, quase sempre, atormentado pelas musas, que lhe estariam acusando o tempo todo, através da memória.. A memória, enfim, é tudo o de que temos conhecimento, lembramos e vivemos. Sem ela, não haveria mais nada, nem a própria vida, fosse em 86 SCYLA BERTOJA que sentido fosse: animal, vegetal, mineral. Considero que a memória seja a própria essência etérea de todo o universo, que a detém e nos permite a existência que percebemos.” Entreguei o texto e fui logo cobrada pela monitora, porque eu havia “esquecido” de assinar. Saí da sala de aula e me dirigi ao estacionamento, passando primeiro pelo bar para beber um refrigerante. Quando me aproximei do carro, dei-me conta de que não estava de posse das chaves. Eu as havia “esquecido” em algum dos lugares por onde passara. Sinais evidentes de que minha “memória” estava falhando. Só faço votos de que a memória dos vestibulandos esteja bem ativada no momento em que forem solicitados a escrever suas redações, principalmente se lhes for apresentado um assunto como este. CRÔNICAS 87 Amigos Nunca os tive em grande quantidade, mas os poucos que granjeei ao longo da vida estão marcados pela qualidade. E nem sempre estive em permanente contato com eles. Mas continuam sendo os mesmos. São pessoas que me fazem muito bem. Aquela parte de mim que está sempre pronta a doar e que está sempre disponível, fica feliz quando os sabe em segurança, com saúde e felizes. Pois, uma amiga contou-me que existe um menino que a visita sempre – mora no mesmo edifício – e que, aos sete anos de idade encontra assuntos para conversar com ela, que é uma “tia” bastante madura. Ela contou-me que seu amiguinho, indagado pela professora sobre seus amigos, disse que possuía duas: a filha de uma vizinha, da sua idade, e a “tia”. A professora certamente comentou isso com a mãe do menino, que confirmou a história. A “tia” e a mãe dele são amigas. E o interessante é que ele sempre chamou a “tia” pelo nome, como se a colocasse no mesmo patamar em que ele se encontra, sem aquela conotação de pessoa mais velha. De modo que, quando conversam, minha amiga consegue passar a ele, com mais facilidade, algumas lições, conselhos, informações. Primeiramente ela pensava que ele a visitava por causa da gata que ela tem em casa, felina lindíssima, sua companheira inseparável há muitos anos. Mas descobriu que ele gostava do ambiente, das conversas que tinham, e, principalmente, da disponibilidade desta “amiga mais velha” para responder todas as suas indagações de criança curiosa e inteligente. A casa da “tia” é quase uma segunda escola para ele. Uma escola em que ele é o único aluno e escolhe as matérias que quer estudar. Essa convivência é riquíssima para ambos. Ela não tem filhos, e ele ganhou um espaço a mais para expandir seus conhecimentos sobre o mundo, junto a uma pessoa madura, que domina conteúdos de pedagogia, filosofia, história e demais campos do conhecimento humano, fruto de muita leitura e formação curricular. Some-se a isso a experiência de vida. Tomara todas as crianças pudessem conviver algumas horas por semana com pessoas assim, disponíveis e ternas, e sem vínculo com a escola onde a 88 SCYLA BERTOJA rigidez das normas, o grande número de crianças e a exigüidade do tempo não permitem divagações. Um dia destes telefonei e conversei com ela por alguns minutos. Ele estava lá. Dias depois ela contou-me que ele perguntara: Quem telefonou? – Uma amiga, disse ela. Ele quis saber o nome. – Scyla, respondeu a “tia”. Ele ficou pensativo e em seguida fitou-a com olhos brilhantes, e, travesso, disse-lhe: SÍLABA. Certamente foi a piada do dia. Adorei este pequeno relato. Um dia, se possível, quero conhecer esse menino, antes que cresça e pare de tirar conclusões e de fazer analogias tão autênticas e graciosas. Antes que comece a chamar as coleguinhas de cachorras e que restrinja seu vocabulário a “us manu” e “as mina”, falou? Temos de agir rapidamente. Temos de amar as crianças AGORA, porque depois elas vão fugir de nós para os seus mundos novos, onde não seremos bem-vindos, e cujo idioma não dominaremos. CRÔNICAS 89 O número Um E se você saísse agora para almoçar ali no restaurante da esquina e, lá chegando, desse de cara com a Gisele Bündchen, ou com o Brad Pitt, ou, quem sabe – e para mim seria um sonho – Javier Bardem, o ator espanhol que protagonizou nas telas do cinema Ramon Sampedro e seu drama, em Mar adentro. Bem sei que há pessoas que diriam não se sentirem emocionadas por partilhar o mesmo espaço com uma dessas celebridades, porque, enfim, eles são pessoas iguais a todos nós. Eu não vejo as coisas assim. Eu me sentiria uma privilegiada em estar frente a frente com o talento, com a história de vida dedicada ao estudo, ao trabalho, à disciplina férrea, à entrega total desses vencedores que aliaram à sua inclinação natural, a vontade firme de vencer e de fazer o melhor sempre. Que muitas vezes renunciaram aos sonhos juvenis comuns a todos os jovens, para dedicarem seu tempo quase completamente à carreira profissional. E encantaram o mundo. E são paradigmas. E são admirados e amados por seu público. Dizem que cada pessoa tem direito, na vida, a um minuto de celebridade. Pois o meu chegou no domingo passado. A fama não era minha. Mas a alegria de estar ao lado de um desses famosos jovens que nos encantam quando estão trabalhando, essa sim, era minha. Tive a felicidade de encontrar RONALDO DE ASSIS MOREIRA, escolhido pela FIFA como o melhor do mundo, em 2004. O frenesi que esse moço provocou em todos foi visível. As crianças deliravam, sempre ao redor para conseguir seu autógrafo. Os adultos procuravam se posicionar de forma a ver melhor o autor de tantos belos gols. Pois RONALDINHO GAÚCHO, jogador do Barcelona, é de uma simpatia e de uma leveza que nos dá a perfeita impressão de um anjo travestido de craque. Esse menino voa, pensei. Como no campo, em suas arrancadas velozes, em seus chutes certeiros, o meia-direita mais famoso do mundo acerta também o nosso coração com sua simplicidade de garoto, olhos esgazeados e sorriso espontâneo. O mesmo que se formou no Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, o mesmo que estreou na Seleção Brasileira contra a Letônia em junho de 90 SCYLA BERTOJA 1999 e que, no mesmo ano fez seis gols na Copa América – o gol contra a Venezuela foi sua consagração. Campeão do Mundo em 2002, na Copa Coréia/Japão. E ele estava ali ao meu lado e colocou a mão no meu ombro para uma foto. Sua família observava discreta na grande mesa. Os filhos da Sra. Miguelina, todos educados com o esmero e a dedicação que ela lhes dispensou, formam um grupo exemplar. História de vidas que devem ser conhecidas e imitadas. Claro está que esse sucesso do NÚMERO UM, além do grande talento natural do jovem Ronaldo, tem o esforço, tem a integridade, tem o empenho, não só dele, mas de toda a sua família. Ninguém consegue ser o ídolo que ele é hoje, sem o apoio, a educação e o amor de um grupo familiar integrado. Eu não sou freqüentadora de estádios de futebol, e nem mesmo sei a programação dos jogos. Mas quando assisto pela TV, reconheço os bons, e entre eles, Ronaldinho é realmente o melhor. Se eu fosse famosa também, haveria a possibilidade de que ele ficasse sabendo que escrevi sobre o nosso encontro, sobre a impressão que ele me causou. Ele pode ser famoso porque, entre outras coisas, sabe lidar com a fama e o status. Continua o mesmo menino simples, educado, humilde e disponível para o seu público, seus amigos e familiares. É íntegro. E é lindo. – Obrigada, Ronaldo! Me fizeste sentir a “tia” número um por alguns instantes. CRÔNICAS 91 A hora do sapo A TV é um meio maravilhoso, mas eu assisto cada vez menos. E não me programo para isso. Ligo quando as outras coisas já absorveram todas as minhas forças. Quando não quero fazer mais nada. Isso acontece geralmente à noite. Em horas tardas. Procuro pelos canais não óbvios. Quero ver documentários, debates, enfim, programas cujo conteúdo seja para mim uma surpresa. Não interessa a respeito do quê. Deve ser uma novidade. Não estou isenta de culpa, não! Já fui adepta da mesmice. Já fiz parte da manada e da massa de manobra. Já copiei – Deus me perdoe! – modelos, idéias, comportamentos, expressões. Mas isso se foi. Hoje sou independente até o limite em que se pode ser sem atrapalhar a independência alheia. Mas depois eu falo sobre a TV. Ontem, caminhando pelas vias internas de um dos mais badalados shoppings da cidade, observei a grande quantidade de casais – homens com mulheres – que se assemelhavam na composição, por uma característica. O homem era feio ou acima do peso ou mais velho, em relação à companheira jovem, elegante e, na maioria dos casos, bonita. Alguns eram calvos, outros exibiam a famosa barriguinha de chopp, muitos de baixa estatura ao lado de mulheres altas. E até obesos levavam pela mão a sua prenda bonita. Isso me trouxe à lembrança uma noite especial em que comemorávamos, três amigas e eu, um aniversário, num conhecido bar da cidade. Já na terceira taça de champagne, o assunto tomou o rumo dos nossos tão sonhados e nunca encontrados parceiros ideais – somos mulheres livres, com direito ao sonho e até à realidade, se ela milagrosamente aparecer – Brad Pitt, Richard Gere, Reinaldo Gianecchini, Antonio Banderas, Rodrigo Santoro, Harrison Ford e tantos outros, não interessando se jovens ou maduros, porém, sempre os modelos de beleza masculina que povoam os nossos sonhos a cada dia mais difíceis, senão impossíveis, de realizar. Não é que sejamos loucas a querer exatamente esses citados Adonis, mas, digamos que alguma semelhança não nos desgostaria. Como os homens, também somos atraídas primeiramente pela aparência do outro. Seria difícil descobrir-lhes 92 SCYLA BERTOJA a inteligência, a cultura, o espírito de companheirismo, logo assim no primeiro momento. A boa aparência junto ao caráter reto sempre foram as características mais votadas. Nem sempre foi assim, ao menos com relação à beleza. Lembro-me de, ainda pequena, ter ouvido mães que davam conselhos às filhas, sugerindo-lhes a escolha de “um rapaz honesto, trabalhador e de boa índole”. Como era simples. E quase todas encontravam esse bom moço. E acho até que eram felizes com eles. Ou não? Não se sabe. Ninguém tinha a liberdade de dizer abertamente como andavam as coisas. Os casais tinham de formar uma família e viver para ela, e se, além disso, conseguissem continuar encantados um pelo outro, maravilha. Era a perfeição. Esses anos passaram, vieram os anos loucos, a liberdade começou a ser a meta primeira de homens e mulheres. Depois veio a ditadura da beleza e da forma física. Talvez muito mais esta última, pois a beleza sempre foi identificada e aclamada em todos os tempos. Mas isso vale mais para as mulheres do que para os homens. Sabemos que eles estão cuidando da forma, mas as mulheres são os principais alvos – às vezes vítimas – dessa ditadura desalmada. Tudo porque isso cria um mercado de múltiplas faces. A menina já não pode mais ser bonita sem a perfeição dos dentes. Dê-lhe ortodontia, aparelhos caríssimos, com manutenção idem, durante anos e anos. Ela também não pode ser gordinha. Deve ter aquele aspecto famélico, porém com seios enormes, e daí, para algumas, só com silicone. Dê-lhe dietas com especialistas e produtos e academia. Caso contrário não conseguirá exibir aquele top da moda, com aquela pantalona que começa muito abaixo do umbigo. E mesmo assim elas nem sempre conseguem namorados bonitos e sarados. Os lindos estão aí para serem olhados, admirados e desejados. Elas acabam “ficando” mesmo é com os mais ou menos, e, em último caso, com os menos. Depois que as princesas dão aos pais as mais variadas despesas para ficarem lindas, todas meio giseles, devem – desculpem-me os feios – se contentar com o sapo. Quem sabe se depois de um beijo ele vira príncipe. Não custa tentar. Quando a gente freqüenta todo o tipo de local, acaba vendo coisas, no mínimo, interessantes. Já vi muitos casais de homossexuais masculinos assumidos, lindos, elegantes, finos, cultos e perfumados – ah! como são cheirosos, e que classe – que só se pode identificar como tais em virtude de comentários de amigos ou indiscrição do garçon. A mesma coisa não acontece com mulheres gays. Elas estão por aí, só que tem sempre uma que assume aquele jeito masculino. Elas não nos fazem concorrência. Em compensação, eles estão fora do nosso alcance para sempre. Jogo empatado. Agora volto à TV. Estava eu ali decidindo se dormia ou ligava a televisão. Que mal CRÔNICAS 93 tem? O sono fica para depois. Vou olhar as coisas do mundo. Então a RAI me surpreendeu com um documentário feito a partir de entrevistas levadas a efeito por um jornalista italiano na Rússia. Eu, que já havia começado a escrever esta crônica, fiquei fascinada. O repórter abordava mulheres russas, jovens na sua maioria, em plena rua, e perguntava a elas se eram solteiras e se já haviam encontrado um noivo. Meu pecado foi o de não ter anotado o nome da cidade. As respostas delas eram quase sempre afirmativas. Aprofundando as indagações, o repórter descobria que elas estavam prestes a casarem-se com rapazes chineses. Causa espécie, por uma questão étnica e cultural. Eles são tão diferentes. Nada contra, mas, perguntava o repórter o porque desta escolha. Elas explicavam que os chineses vinham passear e fazer compras e acabavam conhecendo as moças russas. Elas faziam a mesma coisa com relação à China. Iam até lá e conheciam rapazes pelos quais se interessavam, e o resto é fácil de imaginar. Desencalhavam. Então o repórter perguntou se não havia pretendentes russos. Elas foram muito claras: os homens russos estavam retardando esse tipo de decisão, não se aproximavam com esse objetivo, ou simplesmente não queriam compromisso. Isso não é casualidade. Não sei porquê, pensei naquela dança tão máscula dos cossacos, meio parecida com uma dança gaúcha específica de homens, a chula. O programa foi muito elucidativo. E veio a calhar para o assunto que eu estava desenvolvendo aqui nesta crônica. A propósito, um dia destes, recebi uma dessas mensagens que correm pela internet, muito graciosa, contendo vários quadrinhos onde aparecia uma linda menina de trancinhas que dizia frases de grande sabedoria moderna a respeito de relacionamentos, evidenciando tempos atualíssimos. Uma delas era: “Melhor um baixinho feio ao meu lado do que dois bonitões se beijando”. Pensando bem, é a versão 2005 de “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”. Uma amiga me disse que agora, naquele momento que quase todas conhecemos, da despedida após uma noite de amor, quando todo homem diz “a gente se vê” ou “eu te ligo”, a mulher toma a dianteira e diz “... ah, por favor, não me procura, tá?” Desconheço o motivo, mas tive sintomas de desforra e um profundo senso de solidariedade, para com ela, é claro. Em alguns países europeus os homens estão preferindo ficar na casa dos pais até após os quarenta anos, solteiros. E muitos divorciados voltam ao lar dos velhos, para ficar. Mas bem que poderiam continuar apreciando a companhia das mulheres para os passeios de praxe, bailes ou outros. Mas parece que a cada dia mais se encontram grupos de mulheres dançando sozinhas nos locais noturnos, enquanto meia dúzia de homens bebe junto à bancada do bar, muitas vezes até de costas 94 SCYLA BERTOJA para a pista. As mulheres também vão aos pubs para beber em grupos. Não dependem mais dos homens para quase nada. Elas têm dinheiro, carro e a companhia das amigas. E o mais importante: já conhecem os homens. Mas será que lá no fundo não fica aquele lugarzinho vazio, aquele coraçãozinho batendo descompassado, lembrando da primeira vez em que uma voz masculina invadiu seu ouvido fazendo-a estremecer de emoção, dizendo “quer dançar?” e depois “não se preocupe, é fácil, são dois pra lá, dois pra cá...” e sentiu aquele abraço e o frescor (não confundir com frescura) daquele rosto colado ao seu, exalando loção pós-barba? É, eu sei. O filme é antigo, mas é possível que ainda exista alguma cópia rodando por aí. CRÔNICAS 95 Deuses infiéis Deusas vingativas Esta manhã, através de noticiário de rádio, fiquei sabendo que em uma das cidades que integram a Grande Porto Alegre, os assassinatos já passaram de cinqüenta, só no primeiro semestre deste ano. Isto parece uma guerra fratricida. Mas as mortes são noticiadas pelos jornais sem muito destaque porque já virou rotina. Poucos são os casos que merecem uma reportagem ou algum comentário mais substancioso. Agora certamente terá destaque a situação global, em virtude de ter atingido esse ápice. Brigas, bebida, dívidas de drogas, assaltos, acertos de contas entre bandidos, e quem sabe quais outros motivos. É preocupante a situação. Mas quando ouço as notícias ou as leio nos jornais, o que mais me chama a atenção são os crimes passionais. São os que mais rendem reportagens, entrevistas, desmentidos, discussão de parentes, mentiras deslavadas, desculpas indesculpáveis. Eu estava apaixonado, mas.... Eu sempre a amei, mas... Eu não concebia a vida sem ela, então... Se não for minha, não vai ser de mais ninguém... E há os que se defendem e lutam durante anos negando a autoria do crime. Na maioria das histórias é o homem que mata por ciúme, por desconfiança, por sentimento de rejeição, por impotência diante de um pedido de separação por parte da mulher. São poucos os assassinatos em que a mulher aparece como agente nesses casos. As mulheres, quando traídas, têm opções que são bem da sua natureza. Separam-se, e depois, raivosamente, acabam com a reputação do dito cujo, divulgando seus segredos, pontos fracos, coisas pessoais, enfim. Fazem o mesmo em relação à amante dele. Por mais que se veja que aquilo é amor de verdade, a ex continua dizendo pelos próximos cinqüenta anos, que a “outra” é uma vagabunda, interesseira, de péssima qualidade. Mas o negócio é deixar pra lá. Pelo menos as ex, em sua maioria, não matam. Mas a ciumenta mais famosa de todos os tempos tem sua história na Mitologia. Foi Juno, a rainha dos céus, esposa de Júpiter, deus dos 96 SCYLA BERTOJA deuses. Era uma controladora, sempre desconfiada, sempre seguindo-lhe o olhar e os passos, farejando uma possível rival na área. Quem procura acha. E ele era o maior garanhão do Olimpo. Não escapava uma. Certamente era um grande sedutor, além dos demais poderes que possuía. Até aí Juno tinha razão. Mas ela não deixava barato. Partia para a vingança. Há uma história que sempre me fascinou pelos requintes de sadismo da divina esposa traída. Um dia Júpiter enamorou-se de Io, filha do rio Ínaco, na Grécia. Jovem muito linda e desejável. Para encontrar-se com ela Júpiter teve de apelar para sua criatividade. Inventou um artifício que parecia seguro. Uma grande nuvem negra que não permitia a Juno, mesmo com seus poderes ou a ajuda de seu fiel Argos, de cem olhos, encontrar os amantes. Mas Juno, desconfiada das ausências do marido, mandou Argos fazer o rastreamento dos espaços celestes. Júpiter, vendo a aproximação de Argos, com seus cem olhos, tratou de usar seus poderes em defesa da amada Io. Transformou-a em uma novilha e a deixou por ali, enquanto distraía Argos com conversas sobre o tempo e outras trivialidades. Em suma, ficou disfarçando. A novilha foi levada para os currais do palácio dos deuses. Mas Júpiter aparecia por lá e Juno desconfiou novamente. Com seus recursos de deusa dissimulada, apaixonada e carinhosa, num momento especial disse ao marido que a queria como presente. Ele não teve alternativa. Juno então expulsou dali a novilha, que foi para outro lugar, sempre vigiada por Argos. Mas Júpiter mandou Mercúrio atrás dela e lhe ordenou libertá-la, sendo que, primeiro, deveria matar Argos. Missão cumprida. Juno descobriu, chamou uma das Fúrias – entidades que eram responsáveis por várias maldades – que, na forma de uma mosca gigantesca, não deixava em paz a pobre Io, que fugia sem descanso errando pelo mundo todo até chegar ao Egito. Júpiter então, com pena de Io, e querendo dar a ela a sua forma antiga, tão bela, resolveu conversar com Juno. Pediu perdão, e prometeu ser um marido fiel, contanto que ela pusesse fim à vingança, deixando em paz a jovem, à qual devolveu a forma anterior. Conta a lenda que Io, depois disso nunca mais voltou à Grécia. Foi respeitada e cultuada como deusa em sua nova terra, e teve um filho. Acho que o divino conquistador deveria ter pedido perdão logo que foi descoberto. Que papelão! Além de tudo era covarde. Não enfrentou a esposa e deixou a pobre Io sofrendo esse tempo todo na forma de uma novilha. Deveria ter usado seus poderes logo para transformar a moça novamente, e voltar para a esposa, de quem, aliás, conhecia bem a maldade e a capacidade de vingança nessas situações. O índice de criminalidade no Olimpo era expressivo, em se tratando de deuses e semideuses. CRÔNICAS 97 Evolução zero PARTE I Antes de entrarmos na sala de projeção perguntei a meus amigos qual o assunto tratado pelo filme ao qual iríamos assistir. Acontece que esta ignorante cinéfila estava prestes a ver pela primeira vez na vida um episódio da série “Star Wars”. É verdade. Esse tipo de filme nunca me chamou a atenção, nunca me seduziu. Nem por curiosidade pensei assistir a um deles. Para ser sincera, assisti ao Parque dos Dinossauros, mais para fazer companhia às crianças do que por qualquer outro motivo. Agora, com relação ao Star Wars – Episódio III – A vingança dos Sith, diziam-me que este já era o sexto filme da série, mas que não haviam sido produzidos numa ordem lógica por uma questão de orçamento e problemas financeiros. Este seria o sexto lançado pelo diretor George Lucas, mas, na verdade o terceiro na ordem da criação. Era muito caro. Então o cineasta resolveu lançar os episódios posteriores, por óbvio, mais baratos. A explicação foi longa e complicada, mas ontem eu estava excepcionalmente inteligente e, portanto, entendi tudo. Comprei meu saco de pipocas – dos grandes –, o refrigerante, e me acomodei confortavelmente, esperando pelo que viesse. Um mundo perdido no tempo, que tanto poderia ser futuro quanto passado. Impossível saber, pois que a história se passava em uma distante galáxia. Governos poderosos, com estranhos aliados de aparência bizarra, completamente alheia ao nosso senso estético. Os líderes, em sua maioria, possuíam forma humana. Uma visão maniqueísta, uma eterna ameaça entre jedis e siths, sendo que o lado do bem era enfraquecido justamente pelos sentimentos humanos, e o outro fortalecido pelo conhecimento dos segredos do lado sombrio e, portanto, hábil manipulador do primeiro. Uma história de amor, claro que simbólica, para propiciar a exposição das fragilidades dos seres que amam e são íntegros e generosos. Um herói – o cavaleiro Jedi Anakin Skywalker – convertido em vilão e traidor de seu povo não só por causa de seu amor pela bela e jovem Padamé, mas também pela 98 SCYLA BERTOJA sedução do poder, coisas das quais, em nosso mundo, nunca ouvimos falar. A derrota do bem, um final melancólico e apocalíptico. Recheando essa torta de desgraças, traição, chantagens, corrupção, guerras, injustiças, sangue e mortes desnecessárias, armas e robôs – um deles muito especial, que servia à linda heroína, e tinha um comportamento bem identificável – chamei-o logo de robicha, mas poderia ser um robô feminino, roboa? Locomoção aérea individual, de fazer inveja à nossa comunidade terrena atualmente atormentada pelo medo dos bandidos onipresentes, motorizados e armados. Com um aviãozinho daqueles, com lança-bombas, foguetes e outros quetais, a gente até arriscaria sair de casa. Sem falar nos sabres de luz – laser – muito eficientes. Pelo que percebi, não havia proibição de uso de armas pela população civil ou pelos exércitos. Pelo contrário. Elas faziam parte da vida diária dos cidadãos(?). Compreende-se. Sem armas e sem guerras não poderiam os americanos mostrarem toda aquela gama de efeitos especiais inventados e criados por George Lucas. Havia figuras e títulos iguais aos nossos. Falava-se de Rainha, Senador, Democracia, República, Mestres. Impossível guardar na memória todas as coincidências. Intrigou-me um pouco o fato de, mesmo no estágio de evolução dos Jedis, as crianças serem feitas da forma que chamamos tradicional, e o parto acontecer com as mesmas dores, permitindo à jovem mãe morrer nesse glorioso momento, sem a possibilidade de utilização de todo aquele avanço tecnológico para salvá-la. São absurdos que contradizem a natureza daquele estágio científico. Mas, por favor! Claro que deve haver uma explicação para estes fatos que eu aponto como esdrúxulos. Os starwaristas me dariam uma lição, certamente. Mas no momento não tenho tempo. Devo mandar estas considerações para o Jornal’Ecos com urgência. No entanto, ainda gostaria de comentar uma coisa. O que vi nesse filme trouxe à minha lembrança os deuses gregos, de quanto tenho conhecimento da mitologia, que investidos de todo o tipo de poderes, dominando os mares, os ventos, o céu e a terra, o raio e o trovão, possuíam, ao mesmo tempo, os sentimentos, os defeitos e os vícios dos seres humanos. De tal forma que cometiam injustiças a todo momento. A vingança era uma constante em suas atividades divinas. Qual o mais poderoso? Qual o mais belo? Na ficção científica, na idealização da tecnologia, os cineastas criaram um novo tipo de mitologia, povoada de seres poderosos que se digladiam, se vendem e se corrompem em troca de migalhas de paixões do tipo humano mais rasteiro. A única novidade que encontrei nesse tempo impreciso, nessa galáxia longínqua, é que não vi qualquer um dos seres estranhos comendo ou bebendo – uma amiga que estava ao meu lado no CRÔNICAS 99 cinema garante que houve um momento em que Anakin e Padamé estão à mesa e ela serve-se de uma pêra, mas eu não vi isso –, e nem trabalhando, pois certamente já haviam ultrapassado essa fase animal e utilizavam somente robôs (escravos) para os serviços. E, como na Grécia da Democracia, os cidadãos tratavam unicamente da política. Além do que, como em tantos dos nossos palácios atuais, tramavam o tempo todo a forma de eliminar o outro lado, para somente assim desfrutarem de uma paz verdadeira. Quer dizer: convívio, respeito e entendimento, não! Se isso fosse história e por acaso fôssemos originários remotamente daqueles mundos, poderíamos nos considerar fracassados, pois não somos melhores em quase nada. PARTE II Mas me encantou a paixão de George Lucas por histórias sem época – ele criou uma galáxia para filmar – e inovações desbravadoras do imaginário. Sua genialidade resultou em alguns dos mais famosos e apreciados filmes de todos os tempos, segundo consta na sua página no Google. Os filmes de Lucas enfocam a capacidade individual de superação de todas as limitações. É o tom de seus primeiros filmes. Em 1971, com a ajuda de seu amigo Francis Ford Coppola, ele transformou um filme experimental premiado, em seu primeiro sucesso, THX1138. Depois veio o “baratinho” American Graffiti (1973), Globo de Ouro de Cultura de N.York. Foi uma inovação. Uma sucessão de narrativas, cuja trilha sonora era composta por música contemporânea. O terceiro foi Star Wars (1977). Ele teve de criar sua própria fábrica de alegorias, animações e efeitos especiais. Resultou em 8 Oscars. O sucesso junto ao público jovem e a criação de um novo tipo de filme o tornaram independente. Nos anos oitenta escreveu e dirigiu uma série de filmes de aventuras, como a continuação da saga de Star Wars – O império contra-ataca(1980), O retorno de Jedi(1983). Criou o aventureiro Indiana Jones e foi co-produtor de toda a série, como a trilogia que recebeu 8 Oscars da Academia. Além disso, recebeu 12 prêmios Emmy por filmes para TV e em 1987 suas criações começaram a fazer parte do Mundo Disney. Foi ele o criador do primeiro dinossauro animado do Parque dos Dinossauros, aquela perfeição que todos conhecemos. Um de seus filmes foi o primeiro totalmente digitalizado. George Lucas assumiu papel de liderança na aplicação de suas técnicas em salas de aula, para levar os estudantes a se envolverem com o mundo multimedial de suas criações. 100 SCYLA BERTOJA Ele é o Presidente do grupo George Lucas Educational Foundation, que, entre outras atividades, mantém escolas de cinema e televisão. Recebeu em 1992 o Irving Tholberg Memorial Award pelo conjunto de sua obra. Foi levada em consideração a alta qualidade na produção de filmes de animação. Eu deveria ter visitado o Google antes de ver o filme. Eu o teria visto com outros olhos. Em contrapartida, não escreveria uma crônica. Obs.: A PARTE II, relativa a George Lucas e sua obra, foi traduzida por mim do inglês e se encontra no site www.starwars.com/bio/ georgelucas.html CRÔNICAS 101 Graças alcançadas Já cansei de dizer que a internet é o maior acontecimento de todos os tempos. Claro que alguém irá dizer que amanhã ou depois surgirá uma outra novidade e a www será coisa do passado. Mas eu gosto de listar todas as coisas que antes fazíamos esforço para conseguir e que agora, com a internet, basta um clique. Quer comprar online? Clique. Quer dar boas gargalhadas? Clique. Quer pesquisar a respeito daquele carocinho que apareceu no seu pé? Clique. Quer saber de onde vem o sobrenome de sua família? Clique. Quer fazer um curso à distância? Clique e inscreva-se. E que dizer dos namoros? Quer namoro sério? Só passatempo? Paixão tórrida por uma noite (ou dia)? Clique. Cadastre-se. Chega. Estamos em 2005 e todo mundo sabe disso. Eu nem poderia enumerar todas as coisas que hoje conseguimos através da internet, porque desconheço a maior parte. Isso me lembra que ainda não fiz um bom curso de informática para poder extrair maior proveito desta máquina maravilhosa. E como era antes? Bem, antes tudo era penoso, lento, exigia muitas caminhadas, muitos contatos, horas perdidas na busca de coisas que agora podemos conseguir em cinco minutos, mesmo que seja sábado, domingo ou feriado. A internet não tem carteira assinada, não ganha férias e nem décimo terceiro salário. Antes havia coisas impossíveis ou impensáveis. No setor dos relacionamentos: quem poderia conseguir um namorado(a) a qualquer hora, sem sair de casa? Escrever uma carta, remeter e obter resposta em menos de uma hora? Manter um diálogo online com pessoas de outros continentes? Uma pesquisa, por exemplo. Descobrimos o site, entramos e procuramos pelos autores e pelas obras, e podemos trabalhar nisso madrugada adentro em segurança, no aconchego de nossas casas, de pijamas e chinelos, ou, no verão, até em trajes menores, ou simplesmente nús, tanto faz. Não há limites. Não há entraves. Não existem dias, horários, indumentária especial. O mundo é nosso. E como nenhum assunto foge a essa verdadeira tsunami de facilidades que invadiu nossas vidas, as coisas da fé não poderiam ficar de fora. Diariamente recebemos orações, novenas, correntes e outras 102 SCYLA BERTOJA demonstrações de fé, prometendo milagres, criando expectativas de acontecimentos sonhados. Mas nesse campo eu ainda estou mantendo um comportamento céptico. No meu entender as preces e os pedidos de ajuda ao Altíssimo devem vir acompanhados de um recolhimento espiritual. Há uma atitude específica da nossa mente quando se está suplicando ou agradecendo a Deus por uma GRAÇA ALCANÇADA. Não consigo ainda fazer a sincronia do ato de fé com a digitação. Ainda acho que Ele ouve e entende melhor e mais nitidamente o meu pensamento. E, se possível, preferiria continuar a fazê-lo no silêncio de um templo. Não que eu pense que a informática não O alcance ou por Ele não seja aceita. Sei perfeitamente que tudo o que é inventado pelo homem só o é porque a Centelha Divina nele se encontra. As mensagens de fé até me encantam às vezes, principalmente quando acompanhadas de maravilhosas fotografias dos mais belos cenários do mundo, crianças, animais, melodias. E até repasso aquelas que penso poderão ajudar alguém. Mas há coisas que, até o presente momento, não consigo entender. Os prazos para que as bênçãos sejam recebidas, por exemplo. Quem inventou essas histórias de que se eu repassar a mensagem para 10 pessoas, o milagre ocorrerá em 5 dias; para 15 pessoas, em 2 dias; para 20 pessoas o resultado será imediato? Nisso, possivelmente, acreditam centenas ou milhares de crédulos, que nunca contestam nada. Além do mais, há a ameaça do castigo no caso de não repassarmos as mensagens. Sinceramente, fico com pena das pessoas que recebem essas mensagens e ainda perdem tempo pensando: “Será que se eu não repassar para as 20 pessoas vai acontecer alguma desgraça para minha família?” Mas, o que se pode fazer? Não há nada mais democrático do que a internet. Como vemos, todos, sem exceção, desde que consigam se aproximar de um computador e saibam como utilizá-lo, têm o direito e a possibilidade de mostrar ao mundo as suas idéias, as suas crenças e até as suas taras. Resta-nos fazer sempre uma triagem, baseados em nossa experiência, gostos pessoais ou idiossincrasias. E aí também já estão as leis e os regulamentos para proteger-nos contra os abusos. Mas, repito: o que não consigo aceitar é a ameaça de acontecimentos funestos pelo fato de não repassar uma mensagem. CRÔNICAS 103 O homem do piano Devo dizer que estou fascinada com o mistério que envolve o jovem silencioso que foi encontrado no sudeste da Inglaterra há aproximadamente um mês, segundo noticiam os jornais. Não tenho a mínima idéia da sensação de “nulla” que deve sentir esse homem. Ou, talvez, nada sinta. Possivelmente o submeterão a exames como a tomografia computadorizada ou à ressonância magnética. Perdoem-me os médicos, se porventura estiverem lendo o que escrevo. Não entendo nada de exames, mas sei que é possível saber, através deles, se o cérebro do paciente responde a estímulos, e a quais, e em qual intensidade e freqüência. Apenas me intriga o fato de alguém, de uma hora para outra, tornar-se ninguém, e aparecer como que saído de uma nave espacial, em lugar onde ninguém o conhece. É como se houvesse sido abduzido por um OVNI, levado para ignorados mundos, e dele tivessem extraído totalmente a memória, como nos casos de vírus que se alojam em computadores, zerando arquivos. E a seguir, o devolvessem à Terra, mas não ao seu lugar de origem. Um outro ponto, completamente fora de suas referências pregressas. Não para dificultar a ele o encontrar seu habitat, mas para confundir os que o procuram. Ou será que ninguém o procura? Porque ninguém consegue, na era da informática, permanecer por muito tempo nesse limbo. As imagens estão pelo mundo todo. Seu belo rosto é primeira página de jornais dos quatro cantos do globo terrestre. E ele tem uma marca muito especial, que não sucumbiu a qualquer lavagem cerebral que tenha sofrido: A MÚSICA. Acho que aí está uma prova de suas emoções. Poderá até ser a única que ele externa. Mas é a mais bela síntese de sua beleza interior. É a prova da existência de algo além da razão pura e simples, aquela que faz cálculos, ou que decide o que é melhor em determinada situação. Ele nada pode, nada pede, nada lembra, nada fala. Não conhece ninguém, e lugar algum. Mas responde com eloqüência, num idioma universalmente conhecido, que é a MÚSICA. Quero, sim, que ele retorne ao seu lugar no mundo. Por outro lado, temo por 104 SCYLA BERTOJA ele nesse retorno. Porque vai ao encontro de péssimas notícias, de guerras, doenças, desigualdades sociais, monstros que dominam e manipulam os grupos humanos, subjugando-os de acordo com interesses escusos. Vai ao encontro de catástrofes climáticas de todo tipo, que se sucedem e nos assustam, e contra as quais nada ou pouco podemos fazer. Deverá saber das guerras que acontecem em vários pontos do planeta, e por motivos nada aceitáveis. Encaminha-se para um mundo onde levar vantagem é o objetivo precípuo de um grande número de pessoas. Lugar onde, na luta pelo poder, tudo vale. Onde, para poder melhor dominar, suprimem-se os mais humanos direitos aos seres que ali gravitam sem esperança. Onde crianças já vêm ao mundo com alto passivo a ser pago em longos anos de trabalho mal remunerado. Sem chance de redenção. Pensei muito sobre o homem do piano e acho que talvez a ciência não o deva devolver a um mundo tão horroroso e cheio de criaturas monstruosas. Não seria melhor dar possibilidade a, pelo menos, um homem, de viver seus dias no desconhecimento de todas as coisas ruins que esta humanidade construiu, querendo ou não, para deixar como herança ao nebuloso futuro, à nova humanidade que, dizem, vai surgir? Não seria melhor deixá-lo a embalar a si mesmo em lindas melodias? Porque tenho certeza de que a beleza ele vê e compreende. Alguém que faz música não pode ser indiferente à flor. CRÔNICAS 105 O mar não era importante Mar adentro, Mar adentro, Y en la engravidez del fondo donde se cumplen los sueños se juntan dos voluntades para cumplir un deseo, Un beso enciende la vida con un relámpago y un trueno y en una metamorfosis mi cuerpo no es ya mi cuerpo es como penetrar al centro del universo El abrazo más pueril y el más puro de los besos hasta vernos reducidos en un único deseo. Tu mirada y mi mirada como un eco repitiendo, sin palabras ‘más adentro’, ‘más adentro’ hasta el más allá del todo por la sangre, por los huesos pero me despierto siempre y siempre quiero estar muerto, para seguir con mi boca enredada en tus cabellos. (poema de Ramón Sampedro, que deu nome ao filme) 106 SCYLA BERTOJA Com um orçamento de dez milhões de euros, Alejandro Amenábar conseguiu transpor para as telas dos cinemas um drama baseado em fatos reais da vida de Ramon Sampedro, um jovem comum, cuja vida, repentinamente, transforma-se em castigo insuportável. Após um acidente no mar, perde todos os movimentos e fica tetraplégico. E abre uma luta de vinte e oito anos junto à justiça de seu país, pleiteando o direito a uma morte digna, através da eutanásia, que não é permitida. Quem antes tinha o mundo ao seu dispor, agora deveria contentar-se com uma janela, a do seu quarto, por onde em momentos de grande angústia e saudade, voava em pensamento, ao encontro de seu amor, à beira do mar. Em vários dos diálogos o Catalão substitui e se mistura com o idioma Espanhol. O diretor reproduz o ambiente familiar e a rotina destas vidas atingidas pela desgraça, num lugarejo do interior da Espanha. Uma produção cooperada entre Espanha, França e Itália, que recebeu o Oscar de melhor filme em língua estrangeira em 2004. É daqueles filmes que nos mantém tensos do começo ao fim. História de uma vida inteira a esperar pela morte, a pedir a morte, a ansiar pelo fim. Ou se poderia dizer que a morte era o objetivo que o motivava a lutar pela única coisa a que podia ainda aspirar na vida. O senso de inutilidade, a certeza do nunca mais, a ausência de perspectivas. Ser um peso para a família que nem sempre conseguia esconder suas frustrações. Ave sem asas, debatendo-se no cipoal de dispositivos legais que o impediam de encenar o último ato e cerrar as cortinas para sempre. O nada tão sonhado; o nada desejado mais do que tudo, porque única possibilidade para sair do inferno da constante imobilidade. Dono de uma mente sagaz, de uma capacidade de raciocínio supreendente, Ramón era admirado, quase venerado, pelas mulheres que o rodeavam e que possuíam papéis definidos em sua vida. A advogada que o representava perante a justiça espanhola, na luta pelo direito à eutanásia; a moça do povoado, que o visitava para dar-lhe forças para viver; a cunhada que cuidava de sua alimentação, medicação, higiene. As duas primeira tinham propósitos opostos. As três, no meu entender, o amavam, cada qual com seu tipo de amor. E se Ramón conseguisse um milagre e voltasse ao normal? Teria continuado tão encantador, tão fascinante? Porque surpreende mas não chega a ser inusitado o fato de todas estarem enamoradas de um tetraplégico. Javier Bardem me faz pensar assim. É o maravilhoso ator espanhol que o interpreta. Porque vejo Ramon através de Javier. O olhar, a expressão de seu rosto, a ironia e a crueza de suas palavras. E a compaixão pelos que o amavam. Arrependia-se de os haver tratado duramente e seus olhos inundavam-se de ternura e compreensão. Ah! Ramón, Ramón! CRÔNICAS 107 Personagem de uma força descomunal. Seria assim não fosse ele, na película, vivido por Javier? Teria me atingido desta forma? Porque eu digo que ele está cravado aqui e não consigo mais ignorá-lo, desde o momento em que o vi na tela. Javier conseguiu a intensidade que a história de Ramón exigia. Tenho uma clara certeza. Ao assistir ao filme e depois e depois, por muitos dias, eu fui a quarta mulher. 108 SCYLA BERTOJA O triste fim das esperanças Leio as manchetes dos jornais, recebo os informativos eletrônicos, e, principalmente, ouço rádio. A invenção (1895) do Pe. Roberto Landell de Moura, brasileiro e gaúcho, é um de meus hábitos mais arraigados. Sei que há os que creditam esta maravilha a Guglielmo Marconi, que, cinco anos após, inventou o telégrafo sem fio. O rádio não maltrata meus olhos; não me impede de continuar escrevendo; não atrapalha as lides domésticas. Além disso, traz outras vantagens. Com a popularização dos programas interativos, posso discordar do que estão dizendo no estúdio e demonstrálo através do telefone. Posso manifestar minha opinião, ainda que na base do sim ou não, a favor ou contra. O rádio é um grande difusor de idéias, notícias. E é imediato. Aconteceu na rua e o homem do rádio (às vezes a mulher) já está contando tudo com detalhes aos ouvintes. O leque de emissoras é extenso. Não preciso me ater a uma única versão dos fatos. Posso checar a informação de uma emissora, ouvindo a outra. Agora mesmo estava ouvindo uma rádio de Portugal, através da internet. Mas este assunto tomaria muito espaço se pensasse em dissecá-lo. E seria enfadonho para quem lê. Só lembrei disso porque é o rádio que me traz as mais recentes notícias dos acontecimentos da política e da polícia. E porque estou sabendo do que acontece, eu, hoje, gostaria de desabafar um pouco. Há uma exaltação de ânimos, uma acomodação das camadas subterrâneas, o que não quer dizer terremoto. Não! Não é assim. Não me expressei corretamente. O país está exatamente igual. As pessoas fazem as mesmas coisas, de modo ordeiro, rotineiro. Trabalham, estudam, cuidam de suas famílias, olham novelas, namoram, pagam impostos, taxas e emolumentos, pagam, pagam, pagam, e têm medo. Um grande medo. O assaltante pode estar ali na esquina, ou já pulou o muro e está aqui dentro, ou no ônibus. Estaciona-se o carro e fica-se olhando para ele sem saber se será a última vez que o vemos. Beija-se o filho quando sai para a escola e só se pára de rezar quando ele retorna inteiro. O salário mensal termina muito antes do dia 15. Isto é a normalidade do país. O país do povo. Não o dos mandarins na CRÔNICAS 109 cidade proibida. Lá os concursos de retórica, artes cênicas e cálculos de salários volumosos, verbas de todo o tipo para todo o tipo de finalidade, denúncias, distribuição de lixo em todos os ventiladores é que fazem a normalidade, a rotina dessa casta excelentíssima, resguardando-se honrosas exceções, que por serem representadas por pessoas honestas “infiltradas” naquela galáxia distante e complicada, não têm seus nomes e seus rostos expostos em telas de TV, em manchetes de jornais e reportagens de revistas. Porque os honestos não conseguem sucesso de mídia. É compreensível. Os malandros, no entanto, já nas campanhas vendem uma imagem construída pelo marketing, não mostrando “nem mortos” as suas verdadeiras caras. Quando e como isto vai acabar eu não sei, ninguém sabe. Nem ELES. Pensando nas pessoas honestas do povo e também nos “infiltrados”, ontem à noite fui até a prateleira dos livros de autores brasileiros e procurei Lima Barreto, aquele mulato com nome de rei – Afonso Henriques de Lima Barreto – que foi jornalista e funcionário público, que nasceu numa sextafeira 13, em maio de 1881, no Rio de Janeiro, e que escreveu, entre outros, o romance TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA, editado em livro em 1915, encaixando-se no Pré-Modernismo. Que virou filme nos albores do século XXI. Eu queria falar com ele através de seu romance mais famoso, que encontrei um pouco empoeirado, denotando falta de manuseio dessa obra prima da literatura nacional. Ele escreveu sobre um homem simples e honesto cujo grande pecado foi amar à pátria de um modo exacerbado. Isso se passa nos estertores do século XIX. Um funcionário público que depois de tantas peripécias e tantos sonhos nunca realizados, depois de ter acreditado e se decepcionado com o poder e a política, durante o governo de Floriano Peixoto – período anterior à República – foi parar no manicômio. Porque, entre outros projetos quixotescos, queria que o governo adotasse o tupi-guarani como língua oficial do Brasil. Para ele o Português era um idioma emprestado. E, sem dar-se conta, certa feita escreveu um ofício em tupi, o que lhe garantiu o escárneo geral. Já havia fracassado com seu plano de agricultura, quando comprara um sítio e lá se instalara para provar que o solo brasileiro era o mais fértil do mundo. Deu com os burros n’água, como se dizia antigamente. Defensor da idéia de que o país só seria grande quando as autoridades fossem respeitadas, alistou-se para defender o governo por ocasião da Revolta da Armada – marinheiros contra o Presidente Floriano Peixoto. O movimento foi sufocado. Quaresma foi trabalhar como carcereiro na Ilha das Cobras. Lá, descobre que condenava-se sem julgamento, matava-se sem piedade, dava-se tratamento desumano aos prisioneiros. Quaresma, não podendo suportar tais injustiças, escreve uma 110 SCYLA BERTOJA carta ao Presidente, denunciando os fatos e pedindo solução ao problema – ingenuamente acreditou que a máxima autoridade o desconhecia. Foi preso e condenado à morte. Só aí deu-se conta da realidade. “A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir havia. A que existia de fato, era a do Tenente Antonino, a do Doutor Campos, a do homem do Itamarati”... (trecho do livro). Quaresma descobre ao fim, que passara toda a sua vida sonhando o impossível, construindo projetos inúteis. Às vezes sinto-me assim quando inclinada a defender esta ou aquela idéia ufanista; quando acredito no meu próximo e espero dele a mesma paga; quando pressinto alguém que tenta obter vantagens contando com a ingenuidade do outro. Interessante a coincidência: Quaresma e Quixote começam com a mesma letra, são trissílabos paroxítonos, e são personagens que lutaram para defender a honra, a verdade, a gentileza e a retidão de caráter. Sua recompensa foi assistir ao fim das esperanças. E eu nem precisei desligar o rádio para escrever a crônica, consultar o livro, conversar com o Lima Barreto e ouvir os noticiários com os últimos acontecimentos na República Federativa do Brasil, minha amada pátria. CRÔNICAS 111 Tarantella com polenta Aqui em Porto Alegre e em todos os rincões gaúchos, há, por estes dias, uma efusão de alegria, de orgulho cívico e étnico, embalado pelo natural sentimento de nostalgia e respeito pelos antepassados italianos que, há cento e trinta anos, vieram com suas malas cheias de esperança, coragem, capacidade de trabalho e talento empreendedor. Eram os imigrantes chegando em busca de uma oportunidade para desbravar, plantar, colher e prover as suas necessidades, ao mesmo tempo em que preparavam um grande futuro para as gerações vindouras. Seu esforço redundou no que vemos no presente. O bem-estar e a riqueza das regiões onde essa força de trabalho se estabeleceu. Nem tudo foram flores. Sofreram muito, sabemos. Foi um esforço gigantesco das famílias que trabalhavam unidas, lutando contra as agruras de um território virgem e cheio de perigos desconhecidos, com a obstinação de “fazer a América”. É uma história que todos conhecemos, porque os livros, os filmes e, principalmente as novelas brasileiras, a popularizaram e espalharam pelo mundo inteiro. Não vou aqui repeti-la. Apenas esclareceria que diferentemente dos trabalhadores italianos que foram contratados para as lavouras de café, em São Paulo, os que vieram para cá receberam um pedaço de terra para trabalhar e dali tirar o sustento. Tudo estava por fazer. Mas os italianos não se deixaram amedrontar por coisa alguma, e, ademais, seria difícil pensar num retorno à Itália, por motivos óbvios. E embora o sonho de um dia rever a terra natal continuasse lá no âmago de seus anseios, não o fariam sem antes vencerem na nova terra que os acolheu. Sabe-se que durante as guerras mundiais sofreram o preconceito. Em algum período de triste lembrança, tiveram de esquecer seu próprio idioma, evitando, até, de passar esses conhecimentos aos filhos que já nasceram no Brasil. Mas essas coisas não se esquecem. O elemento mais forte da unidade de um povo é a língua. Lembro-me de, quando criança, ouvir referências nada lisonjeiras ao modo de falar dos italianos e seus descendentes. O italiano era o colono, a pessoa de origem humilde, do campo. E, como muitos até hoje, evidenciava sua origem através 112 SCYLA BERTOJA do sotaque. Mas hoje é chique falar com aquele sotaque. A Itália está na moda no mundo inteiro. O “made in Italy” é valorizado, e as pessoas querem aprender o idioma italiano. Os cursos da Associação Cultural Italiana do Rio Grande do Sul contam com milhares de alunos, na capital e em todos os municípios do estado, e o italiano já está sendo oficialmente ensinado em escolas da rede estadual, em alguns municípios. Lembro do tempo do “black is beautiful”. Pois é. Agora “Italian is beautiful”. O Rio Grande do Sul já conta com 38.000 cidadãos italianos e outros tantos estão esperando a concessão da cidadania, segundo informa o jornal Zero Hora de 15/05/ 2005, que diz ainda que dos 10 milhões de habitantes do estado, um terço tem algum grau de parentesco com um dos 100 mil imigrantes que trocaram a Itália pelo Brasil. Agora é possível realizar o sonho do passaporte da União Européia. Abrem-se muitas portas. Somos importantes até como mercado em permanente crescimento. E via de duas mãos em negócios. Pois, fazendo parte do programa extenso de comemorações dos 130 ANOS DA IMIGRAÇÃO ITALIANA NO RIO GRANDE DO SUL, junto com a antecipação da Data Nacional da Itália, aconteceu a festa do dia 20, na sexta-feira passada, às 19 horas, no Armazém 7 do Cais do Porto, para 2.000 pessoas. Missa, discursos de autoridades, e depois uma encenação da chegada dos primeiros imigrantes em navio, com grande grupo de atores vestidos com trajes da época, singrando as águas do nosso Rio (Lago?) Guaíba, sendo recebidos com fogos de artifício no ancoradouro, iluminando a noite de Porto Alegre. Foi muito bonito. E foi aí que comecei mesmo a me interessar pelo acontecimento, pela festa, pelas pessoas que lá estavam. Como há alguns anos não compareço a festas dessa magnitude, não sabia exatamente o que esperar, além do estabelecido no convite. Chamou-me a atenção um fato, já quando entrei acompanhada de duas amigas, e fomos acomodadas em mesa onde já estavam quatro senhoras. Nos cumprimentamos, nos apresentamos e, a primeira pergunta que nos fizeram foi “Vocês também são italianas?”. Respondi que éramos brasileiras, mas descendentes de italianos. “Falam italiano?” foi a segunda pergunta. E a terceira foi diretamente para mim “Já foste à Itália?” Daí compreendi o quanto o “ser italiano” significava para estas pessoas que lá estavam. No momento da chegada do navio com os “imigrantes”, todos os espectadores correspondiam aos acenos dos lenços brancos dos viajantes. Era como se houvessem entrado num sonho, numa regressão ao dia da chegada de seus antepassados. E mesmo aqueles que acompanhavam somente pelos telões, estavam encantados. Nesse momento vi lágrimas nos olhos da moça que estava ao meu lado, e ela me disse “É como se eu estivesse CRÔNICAS 113 chegando naquele navio há 130 anos. Não consigo conter a emoção”. Uma outra companheira de mesa também começou a chorar, e não sei quantas pessoas mais estavam vibrando na mesma faixa. Fiquei impressionada. Isto me levou a pensar que, enfim, estas pessoas sempre souberam que eram descendentes de italianos, pois seus sobrenomes, as comunidades onde foram criadas, a cultura de suas famílias, sua aparência física, seus traços fisionômicos, nunca deixaram dúvidas sobre suas origens. Por que somente de alguns anos a esta parte o crescente desejo de conhecer o passado, reavivar e reviver a cultura, e adquirir a cidadania italiana? E não falo sem conhecimento do assunto. Eu mesma, apesar das dificuldades encontradas pelo caminho, por seis longos anos persegui o meu direito à cidadania que finalmente me foi concedida, com base no registro de nascimento de meu bisavô, que veio do Friuli com alguns tios e primos, antes da grande leva e se estabeleceu na região conhecida por Vale Veneto, próxima a Santa Maria, onde, posteriormente, investiu no comércio, constituiu família e viveu até o fim de seus dias. Mas eu presenciei as filas de pretendentes à cidadania, junto ao Consulado em Porto Alegre, a ansiedade na busca por informações e documentos, a troca de informações nas conversas durante a longa espera. Estudar ou trabalhar na Itália se transformou no objetivo de milhares de descendentes que descobriam como fazer o caminho de volta. Isso possivelmente só aconteceu dessa forma porque as coisas por aqui não estavam fáceis, e, em contrapartida, as notícias sobre as oportunidades da Itália moderna e rica chegavam ao conhecimento de todos. Entrar pela porta da frente é outra coisa. Vêem-se os problemas dos ilegais que entram na Europa à sua maneira e os problemas que enfrentam e provocam. Como perguntou com orgulho a moça ao meu lado “Vocês são italianas?”, ao mesmo tempo queria dizer “Nós somos.” Depois, tudo foi festa, música, dança, degustação de embutidos e queijos, com pão da melhor qualidade e regada a bom vinho. Quanto ao último não posso atestar, pois que não o bebi. Mas o restante estava excelente. O atestado de qualidade do vinho foi fornecido pela grande alegria com que se desenrolou a festa, à moda dos italianos do Brasil. Aqui é a Itália antiga, nós ainda somos os imigrantes, loucos de saudade da “nostra Itália”, como dizem. Só que aqui deu-se rapidamente a unificação sem nenhuma guerra ou tratado oficial. Aqui a celebração era tricolor, mas a festa era em estilo verde-amarelo. De parabéns os organizadores. De parabéns os descendentes. 114 SCYLA BERTOJA A primeira vez é inesquecível PARTE II Ano passado escrevi uma crônica falando sobre os contratempos e as emoções de minha primeira viagem à Itália. Concluía com a velada promessa de escrever futuramente sobre a continuação de minha aventura nos Alpes italianos. Não pensem que eu seria capaz de escalar montanhas ou meter-me nas eternas geleiras dos altos cumes. Eu não consigo sair do mais simples, do mais fácil, do mais confortável. Assustam-me as longas caminhadas, os desafios que não sejam intelectuais. Sou previsível, rotineira e nem um pouco original. Ora, então não teria nada de interessante para contar, pois que não esquiei, não fiz rafting, não escalei. Na verdade fiz algumas caminhadas por estradinhas que levam às montanhas, visitei locais onde se faziam os queijos artesanais para consumo próprio, porões onde se fabricavam lindos barris (botte) para armazenar o vinho das famílias da região, popular “vino nostrano”, do qual várias vezes ao dia me cabia provar, para não fazer desfeita a quem o oferecia. Mas eu nem me dava conta disso, porque estava fascinada com esse mundo aparentemente rústico das pequenas cidades. Digo aparentemente porque logo aprendi que aquelas pessoas rudes, tímidas às vezes, e sinceras, eram muito inteligentes e práticas na sua organização doméstica e comunitária (scarpe grosse e cervello fino) e conheciam profundamente os produtos que se orgulhavam de produzir. Participei de festas muito alegres como a dos bombeiros, muito concorrida e cheia de atrações interessantes. Nessa festa recordo que chegamos a ganhar um queijo enorme, quase do tamanho do tampo da mesa da cozinha. Fizeram a tradicional brincadeira que consiste em adivinhar, o mais aproximadamente possível, o peso de um grande queijo tipo grana padano pendurado no alto de um poste. As apostas eram feitas por escrito e, com o nome do apostador, entregues ao encarregado. Depois passavam pelas mãos de mais duas ou três pessoas, que atestavam a lisura do concurso. Ora, dessa vez houve um grande alarido entre os CRÔNICAS 115 apostadores quando foi lido o nome do ganhador. Era o mesmo que já havia ganhado a cobiçada peça em anos anteriores. Alguns simularam atacá-lo com bastões e outros objetos que tinham em mão. Fiquei assustada a princípio, pois o “odiado” ganhador era o meu marido. A indignação dos “paesani” era pelo fato de ser ele um homem que nunca havia trabalhado com produtos rurais. Tinha outra profissão e vivia na “América”, lugar onde eles imaginavam que todos fossem ricos e só conhecessem queijo cortado na tábua ou ralado sobre o spaghetti. O fato de um forasteiro, mesmo tendo nascido naquelas paragens, conseguir calcular o peso de um queijo olhando-o de baixo para cima, a mais de 3.00 m de altura, deixando para trás um grande número de moradores do local e arredores, era no mínimo humilhante para alguns deles. Meu marido simplesmente pediu uma faca e começou a cortar o seu prêmio em pedaços, entregando-os a quantos passassem para cumprimentá-lo ou ver o queijo de perto. Não sobrou quase nada. Alguns pedacinhos tocaram a nós, que os degustamos juntamente com o vinho da região. À noite eram comuns as reuniões em casas de montanha com amigos, o fogo crepitando nas lareiras. Ou em bares rústicos também aquecidos onde nos deixávamos ficar até tarde em meio a grandes cantorias, revivendo as velhas canções – canti di montagna – sempre lembradas pelos velhos alpinos que se emocionam com a grappa, o vinho e as lembranças. Eu tirava algumas fotos, cantava e acompanhava a todos com o violão que meu marido havia conseguido emprestado. Outros traziam de casa seus instrumentos de música, mandolino, acordeon, violino. No retorno à pequena casa que alugamos, sentíamos o ar gelado a 1.500m de altitude, o silêncio grandioso dos vales e dos cumes, o cheiro da vegetação alpina, dos pinheiros e do feno já cortado, e o perfume inconfundível do “larice”, conífera resinosa que se encontra em várias regiões da Itália. Era só acender o fogo, fazer um café na moka, e esperar que as palavras desaparecessem de nossas bocas, como ruídos inúteis e ininteligíveis completamente desnecessários ao entendimento maior, o dos olhos, das mãos, dos corações aquecidos de ternura. Nada nos preocupava. Quando amanhecesse outra vez, ser-nos-ia oferecida na janela do quarto a vista mais linda que alguém já sonhou. As Dolomitas eternas e solenes dominando os vales, os rios e os bosques. Era a saudação diária de Deus. 116 SCYLA BERTOJA Bolha Quando eu era criança as férias eram o acontecimento mais esperado. Primeiro aguardávamos pelas férias (pequenas) de inverno – havia inverno –, e lá por outubro, novembro, já estávamos sonhando com os folguedos do verão – três meses sem aulas. Mas as viagens, quando aconteciam, ao menos no modesto meio social em que fui criada, eram sempre para a casa dos avós, ou de algumas tias, geralmente às cidades de Cruz Alta ou Santa Maria (grandes carnavais), aqui mesmo, no Rio Grande do Sul. Nunca tive a oportunidade que hoje quase todas as crianças têm, de ir à praia de mar, ou passar uma temporada na serra. E éramos felizes. Os anos passaram, a vida seguiu seu curso, as mudanças aconteceram. Atravessei oceanos, conheci outros países. Enfim, hoje posso escolher. E na maioria das vezes, escolho ficar em casa, que é o melhor lugar do mundo. Mas de uns tempos para cá tenho viajado um pouco e começo a gostar dessas mudanças, dessa vida meio cigana. Em meados de março, após uns dias no mar, resolvi passar uma pequena temporada num local diferente. Aparentemente encrustado em morros da região de Gravatal, a setenta quilômetros da Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, sul do Brasil, em meio a muito verde, há um lugar especial, que, nesta época do ano, é freqüentado por grupos de casais idosos na sua maioria, e senhoras solitárias que para lá se dirigem no desejo de esquecer um pouco os barulhos, o movimento e tantos outros inconvenientes das cidades grandes. Completamente fora do mundo e ao mesmo tempo cercada por todos os confortos e serviços indispensáveis, a gente se sente em uma espécie de limbo da vida. A rotina passa a ser de prazeres e atividades para as quais, na cidade, nunca encontramos tempo. As pessoas vão ficando a cada dia mais desarmadas, seus rostos começam a se iluminar e os sorrisos afloram doces e espontâneos, como os das crianças. Com o passar dos dias, vaise formando um grupo de amigos desconhecidos, e até os idiomas diversos começam a ser melhor compreendidos. Leva-se quase uma semana para CRÔNICAS 117 atingir a gargalhada geral, mas, no meu caso, não é tão difícil. Tendo viajado acompanhada, o bom humor foi a nossa marca do começo ao fim da estada nesse paraíso. Um dos momentos mais belos do dia era o crepúsculo na piscina. Havia sempre os mais românticos, que, embalados pelo som de bem escolhidas melodias, boiavam olhando para o céu, contando uma a uma as estrelas que iam aparecendo como pequeninos diamantes contrastando com o veludo negro do firmamento. Um dia alguém perguntoume se desejava visitar o museu histórico numa localidade próxima, palco de heróicas batalhas e berço de famosos vultos do sul. Agradeci. Sinceramente – e eu mesma já me considero uma peça de museu –, não gosto de misturar certas coisas, além do que, para ir aos lugares históricos, perderia um dia inteiro de caminhadas dentro do mato, banhos de águas termais, massagens, refeições dos deuses, hidroginástica, crepúsculo na piscina circundada de variada vegetação, e como estaria descansada e feliz à noite, até um pouco de dança no bar do hotel, porque “ninguém é de ferro”. A amiga que me acompanhou batizou esse mundo para o qual fomos abduzidas por um período que não sei precisar, de BOLHA. Considero adequada essa denominação. Não me ocorre outra. Estamos contando os dias para repetir a dose. Só pensamos em voltar ao adorável planeta, tão logo seja possível. A minha casa continua sendo o melhor lugar do mundo, mas, somente como base para pousar a nave no retorno dos outros mundos maravilhosos que comecei a descobrir. Quanto aos museus e lugares históricos, acho que vou fazer um dia uma viagem específica para isso. Preciso enriquecer meus conhecimentos e conseguir assuntos para escrever minhas crônicas. 118 SCYLA BERTOJA Proporções Nos últimos dias tenho ouvido falar com freqüência a respeito do Deputado Roberto Jefferson. Todos ouvem e dele todos falam. Mas não estou me referindo aos seus depoimentos, aos quais não tive oportunidade de assistir. Nem às acusações que fez a partidos e parlamentares. Nem às acusações de que é alvo. Me impressionou mesmo foi a viagem de descanso que ele fez ao sul. A passagem dele pelo nosso Estado, o Rio Grande do Sul. Sua curta estada em nossa capital Porto Alegre. De repente, estou almoçando no local de sempre, apanho o jornal e o vejo na capa, em foto grande, meia página. Pensei que quando queremos veicular um convite para enterro ficamos chocados com o preço daquele pequeno espaço na parte interna dos jornais. Custa mais de R$ 500,00, e eu talvez (por sorte) esteja desatualizada. Imaginei quanto custaria aquela foto de Jefferson na capa do jornal. Mas logo me resignei. Afinal, para um homem como ele, com o poder de convulsionar o país com seus depoimentos sobre mil maracutaias e tramóias excelentíssimas, abrindo a tampa de uma profunda goela maldita que nos faz repensar os conceitos de honestidade, dignidade, boas intenções dos congressistas por nós mesmos eleitos e que deveriam estar nos defendendo e melhorando a vida do povo, abrem-se todas as imprensas, todas as páginas, todos os matutinos, vespertinos e o mais que seja. Todos os órgãos da imprensa estão à disposição dele, até mesmo quando ele não quer ser importunado. Veio ao sul para descanso, mas não o deixam em paz. Todos querem manchetes. Ele não vai dizer nada que não tenha dito antes, mas, mesmo assim, lhe correm atrás, tentando uma palavra que seja, uma foto, um sorriso, talvez um dó de peito – ele canta áreas de óperas –. Mas, acima de tudo, ele é a celebridade do momento. Meia página de capa, mais quatro páginas no interior do jornal, com fotos e entrevistas. Está bem. A importância dele é proporcional ao montante de verbas malversadas ou duvidosas que trocam de mãos nos desvãos dos palácios, em contrapartida a assinaturas, aprovações de leis, olhos fechados ao que de feio está acontecendo à direita ou à esquerda de alguns CRÔNICAS 119 excelentíssimos senhores que transitam pelas cúpulas do poder. E nós, povo, nada temos a ver com isso. Ou temos? Quem é que coloca lá em cima essas figuras todas? Eles são eleitos pelo voto, que aqui é obrigatório. A minha tristeza quando faço essas constatações é que para os honestos nunca haverá o espaço na imprensa na mesma proporção. Ele não dará manchete. Não dará ibope. E até parece que os honestos não são tão interessantes, bem humorados, simpáticos. O dinheiro embeleza, renova, dá brilho, e até embranquece – lembrei do pobre Michael Jackson. E em compensação aí está o espaço desproporcional na imprensa. Não só aqui, mas no mundo todo. 120 SCYLA BERTOJA Vou sair nua na revista Parece conseqüência. Parece resultado lógico de uma questão. Junta-se isto com aquilo e o produto é uma sessão de fotos que só não mostram a alma. Que afinal ninguém está interessado em ver. As pessoas querem mesmo é carne. Mas também parece que eu estou com inveja. Se tivesse essa oportunidade, será que resistiria? Bem, quero dizer, se essa chance tivesse me aparecido há muitos anos. Rechaçaria o presente da sorte? O bafejo da fama? As luzes da ribalta? E aquele monte, ou mala, ou cueca, de dinheiro? Ganho honestamente, diga-se a verdade. Por que não? Mas que deve ser uma tentação, deve ser! E, como diz o gaúcho, o cavalo não passa encilhado duas vezes. Então, deve-se montar logo na primeira. Decisão rápida. Pegar ou largar. Oh, meu Deus! E as explicações em casa? Como é que a gente chega e diz para a família “mãe, pai, mano, eu vou posar nua para a revista corrupchance.com”. Eu imagino que, inicialmente, a cara de todos fica com aquela expressão de reprovação. Depois, vem o interrogatório: “Te convidaram? Mas é nua sem nada mesmo? E vais aceitar?” Depois vem aquela parte do “quanto?”. Alguns quaquilhões, não sei bem. Só sei que não vou precisar mais trabalhar naquele escritório infecto mais um dia sequer. Vou conhecer alguns lugares lindos aí pelo mundo. E rápido, porque a maioria já está com problemas de terrorismo, alguns em guerra, outros não nos dão visto de entrada, e algumas praias paradisíacas estão sujeitas a tsunamis. Restam poucos lugares para serem visitados. Mas vou ter grana, entende? Grana de verdade. Tive de contar o dinheiro dos outros, ver entrarem e saírem das contas, montanhas de recursos sei lá de quem durante anos. Agora, com esse convite da revista, vejo que o meu problema não era a preocupação com a distribuição de renda no país. Nem as estatísticas da fome, da miséria. Era falta de dinheiro. É tudo uma questão de opportunity, baby. Ai, meu Deus! Estou aqui supondo coisas que desconheço. Não conheço segredos de quem quer que seja, nunca vou ser chamada a depor em lugar algum, a menos que seja citada como testemunha em briga de CRÔNICAS 121 vizinhos ou algum problema de trânsito. Realmente não tenho muitas esperanças. E posar nua só se for no dia das bruxas (não querendo ofendêlas) ou no pronto-socorro, que Deus me livre. Acho que, se essas moças forem convidadas, não há mal algum em exibirem aquilo que é seu, e que, afinal de contas, mostram durante o verão, de qualquer modo, nas praias do Brasil e em outras também, de graça. Só que ali, no meio de centenas de outras jovens, todas de tanguinha, não conseguem ficar em evidência. Já na revista, após as entrevistas na TV e os depoimentos, aquela figura cria um charme especial que só a mídia sabe construir, e quando quer, destruir também. 122 SCYLA BERTOJA Achados e perdidos Os jornais existem para nos contar as ocorrências mais importantes, surpreendentes, que acontecem diariamente nos vários setores da comunidade. Também para nos manter atualizados a respeito de coisas práticas como o valor e a equivalência das moedas do mundo. Também informam os eventos sociais da cidade, a programação dos cinemas e teatros, entre outros. Horóscopo, crônicas, página de humor. Tudo isso encontramos nos jornais, e mais um pouco. Mas ninguém é perfeito. Os jornais costumam trazer casos de pessoas desaparecidas e de pessoas encontradas. Nós lemos com atenção, nos sensibilizamos, nos preocupamos com a situação dessas pessoas, e no dia seguinte procuramos saber mais. Esperamos que os jornais tragam o prosseguimento das investigações. Queremos saber se os setores competentes da sociedade já encontraram soluções para esses casos. Mas o que normalmente acontece é que os casos são tratados com sensacionalismo e nos dias que se seguem o assunto não volta mais a merecer uma linha sequer dos órgãos da imprensa escrita. Assim foi com “o homem do piano”, que há alguns meses foi encontrado em uma estrada da Inglaterra, com suas roupas molhadas e completamente sem memória. Surpreendeu a todos com o fato de conseguir, assim mesmo, tocar piano. Até hoje estou esperando que algum jornal nos informe a respeito do destino que foi dado àquela pobre criatura sem identidade e sem passado. A não ser que eu esteja enganada, não houve mais quem se interessasse em escrever qualquer pequena notícia a seu respeito. Ficamos com aquele nó na garganta, sem saber que fim levou. Pois, na segunda-feira um jornal de Porto Alegre, ZH, noticiou o aparecimento na cidade de Santa Maria, de um garoto de dezesseis anos, proveniente da República de Cameroon, ou Camarões, como chamamos aqui no Brasil. Uma história de dois irmãos órfãos de pai e mãe, de 20 e 15 anos, que fugiram de seu país, escondidos em navios. Um deles foi para a França e o outro veio para a Argentina, e, não tendo se adaptado ali por CRÔNICAS 123 causa do preconceito, segundo ele, preferiu continuar a fuga em direção ao Brasil. São da cidade de Douala, em cujo porto embarcaram como clandestinos. O mais velho saiu no ano 2.000. O outro esperou até agora. Atravessou o Atlântico em 17 dias para escapar a uma vida como indigente nas ruas de sua cidade. Ele fala francês e um pouco de espanhol e já está aprendendo algumas palavras e expressões em português. Deve ser um menino inteligente. Disse que quer ficar aqui e quer ir à escola. Tomara não o façam retornar às ruas de Douala, onde não encontrou ninguém que o ajudasse e encaminhasse para uma vida digna, que é o que ele precisa. Certamente escolheu o Brasil porque acha que aqui os meninos pobres têm atendimento, escola, lazer e instituições que os preparam para a vida de cidadãos dignos. Não sei se vai poder ficar aqui, mas se ficar, estou certa de que aproveitará todas as oportunidades que lhe oferecerem e vai saber honrar a terra que o acolheu. Só quero que as autoridades pensem bastante também nos milhares de meninos brasileiros que se encontram em situação de risco, nas ruas das cidades, enfrentando todas as agruras, e o desamor de seus concidadãos. E que estão sendo levados para o lado obscuro da vida, o submundo dos vícios, dos crimes, e que estão permanentemente em fuga, não em navios que atravessam oceanos, mas a pé mesmo, pendurados em trens de metrôs, em carrocerias de caminhões, pendurados em carroças, fugindo de suas próprias casas, onde não são respeitados muitas vezes pelos próprios pais. Há coisa mais triste do que fugir daquilo que deveria ser a nossa referência, a nossa segurança e a nossa fonte de carinho fraterno? Comove-me a situação do menino camaronês em Santa Maria. Mas ele já está em boas mãos. Se encontra no Lar Metodista, onde permanecerá até que se esclareça sua situação legal. Mas revolta-me a ineficiência dos que deveriam cuidar dos nossos meninos que estão se perdendo dentro de sua própria casa, que é a nossa cidade, o nosso estado, o nosso país. É muito bonito preocupar-se com “um” menino estrangeiro que por aqui aporta, fugido, mas seria necessário levarmos a sério os nossos também. De qualquer maneira, acho que os jornais nos devem explicações continuadas a respeito das soluções para estes casos. Não é justo usar o fato atual para fazer manchete, dar uma informação que comove o leitor, e depois silenciar sobre o andamento dos casos. O que também pode estar acontecendo é que a demora em conseguirmos as informações seja motivada pela burocracia dos órgãos que tratam destes casos. Daí, nem o jornal tem culpa. 124 SCYLA BERTOJA Loteria da violência no Novo Oeste No velho oeste o mocinho era bonito, simpático, bondoso, romântico, e arriscava sua vida na defesa da lei e dos mais fracos. O bandido era mau, duro, feio, e até pela expressão do rosto demonstrava suas intenções. Ah! Ele não nos enganava. Quando o filme começava já sabíamos de que lado ficar. Claro que após as batalhas de rua e os tiroteios, até para justificar a lição humana da história, algum inocente caía, mas isso só acrescentava verossimilhança. Por falar nisso, não vejo mais filmes de mocinho há muitos anos. Estou fora de moda, lembrando coisas de um passado em que as quadrilhas arrasavam o saloon, mas a casa da mocinha e o jardim da igreja ficavam intactos, com seus canteiros cheios de flores. O território de guerra tinha limites preestabelecidos. No jargão popular, havia ordem na bagunça. Mas esqueci dos agentes da lei. Quando corretos, eles até concediam ao mocinho uma estrela (de xerife) para poder legitimamente livrar a sociedade dos maus elementos. E quando eram corruptos, levavam algum para deixar fugirem os bandidos, e até ajudavam informando o horário de abertura do cofre ou da chegada da diligência com as malas de dinheiro. Mas esse tempo passou. Ou não? Bem, eu moro em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, e hoje é 4 de agosto, 2005. Eu deveria ter saído de casa pelas 12 horas para encontrar duas amigas no shopping. A título de informação, há mais de dez shoppings nesta capital. Almoçaríamos conversando alegremente, planejando o próximo fim de semana, comentando o calor de 31° do nosso estranho inverno e outras amenidades. Mas eu não fui. E só à noite tive notícias de minhas amigas. A coisa aconteceu assim: Elas estavam almoçando no shopping, quando, de repente, forças policiais chegaram ao local para prender um grupo de ladrões que, após um servicinho de rotina – roubo de CRÔNICAS 125 automóvel –, alimentava-se tranqüilamente na lancheria mais concorrida, repleta de crianças e adolescentes e demais clientes habituais. Uma de minhas amigas esgueirou-se para trás do primeiro balcão de buffet. A outra conseguiu enfiar-se pela porta de uma cozinha. Quando tudo passou, elas foram ao banheiro e ficaram sabendo que duas vizinhas de mesa haviam procurado esconder-se no supermercado e lá toparam com outro grupo de ladrões que já estava sendo rendido por policiais. A comida esfriou. As pessoas perderam o apetite. Agradeciam a Deus o fato de não ter havido um tiroteio. Abraçavam suas crianças, seus amigos e, atônitos, começavam a se retirar. Meio tortos, meio murchos, e completamente impotentes. Possivelmente minhas amigas vão dormir muitas horas para se recuperarem do trauma que representa o estar frente a frente com a violência. Ainda mais quando a gente imagina estar em segurança, no ambiente de um estabelecimento que possui câmeras de vídeo, alarmes, vigilantes munidos de walkman. Mas possivelmente sem armas de fogo. E os ladrões sabem disso. Mas aonde eu quero chegar? Pois é! Digitei um e-mail para uma de minhas amigas agora há pouco, dizendo que não se deixasse abater. Apenas aconteceu que o número dela havia sido premiado hoje ao meio-dia. Todos nós estamos esperando, não digo que ansiosamente, mas conscientemente, o momento em que seremos também chamados para dentro da cena do faroeste, para atuarmos como vítimas indefesas nas mãos dos malfeitores que, aqui, na nossa realidade, já estão pisoteando os lindos canteiros de flores da igreja e da casa da mocinha. Não há mais onde se esconder. E não há heróis. Aqui o mocinho não costuma passar com seu cavalo branco, agarrar a dama pela cintura, e, como num passe de mágica, livrá-la do perigo. Na impossibilidade deste romântico e excitante desfecho, perdemos também a esperança daquele beijo que quase acontece. Ora, gente, o mocinho é um cavalheiro, e ela é noiva de seu melhor amigo! Aiooooo, Silver!!!! Há muito trabalho pela frente. E o novo oeste espraiou-se. Localiza-se também no sul, no norte e no leste. THE END. 126 SCYLA BERTOJA