Uma análise da Sonata para Violino e Piano de Elpídio Pereira.
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Uma análise da Sonata para Violino e Piano de Elpídio Pereira.
Uma análise da Sonata para Violino e Piano de Elpídio Pereira. Fernando Márcio Lima da Silva1 O espécime musical da sonata para violino e piano de Elpídio Pereira, usada para exame deste trabalho, se encontra na Biblioteca Nacional, sob o número de catalogação M787.1 PI.4, e possui duas partes distintas, sendo uma para ambos os instrumentos e a outra unicamente para o violino. A parte para violino possui quatorze páginas, e a parte para piano possui quarenta e oito páginas e uma página de rosto, somando-se um total de sessenta e três páginas. a) O DOCUMENTO A partitura examinada, editada em 1925, parece nunca ter sido usada, pois a mesma não contém qualquer tipo de notação manuscrita, como por exemplo, indicação de dedilhados tanto na parte do violino quanto do piano, ou mesmo rasuras que indicassem algum tipo de trabalho neste sentido. Na sua diagramação editorial, a obra mede 29,5 cm de altura por 21,5 cm de largura, e um ligeiro exame de partituras editadas na época indica que estas medidas variavam até cerca de 34 cm de altura e 25 cm de largura, como exemplifica bem qualquer edição de época como, por exemplo, a dos Capricci de Nicollo Paganini2, utilizada para fins de comparação. Na pesquisa bibliográfica, encontrou-se citação da sonata e obra de Elpídio Pereira nas obras de Renato Almeida3, Vasco Mariz4 e Márcio Páscoa5. Curiosamente na obra de Vasco Mariz, o autor classifica-o como pertencente à Segunda Escola Nacionalista, sem indicar quais os parâmetros usados para esta dada classificação. Na obra de Bruno Kiefer (1997), não há sequer alguma citação a Elpídio Pereira e, no entanto, na obra de Renato Almeida encontra-se uma biografia do autor, citando brevemente sua carreira e obras e principais passagens de sua vida. Assim também, em Márcio Páscoa, onde estão citados inclusive os programas de concerto em que a música de Elpídio Pereira esteve presente na cidade de Manaus. 1 Trabalho desenvolvido como projeto de Iniciação Científica, amparado pela FAPEAM/UEA, orientado pelo Prof. Doutor Márcio Leonel Farias Reis Páscoa. 2 Henry Lemoine & éditeurs (Paris) S.D. ALMEIDA, 1942, p. 485. 4 MARIZ, 1994, p. 228. 5 PÁSCOA, 1997, p. 75, 87, 104, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 184, 220, 228, 229. 3 Descrevendo sucintamente esta edição da sonata para violino e piano (PEREIRA, 1925), temos: na página de rosto, no alto à direita, encontra-se o nome do autor, e, no alto à esquerda, pouco mais abaixo do nome do compositor, encontra-se uma dedicatória com o seguinte texto: A mon ami Eurico MARQUES, en profunde amitié. Ao centro da página, em caixa alta e em tipo diferente dos anteriores, está escrito Sonate pour Violon et Piano , abaixo, à direita, encontra-se o valor da publicação: prix net: 12 francs . Abaixo à esquerda, se encontram os dados editoriais reproduzidos na sua íntegra: Téléph: louvre 17-38 Comptoir Général de Musique F.DURDILLY, ch HAYET, Successeur Éditeur 11 bis, Boulevard Haussmann Paris tous droits d exécution, traduction, reproduction et arrangements résérves pour tous pays, e compris la Suède, la Norverge, le Danemark et la Hollande Copyright by Ch. Hayet, 1925 Imp. A. MOUNOT- PARIS (PEREIRA, 1925). Na parte separada para violino, há pouca coisa a ser dita. Possui na sua primeira página os seguintes elementos: bem ao centro a dedicatória do autor tal qual em sua página de rosto; ao centro abaixo em tipo diferente da dedicatória está escrito SONATE; abaixo à esquerda pour violon et piano; à direta e na mesma linha o nome do autor; ao centro abaixo dos enunciados está escrito violon e se inicia a partitura; abaixo à esquerda e a direita os dados editoriais da obra e ao centro o número de catálogo da obra C.7316H., repetindo-se até a última página, num total de quatorze (14). A parte para ambos instrumentos em sua primeira página, está configurada tal e qual a primeira página da parte separada de violino, e o original apresenta no seu corpus as marcas da ação do tempo, em que algumas páginas já se apresentam com alguma deterioração. É interessante notar a influência da estética art noveau na obra. A página de rosto da sonata possui dois elementos gráficos característicos deste momento, que servem para um reconhecimento temporal da edição, datando-a no primeiro quartel do século XX. Figura 1: Elemento art nouveau da folha de rosto da Sonate . b) ELEMENTOS DA PARTITURA O planejamento da obra indica a tonalidade de Lá maior como predominante e a obra possui quatro movimentos distintos entre si: Allegro con brio Scherzando allegro vivo Adágio Rondo allegreto moderato É importante notar que a maioria das obras dos principais autores para esta formação, ou mesmo para o violino solo parece sempre estar próxima desta tonalidade. Bach, Beethoven, Brahms, Mozart, Dvorak, Franck, Fauré, Saint Saens 6, entre outros escrevem suas sonatas, concertos e outra música de câmara sempre entre as tonalidades de Sol maior, Ré maior, Lá maior (e raras vezes em Mi Maior) e suas relativas menores, caracterizando um idioma tonal para o violino, e deve-se ressaltar que estas tonalidades guardam entre si relações harmônicas7. Tabela 1 Tabela comparativa de tonalidades. 6 O parâmetro utilizado para a escolha destes autores, é uma tradicional ordem estético-histórico-musical, baseada no seu uso didático conservatorial, conforme deve ter ocorrido, com ligeiras variações, na época de Elpídio Pereira. 7 Segundo o Dicionário Grove de Música (1980), A disposição das tônicas das 12 tonalidades maiores ou menores, arranjando-se em ordem ascendente e descendente, a intervalos de 5ªs justas, formando um círculo fechado: Dó - Sol - Lá - Mi - Si - Fá# = Sol - Ré Lá Mi - Si Fá Dó . O ciclo das quintas faz parte das estruturas harmônicas e indicam quais as tonalidades que se avizinham do centro tonal principal, para que ocorram as devidas modulações dentro de uma obra musical concebida pelas leis da tonalidade, e é base fundamental da Harmonia funcional e tradicional. AUTORES SONATAS SOL MAIOR E RE MAIOR E LÁ MAIOR E MI MAIOR E RELATIVAS RELATIVAS RELATIVAS RELATIVAS Bach 6 1 1 1 1 Mozart 18 3 1 3 X Beethoven 10 2 1 4 X Brahms 3 1 1 1 X Franck 1 X X 1 X Fauré 2 X X 1 X Sains- saens 2 X 1 1 X É provável que o autor tenha escolhido esta tonalidade de acordo com a tradição deste instrumento, principalmente por tratar-se de sua única sonata para violino e piano, dando já alguns dados de sua estruturação. O primeiro movimento da obra possui trezentos e trinta e três compassos, em compasso composto 6/8, tem indicação de Allegro com brio, sugerindo um andamento rápido, tendo lá maior como tonalidade central da peça. O segundo movimento possui cento e quatro compassos, em compasso simples 3/4, e indica ser um scherzo allegro vivo, andamento muito rápido, também tendo lá maior como tonalidade principal. O terceiro movimento é um Adágio, sendo o único andamento moderadamente lento da obra, em compasso simples 3/4, e também é o único que apresenta uma tonalidade diferente da principal: na sua armadura de clave indica a tonalidade de ré maior. Possui cento e quarenta e um compassos. O quarto movimento possui duzentos e noventa e seis compassos e já indica ser um Rondó, forma em que um tema ou grupo de temas se repete ao longo do desenvolvimento da obra. Curioso notar que é o único movimento em forma binária, em compasso simples 2/4. Todos os outros movimentos estão consolidados em formas ternárias. Com relação à notação de agógica e dinâmica musicais, nota-se o uso abundante das seguintes indicações no decorrer da obra: Sforzandos, crescendos, rallentandos, sforzandos expressivos, rittenutos, affretandos, rittenutos moltos, leggero, várias seções com a indicação Meno mosso e Calmo a tempo. Estas indicações de agógica e dinâmica musical sugerem uma relação desta obra com o seu tempo. Elpídio Pereira esteve intimamente ligado às tendências estéticas do fin de siécle, em particular com o Naturalismo, onde estas indicações por vezes bastante exageradas de motivação musical são lugar comum na estruturação do discurso musical, como por exemplo nas óperas de Puccini, Leoncavallo e Mascagni. Em sua autobiografia, A musica, o consulado e Eu8, o autor conta sobre seu ambiente musical em Paris, onde assistiu a prémiere parisiense de Cavalleria rusticana de Pietro Mascagni, e é perfeitamente plausível que tenha se deixado influenciar pela repercussão destas obras9. A partitura apresenta ainda vários sinais de articulação como acentos, stacattos, legatos. Apresenta indicação de arcadas na parte do violino, mas não se sabe neste momento se são do autor ou do editor. Como não há indicação de dedilhados impressos em ambas as partes, é provável que a partitura não tenha recebido nenhum tipo de revisão editorial que não a do próprio autor antes da sua impressão, e pode-se, em um estágio ou trabalho subseqüente, fazer-se uma edição comentada e revisada da obra. c) ELEMENTOS DE ESTRUTURAÇÃO MUSICAL A palavra Sonata possui significados vários, e segundo Joaquím Zamacois (1991, p.167): La etmología de la voz sonata se encuentra en el verbo sonar, ya que se trata de una palabra italiana creada para designar las obras que debían ser sonadas en un instrumento de arco. Así, pues, sonata, en su origen, no significaba una forma de composición. Um conceito mais explícito da palavra sonata, especificamente importante neste estudo é a definição dada pelo compositor e teórico Arnold Schoenberg (1991, p.241): O conceito de sonata implica um ciclo de dois ou mais movimentos, com diferentes características. A grande maioria das sonatas, quartetos de cordas, sinfonias e concertos desde os tempos de Haydn, utilizam este princípio estrutural. Contrastes de tonalidade, andamento, compasso, forma e caráter expressivo distinguem os vários movimentos entre si. A unidade 8 9 PEREIRA, 1957. Idem, p. 27-28, 30-33. é garantida pelo relacionamento entre as tonalidades empregadas (o primeiro e o último movimento utilizam a mesma tonalidade, e os movimentos intermediários estão relacionados a esta tônica) e pelas relações motívicas, que podem ser absolutamente evidentes ou disfarçadas com raras sutilezas. A sonata de Elpídio Pereira, já analisando deste ponto de vista, possui as características citadas acima: o primeiro movimento e o último se relacionam pelo mesmo centro tonal (lá Maior); os movimentos internos estão relacionados com a tonalidade de lá Maior. Apresentam contrastes de andamentos e principalmente contraste de caráter expressivo entre seus movimentos. O exame do plano estrutural de cada movimento resultou nas seguintes características: O primeiro movimento, em compasso composto 6/8 inicia-se com o tema A ao violino. Logo no seu quinto compasso, o tema é conduzido para a mão direita do piano, seguindo a um colla parte no compasso 09, ou seja, ambos instrumentos apresentam o tema inicial, e deve-se ressaltar que este procedimento de composição se faz presente em vários trechos este movimento. Figura 2: Tema A do primeiro movimento. Esta seção de apresentação temática dura exatos 20 compassos. Segue-se a uma pequena ponte cadencial de oito compassos, para uma nova seção temática, o tema B , que se inicia com a devida indicação de calmo a tempo, em contraste com o allegro com brio inicial. Figura 3: Tema B do primeiro movimento. Esta nova seção é mais longa e dura 86 compassos. Aqui a nova apresentação temática, no âmbito de Fá sustenido menor, é de caráter expressivo completamente diferente da seção anterior. O tema B sofre alongamentos vários durante a sua exposição e o autor faz uso de um procedimento imitativo, onde ora a melodia está ao violino, ora ao piano. E esta seção é finalizada com uma grande fermata no compasso 114. Entre os compassos 115 ao 136, há uma seção em que um novo padrão rítmico é apresentado. O autor combina, neste trecho, reminiscências do tema A , misturadas a este novo padrão. Nestes compassos, a partitura estabelece uma seção de caráter cadencial e de liberdade rítmica, por indicar seguidamente rallentando e a tempo, marcados por fermatas de fim de frase e modulações a uma tonalidade distante da principal. Do compasso 137 ao 189, estabelece-se uma nova seção, que já se inicia na tonalidade de lá bemol maior, tonalidade esta, que se atingiu na seção cadencial anterior, através do processo de modulação. Há o uso do material temático anterior, que sofre modulações várias, e nota-se um rico processo de inventividade melódico-harmônica, que culmina com o retorno do tema A , na tonalidade principal (Lá Maior) no compasso 191. Segue -se a re-exposição do tema inicial na tonalidade principal, com seus exatos 20 compassos. Novamente, ocorre uma ponte, de 6 compassos, para uma nova seção de calmo a tempo, o tema B , agora no âmbito da tonalidade de lá maior, entre os compassos 217 ao 288. Entre os compassos 229 e 292, ocorre uma passagem solo para o violino, que serve como uma pequena ponte para a seção final do movimento, estabelecida no compasso 293 ao compasso final, apresentando elementos temáticos anteriores e com o mesmo caráter do allegro com brio inicial. A estrutura do primeiro movimento indica a seguinte forma: Tabela 2 Quadro geral das seções do 1º movimento: SEÇÃO SEÇÃO A B 01 ao 20. Ponte para tema B: compassos 21ao 28. CADENCIA DESENVOLVIMENTO EXPOSIÇÃO A Tema A: compassos RE- Livre uso de Tema B: compasso 29 B : 51 Tema A: material temático Reminiscências anterior: temáticas e evoluções ocorre entre harmônicas: entre os os compassos 137 ao 190. compassos115 ao136. compasso 191. ponte à B na tonalidade principal:211 REEXPOSIÇÃO B Tema B: ocorre no compasso217, apresentando já Ocorre motivos entre os melódicos compassos: anteriores de A 293 ao fim. ao 216. O esquema acima, demonstra claramente, que se trata de uma forma-sonata, ou allegro de sonata, descrito por Schoenberg e Zamacois. O segundo movimento é um allegro vivo 3/4 na tonalidade principal da obra. Na cabeça da página está escrito Scherzando, já indicando qual a forma e as características expressivas deste movimento. Segundo Schoenberg (1991, p. 184) : O scherzo é, nitidamente, uma peça instrumental caracterizada por acentuações rítmicas e tempos rápidos. A rapidez de movimento impede a freqüente mudança harmônica e a variação profunda das formas - motivo. Com relação a estrutura, os scherzos dos grandes mestres possuem apenas uma coisa em comum: são formas ternárias. O movimento possui apenas 104 compassos e a melodia inicia-se ao violino com caráter jocoso, em acordes para ambos os instrumentos. Possui marcada e nitidamente duas seções: Allegro vivo e Meno mosso. O allegro vivo possui 48 compassos onde o autor se vale de um jogo de perguntas e respostas rápidas, sempre no âmbito da tonalidade principal, e indicando alguns poucos rallentandos seguidos de a tempo que marcam os fins e inícios das frases musicais. CODA Figura 4: Tema A do segundo movimento. No compasso 46, há uma mudança de armadura de clave para ré maior e se instaura uma pequena ponte de 8 compassos para a seção Meno mosso. A nova seção possui apenas 16 compassos, e além da mudança de tom (trata-se de um tom vizinho a lá maior, sendo seu quarto grau, na função de sub dominante) possui um caráter mais lírico que a precedente. Há um ritornello (indicação de repetição de uma seção da música) à seção allegro, novamente repetindo seus exatos primeiros 40 compassos na tonalidade principal. Figura 5: Tema B do segundo movimento. Temos aqui um exemplo de forma ternária A-B-A tal qual descrito por Schoenberg10, muito em voga desde os tempos de Beethoven. É neste movimento que se revela uma relação direta de Elpídio Pereira com este compositor, pois nas sonatas para violino e piano de Beethoven, encontra-se claramente esta forma musical. 10 Segundo Schoenberg (apud WEBSTER, 1991, p. 183), scherzo significa um movimento jocoso e espirituoso, comumente em compasso ternário, o qual, desde Beethoven, normalmente substituiu o lugar do antigo minueto em uma sonata ou sinfonia . Porém, uma tentativa rigorosa de se definir o scherzo se deparará com vários problemas. O autor afirma que Beethoven usa esta denominação apenas aos movimentos que estão estruturados em tonalidades maiores, e de maneira geral, quando se resenha os movimentos rápidos deste e outros compositores românticos e da modernidade, estes possuem um conjunto de características como vivacidade, cintilância, brilho, espirituosidade, entusiasmo, arrebatamento, ardor, ferocidade, energia, veemência, paixão, dramaticidade, tragicidade, heroísmo, etc. Este conjunto de características, tanto o formal como o conjunto de agógicas, se encontram neste movimento da sonata de Elpídio. Tabela 3 Quadro geral das seções do 2º movimento: Seção A Seção B Tema A: compasso 01 Tema B: compasso 41 ao 40. ao 64 Seção A Recapitulação integral da seção A : compasso 62 ao fim. O terceiro movimento da sonata é um Adágio, ou seja, caracteriza-se por ser um movimento lento e mais calmo que os seus precedentes. É o único que está com uma armadura de clave diferente dos demais, e possui 141 compassos, e indica a tonalidade de Ré maior como predominante. Do compasso 1º ao 54º, o autor estabelece dois temas distintos, um em tonalidade maior e outro em tonalidade menor, que para melhor entendimento denominou-se A e B . O tema A é exposto na tonalidade de ré maior pelo piano. Em seguida, o mesmo tema é re-exposto pelo violino, e este logo modula a última frase musical do tema A para a tonalidade de lá maior. Em seguida, estabelece-se o tema B no compasso 17, na sua relativa menor, ou seja, Fá sustenido menor. Figura 6: Tema A do terceiro movimento. Figura 7: Tema B do terceiro movimento. Há o retorno ao tema A no compasso 38, agora no âmbito da tonalidade de lá maior. Porém o autor não se prende a esta tonalidade e se encaminha a um novo tema, o tema C , e a uma nova tonalidade que se firma no compasso 55 em Si bemol maior. Fig ura 8: Tema C do terceiro movimento. Esta seção em Si bemol, possui 28 compassos, e é expressivamente diferente das anteriores. O acompanhamento livre e lírico da seção inicial dá lugar a um ostinato de tercinas na mão direita do piano, o baixo torna-se cantante e sempre está em contraponto com a voz do violino. Em vários compassos, o tema C , encaminha-se do violino a mão direita do piano em contraponto imitativo. Segue assim até o restabelecimento do tema A , no compasso 83, na tonalidade original, em oitava acima e com o baixo em tercinas como reminiscências da seção central. O tema B retorna agora na tonalidade de ré maior no 99º compasso ainda mais brilhante que o tema A , com o violino no seu registro já mais agudo, seguindo ainda as imitações dos temas por ambos os instrumentos. No compasso 117, é reapresentado o tema C na tonalidade de ré maior, o baixo torna-se novamente cantante, contrapondo-se à voz do violino e à mão esquerda do piano agora executa sextinas e algumas imitações da melodia. No compasso 129, retorna-se ao tema A e ao mesmo caráter do início do movimento, com algumas pequenas reminiscências dos temas predecessores, chegando ao seu fim. Estas características indicam que se trata de um Lied ou Canção com um desenvolvimento harmônico e melódico. A estrutura deste movimento indica o seguinte esquema formal: Tabela 4 Quadro geral das seções do 3º movimento: SEÇÃO A Tema A (ré maior): compasso 01 ao 12. SEÇÃO B Tema C (si bemol maior) compasso 55 ao 82. SEÇÃO A SEÇÃO B Tema A (ré Tema C (ré maior): maior) compasso 83 compasso 117 ao96. ao 127. Tema B (fá sustenido Tema B (ré menor) do compasso maior) compasso 13 ao 38. 97 ao116. FINAL Tema A: compasso 128 ao fim. O quarto movimento é curiosamente o único em compasso binário na obra e está planejado na tonalidade de lá maior. É um allegro moderato de 296 compassos e se intitula Rondó. O autor estabelece o tema A , em cordas duplas para violino, como imitando a mão direita do piano. Neste tema, sempre na tonalidade de lá maior, a melodia principal aparece várias vezes entrecortada entre o piano e o violino, e esta seção sempre retornará após o estabelecimento dos outros temas. Figura 9: Tema A do quarto movimento. No compasso 21, encontramos o tema B , sem uma definição tonal, ora em lá menor ora em mi menor. É exposto o tema C no compasso 29, já com um caráter mais expressivo e melódico, em contraposição ao temas anteriores A e B , que possuem um caráter mais enérgico e brilhante. O tema C possui cordas duplas novamente, mas aqui este procedimento técnico é reapresentado de maneira mais lírica, como indicam as ligaduras de frase na partitura. Figura 10: Tema B do quarto movimento. Figura 11: Tema C do quarto movimento. Há o retorno ao tema A no compasso 76 e expõe-se o tema D no compasso 84, com nova armadura de clave, na tonalidade de Ré menor, possuindo um caráter ainda mais lírico e cantante que os temas predecessores. Figura 12: Tema D do quarto movimento. No compasso 119, há uma pequena cadência para o violino e para piano, há modulação de Ré menor para Ré maior e em seguida lá maior e retorno ao tema A no compasso 130. O tema B retorna em tonalidade no âmbito de Fá maior e sua relativa menor, Ré menor no compasso 150 e o autor se encaminha para o tema C em tonalidade de lá bemol maior. Entre os compassos 196 e 207, há uma ponte para a tonalidade de lá maior, novamente há uma seção cadencial para o violino e o retorno do tema A acrescido de brilhante variação. Retorno do tema D em registro ainda mais brilhante que o tema A e com o mesmo caráter lírico e sem definir exatamente uma tonalidade, ora em maior ora em menor11. Segue esta seção até o compasso 279 onde o autor estabelece uma coda final com muito virtuosismo técnico do violino em arpejos em cordas duplas até seu fim. As características apresentadas neste movimento coincidem com a descrição formal de um Rondó-sonata feita por Schoenberg, que assim se refere a esta forma musical: O rondó-sonata, com uma seção C modulatória que elabora elementos temáticos anteriores (...) são tratados de modo similar à seção mediana da forma-sonata. Esta seção assemelha-se à seção modulatória mediana de scherzo, mas é normalmente elaborada de forma mais organizada. A exposição e a recapitulação não precisam diferir daquelas já anteriormente discutidas, embora possa surgir um maior grau de complexidade e modificações mais profundas. (SCHOENBERG, 1991, p. 238.) O esquema formal deste rondó-sonata é o seguinte: Tabela 5 Quadro geral das seções do 4º movimento: 11 O autor faz uso de um artifício de seu tempo, a terça do acorde tonal principal é aqui tratada como terça modulante, não definindo uma modalidade da tonalidade (maior ou menor), porém afirmando um plano tonal. Este artifício é usado para dar uma maior força dramática ao texto musical. A B Lá maior: compasso 01 ao 20 B Lá/mi menor: compasso 21 ao 36 C Lá bemol menor: maior: compasso compasso 150 ao 165 168 ao223 D A Ré maior: Lá maior: Ré menor: Lá maior: compasso compasso 76 compasso 84 compasso 39 ao 75 ao 83. ao117. 134 ao 149 C Fá/ré A A Lá maior: compasso 224 ao 239: D Lá maior/menor: compasso 241 ao 278 CODA Lá maior: compasso279 ao fim. Do ponto de vista harmônico, os movimentos foram construídos obedecendo às leis gerais da tonalidade. O encadeamento harmônico usado pelo compositor, no início do primeiro movimento, logo na apresentação de sua primeira frase melódica é o I (Cadência perfeita). A segunda frase apresenta a cadência: V7 I reapresenta o tema na Tônica da tonalidade. Terminada essa seção II V V7 e A , pode-se observar a presença uma ponte modulatória para a seção B , construída sobre a agregação de notas modificadas, ou seja, fora da tonalidade original, (com os seus IV e V graus alterados, Ré e Mi sustenidos), chegando, através de cadência perfeita, à tonalidade de Fá Sustenido menor (essa nova tonalidade é atingida através da Função da subdominante). Nesse novo centro tonal, o compositor explora as possibilidades das cadências perfeitas: VI/I II/VI III/VI -V/VI e VI/I. Poder-se-ia, longamente, analisar as cadências utilizadas pelo autor, no desenvolvimento da obra musical, mas de maneira geral, ele faz uso da relação Tônica Dominante, tanto na tonalidade principal como nas tonalidades vizinhas (maiores e menores). Além disso, um estudo dessas habilidades teóricas revelam, na verdade, não a obra em si, mas apenas as opções lançadas pelo autor, quando da feitura de sua sonata. Figura 13: Primeiro encadeamento harmônico da sonata, onde o autor afirma o uso de uma harmonia tradicional, baseada nas funções e progressões harmônicas tonais. Não obstante, o tratamento Harmônico à maneira tradicional revela alguns significados. Elpídio Pereira (1957), em seu livro de memórias cita, em diversos momentos, ter mantido contato com a música que se considerava nova, naquele período. Assistiu, por exemplo, a premieré francesa de várias obras de origem alemã e italiana, especialmente a música de Wagner, rica em cromatismos, na qual a relação Tonica Dominante é abandonada em função das Dominantes individuais e dos acordes alterados e sobrepostos de Sétimas e Nonas12. E apesar de provavelmente ter conhecido também a música revolucionária de Debussy13 e a obra dos Veristas14, não se deixou influenciar pelas novas linguagens, mantendo-se fortemente filiado às tradições harmônicas tonais. Seria lógico, portanto pensar que o compositor procurava nessa formas clássicas, o caminho para expressar o seu discurso musical e, com relação a sua única sonata para violino e piano, essa orientação acadêmica revela-se perfeitamente coerente com os modelos de seus mestres. Eram eles, Antoine Taudou (1846-1925)15 e Paul 12 Acordes típicos da era romântica, onde se unia nos acordes perfeitos terças sobrepostas, abrindo caminhos para tonalidades mais distantes e para a politonalidade. 13 Debussy, Claude 1862-1918, compositor francês, que inovou as formas musicais tradicionais ao utilizar escalas de tons inteiros; uso de uma harmonia flutuante, inspirado na obra dos escritores contemporâneos, inaugurando um novo gênero musical chamado mais tarde de impressionismo musical ou simplesmente música impressionista. Era amigo pessoal de Paul Vidal, professor de composição de Elpídio Pereira. 14 Pereira (1957) afirma ter visto a prémiere parisiense de Cavalleria Rusticana do compositor verista Pietro Mascagni. O termo Verista , segundo o Dicionário Grove de Música (1994), advindo de Verismo , é o termo para a versão italiana do movimento naturalista do final do século XIX, no qual Émile Zola foi a figura dominante na França. Está ligado à óperas que tratam da realidade crua da vida, apresentando personagens dos estratos sociais mais humildes e introduzindo temas como a pobreza, paixão e brutalidade. Cavalleria rusticana(1890), de Mascagni foi um dos primeiros e mais influentes exemplos; entre outros incluem-se Pagliaccio de leoncavallo, e lá bhoème de Puccini. 15 Taudou, Antoine foi professor do conservatório de Paris 1846-1925. Ganhou o Gran Prix de Roma no ano de 1869 com a obra Françoise de Rimini . Entre os laureados por este concurso estão Hector Berlioz (1830), Charles Gounod (1839), François Bazin (1840),Georges Bizet (1857), Jules Massenet (1863), Paul Vidal (1883) e Claude Debussy (1884). Pela qualidade dos compositores laureados, pode-se deduzir que Antoine Taudou fosse um professor altamente qualificado de harmonia e contraponto. Não encontrou-se porém um verbete relacionado a Taudou no Dicionário Grove de Música (1994), mas é citado várias vezes em outros verbetes como professor de Harmonia de outros compositores, como Emilé Vuillermoz e Camille Erlanger, ambos franceses e alunos do conservatório de música de Paris e suas biografias indicam que entre o corpo docente da instituição, o professor Taudou tinha como colegas Leo Delibes e Gabriel Fauré, compositores importantes na Historiografia da musica universal. Vidal (1863- 1931)16 , todos formados no ambiente musical acadêmico de Paris, e docentes do Conservatório Superior de música daquela cidade. Certamente, no tocante à Composição, Harmonia e Contraponto, Elpidio Pereira não poderia ter sido diferente de seus mestres, uma vez que era dele exigido o mesmo domínio e provável filiação estética. O conjunto formal dos movimentos da sonata é, como indica a partitura e as notações de agógica do autor, de natureza bem distintas, e se relacionam pelo mesmo centro tonal e suas relativas. O primeiro movimento é, sem dúvida, o mais elaborado, possuindo claramente a Forma-Sonata, ou Allegro de Sonata descritos anteriormente por Schoenberg. O segundo é um Scherzo, o terceiro movimento uma espécie de Lied com desenvolvimento, e o quarto movimento um Rondó. Este panorama formal mantém relação direta com um outro compositor: Beethoven. Este músico foi o criador da forma Scherzo, e especificamente nas suas sonatas para piano e violino, encontra-se esta mesma paisagem formal usada por Elpídio Pereira: primeiros movimentos elaborados, scherzos, um movimento cantabile e rondós. Esta relação é significativa na partitura. A influência da música germânica, na obra do compositor, se faz presente e se justifica por fazer parte da tradição musical instrumental daquele momento. Parece certo pensar que Elpídio Pereira sofreu influência da obra de Beethoven, sendo este um dos músicos que, no século XIX, dominou todo o cenário estético-musical do Romantismo. Outro elemento a ser observado, ao longo do espécime, é o fraseado musical. Em todos os movimentos, encontram-se frases musicais de quatro compassos formando períodos de oito compassos. De maneira geral, os períodos musicais estão organizados em frases antecedentes e frases conseqüentes. Esta unidade é raramente quebrada quando ocorrem compassos de ponte melódica, também compostos de números pares; no geral, dois compassos. Na maior parte do tempo, o autor constitui todo o material temático da sonata em períodos binários regulares de oitos compassos, iniciando-se em anacruse impulsiva, 16 Segundo o dicionário Grove de música, em artigo publicado por A. Hoérée (apud Paul Vidal, 1993): Nécrologie: hommage à Paul Vidal , ReM, xii (1931), Vidal, Paul Antonin, nasceu em Tolouse em 1863 e falece em paris no ano de 1931. Foi regente, professor e compositor. Inicia seus estudos musicais como aluno do Conservatório da cidade de Tolouse e posteriormente ingressa no Conservatório de Paris, na classe de composição de Jules Massenet. Ganha o Gran prix de Rome no ano de 1883 e nesta sua temporada na cidade de Roma, torna-se amigo pessoal de Claude Debussy. Em seguida torna-se professor laureado do Conservatório de Paris. Entre seus trabalhos de maior sucesso encontra-se a ópera ligeira Eros e o balé Lá maledetta, mas é lembrado, sobretudo por ter sido um excelente professor e simpático às novas idéias musicais, certamente por influência de Debussy. com cadências de terminação feminina (em Arsis17). Somente o segundo movimento não possui a anacruse inicial. Nota-se aqui uma semelhança bastante clara ao procedimento usado na obra de outro compositor vienense: Mozart18. Este outro compositor constitui todo o material melódico das suas sonatas para violino em frases melódicas que constitui períodos musicais pares, e no geral suas frases são constituídas notadamente de quatro em quatro compassos. O contraponto utilizado por Elpídio Pereira é, em geral, bastante claro e conciso, raras vezes trabalhando com agrupamento cerrado das vozes19. De posse dos elementos formais, agora já explicitados, deve-se proceder a uma análise tanto do efeito como da combinação desses elementos e procurar pela significação maior que esta obra pode oferecer à História da Música Brasileira. d) EM BUSCA DO SIGNIFICADO DA OBRA Ao proceder-se à análise dos elementos formais da sonata, vários elementos surgiram para contribuir no entendimento da obra em si. Curiosamente, o elemento que mais parecer refletir o pensamento musical de Elpídio pereira é o equilíbrio dos elementos formais na constituição da obra. Todo o tecido musical da sonata é obsessivamente medido, calculado, pensando e raciocinado, como se a base sólida para o texto musical se fundamentasse em relações matemáticas. O número par revela-se pela escolha em conceber-se frases musicais de quatro compassos e períodos pares de oito e às vezes doze compassos. E o numero ímpar se faz presente quando, curiosamente a soma dos compassos do primeiro e do segundo movimentos se revela igual à soma dos compassos do terceiro e quarto movimentos, no significante numero 437. Na verdade, essas relações aparentemente místicas, revelam um compositor extremamente cuidadoso com sua obra. Há vários casos de artistas que imprimem uma assinatura artística ao seu trabalho, como por exemplo a relação da tonalidade verde na 17 Arsis é o tempo franco do compasso. Arsis e Tersis são denominações criadas pelos gregos das duas partes fundamentais do ritmo. Arsis significa baixar o pé e tersis levantar o pé , indicando, na fraseologia musical moderna, os tempos que são considerados fortes e fracos, definindo uma pulsação que mantém a fluidez do discurso musical. 18 Ao analisar a estrutura das sonatas de Beethoven, este teórico compara os procedimentos formais deste compositor com seus contemporâneos Haydn e Mozart, onde o caráter da forma sonata se diferenciava pela diversidade de idéias temáticas ou pelo procedimento de variação temática, ou rico desenvolvimento harmônico. 19 Vozes cerradas: Quando a condução das vozes musicais faz com que as mesmas se aproximem o máximo possível, sugerindo momentos de tensão no discurso musical, e é elemento que pode ser analisada tanto do ponto de vista harmônico, como do ponto de vista do contraponto. obra pictórica de Veronese, fazendo surgir assim uma tonalidade típica que mais tarde chamou-se de Verde Veronese , ou ao Sfumatto, técnica de Leonardo da Vinci usada na feitura de seus quadros, onde a obra pictórica não releva aonde o toque inicial do pincel se faz presente na tela. Músicos como Johan Sebastian Bach, dava extrema importância a relação matemática nas suas obras, onde por meio de acordes e cadencias musicais revelam uma assinatura musical de seu próprio nome. Desta forma, elpídio Pereira parece indicar que o elemento básico e fundamental na sua sonata, é o justo equilíbrio das formas, elementos puramente racionais, em sintonia com elementos de natureza espiritual, revelado pela abstração numérica, elemento técnico organizador e ao mesmo tempo abstrato de relações místicas. A obra, ainda guarda em si, elementos que a identificam formalmente a um pensamento musical ligado a tradição musical franco-germânica. Elpídio parece lançar mão de uma forma muito utilizada por Beethoven nas suas sonatas para violino, e isso se explica pelo fato deste músico ter sido tão incisivo para a História da música universal. Ao ser mitificado por E.T.Hoffmann20 nas suas biografias musicais, Beethoven influencia gerações de músicos, agindo ativamente na reorganização das formas musicais deixadas pelos outros mestres da 1ª Escola de Viena21. Enrico Fubini (apud HOFFMANN, 1993, p. 279-285) analisando a visão mítica de Beethoven, afirma que: Beethoven es importante em el contexto de la cultura romântica no solo por lo que representó su obra y por el ejemplo que con dio su vida, sino porque entró en el romanticismo con el valor de auténtico mito y porque, desde las primeras décadas del siglo XIX, así se le consideró por muchos escritores románticos. E.T.A. Hoffmann, gran novelista, aunque también crítico musical, compositor y director de orquesta, se 20 Segundo o Dicionário Grove Música (1993), Hoffmann, Ernst Theodor Amadeus (1776-1822), escritor, regente e compositor alemão. Estudou advocacia, e suas primeiras composições datam de 1798-1799. Foi diretor teatral e produtor na cidade de Bamberg nos anos 1808 e 1810-1812. Suas obras mais importantes são Undine (1816) e Aurora (1812). Escreveu também sonatas para piano, musica sacra, peças orquestrais e musica de câmara, mas é lembrado e discutido por ter sido um ensaísta da música e de músicos importantes para a historiografia musical. Suas melhores resenhas são sobre Beethoven e sua obra, que suscitam, ainda hoje, muita discussão sobre o Mito do gênio romântico. 21 A dita 1ªEscola de Viena, é o nome dado ao grupo de compositores do classicismo vienense, que ocorre entre o final do século XVIII e início do XIX, formado por Franz Joseph Haydn,Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig Van Beethoven. alla quizás entre los primeros grandes mitificadores de Beethoven. Desta forma, a obra de Beethoven abre espaço para a música dita Pura, (a música instrumental), que passa a co-existir com a música de cena (a ópera e o balé), ainda tão importante para os compositores daquele momento histórico. A influência musical deste autor ainda se faz presente na geração de músicos do século XX, como por exemplo, o próprio Elpídio Pereira. Parece certo que a sonata possui elementos que a ligam às características formais da obra musical da 1ª Escola de Viena, por apresentar uma forma e uma organização melódica que se assemelha à música daqueles compositores, mas o colorido do fraseado musical e a elegância contrapontual que se encontra na sonata de Elpídio Pereira, mais se familiarizam com a música de origem francesa. Basta examinar ligeiramente a obra de outro compositor já citado anteriormente: César Franck22. Em sua única sonata para violino e piano, nota-se um fraseado musical claramente diferenciado da escola germânica, que se caracteriza principalmente por um colorido musical transparente, revelando timbres e sombras criados através de um ambiente sonoro já quase intimista. Esta tradição musical encontrará seu ápice na obra dos músicos impressionistas e neoclássicos franceses do século XX. Revela-se pelo equilíbrio formal e pela elegância na condução das vozes, sendo estas suas principais características que a diferenciam da escola germânica, que por sua vez dá primazia a um desenvolvimento harmônico e melódico de maior intensidade emocional. E deve-se levar em conta que o próprio César Franck fora professor de órgão, harmonia e composição no mesmo conservatório de Paris, sendo colega de Antoine Taudou e de Paul Vidal, e é provável dizer que Elpídio Pereira sofreu a influência deste meio musical francês, quando se torna aluno do referido conservatório. 22 Segundo o Dicionário Grove de Música (2004), Franck, César Auguste Jean Guillaume-Hubert (18221890) foi compositor, professor e organista de origen belga. Estudou no Conservatório de Liège e no Conservatório de Paris. Torna-se professor do Conservatório de Paris em 1872, vindo atuar nesta instituição certamente com Antoine Taudou. Sua emotividade intrínseca e sua preocupação com o contraponto e as formas tradicionais encontram um equilíbrio, influenciando seus discípulos Duparc, d Indi, Chausson, Vierne e Dukas. Alguns aspectos de seu estilo maduro, que tanto devem a Beethoven, Liszt e a Wagner, são suas complexas estruturas de frases em mosaicos, variantes de um ou dois motivos; seu cromatismo rico, usado freqüentemente de forma estrutural em pares de acordes e seu gosto pelas formas cíclicas e tripartidas fazem parte de suas principais características. É certamente este conjunto de detalhes e características que podem ter influenciado Elpídio Pereira. Curiosamente, esta outra sonata, em seu primeiro movimento, possui um andamento em compasso composto e o mesmo centro tonal utilizado por Elpídio Pereira (Lá Maior). Este tipo de compasso não é usual nos primeiros movimentos de sonatas deste período, mas ambos assim o fazem e é certo dizer que há alguma relação entre estas duas obras, uma vez que apresentam um conjunto de características em comum. É neste ponto então que a tradição germânica encontra-se com a tradição francesa. A estrutura da música alemã forma a base de fundamento da sonata de Elpídio. O rico colorido da musica francesa, é o elemento que este compositor se serve, e desta forma faz uso de ambas para criar a sua sonata, como assim revelam as características formais estudadas anteriormente. Houve uma preocupação absoluta com todos os detalhes e elementos formais. O conjunto de características indica que o autor dessas elegantes frases melódicas é um compositor convicto de sua música, que se embasa nas práticas musicais tradicionais, e, acima de tudo, torna-se fluente e original nesta complicada linguagem musical: a Música Pura. A sonata, que reúne em seu corpus estas significantes características, traz ainda consigo, indagações acerca do espaço que teria ocupado no cenário musical brasileiro daquele momento, e o que teria levado Elpídio a escreve-la de forma tão tradicional. Segundo os historiadores da música no Brasil, é na época imperial que surge, ainda que precária, a idéia de uma música de concerto brasileira, de fomento à prática da interpretação musical, ensejo este que se traduz na fundação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. Renato Almeida (1942, p. 339), em sua obra História da Música Brasileira , afirma que: Na segunda metade do século passado [o autor se refere ao século XIX], o desenvolvimento musical foi o mais intenso possível. O aparecimento de um grande músico brasileiro [o autor se refere a Carlos Gomes], que cercou o nome de intensa glória no estrangeiro, o contato internacional cada vez mais intenso e o estabelecimento no país de várias notabilidades musicais, determinaram não só um maior cultivo, como ainda favoreceram a criação de vários centros e sociedades musicais, que tiveram uma larga ação cultural. É neste momento, desde meados do século XIX ao inicio do século XX, que surgem os clubes musicais nas grandes cidades, agremiações que cultivavam a apreciação da música de câmara e sinfônica e dos saraus, encontros particulares para a apreciação das artes, especialmente a musical e a literária, que acontece em todas as grandes cidades brasileiras, inclusive na cidade de Manaus, no momento em que Elpídio esteve por lá. Sendo mais exato, estas agremiações e sociedades musicais surgiram antes do final do século XIX, e coincidiram com o período que o autor Renato Almeida chamou de Período Francisco Manuel ainda no primeiro império: De 1822 a 1860, foram numerosas as sociedades musicais que se fundaram no Rio de Janeiro e nas cidades do interior, visando todo o cultivo de música. Muitas delas, seriam simples filarmônicas, mas nem por isso deixaram de contribuir para aprimorar o gosto musical e revelar aptidões apreciáveis. (ALMEIDA, 1942, p. 363) O historiador enumera cerca de 40 sociedades atuantes entre 1822 e o início do século XX, além de citar o surgimento de vários periódicos musicais, o que significa que já estava estabelecido, na sociedade, um gosto pela apreciação musical. Estes encontros e agremiações disseminaram o gosto pelo discurso puramente instrumental, e fez surgir uma necessidade de música, intérpretes e certamente compositores brasileiros. Saíamos assim do ambiente quase exclusivo do teatro lírico italiano, para conhecer a música universal, apurando o gosto e desenvolvendo a sua cultura, já agora aberta a horizontes mais largos. (ALMEIDA, 1942, p. 390) E segue concluído seu texto da seguinte forma: Por ocasião do advento da república, a cultura musical estava em pleno desenvolvimento e o governo provisório, como se verá depois, não só deu autonomia e organização ao Conservatório transformando em Instituto Nacional de Música, como ainda concedeu vários músicos pensões na Europa, para aperfeiçoamento de seus estudos (...). Tudo isso deveria fecundar a criação de uma música brasileira, através da própria experiência universal. (ALMEIDA, 1942, p. 394). Elpídio Pereira, assim como vários compositores de seu tempo (que nos são quase completamente desconhecidos assim como as suas obras) se encontram em um momento posterior a este, já no início do século XX, mas que ainda estão intimamente ligados ao pensamento e aos costumes do homem do final do século XIX. Existe neste período histórico uma grande produção de música de concerto tanto de câmara como sinfônica. Todo este material musical e humano (as obras e as atividades dos intérpretes brasileiros, combinadas a ação das associações artísticas e das práticas pedagógico-musicais), forma uma paisagem musical onde se torna possível o surgimento de um discursso musical genuinamente brasileiro, e que se torna, por fim, a base para o futuro Nacionalismo Musical. Havia, certamente, a necessidade de se fundamentar as técnicas de composição e de interpretação ainda no século XIX. Elpídio fez parte deste momento. Ele estuda e constitui seu discurso ante a tradição. Ele, assim como os outros músicos daquele momento, trazem ao Brasil, todas as fundamentações teóricas e as práticas do velho continente, vindo a fundar uma inteligência musical brasileira. Lecionam tanto a prática instrumental como a teórica e preparam todo o espaço para a nascente música nacionalista brasileira, sem os quais, não seria possível o surgimento de músicos como Villa-Lobos. Por estas razões, tanto a sonata como o próprio compositor, merecem um estudo detalhado. Obra e autor assumem, deste modo, um significado e uma importância que a simples análise formalista-musical, não poderia perceber. A Sonate faz parte do desenvolvimento de nossa História musical. Revela um universo de mentalidades e personalidades que caracterizaram todo um período histórico e uma paisagem musical ainda não estudada com a devida profundidade: o justo momento logo após do nascimento da República e a sua relação com as significantes atividades musicais deixadas pelo fomento do Segundo Império. Por fim, examinar-se uma vez mais o livro de memórias de Elpidio Pereira, há citação à Sonate pelos anos de 1915/1916, e é provável que, por estes anos, ela já tenha sido concebida total ou parcialmente. Pode-se dizer que o autor a revisou inúmeras vezes, o que explicaria a publicação em 1925. Uma breve análise da Legende, para violino e piano (obra também editada no mesmo ano da Sonate, mas que provavelmente já havia sido composta pelos anos de 1906/1907, pois consta em programas de concertos do próprio autor na cidade de Manaus), parece indicar uma relação formal direta com o espécime musical estudado. Apesar de ser uma peça livre, de movimento único, ela apresenta características do mesmo fraseado musical da sonata. Curiosamente na sua Coda, apresenta uma seção em cordas duplas, assim como o quarto movimento da Sonate, e é lógico pensar que certamente esta obra fez parte do processo anterior a gênese do espécime musical estudado, já amplamente exposto. A aplicação da metodologia de Panofsky é certamente um caminho a mais para a compreensão da matéria musical, e leva-nos a uma nova abordagem desta ciência, analisadas a partir de um conjunto de idéias e mentalidades. Assim, a partir desta teoria crítica, novos elementos podem ser revelados em busca de uma musicologia histórica e crítica. Bibliografia: ALMEIDA, Renato - História da Música Brasileira 2ª Ed. Rio de Janeiro: F.Briguiet & Cia. 1942 GROUT/PALISCA História da Música Ocidental, Lisboa, Gradiva, 1997. PANOFSKY, Erwin Significado nas Artes Visuais, São Paulo, Perspectiva, 1991 PÁSCOA, Márcio - A Vida Musical em Manaus na época da borracha (1850-1910), Manaus, Governo do Estado do Amazonas/Funarte, 1997. PÁSCOA, Márcio - Ópera na Amazônia na época da borracha (1880-1907): Bug Jargal de José Cândido da Gama Malcher, Coimbra, 2003, 2v. Tese de Doutorado em Ciências Musicais Históricas (Faculdade de Letras). PEREIRA, Elpídio - A música, o consulado e eu, Rio de Janeiro, ed. do autor, 1957. PEREIRA, Elpídio - Sonate pour violon et piano, Paris, Durdilly; Ch. Hayet, 1925 SADIE, Stanley (ed.) - The New Grove Dictionary of music and musicians, New York London, Macmillan Publishers, 1980, 20 vols. 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