TECNOLOGIA SOCIAL: ATORES SOCIAIS E MEDIDAS DE PCT

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TECNOLOGIA SOCIAL: ATORES SOCIAIS E MEDIDAS DE PCT
TECNOLOGIA SOCIAL: ATORES SOCIAIS E MEDIDAS DE PCT
Rafael de Brito Dias
Introdução
Ao longo das três últimas décadas, o capitalismo passou por um conjunto de
mudanças significativas que, para alguns, representavam o esgotamento do fôlego desse
sistema de produção em particular.
Nesse período, as economias expandiam-se (embora a um ritmo consideravelmente
inferior àquele observado no período compreendido entre 1945 e 1973) sem que isso
tivesse um efeito positivo sobre o nível de emprego. Além disso, verificou-se uma sensível
precarização do trabalho (Dupas, 1999).
Também nesse período foi consolidado o padrão de consumo de massa, irradiado
principalmente pelos EUA no Pós-Guerra. Como decorrência parcial desse novo padrão,
pôde-se notar um aumento da pressão ambiental, bem como uma crescente
homogeneização cultural e de valores no âmbito global.
No plano ideológico, as mudanças acima apresentadas foram validadas pela
ascensão do neoliberalismo. O planejamento de políticas de longo prazo passou a ser visto
como um fator negativo ao desenvolvimento, o que se traduziu na adoção da prática da
“não-tomada de decisões” (Dagnino, 2003). Com isso, os trabalhadores perderam também a
proteção estatal, ficando ainda mais vulneráveis à exploração por parte da classe detentora
dos meios de produção. Um outro fenômeno decorrente da força adquirida por essa
ideologia pode ser verificado na hipertrofia do capital financeiro frente ao capital produtivo
(Chesnais, 1994).
Esse profundo conjunto de mudanças pelas quais passou o sistema capitalista nas
três últimas décadas criou um quadro alarmante, de pressões de natureza econômica, social
e ambiental. Se a ascensão da ideologia neoliberal representou um elemento de grande
importância na potencialização dessas mudanças, a própria tecnologia capitalista
desempenhou um papel de suma importância nesse processo.
Não é equivocado admitir que a tecnologia capitalista condiciona o estilo de
desenvolvimento das sociedades contemporâneas. Portanto, para que se possa construir
uma sociedade distinta, é de essencial importância que a tecnologia seja modificada. Dessa
maneira, como alternativa à tecnologia capitalista convencional (e tomando como
pressuposto que tal mudança é possível), coloca-se a tecnologia social1.
O presente trabalho tem como objetivo discutir o papel de alguns grupos de atores
no contexto do desenvolvimento da tecnologia social, bem como algumas medidas de
política científica e tecnológica que poderiam ser virtuosas para o desenvolvimento da
tecnologia social. Optou-se por apresentar algumas breves considerações sobre o papel da
classe trabalhadora, do Estado e da comunidade científica na construção desse modelo
alternativo de desenvolvimento (entretanto, esses não são os únicos grupos de atores que
poderiam tomar parte nesse processo). Para tanto, é necessário que antes sejam feitas
algumas considerações gerais a respeito da tecnologia convencional (TC) e da tecnologia
social (TS).
Tecnologia Capitalista Convencional e Tecnologia Social
Para que a natureza da tecnologia social seja compreendida, é necessário fazer uma
caracterização geral de como esse tipo específico de tecnologia deveria ser. Assim, a
presente seção do trabalho tem como objetivo estabelecer uma breve comparação entre a
TC e a TS.
De um modo geral, a tecnologia capitalista convencional pode ser definida a partir
de um conjunto de características (relativas a seus efeitos sobre o trabalho, à sua escala de
produção ótima, aos seus efeitos sobre o meio-ambiente, às características dos insumos
utilizados na produção, ao ritmo da produção, ao tipo de controle exercido sobre os
trabalhadores, etc.) que a distingue da tecnologia social (Dagnino, 2004).
Conforme mostra Dagnino (2004), a TC é inerentemente poupadora de mão-de-obra
(o que pode ser verificado na constante substituição do trabalho humano por trabalho
1
O conceito de “tecnologia social” é uma evolução do conceito de “tecnologia apropriada”, conforme
apresentado por Dagnino et alii (2004).
1
mecânico). A tecnologia capitalista convencional é segmentada, não permitindo que o
produtor direto exerça controle sobre a produção; é alienante, pois suprime a criatividade
do produtor direto; é hierarquizada, pois exige que haja a posse privada dos meios de
produção e o controle sobre o trabalho; tem como objetivo principal (senão único)
maximizar a produtividade, ainda que isso tenha efeitos negativos sobre o nível de
emprego; a TC é, ainda, irradiada pelas empresas dos países desenvolvidos e simplesmente
absorvida de forma acrítica pelas empresas dos países subdesenvolvidos; por fim, a TC
impõe aos países desenvolvidos padrões que são orientados pelos mercados dos países
desenvolvidos, de alta renda.
Assim, frente às considerações apresentadas acima, é plausível afirmar que a
tecnologia capitalista convencional reforça a dualidade capitalista,
submetendo
trabalhadores a detentores dos meios de produção e países subdesenvolvidos a países
desenvolvidos, perpetuando e ampliando as assimetrias de poder dentro das relações sociais
e políticas. Nesse sentido, a TC pode ser vista como um elemento que provoca a gradual
erosão da democracia. A tecnologia social tem, como um de seus objetivos, justamente
reverter essa tendência colocada pela tecnologia capitalista convencional. Vejamos, pois,
algumas das características da TS2.
Segundo Dagnino (2004), a tecnologia social deveria ter como base os
empreendimentos autogestionários e as micro e pequenas empresas. Assim, a TS deveria
ser adaptada à pequena escala, tanto no sentido físico quanto financeiro, o que favoreceria
os trabalhadores e pequenos proprietários em geral, além de não criar uma discriminação
entre patrões e empregados e permitir a plena utilização do potencial criativo do produtor
direto. Por fim, a tecnologia social estaria mais imbricada à realidade das sociedades locais,
de modo que pudesse gerar respostas mais adequadas aos problemas colocados em um
determinado contexto. No caso do Brasil, por exemplo, isso se traduziria em um
deslocamento do foco de destino da produção, do mercado externo, de alta renda, para o
mercado interno, de massa.
Dessa forma, observa-se que, enquanto a tecnologia capitalista convencional é
funcional para a grande empresa privada (em especial para as grande empresas
2
O termo “tecnologia social”, conforme empregado no presente trabalho, adquire um significado flexível.
Assim, não estamos trabalhando com um conceito definido, mas com uma idéia em processo de construção.
2
multinacionais), a tecnologia social favoreceria, principalmente, os trabalhadores e os
pequenos proprietários (Dagnino, 2004).
É importante ressaltar que a passagem do padrão apoiado na TS para um padrão
diferente, baseado na TC, implicaria em mudanças significativas na base produtiva. Através
da remodelagem de artefatos e tecnologias capitalistas já existentes, os diversos grupos
sociais poderiam adequar os elementos da técnica aos seus interesses, em um processo
essencialmente democrático, batizado de “adequação sociotécnica” (Dagnino e outros,
2004).
Stewart (1987), ao analisar a utilização de tecnologias apropriadas em países
subdesenvolvidos, coloca como obstáculo à implementação dessas tecnologias a posição
dos grandes proprietários de terra e dos empresários, que teriam seus instrumentos de
exploração sobre os trabalhadores enfraquecidos, o que representa, de fato, um grande
desafio a ser transposto para que a tecnologia social possa ser implementada. Como forma
de solucionar esse problema, a autora propõe as “macro-políticas”, definidas como
“políticas governamentais que influenciam o ambiente no qual operam as unidades microdecisórias” (p. 2). Segundo a autora, as macro-políticas podem ser classificadas a partir de
seus objetivos, de seus recursos, dos mercados afetados e da tecnologia.
O outro foco de resistência importante a ser superado para que a tecnologia social
possa ser implementada é mais difícil de ser identificado. Esse segundo obstáculo diz
respeito a um conjunto de valores já sedimentados na sociedade que criam uma falsa
imagem acerca do conceito de “progresso”. Esse conceito, influenciado por idéias
positivistas e liberais, acabou por estreitar a percepção da sociedade em relação às suas
possibilidades de desenvolvimento, anulando sua criatividade e esmagando a democracia.
De fato, a sociedade contemporânea encontra-se refém de uma ideologia. É a
sociedade da eficiência, da competição e do individualismo, porque esses são elementos
que compõem a idéia de progresso.Para que se possa modificar a sociedade, é necessário,
primeiramente, contestar essa ideologia.
Mas, se existem grupos dentro da sociedade que tendem a se colocar contra o
desenvolvimento da tecnologia social, quais seriam os atores sociais que poderiam
colaborar para viabilizar a implementação da TS e, dessa forma, permitir a construção de
3
uma nova sociedade, com um projeto de desenvolvimento distinto? É a essa questão que
tentaremos responder na seção subseqüente.
Tecnologia Social: Atores Envolvidos
Uma das características mais interessantes da tecnologia social é o seu potencial
democrático, uma vez que, como já foi dito, a TS não gera as distorções sociais que são
frutos da tecnologia capitalista convencional (segmentada, hierarquizada e alienante), além
de permitir a inclusão social dos grupos menos favorecidos. Além disso, a tecnologia social
é democrática porque permite que um novo tipo de tecnologia e, em última instância, um
novo modelo de sociedade, sejam gerados pela coletividade, e não apenas por um pequeno
número atores, dentre os quais as grandes empresas multinacionais e o “alto clero” da
comunidade científica. Assim, convém analisar o papel que alguns grupos de atores
poderiam desempenhar no contexto da criação e do desenvolvimento da tecnologia social.
Primeiramente, serão feitas algumas reflexões acerca do papel da classe
trabalhadora3 no contexto em questão. Como já foi dito, a tecnologia capitalista
convencional apresenta algumas peculiaridades: segmenta o trabalho, cria a necessidade de
hierarquizar as atividades e suprime o potencial criativo dos trabalhadores. Devido a essas
características da TC, a capacidade da classe trabalhadora de moldar a tecnologia para seus
fins é reduzida. Desse modo, os artefatos produzidos pelos trabalhadores não visam atender
às necessidades da classe que os produziu, mas sim às necessidades (e aos interesses) do
grande capital e das classes mais abastadas. Entretanto, no contexto da gestação da
tecnologia social, a classe trabalhadora teria um papel de grande relevância a desempenhar.
Através dos empreendimentos autogestionários, os trabalhadores poderiam, por exemplo,
utilizar seu potencial criativo em sua totalidade, além de poderem participar diretamente
das decisões de sua empresa ou cooperativa (também desenvolvendo, portanto, habilidades
de gestão de negócios).
Um outro grupo de atores que poderia colaborar na geração e no desenvolvimento
da tecnologia social é a comunidade acadêmica. Contudo, para que a contribuição desse
3
Com o intuito de facilitar a exposição, também estão incluídos nessa categoria os pequenos capitalistas.
4
grupo no contexto da construção seja melhor compreendida, convém refletir brevemente
sobre algumas questões.
Como foi dito previamente, existe um obstáculo à construção de uma sociedade
apoiada em um outro tipo de tecnologia e com um projeto de desenvolvimento distinto,
relacionado à questão ideológica. Nesse sentido, a educação teria um papel fundamental na
superação desse obstáculo. Contudo, se analisarmos a essência do panorama educacional no
Brasil4 (mas também em qualquer outro país), veremos que o ensino é, sem sombra de
dúvida, voltado para a educação profissional, e tem muito pouco compromisso com a
formação de indivíduos com visão crítica, noções de cidadania, etc. Com isso, a educação
se torna comprometida não com o desenvolvimento e com o bem-estar da sociedade, mas
com o avanço das forças produtivas capitalistas. Assim, um indivíduo que passa por esse
sistema educacional, seja ele um engenheiro, um administrador ou um economista, torna-se
apto a desempenhar as tarefas que lhe são atribuídas pelo sistema capitalista, mas é privado
da capacidade de pensar em soluções que estejam fora desse sistema de produção
específico e, portanto, da capacidade de criar uma sociedade distinta.
Há, ainda, uma questão colocada por Dagnino (2002) que é particularmente
importante para a presente análise. Trata-se da questão da não-funcionalidade do
conhecimento e de seus frutos nos países latino-americanos. Segundo o autor, haveria, nos
países desenvolvidos, uma teia de relações sociais que permitiria que a sociedade
expressasse quais são os campos de relevância nos quais suas demandas (por produtos e por
serviços) estão contidas. Esses sinais de relevância seriam decodificados pela comunidade
de pesquisa que, por sua vez, geraria como contrapartida um conhecimento que atendesse
às necessidades da sociedade, ou seja, um conhecimento funcional. Nos países latinoamericanos, entretanto, esse processo não ocorre da mesma forma, devido às distorções
resultantes do processo histórico de colonização e da industrialização tardia. Assim, nesses
países, observa-se a existência de um modelo de sociedade totalmente distinto daquele dos
países desenvolvidos, por um lado, mas constata-se que a comunidade de pesquisa dos
países latino-americanos, por outro lado, incorpora a cultura científica exalada pela
comunidade de pesquisa dos países desenvolvidos. Dessa forma, nos países da América
4
Evidentemente, os problemas estruturais mais relacionados à educação no Brasil são relevantes para a
análise. Contudo, optou-se por analisar o objeto através de uma perspectiva mais abstrata.
5
Latina, o conhecimento produzido localmente oferece respostas para os problemas
existentes nas sociedades dos países desenvolvidos, e não para os problemas locais. Assim,
o conhecimento produzido nos países latino-americanos não é funcional.
A tecnologia social, em contrapartida, coloca-se como uma alternativa mais
interessante para o Brasil e para os demais países da América Latina, já que permitiria que
os sinais de relevância emitidos pela sociedade fossem traduzidos de forma mais acurada5.
O grande desafio nesse caso também parece ser a relutância por parte de um grupo de
atores em abandonar um conjunto de idéias equivocadas. O problema aqui está relacionado
à rigidez da comunidade de pesquisa que, entre interesses corporativos e a visão mertoniana
da ciência, se recusa a reconhecer a necessidade de gerar conhecimento com relevância,
desde que os critérios de qualidade sejam atendidos.
Dentro do contexto da construção da tecnologia social, também é importante atentar
para a relevância do papel do Estado. De acordo com Dagnino et alii (2004), a condução
das políticas públicas de ciência e tecnologia segue uma lógica ofertista, evidenciada pelos
tipos de arranjos institucionais construídos e inspirada nas políticas adotadas pelos países
desenvolvidos. Ademais, segundo os autores, essas políticas são claramente destinadas ao
desenvolvimento da tecnologia capitalista convencional, mesmo quando são voltadas a
áreas sociais, como saúde e educação.
Lassance Jr. e Pedreira (2004) identificam alguns obstáculos ao avanço da
tecnologia social dentro do Estado. Segundo os autores, existe uma tendência conservadora
por parte dos dirigentes governamentais em adotar posturas mais criativas e inovadoras (ou
talvez não haja a percepção de que se possa tomar medidas que contrariem a idéia de
"progresso”). Além disso, os autores apontam para a existência dos processos de “captura”
dentro do Estado, que eventualmente podem vir a comprometer a implementação das
medidas mais racionais. Com isso, a tecnologia social acaba sendo descartada, mesmo que
se mostre mais interessante do que a tecnologia capitalista convencional.
O desenvolvimento da tecnologia social teria um importante impacto sobre o papel
do Estado no apoio às práticas de ciência e tecnologia, conforme argumentam Dagnino et
alii (2004). Segundo os autores, o Estado manteria seu papel de financiador e viabilizador
do desenvolvimento científico e tecnológico. Contudo, a principal instituição que serviria
5
A esse respeito, conferir Bava (2003).
6
de suporte para a construção de uma nova sociedade, apoiada na TS, seria a Rede de
Tecnologia Social (RTS), que, no longo prazo, poderá se converter em um importante
mecanismo voltado para a ação direta sobre os problemas sociais e que garanta a inclusão
social.
Assim, esses três grupos de atores (trabalhadores, comunidade acadêmica e Estado)
teriam, conforme foi demonstrado acima, funções decisivas na construção de uma
sociedade apoiada na tecnologia social. Entretanto, não seriam os únicos grupos de atores
que poderiam moldar essa nova sociedade, baseada em um novo padrão de tecnologia, já
que uma das características mais importantes da tecnologia social é dada, justamente, pelo
fato da TS permitir a participação da sociedade como um todo em sua construção.
Da Tecnologia Capitalista Convencional à Tecnologia Social: o papel da Política
Científica e Tecnológica
Até o presente momento, procurou-se salientar a necessidade de modificar o padrão
tecnológico sobre o qual está apoiada a sociedade contemporânea, dado que a
sustentabilidade desse padrão é questionável. Também foram apresentadas algumas
considerações sobre o papel a ser desempenhado por grupos de atores sociais específicos,
no contexto da construção de um novo padrão tecnológico.
Nesta última parte da análise, serão abordadas algumas questões relativas às
medidas de política científica e tecnológica que poderiam influenciar na construção da
tecnologia social. Entretanto, como o conceito de tecnologia social não é algo estritamente
fechado, não é possível realizar esta análise de forma muito detalhada. Assim, serão
apresentadas apenas algumas considerações de caráter geral a respeito do padrão de PCT a
ser adotado.
A primeira – e talvez a mais importante – modificação a ser efetivada no padrão da
condução da política científica e tecnológica brasileira está relacionada à emulação acrítica
das políticas adotadas no âmbito dos países desenvolvidos. Esse comportamento imitativo
não é algo recente e decorre, sobretudo, da condição de dependência à qual o Brasil está
submetido. Contudo, as reformas liberais pelas quais o País passou ao longo da década de
7
1990 explicitaram ainda mais esse comportamento. Assim, configura-se uma situação um
tanto paradoxal. As políticas de C&T têm como objetivo principal incentivar o
desenvolvimento brasileiro a partir do estímulo à geração de tecnologia nacional. Porém, os
caminhos tomados para atingir esse objetivo são encontrados nas experiências de outros
países, e sancionados por um referencial teórico-analítico construído a partir de uma
realidade distinta (Dagnino e Thomas, 2001). São exemplos dessa postura: o foco na
inovação (ou a concepção determinista-tecnológica de que o avanço da tecnologia irá
solucionar todos os problemas da sociedade6); os arranjos institucionais adotados para
estimular o surgimento dessas inovações (como os parques e pólos tecnológicos, por
exemplo); e o foco na alta tecnologia, que decorre da percepção de que a tecnociência é
única e linear, o que leva à vinculação pouco virtuosa do desenvolvimento científico e
tecnológico nacional à evolução da ciência e da tecnologia nos países desenvolvidos.
Um segundo ponto a ser modificado a fim de que a tecnologia social possa se
desenvolver está ligado aos parâmetros adotados pela comunidade científica brasileira para
se justificar frente à sociedade. De certa forma, este problema também está atrelado à
questão discutida no parágrafo anterior. De acordo com Dagnino e Thomas (2001), o grupo
de atores sociais em questão preza exclusivamente por critérios de qualidade, que são dados
pela comunidade acadêmica dos países desenvolvidos. Contudo, os membros da
comunidade científica brasileira não se preocupam com a relevância daquilo que fazem,
mesmo porque o que fazem é imitar o que é feito nos países desenvolvidos. Portanto,
copiam as soluções técnicas para problemas que, muitas vezes, são distintos daqueles que
se verificam no Brasil. Essa concepção acabou por impregnar toda a sociedade, de modo
que é considerado aceitável aplicar recursos públicos em pesquisas de “última geração”,
ainda que existam outros problemas, muito mais graves e muito mais urgentes a serem
solucionados.
Por fim, uma outra mudança que deve ser feita a fim de permitir o desenvolvimento
da tecnologia social está relacionada à ideologia dominante na sociedade. Através dessa
ideologia, são criados os mitos que acabam por favorecer às classes dominantes. Nesse
6
Essa idéia parece fazer mais sentido quando aplicada para o caso dos países desenvolvidos, que já
solucionaram grande parte de seus problemas sociais, como a questão fundiária, a desigualdade social e as
questões relacionadas à educação, embora, em nenhum desses casos, a solução tenha sido efetivamente
técnica. O fato é que, por certo, a aplicação dessas idéias no contexto de um país subdesenvolvido como o
Brasil não faz muito sentido.
8
sentido, é preciso que seja quebrada a concepção de que tecnologia e sociedade são
elementos etéreos. Devem ser vistas como aquilo que são: frutos de processos políticos de
constante negociação e compromisso entre os atores sociais. Uma vez que essa barreira
ideológica for rompida, será necessário fortalecer a discussão a respeito do tipo de
sociedade que se deseja, de forma democrática, de modo que todos os diversos grupos da
sociedade estejam representados nessa discussão.
Existem, ainda, outras medidas de PCT, mais pontuais, a serem levadas em
consideração na elaboração de políticas que visam encorajar o desenvolvimento da
tecnologia social. Dentre essas medidas, estão aquelas garantidas pela “engenharia de
construção das tecnologias” (Lassance Jr. e Pedreira, 2004), tais quais os mecanismos de
proteção da propriedade intelectual7, premiações pelas inovações, sistematização e
manualização dos processos de construção, etc.
Por fim, para que as políticas da esfera científica e tecnológica se tornem mais
adequadas ao contexto da tecnologia social, é preciso que sejam encorajadas, também,
medidas de caráter local (estadual, municipal, etc.), uma vez que isso permitiria uma
melhor adequação de um determinado conjunto de tecnologias ao seu contexto específico,
tornando as iniciativas mais interessantes.
São esses aspectos colocados acima aqueles nos quais a política científica e
tecnológica teria uma maior governabilidade. Entretanto, também teriam muito a contribuir
para o desenvolvimento de um padrão apoiado na tecnologia social as políticas econômicas,
sociais, educacionais, ambientais, etc. Através de um conjunto de políticas coerentes e
harmônicas nessas diversas áreas, a tecnologia social certamente poderia avançar de forma
significativa.
Conclusão
A fase atual do capitalismo apresenta sinais de complicações no sistema, que se
manifestam de diversas formas, nas esferas política, econômica, social e ambiental, para
7
Se for admitido que a criação de inovações dentro da tecnologia social permita a apropriação privada de seus
resultados.
9
citar apenas algumas. Abandonando as idéias clássicas do determinismo social (segundo o
qual as mudanças sociais induziriam a mudanças tecnológicas) e do determinismo
tecnológico (segundo o qual as mudanças tecnológicas induziriam a mudanças sociais) e
admitindo que a sociedade e a tecnociência interagem de forma permanente, embora não
constante ao longo do tempo, é razoável admitir que, por trás das pressões exercidas sobre
o capitalismo está a própria tecnologia capitalista. Essa tecnologia é, ao mesmo tempo,
fruto e alicerce do sistema.
Frente às pressões enunciadas acima, surgem propostas das mais variadas, que têm
como intuito contornar a situação pouco confortável que se configura. Uma dessas
propostas é, justamente, a da tecnologia social, que poderia substituir, em alguma medida, a
tecnologia capitalista convencional.
No presente trabalho, objetivou-se discutir, ainda que de forma breve, alguns
aspectos relacionados à construção de um modelo alternativo de sociedade, baseado na
tecnologia social. Mais especificamente, discutiu-se o papel de alguns atores sociais no
contexto do desenvolvimento da tecnologia social e também algumas mudanças necessárias
na condução da política científica e tecnológica no Brasil.
Procurou-se, sobretudo, enfatizar a existência de alguns obstáculos de natureza
ideológica (e, portanto, em última instância, política) ao desenvolvimento da tecnologia
social. Contudo, apesar da dificuldade na superação desses obstáculos, parece ser bastante
plausível admitir que alguns passos importantes possam ser dados no sentido de modificar
de forma significativa as características e os objetivos da tecnologia atualmente empregada
e, assim, iniciar um processo de reconstrução da sociedade brasileira.
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