Arrumação - Elomar Figueira Melo

Transcrição

Arrumação - Elomar Figueira Melo
Arrumação - Elomar Figueira Melo
Arrumação, palavra comum no rio Gavião tem este
sentido: o sentido da proteção contra danos,
causados pela natureza e pelos animais e homens,
nesse caso os ciganos, elementos que no Universo
da Caatinga obedecem a um código próprio, onde
vida e morte, o sim e o não se entrelaçam como
mosaicos de uma realidade única.
Josefina sai cá fora e vem vê
Olha os forro ramiado vai chuvê
Vai trimina riduzi toda criação
Das bandas de lá do ri gavião
Chiquera pra cá já ronca o truvão
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo plantá feijão no pó
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo plantá feijão no pó
Mãe purdença inda num cuieu o ai
O ai roxo dessa lavora tardã
Diligença pega panicum balai
Vai cum tua irmã, vai num pulo só
Vai cuiê o ai, o ai da tua avó
Lua nova sussarana vai passá
Sêda branca, na passada ela levô
Ponta d´unha, lua fina risca o céu
A onça prisunha, a cara de réu
O pai do chiquêro a gata comeu
Foi um trovejo c´ua zagaia só
Foi tanto sangue que dá dó
Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento as pirsiguição
Já só caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão
“olha os forro ramirado” – fôrro: o termo é
comum entre os sertanejos, e tem o sentido de
céu.”ramiado” – coberto por um tipo de nuvem que
prenuncia chuva
“vai trimina riduzi” – vai determinar o ajuntar (ou
arrebanhar) da criação
“futuca a tuia” – tulha: armazenamento de feijão em
camadas de areia, no leito do rio seco.
“catadô” – tipo de feijão
“o ai roxo essa lavora tardã” – o alho roxo que
demora de 5 a 7 meses ao contrário de outras
lavouras que demoram em média 4 meses, por isso
ele é uma lavora tardã, isto é, que tarda, que
demora, que tarda.
“panicum” – balaio grande de cipó, alceado na
cangalha do animal
“na passada” – pode ter dois sentidos: na passada
da onça sussuarana; ou na lua passada, quando veio
a sussuarana.
“lua nova sussarana” – na lua nova a onça
sussuarana.
“seda branca” – bode famoso no Rio Gavião, pai
de chiqueiro, reprodutor.
“ponta d’unha lua fina risca no céu” – a imagem
é imensamente poética; a lua nova tem o risco de
uma linha fina no céu. Lembrando a ponta da unha
quando se corta com a tesoura.
“onça prisunha” – onça que tem uma anomalia
genética: uma unha a mais caracteriza a disposição
como caçador ou reprodutor
“foi um truvejo com uma zagaia só” – truvejo
com o sentido de luta difícil, zagaia só: os chifres do
bode (uma zagaia só) contra as muitas armas da
onça (unhas, patas, dentes, etc.) A imagem é rica
como conteúdo, como exemplo lingüístico e do
poder de síntese do homem caatingueiro.
“tudo que juntei foi só pra ladrão” – a referência
é ao cigano, figura constante na caatinga,
aprisionador de bens dos outros; aos animais
predadores; aos ladrões comuns e também às
enchentes devastadoras do Rio do gavião,
arrebentando os depósitos aluvionais das barrancas,
destruindo e levando a horticultura.
Elomar nasceu em Vitória da Conquista,
em 21 de dezembro de 1937. Abaixo o
texto de Vinícius de Moraes, para a
contracapa do LP "Elomar ...das barrancas
do Rio Gavião", de 1973:
"A mim me parece um disparate que exista mar
em seu nome, porque um nada tem a ver com
o outro, No dia em que "o sertão virar mar",
como na cantiga, minha impressão é que Elomar
vai juntar seus bodes, de que tem uma grande
criação em sua fazenda "Duas Passagens", entre as
serras da Sussuarana e da Prata, em plena
caatinga baiana, e os irá tangendo até encontrar
novas terras áridas, onde sobrevivam apenas os
bichos e as plantas que, como ele, não precisam de
umidade para viver; e ali fincar novos marcos e
ficar em paz entre suas amigas as cascavéis e as
tarântulas, compondo ao violão suas lindas baladas
e mirando sua plantação particular de estrelas que,
no ar enxuto e rigoroso, vão se desdobrando à
medida que o olhar se acomoda ao céu, até
penetrar novas fazendas celestes além, sempre
além, no infinito latifúndio.
Pois assim é Elomar Figueira de Melo: um príncipe
da caatinga, que o mantém desidratado como um
couro bem curtido, em seus 34 anos de vida e
muitos séculos de cultura musical, nisso que suas
composições são uma sábia mistura do romanceiro
medieval, tal como era praticado pelos reiscavalheiros e menestréis errantes e que culminou
na época de Elizabeth, da Inglaterra; e do
cancioneiro do Nordeste, com suas toadas em
terças plangentes e suas canções de cordel, que
trazem logo à mente os brancos e planos caminhos
desolados do sertão, no fim extremo dos quais
reponta de repente um cego cantador com os olhos
comidos de glaucoma e guiado por um menino anjo a cantar façanhas de antigos cangaceiros ou
"causos" escabrosos de paixões espúrias sob o sol
assassino do agreste.
Elomar nasceu em Vitória da Conquista, cidade que
também deu vez a Glauber Rocha e Zu Campos, e
depois de formar-se em arquitetura pela
Universidade Federal da Bahia, ocupa atualmente o
cargo de Diretor de Urbanismo em sua cidade. Mas
do que gosta realmente é de sua caatingueira, uma
das mais ásperas do sertão brasileiro, onde cria
bodes e carneiros. Já me foi contado que um de
seus reprodutores, o famoso bode "Francisco
Orellana", quando a umidade do ar apresenta seus
índices mais baixos - que usualmente é 10 graus senta-se em posição estratégica sobre as patas
traseiras e não se peja de urinar na própria boca,
de modo a aproveitar, num instintivo e engenhoso
recurso ecológico, a própria água do corpo para
dessedentar-se.
E tem a onça. Vez por outra, a madrugada restitui
a carcaça sangrenta de um bode ou um carneiro, e
todas as preocupações cessam, a não ser chumbar
a bicha. E a conversa entre os fazendeiros fica
sendo apenas essa: onça, suas manias, suas
manhas, seus pontos fracos.
Todo mundo se oncifica. Elomar sai à noite para
tocaiá-la, e quando a avista só atira nela de frente.
- Um bicho que vem de tão longe para matar meus
bodes, esse eu respeito! - diz ele em seu sotaque
matuto (apesar da boa cultura geral que tem) e
que faz questão de não perder por nada,
enojado que está da nossa suposta civilização.
Quando lhe manifestei desejo de passar uns
dias em sua companhia e de sua família
(Elomar é casado e tem um par de filhos, sendo
que a menina tem o lindo nome de Rosa
Duprado) para descobrir, em sua companhia e
ao som do excelente violão que toca, essas
estrelas reconditas que já não se consegue
mais ver nos nossos céus poluídos, Elomar me
disse:
- Pode vir quando quiser. Deixe só eu ajeitar a
casa, que não está boa, e afastar um pouco dali
minhas cascavéis e minhas tarântulas...
É... Quem sabe não vai ser lá, no barato das
galáxias e da música de Elomar, que eu vou
acabar amarrando um bode definitivo e ficar
curtindo uma de pastor de estrelas..."
Vinícius de Moraes
Abril de 1973