Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no
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Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no
Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo de Bărbulescu contra a Roménia (Queixa n.º 61496/08) Por Rui Esperança e Carolina Boullosa Gonzalez* PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; Internet; e-mail; vida privada, correspondência; trabalhador; despedimento No passado dia 12 de Janeiro de 2016, foi proferido Acórdão pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (“TEDH”), no processo Bărbulescu contra o Estado Romeno, tendo o processo tido origem na queixa de um cidadão romeno, Bogdan Mihai Bărbulescu, apresentada em 15 de Dezembro de 2008, alegando, em síntese, que a decisão de despedimento tomada pela sua entidade empregadora teria sido baseada numa violação do seu direito à reserva da intimidade da vida privada e de correspondência, e que os tribunais romenos teriam falhado na protecção desse seu direito. Os factos relevantes são, sumariamente, os seguintes: - De 1 de Agosto de 2004 a 6 de Agosto de 2007, o queixoso foi trabalhador de uma empresa privada, exercendo funções como engenheiro responsável pelas vendas. - A pedido da entidade empregadora, criou uma conta de “Yahoo Messenger” com o propósito de responder a questões dos clientes. - Em 13 de Julho de 2007, a entidade empregadora informou-o que as comunicações por si efectuadas através daquela conta tinham sido monitorizadas de 5 a 13 de Julho de 2007, e que esses registos demonstravam que o mesmo tinha usado a Internet para fins pessoais, contrariando as normas internas da empresa. - O trabalhador respondeu por escrito que apenas tinha utilizado o Yahoo Messenger para fins profissionais, mas quando confrontado com uma transcrição de 45 páginas das suas comunicações através daquela conta, informou a sua entidade empregadora que, ao ter violado a sua correspondência, seria criminalmente responsável de acordo com o Código Penal romeno. Alvim Cortes, Esperança, Vaz Osório, J. P. Menezes Falcão - Sociedade de Advogados, RL- Rua Joshua Benoliel, nº 6, 8º A e C, - 1250-133 Lisboa Telefone: (+351) 213 10 4120 - (+351) 213 81 52 40 - Fax: (+351) 213 10 41 29 - Email: [email protected] - As páginas transcritas continham todas as mensagens que o trabalhador tinha trocado com a sua noiva e o seu irmão durante o período de monitorização. - A transcrição também continha 5 SMS que o mesmo havia trocado com a sua noiva, no dia 12 de Julho de 2007, utilizando uma conta pessoal Yahoo Messenger. - Em 1 de Agosto de 2007, a entidade empregadora despediu o queixoso por violação de normas internas da empresa, que estabeleciam, nomeadamente, o seguinte: “É absolutamente proibido perturbar a ordem e disciplina dentro das instalações da empresa e especificamente … usar computadores, fotocopiadoras, telefones, máquinas de telex e de fax para fins pessoais”. - Depois de ter impugnado a decisão de despedimento com fundamento na violação do direito à reserva de correspondência protegido pela Constituição Romena e pelo Código Penal, o tribunal considerou a acção improcedente, sublinhando que o trabalhador tinha sido devidamente informado das normas internas que proibiam o uso dos recursos da empresa para fins pessoais. - Em sede de recurso interposto tendo por fundamento a protecção dos e-mails pelo artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“CEDH”), enquanto incluídos na “vida privada” e “correspondência”, o Tribunal de Segunda Instância de Bucareste confirmou a decisão da Primeira Instância, baseando-se na Directiva da UE 95/46/EC, ao considerar que a conduta da entidade empregadora tinha sido razoável e que a monitorização das comunicações do trabalhador era o único método existente para averiguar da ocorrência de uma infracção disciplinar. O TEDH já decidiu em casos anteriores que as chamadas telefónicas efectuadas a partir das instalações de uma empresa estão, em princípio, protegidas pelas noções de “vida privada” e “correspondência”, tendo defendido que os e-mails enviados do local de trabalho e a informação proveniente da monitorização do uso privado da Internet também devem ser protegidos pelo artigo 8.º da CEDH. Por outro lado, o mesmo tribunal defendeu também que, na falta de um aviso no sentido de que as chamadas telefónicas poderiam ser sujeitas a monitorização, o trabalhador tem uma expectativa fundamentada sobre a privacidade das mesmas, se efectuadas de um telefone do trabalho. A análise do TEDH incidiu, pois, sobre a questão de saber se, no presente caso, o trabalhador devia ou não ter uma expectativa razoável de privacidade quando comunicava através da conta do Yahoo Messenger que tinha registado a pedido da sua entidade empregadora, tendo ficado assente que as normas internas da entidade empregadora proibiam estritamente a utilização, pelos trabalhadores, dos computadores e recursos da empresa para fins pessoais. Alvim Cortes, Esperança, Vaz Osório, J. P. Menezes Falcão - Sociedade de Advogados, RL- Rua Joshua Benoliel, nº 6, 8º A e C, - 1250-133 Lisboa Telefone: (+351) 213 10 4120 - (+351) 213 81 52 40 - Fax: (+351) 213 10 41 29 - Email: [email protected] No entender do TEDH, este caso difere dos anteriores, nas medida em que, naqueles, a utilização do telefone do escritório era permitido ou, pelo menos, tolerado, o que não se passava aqui. O mesmo tribunal concluiu, no entanto, contrariamente aos tribunais romenos, que a “vida privada” e a “correspondência” do trabalhador haviam efectivamente sido postas em causa, nomeadamente tendo em conta que foi acedido o conteúdo das comunicações por si efecutadas no Yahoo Messenger, tendo as respectivas transcrições sido utlizadas perante os tribunais do trabalho. Não obstante, o TEDH concluiu também que os tribunais nacionais deram particular importância ao facto da entidade empregadora ter acedido à conta de Yahoo Messenger na crença de que a mesma conteria apenas mensagens profissionais, tendo assim actuado no âmbito estrito dos seus poderes disciplinares, concluindo que não é irrazoável uma entidade empregadora pretender confirmar que os trabalhadores estão a executar as suas tarefas profissionais durante o horário de trabalho, tendo a monitorização efectuada no presente caso sido de âmbito limitado e proporcionada. Atento o exposto, o tribunal concluiu que não houve falta de equilíbrio entre o direito do trabalhador à reserva da vida privada contido no artigo 8.º da CEDH e os interesses da entidade empregadora, não tendo, por isso, existido violação do mesmo. Contra este entendimento, manifestou-se o juiz português do TEDH Pinto de Albuquerque, que considerou que o presente caso apresentava novas especificidades que deveriam ter sido tidas em conta pelo tribunal na análise da validade do procedimento disciplinar e da sanção disciplinar aplicada e que, em concreto, eram a inexistência de uma política de fiscalização do uso da Internet devidamente implementada pelo empregador, a natureza pessoal e sensível das comunicações do trabalhador a que a entidade empregadora teve acesso e a ampla divulgação das referidas comunicações no âmbito do procedimento disciplinar levado a cabo contra aquele. Defendeu igualmente que, atento o quadro legal internacional, deveria ser posta em prática pela generalidade das entidades empregadoras uma política abrangente de utilização da Internet no local de trabalho, incluindo regras específicas sobre a utilização do e-mail, mensagens instantâneas, redes sociais, blogues e pesquisas, das quais os trabalhadores devem tomar conhecimento expresso, considerando, ainda, que uma proibição total do uso pessoal da Internet por parte daqueles é inadmissível, assim como a adopção de uma política de monitorização geral, automática e continuada do respectivo uso pelos trabalhadores não pode se tolerada. O referido magistrado aduziu, igualmente, que a recolha, o acesso e a análise não consentidos das comunicações do trabalhador, incluindo metadados, apenas deveriam ser permitidos excepcionalmente e mediante autorização judicial, uma vez que os Alvim Cortes, Esperança, Vaz Osório, J. P. Menezes Falcão - Sociedade de Advogados, RL- Rua Joshua Benoliel, nº 6, 8º A e C, - 1250-133 Lisboa Telefone: (+351) 213 10 4120 - (+351) 213 81 52 40 - Fax: (+351) 213 10 41 29 - Email: [email protected] trabalhadores suspeitos de infracções à política de utilização da Internet no âmbito de processos disciplinares ou processos civis não devem ser tratados de forma menos justa e garantística do que os arguidos em processos criminais. O juiz português considerou, no caso vertente, que as normas internas da empresa romena omitiam qualquer referência específica a uma política de vigilância do uso da Internet que se encontrasse implementada no local de trabalho, não tendo sido provado que tal política tivesse sido previamente notificada ao trabalhador e que este, assim como os demais colegas, tivessem conhecimento da instalação de um software de monitorização em tempo real do uso da Internet por cada trabalhador. Ainda assim, mesmo que tal comunicação tivesse sido notificada aos trabalhadores, tal não seria suficiente para, por si só, justificar o despedimento do trabalhador, sobretudo no caso de a mesma ter um carácter vago e indeterminado (por ex. dizendo que “a sua actividade esteve a ser vigiada”). No voto de vencido, considerou ainda que o carácter delicado do presente caso foi significativamente aumentado pela natureza privada e sensível de algumas das mensagens do queixoso, exigindo uma mais intensa protecção, conforme previsto no artigo 8.º da CEDH. Nestes termos, ainda que se aceitasse que a interferência por parte da empresa no direito do trabalhador à reserva da vida privada tivesse sido justificada, o que, na opinião deste juiz, não foi o caso, aquela não tomou as medidas de precaução necessárias para assegurar que as mensagens de conteúdo altamente sensível se restringissem ao procedimento disciplinar, tendo, pois, ultrapassado em muito o que era necessário para produzir os efeitos pretendidos. Nessa medida, seria admissível um pedido do trabalhador de ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos. O presente acórdão do TEDH não deixou de nos causar espanto, pelo facto de entreabrir (ou escancarar?) a porta a um entendimento radicalmente distinto daquele que tem sido adoptado pela nossa jurisprudência em situações semelhantes. Efectivamente, tendo em conta que, secundados pela interpretação assaz restritiva da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), os tribunais portugueses encaram, de uma forma geral, o controlo infomático exercido pelo empregador sobre os seus trabalhadores como uma acção ilegítima1, o TEDH vem, com este entendimento, pelo menos, abrir a porta à discussão sobre os limites da actuação do empregador na conformação da actividade prestada pelos respectivos trabalhadores. Na verdade e de forma breve, o TEDH veio dizer que o controlo efectuado pelo empregador sobre o trabalhador queixoso foi (i) defensável, porque o trabalhador sabia que era controlado, (ii) admissível, porque foi exercido no estrito âmbito das respectivas 1 Vide, a título exemplificativo, os Ac. da RL de 10/12/1991, Col. Jur., 1991, 5.º-151, e de 05/06/2008, Proc. n.º 2970/2008.4, www.dgsi.pt, e o Ac. do STJ de 05/07/2007, Proc. n.º 07S043, www.dgsi.pt. Alvim Cortes, Esperança, Vaz Osório, J. P. Menezes Falcão - Sociedade de Advogados, RL- Rua Joshua Benoliel, nº 6, 8º A e C, - 1250-133 Lisboa Telefone: (+351) 213 10 4120 - (+351) 213 81 52 40 - Fax: (+351) 213 10 41 29 - Email: [email protected] prerrogativas legais e contratuais, (iii) razoável, porque a medida tomada era a única forma de levar a cabo tal controlo e, finalmente, (iv) proporcional, porque teve em devida conta o equilíbrio entre a vida privada e a vida profissional do trabalhador. Porém, o que mais dúvidas acarreta sobre um futuro entendimento distinto do actual, é a adopção do critério da denominada “expectativa razoável de privacidade”, a qual pura e simplesmente desaparecerá sempre que o empregador demonstre ter divulgado por todos os trabalhadores uma mera comunicação informando que exerce um controlo sobre os meios informáticos e telefónicos por eles utilizados ou que simplesmente proíbe totalmente a utilização dos meios do empregador para fins pessoais. Em nosso entender, o TEDH demonstrou uma visão demasiado formalista e pouco profunda, porquanto mostrou contentar-se com uma comunicação prévia feita pela empresa aos seus trabalhadores, a qual era relativamente vaga e imprecisa, para logo concluir que eles não gozavam da mencionada expectativa razoável de privacidade, legitimando a sua actuação, que julgou adequada e limitada. Ora, julgamos que o que está em causa não é um hipotético aviso prévio que o empregador possa fazer para justificar e legitimar actuações potencialmente compressoras de alguns direitos de personalidade, tal como o direito à reserva da vida privada contido no artigo 8.º da CEDH, porque não nos parece que tal aviso seja suficiente para enquadrar legalmente esse tipo de actos. O que está realmente em discussão é o direito prévio da pessoa, que por acaso também é trabalhador, àquela reserva, i.e., a garantia de que, haja ou não comunicações prévias do empregador a dizer que exerce o mencionado controlo, o trabalhador terá, sempre, invariável e indiscutivelmente, direito a um reduto de privacidade que não pode, em circunstância alguma, ser posto em causa. Neste sentido, a expectativa razoável de privacidade não existe ou deixa de existir consoante a simples vontade do empregador (que, de acordo com esse entendimento, deveria acautelar a sua actuação com meras informações e avisos prévios aos trabalhadores, por muito detalhados que fossem), antes sendo algo que não deverá desaparecer da esfera jurídica do trabalhador. Ou seja, este último terá sempre de ter a garantia que existe um reduto relacionado com a sua privacidade que, independentemente de quaisquer regras internas sobre a prestação de trabalho, não pode ser lesado e, no limite, desaparecer. Desse modo, pouco se compreende como é que o TEDH considerou legítima a utilização pública (em ambos os processos disciplinar e judicial) de 45 páginas de transcrições de conversas privadas que o trabalhador manteve com familiares, algumas das quais de natureza íntima e pouco dadas a serem divulgadas. De igual forma, não se entende como o tribunal fundamentou tal legitimidade numa posição de natureza formalista, dizendo por um lado que a empresa havia actuado no quadro dos poderes Alvim Cortes, Esperança, Vaz Osório, J. P. Menezes Falcão - Sociedade de Advogados, RL- Rua Joshua Benoliel, nº 6, 8º A e C, - 1250-133 Lisboa Telefone: (+351) 213 10 4120 - (+351) 213 81 52 40 - Fax: (+351) 213 10 41 29 - Email: [email protected] disciplinares que a lei romena prevê e por outro que o trabalhador havia praticado o ilícito disciplinar dentro do seu horário de trabalho. Importa referir que não está em causa o poder-dever que o empregador tem de conformar a sua actividade, o qual é absolutamente legítimo, sendo que nessa conformação, estão incluídas regras de controlo da prestação da actividade dos trabalhadores que limitam necessariamente a respectiva esfera pessoal. De facto, nos dias que correm, em que há uma confusão crescente entre as esferas pessoal e profissional (através de sms, Internet, whatsapp, viber, facebook, etc.), cremos fazer sentido uma separação levada a cabo pelo empregador, a bem da prestação de actividade dentro de padrões de exigência aceitáveis, o que só pode acontecer com a referida limitação. Todavia, parece-nos que a mesma não pode ultrapassar determinados limites que reputamos essenciais à dignidade da pessoa, como seja, por exemplo, a (indevida) utilização para fins disciplinares de transcrições de conversas privadas do trabalhador. Efectivamente, este facto não só não serve de graduação da sanção, como, em bom rigor, nem sequer parece relevante para a circunstanciação do ilícito disciplinar. Acresce que, no caso vertente, não foi sequer considerada uma eventual indemnização ao trabalhador pela devassa da sua privacidade. O controlo do empregador que é, a nosso ver, perfeitamente legítimo, não deve, pois, ser exercido a todo o custo, sobretudo quando o mesmo põe em causa a manutenção do vínculo laboral, com os custos profissionais e pessoais que isso acarreta para o trabalhador. Atento o exposto, não conseguimos acompanhar o entendimento do TEDH, sendo que o mesmo, no mínimo, entreabre a porta a comportamentos abusivos por parte de empregadores menos dados a escrúpulos e ao respeito por um domínio privado de qualquer pessoa que, no caso e só por acaso, também é trabalhador. Por fim, encontramos igualmente dificuldades em enquadrar uma tal decisão à luz do direito Português, tendo em conta, nomeadamente o que se encontra prescrito no artigo 22.º do nosso Código do Trabalho. *[email protected] *[email protected] 001/2016 www.ace.pt Alvim Cortes, Esperança, Vaz Osório, J. P. Menezes Falcão - Sociedade de Advogados, RL- Rua Joshua Benoliel, nº 6, 8º A e C, - 1250-133 Lisboa Telefone: (+351) 213 10 4120 - (+351) 213 81 52 40 - Fax: (+351) 213 10 41 29 - Email: [email protected]
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