TOC! TOC! TOC! - II Seminário "CONHECIMENTO PARA O BEM

Transcrição

TOC! TOC! TOC! - II Seminário "CONHECIMENTO PARA O BEM
TOC! TOC! TOC!
EU QUERO ENTRAR!
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC!
EU QUERO ENTRAR!
Conhecimento e reconhecimento de egressos
do stricto sensu & transformação social
Abel Varela
Alessandra Rodrigues
Cleusa A. Feldhaus Silveira
Danielle Wolff de Camargo
Ilsen Chaves da Silva
Jocemara Melo Pereira
Maira Virginia Xavier Cruz
Marcia Cristine Araldi W.
Márcia de Jesus Xavier
Tania R. Antunes de Oliveira
Vanir Peixer Lorenzini
1a edição
Florianópolis
DIOESC
Diretoria da Imprensa Oficial e
Editora de Santa Catarina
2012
Projeto gráfico:
Paulo Silveira
Revisão de Português:
Paula Clarice de Jesus
Revisão de Provas:
Ana Maria Netto Machado
Vanir Peixer Lorenzini
Concepção da capa:
Ana Maria Netto Machado
Concepção do logotipo da Rede de Egressos:
Ana Maria Netto Machado e Rafael Antunes
Realização do logotipo:
Rafael Antunes
FICHA CATALOGRÁFICA
Catalogação-na-publicação – CIP-Brasil
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina
Elaborada pela Bibliotecária Giovania Nunes (CRB-14/993)
T631 Toc! Toc! Toc! Eu quero entrar!: conhecimento e
reconhecimento de egressos do stricto sensu e transformação
social / Ana Maria Netto Machado (Org). - Florianópolis:
DIOESC, 2012.
283p.
ISBN: 978-85-64210-53-0
Bibliografia
1. Ensino superior – Produção acadêmica. I. Machado, Ana
Maria Netto (org); Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação
do Estado de Santa Catarina - FAPESC. II. Título.
CDU 378.124
A edição desta coletânea foi financiada integralmente pela FAPESC
Chamada pública para Publicações No 07/2010 - FAPESC
AUTORES
ABEL VARELA é graduado em Ciências Contábeis e Administração (UNIPLAC, 1981 e 1999), com especialização em Educação e Movimentos Sociais
(UFSC, 1991) e em Gestão Empresarial (UNIPLAC, 2003); é mestre em
Educação (UNIPLAC, 2011), com a dissertação Desenvolvimento e formação
stricto sensu: o caso dos egressos da UNIPLAC. Desde 2008 é Fiscal de Serviços
Públicos da Prefeitura de Lages (Secretaria do Meio Ambiente); a partir de
2003 é Professor do UNIVESC (Centro Universitário Catarinense) nos cursos
de Administração e Técnico em Segurança do Trabalho. Em 2010 atuou como
docente no PROESDE/UNIPLAC (Programa de Educação Superior para o
Desenvolvimento Regional).
<[email protected]>
ALESSANDRA RODRIGUES é autora do livro Escrita e Autoria: entre memórias, histórias e descobertas, (Mercado de Letras, 2011). Graduada em Letras
(UNIPLAC, 2001), com especialização lato sensu em Língua Portuguesa - produção e revisão de textos e Mestrado em Educação (UNIPLAC, 2004 e 2007),
com a dissertação Marcas no papel, no mundo e na memória: escrita e autoria de
jovens em condição de vulnerabilidade social. Desde 2010 é docente em regime de
dedicação exclusiva da Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI/MG. Atua
como pesquisadora bolsista (CAPES/CNPq) e Professora do curso de especialização em Design Instrucional para EaD Virtual no Núcleo de Educação a Distância da UNIFEI, projeto vinculado à CAPES/UAB. Foca suas pesquisas nas
áreas de Letras, Educação e Comunicação, principalmente nos seguintes temas:
escrita e autoria, produção e revisão textual, mass media e EaD.
<[email protected]>
ANA MARIA NETTO MACHADO é Doutora em Ciências da Linguagem
(UNIVERSITÉ PARIS X, 1996), bacharel em Psicologia, mestre e doutora em
Educação (UFRGS, 1978, 1989, 2004). Oriunda do campo psicanalítico migrou
progressivamente para o campo da Educação e sua produção acadêmica abrange,
desde 1996, as seguintes temáticas: escrita, autoria, publicações, orientação de
teses e dissertações, formação de pesquisadores, políticas de educação superior
e pós-graduação, modelos de universidade, interface universidade/pesquisa/sociedade, produtivismo acadêmico, qualidade da produção de conhecimentos e a
relação entre ciência, sociedade e capitalismo. Trabalhou em diversas IES comuTOC TOC TOC! Eu quero entrar 5
Ana Maria Netto Machado (Org.)
nitárias do interior da região sul (RS: UNIJUI e UCS; PR: FACIPAL, transformada em 2011 no Instituto Federal do Paraná/Campus Palmas; SC: UNIPLAC).
Liderou a construção do primeiro mestrado (Educação) da Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC - Lages/SC), que coordenou desde sua abertura
(08/2005) até a obtenção da recomendação da CAPES (07/2008), no primeiro
envio da proposta. Integra a Rede UNIVERSITAS; é parecerista ad hoc do GT
Políticas de Educação Superior da ANPEd (2011-2012) e colaboradora do Comitê Promotor da Association Université International Terre Citoyenne - UiTC
<http://www.uitc-edu.org/> < [email protected]>
CLEUSA APARECIDA FELDHAUS SILVEIRA é graduada em Pedagogia
(UNIPLAC, 2003), com Especialização em Prática Escolar numa Visão Psicopedagógica (FACVEST, 2003); Mestre em Educação (UNIPLAC, 2010) com a
dissertação Por que é tão difícil tornar-se leitor? Elementos que afastam e/ou aproximam do livro e da leitura. É professora efetiva da Secretaria de Educação do
Município de Lages desde 1994. Em 2011 assumiu como gestora do Centro de
Educação Infantil Municipal Sepé Tiaraju (Lages/SC).
<[email protected]>
DANIELLE WOLFF DE CAMARGO é Mestre em Educação (UNIPLAC,
2010), com a dissertação Escolas com ou sem bibliotecas? Lugar e papel da biblioteca na educação básica brasileira, graduada em Pedagogia (UNIPLAC, 1999),
com especialização em Educação Infantil e Séries Iniciais (Faculdades Integradas
Espírita, 1999). Professora efetiva nas séries iniciais do Ensino Fundamental da
Secretaria de Educação do Município de Lages desde 2004; atuou como professora regente de Artes (5ª a 8ª série), diretora auxiliar e responsável pela biblioteca
da EMEB Nossa Senhora da Penha; em 2011 assumiu como Gestora da Escola
Municipal de Educação Básica Professora Madalena Miranda Largura.
<[email protected]>
ILSEN CHAVES DA SILVA é Graduada em Letras (UNIPLAC, 1975), Mestre em Educação (UNIPLAC, 2007), com a dissertação Escolas Multisseriadas:
quando o problema é a solução. Com este foco, associado às questões da Língua/
Linguagem humana, realizou pesquisas e produção de artigos científicos, trabalho paralelo à docência na Educação Superior (UNIPLAC), que exerce desde
1997, nos cursos de Licenciatura e Direito da UNIPLAC. De agosto a dezembro
de 2010 participou como bolsista do Programa de cooperação internacional - Brasil/Timor-leste (CAPES), trabalhando como docente e orientadora de monografias no Programa de Pós-Graduação da UNTL (UNIVERSIDADE NACIONAL
6
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
DE TIMOR LESTE). Desde abril de 2011 integra a equipe do Setor de Projetos e
Apoio Pedagógico da UNIPLAC.
<[email protected]>
JOCEMARA MELO PEREIRA é Pedagoga (UNIPLAC, 1995); especialista
em Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental (FIES, 2001);
com formação em Psicopedagogia clínica e institucional (FACINTER, 2004)
e Mestre em Educação (PPGE/UNIPLAC, 2008), com a dissertação: A quê e
a quem serve a avaliação? Memórias de egressos do ensino fundamental. Professora
efetiva do Município de Lages/SC; atua como docente nos anos iniciais do
Ensino Fundamental desde 1995; atualmente exerce a função de Orientadora
Educacional em duas escolas: Escola Municipal de Educação Básica Nicanor
Rodrigues Goulart e Bom Jesus. Atuou como tutora-externa no curso de
Pedagogia da UNIASSELVI (pólo Lages: FAMELAGES) e na disciplina Pedagogia Inclusiva no curso de pós-graduação do Instituto Educar (pólo da Faculdade Dom Bosco/Lages).
<[email protected]>
MAIRA VIRGINIA XAVIER CRUZ é graduada em Educação Artística – Habilitação em Artes Plásticas (UNIPLAC, 2001); com especialização em Ensino da Arte: Fundamentos Estéticos e Metodológicos (UNIPLAC, 2004);
Mestre em Educação (UNIPLAC, 2011) com a dissertação: Inserção das Artes
no Campo Científico Brasileiro. É Professora efetiva do Município de Lages/
SC desde 1987; atuou no Ensino Fundamental, nos setores de Cultura e da
Educação do Campo. Em 2012 é responsável pela Formação Continuada da
área de Artes no Sistema Municipal de Educação de Lages. Exerce a docência
superior na UNIPLAC desde 2003, nas disciplinas: Estética, Gravura, Materiais expressivos, Serigrafia nos cursos de Arte-Educação Artes Visuais e Design
de Interiores. Desde 2012 coordena os Cursos: Arte-Educação Artes Visuais e
Arte-Educação Música (UNIPLAC).
<[email protected]>
MARCIA CRISTINE ARALDI W. é Psicóloga (UFSC, 1987), com Especialização em Orientação Profissional e Vocacional (UDESC, 2003). Psicoterapeuta com formação em Psicodrama Individual e Grupal (1989) e formação
em Psicoterapia Relacional Sistêmica, com ênfase em psicoterapia familiar e
de casais (Núcleo de Psicologia Clínica/Curitiba,1991). Mestre em Educação
(UNIPLAC, 2010), com a dissertação intitulada: O trabalhador-estudante na
encruzilhada entre dois mundos em transformação: trabalho e educação superior.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 7
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Professora do curso de Psicologia (Centro Universitário FACVEST). Consultora
educacional e organizacional.
<[email protected]>
MÁRCIA DE JESUS XAVIER é Mestre em Educação (UNIPLAC, 2008), com
a dissertação Inclusão/exclusão digital de professores do campo: desafios para a formação docente; especialista em Administração de Turismo e Hotelaria (FURB,
2001); graduada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Língua
Inglesa (FURB, 1995). Em 2010 assumiu o cargo de Chefe da Divisão de Pós-Graduação da Universidade Regional de Blumenau (FURB), na qual trabalha desde
1991. A partir de 2009 atua como Professora e Orientadora de monografias em
cursos de Especialização na área de Educação (EAD). Tem ministrado oficinas
para Formação Continuada na área de Educação, além de atuar como Professora
particular de Língua Inglesa/Língua Portuguesa.
<[email protected]>
TÂNIA REGINA ANTUNES DE OLIVEIRA é graduada em Educação Artística – Licenciatura em Artes Plásticas (UNIPLAC, 2003); com especialização
em Educação Infantil e Gestão Escolar (AUPEX, 2005); Mestre em Educação
(UNIPLAC, 2010), com a dissertação Arte e Professores de Arte na escola: expansão ou extinção? Descompassos entre legislação, formação e trabalho. É Professora efetiva da Secretaria de Educação do Município de Lages desde 1997.
Em 2011 passou a atuar como gestora auxiliar na EMEB/CEIM – Escola Municipal de Educação Básica Professora Madalena Miranda Largura e Centro de
Educação Infantil Municipal de Lages.
<[email protected]>
VANIR PEIXER LORENZINI é Pedagoga com especialização em Psicomotricidade (UNIPLAC, 1979 e 1988), e em Psicopedagogia (CEP/Curitiba,
1996) e Educação Especial na Educação Básica (UNIPLAC, 2003); Mestre
em Educação (UNIPLAC, 2007), com a dissertação Saberes e Práticas Docentes diante da Diferença: A Experiência do Reconhecimento na Inclusão Escolar. É
Professora na UNIPLAC desde 2000, atuando nos cursos de Pedagogia, Psicologia, Serviço Social e Educação Especial, em disciplinas que abordam a inclusão e as necessidades educacionais especiais. Integra a equipe de Educação
Permanente do Curso de Graduação em Medicina (UNIPLAC) e assessora
Programas de Formação Continuada das Secretarias Municipais de Educação
da Serra Catarinense quanto à inclusão escolar.
<[email protected]>
8
Ana Maria Netto Machado (Org.)
SUMÁRIO
PREFACIO
Hugo Zemelman M. . ................................................................................................................. 13
PREFÁCIO (Tradução)
Ana Maria Netto Machado...................................................................................................... 17
APRESENTAÇÃO
Ana Maria Netto Machado.......................................................................................................21
PLURIRRECONHECIMENTOS SUCESSIVOS COMO
CONDIÇÃO PARA A AUTORREALIZAÇÃO: DA ARTE DE
TRANSFORMAR O CONHECIMENTO EM AÇÃO
Ana Maria Netto Machado e Vanir Peixer Lorenzini........................................................29
DA CENSURA E CONDENAÇÃO DE LIVROS EM REGIMES
TOTALITÁRIOS À PROMOÇÃO DA LEITURA COMO
DISPOSITIVO PARA O EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA
Cleusa Aparecida Feldhaus Silveira.........................................................................................45
EFEITO BUMERANGUE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS
CONDIÇÕES DE CONSTRUÇÃO DA AUTORIA
Alessandra Rodrigues..................................................................................................................65
ESCOLAS COM OU SEM BIBLIOTECAS? LUGAR E PAPEL
DA BIBLIOTECA NA EDUCAÇÃO BÁSICA BRASILEIRA
Danielle Wolff de Camargo........................................................................................................81
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 9
Ana Maria Netto Machado (Org.)
RECONHECER OS SABERES DOS PROFESSORES
PARA CONSTRUIR CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS ÀS
PRÁTICAS INCLUSIVAS
Vanir Peixer Lorenzini................................................................................................................97
O TRABALHO DA MEMÓRIA COMO ALTERNATIVA PARA
A AVALIAÇÃO ESCOLAR
Jocemara Melo Pereira..............................................................................................................115
DE COMO AS POPULAÇÕES E EDUCADORES DO CAMPO
FORAM SENDO INCLUÍDOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
E DA SUA DISTÂNCIA DAS TICs
Márcia de Jesus Xavier.............................................................................................................135
CATALUNHA: EDUCAÇÃO QUE PROMOVE A DIGNIDADE
DO POVO CAMPESINO. VAMOS CONSTRUIR A NOSSA?
Ilsen Chaves da Silva................................................................................................................169
O ENSINO DE ARTE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: LUTAS,
CONQUISTAS, CONCEPÇÕES E NOMENCLATURAS
Tania Antunes de Oliveira.......................................................................................................187
A BUSCA DE RECONHECIMENTO DAS ARTES NO CAMPO
CIENTÍFICO
Maira Virginia Xavier Cruz...................................................................................................213
PERFIL DO TRABALHADOR-ESTUDANTE
NO CONTEXTO DA UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
SUPERIOR
Marcia Cristine Araldi W........................................................................................................233
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
SOU MESTRE... E DAÍ? FORMAÇÃO STRICTO SENSU E
DESENVOLVIMENTO: MOBILIDADE PROFISSIONAL,
ATUAÇÃO E PERSPECTIVAS DE IMPACTO REGIONAL DOS
EGRESSOS DOS MESTRADOS DA UNIPLAC
Abel Varela..................................................................................................................................267
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 11
PREFACIO
E
l prefacio al texto organizado por Ana Maria Netto Machado, titulado “Toc! Toc! Toc! Eu quero entrar!”, plantea problemas relevantes
en lo que concierne a los desafíos de formación en Latinoamérica.
El propósito de estas líneas es destacar algunas cuestiones que se plantean
en el ámbito del desarrollo del pensamiento.
Quisiera comenzar con el problema relativo a la construcción del
conocimiento, el cual debe asumirse desde cierta “paciencia histórica”,
pues en verdad uno de los principales obstáculos que se pueden constatar es nuestra incapacidad para tomar distancia del inmediatismo de las
prácticas y de las políticas. Una consecuencia de lo que decimos es que se
confunde conocimiento con instrumento, con lo que se pierde la capacidad de asombro que permite tener una visión más amplia de la realidad.
De lo anterior se desprende una tendencia fuerte de disociar el acto
de pensar de la capacidad de actuar. En verdad el problema consiste en
poder transformar las ideas en acciones a partir de una cierta vigilancia
respecto de las circunstancias, cuidándonos de que el pensamiento quede
atrapado en las lógicas instrumentales, o, en su defecto, en los límites de
los códigos teóricos. Para enfrentar este sesgo se requiere que el conocimiento sea construido desde una conciencia históricamente situada, de
manera de que se transmita a éste la fuerza que se contiene en aquellas
situaciones históricas.
Como se señala en el libro, no podemos pensar la problemática de
la subordinación, de la marginación, así como la propia humillación, sino
se parte asumiendo la experiencia de esas situaciones, ya que es esta la
condición que permite enfrentar esos problemas para poder trascenderlas.
Reconocer una situación de injusticia, se sostiene en el libro, es el primer
paso para disponerse a luchar para salir de una situación de injusticia.
Pero lo anterior, requiere que el sujeto pensante sea capaz de construir su propio espacio de autonomía desde el cual traducir las ideas en
acciones, mediante su capacidad para plasmar decisiones de construcción
social desde diferentes opciones, según sea su visión de futuro. Para ello
que se requiere fortalecer al sujeto ampliando su conciencia, no solamente
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 13
Ana Maria Netto Machado (Org.)
el conjunto de conocimientos con función analítica, ya que, se trata no
solamente de explicar realidades sino de reconocer espacios de sentido de
construcción que se pueden vivir.
En lo que decimos se contiene, implícitamente, el desafío que
no siempre se tiene claramente asumido, de que simultáneamente con la
construcción del conocimiento se da un despliegue del sujeto, asumiendo
su movimiento interno, sus actitudes y fuerzas, no solamente intelectuales
sino también afectivas y volitivas, de manera de abordar los límites que
lo coartan. Se trata de no dejarse aplastar por las circunstancias adversas,
sino de asumir lo que en la literatura se ha llamado libertad positiva que
nos conduce a reconocer espacios abiertos a posibilidades de futuro. En
este sentido el conocimiento cumple la función de potenciar al sujeto.
Desde la perspectiva en que nos colocamos, no se puede dejar de
abordar el papel de la escritura, del libro, esto es, del conocimiento acumulado, en tanto instrumento para enfrentar lo nuevo, no para quedar cobijado en sus certezas. De ahí la importancia que tiene el uso del lenguaje
de modo de poder hacer de este un uso creativo, potenciador de la subjetividad, pero también de las circunstancias contextuales para reconocer en
ellas límites abiertos. En esta línea textos como el que presentamos anticipan la necesidad, en los procesos formativos, de tomar en cuenta en la
educación superior de una pragmática crítica del lenguaje.
No obstante, para avanzar en la dirección señalada se plantea como
condición reconocer la importancia de la cultura, así como de las identidades colectivas, tanto en el plano social como regional. Todo lo cual definen
desafíos en los procesos de formación que llevan a concebir a esta más allá
del simple entrenamiento o capacitación para el trabajo, pues lo que está
en juego es la potenciación de la subjetividad del sujeto concreto: esto es,
del sujeto en relación con otros sujetos.
Por último, la argumentación anterior desemboca necesariamente, como ya lo anticipábamos, en un enriquecimiento del lenguaje en el
proceso formativo. Por eso nos parece importante destacar el papel de las
artes que hasta ahora, por lo general, no tiene mayor presencia en el forjamiento del pensamiento y, en consecuencia, de la capacidad del hombre
para colocarse ante las circunstancias. Consideramos que un enriquecimiento del lenguaje implica una articulación entre los lenguajes nomoló14
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
gicos y simbólicos, en la medida que la realidad que tenemos la necesidad
de abordar cotidianamente no siempre puede explicarse, aunque siempre
estamos viviendo.
Me complace mucho contribuir con estas breves líneas de reflexión
a un texto que esta apostando a dar relevancia epistémica a la conciencia
histórica.
Hugo Zemelman M.
Director
Instituto Pensamiento y Cultura en America Latina (IPECAL)
http://www.ipecal.edu.mx/
México, Marzo 2012
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 15
PREFÁCIO
O
prefácio ao texto organizado por Ana Maria Netto Machado,
intitulado “Toc! Toc! Toc! Eu quero entrar!”, levanta problemas
relevantes quanto aos desafios da formação na América Latina.
O propósito destas linhas é destacar algumas questões pertinentes no âmbito do desenvolvimento do pensamento.
Gostaria de iniciar abordando um problema relativo à construção
do conhecimento, que precisa ser examinado desde certa “paciência histórica”, pois, na verdade, um dos principais obstáculos que podemos constatar neste campo é a nossa incapacidade de tomar distância do imediatismo
das práticas e das políticas – o que leva a confundir conhecimento com
instrumento e resulta na perda da capacidade de estranhamento, a qual
permite ampliar a visão sobre a realidade.
Disto decorre uma forte tendência a dissociar o ato de pensar da
capacidade de atuar. De fato, o problema consiste em poder transformar
as ideias em ações a partir de certa vigilância sobre as circunstâncias, cuidando para que o pensamento, por um lado, não fique aprisionado nas
lógicas instrumentais e, por outro, não fique confinado dentro dos limites
dos códigos teóricos. Para enfrentar este viés, é necessário que o conhecimento seja construído a partir de uma consciência historicamente situada,
de modo que lhe seja transmitida a força contida nas condições históricas
particulares.
Como o livro postula, para pensar a problemática da subordinação,
da marginalização e da própria humilhação é imprescindível começar
por assumir a experiência destas situações, já que esta é a condição que
permite enfrentar tais problemas para poder transcendê-los. Reconhecer
uma situação de injustiça, como sustenta a obra, é o primeiro passo para
dispor-se à luta e sair de uma situação de injustiça.
Contudo, para tanto, é necessário que o sujeito pensante seja capaz
de construir seu próprio espaço de autonomia, a partir do qual poderá
traduzir ideias em ações, mediante sua capacidade de conformar decisões,
no contexto da construção social, considerando diferentes alternativas,
conforme sua própria visão de futuro. Para tal, é preciso fortalecer o sujei-
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 17
Ana Maria Netto Machado (Org.)
to, ampliando a sua consciência, não somente no que tange ao conjunto
de conhecimentos com função analítica, já que se trata não apenas de explicar realidades, mas, também, de reconhecer espaços de sentido dessa
construção, que possam ser vivenciados.
Nestas afirmações está implícito um desafio que nem sempre é assumido: o de que, simultaneamente à construção de conhecimentos, se dá
um desdobramento do sujeito, que assim assume seu movimento interno,
suas atitudes e forças, não apenas intelectuais, mas também afetivas e volitivas, de forma a enfrentar os limites que o restringem. Trata-se de não
se deixar anular pelas circunstâncias adversas e assumir o que a literatura
tem chamado de “liberdade positiva”, aquela que pode conduzir o sujeito
ao reconhecimento de espaços abertos a possibilidades de futuro. Neste
sentido, o conhecimento cumpre a função de potencializar o sujeito.
Desde a perspectiva em que nos posicionamos não se pode deixar
de abordar o papel da escrita, do livro, isto é, do conhecimento acumulado, enquanto instrumento para enfrentar o novo, ao invés de empregá-lo
como conjunto de certezas protetoras. Daí a importância da linguagem,
para que dela se possa fazer um uso criativo, potencializador da subjetividade, e também das circunstâncias contextuais, para reconhecer-lhes
aberturas que permitam transcender seus limites. Nesta perspectiva, textos como o que ora apresentamos antecipam a necessidade, nos processos
formativos da Educação Superior, de levar em conta uma pragmática crítica da linguagem.
Não obstante, para avançar na direção assinalada, é condição reconhecer a importância da cultura, assim como das identidades coletivas,
tanto no plano social como regional. Isto configura desafios nos processos
de formação que levam a concebê-la para além do simples treinamento ou
capacitação para o trabalho, pois o que está em jogo é a potencialização
da subjetividade do sujeito concreto: isto é, do sujeito em relação a outros
sujeitos.
Por último, a argumentação até aqui tecida desemboca necessariamente, como antecipamos nas linhas precedentes, no enriquecimento da
linguagem no processo formativo. Por isso parece-nos importante destacar o papel das Artes, que até agora, em geral, tem tido escassa presença
no forjamento do pensamento e, em consequência, no forjamento da ca18
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pacidade do homem para situar-se diante das circunstâncias. Consideramos que o enriquecimento da linguagem implica uma articulação entre as
linguagens nomológica e simbólica, à medida que a realidade que precisamos abordar cotidianamente sempre se pode explicar, apesar do fato de
estarmos imersos nela, vivenciando-a.
Sinto-me satisfeito em poder contribuir com estas breves linhas de
reflexão para um texto que está apostando na consciência histórica da relevância epistêmica.
Hugo Zemelman M.
Director
Instituto Pensamiento y Cultura en America Latina (IPECAL)
http://www.ipecal.edu.mx/
México, março de 2012
Tradução para o português:
Ana Maria Netto Machado
Lages, abril de 2012
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 19
APRESENTAÇÃO
Ana Maria Netto Machado
E
sta coletânea é um dos resultados de pouco mais de cinco anos de
trabalho de orientação de dissertações, que tive a oportunidade de
conduzir no Mestrado em Educação da Universidade do Planalto
Catarinense (UNIPLAC), curso cujo processo de construção coube-me
conceber – em diálogo com os professores da graduação da área de Educação (e afins) que faziam parte da Universidade em 2004 – e também
coordenar, desde a sua abertura (2005/2) até a sua recomendação pela
CAPES (2008), quando da primeira submissão a este órgão de fomento
e avaliação.
Esses detalhes, que identificam realizações que aqui nomeamos, podem parecer desnecessários. Porém, justificam-se no contexto da temática
que elegemos como fio condutor desta obra coletiva, tema que lhe confere
significado histórico e distribui responsabilidades: a espera, a busca ou a
luta por reconhecimento, por parte de sujeitos, populações ou instituições
estiveram presentes em cada uma das dissertações que aqui compartilham
com o leitor alguns de seus resultados na forma de artigos. O conceito de
reconhecimento, como fio condutor (ou fil rouge) que amarra o conjunto
de páginas deste códice, estabelece também um sólido elo com a própria
história de construção do Mestrado em Educação da UNIPLAC. O livro
constitui-se um passo a mais, para além da construção de conhecimentos,
que viabiliza a inserção dos autores e do Programa na comunidade científica nacional.
A obra representa a possibilidade de que este conhecimento, legitimado no meio científico, possa também entrar na circulação pública
local; as descobertas realizadas por aqueles que tiveram a oportunidade
de conectar-se a redes nacionais permitirão estabelecer conexões entre a
realidade (os problemas locais) e os estudos e pesquisas nacionais ou internacionais.
A coletânea reveste-se de uma dimensão inaugural, uma vez que
enfeixa trabalhos de onze Mestres formados no primeiro PPGE da Ser-
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 21
Ana Maria Netto Machado (Org.)
ra Catarinense, a mais extensa macrorregião do estado e também aquela
que ostenta os menores índices de desenvolvimento humano de SC. Se
difundida amplamente nas redes escolares da região, em bibliotecas municipais e universitárias dos cinco cantos deste imenso Brasil, bem como
nas bibliotecas dos oito países de fala portuguesa dos demais continentes,
como prevemos, poderá constituir-se em arma1 simbólica para compreender e, quem sabe, superar alguns dos entraves que impedem à Educação
construir reconhecimento e transformar o potencial das crianças, jovens
e gentes em geral, em realizações de relevância pessoal, cultural e social.
Os artigos que integram esta coletânea derivam de capítulos das
dissertações defendidas entre 2007 e 2011, com exceção da apresentação e do primeiro capítulo. Cinco dos onze autores participantes foram
pioneiros, ao ingressar na primeira turma de um curso que abrira vagas
sob a autorização do Conselho Estadual de Educação de SC, em época quando a CAPES já detinha ampla legitimidade para decidir quais
programas ingressariam no sistema de pós-graduação nacional e quais
ficariam fora dele.
Abrir a primeira turma sem a autorização da CAPES, sob a cobertura do CEE/SC2, como foi o caso, constituiu-se em um ato temerário, cujos
riscos foram calculados e assumidos com a solidariedade e cumplicidade
que a participação de uma luta por uma causa justa engendrou, entre os dirigentes da UNIPLAC da época, os professores e alunos do PPGE nascente. Seguiu-se a essa luta por reconhecimento intenso esforço coletivo para
demonstrar que é possível, em condições adversas, em uma Universidade
Comunitária de pequeno porte, e do interior, desenvolver uma formação
de nível stricto sensu tão ou mais qualificada que aquela ofertada em alguns
grandes centros.
O resultado deste empreendimento é motivo de orgulho para todos
e muito especialmente para os pioneiros. Outras lutas foram abraçadas
pelas turmas subsequentes, com novas conquistas relevantes, que conferem ao Programa singularidade digna de nota, como, entre outras, a bolsa
1 É interessante evocar que a primeira máquina de escrever foi fabricada pela empresa norte-americana Remington, que até então se dedicava a fabricar armas. O poder da escrita ainda não teve o reconhecimento que
merece!
2 O CEE/SC tinha a prerrogativa legal de autorizar a abertura de cursos de Pós-graduação stricto sensu em
2005, embora já não contasse com a legitimidade em termos do consenso da comunidade científica nacional.
22
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
de estudos concedida por lei municipal para os professores da Educação
Básica cursarem Mestrado com vencimentos e afastamento das funções
docentes (tempo integral).
“Toc Toc Toc, eu quero entrar!” é um título que poderia ser reivindicado para um conto de fadas destinado aos leitores mirins. O título expressa
movimento, atitude, força, empuxo, necessários para promover transformações; ele sugere barreiras que incluem e, ao mesmo tempo, excluem. Os
artigos tratam de temáticas diferentes, que consideramos candentes para o
Brasil do século XXI, buscando manter um estilo estritamente acadêmicocientífico, sem preterir o sabor do saber, como escreveu Roland Barthes.
O primeiro capítulo, Plurirreconhecimentos sucessivos como condição
para a autorrealização: da arte de transformar o conhecimento em ação, coautoria entre Machado (organizadora e orientadora do coletivo de autores) e
Lorenzini, propõe-se como articulador das temáticas que à primeira vista
podem parecer dispersas, e constitui-se em um convite para compreender
e abraçar a luta por reconhecimento, como caminho dignificante para sujeitos e instituições fazerem valer, no campo social, o conhecimento.
Os três capítulos seguintes tratam do acesso a livros e leitura (SILVEIRA), escrita e autoria (RODRIGUES) e bibliotecas (CAMARGO).
Trata-se do mundo simbólico, scriptológico (referente à scriptura, ou seja,
à escrita, a registros) que constitui uma das principais bases das civilizações. Se os direitos a ler, escrever e acessar a cultura letrada são em 2012
considerados universais, em Da censura e condenação de livros em regimes
totalitários à promoção da leitura como dispositivo para o exercício da democracia, Silveira vai buscar as razões históricas dos obstáculos que continuam mantendo considerável parcela dos cidadãos afastados dos livros e
da leitura. A autora explora episódios como a Inquisição na Europa ou a
ditadura militar no Brasil para trazer à tona a dimensão política do livro e
da leitura e seu papel crucial para o exercício da democracia.
Em Efeito Bumerangue: considerações acerca das condições de construção da autoria, Rodrigues desenvolve, a partir de uma experiência de pesquisa participante realizada com adolescentes evadidos da escola, cinco
categorias conceituais envolvidas no processo de tornar-se autor: escolha/
fruição, alteridade, exposição, responsabilidade, reconhecimento. Explicita assim caminhos que permitem, via o exercício da escrita e o olhar de
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
outrem, o fortalecimento da autoestima, o empoderamento dos sujeitos
que descortinam possibilidades de si antes desconhecidas, com as quais
sua inserção social pode encontrar espaços e fortalecer-se.
Camargo, em Escolas com ou sem bibliotecas? Lugar e papel da biblioteca na educação básica brasileira, parte da constatação, na literatura nacional, do desprestígio que paira sobre a biblioteca no âmbito da educação
escolar brasileira. Explora a seguinte problemática: sendo a biblioteca o
celeiro das culturas, onde encontramos as memórias e tradições de nossos antepassados e o berço de outras civilizações, como entender que a
educação escolar pouco se interesse pela biblioteca ou desenvolva a formação das novas gerações praticamente dispensando-a? No presente artigo trava-se uma discussão que envolveu diversos autores para evidenciar
que alguns problemas típicos da cultura escolar, amplamente analisados
na literatura, mas de difícil solução, poderiam encontrar caminhos para
realizar uma formação cultural de qualidade, se reconhecêssemos o papel
central da biblioteca nas escolas. Seja para desenvolver uma educação com
ênfase na cultura, seja para trabalhar com o conhecimento científico, a biblioteca é indispensável.
Reconhecer os saberes dos professores para construir conhecimentos necessários às práticas inclusivas, de Lorenzini, e Trabalho da memória como
alternativa para a avaliação escolar, de Pereira têm em comum um olhar e
uma escuta/leitura atenta para os atos, discursos e memórias dos sujeitos
em sala de aula de Educação Fundamental. Sejam eles portadores de necessidades especiais (LORENZINI), ou porque vão sendo colocados à
margem na sala de aula, por meio de dispositivos de controle e julgamento
como a avaliação (PEREIRA), estão à espera de reconhecimento. Ambas
as autoras foram a campo empírico em suas pesquisas e desenvolveram
formas alternativas, interativas e de cooperação, para transformar os estigmas freqüentes que obstaculizam a aprendizagem em dispositivos de
aprendizagem compartilhada no contexto da vida escolar coletiva.
Os artigos de Xavier e Silva trabalham no contexto das populações
do campo, mais precisamente na vertente teórica da Educação do Campo. Em De como as populações e educadores do campo foram sendo incluídos
na legislação brasileira e da sua distância das TICs, Xavier faz uma investigação minuciosa, na legislação educacional brasileira (e, inclusive, na
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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Constituição brasileira e nas constituições dos estados da federação) das
menções às populações do campo; e mapeia quando, onde, de que maneiras e por quais determinações as populações do campo começam as
ser levadas em consideração (reconhecidas) pelas políticas públicas. Silva,
em Catalunha: educação que promove a dignidade do povo campesino. Vamos
construir a nossa?, em uma perspectiva comparativa, percorre os avanços
das políticas para Educação do Campo, no Brasil e no contexto histórico
da Serra Catarinense, descortinando as diferentes formas de obtenção de
reconhecimento e direitos, conforme a formação étnica, econômica e política das diferentes regiões do país, assinalando a controvertida passagem
das políticas de governos para as políticas de Estado.
Os artigos de Oliveira e de Cruz discutem duas esferas de luta distintas das Artes por reconhecimento. Em O ensino de Arte na legislação
brasileira: lutas, conquistas, concepções e nomenclaturas, Oliveira discute os
percalços das Artes para legitimar seu direito de participar, par a par com
as demais disciplinas, da formação escolar, explicitando que o longo percurso realizado pelos professores esbarra ainda em limites reveladores da
necessidade de continuar as lutas por reconhecimento da área de Artes.
Em A busca de reconhecimento das Artes no campo científico, Cruz realiza
um estudo minucioso da trajetória árdua da área de Artes para se legitimar
junto às demais áreas com maior tradição, como capaz de produzir conhecimentos relevantes no âmbito da ciência. Com problemáticas paralelas,
ambos os artigos exploram espaços, literatura e entraves distintos, complementando-se a mostrar a posição marginal e periférica ocupada pelas
Artes nas mentalidades educacional e científica dominantes brasileiras.
Araldi W. e Varela somam-se ao trabalho anterior, de Cruz, no sentido de tratar de temáticas da Educação Superior: Cruz e Varela no âmbito
da pós-graduação stricto sensu, no contexto acadêmico-científico e Araldi W. no contexto da formação graduada e formação para o trabalho. Em
Perfil do trabalhador-estudante no contexto da universalização da Educação
Superior, Araldi W. analisa, a partir da literatura pertinente, este novo personagem que ocupa, via de regra, as vagas de IES particulares, induzido a
buscar formação superior em função das exigências de um mercado que
emprega mão de obra cada vez mais qualificada, dadas as transformações
do mundo produtivo nas últimas décadas. O artigo revela o cotidiano
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 25
Ana Maria Netto Machado (Org.)
deste estudante que trabalha de dia e frequenta aulas noturnas, tendo
como pano de fundo o processo de universalização da Educação Superior
(como direito de todos), problematizando os entraves para esse processo
e as consequências para o trabalhador-estudante.
Por fim, Varela, em Sou mestre... e daí? Formação stricto sensu e desenvolvimento: mobilidade profissional, atuação e perspectivas de impacto
regional dos egressos dos Mestrados da UNIPLAC, com a hipótese de que
a formação stricto sensu, isto é, a formação de mestres pode impactar no
desenvolvimento da região propôs-se a analisar as mudanças na atuação
profissional dos egressos dos mestrados da UNIPLAC. Neste artigo, apresenta alguns dados gerais sobre os sujeitos e a discussão final da dissertação sobre o problema.
Cabe chamar a atenção para o caminho lento da pesquisa e da produção acadêmico-científica e a paciência histórica que precisa ser construída, contra o imediatismo das práticas e das políticas. As pesquisas resultaram em dissertações, que foram defendidas e legitimadas por pares
experientes de outras instituições3. Novo problema agora se impõe: quem
é o público interessado nessas pesquisas? Como despertar o interesse daqueles que precisariam conhecer tais resultados de pesquisa para qualificar a Educação local regional? O interesse não é dado nem imediato e a
paciência para ler cem páginas não está construída na comunidade regional de professores, por exemplo. Nem todos têm acesso à internet e os que
têm carecem de tempo livre para permanecer horas diante da tela de um
computador, a fim de tomar contato com pesquisas.
Este simples raciocínio evidencia que novas ações precisam ser
implementadas para que o conhecimento novo construído em Lages, na
UNIPLAC, não seja desperdiçado e para que sua potência transformadora venha a se fazer ação. O pensamento de senso comum imputa à teoria
ficar no âmbito das ideias, que pouco teriam a contribuir para práticas efetivas. Ledo engano! Ingenuidade! São as ideias, os conceitos, que desde
sempre fizeram girar o mundo!
Porém, sabe disso quem participa do mundo das ideias, quem está
em posição de certa forma culturalmente dominante; e o ignora quem está
3
26
Os trabalhos estão disponíveis na íntegra no site da UNIPLAC.
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
na posição marginal ou subalterna, com escasso acesso à cultura. Ainda
aumenta o desafio de demonstrar o valor prático das ideias o fato de que,
para sair da posição de dominado, é necessário ter a consciência de que se
está nesta posição desconfortável e, por vezes, humilhante, evidentemente
indesejável. Reconhecer-se injustiçado é um primeiro passo para disporse a lutar para sair de tal condição, como veremos no primeiro capítulo,
que abordará a interface entre conhecimento e reconhecimento, como um
convite aos leitores a descobrir o interesse que cada um poderá encontrar
nos processos complexos que o termo esconde.
Esta obra representa um passo a mais na possibilidade de transformar ideias em ação, por isso pode ser considerada uma arma de combate
na luta pelo reconhecimento desta região. Se o movimento de luta por
reconhecimento está presente entre nós na Serra Catarinense, é interessante assinalar que nosso país como um todo também participa de um
movimento de afirmação e de busca de reconhecimento entre os demais
países, no mundo globalizado.
Em 2012 o Brasil é falado na imprensa internacional, vem reivindicando integrar o Conselho de Segurança da ONU como membro permanente e integra o G20, associando-se às maiores potências territoriais,
integrando o Bloco Brasil, Rússia, China e India (BRIC). O Brasil desponta com liderança na ciência (2% da produção científica mundial4), na
política e na economia, aparecendo como um dos países que promete dar
lições sobre energias limpas, economia sustentável, longevidade, programas de prevenção à saúde, avanços no combate a desigualdades e, mais
recentemente, até na luta contra o crime organizado.
Este longo rol parece digno de orgulhar os brasileiros de terem nascido nesta pátria gentil... admitamos que estamos longe da vergonha que
expressávamos por meio de piadas nas décadas de ditadura militar e dos
anos subsequentes, durante governos que rezaram explicitamente pelas
cartilhas dos organismos internacionais.
O Brasil, “TOC TOC TOC...”, vem batendo em uma sucessão de
portas que vêm abrindo passagem para o gigante verde-amarelo, o que cria
um efeito de ufanismo perigoso e a ilusão de progresso acelerado. É fato
que os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o atual, da pri4
Considerando-se que há menos de 200 nações no mundo não é um índice desprezível.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 27
Ana Maria Netto Machado (Org.)
meira mulher presidenta do Brasil, Dilma Roussef, vêm combatendo as
desigualdades com alguns resultados visíveis. Mas também é preciso prestar atenção aos altos custos destas façanhas rápidas, e aos compromissos
que foi necessário selar para que eles acontecessem.
Enquanto integrantes da comunidade científica brasileira, cabe-nos
– a este coletivo de autores, associado a seus pares de outras localidades
– mantermos a vigilância teórica e política, trabalhando acima de todo interesse para o esclarecimento dos problemas instalados nos vários setores
das sociedades e os novos que vão surgindo com as mudanças rápidas que
nos toca viver.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
PLURIRRECONHECIMENTOS SUCESSIVOS COMO
CONDIÇÃO PARA A AUTORREALIZAÇÃO: DA ARTE
DE TRANSFORMAR O CONHECIMENTO EM AÇÃO
Ana Maria Netto Machado
Vanir Peixer Lorenzini
“Longo é o caminho para o homem que ‘age e sofre’ até o reconhecimento
daquilo que ele é em verdade, um homem ‘capaz’ de certas realizações. Esse
reconhecimento de si ainda requer, em cada etapa, a ajuda de outrem, quando falta esse reconhecimento mútuo, plenamente recíproco, que fará de cada
um dos parceiros um ser-reconhecido...”
Paul Ricoeur. Percurso do Reconhecimento
A
s teorias de reconhecimento desenvolvidas na contemporaneidade têm se mostrado provocativas como meios de explicitar e
compreender complexidades do humano no campo social. Este
texto rastreia estudos sobre reconhecimento, passando pelos principais
expoentes que abordam tal temática, suas fontes e sucessores, alguns
estrangeiros e também alguns brasileiros que tematizam a questão. Nos
estudos realizados pode-se vislumbrar um campo fecundo sobre como
mobilizar sujeitos como seres capazes de realizar, considerando que o
acesso ao conhecimento por si só não tem lhes garantido crédito suficiente em suas capacidades para a ação e para as mudanças necessárias
em seus contextos.
Alain Caillé, autor que investiga a busca de reconhecimento como
um novo fenômeno social total1, permite contextualizar a temática do reconhecimento. No começo de sua obra, ele invoca a seguinte asserção de
Nancy Frazer, uma das protagonistas no campo das teorias do reconhecimento: “as lutas políticas propriamente modernas que, durante mais de
dois séculos, tinham sido lutas de redistribuição2 se tornaram prioritariamente lutas de reconhecimento”3.
1 Trecho que corresponde ao título da obra de Alain Caillé.
2 A redistribuição neste contexto refere-se à riqueza de bens materiais ou culturais, direitos etc.
3 As passagens de Caillé (2007) e Voirol (2007) são traduções livres do francês realizadas por Ana Maria
Netto Machado.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 29
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Caillé (2007) atribui a mudança de foco dessas lutas a circunstâncias históricas. No caso, duas importantes decepções que a humanidade
teve de processar próximo ao final do século XX. A primeira foi abandonar a crença e a esperança, acalentada pelo menos por três décadas (entre
1950 e 1980), no poder dos avanços da ciência e da tecnologia para acabar
definitivamente com a guerra, o ódio, a miséria, a opressão e a barbárie,
por meio da redistribuição da riqueza material, da proteção social e da
educação. E a segunda, com relação à promessa da luta de classes (luta
entre classes econômicas): esperava-se que dissolvesse as classes e, em
decorrência, acreditava-se possível encontrar solução para uma longa série de conflitos sociais que eram considerados secundários. Tal esperança
perdeu crédito, pela queda progressiva dos regimes socialistas e a quase
universalização do capitalismo como sistema econômico hegemônico e
porque os conflitos ditos secundários emergiram com mais força, mostrando-se irredutíveis e persistentes.
Refere-se aqui às lutas (conflitos ditos secundários) dos mal-reconhecidos ou estigmatizados4, como “os cegos, os surdos, os doentes
mentais, os Negros, as mulheres, os anãos, os Judeus, os homossexuais, os
pobres, os coxos, os hemiplégicos, os que têm a face marcada por cicatrizes, os mutilados, aqueles com poliomelitis, os amputados, os epiléticos”
(CAILLÉ, 2007, p. 8), entre outros. A lista se inspira na clássica obra de
Erving Goffman, Estigma (publicada em português em 1982 e reimpressa
em 1988), que é recuperada por Caillé a partir de Patrick Pharo.
É nesse cenário que as teorias do reconhecimento vêm ganhando
espaço e pode-se considerar este conceito como portador de possibilidades de esclarecimento dos impasses constatados, uma vez que ele se apresenta como capaz de articular diversos problemas importantes, mas heterogêneos, que vêm sendo tratados ao longo da história do Ocidente por
diversas tradições que nem sempre dialogam entre si: filosófica, política e
jurídica, psicológica e sociológica. Esta tentativa de interação entre tradições e disciplinas com diferente prestígio, história, perspectivas teóricas
e/ou avanços práticos no campo da ciência, não se dá de maneira fluida e
carrega as marcas de polarizações complexas e cristalizadas.
4 Essa discussão está muito presente no Brasil, na área de Educação principalmente, a partir da inclusão
dos estudantes com Necessidades Educacionais Especiais - NEE nas escolas regulares, bem como pelas ações
afirmativas de negros, quilombolas e indígenas ou as mais recentes reivindicações das populações do campo.
Esperas, buscas ou lutas por inserção na sociedade, ao mesmo tempo com respeito às particularidades de cada
comunidade, etnia ou agrupamento e ao tratamento igualmente digno e não discriminatório.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Especificamente quanto ao reconhecimento, trava-se inclusive um
difundido debate que polariza as discussões e tem conquistado partidários. Trata-se da controvérsia5 entre as concepções do filósofo alemão Axel
Honneth – discípulo de Habermas e integrante da Escola de Franckfurt– e
a filósofa e socióloga feminista norte-americana Nancy Frazer, citada inicialmente.
Dentre a literatura consultada até o momento6 (em português e
francês), não encontramos nenhum autor que propriamente defenda e dê
continuidade à posição de Fraser. Quatro artigos (SOUZA, 2000; MENDONÇA, 2009; PINTO, 2008; CAILLÉ, 2008) dedicam-se a expor a controvérsia supracitada, assinalando os limites das teorias de ambos os autores.
Porém, na resolução da discussão desses trabalhos, a continuidade tende
a desenvolver a vertente de Honneth (2003), que vem obtendo cada vez
maior aceitação. No pensamento de todos os trabalhos analisados, este autor aparece com destaque e é referência central.
O que podemos entender por reconhecimento? Segundo Mendonça (2009), o precursor da teoria do reconhecimento é o filósofo Charles
Taylor7 que teria revisitado a obra de Hegel8 a fim de renovar a teoria da
5 Conforme Mattos (2004, p. 144) Fraser desenvolve a tese da redistribuição, buscando a justiça social,
porém defende que “as lutas por redistribuição são paulatinamente substituídas por reconhecimento, ou seja,
os conflitos de classe são tendencialmente suplantados por conflitos de status social, advindos da dominação
cultural”. Honneth desenvolve sua tese sobre o reconhecimento com base em ideias de Hegel e “defende que
o reconhecimento intersubjetivo é condição para o desenvolvimento da identidade positiva necessária para a
participação na esfera pública” (MATTOS, 2004, p. 150). Pinto (2008) não vê oposição entre ambas as visões,
mas complementaridade, advogando em prol de uma integração das duas perspectivas para se chegar a um
conceito mais completo.
6 Lembremos que este artigo é um convite aos leitores e é a primeira produção destas autoras sobre o tema
específico do reconhecimento, havendo longo percurso a explorar doravante.
7 Como traz Mendonça (2009, p.2) “Foi marcante, nesse sentido, a palestra proferida por Charles Taylor na
inauguração do Princeton University’s Center for Human Values, em 1990, na qual ele mostrou a riqueza da
ideia de reconhecimento intersubjetivo para lidar com os dilemas entre igualdade e diferença”.
8 A confrontação entre os diversos autores consultados revela que tanto Taylor como Honneth se inspiram
em Hegel, porém, em etapas diferentes de sua obra. O primeiro baseia-se na Dialética do Senhor e do Escravo,
da Fenomenologia do Espírito, obra de 1806; e o segundo, em ideias do Hegel de época posterior, o Hegel de
Jena, como costuma designar-se essa etapa de seu pensamento, que teria influenciado o pensamento francês,
especialmente por meio de Bataille e pela releitura que Lacan realizou da obra de Freud (VOIROL e CAILLÉ,
2007; CAILLÉ, 2008). Conforme Souza (2000, p. 18), Hegel teria tomado uma ideia insipiente de Johann
Gottlieb Fichte (1762-1814), presente na sua Teoria do Direito Natural, na qual apontava para “o fato de que
os sujeitos só podem adquirir uma consciência de sua liberdade na medida em que se sentem estimulados ao
uso recíproco de sua autonomia enquanto sujeitos”. Hegel teria partido daí para formular a ideia de luta pelo
reconhecimento em uma progressão ética abrangendo três dimensões de relações de reconhecimento. Estaria
envolvida também nessa construção a ideia de que a “aquisição intersubjetiva de auto consciência implica formas de desenvolvimento moral que abrangem toda a sociedade” (SOUZA, 2000, p. 18).
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justiça. Taylor estaria, conforme Mendonça (2009), na corrente do multiculturalismo e uma de suas ideias representativas seria a seguinte: a de que
o reconhecimento envolve...
[...] um misto de políticas universais e políticas da diferença. Para alcançar a possibilidade de auto-realização, as pessoas lutam, simultaneamente, por dignidade e
para que suas particularidades sejam reconhecidas. Fazem-no em esferas íntimas
e públicas de interação social (MENDONÇA, 2009, p.3, grifo nosso).
A ideia de autorrealização pode remeter o leitor, em um primeiro
momento, a teorias psicológicas relativas ao indivíduo que, de certa forma, têm perdido espaço e prestígio nas últimas décadas – em favor de interpretações sociológicas e antropológicas, e, ultimamente, inclusive para
as neurociências, podendo por isso causar certo estranhamento neste contexto. Entretanto veremos até o final do artigo de que maneira o conceito
de reconhecimento, na versão de Honneth (2003) e seus seguidores, considera o ser humano para além do reducionismo às dimensões opostas,
individual versus social9, recuperando a afetividade, a moral e a singularidade, nos sentimentos de injustiça, degradação e desprezo, considerados
como condição para a posição de luta e reivindicações.
É preciso situar o ideário de Honneth (2003) na crítica que ele efetua à própria Teoria Crítica, o que apreendemos a partir de Voirol (2007).
Este autor mostra que, no contexto do pensamento de esquerda na Europa
do final dos anos 1970, Honneth tece sua crítica a uma concepção do sujeito revolucionário que encarnava a classe operária. Afirma Voirol:
[...] como A. Honneth sublinha, a maneira como o sujeito coletivo era pensado
carecia particularmente de ancoragem empírica e provinha de uma concepção
homogênea do sujeito da luta social. Essa concepção partia de uma idéia da
luta, como estruturada exclusivamente pelos ‘interesses de classe’, e tendia a
idealizar um sujeito puramente teórico da luta contra o capitalismo (VOIROL,
2007, p. 246).
9 Voirol refere-se também ao reducionismo do sujeito à dimensão econômica, enfatizada pelas teorias sociológicas, no contexto da tradição marxista.
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À consequência de tal concepção,
[...] os membros da classe operária apareciam, então, não como atores dotados de
plena consciência de seus interesses – ou ao contrário de uma ‘falsa consciência’
–, destinada a tomar em mãos seu papel na história, mas como sujeitos submetidos à injustiça e a formas de degradação de sua experiência, sem que pudessem
chegar a articular essa experiência na linguagem explícita da luta social e política
(VOIROL, 2007, p. 246).
Essa noção descolada dos elementos empíricos, que a pesquisa sociológica poderia trazer, é atribuída, no texto de Voirol (2007), à influência de Lukacs, resultando nessa concepção afastada da realidade da classe
operária. Não estaria muito longe das afirmações de Voirol (2007) dizer
que, ao faltar-lhe apoio em diagnósticos e estudos de campo empírico,
esse conceito do sujeito operário estava próximo de uma ficção. Seria,
portanto, necessário levar em conta contribuições da pesquisa sociológica
e da história social para encontrar pistas que permitissem conceber a experiência operária e os conflitos de classe segundo categorias que escapassem à concepção economicista predominante na época (isto no contexto
do pensamento de Honneth).
Caillé, ao analisar as teorias10 que poderiam ter se ocupado do
tema do reconhecimento, revisita Marx, afirmando que ele nos brinda
com uma...
[...] teoria muito poderosa do reconhecimento, talvez a mais poderosa jamais
elaborada, claramente derivada de Hegel. Mas o fato é que a teoria econômica
desenvolvida em O capital se apresenta como uma teoria do reconhecimento
não dos homens, mas dos bens. Não são os sujeitos humanos, mas os bens que
estão em luta para fazer reconhecer seu valor, para o ‘realizar (CAILLÉ, 2008,
p. 3, grifo nosso).
Caillé (2008) indaga se as ferramentas desenvolvidas por Marx,
para pensar o reconhecimento do valor dos bens, poderiam ser adap10 Passando por Tocqueville, Marx, Durkheim, Weber e Bourdieu, além de alguns sociólogos norte-americanos.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
tadas para entender o valor dos sujeitos; e Honneth mostra que a caminhada é no sentido de desenvolver uma teoria do valor dos sujeitos
(do valor social), em contraposição à teoria do valor dos bens formulada por Marx.
Para Honneth o desejo de ser reconhecido é um fato incontestável
quando se trata do ser humano, porque se trata de fazer valer o seu valor
perante o outro. Caillé (2008) problematiza em dois níveis este desejo.
Primeiramente em sua positividade e, em segundo lugar relativamente à
sua normatividade. Em seguida, ele levanta o que considera um problema
normativo que pode ser assim formulado: devem ser reconhecidas igualmente todas as demandas de reconhecimento? Trata-se de um direito universal que pode e/ou deve ser concedido por uma norma da sociedade?
Pode-se deduzir da constatação de que os sujeitos humanos desejam antes
de tudo ser reconhecidos, que é preciso, necessariamente, lhes conceder o
reconhecimento ao qual aspiram? (CAILLÉ, 2008, p. 5).
Do ponto de vista da positividade (dos fatos), poder-se-ia resolver a
questão de maneira bastante simples, usando o critério da utilidade: “seria
suficiente para tanto considerar o reconhecimento como um bem desejável, que satisfaz uma utilidade ou uma preferência, no mesmo nível que
outros bens desejáveis, como, por exemplo, um carro, uma bela casa ou
o prestígio” (CAILLÉ, 2008, p. 5).
Já no plano normativo, “a questão que se coloca é saber em que
medida é permitido passar do ser ao dever ser” (CAILLÉ, 2008, p. 5-6),
pois a implicação entre o desejo universal de ser reconhecido e as formas
possíveis do reconhecimento almejado ocorrer não é dada. Conforme o
reconhecimento for compreendido ele pode ser negado, concedido, reivindicado etc.
Honneth, em sua obra Luta por Reconhecimento (2003) dedica-se a
detalhar padrões de reconhecimento intersubjetivo a partir de trabalhos de
Hegel11 e Mead12, os quais considera insuficientemente desdobrados, porém
portadores de possibilidades para desenvolver suas proposições e elabora
três modalidades de reconhecimento recíproco. Honneth (2003, p. 155)
considera que com “meios construtivos da psicologia social de Mead foi
11 Conforme Voirol (2007) a partir do Hegel de Jena.
12 Herbert Mead (1863-1931) considerado fundador da psicologia social nos Estados Unidos.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
possível dar à teoria hegeliana da ‘luta por reconhecimento’ uma inflexão
empírica”. Mendonça mostra que o reconhecimento para Honneth...
[...] constrói-se em três domínios: o amor, os direitos e a estima social. Das relações emotivas fortes adviria um misto de dependência e autonomia, essencial
para que os sujeitos desenvolvam sua autoconfiança. Os direitos, por sua vez,
garantiriam uma universalização da dignidade, fomentando o auto-respeito, na
medida em que possibilita aos sujeitos verem-se como dignos do mesmo respeito
que os demais. Por fim, a possibilidade de estima social está enraizada na comunidade de valores e diz respeito à apreciação das potenciais contribuições sociais
e das realizações de indivíduos. Tal possibilidade está no cerne da noção de autoestima e da construção da solidariedade (MENDONÇA, 2009, p. 3, grifo nosso).
A esse respeito, Voirol cita um fragmento do próprio Honneth em
que este explicita essas três esferas de reconhecimento, e se refere à sociedade, que precisaria ser...
[...] capaz de assegurar a seus membros a possibilidade de uma realização de si13
favorecendo relações de reconhecimento mútuo cujo teor prático difere segundo
as esferas de reconhecimento nas quais eles se inserem. Assim, a realização de si depende da possibilidade que os membros de uma sociedade têm de serem reconhecidos como portadores de necessidades afetivas na esfera do amor, como sujeitos
com direitos iguais em uma comunidade jurídica e, finalmente, como detentores
de atitudes práticas que contribuam para a reprodução da vida comum na esfera da
solidariedade (HONNETH apud VOIROL, 2007, p. 26, grifo nosso).
Caillé (2008, p. 7) também aborda a trilogia sistematizada por Honneth: “a autoconfiança em que buscamos na esfera do Amor, o respeito ao
qual aspiramos na esfera político-jurídica e a auto-estima que pretendemos acessar pela nossa contribuição à divisão social do trabalho[...]”. E
interroga se o reconhecimento exige a coexistência da autoconfiança, do
respeito e da autoestima, se é resultante de um somatório destas ou, ainda,
se haveria uma hierarquia ou uma ordem léxica entre autoconfiança, autorrespeito e autoestima.
13 Reencontramos aqui na expressão “realização de si”, a autorrealização trazida inicialmente em nome de
Taylor. Adiante encontraremos, na tradução da obra de Ricoeur (2004), a expressão “auto-asserção”, que talvez
possa ser melhor entendida pelo leitor brasileiro, se traduzida por autoafirmação.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Honneth, em entrevista a Marcos Nobre e Luiz Repa (2003, p. 7,
grifo nosso), confirma que, desde uma perspectiva genética, existe primazia da “primeira forma de relação de reconhecimento, isto é, da autoconfiança possibilitada pelo amor e assistência. Sem a experiência dessa
forma de reconhecimento, nenhum sujeito poderia constituir uma identidade estável [...]”. Porém em outra análise, de caráter lexical, Honneth
considera que nas sociedades contemporâneas pode ser percebida “uma
primazia da relação jurídica do reconhecimento. Ela, a princípio exorta
todos os sujeitos, de maneira igual, ao respeito mútuo e, por isso, possui
maior força de inclusão14”.
Ainda sobre a gênese do reconhecimento intersubjetivo encontramos, também em Souza (2000), uma tendência a considerar as relações
amorosas como a forma primeira desse processo, sinalizando que Honneth busca fundamento para explicitar esta dimensão nos estudos do psicanalista britânico Winnicott (1896-1971), segundo o qual...
[...] a segurança do amor materno acompanha a criança sob a forma de ‘confiança
em si mesmo’, o que permite ‘ficar só’ sem problemas. É a autoconfiança, portanto, esta forma primária de reconhecimento, que abre a possibilidade ao indivíduo
de ficar sozinho sem perda da segurança do amor do outro pela vida afora (SOUZA, 200, p.154).
Ricoeur (2006, p. 204) também se refere ao detalhamento que
Honneth faz sobre o amor como forma de reconhecimento, a partir de
estudos no campo da teoria psicanalítica, especialmente nos sucessores de
Freud, quando tratam da vinculação emocional do tipo mãe-filho.
É na formulação de Ricoeur sobre essa primeira esfera do reconhecimento que aparece de maneira mais explícita a conexão entre reconhecimento pelo outro e as capacidades (que na criança o no jovem são admiradas enquanto potência ou promessa) e a autorrealização, que implica
14 As questões que compõem a temática da inclusão remetem aos mais variados campos, onde sujeitos lutam
por pertencimento. Um destes campos é a Educação Escolar, onde estudantes com necessidades educacionais
especiais – NEE estão sendo compulsoriamente matriculados em salas de aulas regulares. Entretanto este processo ainda tem causado estranheza aos envolvidos, e a sua permanência na escola regular, assim como o acesso
ao conhecimento por ela veiculado, constitui-se numa problemática que demanda esforços na construção de
conhecimentos necessários.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
a passagem do espaço íntimo ao espaço público. “É sobre essa transição
entre o ‘alguma coisa’ e o ‘alguém’ dramatizada pela experiência do desconhecível que se constrói a transição do ‘alguém’ para o ‘si mesmo’ reconhecendo-se em suas capacidades” (RICOEUR, 2006, p. 261). Logo, “Tenho
confiança em que ‘eu posso15’, eu atesto isso, eu reconheço” (Idem).
Ricoeur (2006, p. 264) remonta, portanto, à constituição do sujeito,
quando refere que “a autoafirmação16 pressupõe um ato de adoção por outrem
sob a forma de atribuição de um nome próprio; por intermédio do estado civil, todos me reconhecem como sujeito antes mesmo que eu tenha, por meio
da educação, desenvolvido a capacidade de designar a mim mesmo”.
Ricoeur (2006) refere-se também ao nome próprio, pronunciado
por outrem antes que o sujeito seja capaz de fazê-lo, como elemento agregador de uma história de vida, o que representaria uma outra conjunção
para o reconhecimento, desta vez no tempo, envolvendo a relação entre a
sua memória e outras memórias; o que pode tomar...
[...] a forma de uma partilha das lembranças no plano interpessoal da amizade,
ou no plano público quando da evocação dos episódios de uma história comum,
mas a relação entre memórias outras pode assim transformar-se em conflitualidade na competição entre memórias17 que divergem sobre os mesmos acontecimentos (RICOEUR, 2006, p. 265-266).
Ricoeur deixa clara a complexidade do problema do reconhecimento de si que...
[...] requer, em cada etapa, a ajuda de outrem, quando falta esse reconhecimento
mútuo, plenamente recíproco, que fará de cada um dos parceiros um ser-reconhecido [...]. O reconhecimento de si [...] permanecerá não apenas inacabado,
mas permanecerá na verdade reconhecimento mútuo, mas além disso mutilado,
15 Logo sou capaz. É importante salientar a ressignificação que se pode fazer do termo “capacidade” ou mesmo de “capacitação”, à luz das teorias do reconhecimento. Trata-se de terminologia bastante desgastada que
pode ser revalorizada neste novo contexto.
16 No original aparece autoasserção. Substituímos essa expressão por auto-afirmação, termo mais usual em
português, por considerar que a escolha do tradutor dificulta a compreensão ao público brasileiro.
17 Pensemos, por exemplo, no movimento do Ministério dos Direitos Humanos, que vem promovendo a
busca da verdade sobre o período da ditadura militar no Brasil: não são poucos os militares entrevistados na mídia a negar que tortura e mortes tiveram lugar, atribuindo-os à imaginação fértil dos solidários com as vítimas.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
em razão da assimetria persistente da relação com outrem construída segundo o
modelo da ajuda, mas também do impedimento real (RICOEUR, 2006, p. 85).
Esta passagem de Ricoeur (2006) se reveste de complexidade, remetendo a formulações influenciadas pelas teorias psicanalíticas: refere-se
ao desamparo como característica básica do infans humano, condenado
inicialmente à dependência do outro, o que configura o campo do desejo.
Este por sua vez define a condição de inacabamento do eu e a assimetria
irredutível entre o eu e o outro (barreira intransponível ou impedimento
real) que instala um movimento nunca completado. Justamente por isso,
esse movimento será sempre reiterado, na direção do outro. A noção de
alteridade toma sentido neste contexto de incompletude e assimetria.
O reconhecimento como processo constituinte da identidade seguiria então um movimento que vai da intimidade para o espaço público. Porém é possível pensar que não se trata de um processo linear, e sim
que inclui, na experiência pessoal, reatualizações do reconhecimento de
si, na busca por seus direitos (na segunda esfera de reconhecimento), assim como nos esforços para conquistar estima social (na terceira esfera).
Desta forma, “as conquistas do reconhecimento-atestação de si não são
perdidas, ainda menos abolidas pela passagem para o estágio do reconhecimento mútuo. Direi em primeiro lugar que se trata ainda e sempre da
identificação” (RICOEUR, 2006, p. 262).
O problema da identidade e o da autorrealização são, então, centrais
para compreender o problema do reconhecimento. “Ser reconhecido se
isso alguma vez ocorre, seria para cada pessoa receber a garantia plena de
sua identidade graças ao reconhecimento por outrem de seu império de
capacidades” (RICOEUR, 2006, p. 262, grifo nosso).
O trecho apresentado como excerto inicialmente situa de maneira
límpida e contundente o indivíduo como potência, promessa de realizarse. Nesta tantas vezes mal-interpretada autorrealização está presente a comunidade, a sociedade sem a qual nenhuma realização é possível, pois que
ela simplesmente não existe se ficar confinada no plano da intimidade, se
não for identificada por outrem, se não for reconhecida como realização.
Portanto implica movimento rumo ao outro, para o espaço público, a coletividade.
A expressão de Ricoeur (2006, p. 85) “um homem ‘capaz’ de certas
realizações” formula o sentido de humanidade que não se completa sem
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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este movimento que faz desabrochar o broto de promessa ou potência que
se espera (a sociedade espera) de cada indivíduo. Neste entendimento, as
clássicas querelas manifestas em dualismos e oposições toscas, entre indivíduo e sociedade, que seguidamente assumiram a forma de rivalidade e
combate entre disciplinas, mostram o seu limite heurístico e sua função
de entrave, tanto epistemológico quanto político. Humano seria tal movimento movido por sucessivos reconhecimentos.
O exercício dessa capacidade de fazer os acontecimentos ocorrerem no mundo
físico e social se desenvolve em um regime de interação no qual o outro pode
desempenhar o papel de obstáculo, de auxiliador ou de cooperador, como nas
ações conjuntas, nas quais às vezes é impossível isolar a contribuição de cada um
(RICOEUR, 2006, p. 264).
Quando o reconhecimento – entendido como autoconfiança, autorrespeito e autoestima – não acontece, temos seu inverso. Mendonça (2009, p. 3) refere, a partir de Honneth, que “o não-reconhecimento
nesses três âmbitos se manifesta por meio da violência física, da denegação
de direitos e da desvalorização social de certos sujeitos por seus atributos
e modos de vida”. Para Honneth o não reconhecimento é a manifestação
viva do desrespeito à identidade, que, conforme suas expressões, equivale à “violação”, à “privação de direitos” e à “degradação”. Nessa situação
de maltrato, o que está em jogo, segundo Honneth (2003, p. 213), não
é somente o mal-estar social, de injustiça e de desconsideração pública,
mas, antes, diz respeito a um aspecto mais íntimo, em que “as pessoas são
feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram de
maneira intersubjetiva”. Mendonça assim o interpreta:
[...] essas formas de desrespeito impedem a auto-realização do sujeito, mas também podem fomentar uma reflexividade, que nasce da indignação moral. Tal
compreensão reflexiva pode ser coletivizada e se desdobrar em lutas sociais por
reconhecimento, que são essenciais para a evolução moral da sociedade (MENDONÇA, 2009, p. 3).
A interpretação de Mendonça põe em evidência que o não reconhecimento pode desencadear reações diferentes e até opostas. Aqui é
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
interessante perguntar o que determina tais diferenças. Souza (2000, p
24) permite entender “... como as diversas formas de humilhação e desrespeito transformam-se em ações políticas. Como os grupos oprimidos no
seu reconhecimento social logram estabelecer vínculos associativos e de
solidariedade é uma outra questão social em aberto”.
Nesta direção, Mendonça recorda que para Taylor e Honneth o reconhecimento é “uma luta intersubjetiva” e alerta que esta perspectiva traz
consequências:
Admitir que se trata de uma luta é assumir que o reconhecimento não pode ser
concedido, alcançado ou doado18. O reconhecimento não está restrito a fins específicos, nem é limitado a conquistas na esfera de direitos garantidos pelo Estado19.
Ele não é um prêmio final que liberta grupos oprimidos. A luta por reconhecimento
pode ter muitas manifestações diferentes, na medida em que ela não é nada mais do
que um processo permanente em que a sociedade20 reflexivamente se transforma e
altera padrões de relação social (MENDONÇA, 2009, p. 157).
Nas palavras de Caillé (2008, p. 162) uma “sociedade decente não
é aquela que distribui o reconhecimento, mas que contribui para que seus
membros dêem valor aos próprios olhos e aos de outros [...] uma sociedade
que aumenta nos indivíduos a capacidade de doação”. A dádiva (ou o dom)
está presente na maior parte dos autores examinados como componente importante para compreender o fenômeno do reconhecimento e o conceito é
inspirado nos estudos do antropólogo Marcel Mauss (1872-1950).
Para Caillé (2008), o valor dos sujeitos sociais é medido por meio
de sua capacidade de dar, o que, aliás, implica reciprocidade. Nos desdobramentos destas teses, Caillé acrescenta aos sentidos do reconhecimento, além da identificação e valorização, a gratidão. Com isso coloca
o reconhecimento como ato de dar em gratidão ao que já se tem. Reconhecer implica ser reconhecido. E ser reconhecido coloca na posição de
reconhecedor – isto leva a um reconhecimento mútuo. E este ato ou potência (ação e possibilidade da ação) depende da liberdade ser proporcionalmente maior que a necessidade de quem doa ou reconhece.
18 Esta restrição apontada por Mendonça encontra eco no problema normativo do reconhecimento trazido
inicialmente por meio de Caillé.
19 Alusão crítica aos limites que este autor identifica na teoria de Frazer.
20 Enquanto tal, a teoria do reconhecimento pode contribuir substancialmente para entender os processos
de mudança social ou, na outra margem do problema, a resistências às mudanças.
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Multirreconhecimentos sucessivos parecem ser condição tanto
para a construção da identidade de base do sujeito como para o desenvolvimento de práticas sociais solidárias e humanizantes. Ao reconhecer o valor do sujeito, o reconhecimento mobiliza suas capacidades, no sentido de
que é capaz de realizar. E, à medida que se sente reconhecido, passa também a poder assumir o papel de reconhecedor, em uma sucessão sem fim.
À guisa de encerramento desta incursão primeira, na temática do
reconhecimento, parece relevante tecer algumas considerações a propósito do significado desta obra bibliográfica, na qual escolhemos inserir
este artigo. Ela é fruto de longa e lenta caminhada – e, por que não dizer,
sofrida – de seus doze integrantes, em busca de reconhecimento do que
se é, em verdade, mulheres e homens capazes de certas realizações, permitindo-nos aqui parafrasear Ricoeur (epígrafe). Envolveu esforço, estudo,
orientação, leituras, escritas, desafios, medos, vergonha, orgulho, honra,
angústia. “Esse reconhecimento de si ainda requer, em cada etapa, a ajuda
de outrem” (RICOEUR, 2006, p. 85).
Enfatizamos a necessidade de reconhecimentos múltiplos e de múltiplos reconhecedores, em tempos diferentes, numa progressão do sujeito
reconhecido desde a esfera mais íntima, em que se baseia sua autoconfiança,
até sua valorização na comunidade, permitindo-lhe por em prática o conhecimento de que é portador. Exemplo disso são os movimentos realizados
pelos coautores desta obra que são aproximadamente um quinto do total de
egressos do PPGE21 da UNIPLAC22. Sujeitos que apostaram primeiramente num reconhecimento de si, confiantes no enfrentamento do desafio a que
se propuseram, sustentados pelos plurirreconhecimentos ao longo da jornada da formação e garantidos na igualdade de oportunidades. E que puderam
ao final buscar outros reconhecimentos, inclusive em nível internacional23.
Podemos dizer que, naquele contexto, no mestrado em curso daquela primeira turma (2005), vivemos longo processo de reconhecimen21 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação, que entrou em funcionamento em
2005 sob a autorização do Conselho Estadual do Estado de SC, considerado primeiro Mestrado autóctone da
Serra Catarinense.
22 Universidade do Planalto Catarinense.
23 Na primeira banca do PPGE da UNIPLAC, quando da defesa da Dissertação de Vanir Peixer Lorenzini
sob o título Saberes e Práticas Docentes diante da Diferença: A Experiência do Reconhecimento na Inclusão
Escolar, José Alberto Correia, então Diretor do Doutorado da Universidade do Porto (Portugal), era um de
seus membros. Este reconhecimento a um dos mestrandos do referido programa garantiu subsequentes reconhecimentos para os sucessivos mestres. Anos depois, outro exemplo é o de Ilsen Chaves da Silva, que participou da missão da CAPES no Timor Leste durante seis meses.
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tos sucessivos e múltiplos, em que intervieram reconhecedores com diferentes status - tanto na esfera da intimidade (orientador, professores),
como na esfera pública (Conselho Estadual de Educação de SC, CAPES)
- na direção da auto-afirmação, no sentido de validar a capacidade individual e coletiva de realizar obras, do ‘ser capaz’, como referido na epígrafe
com Ricoeur (2006).
O caso evidencia que não há conhecimento sem reconhecimento,
como afirma Ricoeur (2006). Para que o estudo, a busca de conhecimento, não se limite a “reproduzir eternamente em palavras o que aprendemos sempre preparados para os exames” como dizia Fichte24, mas
revele a força das ideias (dos conceitos, das teorias), é preciso estudar
e pesquisar “para aplicar o conhecimento ao que nos ocorre na vida e
para transformá-lo em obras; não se trata simplesmente de reproduzir
o que estudamos, mas de extrair daí algo diferente; a finalidade última
não é, portanto o conhecimento, senão a arte de empregar o conhecimento” (FICHTE, 1999, p. 28).
Esta “arte de empregar o conhecimento” pode ser traduzida como
a capacidade de transformar a potência ou promessa, que cada indivíduo
carrega em si, em realizações no âmbito da(s) coletividade(s) a que se
pertence. Um exemplo radical de autorrealização com grande impacto no
espaço público pode ser considerado o caso de Whilhelm von Humboldt
(1767-1835). Seu caso interessa-nos, particularmente, porque é no âmbito da universidade de modelo humboldtiano, universidade de pesquisa
concebida por este autor (concretizando-se na fundação da Universidade
de Berlim em 1808), que a presente coletânea assume todo seu significado. A obra compreende um percurso de realização que vai desde a promessa (que pode ser entendida no sentido de potencial) de cada um dos
autores, ao ingressar no mestrado, passando pelo demorado processo de
estudo, pesquisa, escrita da dissertação, escolha e adaptação de textos, até
chegar a esta obra coletiva que buscamos instalar na comunidade regional,
nacional e também internacional25.
Vale a pena rememorar que, dos quase 70 anos que Humboldt viveu, ele consagrou quase toda a vida à busca de conhecimento através de
24 O mesmo que inspirou Hegel, mencionado na nota de rodapé de número 10.
25 O plano de distribuição elaborado prevê, por exemplo, alimentar as bibliotecas universitárias dos oito
países de língua portuguesa existentes no mundo, além de muitos outros que não citamos aqui.
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estudo e pesquisa, tendo apenas por curtos períodos ocupado importantes
cargos na política nacional e internacional da então Prússia. Um de seus
feitos foi, em alguns poucos meses de trabalho (ele foi Secretário de Educação do governo), organizar o sistema de educação da Prússia, estabelecendo diretrizes básicas que, grosso modo, ainda vigoram na Alemanha
do início do século XXI. Seu projeto educacional com ênfase na formação
moral, cultural e científica, tinha por objetivo fortalecer a identidade do
povo prussiano e unificar a nação, que fora praticamente destroçada por
sucessivas guerras (HEIDERMANN; WEININGER, 2006, p. XX-XXI).
Reencontramos em Humboldt a noção de identidade aplicada tanto aos
indivíduos quanto à coletividade, e mais ainda à própria ideia de nação.
As ideias, como dito antes, movem o mundo. Mas, para que seu
potencial transformador seja convertido em ações transformadoras, uma
sucessão de reconhecimentos, nas diferentes esferas, é necessária. Só assim a capacidade, em potencial, dos sujeitos pode tornar-se realizações,
ou autorrealizações, que começam no sujeito mas só podem se efetivar
no âmbito social, na esfera pública, na interface com outrem. O reconhecimento opera então sobre a construção da identidade em todas as fases
da vida. É preciso sentir-se suficientemente reconhecido, autorizado, para
usar da autoridade e da autonomia que o conhecimento, quando aliado ao
reconhecimento, outorga.
Aqui se vê como o conhecimento é indissociável do reconhecimento, como se
entrecruzam e se interpenetram as categorias de pensamento, as formas de classificação que permitem pensar e conhecer o mundo, e aquelas que valorizam tanto
as categorias cognitivas como as axiológicas. O reconhecimento que conhece, e
aquele que normatiza (CAILLÉ, 2008, p. 4).
É, refere Mendonça (2009, p. 3), “por meio do reconhecimento
intersubjetivo que os sujeitos podem garantir a plena realização de suas
capacidades e uma auto-relação íntegra, uma vez que as identidades são
construídas relacionalmente”. Por um lado o reconhecimento pode ser
visto como necessidade de autorrealização, isto é, necessidade inerente ao
desenvolvimento da pessoa. Necessitamos de reconhecimento para a própria existência, e desde muito cedo. Por outro lado, este reconhecimento
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
somente se dá na relação com o outro, na diferença irredutível de cada um
e cada outro. A partir destes entendimentos, a querela entre indivíduo e
sociedade, aprofundada e alimentada longamente pelas disputas entre disciplinas parece perder sentido. E possibilidades de trabalhos convergentes
emergem e são bem-vindas.
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NOBRE, M.; REPA, L. Honneth esquadrinha ‘déficit sociológico’. Folha de São Paulo.
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PINTO, C. R. J. Nota sobre a controvérsia Fraser–Honneth informada pelo cenário brasileiro. Lua Nova. São Paulo, n. 74, 35-58, 2008. Disponível no site www.scielo.br. Acesso
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
DA CENSURA E CONDENAÇÃO DE LIVROS EM
REGIMES TOTALITÁRIOS À PROMOÇÃO DA
LEITURA COMO DISPOSITIVO PARA O EXERCÍCIO
DA DEMOCRACIA
Cleusa Aparecida Feldhaus Silveira
S
ão incontáveis os autores que têm investigado e discutido, no Brasil, a problemática da leitura sob várias abordagens e enfoques. Em
comum a tantos discursos, poderíamos dizer que emerge a necessidade de expansão da leitura a todo cidadão. Porém, apesar dos esforços
teóricos e das implementações práticas por meio de leis, programas e iniciativas internacionais, nacionais e locais de pesquisadores, governos e
instituições formadoras, este processo tem se mostrado lento e difícil, e os
níveis de leitura permanecem aquém do esperado e desejável. Perguntas
como “por que é tão difícil tornar-se leitor?” ou então “o que afasta hoje,
ou afastou no passado, as populações dos livros e da leitura?” continuam
exigindo trabalho de pesquisa para serem respondidas. Neste artigo, somamo-nos àqueles que vão buscar no passado elementos para entender as
determinações históricas que resultaram no cenário atualmente constatado com respeito à leitura.
Negar à maioria da população (principalmente das crianças) o direito de ter
acesso aos livros onde estão guardadas as histórias que representam o apogeu da
criação literária humana através dos séculos não é apenas uma negligência, nem
descaso da família, da escola ou das autoridades – é um ato criminoso, que deve
ser combatido (MACHADO, 1999, p. 94).
No contexto da censura religiosa e política, abordaremos “o ato
criminoso” (MACHADO, 1999) ocorrido em vários momentos da
história quando as sociedades exerceram vários tipos de censura e baniram determinados livros. Os livros não foram somente banidos, mas
por vezes também queimados. Mergulharemos no passado da repressão,
onde existiu um patrulhamento contra a circulação de ideias nefastas
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
e revolucionárias, bloqueando a heterogeneidade de pensamentos e assim afastando a população dos livros e da leitura e, consequentemente,
gerando o aniquilamento cultural humano. Como descreve Walter Benjamim, “Aniquilar o homem é tanto privá-lo de comida quanto privá-lo
de palavra”. Neste contexto de censura, o crivo censor delineou uma história de perseguição, exílio, tortura, veto, limitação da livre expressão e
dominação das massas. Em relação a este panorama, nos reportamos a
Abreu que afirma:
O repúdio ou o estímulo à leitura só podem ser bem compreendidos se forem
examinados os objetos que se tomam para ler e sua relação com questões políticas, estéticas, morais ou religiosas nos diferentes tempos e lugares em que homens e mulheres, sozinhos ou acompanhados, debruçaram-se sobre textos escritos (ABREU, 1999, p. 15).
Retomemos um dos acontecimentos mais importantes da história
da humanidade com consequências para o livro e a leitura: a invenção da
imprensa, por Gutenberg, no final da Idade Média (1440). No plano cultural, no século XV, a invenção da tipografia propiciou a multiplicação dos
impressos e o aumento do público leitor. Esta invenção permitiu um processo de reprodução mais barato e mais rápido dos escritos, mecanizandose a arte lenta e penosa a que se entregavam os copistas. É claro que as
primeiras prensas estavam muito longe de se igualar à rapidez da impressão moderna, sobretudo após a revolução das tecnologias da informação
e comunicação (TICs). Muitos consideram que, depois de Gutenberg, a
mudança equivalente em importância e impacto para o mundo todo foi
a revolução das TICs, que ampliaram em proporção geométrica alguns
dos resultados conseguidos com aquela invenção que já tem meio milênio,
além de outras muito distintas.
Porém, naquela época, a invenção da imprensa desencadeou muitas mudanças que não pararam de se disseminar e gerar consequências
pelo mundo até hoje. Com o advento da imprensa, a leitura se generalizou,
tornou-se um fato político, democratizou-se e, no decorrer do século XX,
foi se tornando, como veremos, um direito de todos.
Como refere Barbosa (1994) até o final do século XVI a relação do
leitor com os livros se restringia a livros sacros – principalmente a Bíblia – e
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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a Igreja mantinha, desde há muito tempo, o monopólio do saber e o poder
quase absoluto sobre as bibliotecas (o conhecimento). A Sabedoria e a Ciência eram consideradas bens sagrados e, até a invenção Gutenberg, a Igreja
convivia harmoniosamente com uma sociedade iletrada de tradição oral.
É a partir do século XVII, com a impressão de livros, que o mercado
começa a ser invadido por grande quantidade de obras para além das religiosas; obras profanas como almanaques, calendários, contos populares
e amorosos passam a ganhar as ruas e serem lidas entre as camadas mais
pobres da população. Coincide também aproximadamente com esta época, conforme relata Barbosa (1994), a difusão do sistema escolar, o que
permitiu a valorização da leitura e da escrita, ampliando este domínio para
um grupo maior da população, firmando-se o mito da escolarização1.
Durante a segunda metade do século XVIII, com a difusão cada vez
maior de livros, as pessoas começaram a ler extensivamente, não mais apenas as elites letradas, mas uma população maior e a leitura então já não era
um privilégio de uma camada muito pequena das sociedades. Esta espécie
de início de democratização da leitura, permitida pela indústria do livro
que já começava na época, parece ter levantado resistências em alguns
setores da sociedade da época e começou a difundir-se a ideia de que o
excesso de leitura poderia ser prejudicial, levando os pedagogos a desencadearem campanhas de alerta neste sentido (Barbosa, 1994).
Supunha-se que a leitura, principalmente de romances, estimulava
a identificação do leitor com os personagens e poderia levá-los a cometer
atos semelhantes aos descritos nas histórias lidas. Sobretudo temia-se a influência destas obras sobre a conduta das mulheres, pois não raro os livros
continham crimes e paixões consideradas ilícitas. Na França, ficou bem
conhecido caso de Madame Bovary, romance de Gustave Flaubert (18211880), publicado em 1857, cujo autor chegou a ser processado pelo governo de seu país, pela “imoralidade da obra”: um enredo de traição inadmissível para os rígidos padrões da época, pois o livro contrariava a ordem
burguesa, as convenções sociais e a moral católica.
Diante de casos como este e muitos outros que os historiadores registram em suas obras, Chartier (1999) afirma que a cultura escrita não pode
1 Para Barbosa (1994) o mito da escolarização caracterizou-se com a escola se interpondo como intermediária entre a criança e a cultura e se propondo como fiadora do sucesso profissional e garantia da mudança
profissional.
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ser separada dos gestos violentos que a reprimem, lembrando a interdição
de textos pelas autoridades religiosas ou políticas, uma espécie de apropriação penal dos discursos, à qual também se refere Foucault em várias obras,
como Vigiar e punir (1996) e em dois pequenos textos reunidos no livro
O que é um autor? (1992), e que justificou tantos episódios de destruição
de livros e condenação de autores, editores ou leitores, como foi o caso de
Flaubert. Giordano Bruno (1548–1600), por exemplo, foi condenado por
blasfêmia e queimado vivo. Segundo os historiadores, Bruno prestou uma
contribuição intelectual decisiva para acabar de vez com a Idade Média.
Morto aos 52 anos, tornou-se um mártir do livre pensamento. Ele foi vítima
da intolerância religiosa típica da chamada Contrarreforma, a batalha travada pela Igreja Católica contra a Igreja Reformada. O poder do clero manteve
o monopólio sobre o saber e, preocupados com a influência da leitura elevando a criticidade dos fiéis, reinou a intolerância: livros foram censurados,
condenados e postos à fogueira, muitas vezes junto com seus autores
O martírio de Giordano Bruno em 1600, seguido do julgamento de
Galileu Galilei em 1616 – mais tarde renovado por um segundo julgamento e pela abjuração de 1633, quando condenaram-no a prisão domiciliar
até sua morte em 1642 –, abriu um fosso de desconfiança entre a ciência e
a religião. Carneiro afirma que o fogo representava a purificação.
O Tribunal do Santo Ofício colaborou para formular um mundo onde os desvios
e a livre-crítica não tinham lugar. A verdade imposta não poderia ser contestada
[...] Os “elementos heréticos” e “diabólicos” que colocavam em perigo a sociedade
deveriam ser eliminados. Foi através do fogo que a Santa Inquisição eliminou os
pecadores e seus escritos, quando era o caso. Condenar apenas não adiantava: era
preciso queimar, transformando o Mal em cinzas (CARNEIRO, 2002, p.27).
Apesar dos diferentes dispositivos de censura2 implementados em
vários momentos históricos e lugares geográficos, Lacerda (1999, p. 614)
2 Em Portugal, a censura aos impressos teve início no século XVI, em momento muito próximo àquele em
que começaram a ser publicados livros em Portugal, no final da década de 1480. A atividade de censura repartia-se entre o Ordinário (juiz eclesiástico ligado à diocese, em atuação desde 1517), o Tribunal do Santo Ofício
(organismo censor da Igreja, em funcionamento desde 1536), a Real Mesa da Comissão Geral para o Exame
e a Censura dos Livros e a Mesa do Desembargo do Paço, órgãos do poder régio, este último atuante a partir
de 1576. Este sistema tríplice esteve em atuação até 1768, quando D. José I julgou ser necessário centralizar a
censura em um só organismo, criando, assim, a Real Mesa Censória (Abreu, 2007).
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afirma que na verdade estes sistemas não apresentaram alterações muito
precisas ou significativas uns em relação aos outros, a não ser pelas formas
de poder, apreciação e obstrução da leitura a certas obras e documentos.
Manguel (1997, p. 258) mostra que “desde tempos antigos, as
leitoras descobriram maneiras de subverter o material que a sociedade
colocava em suas prateleiras”. O autor relata que os livros eram separados por grupos ou por gêneros específicos de leitores. Narra inclusive
uma experiência pessoal: certa vez comprou em Buenos Aires um livro
de capa rosa e, diante da expressão de censura no rosto da balconista,
teve que rapidamente explicar que se tratava de um presente, para evitar
constrangimentos e não ser rotulado de afeminado. A lógica pareceria
consistir em predeterminar e direcionar cada tipo de livro a um tipo de
leitor, exercendo desta forma uma espécie de controle sobre o que a população lê.
O Renascentismo, surgido na Itália a partir do século XIV, chegou
pregando oposição ao dogmatismo religioso (divino e sobrenatural)
que a Igreja desejava manter. A famosa obra de Umberto Eco (1983), O
nome da Rosa, retrata a tentativa da Igreja de manter a exclusividade sobre o saber, paralisando o conhecimento armazenado nos livros sob sua
proteção, leia-se domínio ou poder. O conhecimento era então considerado perigoso. A obra de Eco, transformada em filme3 em 1986, mostrou
o limite a que pôde chegar a Igreja para não perder seu privilégio letrado,
mostrando como foram envenenadas as páginas de determinados livros
que poderiam encantar os leitores, causando ao serem manuseadas com
os dedos umedecidos na língua, a literal morte do leitor antes que pudesse relatar o que leu. O ideário do período renascentista que se desenvolveu na Europa entre 1300 e 1650, época em que se desenrola o
filme (1327), vinha de encontro à Igreja, exatamente porque o Renascentismo pregava a valorização do homem e da natureza, em oposição
ao divino e sobrenatural.
Porém para Barbosa (1994), Gutenberg acabou sendo o ponto de
partida para que os ritos sacros orais fossem substituídos pelo ritual da
3 Dirigido por Jean-Jacques Annaud, tendo como protagonista o ator Sean Connery, a adaptação do romance homônimo do escritor, filósofo, linguista e crítico literário italiano Umberto Eco conquistou o público. A
obra foi o primeiro romance de Eco (1980), traduzida em 44 línguas.
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letra impressa, favorecendo assim que a doutrina religiosa fosse veiculada
para um número bem maior de indivíduos. Foi Lutero4 (1483-1546) quem
elegeu o livro como companheiro inseparável do homem, minimizando o
uso da oratória. Manguel (1997) relata que, entre os itens da Reforma de
Lutero, estava que a salvação da alma dependia da capacidade individual
de ler a palavra de Deus por si só, autonomamente. Desta forma Lutero
foi um grande incentivador da leitura. Esta sua escolha ameaçou abalar o
domínio da Igreja sobre o saber, o seu poderio; a consequência não se fez
esperar: foi a excomunhão de Lutero (03/01/1521). Foi o clímax do conflito entre as duas visões da religião cristã, que acabou resultando numa
das mais importantes cisões do cristianismo.
Lutero foi uma figura importantíssima na história não apenas das
religiões, mas de toda a modernidade. Colaborou substancialmente para
a quebra do monopólio espiritual da Igreja Católica na Europa, implodindo sua infalibilidade como instituição. Não é difícil perceber o quanto a
posição de Lutero representou uma espécie de divisor de águas no que se
refere ao papel educativo da Igreja, e muitos questionamentos e desenvolvimentos teóricos resultaram desta divisão dentro da Igreja Católica Apostólica Romana, com a criação do Protestantismo por Martinho Lutero. No
século XVI, o catolicismo era uma religião de pompa, luxo e ociosidade.
Naquele período a Igreja encontrava-se em decadência: preocupava-se
mais com as questões políticas e econômicas do que com as questões propriamente religiosas. Surgiram críticas em livros como Elogio da loucura,
de Erasmo de Rotterdam (1509), que se transformaram na base para que
Lutero efetivasse o rompimento com a Igreja Católica.
Estabelecendo uma transformação na relação do homem com
Deus, Lutero contribuiu para a obrigatoriedade da escola e para a alfabetização do povo, para que todos pudessem ler as Sagradas Escrituras. Numa
reação contra o avanço do protestantismo, em 03 de julho de 1551 – uma
comissão de Bispos, nomeada pelo Concílio de Trento, criou o Index Librorum Prohibitorum, que em latim quer dizer Índice dos Livros Proibi4 Pedro (1997) relata que Martinho Lutero era um monge agostiniano. Seu rompimento com a Igreja Católica
deu-se em razão da venda de indulgências (consistia no perdão total ou parcial dos pecados). Para concluir a Basílica de São Pedro, o papa Leão X (1513-1521) teria determinado a venda de indulgências para toda a cristandade.
Lutero protestou violentamente contra tal comércio. O papa Leão X exigiu uma retratação, sempre recusada. Lutero foi excomungado e reagiu imediatamente, queimando em público o documento de excomunhão.
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dos. Tratava-se de uma lista de publicações proibidas pela Igreja Católica:
Livros considerados perniciosos que deviam ser afastados do povo para
prevenir a corrupção dos fiéis.
As informações a respeito desta lista de obras condenadas divergem
quanto à data de publicação e outras caracterizações. O índice foi abolido em 1966 pelo Papa Paulo VI, sendo anunciado formalmente em 15
de junho de 1966 no jornal do Vaticano, L´Osservatores Romano, através
de um documento chamado Notificação escrito no dia anterior. Segundo
Novinsky (2002), em 1790 saiu o último Índice de Livros Proibidos pela
Inquisição, que manteve seu efeito de censura em algumas localidades até
o século XX.
A fogueira pública de livros e material impresso considerado impróprio para leitura, seja ela uma queima concreta ou simbólica, é um fato
recorrente na história universal das repressões políticas. A destruição de
livros sempre representou uma forma de manifestação de poder e opressão. No mesmo sentido Chartier pondera:
[...] A fogueira em que são lançados os maus livros constitui a figura invertida da
biblioteca encarregada de proteger e preservar o patrimônio textual. Dos autosde-fé da Inquisição às obras queimadas pelos nazistas, a pulsão de destruição
obcecou por muito tempo os poderes opressores que, destruindo livros, e com
freqüência, seus autores, pensavam erradicar para sempre suas idéias. A força do
escrito é de ter tornado tragicamente derrisória esta negra vontade (CHARTIER,
1999, p. 23, grifo nosso).
No Brasil não foi diferente. Algranti (2002) considera que, no primeiro momento, a censura do período colonial durou três séculos. Teria
havido uma dupla censura: a partir de Lisboa, onde se fiscalizava a remessa de livros que vinha para a colônia; e na chegada ao Brasil, onde os livros
que vinham de outros países eram checados – e, mesmo se vinham de Portugal, eram conferidos pela segunda vez.
No artigo intitulado A censura no Brasil do século XVI ao século
XIX, Martino e Sapaterra (2006) narram que foi proibida em Portugal e
suas colônias, como o Brasil, uma longa lista de obras das seguintes categorias: os livros de autores ateus; os de autores protestantes que combatessem o poder espiritual do Papa e dos bispos ou atacassem os artigos
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da fé católica; os que negassem a obediência ao Papa; os livros de feitiçaria, quiromancia, magia e astrologia; os que, apoiados num falso fervor
religioso, levassem à superstição ou fanatismo; os livros obscenos; os
infamatórios; os que contivessem sugestões de que se siga perturbação
do estado político e civil e desprezando os justos e prudentes ditames
dos direitos divinos.
Segundo Schwarcz (2002) a lista era imensa e o modelo vinha, de
fora. Até o ano de 1768, as relações dos livros proibidos em Portugal eram
frequentemente cópias daquelas fixados em Sorbonne, Louvain, Roma e
Espanha. Havia, porém, certas particularidades: a inquisição portuguesa
proibiu mais obras doutrinárias e foi mais tolerante com as literárias, apesar de permitir a interdição da leitura da Bíblia em português. Schwarcz
relata ainda que, retidos, os livros não saíam totalmente de circulação, permaneciam acessíveis aos inquisidores, que podiam apreciar as obras e até
conceder licença a outras pessoas – teólogos, peritos e doutores – ligados
ao ofício.
No tempo da colônia, no Brasil, explica Werthein (2008), o governo proibia a leitura e a difusão do conhecimento, com o objetivo de formar cidadãos apenas nas elites. Segundo Abreu (2007), até 1808 não se
permitia imprimir5 livros na colônia e, posteriormente a esta data, apenas
a impressão régia poderia fazê-lo no Rio de Janeiro, o que foi um obstáculo intransponível, à época, para o desenvolvimento cultural. Entretanto
esta dificuldade era contornada por meio de encomendas de livros feitas
à Europa. Embora permitida, esta prática era fortemente controlada por
organismos censores instalados em Portugal. Para Abreu (2007), este rigoroso controle sobre livros e papéis, embora nefasto para a propagação
das ideias, propiciou o registro minucioso da entrada de obras no Brasil,
permitindo o conhecimento do que aqui se lia no período colonial – ao
menos no campo da legalidade.
A censura exercida no mundo luso-brasileiro durante o Brasil colonial teve um duplo caráter: político e religioso. No campo político, tanto
em Portugal como no Brasil Colônia, eram efetuadas devassas às obras
5 A instalação tardia de universidades no Brasil, se comparada com os demais países da América Latina, colônias espanholas confirma o quanto a coroa portuguesa travou o desenvolvimento intelectual de sua colônia.
Sobre a temática ver Machado e Mendes (2009).
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literárias, censurando qualquer tipo de texto que pudesse levantar suspeita de conspiração contra o Império. Até 1808, foi proibida a impressão
de livros na Colônia. A instalação tardia da imprensa no Brasil retardou o
contato com os impressos, reduzindo assim o público leitor. Para Neves
(2002, p. 128) “o rigor da censura não constituiu um obstáculo intransponível para a circulação dos livros proibidos no mundo luso-brasileiro.
Muitas vezes, a simples interdição de um livro pela censura despertava a
curiosidade do público”, sendo desta forma muitas vezes positiva.
O terceiro momento forte da censura aconteceu no período entre
1964-1985 quando o Brasil viveu o período do regime militar, que visava uma uniformidade ideológica e utilizou-se da censura para impedir a
propagação de ideias revolucionárias que poderiam pôr em risco a organização do poder. Neste sentido, livros e obras intelectuais em geral foram
aprendidos e transformaram-se em provas materiais de subversão ao regime político. Carneiro afirma que
Até os anos de 1980, o intelectual ativo - aquele que escrevia e divulgava suas
idéias “revolucionárias” - sempre foi tratado pelas instituições vigilantes como
um “herege”, um “homem maldito”, um “bandido”. Por ultrapassar os limites do
permitido, foi repreendido, julgado, punido. Os livros apreendidos como “armas
do crime” transformaram-se em prova material de trama articulada contra o regime que, segundo os homens do poder, poderiam desequilibrar a ordem imposta
(CARNEIRO, 2002, p. 21).
Estes episódios envolveram os livros em uma atmosfera de desconfiança, deixando a intimidade com livros sob suspeita como algo pouco
recomendável, ou perigoso. Desta forma, esquemas de privilégio ficaram
garantidos pela ignorância e o conformismo geral. À medida que a leitura
era interditada aos subalternos, ou tinha seu acesso muito controlado, ficava mais fácil a perpetuação do poder. O medo dos poderosos com relação
à leitura associa-se ao fato de que ela é uma habilidade que não pode ser
desaprendida. Logo, o recurso disponível era limitar o seu alcance.
A ditadura militar foi, entre tantos outros fatos marcantes da história do Brasil, o que mais manchou a biografia de nosso país, porque este
regime político limitava a livre manifestação do pensamento. O panorama
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de censura, que era crítico, veio a se agravar no dia 13 de dezembro de
1968, quando o governo de Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5
(conhecido como o AI-5). O decreto, que vigoraria por prazo indefinido,
dava ao presidente o poder de cassar políticos, fechar o Congresso, suspender habeas corpus6, impor censura prévia à imprensa, aposentar compulsoriamente professores universitários e encarcerar dissidentes.
No período em que esteve em vigor o AI-5, mais precisamente de
1968 a 1978, a censura federativa coibiu mais de 600 filmes e 500 peças
teatrais, inúmeras músicas, a editoração de vários livros e incluiu na formação das crianças assuntos considerados pelo regime ditatorial como
essenciais..
Ao entrarmos no universo do controle da cultura, nos deparamos
com a preocupação com a circulação das ideias revolucionárias. A censura
tinha como objetivo sufocar lutas e vozes de contestação, usando como
artifício o medo, mantendo os subalternos alienados e conformados. Se,
para algumas pessoas, ela representou a violação do direito de livre expressão, para outras, representou um instrumento necessário à defesa dos
princípios morais. Houve casos em que pessoas denunciavam a existência
de livros que poderiam desequilibrar a ordem imposta.
Algum tipo de limite que pode ser aproximado da censura existiu,
de alguma forma, em todas as comunidades humanas, presentes ou passadas e em qualquer parte do mundo, como forma de pressão para manter
certo equilíbrio entre as forças, interesses e poderes sociais. Exerce-se a
censura numa tentativa de filtrar a realidade buscando o limite entre o lícito e ilícito, o que se considera imoral, crime, pecado, heresia, subversão7
ou qualquer outro ato susceptível de supressão e/ou punição exemplar.
Porém a censura e os dispositivos repressivos se tornam inaceitáveis
em estados democráticos; e passaram a ser combatidos pelo movimento
dos Diretos Humanos durante o século XX. Carneiro mostra o importante papel do livro, da leitura e daqueles que os valorizam como centro da
cultura e como fundamentais para a humanidade, quando relata que...
6 O termo habeas corpus, locução latina, significa “que tenhas teu corpo”. Dispositivo legal que garante e
protege a liberdade do cidadão (Michaelis, 2008).
7 Foi neste contexto a criação do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS – 19241983), com a função de assegurar e disciplinar a ordem no país, assumindo importante papel no processo de
domesticação das massas, como mostra Carneiro (1999).
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Verdadeiros atos de rebeldia por parte “dos homens do livro” encontram-se registrados nos documentos policiais, o que nos leva a concluir que os intelectuais
livreiros, editores, jornalistas e tipógrafos não foram agentes passivos diante do
autoritarismo que marcou as várias etapas da História do Brasil Contemporâneo. Inúmeras foram às táticas (algumas criativas e fantásticas) acionadas pelos
grupos revolucionários para fazer circular as idéias proibidas. Nos anos 40, por
exemplo, um dos expedientes empregados para camuflar a distribuição de folhetos “subversivos” era bastante curioso. O encarregado da distribuição disfarçavase de vendedor de modinhas populares e saía a comercializá-la pelos bairros onde
o controle policial se apresentava mais intenso. De porta em porta, cantarolava
trechos de sambas e marchinhas, procurando não despertar suspeita. Se alguém o
chamava para comprar sua mercadoria, aproveitava a oportunidade para introduzir um folhetim “subversivo” dentro do ingênuo livrinho de canções. Surpresos,
alguns os jogavam fora; outros os guardavam para ler em momento oportuno
(CARNEIRO, 1999, p. 443).
O período de regime militar gerou grande descontentamento popular, o que conduziu a um lento processo de “abertura política”. O Brasil
começou então a gestar sua saída gradativa do regime ditatorial a que estava sujeito desde 1964, iniciando-se uma abertura lenta e gradual rumo
à democracia. Neste período começaram a ressurgir vozes que foram abafadas por aquele regime, despertando para um novo momento. Dentre os
fatos que representaram passos importantes para a conquista da democracia brasileira ao fim da ditadura, associados diretamente ao livro e à leitura
estão: a volta de Paulo Freire do exílio; a realização do 1º Congresso de
Leitura do Brasil (1978); o processo de democratização da escola pública,
então chamada de 1º e 2º grau; o aumento do número de vagas nas universidades (acesso de pessoas menos favorecidas); o aumento do número de
publicações de novos escritores de literatura infantil e juvenil.
O fim do regime militar aconteceu em 1985, com a eleição indireta
que elegeu Tancredo Neves para Presidente da República – com seu falecimento antes mesmo da posse, acabou substituindo-o José Sarney. A
democracia foi restabelecida e a liberdade foi restituída após décadas de
despotismo. A censura chegou ao fim, nasceram novos partidos políticos
e finalmente alcançamos as eleições presidenciais diretas. O panorama
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histórico apresentado retrata a passagem de tempos de opressão para um
período de manifestação de ideias, que estavam em ebulição durante a ditadura, mas proibidas de vir à tona, e de sede por compensar os anos de
estagnação. Como afirma Silva (2005, p. 12), é o momento “de recuperar
o tempo perdido e colocar o valor do livro e da leitura no seu devido lugar”, na posição de destaque que merecem ter.
Até aqui falamos de uma época histórica que não se caracterizava pelos princípios democráticos. E a noção de cidadania é própria de regimes
democráticos. Para Werthein (2008), “não há como falar em cidadãos se
não houver educação que forme o caráter, que molde o espírito e molde o
jovem para a aventura da vida adulta, com todos os desafios, problemas e incertezas.” À medida que cada indivíduo possa se desenvolver plenamente no
mundo e tenha seus direitos civis, políticos e sociais garantidos, poder-se-á
dizer que a utopia de ter um mundo formado por cidadãos será alcançada.
Séculos se passaram desde a publicação do Index, entretanto as barreiras ao livro se manifestam ainda, embora de maneiras menos visíveis.
Ao lermos a advertência que segue, feita por Silva, vamos entendendo melhor as resistências e barreiras que ao longo da história quem deteve algum
tipo de poder sobre os elementos da cultura construiu entre o povo e os
livros e a leitura. Afirma Silva que:
A criticidade, enquanto emblema da cidadania e valor atitudinal é trabalhada
ideo­logicamente por aqueles que detêm o poder econômico e político. Isto porque a conservação e reprodução dos esquemas de privilégio dependem, fundamentalmente, da ignorância e do conformismo, aqui tomadas como forma de escravização da consciência. Daí que a presença de sujeitos críticos e, por extensão,
de leitores críticos seja incômoda, seja tomada como um risco aos detentores do
poder [...] (SILVA, 2009, p.15).
Manguel converge para esta ideia ao apontar para a necessidade de
aqueles que estão no poder usarem mecanismos que permitam perpetuarem-se nele. Assim os ditadores sabiam como domesticar as massas:
Como séculos de ditadores souberam, uma multidão analfabeta é mais fácil de
dominar; uma vez que a arte da leitura não pode ser desaprendida, o segundo
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melhor recurso é limitar o seu alcance. Portanto, como nenhuma outra criação
humana, os livros têm sido a maldição das ditaduras. Os poderes absolutos exigem que todas as leituras sejam leituras oficiais; em vez de uma biblioteca inteira
de opiniões, a palavra do governante deve bastar (MANGUEL, 1997, p. 315).
Estas rápidas passagens mostram para quem a difusão dos livros e a
ampliação do acesso à leitura constitui uma ameaça e permitem entender
um pouco mais a afirmação de Machado com qual começamos este artigo. Analisar a influência da Igreja na educação escolar, no que se refere à
leitura, ao livro e à cultura revela interesses de manter o povo de certa forma escravizado, obediente, dócil, o que pode ser ensinado desde criança.
Nesta esteira, Garcia (1995, p. 90) diz que “o acesso a leitura sempre foi
ambíguo: democratização/dominação, libertação/controle. [...] A leitura sempre foi interdita aos subalternos, e, mesmo quando a eles foi dado
acesso, o foi sob controle”.
A história está, pois, rodeada de injustiças e práticas contrárias à
democracia e à cidadania, razão pela qual a parte prejudicada das sociedades precisa ainda de muitas lutas e conquistas e a educação é central nesta
caminhada. De fato, a leitura é uma característica da sociedade moderna.
Saber ler e escrever são condições básicas de participação na vida econômica, cultural e política. Aos poucos, a leitura vai aparecendo em cada vez
mais sociedades como um direito e uma condição da cidadania, para quem
pretenda ocupar um lugar de cidadão nas sociedades letradas. E é a escola,
como mostra Silva (2009), o espaço privilegiado para o desenvolvimento
da prática da leitura e o amadurecimento contínuo do leitor. É nela que
se pode analisar, discutir e refletir sobre os apelos fáceis do consumo e do
comportamento induzido. E ler o texto, ler o mundo nos textos.
É nesse contexto de luta contra as desigualdades sociais, que Foucambert (1994) concebeu o que ele chamou de “políticas de leiturização”.
Para esse autor a leitura excede o espaço da escola. Pensar a educação para
além dos muros da escola requer um amplo processo de reflexão e de compartilhamento de responsabilidades. Tais concepções, em relação ao ensino
de leitura, vão encontrar sintonia tanto em Foucambert (1994) quanto em
Lerner (2002), no sentido de que é necessário desescolarizar a leitura e a
escrita, o que significa conceber que, tanto em relação às crianças quanto aos
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adultos, todas as instâncias educativas devem ter o cuidado de formar leitores sob o ângulo da técnica e do manuseio do livro e demais textos escritos.
Os textos escritos, jornais, livros, revistas, enfim, todas as formas de
texto sob as quais se apresenta a escrita, são ferramentas que funcionam
com objetivos e características determinados e, para usá-los, é preciso certa iniciação a seu funcionamento. Ou seja, é necessário o ensino de estratégias de leitura para serem utilizadas como ferramentas no exercício de
cidadania. Como a leitura é um ato que se pratica socialmente, em âmbitos
educativos diversos e em diferentes contextos, é utopia imaginar que haja
receitas padronizadas que se apliquem a todas as exigências de leitura e
que somente a escola seja determinante de tal processo. Para Foucambert,
a ideia de desescolarização da leitura significa a formação permanente do
leitor a ser assumida por todas as instâncias educativas, já que a leitura não
é um processo que se conclui na escola. Para ele,
[...] Aprende-se a ler em qualquer idade e continua-se sempre aprendendo. A
escola é um momento da formação do leitor. Mas se essa formação for abandonada mais tarde, ou seja, se as instâncias educativas não se dedicarem sempre a ela,
teremos pessoas que, por motivos sociais e culturais, continuarão sendo leitores
e progredirão em suas leituras, e outras que retrocederão e abandonarão qualquer
processo de leitura (FOUCAMBERT, 1994, p. 17).
É decorrente desta ideia que Foucambert propõe os conceitos de
desescolarização da leitura e de leiturização da sociedade. As condições
de produção do analfabetismo e do analfabeto, entre outros fatores, têm
suas causas em fatores sociais, como as condições de trabalho que, pautadas historicamente em um modelo taylorista8, não requisitavam de seus
trabalhadores conhecimentos de leitura e escrita, não eram necessários,
bastava à força de trabalho. Álvaro Vieira Pinto (2007), comungando com
Foucambert, reitera que “é o trabalho que alfabetiza ou analfabetiza o homem, segundo exija dele o conhecimento das letras, ou seja, de tal espécie
que o dispense de conhecê-las”.
8 O Taylorismo deve seu nome ao engenheiro e economista norte-americano Frederck Winslow Taylor
(1856-1915), considerado o iniciador da organização científica do trabalho industrial que previa o máximo
aproveitamento das ferramentas e aparelhagem, a especialização de tarefas e a supressão de gestos inúteis (ROBERT, 1990).
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A leitura é, portanto, o produto de um status social que se constrói
em determinadas condições sociais, o que significa dizer que a leitura,
além de ser uma questão de técnica, é também de status, de status do leitor.
Modificar esta realidade é urgente, pois estão em jogo não apenas as
condições favoráveis à sobrevivência nas sociedades modernas, mas também à construção da real democracia. Tais transformações operam-se legitimamente, não de forma solitária, mas no conjunto das relações sociais,
tanto no sistema produtivo como na vida das coletividades, nos meios de
informação, na participação política, no sistema educativo e na família. Ao
considerar essas instâncias como educativas, o pesquisador francês considera que, quando a consciência dos problemas se impõe, as soluções se
espelham como possibilidades concretas.
Foucambert (1994) considera, por exemplo, que a escola continua
perseguindo um ideal de alfabetização formulado na época da Revolução
Industrial9, cujo propósito era fornecer aos trabalhadores a possibilidade
de dominar elementos básicos de leitura e escrita para poder operar os
novos procedimentos da maquinaria industrial, isto é, com vistas às exigências do mundo do trabalho que se desenvolvia no meio urbano e se
modernizava. Tais exigências se restringiam ao automatismo e à repetição
das atividades, que eram, evidentemente, muito diferentes das atividades
a que a população estava acostumada no meio rural. Por isto, exigia-se instrução e escolarização, mas sem necessidade de muita reflexão, implicações e consequências. O filme Tempos modernos (1936), de Charles Chaplin (1889-1977), realiza uma paródia magistral daquelas mudanças, que
continuaram se desdobrando com novos elementos até hoje.
Barbosa (1994) corrobora o raciocínio de Foucambert: se até o
século XVIII, a leitura e a escrita eram no mundo ocidental privilégios
de uma elite, esta realidade começou a mudar em função de se tornar socialmente necessário seu uso por maiores parcelas da população para fins
produtivos (em termos econômicos), à medida que a produção se tornava
mais sofisticada em termos de tecnologia. A leitura passou a ser uma característica indissociável da sociedade moderna. E, aos poucos, a leitura
foi aparecendo como um direito e uma exigência que se fazia a quem quer
9 A revolução industrial teve início na Inglaterra em fins do século XVIII e caracterizou-se pela substituição
das ferramentas manuais pelas máquinas, da energia humana pela energia motriz e do modo de produção doméstico pelo sistema fabril. (PEDRO, 1997).
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que pretenda ocupar um lugar de cidadão na sociedade letrada. “Ler é
quase como respirar, é nossa função essencial”, diz Manguel (1997, p. 20).
Muitos estudiosos da leitura são convergentes em considerar o domínio amplo da leitura absolutamente indispensável ao funcionamento de
uma sociedade democrática. Foucambert considera, por exemplo, que...
Não existe um só campo em que a verdadeira prática da democracia não passe pelo acesso do maior número de pessoas à escrita. Não há partilha possível
do poder sem a partilha do acesso à escrita. [...] A desigualdade na utilização da
escrita constitui o ponto de estrangulamento de toda vida democrática (FOUCAMBERT, 1994, p. 25).
Para consolidar tal sociedade, é preciso desenvolver o potencial que
há em cada indivíduo. A escola pública tem, neste sentido, uma função
muito importante. Primeiro porque é espaço em que podem conviver
crianças e jovens de níveis socioeconômicos diferentes, com costumes e
visões de mundo diferentes. É também espaço público para a vivência democrática com a diferença. E, finalmente, porque é a escola a instituição
criada para apresentar às crianças e aos jovens os conhecimentos acumulados e sistematizados – democratizando, assim, o acesso ao saber produzido por meio das capacidades discursivas.
Foucambert (1994, p. 33) considera que “o problema totalmente
novo, colocado para todos, é inventar as condições e abordagens de uma
política de ‘leiturização’ que responda às necessidades individuais e sociais de nosso tempo”. Assim, o autor postula uma proposta alternativa a
fim de melhorar as condições de aprendizado que existem atualmente,
para a qual é necessária uma inversão dos métodos que até então vêm sendo utilizados para formar leitores, já que têm se mostrado pouco eficazes.
Propõe, então, a implantação de uma política de leiturização, que visa a
formar leitores para a vida toda.
Barbosa, na apresentação do livro A leitura em questão (1994), de
autoria de Foucambert, qualifica as mudanças preconizadas por este autor
como “destruição criativa”, pois considera que ele desvenda e questiona
radicalmente os pilares que sustentam a concepção e práticas de leitura
herdadas pela tradição escolar. Assim, desenreda labirintos de uma ins60
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tituição criada para disfarçar desigualdades culturais que são geradas por
um sistema que é ele próprio baseado em desigualdades sociais.
O texto da Constituição brasileira (1988) insiste na importância da
construção da cidadania, em se tratando de criar um país mais humano,
onde se garantam a todos oportunidades de crescimento e desenvolvimento. A cidadania implica um ser de direitos individuais, sociais e políticos. E é neste ponto que se pode situar a importância estratégica da leitura
(livro e cultura) na interseção dessas instâncias, porque ela seria ferramenta favorecedora da cidadania, que começaria com o direito à educação.
E porque a inserção na escola poderia levar a conquistar as capacidades para o exercício do direito à participação na sociedade, o que necessita de uma consciência esclarecida a respeito dos conflitos, contradições,
relações de dominação e discriminações. Estes problemas são também
provocadores quando se atinge certa consciência do próprio lugar na sociedade, então a capacidade leitora pode favorecer ações afirmativas, ou
proposições de projetos transformadores etc., em qualquer idade. Desta
forma a leitura é arma poderosa que pode favorecer a superação de graves
problemas da sociedade que, afinal, tem a sua soberania associada ao nível
de cidadania de sua população.
Finalizamos com a tomada de consciência de que esta atividade,
que parece tão individual, uma espécie de habilidade ou capacidade psicológica, a leitura, está enredada na trama social e, também, fortemente
enraizada nos problemas da história da humanidade. Portanto a formação
dos pequenos leitores e o acesso dos adultos à leitura constitui-se em um
problema muito mais complexo do que normalmente pensamos no contexto escolarizado. A leitura atravessa todos os espaços sociais e institucionais, sendo a escola um entre eles. O fato da maioria das pesquisas sobre
leitura se referirem a professores ou alunos, à alfabetização, ou à leitura
dentro da escola deixa a temática refém dos limites de uma cultura escolar,
que ainda não situa no centro da educação o cultivo do livro e da leitura10, nem seu usufruto em larga escala, mas que, na melhor das hipóteses,
oferece um acesso mínimo a ele e se satisfaz com uma iniciação precária
à leitura.
10 Nem da biblioteca, como poderá o leitor conferir na leitura do quarto capítulo desta coletânea, de autoria
de Danielle Wolff de Camargo Escolas com ou sem bibliotecas? Lugar e papel da biblioteca na educação básica
brasileira.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Referências
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TOC TOC TOC! Eu quero entrar 63
EFEITO BUMERANGUE: CONSIDERAÇÕES ACERCA
DAS CONDIÇÕES DE CONSTRUÇÃO DA AUTORIA1
Alessandra Rodrigues
Primeiras palavras
O
foco das análises aqui apresentadas situa-se na investigação sobre os efeitos do processo de escrever e publicar. O trabalho de
campo foi estruturado em onze encontros entre pesquisadora e
sujeitos de pesquisa (25 jovens, de 15 a 17 anos, integrantes de um programa social do Governo Federal: Agente Jovem) destinados a produzir
textos; e dois momentos de exposição pública dos escritos e de seus autores. A partir das constatações feitas no campo empírico e embasados
nas conceituações de Barthes (2004), Bakhtin (2000), Foucault (1992),
Orlandi (1996) e Ricoeur (2006), formulamos, e discutimos aqui cinco
condições que entendemos serem essenciais à construção da autoria: escolha/fruição, alteridade, exposição, responsabilidade, reconhecimento.
O ‘quem’ e o ‘como’: dos sujeitos e da pesquisa
A pesquisa-ação cujos resultados são parcialmente apresentados
neste artigo, com foco nas condições de autoria, teve duração de sete meses e levou ao desenvolvimento de atividades de escrita e ‘publicização’2
de textos com um grupo de vinte e cinco adolescentes do Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano3, de Lages/SC.
1 Texto originalmente publicado nos Anais do VII Congresso Internacional da Abralin (Associação Brasileira de Linguística), em fevereiro de 2011, sob o título Efeito Bumerangue: o escrito que se torna público e as
condições de construção de autoria.
2 Este termo, apesar de não dicionarizado, foi escolhido para definir o processo de tornar públicos os escritos, seja em suportes tradicionais como os meios de comunicação, ou outros, alternativos, como as capas
de bloquinhos de anotações, por exemplo, especialmente pensados para os escritos dos autores/sujeitos desta
pesquisa. Importante ressaltar que, mesmo não constando como verbete da Língua Portuguesa, o neologismo
tem sido amplamente utilizado em pesquisas científicas e estudos acadêmicos dedicados à Comunicação.
3 Criado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o Programa (hoje rebatizado
“Pró-jovem”) organiza-se a partir de três eixos fundamentais: saúde, meio ambiente e cidadania; e conta com
recursos federais e municipais para sua realização, em sistema de cofinanciamento. Trata-se de uma proposta
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Foram realizados onze encontros entre os adolescentes e a pesquisadora, dos quais nove destinaram-se à produção de textos escritos
e dois à publicização destes textos (o primeiro momento: uma sessão
de autógrafos de pequenos blocos impressos com os textos produzidos,
realizada na Universidade do Planalto Catarinense; e o segundo momento: a publicação de textos em banners e divulgação destes em espaço
público).
Nossa intenção era criar circunstâncias nas quais os jovens, que pouco utilizavam
a escrita, não só pudessem experimentá-la de forma mais plena (para além dos
objetivos meramente funcionais), mas também se responsabilizassem por seus
textos diante do público – atitudes inerentes à condição de autor.
As atividades de escrita promovidas nos encontros com os jovens
buscaram, quase todas, a recuperação das histórias e o registro do cotidiano dos adolescentes. Alicerçamos essa escolha no movimento crescente
de atenção que se vem prestando nas ciências sociais, humanas e linguísticas ao cotidiano e às representações e significados das práticas sociais em
contextos específicos e, de modo especial, às práticas culturais e àquelas
relacionadas com a comunicação e a linguagem (BASTOS, 2002). A esse
respeito, ainda referenciamos Possenti:
[...] não se pode imaginar que alguém seja autor, se seus textos não se inscreverem em discursos, ou seja, em domínios de ‘memória’ que façam sentido. Por
fim, não vale a pena tratar de autoria sem enfrentar o desafio de imaginar verdadeira a hipótese de uma certa pessoalidade, de alguma singularidade (POSSENTI, 2009, p. 95).
Nossos sujeitos são adolescentes, meninos e meninas na fase da
vida que mais propicia descobertas, questionamentos, ímpetos de mudar o mundo. Entretanto talvez não fosse exatamente esta a realidade
dos jovens que escolhemos. A maioria teve uma escolaridade acidentade ocupação para jovens de 15 a 17 anos em situação de risco e vulnerabilidade social, que não se configure
trabalho, mas que possibilite sua permanência no sistema de ensino e proporcione experiências práticas que o
preparem para futuras inserções no mundo do trabalho.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
da, muitos foram reprovados, evadiram da escola e retornaram a fim de
atender uma das condições para participar do Programa Agente Jovem,
voltado, por definição, à inclusão de jovens considerados à margem de
vários processos sociais.
Tal escolha, ressaltamos, justifica-se especialmente por duas posturas: a primeira, de ordem social, entende que esses adolescentes marginalizados têm muita coisa a dizer e testemunhar, mas suas vozes são
silenciadas e frequentemente menosprezadas socialmente. Ao trazê-los
para o centro de uma pesquisa, entendemos estar trilhando o caminho
que se faz na contramão das construções sociais vivenciadas hoje, que
transformam as diferenças e assimetrias em desigualdades que reforçam
a exclusão. A segunda, de ordem, digamos, linguística, está alicerçada na
ideia de que a condição de autor pode ser construída, se dá processualmente, não é dádiva.
Vale considerar, ainda, que não estamos tratando exclusivamente
do autor a que se refere Foucault (1992), que é reconhecido pela obra
a ele vinculada ou pela fundação de uma discursividade (apesar de referenciarmos o autor na construção de nosso argumento sobre uma das
condições de autoria apresentadas neste texto). Como refere Possenti
(2009, p. 94), o tratamento foucaultiano dado à autoria deixa aberta
a sua realização em “outros espaços que não sejam os de uma obra ou
de uma discursividade”. Os espaços escolares, por exemplo, ou aqueles
de educação não-formal como o em que desenvolvemos esta pesquisa.
Nossa ideia de autor visa, assim, ao sujeito real, não idealizado, fruto e
construtor de realidades, não necessariamente fundador de discursividades (como Freud ou Marx) nem criador de obras clássicas. Mas, certamente, capaz de produzir discursos carregados de sentido, de vida, de
história e, como veremos, de autoria.
Feitas essas breves diferenciações, entendemos que o processo desencadeado durante a pesquisa (escrita-publicação-escrita) causou, nos
jovens, o que chamamos neste texto de ‘efeito bumerangue’. Lançado ao
espaço público, o escrito – antes privado, particular e até mesmo secreto
– ‘volta’ de diversas formas para o escritor e provoca nele mudanças essenciais à sua própria constituição enquanto sujeito-autor.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
De algumas constatações advindas desse ‘efeito bumerangue’ emergiram categorias, que passamos a apresentar neste artigo e entendemos
como condições essenciais à construção da autoria.
‘Escrita-escolha’: a fruição do escrever
Diversos são os estudos e dados estatísticos que vêm denunciando
um dito empobrecimento da leitura e da escrita na escola, em grande parte
resultante de práticas orientadas pela reprodução de modelos, pela aplicação de fórmulas mágicas para o escrever bem e pela ausência de interlocutores reais que não apenas o professor.
A esse respeito, é interessante a leitura de Leyla Perrone-Moisés, em
texto intitulado ‘Lição de casa’4, sobre as considerações de Barthes acerca
do ensino da escrita. A autora aponta dois caminhos “de um ensino escritural: aberração, se ele for entendido como a transmissão de um know-how,
pois o know-how da arte é irrepetível; mas possibilidade, se entender esse
ensino como a aprendizagem de uma postura” (2004, p. 52).
Nesta direção, relativamente ao ensino da escrita, a escola tem se
empenhado muito mais em ensinar um como fazer do que em construir
uma postura em relação à escrita. Destas práticas decorre uma espécie de
silenciamento do sujeito que escreve, uma vez que seu escrito tem pouco
significado subjetivo, social, interacional e real.
Os jovens com quem trabalhamos refletiram esse histórico escolar
já em nosso primeiro encontro, por meio de frases como a de Patrícia5:
“Não gosto de escrever na escola. As professoras são muito chatas e só ficam
corrigindo a gente”.
Trabalhada por esse viés da busca do modelo, a escrita deixa de ser
uma ferramenta poderosa de autoconhecimento, inclusão e reconhecimento social – especialmente para as classes menos favorecidas – para ser
mais um instrumento de domesticação.
Claro que à escola cabe a formação do sujeito no que concerne à
competência escrita e à aquisição da norma padrão da língua, mas partimos, nesta pesquisa, de uma premissa diferente daquela que vem domi4
5
68
Trata-se do posfácio acrescentado pela autora ao traduzir a obra Aula, de Roland Barthes (1996).
Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos sujeitos.
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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nando as práticas pedagógicas relacionadas à escrita nas escolas. Entendemos que, antes de ensinar regras, habilidades, conteúdos específicos,
podemos dar asas à imaginação de nossos alunos, ajudando-os a construir
autoconfiança e a acreditar na sua capacidade de escrever suas histórias,
sem que isso sirva tão somente para o apontamento de equívocos gramaticais ou estruturais.
Só daí, entendemos, poderá advir um deleite, uma descoberta da
possibilidade narrativa que todo ser humano, por ser falante, tem; mas nem
sempre encontra ocasião de experimentar ‘na folha’ ou ‘na tela’. É necessário, a priori, reconhecer o valor do sujeito, ouvir sua voz, ler suas palavras.
Como explica Barthes (2004, p. 13), “a identidade formal do escritor só se
estabelece verdadeiramente fora da instalação das normas da gramática e
das constantes do estilo [...]”. Afirmação que as ideias de Possenti (2009,
p. 110), de certa maneira, parecem corroborar: “As verdadeiras marcas de
autoria são da ordem do discurso, não do texto ou da gramática”.
A fruição, o prazer, a escolha pela escrita são as primeiras condições
para a constituição do sujeito-autor e estão ligadas à elaboração de uma
escrita que não se curva a padronizações, tampouco precisa ser tolhida por
elas. No caso desta pesquisa, foi o processo de publicização dos escritos
que levou nossos jovens à fruição do escrever. Os excertos de textos confirmam nossa percepção: “Quando estava no Agente Jovem queria estar com
você todos os dias para escrever”; “Aprendi muitas coisas novas e gostei muito.
No começo achei chato, mas depois comecei a gostar muito. Contei histórias
de minha vida, fiquei feliz de ter visto meu nome ali, pra todo mundo ler. Eu
agradeço muito”.
Os jovens revelam que começaram a gostar de escrever no decorrer
do processo, o que ratifica nossas afirmações de que é preciso criar espaços
para a produção de uma escrita significativa, produtora de sentidos, mas
também proporcionar espaços em que o escrito ganhe sentidos e significações a partir do olhar e da leitura do outro.
Vale ressaltar ainda que a comparação dos textos produzidos antes
e depois da primeira publicação permite a identificação de certas preferências dos autores em relação à maneira de estruturar os textos; como
é o caso de Roberto. O jovem alterna o relato de fatos e sentimentos a
reflexões e conselhos dados ao leitor: “Quando estiver abatido, se levante
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
e encare, pois irá conseguir conquistar”; “O mundo é feito de reflexões. Uma
hora ou outra refletimos sobre o que fizemos [...]”; “Para alguns, ganhar objetos caros e extravagantes é tudo na vida, mas não é [...]”. Já Patrícia e Gabriele costumam deixar recados nos textos que produzem: “Boa sorte pra
você”; “A professora é muito legal e extrovertida. Um grande abraço de todos”.
Norton, Mauro e Airton têm uma escrita entremeada por muitos detalhes;
enquanto Daniel e Gustavo são extremamente concisos.
Poderíamos chamar de ‘estilo’ essas escolhas e modos de elaboração textual de cada jovem autor? Entendemos que sim. E, para tal afirmação, buscamos apoio no argumento oferecido por Brait:
[...] de um ponto de vista dos estudos linguísticos, enunciativos e discursivos
mais recentes, o estilo pode estar pensado em função do texto e de suas formas de
organização em relação às possibilidades oferecidas pela língua, estendendo-se a
textos não necessariamente literários ou poéticos (BRAIT, 2006, p. 54).
Ou seja, o estilo se faz pelas opções e escolhas do autor. Por outro lado,
Brait não se limita a essa conceituação e sugere, orientada pelo pensamento
de Bakhtin, que a concepção de dialogismo enquanto aspecto constitutivo
dos processos linguísticos está também na base da concepção de estilo.
Nessa construção do estilo, a questão da autoria se faz presente
uma vez que ao se apropriar de um tema, o autor vai transformá-lo e construir sentido de acordo com sua atividade e a esfera de produção em que
está inserido, mas também dialogando com outros. É no próprio Bakhtin
(2000, p. 208) que encontramos aporte para pensarmos a relação entre
escrita, autoria e estilo numa perspectiva dialógica.
A escrita (a relação do autor com a língua e a utilização da língua
que ela implica) é o reflexo impresso no dado do material por seu estilo
(sua relação com a vida e com o mundo da vida e, condicionado por essa
relação, sua elaboração do homem e do seu mundo).
Exposição: ‘dar-se a ver’ é preciso!
A questão do poder e da punição, tão bem analisada por Foucault
(1992), poderia justificar, ao menos em parte, o receio de se expor pelo
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
escrito, pois que historicamente o autor passou a ser reconhecido e identificado na medida em que se tornou passível da punição decorrente de seus
discursos ‘transgressores’. Estabelecendo uma analogia, podemos inferir
que na escola não se têm buscado autores, uma vez que os discursos e
estruturas textuais que são de alguma forma ‘transgressores’ – e talvez por
isso, também de certa forma autorais – são punidos com notas baixas até
que textos e autores ‘desistam de transgredir’ e adaptem-se aos modelos
e discursos instituídos. Quando isto ocorre, não há mais autoria; não há
mais sentido; não há mais por que escrever.
Relativamente à construção do autor, ressaltamos que é preciso
sentir-se acolhido para arriscar-se a escrever. Machado (2008, p. 4) afirma
que “parte considerável do ‘estopim’ capaz de desencadear a escrita criativa consiste em um autorizar-se a revelar-se com certa liberdade diante
de um destinatário acolhedor”. Ainda a este respeito, o pequeno poema
da autora pode bem ilustrar o que queremos dizer: “Para escrever eu preciso supor que me queres. Acreditar que desejas meu corpo magro de papel. Crer que cobiças as curvas de minhas letras. E o fruto da minha mão”
(MACHADO, 2008, p. 4).
A escrita privada que se insere no espaço público envolve duas posições – bem pontuadas por Gomes:
De um lado, haveria a postulação de que o texto é uma ‘representação’ de seu
autor, que o teria construído como forma de materializar uma identidade que
quer consolidar; de outro, o entendimento de que o autor é uma ‘invenção’ do
próprio texto. [...] Defende-se que a escrita de si é, ao mesmo tempo, constitutiva
da identidade de seu autor e do texto, que se criam, simultaneamente, através
dessa modalidade de ‘produção do eu’ (GOMES, 2004, p. 21).
Às considerações de Gomes (2004) acrescentamos a influência e a
importância da publicização dos escritos (exposição ao outro) na constituição do sujeito-autor: trata-se de um efeito por retroação, um ‘bumerangue’, que entendemos ser a significação do próprio ato de escrever.
Foucault (1992), Souza (2006) e Machado (2000), a partir de perspectivas distintas, insistem nesta outra questão primordial relativamente à
autoria na produção de textos escritos: a exposição ao outro, implícita no
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
ato de escrever. Com denominações variadas, todos se referem à exposição ao outro. Escrever, retomando Foucault (1992, p. 151), é “‘mostrar-se’,
dar-se a ver. Fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”. “Dar-se a ver”
requer a escrita de um texto que tenha sentido desde sua situação de produção até seu conteúdo discursivo, que gere a vontade de se mostrar, de
refletir, de aparecer, de escrever, de se fazer autor.
Ver-se pelo espelho, pelos olhos do outro, talvez seja o mais difícil
exercício decorrente da escrita que se torna pública, mas é também condição para a autoria, como bem aponta Bakhtin (2000, p. 36) ao afirmar
que o autor deve situar-se fora de si mesmo. “Ele deve tornar-se outro relativamente a si mesmo, ver-se pelos olhos do outro”. Ao fazer isso, o autor
se dispõe a colocar-se diante do inusitado que pode surgir de sua singularidade quando vista de outro ponto.
Assim, o ‘depois do escrito’ só tem sentido na construção da autoria
se o texto extrapola o caráter privado e alcança a esfera pública. É com esta
abordagem que foram idealizadas e realizadas com os jovens duas situações de publicização dos textos: uma sessão de autógrafos e uma exposição de pôsteres com excertos dos escritos produzidos por eles.
Propusemos aos adolescentes uma escrita que ultrapassasse os limites da folha para alcançar um público desconhecido, mas que, ao mesmo
tempo, desse a conhecer os seus autores inscrevendo-os na história – desde a instância subjetiva até sua inserção na sociedade – e reconhecendo-os
como sujeitos sociais capazes de protagonismo e autoria.
Assim, buscamos desvelar vivências diversas por meio de uma escrita que recuperasse memórias e histórias de vida, resgatasse o não dito
e talvez por isso, o não conhecido. Neste sentido, as experiências desta
pesquisa nos levam a entender que provocar a escrita de nossos alunos
e torná-la pública gera autonomia por ser a inscrição do próprio sujeito
no mundo e, consequentemente, trazer suas marcas, seus sussurros, sua
autoria.
Daí a importância de pensar a escrita como instrumento de denúncia da dor, de compartilhamento da alegria, de construção do pensamento, de posicionamento diante de si e do outro – neste último caso, na medida em que o escrito se torna público.
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Alteridade: o outro na construção do sujeito-autor
Sobre a necessidade de ser visto e reconhecido em sua subjetividade/alteridade para a construção do sujeito-autor, neste texto entendemos
ser particularmente interessante a análise do que escreveu um jovem no
título de um dos textos, que trazia, com letras em caixa alta, o apelo: “Sou
assim e quero existir”. Perguntamos: em que medida a escola tem tolhido
a existência autoral de seus alunos? Não temos intenção de responder ao
questionamento, mas instigar a discussão a fim de pensar a terceira condição da autoria: o outro.
Se, por um lado, o outro a quem costumam se destinar os textos
escolares é, de certa forma, hierarquicamente superior; por outro lado, é
muito comum, nas relações de poder, o outro que é hierarquicamente inferior não ser “reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos.
Muitas vezes, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade” (CHAUÍ, 1995, p. 03).
Em situação bem diferente desta, ao participarem, como protagonistas, de uma sessão de autógrafos (para professores universitários e acadêmicos) dos blocos nos quais seus textos foram publicados, os jovens
fizeram os seguintes comentários: “Foi muito bom ter contato com pessoas
mais importantes e mais sábias (...)”; “Deu um frio na minha barriga, fiquei
com as pernas tremendo. Quando fui sentar lá na frente achei que ia me dar
uma coisa, as pessoas ficavam olhando e conversando, e eu lá dando autógrafos
para aquelas pessoas chiques, simpáticas e legais de conversar. (...) Eu achei
fantástico”; “Na Universidade foi legal porque todo mundo deu autógrafo para
as pessoas muito especiais e importantes. (...) Eu fiquei envergonhada porque
tinha muitas pessoas olhando a gente, mas eu não queria sair de lá”; “Eu até
que estava calmo, mas depois de um tempo a gente foi para as cadeiras e vieram
as pessoas pedindo autógrafos. [...] Tinha muita gente. [...] Naquela hora foi
bom, apesar das minhas pernas estarem tremendo tanto que se eu soltasse, elas
sairiam pulando, mas eu gostei e queria fazer de novo”.
Nestes depoimentos a temática da alteridade pode ser evocada, pelo
menos, sob duas perspectivas: a primeira evidencia a importância da visão
do outro para a constituição do sujeito. Como aponta Bakhtin (2000),
o homem tem necessidade absoluta do outro. Nossa individualidade não
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
existiria sem a participação do outro. Essa necessidade a que se refere o
autor aparece nos relatos de nervosismo diante do olhar do outro e da
preocupação com esse olhar, pois a maneira como sou visto reflete-se também na ideia que faço de mim mesmo. Refere Bakhtin (2000, p. 36) que
“[...] na vida, agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros,
tentando compreender, levar em conta o valor conferido ao nosso aspecto
em função da impressão que ele pode causar em outrem”.
A segunda perspectiva é importante para pensarmos em que posição os jovens se colocam relativamente a estes outros com quem estiveram na Universidade e em que medida a experiência da sessão de autógrafos pode alterar sua percepção de si mesmos. Por meio de registros como
“pessoas mais importantes e mais sábias”; “aquelas pessoas chiques, simpáticas
e legais”; “pessoas muito especiais e importantes” é possível perceber que os
adolescentes colocam a si mesmos e às suas experiências numa posição de
inferioridade. Para Bakhtin (2000), esta relação diz respeito à distinção
entre o corpo exterior e o corpo interior, ou seja, o corpo do outro e o
seu próprio corpo. E na relação de diferenciação que aí se estabelece há
predominância alternada do eu (que representa o subjetivo) e do outro
(representante do objetivo) conforme nos baseamos em nossa própria vivência ou não.
No caso dos nossos jovens é a vivência do outro a mais valorizada, em detrimento da experiência pessoal. Desta forma, o processo de
“elaboração de uma concepção do homem (o homem como valor) pode
expressar-se assim: o homem são os outros” (BAKHTIN, 2000, p. 70).
Assim, a singularidade da experiência pessoal é diminuída, sob a influência da experiência dos outros.
Em contrapartida, a experiência da publicização promove de certa forma uma inversão: “o homem sou eu, tal como vivo, e os outros são
como eu” (BAKHTIN, 2000, p. 70), na medida em que possibilita aos
adolescentes (e a alunos de maneira geral) a percepção de que também é
possível que a singularidade da experiência do outro seja diminuída sob
a influência e em proveito da sua experiência pessoal – o que quase não
acontece nas relações escolares de produção escrita em virtude do leitor
único (professor) e das relações de poder entrelaçadas nesta leitura.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Responsabilizar-se pelo escrito produzido: assumir-se autor!
Tornar público um escrito é um ato de coragem; assiná-lo e responsabilizar-se por ele exige coragem e desprendimento. Uma atitude dos jovens desta pesquisa, que reflete uma prática característica das salas de aula,
remete à inserção do privado no espaço público e à constituição do sujeito-autor: o texto, após ser escrito, era escondido, colocado embaixo dos
demais (no final da pilha) no momento da entrega durante os encontros.
Não era lido ou compartilhado com os colegas. Mas, quando impresso em
blocos que seriam autografados pelos autores, passou a ser espontaneamente mostrado, exibido mesmo, para todos os colegas. Que mudança!
Tal atitude corrobora o que Orlandi (1996, p. 78) aponta como crucial
para que a autoria se desenvolva:
Para que o sujeito se coloque como autor, ele tem de estabelecer uma relação com
a exterioridade, ao mesmo tempo em que se remete à sua própria interioridade:
ele constrói assim sua identidade como autor. Isto é, ele aprende a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica.
Quanto à responsabilidade pelos escritos produzidos, a primeira
coisa que podemos pensar diz respeito a uma transição advinda dessa postura responsável: a passagem de enunciador para autor. Responsabilizarse pelo escrito talvez seja a mais importante característica de diferenciação entre essas duas posições discursivas (ORLANDI, 1996). Enquanto o
enunciador pode se colocar ou se representar de diversas maneiras no texto – talvez quase que como uma personagem cuja discursividade depende
da posição em que ela se encontra no contexto textual, e neste sentido um
texto pode ter vários enunciadores sem que isso represente qualquer problema –, do autor se espera que ele faça, independentemente dos enunciadores, com que o texto tenha unidade, coerência. A responsabilidade do
autor está justamente em passar da “multiplicidade de representações possíveis do sujeito, enquanto enunciador, para a organização dessa dispersão
num todo coerente (e consistente) com que se apresenta o autor, responsável pela unidade e coerência do seu discurso” (ORLANDI, 1996, p. 79).
E nossos jovens? Como podem nos ajudar a refletir sobre esse tema?
Excitação e surpresa tomavam conta deles quando descobriam suas frases,
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suas letras, as imagens de si retratadas no suporte de papel, impressas, inscritas em outro corpo, fora de si. Tais sentimentos nos levam a pensar na
assertiva de Marques (2001, p. 83): “Se não se surpreende com o que escreve, o autor não produziu um texto seu”. Surpreendidos pelos próprios
escritos, os jovens conheceram a materialidade do texto e seus efeitos mais
imediatos: a publicização, a responsabilidade, a assunção do escrito. É justamente essa materialidade do texto que o torna acessível, público, livre
dos limites do tempo e até do contexto em que foi produzido. É por essa
materialidade, que separa o sujeito que escreve do texto escrito, e instala
nessa separação uma ponte, uma fronteira, uma possibilidade de diálogo,
que aquele que escreve pode começar a sentir-se, ou assumir-se, autor.
Após o contato com os textos impressos, publicados, os jovens
passaram a demonstrar maior engajamento com a qualidade dos escritos.
Além disto, a sensibilização que os sujeitos passaram a revelar para com a
sua própria escrita, assim como o lugar que passaram a outorgar à escrita
em suas vidas, a partir desta experiência, permite uma reflexão comparativa com as práticas escolares relativas ao escrever. Estas últimas, quase
sempre distantes da vida dos estudantes e fazendo pouco ou nenhum sentido para eles.
Os textos pós-publicação eram mais extensos e pareciam mais ‘caprichados’, esteticamente mais bonitos. Não havia mais uma grande quantidade de rasuras, as letras estavam mais legíveis e a organização estrutural
dos parágrafos e linhas demonstrava apreço pela apresentação estética.
Nossos autores davam mostras de estarem sentindo a presença do interlocutor e transformavam sua escrita em função dessa presença.
Reconhecimento: o autor, o outro e o mundo
As condições de que tratamos até aqui estão interligadas e se entrelaçam também com a temática do reconhecimento. A escrita, ao tornar-se
pública, permite ‘o dizer’, tornando os autores sujeitos de sua ação. Disto
decorre tanto um reconhecimento público quanto um autorreconhecimento como ser capaz.
A temática do reconhecimento se faz presente aqui, se levarmos em
conta que a identidade do sujeito se constitui como uma aposta deste su76
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
jeito no reconhecimento de si (RICOEUR, 2006), mas também se constrói em “situações de interlocução nas quais a reflexividade se associa à
alteridade” (RICOEUR, 2006, p. 111), o que nos permite pensar o sujeito
sempre em relação. Neste sentido, os reflexos da escrita autorizada a ir a
público (quando o escrito alcança o outro) podem ser considerados constituintes do sujeito que escreve, assim como a leitura dos próprios textos é
fator importante no reconhecimento de si como autor.
A razão deste reconhecimento, no caso ilustrativo de nossos jovens,
eram os escritos que haviam produzido e se tornaram públicos. Escritos
que falavam de suas experiências, de suas memórias, de suas vidas; mas
que passaram a existir na vida de pessoas desconhecidas, assim como eles
– os autores – também ganhavam uma existência diferente. Este momento
torna-se importante para analisarmos o processo de individualização do
sujeito por meio de seus textos, mas também sua inscrição como autor no
espaço público.
Marques (2001, p. 39) afirma ainda que “sem a referência ao outro,
não somos nós mesmos, não encontramos nosso lugar”. Em diálogo com
esse autor, podemos analisar também a fala de Patrícia (sobre os leitores
universitários que gostaram e elogiaram seus escritos) como o momento
em que a jovem encontra seu lugar de autora a partir de seus leitores. Esse
“ato secundário” do leitor, como afirma Bakhtin, transfere Patrícia do lugar
ativo de quem escreve para o lugar passivo de quem é lido. E é esta transferência que possibilita à jovem sentir-se/reconhecer-se autora. A bem dizer, continua Bakhtin (2000, p. 36), “na vida, agimos assim, julgando-nos
do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o
valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode
causar em outrem”.
O outro (leitor) funciona para o autor como alguém que lhe ‘concede’ a condição de autoria. Da mesma forma, o escrito funciona como
um espelho que reflete o autor e nesse reflexo torna-o outro em relação a
si mesmo.
Além da publicização, é importante salientar que o escrito que os
jovens produziram em nossos encontros, de alguma forma, reconhece-os
e permite que eles se reconheçam como sujeitos culturais, sociais e históricos que têm algo importante a registrar. É uma escrita que faz sentido e
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 77
Ana Maria Netto Machado (Org.)
que os autores desejam fazer chegar a interlocutores outros que não apenas o professor.
Ainda sobre a importância do reconhecimento para a construção
da autoria, os depoimentos de alguns jovens são ilustrativos: “Eu me senti
alegre por ter a minha escrita num bloco sabendo que algum dia alguém vai
colocar a mão nele e ler o meu nome e o que escrevi”; “Quando vi nosso nome
nos blocos eu fiquei maravilhado, pois nunca sonhei que aquilo realmente estava acontecendo. [...] Ficar famoso não me interessa, o que me interessa é poder
fazer parte da história disso tudo”; “Eu pensei como é bom a gente ficar conhecido. Todos ficaram muitos alegres com seu bloquinho porque dava pra ver no
olhar, nos olhos e nos sorrisos”; “Eu não quero dinheiro com isso, só quero que
me reconheçam como pessoa. [...] Eu fiquei orgulhoso de mim e de todos por
terem a capacidade de escrever coisas boas”; “Eu estou me interessando [...] vou
continuar me expressando pela escrita e procurando fazer mais bonito. É muito
engraçado o que acontece comigo agora, eu penso um pouco e vêm as ideias na
minha cabeça. Se eu for fazer dá um livro”.
A respeito destes excertos, além da necessidade de reconhecimento
expressa pelos jovens, destaco a autovalorização advinda dos escritos (estes, por sua vez, entendidos pelos jovens como produtos valorizados pelo
outro). Ainda um segundo aspecto merece ser recuperado: vários jovens
relataram ter sentido falta dos encontros e até de escrever. Assim como
expressaram sua crença na própria capacidade de autoria.
Para finalizar sem encerrar a discussão
Esperávamos, com as ações desta pesquisa, elucidar alguns pontos
acerca da autoria e dos processos constitutivos de um autor. Entendemos
ter dado alguns passos ao instigar os adolescentes à produção de uma
escrita singular, própria, significativa, “operativa”6 e engajada aos valores
culturais dos sujeitos; mas também uma escrita cidadã capaz de contribuir para a percepção das injustiças sociais e a transformação da realidade.
Uma escrita que ultrapassasse os limites da folha para alcançar um público desconhecido; mas que, ao mesmo tempo, desse a conhecer os seus
6 Fazemos referência aqui ao “escritor operativo”, citado por Walter Benjamin (1994, p. 123) e “cuja função
não é apenas relatar, mas combater; não ser espectador, mas participante”.
78
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
autores inscrevendo-os na história – desde a instância subjetiva até sua
inserção na sociedade – e reconhecendo-os como sujeitos sociais capazes
de protagonismo e autoria.
Não somos ingênuos de pensar que esta episódica experiência de
escrita com sete meses de duração venham mudar a vida de nossos jovens como em um passe de mágica. Porém, ao mesmo tempo em que ela
marcou os papéis nos quais os adolescentes deixaram seus testemunhos,
também marcou o mundo em que estão inseridos e as suas memórias.
Destacamos ainda a influência e a importância da publicização dos
escritos na constituição do sujeito-autor. Trata-se, de fato, de um efeito
por retroação (ou ‘bumerangue’, como vimos chamando), um ‘depois do
escrito’, que entendemos ser a significação do próprio ato de escrever.
Nossos jovens, ao final da experiência vivenciada durante a pesquisa, escreviam por prazer, por escolha. Não escondiam mais seus textos.
Responsabilizavam-se por eles e assumiam-nos, assinavam-nos. Expunham seus escritos e expunham-se nos escritos. Foram reconhecidos e
reconheciam-se como autores. Destas constatações empíricas, aliadas aos
nossos referenciais teóricos, emergiram as condições de autoria que neste
texto tentamos brevemente apresentar. A discussão está aberta!
Referências
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Fundo/RS: UPF, 2002. 192 p.
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. 253 p.
BRAIT, B. Estilo, dialogismo e autoria: identidade e alteridade. In: FARACO, Carlos Alberto. et al. (Orgs). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 54-66.
CHAUÍ, M. Cultura política e política cultural. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23,
1995. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid. Acesso
em 19 de outubro de 2006.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 79
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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GOMES, A. C. (Org). Escrita de Si. Escrita da História. Rio de janeiro: FGV, 2004. 378 p.
MACHADO, A. M. N. Pânico da folha em branco: para entender e superar o medo de
escrever. In: BIANCHETTI, L.; MECZENAS, P. (Orgs). Tecendo o conhecimento: teoria,
método e linguagem em ciência e pesquisa. São Paulo: Papirus, 2008 (no prelo).
______. Presença e implicações da noção de escrita na obra de Jacques Lacan. 2. ed. Ijuí:
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PERRONE-MOISÉS, L. Lição de Casa. In: BARTHES, Roland. Aula. 12. ed. São Paulo:
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
ESCOLAS COM OU SEM BIBLIOTECAS? LUGAR E
PAPEL DA BIBLIOTECA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
BRASILEIRA
Danielle Wolff de Camargo
“Podemos afirmar que a biblioteca escolar é um objeto desprezado pela Educação, o que se constitui em grande injustiça, posto que a sofrível situação em
que funciona, na maioria das escolas, faz com que ela se torne um grave e,
vale dizer, inexplorado problema educacional.”
O
W. C. Silva. Miséria da Biblioteca Escolar.
tema principal aqui abordado surgiu da constatação do desprestígio que paira sobre a biblioteca no âmbito da educação
escolar brasileira. Sendo a biblioteca o celeiro das culturas,
onde encontramos as memórias e tradições de nossos antepassados e
o berço de outras civilizações, como entender que a educação escolar
pouco se interesse pela biblioteca ou desenvolva a formação das novas
gerações, dispensando-a? Neste artigo, travamos um diálogo com diversos autores que estudam a temática das bibliotecas, para evidenciar que
alguns problemas típicos da cultura escolar, amplamente analisados na
literatura, mas de difícil solução, poderiam encontrar caminhos promissores para realizar uma formação cultural de qualidade, se a biblioteca
ocupasse lugar central entre as suas atividades. Seja para desenvolver
uma educação com ênfase na cultura, seja para trabalhar com o conhecimento científico, a biblioteca é indispensável. Porém surpreende que
a ela sequer seja mencionada nas legislações educacionais brasileiras e
nem mesmo na Constituição de 1988.
Uma ampla revisão bibliográfica, em teses e dissertações e artigos
indexados no SCIELO, revelou que a quantidade de trabalhos em torno
da biblioteca escolar tem aumentado nos últimos anos. Porém o problema acerca das bibliotecas continua sendo discutido por uma minoria de
autores, tais como: Luiz Milanesi, Waldeck Carneiro da Silva, Ezequiel
Theodoro da Silva, Regina Zilberman, Neusa Macedo. Trata-se de lideranças que têm colaborado na construção de uma reflexão coletiva sobre
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 81
Ana Maria Netto Machado (Org.)
a biblioteca. Apesar de que tais iniciativas continuam sendo insuficientes,
elas são qualificadas e sinalizam o silêncio, quase sepulcral, que prevalece
ainda hoje, sobre os problemas da biblioteca escolar.
Neste texto desenvolvemos uma discussão, a partir das teorizações,
sobretudo de Milanesi (1986) e Silva (2003) em torno da precariedade
das bibliotecas escolares, e sustentamos o argumento de que não só elas
podem, como elas devem, ser consideradas prioritárias, para a educação
brasileira. Caso existissem bibliotecas públicas razoavelmente equipadas,
poderiam servir de suporte para a educação escolar.
A partir de Silva (2003), situamo-nos em uma perspectiva histórico-crítica, considerada pertinente para a área da Educação e, também,
para a área de Biblioteconomia. Ela pode contribuir para esclarecer por
que a biblioteca tem importância central para a formação escolar. Primeiramente, Silva (2003) afirma que precisamos compreender os três princípios básicos sobre os quais tal perspectiva se assenta: 1) entender a desvalorização social da biblioteca e a elitização do acesso à leitura, no Brasil,
como produto da luta pela hegemonia travada em sociedades de classe
do tipo da brasileira; 2) a impossibilidade de analisar as crises da leitura
e da biblioteca, no Brasil sem contextualizá-las histórica, social e politicamente; e 3) a concepção de que a universalização do acesso à leitura e a
valorização social da biblioteca, no Brasil, são conquistas a serem obtidas
pelos atores sociais organizados e comprometidos com a democratização
plena da sociedade brasileira.
Ao considerar que a popularização da leitura e da biblioteca depende de lutas e conquistas dos atores sociais organizados, o autor está afirmando que a leitura não é popular e que a biblioteca não é valorizada no
Brasil, o que confirma os resultados de muitas outras pesquisas encontradas até aqui, como podemos constatar no capítulo Da censura e condenação
de livros em regimes totalitários à promoção da leitura como dispositivo para o
exercício da democracia (SILVEIRA, 2011), nesta mesma coletânea.
Para Silva (2003, p. 32) “a Biblioteconomia e a Educação são ramos do saber que se articulam em diferentes perspectivas, e talvez o
eixo mais acentuado dessa articulação seja justamente a problemática
das bibliotecas escolares”. Assim ele explica a relevância de seu estudo
e perspectiva:
82
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
O estudo apoiou-se, do ponto de vista teórico, numa corrente que denominaríamos de ‘Biblioteconomia histórico-crítica’, cujo princípio fundamental é a concepção das crises da leitura e da biblioteca, no Brasil, como contradições sociais
inerentes ao modelo capitalista periférico que caracteriza a sociedade brasileira,
cujas classes dominantes têm um projeto político de manutenção da sua hegemonia baseado, entre outros aspectos, na negação sistemática do acesso aos bens
educacionais/culturais às classes trabalhadoras (SILVA, 2003, p. 33).
Para entender melhor sua afirmação, é importante recuperar alguns
aspectos históricos, mesmo que pontuais sobre a Educação formal no
Brasil. Esta foi inicialmente desenvolvida pelos jesuítas, que por um longo
período se dedicaram a duas tarefas: a pregação da fé católica e o trabalho
educativo. Mantinham escolas espalhadas pela Colônia, nas quais davam
instrução básica. Posteriormente, os filhos de famílias mais abastadas concluíam seus estudos na Universidade de Coimbra, formando-se em carreiras para as quais não havia escolas no Brasil, “pois os moços aqui eram
educados para o sacerdócio”, diz Milanesi (1986, p. 44).
Mais tarde, na época da independência, uma nova política educacional surgiu. Narra Milanesi (1986, p. 45 e 46) que “D. Pedro I, ao outorgar a Constituição em 1823 garantiu a instrução primária gratuita a todos
os cidadãos brasileiros. A partir de 1827 foram criadas as primeiras escolas
primárias, conforme prescrevia uma lei desse ano”. Convém, entretanto,
refletir sobre essa “garantia” da instrução primária para todos. Quem eram
naquela época todos os cidadãos brasileiros que poderiam ter acesso à
educação primária gratuita? Pensemos nos negros escravos, por exemplo.
A abolição da escravatura no Brasil data de 1888. E as mulheres? Uma série de direitos eram negados às mulheres ainda no século XX. O fato de
que a Constituição de 1824, no artigo 179, XXXII, estabeleceu que a instrução primária fosse gratuita a todos os cidadãos não significava que ela
se tornaria uma realidade.
Percebe-se que leis se multiplicaram, mas que na verdade, a distância
da realidade se manteve, pois, efetivamente, somente em 1827 é que se fez
a primeira lei do ensino primário, determinando que fossem criadas escolas
de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugarejos. Daí até que fossem
de fato criadas, sabemos que se passou muito tempo, pois é só muito recenTOC TOC TOC! Eu quero entrar 83
Ana Maria Netto Machado (Org.)
temente que a universalização do acesso à escola pública gratuita vem sendo
atingida em nosso país; falamos de poucos anos, neste século!
Se o acesso da população à escola foi tardio no Brasil, a biblioteca
foi sempre uma das maiores deficiências do nosso aparelho escolar. Desde
o tempo dos colégios jesuítas até os dias atuais, muito pouco foi feito em
relação à biblioteca. Não somente a biblioteca escolar, mas o conjunto das
bibliotecas brasileiras, salvo raras exceções, pertence a um quadro miserável, quando existe, e a grande maioria funciona em condições precárias.
Para Silva,
[...] a ausência de tradição bibliotecária vem sendo reforçada, historicamente,
pela política cultural engendrada pelas nossas classes dirigentes, que se caracteriza pela desvalorização das produções culturais mais autênticas do povo e pelos
entraves à popularização da leitura, do livro e da biblioteca (Silva, 2003, p. 50).
Segundo desenvolve Silva (2003), as classes dominantes perpetuam a dominação que exercem sobre a maioria da população há quase meio
milênio, através de um projeto político que reproduz o analfabetismo, a
crise da leitura, a evasão e a repetência escolar, pois percebem que a marginalização cultural da classe trabalhadora é condição fundamental para a
dominação.
Embora tenhamos hoje um regime político democrático e a igualdade de direitos seja buscada, bem como os governos criem programas em
prol da melhoria da educação, e até das bibliotecas, é perceptível que as
elites, que durante muito tempo não comungaram com esse sonho, oferecem à grande maioria da população uma parcela de bens culturais apenas
suficiente para que possam integrar-se ao sistema produtivo, dando-lhes
domínio instrumental da leitura, da escrita e do cálculo. Qualquer formação ou conteúdo além destes precisa ser batalhado e conquistado por
meio de movimentos sociais organizados, afirma Silva (2003).
A ênfase nas lutas, movimentos e ações afirmativas, para as quais
aponta este autor como sendo o caminho para que a biblioteca desempenhe seu papel na formação cultural da população, deixa exposto que,
se depender das elites que acumulam privilégios, a instituição biblioteca
escolar vai continuar na penumbra. O trabalho de Silva permite pensar
que a biblioteca está no centro das lutas pela democracia, isto é, por um
Estado de direitos no qual o conhecimento esteja disponível para todos e
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
não apenas acessível a alguns. Biblioteca combina com democracia e sua
ausência combina com regimes totalitários!
Interessado nos diferentes aspectos do problema da biblioteca, Silva (2003) realizou uma pesquisa sobre a utilização da biblioteca escolar,
entre os anos de 1989 e 1991, no sentido de sua possível utilização como
recurso didático para o ensino/aprendizagem. Ele investigou a forma e o
conteúdo por meio dos quais os livros de Didática se expressavam sobre
o uso da biblioteca na educação escolar. Postulou como pressupostos teóricos para esse trabalho: que o professor é peça fundamental na relação
aluno/biblioteca; que a prática docente é em parte orientada pela formação pedagógica do professor; e que a Didática é a disciplina que oferece as
maiores possibilidades de discussões sobre estratégias, técnicas e percursos didáticos a serem empregados pelo professor.
Partindo desta base, investigou se os livros de Didática indicados
aos alunos de licenciatura nas universidades tratavam do uso da biblioteca
escolar como recurso de ensino/aprendizagem. Seu interesse vem desde
a época em que cursava a graduação em Biblioteconomia, quando já observava na literatura especializada um vazio sobre a biblioteca escolar. Observou também a insistência em assuntos como base de dados, centros de
informação e automação de sistemas de bibliotecas, mas pouca referência
às nossas bibliotecas escolares e públicas, que normalmente enfrentam
muitas dificuldades.
O autor trabalhou com os livros de Didática mais indicados aos
estudantes de licenciatura, independentemente da área, das universidades do estado do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 1990. Definidas
as publicações a serem estudadas, iniciou a coleta de dados analisando o
conteúdo. Nesta análise observou que a maioria das obras não discutia a
utilização da biblioteca no ensino/aprendizagem em si, o que considerou
uma injustiça.
Para Silva (2003, p. 37),
[...] no interior da escola, a biblioteca é potencialmente um dos espaços que
mais pode contribuir para o despertar da criatividade e do espírito crítico no aluno, tendo em vista os diferentes tipos de documentos que podem constituir o seu
acervo e os variados serviços e atividades que ela pode desenvolver.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
No entanto, os professores não parecem perceber este fato. Silva
passou então a perceber que o pouco interesse de professores na biblioteca poderia representar a perpetuação de hábitos adquiridos durante a
graduação, já que os livros de Didática não mencionam a biblioteca escolar como recurso de ensino-aprendizagem. Então, uma vez internalizados
os ensinamentos teóricos ministrados em seu curso superior, tenderiam a
reproduzi-los.
Tanto Milanesi (1986) como Silva (2003) observam o desinteresse pelo estado atual da biblioteca vindo de todas as instâncias. Mas causa
especial estranheza quando este descaso também é praticado pelos bibliotecários, profissionais que passam anos estudando para trabalhar adequadamente em bibliotecas. O direcionamento da atenção no curso de
graduação em Biblioteconomia está muito distante de pensar as relações
da biblioteca com a sociedade ou seu papel na comunidade, ficando no
geral focado em questões técnicas como gerenciamento, arquivamento de
informações, bancos de dados e as variadas formas de organizá-los.
Temos como resultado uma formação acadêmica de bibliotecários
que não parece enfatizar o sentido social da biblioteca para as práticas de
leitura. A problemática das bibliotecas, com raras exceções, não é abordada
pelos educadores nem é contemplada na literatura da área biblioteconômica, sendo privilegiados por esta os estudos sobre problemas associados
à informação científica. São raras as bibliografias atualizadas referentes à
biblioteca escolar, como pudemos constatar a partir de estado de arte realizado para a pesquisa que originou este artigo (CAMARGO, 2010). As
obras escritas por autores da Biblioteconomia, de modo geral, se preocupam mais com o interior da biblioteca, com o acervo. E menos da relação
da biblioteca com a comunidade externa ou com a circulação de pessoas,
a inclusão da biblioteca nas mentalidades dos jovens e crianças, dos pais
e professores, das lideranças, ou na biblioteca como um lugar relevante
de uma comunidade1, tal como o supermercado, a loja, a igreja. A função
social da biblioteca, seu papel estratégico para o país, fica esquecido.
1 Realizamos um levantamento relâmpago com 20 professores de Educação Fundamental da rede municipal de Lages, aos quais pedimos para responder por escrito quais os lugares públicos que mais tinham frequentado: 1) na última semana, 2) no último mês. 3) no último ano. As respostas mais frequentes foram: Supermercado (20), Igreja (07), Restaurantes (07), Farmácia (02), Lojas (08), Cabeleireira (03), Trabalho (20)...
etc..Nenhum respondeu biblioteca. Um respondeu um sebo da cidade. Trata-se de mais um dado que mostra a
biblioteca como esquecida e sem prestígio (entre professores). Ela não faz parte do cotidiano dos professores.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Outro aspecto que pode ser analisado refere-se aos recursos humanos atuantes nas bibliotecas: a grande maioria não possui formação especial para atuar nelas, nem na parte da organização, nem na parte do planejamento e administração do acervo disponível, demonstrando despreparo
e uma indisposição ao trabalho notória. Grande parte dos funcionários
destinados a uma biblioteca escolar são casos de readaptação funcional,
ora por doença, fase final de carreira (idade avançada) ou por desgaste
pedagógico. A biblioteca é considerada um local que exige pouca energia,
um lugar de repouso, local de trabalho no qual não é necessário fazer um
planejamento didático ou pedagógico, onde o profissional pode esperar
calmamente por sua tão sonhada aposentadoria (SILVA, 2003; MILANESI, 1986)
A ausência da discussão sobre a biblioteca escolar nas formações
de bibliotecários e a ausência da discussão da biblioteca na formação de
pedagogos causam preocupação e questionamentos, pois nem um nem
outro espaço de formação está preparando profissionais que pensem na
biblioteca como espaço e ferramenta indispensável da formação escolar
básica. O que significa esta omissão ou lacuna?
A ação do profissional responsável pela biblioteca, a maneira como
ela funciona e a sua própria estrutura podem ser fatores prejudiciais ao
uso da biblioteca escolar, que precisa de cuidados para atrair seus usuários.
Uma biblioteca utilizada como depósito de objetos variados que já não
têm utilidade ou estão danificados, ou instalada inadequadamente num
canto da escola, sem condições dignas para sua dinamização educativa,
utilizando espaços apertados com má iluminação e desconfortável (quando não é apenas um armário trancado em uma sala de aula à espera de ser
aberto alguma vez), desestimula a frequência do usuário. Da mesma forma
como um acervo desatualizado e desorganizado também afasta os leitores,
que desistem de tentar encontrar alguma obra seja porque naquele espaço
jamais encontraram antes o que buscavam, seja por pobreza do acervo ou
ainda por catálogos e organizações mirabolantes das obras.
Também são fatores que favorecem a evasão dos usuários da biblioteca escolar, dificultando ou bloqueando a sua plena utilização os regulamentos rígidos; horários inflexíveis, irregulares e incompatíveis com a
disponibilidade do aluno e do professor; serviços de empréstimos supriTOC TOC TOC! Eu quero entrar 87
Ana Maria Netto Machado (Org.)
midos; acesso às estantes vetado; excesso de zelo do profissional da biblioteca para com o acervo; comportamento passivo ou excessivamente técnico do pessoal que trabalha na biblioteca com atitudes ríspidas, exigindo
silêncio, arrumação e disciplina.
Recomenda Silva (2003, p. 64) que
[...] a organização, a disciplina, a observação do regulamento não devem ser vistos como os objetivos da biblioteca escolar, mas como condição para que ela alcance os seus reais objetivos, a saber, a promoção da leitura e a democratização
do conhecimento registrado.
Muito mais do que apenas ser um suporte pedagógico, a biblioteca
é um organismo vivo e dinâmico que, em conjunto com a ação do professor, potencializa o ensino-aprendizagem dos alunos.
A biblioteca escolar é responsabilidade de todos os seus frequentadores e não somente do bibliotecário, que por muitas vezes age como se
fosse o dono do recinto, decidindo a dinâmica do ambiente, esquecendo
que as atividades desenvolvidas pela biblioteca devem estar em consonância com os interesses de seus usuários. Para Silva (2003),
[...] o bibliotecário escolar é uma espécie de coordenador da biblioteca, responsável pela coordenação das sugestões, idéias, atividades vindas de todos os pontos da escola, sempre visando a transformação da biblioteca escolar num espaço
dinâmico e articulado com o trabalho desenvolvido pelo professor.
O silenciar em torno da biblioteca escolar é uma seara progressiva
que vem dos mais altos escalões até chegar às classes minoritárias, ou seja,
inicia com os governos, passando pelas políticas públicas, pelos cursos de
graduação, chegando ao professor, ao bibliotecário e, por consequência,
ao aluno, ou usuário desse espaço.
Constatamos que existem algumas pesquisas sobre políticas públicas e programas governamentais em prol da leitura e da biblioteca. O
governo vem se mobilizando para criação de recentes programas como
Literatura em Minha Casa, PROLER, PNBE entre outros.
Paiva e Berenblum (2009) desenvolveram uma ampla pesquisa
intitulada Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) – uma avalia88
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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ção diagnóstica (2009), realizada durante 2005 e 2006, em parceria com a
UNESCO, sobre o funcionamento do PNBE, que se ocupou desde 1998
da distribuição de obras literárias às escolas públicas para equipar suas respectivas bibliotecas com acervos coletivos. A pesquisa constatou que os
esforços estão longe de terem atingido os objetivos a que se propuseram,
pois muitas escolas nunca chegaram a receber os livros e, em muitas outras, os livros nem ao menos foram tirados da embalagem. Isto é, a escola
não soube o que fazer com as obras recebidas. Para Paiva e Berenblum
(2009), um programa para a formação de bibliotecas, de eficácia operativa
na distribuição de livros para as escolas beneficiadas, não pode manter-se
desvinculado das exigências de formação de professores, principais atores
no incentivo e na dinamização da leitura de crianças e de jovens no espaço
escolar.
Assim, percebeu-se que o PNBE, praticamente foi um grande programa de distribuição de livros, e não mais do que isso. Como se a existência de obras de qualidade fosse o caminho natural e suficiente para a organização de um acervo ou para a formação de leitores nas escolas públicas
brasileiras. O programa não previa apoio algum a projetos de formação
continuada de professores com o foco na leitura literária. Caixas de livros
certamente não equivalem ao conceito de acervo, que exige uma série de
requisitos, como visto acima. É diante de realidades como essa que a declaração que segue, de Piletti, faz sentido:
Quanto mais nos aproximamos da atualidade, mais pródigos foram os poderes
públicos em dispositivos legais que pretenderam superar os problemas seculares
da educação brasileira. No entanto, os males de sempre aí estão: o analfabetismo,
a repetência, a evasão escolar, a falta de escolas e de professores, as péssimas condições de trabalho (PILETTI, 2008, p. 25).
Até aqui descrevemos diferentes aspectos da precariedade que envolvem as bibliotecas escolares. Em seguida, vamos trazer, por meio de
Milanesi (1986) e Piletti (2008), inicialmente alguns pontos muito criticados na bibliografia sobre a educação escolar, para mostrar, logo depois,
de que maneiras as bibliotecas representam um caminho para transformar
todos esses aspectos, de maneira exemplar.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 89
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Milanesi (1986, p. 09) afirma que “a educação é um dos elementos básicos no processo de transformação da sociedade [...]. Educação que
não transforma, não é”. Porém não são poucos os estudiosos a demonstrar
o quanto a educação pode ser conservadora e resistente às mudanças. Vidal (2005), por exemplo, descreve a cultura escolar como um conjunto
de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar,
e como um conjunto de práticas que permitem a transmissão de conhecimentos e a incorporação desses comportamentos, normas e práticas
coordenadas às finalidades que podem variar segundo as épocas. Piletti
também indica os limites da educação e sua vertente de adaptação social:
Desde o nascimento, não importa nossa condição sócio-econômica ou o regime político sob o qual vivemos, o processo educacional atinge-nos por todos os
meios e cerca-nos de todos os lados: somos conduzidos a comportarmo-nos de
determinadas maneiras, a assumir posições consideradas adequadas; a mantermos relações de respeito com as pessoas adultas; a convivermos satisfatoriamente com nossos iguais, cumprindo nossos deveres sociais; a compreendermos o
mundo em que vivemos, a agirmos de acordo com princípios e regras morais
(PILETTI, 2008, p. 08).
Somos crias de um mundo já inventado, cujo passado autorizou
este presente. Nossa herança e responsabilidade já vieram inscritas na tradição ainda latente em nossas veias, orientam nossas tomadas de decisão,
assim como fizeram com as de nossos antepassados, com consequências
que muitas vezes recaem sobre nós. Afirmam Lopes, Faria Filho e Veiga
(2003), que cada tema e cada história são retalhos de uma mesma peça e
que é essa educação que nos pertence e à qual pertencemos.
O professor carrega a herança de uma escola que reproduz o sistema no qual se seguem dogmas, com pouco espaço para dúvidas, para
contestação da ordem estabelecida, e onde o professor, muitas vezes adota
atitude de conformismo ante tal situação, tem dificuldades para abandonar os padrões em que foi formado e dá continuidade à cadeia educacional
(PILETTI, 2008).
Milanesi (1986) propõe alternativas diante deste quadro. Refere
que não podemos criar escolas para alfabetizar indivíduos com uma fôrma
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
pré-estabelecida, através da qual estes indivíduos serão ajustados igualmente à sociedade, sendo preparados previamente a determinadas tarefas,
adestrados a um tipo de vida. Os indivíduos devem ser preparados para
o previsto, mas também para o imprevisto, para outros modelos de vida,
enfim, para o inusitado. Diz Milanesi (1986, p. 09) que “não adianta inaugurar bibliotecas da mesma forma que não adianta criar escolas para fazer
da alfabetização um instrumento ajustador da pessoa à sociedade como
ela é e não como deveria ser”. Por isto, para democratizar o acesso ao conhecimento na escola, Silva recomenda que seja preciso
[...] lutar contra o ensino dogmático e a transmissão do saber exclusivamente via
professor ou livro didático; significa, ainda, adequar os conteúdos do saber escolar à realidade da clientela atendida; significa, enfim, fazer do aluno um produtor
e não apenas um consumidor do saber, o que abre, a nosso ver, amplos espaços
para a inserção da biblioteca escolar no processo ensino/aprendizagem assim
concebido (SILVA, 2003, p. 69).
Segundo a sua reflexão, o contato com a biblioteca e com o livro
deve acontecer o quanto antes na vida de um indivíduo, pois desta forma
aquela passa a agir como um centro dinâmico de aprendizagem, contribuindo para uma educação crítica e transformadora, que capacitará os alunos na utilização das fontes de informação mesmo após o seu afastamento
do sistema escolarizado formal.
Para Milanesi,
É a prática que estimula a reflexão, que exige a teoria, que inclusive obriga à revisão da teoria. Isso, pelo menos no âmbito dos estudos da sociedade. O conhecimento da realidade vivida e transformada por aquele que a vive é o primeiro
passo para a continuidade do processo transformador (MILANESI, 1986, p. 30).
Temos a concepção de que o professor é uma das fontes de aprendizagem para o aluno – em geral, a fonte principal. A consequência de valorizar a biblioteca é que o professor deixa de ser a fonte privilegiada do
saber o famoso ‘dono do saber’ e sua tarefa passa a ser incentivar o aluno a
buscar, por si mesmo, outras fontes de saber. Mas, neste caso, precisa que
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 91
Ana Maria Netto Machado (Org.)
lhe sejam disponibilizadas fontes outras que não o próprio professor. É
nesse ponto que os acervos e bibliotecas ganham o papel principal, pois
somente com sua valorização e o seu uso intensivo na educação escolar é
que se conseguirá desenvolver uma formação cultural, enriquecida pelas
construções da civilização, que estão ‘escondidas’ nas obras, mas podem
se tornar disponíveis quando existem acervos organizados e profissionais
preparados para dinamizá-los. Este parece ser o caminho para de fato se
promover uma educação para autonomia, sem dependência e sem subserviência. Nesta concepção educativa é que o professor, como agente
criador de oportunidades de aprendizagem contribuirá direta ou indiretamente para incluir a biblioteca no repertório de recursos do aluno, para
que possa ir à busca de novos aprendizados pela vida afora.
Ao pensarmos a biblioteca como um centro de informações disponíveis a alunos e professores, onde não exista a censura de saberes, mas, ao
contrário, exista a possibilidade de escolha e a liberdade para selecionar
leituras, teremos nela um instrumento de desordem, como diz Milanesi
(1986), que não homogeneizará o discurso – como a escola e os meios
ideológicos de comunicação fazem quando reproduzem um sistema de
normas. Milanesi (1986, p. 25) mostra que “a biblioteca tendo em seu
acervo múltiplos discursos que se desdobram ao infinito não dá uma direção, mas propõe alguns caminhos, deixando ao indivíduo a tarefa de avaliar e decidir.” Aí poderia residir uma grande oportunidade para desenvolver a tão desejada autonomia, pretendida pela escola. A própria existência
da biblioteca na escola, cultivada, cuidada, disponibilizada, pode encaminhar o desenvolvimento dessa atitude.
Milanesi (2003, p. 25) diz que “é preciso pensar que o fundamental não é a informação em si, mas o conflito que traz. [...] O fundamental
não é o conteúdo, a carga ideológica, mas a força dos antagonismos em
choque”. O senso crítico só será desenvolvido ante a contradição, a prática
da dúvida perante a ordem estabelecida, criando embates sistemáticos de
desordem, para que um discurso seja assumido como a verdade dentro de
uma lógica, mas que também possa ser discutido, revisto e aperfeiçoado.
E, como instrumento potencializador de tal atitude, temos a biblioteca
como centro informacional: um organismo vivo e ativo que se transforma
diariamente. Pois, na medida em que as informações são confrontadas, os
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
leitores podem estabelecer novas relações entre dados e informações disponíveis. Dessa forma novos fatos e novas teorias também passam a ser
exigidos.
Assim pensava também um dos autores que mais contribuiu para a
elaboração do conceito de Bildung, Humboldt, que ocupou cargo semelhante ao Ministro de Educação na Prússia de seu tempo e organizou o
sistema educacional da nação. Humboldt considerava que, se o Estado
garantisse uma formação moral sólida e os estudos envolvessem rigor e
liberdade, a nação contaria com pessoas bem formadas que se associariam
umas às outras e usariam o conhecimento para encontrar soluções para
os problemas que encontrassem na sociedade. Dentro do contexto da Bildung, a curiosidade, a busca e abertura de espírito eram essenciais para a
educação.
Em nosso contexto brasileiro, Silva considera que, indiscutivelmente, a biblioteca é a principal ferramenta a ser usada para sanar as deficiências culturais adquiridas ao longo da vida educacional e fora dela. Ele
afirma que:
Na escola, a biblioteca certamente poderá ser uma das instâncias capazes de
proporcionar ocasiões para o aluno interessado em aprofundar, por conta própria, o seu conhecimento. Fora da escola, também é a biblioteca uma das instituições mais indicadas para alicerçar a auto-educação dos cidadãos, dada a
variedade de recursos informativos que ela pode oferecer, a liberdade de opção
que proporciona e o baixo custo que sua utilização representa para o consulente (SILVA, 2003, p. 40).
Para Freire, Nóbrega, Badini e Araújo (2009), a função educativa
da biblioteca escolar representa um reforço à ação do aluno e do professor. Mas, para nós, a biblioteca pode e deve se tornar o ponto central
da educação, no qual, alunos e professores possam desenvolver juntos
habilidades de estudo independentes e possam autoeducar-se pela busca continuada de conhecimento. Autoeducar-se é um dos princípios do
conceito de Bildung.
Silva (2003, p. 37) afirma que “O exercício da criatividade e do
questionamento, somado a experiências de aprendizagem diversificadas,
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 93
Ana Maria Netto Machado (Org.)
permitirá ao estudante superar a mera reprodução do discurso docente,
tornando-o sujeito da sua aprendizagem”.
Para Paiva e Berenblum (2009), uma concepção mais cuidadosa
dos usos sociais da escrita, e de suas implicações no campo do desenvolvimento de sistemas de pensamento e de esquemas cognitivos mais amplos,
poderia considerar a potência geradora de conhecimentos que é a biblioteca, como fonte de desenvolvimento da autonomia de pensamento e de
criatividade e poderia torná-la um instrumento indispensável na formação
da identidade dos atores da escola e da comunidade.
Converge também para este conjunto de ideias o pensamento de
Silva, ao formular:
Estamos convencidos de que no Brasil, no campo das bibliotecas, as atenções
têm de se voltar prioritariamente para as bibliotecas escolares e para as bibliotecas públicas, espaços que, se minimamente organizados, podem desempenhar
um importante papel na elevação do nível cultural e da consciência crítica da população brasileira (Silva, 2003, p. 23).
Talvez devido à situação de miséria e pobreza em que vive uma
grande parte da população brasileira, a biblioteca não seja entendida
como prioritária, como um dever do poder público para com o cidadão,
pois este passa muito tempo empenhado em garantir a sua sobrevivência
e não lhe resta muito tempo para reivindicar o direito a cultura e educação. A biblioteca, por ser lugar de livros, talvez se considere associada a
bens supérfluos, e não a bens fundamentais ou de primeira necessidade,
quando na verdade considerar as bibliotecas escolares como prioritárias
poderia qualificar a formação escolar.
Confirma Silva (2003, p. 54) quando diz que “A valorização excessiva dos bens materiais, característica de uma sociedade de consumo,
como é a capitalista, em detrimento do valor moral e intelectual do homem, concorre para afastar as pessoas da biblioteca”. Em compensação,
uma educação com bibliotecas consistentes poderá fortalecer os valores
morais e intelectuais em detrimento do consumidor!
Diremos com Silva (2003) que não basta denunciar o descaso com
a problemática das bibliotecas escolares nem se lamuriar, mas é preciso
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
anunciar, criar caminhos, propor alternativas, construir iniciativas que fertilizem os debates em prol da biblioteca escolar, com uma discussão fértil
e profícua, a partir da qual se criem caminhos para a transformação da realidade problemática existente. Este trabalho quer se somar à construção
destes caminhos.
Para que haja melhorias em relação à biblioteca escolar, faz-se necessário primeiramente, pensá-la dentro da totalidade dos problemas da
educação em nosso país. Qualquer análise sobre a biblioteca escolar que
não leve em conta a realidade educacional contraditória na qual ela se insere não encontrará caminhos possíveis para a sua (re) construção na escola brasileira (SILVA, 2003).
Silva é categórico ao dizer que:
A biblioteca escolar e a escola pública brasileiras têm saída, mas ela não está dada,
quer dizer, precisa ser construída coletivamente através do pensar e do fazer dos
educadores, dos alunos, dos pais, enfim, de todos os segmentos sociais realmente
comprometidos com a reconstrução do sistema de ensino público no Brasil (SILVA, 2003, p. 91).
Não existe receita miraculosa para a transformação da biblioteca
escolar e da escola brasileira: existem propostas a serem experimentadas
e aperfeiçoadas com base nas estruturas que estão em funcionamento. Finalizamos com Silva (2003, p. 108), quando afirma que “não podemos
transformar apenas a biblioteca escolar, sem questionarmos a escola, bem
como esta não pode ser plenamente transformada sem que seja alterada
a ordem social vigente”. Não está ao alcance do professor, da escola nem
da biblioteca mudar a ordem vigente. Mas pode-se esperar de bibliotecas
que contem com acervos e pessoal qualificado, uma enorme contribuição
para a formação cultural de gerações capazes de transformar a sociedade
naqueles aspectos que hoje criticamos.
É importante ainda ter em mente que a situação atual das bibliotecas tem raízes históricas que remontam a um passado que muitas vezes não é levado em conta, por ser muito distante no tempo e no espaço.
Recuperar a memória, mesmo se esta caminhada requeira esforços e não
seja tão fácil, está entre as condições para sedimentarmos passo a passo
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 95
Ana Maria Netto Machado (Org.)
as mudanças almejadas. Ainda afirmamos que uma biblioteca não se faz
apenas com caixas de livros novos ou equipamentos nem com um espaço
reformado, mas com a consciência da importância daquele espaço como
um organismo vivo, ativo e transformador na vida do ser humano.
Referências
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ZILBERMAN, R. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC São Paulo, 2001.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
RECONHECER OS SABERES DOS PROFESSORES
PARA CONSTRUIR CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS
ÀS PRÁTICAS INCLUSIVAS
Vanir Peixer Lorenzini
E
ste trabalho se origina de uma reflexão sobre os resultados de
uma pesquisa que teve como campo de investigação salas de aula
em escola regular, com crianças consideradas com necessidades
educacionais especiais – NEE, inclusas. A problemática abordada pela
pesquisa foi delineada a partir de vivências profissionais e pessoais da
pesquisadora com estes sujeitos, e de análises sobre práticas pedagógicas
que constituem o processo educacional escolar, tanto em instituição de
educação especial quanto de educação regular. Optou-se por trazer dados
empíricos com a finalidade de dar visibilidade aos acontecimentos de sala
de aula, muitas vezes imperceptíveis ou pouco valorizados à primeira vista
e que se reconhece como valiosos para a análise pretendida.
As experiências e os discursos docentes relativos à inclusão escolar têm trazido à tona uma realidade complexa, permeada por algumas
situações/questões problemáticas que se arrisca aqui designar como paradoxais. Estas têm se estabelecido a partir de vários ângulos do processo
de inclusão escolar desencadeado pelas determinações legais em vigor:
Constituição Federal (1988); Lei de Integração da Pessoa com Deficiência (7.853/89); Decreto que normatiza a Lei 7.853/89 (3.298/99);
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96); Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (2001) e, recentemente, a Política de Educação Especial na perspectiva da Educação
Inclusiva (2008).
O conhecimento educacional especializado sobre as NEE, decorrentes de deficiências orgânico-funcionais e que interferem no desenvolvimento humano, por ter sido desenvolvido paralelamente ou à margem
da educação geral, por assim dizer, parece não ter possibilitado, por suas
bases, organizar o processo educativo dentro da sala de aula regular pois,
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 97
Ana Maria Netto Machado (Org.)
em princípio, apresenta um teor individualizante1, focando o sujeito e
suas deficiências, o que, em uma sala de aula regular, resultaria numa discriminação do aluno. Ao centralizar as ações no sujeito, negligenciam-se
as interações sociais constitutivas deste mesmo sujeito, dadas à revelia de
quem orienta o trabalho. Neste sentido, este conhecimento especial, que
originalmente esteve enraizado no modelo médico-psicológico2, precisa
continuar sendo transformado para encontrar espaço em outro lugar que
até então não lhe era habitual: a sala de aula regular. Há um esforço a ser
despendido no deslocamento do conhecimento especializado para outro
espaço que se configura de maneira diferente tanto espacial quanto temporalmente. Uma mediação entre saberes de fontes e redutos heterogêneos
parece ser requerida para que os conhecimentos especializados venham,
efetivamente, a contribuir com a educação dos alunos, já que deixaram de
ser exclusividade dos educadores especiais, para ocupar espaço nas escolas que, por direito, todo cidadão pode frequentar.
A divisão entre educação regular e educação especial3 dificultou
a interlocução entre os profissionais das diferentes áreas da educação. O
afastamento não se restringiu aos alunos que eram considerados deficientes, ou, como hoje se denomina, com NEE. Os professores também foram se afastando pelas contingências formativas e pela distância entre os
espaços do exercício profissional, tornando hoje este diálogo improvável
ou, no mínimo, difícil. Por um lado, há professores que se dizem incompetentes para lidar com alunos com NEE em suas classes. Por outro, há
1 A individualização da atividade, específica para o sujeito leva seu afastamento dos demais da sala de aula:
em relação à solicitação proposta, objetivo a ser alcançado, expectativa de produção e tempo de execução.
Parece-nos que não se refere à pedagogia centrada na criança defendida na Declaração de Salamanca (1994)
que visa ao reconhecimento e atendimento das necessidades educacionais especiais e, portanto, respeito às
diferenças individuais.
2 O modelo médico-psicológico (MICHELS, 2005) sustenta-se num caráter terapêutico, o qual tem como
objetivo a reabilitação/correção de desvios do que se considera como normal, em função de deficiências/defeitos.
3 A educação especial vinha sendo desenvolvida em escolas e classes especiais. Este modelo de escola teve
seu início no Brasil por meio de iniciativas com intuito de atender demandas específicas dos envolvidos no processo, como por exemplo, a criação do Instituto dos Meninos Cegos em1854, hoje Instituto Benjamin Constant
e do Instituto dos Surdos-Mudos 1857, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos ( JANNUZZI, 2004).
A existência das instituições de educação especial continua sendo assegurada pela Lei de Diretrizes e bases da
Educação Nacional nº. 9394/96, em seu artigo 58, 2º, onde se lê: “O atendimento educacional será feito em
classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não
for possível a sua integração nas classes comuns do ensino regular”. No entanto há uma tendência para a reconfiguração desses espaços na direção de centros de atendimento de educação especial, exemplo da Política de
Educação Especial de Santa Catarina (2009).
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
professores que assumem ser portadores de um conhecimento especial,
mas que não se articula com o que acontece em sala de aula regular. Uns
‘não sabem’, outros ‘sabem, mas não o que é necessário saber hoje’.
Não há solução fácil nem única. Mas é possível pensar que o diálogo
é o caminho. E para isto o reconhecimento4 dos saberes do outro é condição fundamental. A ‘receita’ oferecida a partir de um diagnóstico com
dados clínicos, não se aplica numa prática pedagógica que envolva muitos
sujeitos em grupo. No entanto, este conhecimento sobre as especificidades de uma conduta modificada por interferências no desenvolvimento
humano pode ser valioso na tentativa de se descobrir como o sujeito se
organizou a partir delas.
Os professores do ensino regular que estiveram realizando seu trabalho docente com base em diferentes abordagens, mas que não modificaram estruturalmente a sala de aula, têm ensinado a um grupo de alunos, ao
mesmo tempo, tendo a expectativa de que todos aprendam. Para eles, alguém que destoa do grupo, quebrando a harmonia desejável, torna-se um
empecilho, indesejável, ou alguém que captura a sua atenção de tal modo
que ficam prisioneiros desta incumbência: tornar aquele ser ‘estranho’ um
aluno da sua classe. É neste sentido que o comportamento homogêneo
entre os alunos é inicialmente buscado ou induzido pelos professores, tarefa que acaba exigindo boa parte de seu tempo.
Sobre o papel padronizado de aluno pode-se trazer aqui a contribuição de Sacristán (2005) em sua obra A Invenção do Aluno, na qual analisa aspectos que discutem a invenção da posição social deste sujeito no
contexto escolar, assim como as idéias de Arroyo (2004) que induzem os
professores a quebrarem as imagens constituídas por esse perfil de aluno
idealizado.
A pesquisa trazida para esta discussão pode mostrar que os professores não ficam sem fazer nada com alunos com NEE. Diante de suas
presenças, criam formas e soluções que lhes parecem eficientes para aproximar estes alunos do que se espera dos demais. Destas tentativas, muitas
resultam bem sucedidas, outras lhes parecem inadequadas e sem resultados. As observações nos campos de investigação permitiram algumas
categorizações que, embora consideradas provisórias, parecem fecundas
4
A noção de reconhecimento trazida aqui se fundamenta nos estudos de Honneth (2003).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 99
Ana Maria Netto Machado (Org.)
para encontrar caminhos e jeitos de caminhar que reconheçam e autorizem os professores a desenvolverem seus trabalhos, utilizando os recursos
de que dispõem.
Pôde-se verificar a promoção de atividade diferente, com expectativa diferente em relação aos resultados do aluno; atividade igual, mas
sem expectativa aparente; ou atividade igual, porém sem preocupação
com as NEE. As formas de atividade individualizada e atividade coletiva se intercalam, embora possa ser observada uma tendência pela atividade individualizada. A partir dos dados observados pode-se perceber que
os professores não estão de braços cruzados, esperando que alguém venha
decidir ou indicar o que fazer quando o seu aluno chega à sala.
No entanto, os docentes têm poucos e raros espaços para refletir
sobre o que fazem, porque não têm oportunidades de dialogar sobre a sua
prática, não encontram interlocutores. Trata-se da solidão, à qual se refere
Correia (2001) em suas pesquisas com docentes.
Dos apoios externos (supostos portadores do saber necessário) recebem ‘orientações de como agir’ com os alunos com NEE, recomendações
que nem sempre conseguem cumprir porque as relações do cotidiano de
suas salas são sempre inéditas, como são as interações sociais, e portanto
imprevisíveis. O que acabam fazendo é fruto de intuição do momento. Fazem o que lhes parece resultar eficiente. Quase sempre são condutas que
não revelam a outrem – ou porque não são legitimadas a partir de estudos
ou pesquisas, ou porque as consideram inadequadas – e pelas quais, muitas
vezes, se autocensuram, considerando-as sem fundamento pedagógico.
A atividade diferente, na tentativa de colocar o aluno com NEE
em ação, salienta sua diferença, porque o isola dos demais, colocando-o
numa tarefa solitária. Parece haver uma conjugação entre a tarefa diferente e a individualização, ambos elementos típicos ou característicos do
tratamento terapêutico que marcou fortemente a educação especial em
ambientes segregados5. A diferenciação das atividades oferecidas, ao lado
do tratamento individualizado ao sujeito que se diferencia dos demais, induz o professor a promover-lhe um encaminhamento pedagógico solitário. Numa outra perspectiva, que valoriza o trabalho coletivo, poder-se-ia
trabalhar no sentido de transformar o ‘solitário’ em ‘solidário’.
5
Escolas e classes especiais.
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A minimização das expectativas em relação ao desempenho também parece ter um peso relevante: o professor espera pouco e o estudante
corresponde como convém, isto é, adequadamente à proposta do professor: com pouco. Pode-se exemplificar esta lógica numa das observações da
pesquisa realizada. No início não se esperava de Diogo6 além do que repetia todos os dias: pintar uma folha. Parecia não haver expectativa diferente
em relação à produção deste aluno. Padilha (2001) mostra que quando há
um investimento pedagógico apoiado na crença da capacidade humana de
aprender, direcionando os esforços para os pontos fortes do sujeito, reconhecendo a sua capacidade de mobilizar-se e se transformar, os resultados
são promissores. As expectativas regulam as solicitações direcionadas ao
sujeito e o provocam na direção da correspondência – o que também pôde
ser verificado a respeito de Diogo na sequência das observações feitas em
sua sala de aula.
Atividade coletiva: um caminho possível...
O menino já mencionado anteriormente frequentava uma classe de
uma escola situada num bairro periférico da cidade, campo da pesquisa.
Sua classe comportava 14 alunos de 2º ano7. Era uma sala de aula pequena,
medindo em torno de quatro por cinco metros, com carteiras individuais, quadro-negro e livros didáticos. Tudo aparentemente lembrando uma
escola, uma classe, uma sala de aula como qualquer outra. A diferença conhecida de antemão é que nela estavam inseridos três alunos considerados
com necessidades educacionais especiais.
Mas, já na primeira observação, outra diferença não pôde passar
despercebida: a disposição das carteiras indicando agrupamento dos alunos, o que não é frequente nas salas de aula da grande maioria das escolas
públicas (ou até mesmo privadas) da região. Observações sobre encaminhamentos pedagógicos, para alunos com NEE, sem planejamento prévio
para receber uma presença estranha na sala, no caso uma pesquisadora,
pode ser considerado precioso por aproximar-se do que constitui o cotidiano da prática docente. E o que pôde ser capturado em um primeiro
6 Diogo é um nome fictício dado ao aluno com NEE, referido neste texto.
7 Denominação dada a partir da Lei de implantação dos nove anos no Ensino Fundamental, nº. 11.274 de
2006, o que corresponde à anterior primeira série deste mesmo nível da Educação Básica brasileira.
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olhar constituiu-se, naquele momento, em indícios para apreender sobre
o que faz o aluno com NEE na classe regular.
Esta primeira observação foi centrada nos trabalhos da turma, que
naquele dia tratava-se da escrita de um texto. A professora ofereceu para
Diogo uma folha em branco e giz de cera. Imediatamente ele começou a
pintar sem olhar para o que fazia. A professora justificou a atividade diferente em função das dificuldades do aluno, especialmente em relação ao
seu comportamento. E relatou rapidamente que o mesmo batia em seus
colegas, além de proferir palavrões com muita frequência. É em função
disto que uma estagiária do curso de Psicologia o acompanha, auxiliandoo no que lhe é proposto. Pode-se dizer que o aluno não acompanhava as
atividades da turma; no entanto, ‘foi colocado junto a um dos dois grupos’; a turma se organizava em dois grupos naquele dia. Os agrupamentos
pressupõem trabalho coletivo, permitindo interações, por meio das quais
uns aprendem com os outros. O episódio é digno de nota e pode ser entendido à luz de Vygotsky, (1999) como promotor do desenvolvimento
do sujeito, especialmente das funções psicológicas superiores, que são
construídas socialmente. Talvez a professora não agisse consciente desta
referência. Porém sua prática concretizava, de algum modo, tais pressupostos teóricos naquele momento.
Mudanças num curto período de tempo (exatamente trinta dias)
puderam ser observadas naquela sala de aula, especialmente em dois aspectos relacionados aos encaminhamentos pedagógicos da professora
com relação a Diogo, sujeito focalizado nesta análise. As mudanças referem-se à atividade que executava, aliadas à expectativa sobre sua produção
e sua inserção no grupo. Se no primeiro momento ele estava junto a um
grupo, mas com uma atividade diferente da dos colegas, e provavelmente
sem maiores expectativas por parte da professora; no segundo, embora
afastado do grupo, ‘pintava’ uma folha, mas já não era uma folha em branco; era igual a dos demais: mimeografada. O material dele era o mesmo da
turma, embora a expectativa em relação à sua produção ainda não fosse
a mesma que a professora tinha com relação aos demais alunos. Não havia sido feita nenhuma solicitação ao aluno quanto à folha que recebera e,
com isto, pôde-se presumir que a sua pintura sobre aquele material também seria aceita.
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Contudo mudanças começaram a aparecer, ora em relação ao material, ora em relação à inserção de Diogo no grupo de alunos. E cabe
acrescentar que, no decorrer dos contatos com a pesquisadora, a professora, no sentido de desculpar Diogo por não executar as tarefas da
turma, começava a ressaltar habilidades orais do aluno em foco, mas
acrescentando também outras não visualizadas anteriormente. Exemplo
disso pode ser o fato dela fazer questão de mostrar uma primeira cópia
realizada por Diogo, que a professora denominou ‘escrita em linha’, assim como um caderno novo, dizendo ser mais uma tentativa de inserir o
menino nas atividades da turma. Parecia que a professora estava interessada e processando a integração do aluno no grupo, tanto no sentido da
atividade, quanto de sua expectativa – que tinha crescido e começava a
ser correspondida pelo menino.
A partir deste episódio começou a tomar corpo um possível efeito da presença da pesquisadora, carregada de expectativa com relação às
práticas inclusivas da professora: esta por sua vez começava a ter outras
expectativas, em relação à capacidade do aluno com NEE em se enturmar.
Isto traz à cena uma espécie de triangulação na interação professora-aluno-pesquisadora, com cumplicidade e interesse crescentes no desenvolvimento da criança.
Esta cumplicidade, solidariedade e reconhecimento entre pro­
fessor e pesquisador em sala de aula são trabalhados por Jesus (2004;
2005; 2006) em suas pesquisas e orientações, como, por exemplo, na
dissertação de Almeida (2004) que privilegia a cooperação na formação
em contexto, com manejo das relações em sala de aula e observações sistemáticas dos alunos, e aponta para a necessidade de agir coletivamente
na escola com responsabilidade compartilhada. É necessário lembrar
que os diálogos entre a professora e a pesquisadora, sujeitos desta análise, eram constituídos da fala da professora e de algumas intervenções
muito breves da parte da pesquisadora, quase sempre no sentido de confirmar suas ações ou discursos. Não se tratava de uma ação planejada da
pesquisa, mas antes inevitável interação entre sujeitos em um contexto
determinado.
Em outra oportunidade, Diogo recebeu seu caderno, assim como
os demais alunos. Embora sua atividade fosse diferente, tinha relação diTOC TOC TOC! Eu quero entrar 103
Ana Maria Netto Machado (Org.)
reta com a tarefa do grupo. Enquanto os demais iam pintando palavras
que serviam como respostas às perguntas sobre um texto, Diogo deveria
encontrar as vogais em uma caixa de letras para colar em seu caderno, e
depois pintar as que apareciam no título do texto (o mesmo texto dado
para toda a turma). A atividade já não era totalmente diferente. Havia uma
expectativa diferente da professora em relação à capacidade de produção
da criança comparada com a expectativa que tinha sobre a do grupo, mas
de qualquer modo começava a haver uma expectativa de produção.
Na sequência das observações, Diogo recebera uma folha igual à
dos demais alunos, na qual apareciam animais e balões para escrita de
um possível diálogo entre eles. As crianças deveriam pintar primeiro, depois escrever os diálogos. A recomendação a Diogo foi para que evitasse
pintar os balões. Parecia haver aí uma tentativa de dar a Diogo a mesma
atividade, esperando que sua produção se aproximasse da dos demais.
Diogo pintou a folha, às vezes sem olhar para o que fazia, mas evitava, de
algum modo, pintar sobre os balões. Enquanto as outras crianças começavam a escrever os diálogos, a professora ofereceu a Diogo uma cartela
onde havia seu nome escrito para que o copiasse na sua folha. Diogo foi
copiando as letras, uma a uma, empenhado em alinhá-las na folha. Não
é a mesma tarefa, mas já é uma escrita que exige mais de Diogo. É possível identificar aqui o conceito da zona de desenvolvimento proximal,
desenvolvido por Vigotski (1999). Se Diogo já estava copiando letras,
era a vez de solicitar-lhe que as copiasse em uma determinada ordem,
exigida pelo seu próprio nome.
A última observação na referida sala de aula mostrou que as crianças estavam sentadas separadamente, com as carteiras voltadas em direção
ao quadro. Lá estava escrito um texto. Na mão da professora, o mesmo
texto fragmentado em tiras de papel que distribuiu a todos os alunos. Diogo também recebeu a sua, assim como a pesquisadora. A expectativa era
que o fragmento do texto escrito na tira de papel fosse lido e, depois, fosse
reconhecido por seu portador, assim que fosse apontado pela professora
no quadro-negro. À medida que se fazia uma leitura coletiva, em voz alta,
acompanhando a indicação da professora, uma resposta era esperada de
cada aluno, ou seja, bater palmas quando fosse lido o seu fragmento de
texto em voz alta. Mesmo que Diogo tivesse que ser lembrado toda vez
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
que aparecesse sua palavra, ele estava fazendo a mesma atividade do grupo
e era esperada dele a mesma resposta dos demais.
Pôde-se observar em pouco tempo, em torno de três semanas,
mudanças significativas tanto em relação às expectativas quanto à correspondência de Diogo às mesmas. As interações entre os alunos foram se
modificando à medida que Diogo interagia, também pela semelhança das
atividades. Foi-lhe outorgado o direito a fazer parte daquele grupo, ele foi
autorizado a participar das atividades no coletivo da classe. Já não era o
menino que devia ser contido porque era agressivo, porque batia nos colegas ou respondia a todos com palavrões, mas um aluno que também produzia algo esperado. Diogo começava a escapar8 da redução a qual havia
sido submetido: ‘o menino agressivo’.
Vê-se, através desta observação em sala de aula, uma aproximação
progressiva entre espaços subjetivos distintos que habitam o mesmo espaço físico, e que vão de detalhes materiais a posturas e atitudes perante o
outro. De início, a diferença estava no material e na atividade. A mudança
começou pelo material, isto é, foi oferecido ao ‘menino especial’ o mesmo
tipo de folha, mas a atividade não era a mesma. Na sequência, o material
era o mesmo e a atividade não era a mesma, mas apresentava relação com
a do grupo. Em seguida, o material era o mesmo, a atividade era a mesma,
mas não na mesma medida. E, por fim, o material era o mesmo, a mesma
atividade e expectativa de resposta semelhante. Apesar de não corresponder totalmente à proposição da professora, Diogo, naquele momento, era
um aluno tão semelhante e tão diferente, como qualquer outro.
As análises realizadas, focando um dos alunos com NEE, sujeitos
dessa pesquisa, permitiram vislumbrar alguns aspectos que configuram
possíveis práticas pedagógicas desenvolvidas em salas de aula onde eles
estejam inseridos. Ao se deslocar o olhar para outro aluno, da mesma
classe, pode-se observar outros aspectos tão importantes quanto estes
abordados, indicando que a observação no cotidiano, dos pequenos acontecimentos que constituem a dinâmica da sala de aula pode ser bastante
8 A idéia de escapar da redução conceitual à qual fora reduzido pode ser entendida a partir da compreensão
sobre espaços de segregação e clausura, abordada no contexto das teorias foucaultianas (FOUCAULT, 2005)
A necessidade de desconstruir espaços de confinamento/aprisionamento, mesmo que alguns aconteçam em
coexistência com espaços sociais, mostra-se como movimento relevante e necessário nos âmbitos escolares,
sobretudo quando se trata de promover a inclusão escolar.
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proveitosa para se refletir sobre a prática pedagógica. A análise microgenética desenvolvida por Kelman e Branco (2004), investigando as interações
entre surdos e ouvintes em sala de aula regular, mostra a importância dada
aos detalhes observados enquanto ocorre o processo de aprendizagem,
podendo ser detectadas as formas pelas quais o sujeito aprende.
Algumas considerações para refletir...
A observação do cotidiano de uma sala de aula permitiu nesta pesquisa vislumbrar alguns indícios relevantes para a reflexão sobre a prática
pedagógica que se desenrola em classes regulares com alunos considerados com NEE. Antes de retomá-los, convém relembrar o paradoxo instalado na prática pedagógica nas séries iniciais do ensino regular a partir da
determinação legal de incluir as crianças com NEE nas escolas regulares:
a presença de alunos que as apresentam tem colocado em questão a formação docente dos professores que atuam nas séries iniciais do ensino
regular. Afinal, estão diante de alunos que fogem ao padrão habitual, que
problematizam a sua prática cotidiana levando-os a enfrentar uma situação cuja complexidade julgam não poder enfrentar ou resolver. O que tem
provocado distanciamento indesejável entre os sujeitos que conformam o
par educativo: aluno e professor.
Os alunos não se veem reconhecidos como sujeitos de aprendizagem e os professores não se reconhecem capazes de ensiná-los. Apesar
dessa situação conflituosa, os professores não ficam inertes, agem com
base em seus saberes. Não podem ignorar uma presença que modifica seu
contexto habitual. O que fazem, porém, nem sempre revelam aos outros.
Insistimos que agem assim porque não reconhecem suas ações como encaminhamentos válidos, cientificamente legitimados.
Entretanto os conhecimentos oriundos da prática têm ganhado
relevância a partir de alguns estudiosos como Loiola e Therrien (2003,
p.2), que buscam pistas desse conhecimento no ‘chão da sala de aula’. Os
saberes da experiência, conforme Tardif (2001) e Larrosa (2002) ganham
também status e vêm sendo considerados importantes na formação docente por todos aqueles que assumem um posicionamento na direção da
superação da dicotomia entre teoria e prática pedagógica.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Diante de situações sempre inusitadas e incertas, os professores
valem-se destes conhecimentos, construídos a partir de experiências em
sala de aula e, também, a partir dos desafios que exigem encaminhamentos
pedagógicos em relação às pessoas com NEE. Sem reconhecê-las como
práticas válidas, os professores vão encontrando saídas, mesmo que não
assumam a responsabilidade pelos saberes que julgam necessários à situação. Estes professores não podem furtar-se ao envolvimento com a problemática apresentada. Afinal os estudantes com NEE estão lá, dentro de suas
salas de aula e sua presença exige respostas imediatas desses professores.
As práticas pedagógicas – que se constituem neste processo de inclusão escolar – podem representar estratégias bastante diferenciadas por
parte dos diferentes atores. Isso indica, em princípio, a presença de perspectivas diferentes no encaminhamento das questões. Nas observações
trazidas pela pesquisa, objeto desta análise, alguns aspectos emergiram
como pontos relevantes para refletir.
As diferenças humanas – entendidas a partir de desvios corporais,
somente (re)significam a deficiência, a falha. Desta forma, olhar para o diferente significa ver o que não é comum ou o que não é normal. Isto pode
levar ao afastamento das pessoas envolvidas, impedindo-as de aprenderem
a partir de suas diferenças. Cabe, talvez, caminhar para uma concepção de
diferença humana enquanto característica comum aos humanos, aproximando-os e ao mesmo tempo permitindo-lhes uma identidade intransferível, que lhes garanta uma existência única e inigualável. E, para tanto,
é necessário compreender que nos constituímos com os outros, com as
diferenças, sejam elas radicais, toleráveis ou imperceptíveis, do ponto de
vista do contexto no qual se inserem.
A inclusão escolar não é um fenômeno desarticulado do contexto
da sociedade. A inclusão pressupõe o seu oposto. Quando se discute inclusão escolar, no mínimo se admite que a escola ainda está longe de ser para
todos. As condições concretas de vida ainda determinam as possibilidades
de inclusão de todos como beneficiários de um processo educacional que
garanta desenvolvimento e inserção social. Embora já se perceba um movimento na direção do reconhecimento da diferença enquanto característica de todo ser humano, é necessário trazer para esta discussão que as diferenças que nos constituem não são somente naturais e que as condições
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objetivas, concretas de vida, se não as determinam, contribuem de maneira fundamental para revelá-las. Neste sentido, Vygotsky (apud CARLO,
2001) já afirmava que a deficiência tinha um caráter mais social do que
biológico. A deficiência no corpo determina apenas a condição inicial com
o que o sujeito conta para resolver as situações que se lhe apresentam.
É nesta direção que Vygotsky (1997) desenvolve o conceito de
compensação. O sujeito, diante de um impedimento, reorganiza toda sua
conduta tornando-a não deficiente, mas diferente. Esta constituição se dá
no coletivo, a partir das interações que estabelece com os demais, na forma como é reconhecido pelos outros. Vygotsky (1999) assegura que o
desenvolvimento humano é muito mais dependente das condições sócioculturais do que de determinações biológicas. Tornamo-nos humanos no
convívio com humanos.
Os saberes dos professores que estão atuando em classes com alunos considerados com NEE, se vistos e reconhecidos, poderão apontar
indícios para a reflexão e possível construção de conhecimentos legítimos
porque significativos e efetivos em sua prática. Ouvir os professores das
escolas regulares que atuam junto a esses alunos com NEE parece produtivo no sentido de capturar a realidade sem véus e sem representações idealizadas a partir de discursos distantes dos conhecimentos da experiência.
Ver o que já estão fazendo em suas salas de aula, porque não estão inertes
diante dos sujeitos que lá estão, parece promissor no sentido de analisar
as possibilidades deste fazer pedagógico que requer mudanças, tanto em
seus fundamentos quanto em sua efetiva realização.
Investir em pesquisas que abordam a prática docente numa perspectiva colaborativa ( JESUS, 2006), a partir das experiências do cotidiano escolar, considerando os professores como parceiros nessa tarefa, privilegiando um olhar sobre as interações entre os sujeitos (VYGOTSKY,
1999), parece ser, além de uma necessidade dos professores, uma saída
possível da inércia que se instala na educação escolar, ao considerar apenas
os obstáculos oriundos da inclusão dos alunos com NEE.
Quando o sujeito é visto pela via do defeito, do que não sabe, do
que não pode, ou do que não tem, age e interage da forma como é percebido. O mesmo pode ser dito com relação ao professor. Quando ele é visto
como professor de classe de alunos regulares e não de classe especial ou de
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alunos especiais, ele atende às expectativas do sistema em que está inserido. Alunos e professores ocupam o lugar da diferença que lhes é destinado
e correspondem a este papel. Em contrapartida, o reconhecimento do sujeito, em sua singularidade, no seu modo particular de interação e conexão
com o mundo, permite outro olhar para a condição humana e assim, mais
especificamente, se reconhecidos os seus saberes, os professores assumem
outra posição, a que legitima sua ação e pela qual se sentem responsáveis.
Muitas vezes, mudanças significativas podem ser desencadeadas
com paciência e atenção aos indícios e detalhes do cotidiano, nessa filigrana de relações, atitudes, olhares, palavras, gestos, sons que, em sua
aparente insignificância, são capazes de operar necessárias e importantes
transformações.
Talvez seja necessário desviar o olhar, mudar o eixo do olhar, para
ver, como em um caleidoscópio, outras dimensões da realidade que ainda
não se viu. Olhar o que fazem professores e alunos no cotidiano das salas
de aula, vale a pena insistir, parece ser um caminho bastante promissor na
tentativa de encontrar saídas para essa nova situação vivida pela escola: a
inclusão de alunos considerados com NEE. Olhar o que já sabem fazer,
mas, sobretudo, como fazem, que sentidos constroem a partir do que sabem e do que fazem. Olhar para as minúcias, para o negligenciado, no que
está opaco buscar os indícios, como enfatiza Ginzburg (1989).
A solidão dos professores, especialmente daqueles que têm em suas
salas de aula alunos com NEE, vem sendo quebrada pela presença de outras pessoas9 que vão se juntando a esta nova configuração: a sala inclusiva.
Fazem parte desse novo cenário o auxiliar, o segundo professor, o especialista, o observador. É importante frisar que todos eles estão olhando
para as diferenças que os alunos apresentam sob uma ótica que não lhes
era comum. Estes profissionais estão, na verdade, sendo forçados a ver e
reconhecer não apenas aquelas diferenças facilmente percebidas, mas todas as diferenças, grandes ou pequenas, que caracterizam a diversidade e a
singularidade dos humanos.
Em relação aos alunos com NEE, a insistência nas faltas, nos defeitos, no que difere não deixa fluir o sujeito que está por trás da não
9 As denominações referidas, ‘auxiliar’, ‘segundo professor’, ‘especialista’, ‘observador’ são trazidas aqui, a
partir dos dados de campo desta pesquisa.
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aprendizagem, dificultando que a pessoa possa mover-se com os seus recursos. Ninguém quer ser reconhecido pela via do defeito (PADILHA,
2001). Mas o que coloca uma pessoa em movimento? A aceitação e o reconhecimento do outro, em sua singularidade poderá desencadear esse
processo, segundo Skliar (2003). E, ainda, ver o que o sujeito faz poderá
permitir a compreensão do que o faz mover-se. Fazer a atividade pelo
sujeito, sem expectativa de que ele possa realizá-la sozinho depois, pode
ser uma tentativa improdutiva de inserção do aluno na atividade coletiva. No entanto fazer com ele poderá assegurar-lhe outra perspectiva, a
de alcançar autonomia na tarefa proposta. É importante ressaltar o respeito aos tempos e maneiras diferentes de agir e a manutenção de uma
atitude prospectiva na relação pedagógica, como pontos fundamentais
da ação docente.
Vygotsky (1997, p.12) alerta para a análise qualitativa do modo de
ser do sujeito comprometido pela deficiência. Dizia que “el niño cuyo desarrollo está complicado por el defecto no es simplemente un niño menos desarrollado que sus coetáneos normales, sino desarrollado de otro modo”. É necessário reconhecer que há outras formas de agir e se conectar com o mundo.
Nem qualitativa, nem quantitativamente menor, nem pior. Diferente!
As atividades pedagógicas desenvolvidas em sala de aula junto aos
alunos com NEE permitiram observar que, quando eram diferenciadas,
promoviam a individualização do sujeito, que por conta disso acabava solitário dentro do grupo. As atividades minimizavam as expectativas em relação à aprendizagem destes alunos. Sem exigências que provocassem um
esforço por parte dos referidos alunos, o que resultava era a manutenção
do que já sabiam fazer, sem operar mudanças. Exigia-se pouco e os alunos,
por sua vez, faziam pouco.
Neste sentido, um olhar atento a detalhes, minúcias e indícios, que
ficam ocultados na dinâmica estabelecida no cotidiano da sala de aula,
poderá revelar ao professor elementos que podem ser considerados importantes para a sua reflexão e construção de alternativas no seu trabalho
de inclusão dos alunos com NEE em sua sala de aula. É necessário olhar e
escutar para ver e ouvir o que estes alunos já sabem fazer sozinhos e o que
podem fazer com ajuda. É preciso deixar fluir o sujeito que foi esmaecido
pelo estigma da deficiência. Assim o professor também poderá construir
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um caminho diferente daquele que o colocou na condição de incompetente, podendo ser reconhecido em seus saberes, especialmente os da experiência (LARROSA, 2002). E para que isso ocorra o diálogo deverá ser
promovido. Parcerias poderão ser estabelecidas, rompendo barreiras erguidas entre a educação especial e regular. Há saberes já legitimados, mas
muitos outros a serem construídos com base nesta forma de promover a
educação para todos.
As práticas pedagógicas observadas nesta pesquisa mostram as atitudes, posturas e os saberes que os professores já utilizam para resolver
as situações criadas com a entrada dos alunos com NEE em suas salas. E
trazem à tona também as concepções que sustentam seu fazer pedagógico.
O que já fazem e o que sabem deve se constituir em ponto de partida para
a reflexão sobre suas práticas pedagógicas, permitindo, por meio de seu
reconhecimento, a criação de alternativas significativas para a solução dos
impasses provocados pela quebra de sua prática pedagógica cotidiana.
Para finalizar, mas sem concluir...
Acolher os saberes e os fazeres dos professores constitui-se em atitude que se aproxima daquela que fundamenta o processo de inclusão:
aceitação das diferenças, do modo de ser do outro, de perspectivas diferentes daquelas que sustentam o nosso saber/fazer/ser. Nesta direção, as
pesquisas desenvolvidas por Jesus têm se mostrado profícuas considerando o professor um parceiro de investigação, com base na colaboração reflexiva e crítica. Conforme a autora ( JESUS, 2005, p.12) esta modalidade
de pesquisa-ação “coloca todos os sujeitos no lugar de construtores do conhecimento, incorporando-os ao discurso, à discussão do método, a partir
de suas ‘vontades de conhecer’”. Escutar o que os professores têm a dizer
permite-lhes uma possibilidade de refletir sobre o que sabem e sobre o
que fazem. Jesus (2006, p.206), apoiada em Zeichner (1998), traz que “a
produção de conhecimentos para um ensino de melhor qualidade e para
todos não se dá apenas na universidade, mas tem daqueles que constroem
a experiência escolar cotidiana, uma grande contribuição”.
A complexa realidade da inclusão escolar que vem impondo transformações no cotidiano das salas de aula e, consequentemente, nas práticas pedagógicas dos professores, exige uma investigação constante, em
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
parceria com os sujeitos envolvidos na problemática: professores, alunos,
famílias, gestores, enfim, a comunidade escolar como um todo.
Neste sentido, a universidade pode desempenhar um papel importante trazendo os sujeitos que se inserem na realidade campo de pesquisa, como colaboradores da produção de conhecimento. O movimento na
direção do reconhecimento dos professores como capazes de produzir
conhecimento, com base em sua experiência na sala de aula, reconfigura a situação complexa e até paradoxal que estão vivendo. Por um lado,
veem-se obrigados a fazer o que não sabem, porque os sujeitos apresentam
diferenças que desconhecem mas estão presentes em suas salas. Por outro
lado, também não podem fazer o que sabem, porque não são os profissionais que tiveram acesso ao conhecimento especializado – então ocultam
suas ações, pois não estão autorizados a intervir.
Para enfrentar desafios de tamanha ordem, os professores necessitam de uma autoconfiança inabalável. Nesta direção busco apoio em Honneth (apud MENDONÇA, 2007) para dizer que a confiança básica necessária advém de lutas por reconhecimento: desde as primeiras, ligadas
às relações amorosas, na relação mãe e filho, que são atualizadas durante
toda a vida; assim como as de respeito, vinculadas ao direito à cidadania,
como pessoa, portanto travadas na busca da equidade, até aquelas relativas à autoestima, conquistada junto aos pares. O reconhecimento, como
dispositivo que interfere nas relações intersubjetivas, tem mobilizado e
instruído meu olhar sobre a questão da inclusão escolar e os sujeitos nela
envolvidos. E é por este caminho que continuo a investigar sobre possibilidades, especialmente relativas à formação docente e ao processo de
aprendizagem de sujeitos que apresentam necessidades especiais.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
O TRABALHO DA MEMÓRIA COMO ALTERNATIVA
PARA A AVALIAÇÃO ESCOLAR
Jocemara Melo Pereira
“De fato, na escola democrática de massa não são mais as desigualdades
sociais que selecionam os alunos fora de sua escolarização: desde então são
os próprios mecanismos escolares, as notas e as decisões de orientação que
fazem o ‘trabalho sujo’”.
Fransois Dubet. O que é uma escola justa?
E
ste artigo resulta de uma pesquisa cuja temática central abordou a
avaliação escolar. Para construir o problema de pesquisa, parti de
uma experiência autobiográfica traumática na infância, relacionada à avaliação escolar. O objetivo inicial foi o de fazer emergir e acolher
as memórias dos avaliados da Educação Fundamental, foco que foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica e duas incursões no campo
empírico para coleta de dados junto a egressos desse nível escolaridade.
Foram recolhidos testemunhos escritos de um total de 55 egressos
da Educação Básica – todos cursando o primeiro ano do Ensino Médio
em escolas públicas (egressos do Ensino Fundamental), em duas ocasiões
diferentes. Na primeira incursão em campo foi aplicado um instrumento1
para ser respondido por escrito durante uma hora/aula cedida pelo professor regente (no decorrer do artigo nos referiremos a este levantamento
de dados como “momento 1” ou “primeiro momento”). Na segunda ocasião, foi disponibilizado aos sujeitos da pesquisa um texto em construção,
produzido pela pesquisadora, no qual os testemunhos dos participantes
começavam a ser analisados e discutidos, para compor um capítulo da dissertação. Após explicar-lhes que o texto que leriam fazia parte da pesquisa
1 O instrumento tinha a característica de uma carta-convite, que informava de maneira genérica a finalidade
do levantamento (pesquisa de Mestrado) e continha duas perguntas abertas, indagando sobre as três melhores
e três piores experiências do Ensino Fundamental. O roteiro não fazia nenhuma menção ao tema da avaliação.
A omissão foi decidida com a orientadora depois de um levantamento-piloto com outros sujeitos, no qual havia
perguntas explícitas sobre avaliação escolar. O resultado deste levantamento trouxe respostas bastante homogêneas, associadas aos aspectos formais da avaliação (prova, exame etc.), que consideramos de escasso interesse
para a compreensão do problema em foco.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 115
Ana Maria Netto Machado (Org.)
de mestrado cuja temática era a avaliação escolar, foi-lhes solicitado que o
lessem e elaborassem comentários escritos individuais sobre o que leram,
(a esta incursão no campo empírico chamaremos “momento 2” ou “segundo momento”). Houve então um compartilhamento dos resultados parciais nesta segunda incursão no campo empírico. Parte dos sujeitos participou dos dois momentos, o que fez com que alguns se reconhecessem
no texto, apesar de nele serem utilizados nomes fictícios. Alguns sujeitos
participaram apenas do primeiro ou do segundo momento da coleta de
testemunhos.
Os resultados de campo mostraram que as memórias negativas dos
egressos com relação à sua escolaridade básica estão significativamente associadas a momentos de avaliação, enquanto as lembranças positivas se
referem, para a maioria dos jovens, a situações vivenciadas fora da escola
ou fora da sala de aula.
Quase todos os relatos negativos evocados podem ser considerados
situações em que os alunos foram apontados por façanhas ou feitos negativos, ficaram em evidência pública2 em situações indesejáveis (momentos
em que passaram vergonha), tachados como incompetentes, pouco inteligentes ou inadequados, ou por ter infringido regras da escola, merecendo
por isso punição. Todas foram situações de julgamento, em que o aluno
foi destacado em um sentido de desvalorização: punições recebidas como
experiência traumática, autoimputação de responsabilidade, sentimentos
de culpa por brigas ou ações inadequadas praticadas no espaço escolar ou
humilhação.
Entre as lembranças positivas foram elencadas festas, passeios, formatura, diversão, apresentações de teatro, poesia, telejornal, participação
em programa de rádio para arrecadar dinheiro, esportes desenvolvidos na
escola, campeonatos, torneios, obtenção de medalhas como mérito de
bom aluno, premiação, amizades. Este rol de boas lembranças aconteceu
no contexto ou em função da escola, no interior de seu espaço ou fora
dela, com personagens que habitam o mundo escolar, alunos e professores, mas elas não estão associadas diretamente ao ensino-aprendizagem
tipicamente escolar. Cabe perguntar-se o que significam na vida dos alunos as aprendizagens ou as ‘não aprendizagens’? Foram exceções raras e
2
No caso de vivências positivas foram admirados; em ambos os casos foram expostos ao olhar de outrem.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
pontuais as menções a lembranças positivas relacionadas ao processo de
ensino-aprendizagem ou à formação escolar.
Os dados emergentes da pesquisa preocupam ou representam um
alerta, e permitem levantar algumas questões interessantes. Os alunos
lembram como significativos os momentos em que de alguma forma foram reconhecidos em espaço mais amplo do que a sala de aula, de alguma
forma legitimados socialmente (na formatura, no palco, no espaço público
ou no caso de premiações), situações em que se sentiram valorizados, reconhecidos como capazes. Na contrapartida as experiências negativas dizem respeito a serem destacados no sentido oposto: como incompetentes,
fracos, irresponsáveis, enfim, censurados. A partir dos dados acerca das lembranças positivas, surgem as reflexões seguintes: será que o que se tem trabalhado em sala de aula tem
sido significativo para os alunos? Ao final da Educação Básica, entre oito
ou nove anos de escolarização, o que restou de positivo para o aluno? Por
que o conhecimento ou a aprendizagem praticamente ficaram intocados
nas respostas da maioria dos alunos? O que restou nas suas memórias de
tantas aulas, de tanto estudo?
Por um lado, os resultados de campo traziam evidências pouco animadoras sobre as práticas avaliativas na escola. Por outro lado, a revisão da
literatura sobre avaliação, a partir da qual tínhamos procurado, inicialmente, contextualizar e conectar a avaliação espontânea da vida cotidiana com
as concepções formuladas por pesquisadores que investigam as práticas
de avaliação escolar3, ou temas afins, também trazia poucas perspectivas
para uma avaliação humanizadora.
Além dos autores que trabalham diretamente com o tema da avaliação escolar, percorremos outras leituras, tentando compreender a complexidade da avaliação, passando a levar em conta questões sociais e políticas,
a partir de autores como Monlevade e Silva (2000), na obra Quem manda
na educação no Brasil? ou Dubet (2008), em O que é uma escola justa? A
escola das oportunidades. Essas obras favoreceram a consciência das injustiças praticadas pela e na escola, à revelia das boas intenções e dedicação
dos professores e direções locais, chocando-se com a visão romântica da
3 Vasconcellos (2002), Perrenoud (1999), Hoffmann (1993), Luckesi (1996) e Libaneo (1991) estão entre
os principais autores revisitados.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
docência que ainda está tão presente em nosso meio, da qual eu também
compartilhava. Com Monlevade e Silva (2000) compreendi as várias formas que foram assumindo o controle e o mando ao longo da história na
escola brasileira, deixando cada vez mais claro que um dos instrumentos
centrais utilizados para o exercício do poder na escola foi e continua sendo a avaliação em suas múltiplas modalidades. Também Foucault (1999),
com o seu conceito de disciplinamento foi considerado, bem como François Dubet (2008), que leva em conta a célebre teoria da reprodução de
Pierre Bourdieu e Claude Passeron (1975). A partir destas leituras, pudemos entender as relações entre o que chamamos de meritocracia e a justiça no âmbito escolar – ou melhor seria dizer, a injustiça, porque o critério
meritocrático, parecendo justo, garante a manutenção das desigualdades
presentes na sociedade.
A compreensão do vínculo ou da relação entre fracasso escolar e
desigualdades sociais foi mediada pelas pesquisas de Patto (1996, p.123),
uma vez que a perspectiva psicopedagógica nos era familiar e tal autora
parte desta visão, mas também se inspira nas teorizações de Bourdieu, para
mostrar que “a escola pública é uma escola adequada às crianças de classe
média e o professor tende a agir, em sala de aula, tendo em mente um
aluno ideal”. E, do ponto de vista pedagógico, os estudos de Soares (2002)
facilitaram completar essa interface entre os aspectos propriamente escolares e socioculturais. A clássica obra de Bourdieu e Passeron (1975, p.
53) constituiu-se em marco para entender o papel da instituição escolar
nas sociedades, pois revela que a desigualdade social é dada antes mesmo de as crianças ingressarem na escola, e que esta realidade não é levada
em conta na organização das atividades e programas escolares. Parte-se de
uma suposição de que a escola pública dá a todos iguais oportunidades de
aprender e ignora-se, assim, que o preparo prévio, a partir da origem de
classe familiar, é determinante no sucesso ou fracasso na escola.
Enquanto alguns autores enfatizavam que a avaliação servia a interesses que estavam fora do alcance (ou da consciência) daqueles que a
praticavam na dinâmica da escola, pude constatar que as obras especificamente dedicadas ao tema da avaliação pedagógica, na maioria das vezes,
permaneciam desconectadas dessas discussões, e se detinham nos processos avaliativos em si, predominando a preocupação com o rendimento
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escolar dos alunos, com os processos de medida do desempenho do aluno
em relação às informações por eles retidas e reproduzidas em exames ou
provas. Estes processos estão, evidentemente, associados a concepções de
ensino e modelos de escola, e à influência que as diferentes disciplinas têm
tido entre os educadores ao longo da história.
Já Esteban (1999, p. 07) considera que “qualquer reflexão sobre a
avaliação só tem sentido se estiver atravessada pela reflexão sobre a produção do fracasso/sucesso escolar no processo de inclusão/exclusão social”
e que “a dinâmica inclusão/exclusão social faz com que o processo social
de universalização seja acompanhado pelo fracasso escolar” (ESTEBAN,
2002, p. 24). Desenvolvendo esta ideia, podemos dizer que, quando a escola se propôs como instituição democrática e passou-se a considerar que
o direito à escola é universal, independentemente da classe ou origem social (partir da Declaração dos Direitos Humanos4), as crianças de classes
populares tomaram assento nos bancos da escola pública que até então
eram destinados aos filhos das elites. Neste movimento foi se instaurando
um novo modelo de escola, que consequentemente criou novas possibilidades e também novos problemas, exigindo novas elaborações teóricas e
práticas, gerando um amplo processo de indagação e redefinição do papel
da escola na sociedade, bem como das próprias práticas pedagógicas.
Patto (1996, p. 123) afirma, a partir das teorizações de Bourdieu,
que “a escola pública é uma escola adequada às crianças de classe média e
o professor tende a agir, em sala de aula, tendo em mente um aluno ideal”.
Argumenta a autora que, apesar de a escola não se mostrar adequada às
crianças das classes populares, continua vigorando a “crença na deficiência/diferença da clientela majoritária da escola pública de primeiro grau
em relação aos seus pares de classe média e alta” (PATTO, 1996, p. 123).
Desta forma, a escola que aí existe foi pensada para classes sociais e economicamente favorecidas.
A avaliação vem sendo muito mais usada como instrumento de dominação, controle e disciplinamento – com os estudos de Foucault sobre a
relação entre poder e saber – sobretudo externos, do que empregada como
ferramenta de acompanhamento da aprendizagem dos alunos, de inclusão
4 A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um dos documentos básicos das Nações Unidas e foi
assinada em 1948. Evidentemente, o conceito de escola para todos já tinha sido formulado no século XVIII,
mas encontra instrumento formal para difundir-se só em meados do século XX.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
social ou a serviço da superação das desigualdades sociais. Tais conhecimentos fizeram com que, durante a maior parte do tempo de pesquisa,
eu experimentasse uma sensação de desconforto com relação à temática,
uma vez que os estudos pareciam mostrar uma visão pessimista sobre as
possibilidades da avaliação escolar. Que perspectiva poderia trazer minha
pesquisa para meus colegas professores, num cenário que revelava a perda
de importância da ação do professor, no contexto globalizado da educação do século XXI, e sua impotência para promover mudanças significativas na educação escolar concreta? E onde e como ficava a autonomia
desejada para a formação dos alunos e para o exercício profissional dos
professores? Seria um mito? Tais angústias acompanharam a realização
desta pesquisa.
Apesar de tais contextos continuava claro que, da Educação Infantil até a Pós-graduação, a avaliação é um assunto instigante, problemático
e por resolver. E, sobretudo, eu me perguntava: como recuperar espaço
para os professores e para a avaliação como recurso pedagógico importante para o acompanhamento da aprendizagem dos alunos, para trabalhar
contra o fracasso escolar, tão bem teorizado por Patto (1996) em sua obra
“A produção do fracasso escolar: historias de submissões e rebeldia”. A
análise da literatura mostrava que, com nomes distintos, o antigo fracasso
escolar continuava presente e demandando soluções. Agora ele aparecia
nas grandes estatísticas mundiais e assim se vinculava com o problema
dos financiamentos e ajudas internacionais para os países que ainda estão
aquém das metas estabelecidas, seja pelo Banco Mundial, seja pela UNESCO, ou por outros organismos internacionais que se ocupam das diretrizes para educação no mundo economicamente globalizado. Sobretudo,
me perguntava por que a avaliação foi se tornando cada vez mais um dispositivo externo à escola e cada vez menos processado pelo professor para
os seus alunos específicos, reais (de que é um exemplo a Provinha Brasil).
Os estudos realizados ampliaram a consciência de que os processos que acontecem no interior do espaço da escola, nas interações entre
professor e aluno, estão perpassados por determinações em geral invisíveis para os professores e a comunidade escolar. Entretanto, mesmo pouco perceptíveis, estes fatores relacionados às políticas educacionais, por
sua vez atreladas aos modelos econômicos que regem as relações de poder
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nas sociedades, interferem nas relações intersubjetivas e interpessoais que
acontecem nas salas de aula (nível microsocial) e consequentemente na
aprendizagem; e inclusive alcançam a vida pessoal e subjetiva de alunos
e professores, deixando marcas permanentes na memória dos avaliados,
muitas vezes associadas a episódios de sofrimento e humilhação (DUBET, 2008).
Estas ligações entre elementos macroestruturais da vida social e microestruturais nem sempre são estudadas por aqueles educadores que se
interessam pelas práticas avaliativas dentro das escolas. Progressivamente
fui constatando que as formas de avaliar que marcavam os alunos estavam
inseridas em um contexto maior, em uma espécie de grande rede ou malha
que envolve as pessoas, os profissionais, os grupos, as escolas, as comunidades, a sociedade. E que os educadores, na maioria das vezes, não têm
consciência de que ela existe, apenas sofrem seus efeitos.
Em determinado momento da pesquisa, já tinha a compreensão da
complexidade do problema e também escutava as vozes dos alunos (crianças e adolescentes) mas não vislumbrava uma saída, uma alternativa a avaliação escolar, capaz de escapar das determinações sociais que descobrira
no mestrado, nas disciplinas e na pesquisa empírica. Foi somente a partir
de uma sugestão de leitura durante o exame de qualificação da dissertação que uma nova perspectiva foi se construindo, a partir da leitura da
obra Memória e sociedade: Lembranças dos velhos, de Ecléa Bosi (1994).
A pesquisa desta autora ajudou a conceber uma concepção alternativa da
avaliação, que permitiu retomá-la como processo pedagógico digno e humanizante, diante de um cenário globalizado em que avaliar tem estado,
predominantemente, a serviço da meritocracia, do controle social, da promoção das desigualdades e da dominação internacional dos povos – que
ameaça inclusive as soberanias nacionais.
O trabalho de campo pode assim ser ressignificado, graças, também
à minha insistência em escutar os estudantes do Ensino Fundamental a
propósito da avaliação, o que permitiu perseverar na busca de elementos
que pudessem conceber uma alternativa para a avaliação, que trabalhasse
em prol dos alunos concretos, de seu desenvolvimento, de sua aprendizagem significativa. Continuaria levando em conta todos os estudos que
mostravam o quanto a avaliação saiu da escola e fugiu da ação do professor
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 121
Ana Maria Netto Machado (Org.)
para se transformar em um dispositivo não só de controle das escolas e
professores, mas também útil para diminuir a sua autonomia de ação sobre a realidade imediata. Mas tentaria encontrar formas de construir sentidos para a avaliação realizada dentro da sala de aula e da escola.
A partir dos dados empíricos e do diálogo com Bosi, a avaliação
como trabalho da memória descortinou-se como uma possibilidade de
atribuir valor às experiências escolares dos alunos, ampliando assim a sua
capacidade de refletir sobre si e sobre outrem.
Que relação poderia estabelecer entre a pesquisa de Bosi e a minha?
Como foi que ganhou importância para esta pesquisa, se os sujeitos foram
tão diferentes? Além de trabalhar com faixas etárias diferentes (velhos e
jovens), nossa pesquisa foi realizada por meio de narrativas escritas e a de
Bosi por meio de narrativas faladas. Consideráveis diferenças.
No prefácio da obra de Bosi, Barbosa (1994, p. 14) afirma: “é talvez o
traço mais marcante da composição deste livro: a passagem da fala à escrita”.
Bosi escutou as narrativas dos velhos e as transcreveu, leu e narrou por escrito. Vários movimentos de vaivém entre a fala e a escrita, a leitura e a escuta
da pesquisadora e dos sujeitos foram processadas para que a obra se realizasse. De certa forma, em escala muito menor, estes movimentos estiveram
presentes em nossa pesquisa, envolvendo várias vozes e narrativas escritas e
orais, escuta, leitura, fala e escrita de muitos personagens em diversos tipos
de interação sujeitos dos vários tempos da pesquisa de campo realizada. Todas as vozes e todas as letras foram se misturando, caracterizando uma coautoria, ou múltipla autoria, com intenso trabalho de diálogo (leitura, escrita,
releitura e reescrita, em um vai-vem intenso em curto lapso de tempo).
Um elemento central da obra de Bosi, que também desempenhou
papel importante em nosso trabalho, é expresso pelo prefaciador da obra
(BARBOSA, p. 15): “o tempo de lembrar traduz-se, enfim, pelo tempo de
trabalhar”. Ao confrontar os escritos dos sujeitos de nossa primeira incursão
no campo empírico (momento 1) com os escritos dos sujeitos da segunda
incursão (momento 2), ficou claro para nós que lembrar, recuperar a memória é um “trabalho sobre o tempo e no tempo”5 (CHAUÍ, 1994, p. 20),
e hoje diríamos que o trabalho da memória é um trabalho intelectual. Ao
lerem as oito páginas de testemunhos do primeiro momento, boa parte dos
5
Os grifos são todos nossos.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
participantes do segundo momento se pôs a refletir por escrito, com uma
densidade inesperada. Ao deparar-se com as narrativas escritas por seus colegas ou com as suas próprias (lembremos que alguns sujeitos participaram
dos dois momentos da pesquisa empírica, e até se reconheceram no texto,
apesar dos nomes fictícios), eles pararam para pensar na vida, no passado, no
valor das suas experiências escolares, se identificaram e se reconheceram nas
narrativas. Vejamos a seguir alguns dos testemunhos:
Aline (momento 2), por exemplo, escreveu: “Eu consegui me identificar muito com o texto tanto nos pontos positivos como nos negativos, nos
pontos positivos pude ver situações parecidas [...] O texto tem muito a ver com
tudo o que vivenciei na escola”.
Carlos (momento 2) formulou: “Realmente gostei do texto, bem criativo, bem dialogado. Um tema realmente interessante, diferente, a opinião da
autora tem tudo a ver com o tema, coisas boas e comuns foram comentadas no
texto, coisas que estão no dia-a-dia dos adolescentes nos tempos de hoje... Gostei
muito do comentário do personagem Paulo, que dizia que tinha pegado seis
provas finais e duas 2ª época, fui eu o autor da frase. Adorei me encontrar
no texto...”.
Regina (momento 2) expressou: “Na minha opinião, o trabalho ficou
muito bom, acho que não precisa ser acrescentado mais nada... Enfim, através
do que foi lido no texto, cada um se identificou com o texto, fez com que relembrássemos os acontecimentos, algumas atitudes serão revistas por todos.”
Lara (momento 2), por sua vez, afirmou: “No texto lido pudemos ver
episódios tanto positivos, agradáveis, como episódios negativos, desagradáveis;
o texto em forma de pesquisa é muito interessante, pois lendo alguns relatos dos
alunos pude me identificar com situações muito parecidas pelas quais passei
na escola... Enfim o texto tem muito a ver com tudo o que vivenciamos na escola
, as alegrias, decepções e tristezas”.
Artur (momento 2) mencionou: “Este seu trabalho me ajudou a valorizar mais as minhas amizades”. E Priscila (momento 2) registrou: “Com
este texto, me fez ver que o período do estudo é a melhor fase para se viver na
vida... Vejo que tudo o que passei nunca mais vou passar de novo. Saudades e
momentos bons ficaram em minha memória”.
Esses testemunhos mostram que a busca ativa das lembranças
parece não só conseguir refazer o passado, mas “unir o começo ao fim”
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 123
Ana Maria Netto Machado (Org.)
(CHAUÍ, 1994, p. 22); tarefa que Chauí considera a função do velho na
sociedade. E não seria a avaliação, de certa forma, o esforço de “unir o
começo ao fim”? De confrontar o que era antes com o que é agora? Avaliar
poderia, neste sentido, exigir uma posição de velho; seria necessário envelhecer um pouco, olhar para o passado como se fosse um velho para criar
um espaço para a reflexão; poderia ser função da avaliação, levar o sujeito
jovem (muitas vezes imediatista, acostumado ao zapping da televisão ou à
velocidade da internet) à posição introspectiva: fazê-lo parar para pensar
na vida, no passado, no tempo que passou, na experiência que ele teve
nesse tempo que se foi e no quanto ela valeu.
Os depoimentos mostraram que é um pouco isso o que aconteceu com os jovens no segundo momento. Então, passamos a pensar que há um lado esquecido da avaliação, que se tornou mecânica, pontual, tecnocrática e esvaziada do sentido existencial que
poderia ter. Talvez por isso, as nossas primeiras tentativas, de perguntar
\diretamente aos alunos o que pensavam sobre a avaliação tenham tido
respostas óbvias, típicas do senso comum escolar, sem densidade existencial, como se a avaliação não tivesse nada a ver com a vida, com o passado,
com o futuro, com o mundo, e fosse apenas um dispositivo escolar cujas
conseqüências ficassem só na sala de aula. A partir dessas intuições, o
aprofundamento da relação entre avaliação e memória começou a ganhar
interesse, e deverá ser explorado futuramente, em outros trabalhos.
Um dos autores clássicos em que Bosi se baseia para tratar da memória é o filósofo Henri Bergson. Dele, ela considera a obra Matière et
Mémoire (Matéria e memória). No primeiro capítulo Bosi traz algumas
ideias centrais do pensamento de Bergson que gostaríamos de comentar
aqui, pois parecem úteis para compreender o vínculo entre avaliação e memória. Primeiro o filósofo opõe percepção e memória. Diz Bosi (1994, p.
44-45): “a percepção aparece como um intervalo entre ações e reações do
organismo, algo como um ‘vazio’ que se povoa de imagens as quais, trabalhadas, assumirão a qualidade de signos da consciência”. Dentro da teoria
de Bergson, é quando a reação motora (ação) aos estímulos do ambiente
não acontece, é retida ou represada, quando há uma parada nessa reação,
que um espaço para o pensamento se instala, e a memória teria a ver com
a ocupação desse espaço mental. Por isso, os velhos teriam uma memória
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
ampliada, não só por terem vivido muito tempo, mas porque a sua ação
está diminuída pelas próprias limitações do corpo. Só que Bosi (1994, p.
49) afirma que existe a memória como “imagem-lembrança, que tem data
certa: refere-se a uma situação definida, individualizada, ao passo que a
memória-hábito já se incorporou às práticas do dia-a-dia. A memória-hábito parece fazer um só todo com a percepção do presente”.
Essa diferença que Bosi toma de Bergson ajudou-nos a entender
porque as primeiras incursões, com perguntas orais diretas aos sujeitos,
tiveram respostas pouco ricas: seria a memória no sentido de imagemhábito que ali se manifestou? Aquilo que está incorporado como avaliação
ao longo dos anos de ensino. Já nos depoimentos escritos solicitados no
primeiro momento, e mais ainda no caso do segundo momento, parece
que a imagem-lembrança pôde ser provocada ou induzida. A preocupação
maior de Bergson (1994, p. 49), segundo Bosi, é com as “relações entre a
conservação do passado e a sua articulação com o presente, a confluência de memória e percepção”. Esta ideia parece oportuna para pensar os
nossos dados de campo. Pareceria que conseguimos, ao longo das incursões em campo, passar, com os sujeitos, de respostas do tipo hábito, para
respostas reflexivas, e esta reflexão foi provocada pela proposta de construção da memória escolar, quando se perguntou, em forma de registros
(carta-convite, roteiro), sobre as três melhores e as três piores experiências
do ensino fundamental que os alunos tinham recentemente concluído
(momento 1).
Já no caso do segundo momento, que teve um estímulo diferente, mais denso, foi intensificado ainda mais o processo reflexivo, pois
se tratou de compartilhar, com os sujeitos que tinham participado do
primeiro momento, os dados produzidos por alguns deles ou por seus
colegas, permeados pelas reflexões da pesquisadora. Chauí, ao apresentar o trabalho de Bosi (1994, p. 22), ajuda a entender os resultados que
obtivemos: “ao pensar você dá a pensar, porque seu livro é um campo
de pensamento, ele faz com o leitor exatamente o que você nos diz que
a memória faz com os recordadores: fica e significa. O que em mim fica?
O que em mim significa?”.
E, neste ponto, é importante enfatizar e legitimar, a partir de Bosi
e Chauí, nossa opção por uma exploração indireta do tema da avaliação
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
junto aos sujeitos, o que tem a ver com oferecer espaço de liberdade para
vasculhar a memória de cada um. O roteiro não perguntou diretamente
sobre avaliação. Na sua introdução Bosi (1994, p. 37) diz o seguinte: “A
veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história
oficial. Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido
para perpetuar-se na história de sua vida”. Buscávamos o que foi significativo para a vida dos alunos de ensino fundamental, esperando que,
nas entrelinhas, a avaliação se apresentasse. E de fato, se apresentou: nas
lembranças que marcaram a memória negativamente! Hoje, pensando
melhor, poderíamos dizer que a avaliação também se apresentou, disfarçada, nas narrativas positivas: no caso das formaturas, pois se trata nesse
momento de uma legitimação da instituição escolar (lembremos aqui de
Bourdieu e Passeron ou de Dubet). Passar de ano sem exame também foi
um depoimento indireto sobre a avaliação que apareceu nas lembranças
positivas, mas que ao mesmo tempo reforça o lado sofrido do exame.
Em determinado ponto da apresentação à obra de Bosi, Chauí traz
Claude Lefort, numa longa passagem a respeito do que seria uma obra,
trecho apropriado para entendermos o resultado reflexivo obtido dos sujeitos no segundo momento, pelas sucessivas escritas e leituras compartilhadas ao longo do tempo de pesquisa:
[...] a obra, isto é, trabalho de reflexão sobre a matéria da experiência, trabalho da
escrita sobre a reflexão e trabalho da leitura sobre a escrita. O texto, por sua própria
força interior, engendra os textos de seus leitores que, não sendo herdeiros silenciosos de sua palavra, participam da obra na qualidade de pósteros. A obra de pensamento, excesso de significados explícitos, engendra a posteridade – o trabalho
da obra é criação de sua própria memória justamente porque a obra não está lá
(no primeiro texto) nem aqui (no último escrito), mas em ambos. O pensamento
compartilhado. Outrora, a filosofia o nomeava: diálogo (CHAUÍ, 1994, p. 21).
O depoimento de Andréia (momento 2) revela a dimensão dialógica instalada por meio do compartilhamento dos dados da pesquisa com os
pesquisados: “Bom, neste interessante trabalho que ajudamos a elaborar,
vimos e revivemos um pouco do que passamos nos anos do ensino fundamental,
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bons e maus momentos que ficaram marcados em nossa memória e fez história nesses vários anos que ficamos no ensino fundamental. O trabalho mostra
histórias reais vivenciadas no dia-a-dia dos alunos”. A estudante continua:
“Tudo isto nos faz pensar no que fizemos esse tempo todo, como valeu a pena
tudo de bom e de ruim que nos aconteceu. Lendo o trabalho podemos ver tudo
isto que fizemos, agora se tornou uma grande e boa lembrança, que o tempo
passou e agora quando lembrarmos e contarmos pra alguém vamos rir e se
divertir mesmo com os maus momentos”.
Maitê (momento 2) revelou seu apreço pelo espaço de liberdade
aberto para acolhida do pensamento dos alunos: “Os textos foram incríveis,
cada aluno pôde expressar o seu pensamento sobre como estar na escola colocando episódios positivos vividos no ambiente escolar”. E Sirlei (momento
2) concluiu que até os momentos ruins hoje compõem a memória de um
período de sua vida: “Bom, em meu ponto de vista tudo de bom e de ruim que
nos aconteceu nestes nove anos agora é uma grande e boa lembrança que faz
parte da nossa vida escolar”.
Neste sentido, Bosi afirma que:
Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturandose com as percepções imediatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas,
ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora
(BOSI, 1994, p. 47, grifo nosso).
Cabe então a pergunta: por que na escola abrimos tão pouco espaço
para trabalhar com a memória, se ela se constitui em força tão poderosa
e permite aumentar o espaço reflexivo do indivíduo? Esta é uma pergunta que surgiu no final deste longo percurso de pesquisa e que merece ser
apontada nestas palavras finais.
Nos textos escritos pelos alunos, eles se entregaram a questões importantes, não tiveram preguiça de ler oito páginas nem de escrever várias,
revelaram maturidade e compenetração. As reflexões foram permeadas
de certa surpresa por se verem retratados em um texto, por ler um texto
que dizia deles, de suas vidas. Vários provocaram uma espécie de autoavaliação, e alguns até avaliaram a pesquisadora, como mostraremos em
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seguida. No momento em que socializei com eles os resultados parciais da
pesquisa, os estudantes se puseram a escrever e produziram a partir de seu
próprio passado, abriram espaço ou campo de pensamento, como referiu
Chauí logo acima.
Alguns, como Rute (momento 2), mostraram a sua perplexidade
com o fato de os depoimentos pouco tocarem na aprendizagem como fato
marcante do Ensino Fundamental: “Observando os alunos vi que não citaram sobre a aprendizagem que estão tendo... esqueceram de citar o que estão
aprendendo, se a forma de ensino está ajudando de alguma forma, se os professores são bons e de como a educação é importante para nós, pois não estamos
aqui perdendo tempo” .
Por fim, foi interessante constatar que alguns dos avaliados, os sujeitos da pesquisa, se tornaram também avaliadores, sentiram-se convocados/convidados a avaliar. Henrique (momento 2), por exemplo, escreveu: “Na minha opinião, o texto ficou ótimo se mudar não sei se vai causar
o mesmo impacto que causou, ficou maravilhoso, meus parabéns”. Carlos
(momento 2) também comentou: “E para finalizar o que eu tenho a dizer
é que a autora do texto está de parabéns por ter feito um texto sobre e com os
alunos, suas histórias marcadas na memória e neste texto”.
Esta pesquisa, em seu momento final, parece apontar para um aspecto esquecido da avaliação, mas que está na sua origem etimológica.
Avaliar é atribuir valor. Valorizar, reconhecer. Na escola seria prioritariamente valorizar a aprendizagem dos alunos, isto é, o quanto a passagem
do tempo na escola, com tudo o que isso implica, os transformou. Para
ter uma dimensão das mudanças ao longo do tempo, o confronto entre
tempos distintos, um antes e um depois, é necessário. E é nesse intervalo, que precisa ser criado (talvez esse fosse o sentido da avaliação: criar
espaço para lembrar), que a memória poderia se colocar, como central,
no trabalho escolar. Sobretudo a oportunidade de abrir espaço para o trabalho da memória. É assim que nos encaminhamos para finalização da
pesquisa, entendendo que a escola poderia se ocupar com a construção de
memórias dos alunos como um exercício de (auto e mútua) valorização
da experiência (vivida na escola).
Uma frase de Chauí (1994), em homenagem ao trabalho da memória, aqui proposto como um caminho promissor para uma avaliação
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humanizante, serve-nos como ponto quase final: “o homem não sabe o
que é, se não for capaz de sair das determinações atuais”.
A leitura indispensável da obra de Bosi permitiu olhar para a avaliação de uma maneira inovadora. Paradoxalmente, porque enquanto nós
pesquisamos sujeitos jovens, Bosi pesquisou sujeitos velhos. O ponto
comum estava em abrir espaço para recuperar memórias, em nosso caso
espaço para que os jovens narrassem as suas experiências escolares mais
significativas aquelas que tinham guardado na memória como valiosas,
dramáticas ou sofridas. Assim os jovens puderam confrontar diferentes
momentos de suas trajetórias escolares e de vida e compará-los de uma
maneira singular. Puderam perceber suas conquistas e desafios para o futuro, tomando consciência da passagem do tempo, do seu amadurecimento e da influência da formação escolar em suas existências.
A avaliação pode, neste entendimento, ganhar importância para a
vida dos sujeitos e não apenas para seus currículos escolares. Então, se a
avaliação tem estado predominantemente a serviço do poder, do controle
e da dominação externa à escola e à sala de aula, ela também pode estar a
serviço da vida dos jovens, ajudando-os a construir a consciência de suas
trajetórias de vida, das quais as experiências escolares são parcela relevante, e a serviço da construção de sentidos da existência desses jovens, já que
é nos espaços escolares que crianças e jovens passam a maior parte de seu
tempo. Vimos que a avaliação tem servido, predominantemente, a uma
lógica meritocrática, e tem promovido desigualdades sociais e injustiça
a partir da escola. A concepção de avaliação aqui desenvolvida, no sentido do trabalho da memória, ou da construção de memórias na escola,
poderá permitir a alunos, professores e comunidade escolar um melhor
entendimento de seus respectivos papéis na comunidade, de seus valores
no contexto da escola e da sociedade. Compartilhando suas experiências
individuais esquecidas na memória, recuperando sentidos significativos
para a ação pedagógica, para todos e cada um, uma experiência de reconhecimento mútuo, entre os sujeitos escolares pode se instalar.
Para finalizar cabe ainda uma palavra a respeito da importância da
avaliação como princípio metodológico para esta pesquisa. Uma vez que,
confrontando os heterogêneas conhecimentos que fui conquistando sobre o tema da avaliação, fui avançando, insatisfeita e com o desafio sempre
renovado de que não poderia concluir a pesquisa sem trazer alguma posTOC TOC TOC! Eu quero entrar 129
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sibilidade de uso pedagógico significativo para o problema que me propus
investigar. Durante todo o processo e após cada uma das breves incursões
em campo realizadas, analisamos os registros e apontamentos obtidos e
avaliamos os resultados coletados, que em geral se mostravam pouco satisfatórios, o que obrigou a ir adiante, continuando a busca. Assim fomos
constatando os limites de cada procedimento e fomos construindo uma
nova maneira de abordar o problema, escolhendo outro recurso metodológico, até chegarmos a um resultado que avaliamos como rico, do ponto
de vista dos elementos revelados.
Num jogo sucessivo de ensaio e erro, fui colecionando testemunhos.
E nesta procura, acabei chegando a um procedimento simples mas que se
mostrou capaz de trazer à tona ricos elementos da experiência escolar dos
alunos. A obra de Bosi (1994) ganhou espaço e importância para a análise
dos dados e a finalização do trabalho. Desta forma encontramos uma alternativa para recuperar o sentido pedagógico e processual da avaliação para a
vida dos alunos, que não poderá anular os efeitos nocivos da avaliação como
controle social, mas abre uma possibilidade de trabalho digno para professores e alunos. Esperamos que este texto contribua para o trabalho de meus
pares professores e para a aprendizagem com sucesso de seus alunos.
Referências
AFONSO, A. J. Estado, políticas educacionais e obsessão avaliativa. CONTRAPONTOS
– Revista de Educação da Universidade do Vale do Itajaí, vol. 7, n.1 – jan/abr/2007.
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DE COMO AS POPULAÇÕES E EDUCADORES DO
CAMPO FORAM SENDO INCLUÍDOS NA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA E DA SUA DISTÂNCIA DAS TICs
Márcia de Jesus Xavier
P
ara situar a nossa perspectiva e estabelecer o contexto e sentido
da exploração dos documentos legais que fazemos neste estudo,
é importante partir da conceituação de educação do campo, concepção cunhada provavelmente no início deste milênio e que está presente como fio condutor de todo o trabalho.
A expressão ‘educação do campo’ é bastante recente, trazendo consigo um conjunto de concepções que ampliam a noção de educação rural
que vigorou até pouco tempo. Alguns autores, como Fernandes e Molina,
consideram que esta expressão caracteriza uma espécie de novo paradigma para dimensionar a educação numa perspectiva de consideração para
com o interior do Brasil e suas populações. De acordo com Fernandes e
Molina, o campo, nesta concepção, passa a ser compreendido:
[...] como espaço de vida e resistência, onde camponeses lutam por acesso e permanência na terra e para edificar e garantir um modus vivendi que respeite as diferenças quanto à relação com a natureza, com o trabalho, sua cultura, suas relações
sociais. Esta neoconcepção educacional não está sendo construída para os trabalhadores rurais, mas por eles, com eles, camponeses (FERNANDES; MOLINA,
2004, p. 54).
Tal paradigma contrapõe-se ao paradigma da educação rural, pois,
conforme ressaltam Fernandes e Molina (2004, p. 59), este “tem como
referência o produtivismo, ou seja, o campo somente como lugar da produção de mercadorias e não como espaço de vida”. As pessoas são vistas
como “recursos” humanos para o trabalho no setor primário. Dentro dessa
concepção, bastar-lhes-ia a preparação para o trabalho em âmbito rural,
dissociada de uma formação universal, reflexiva, política e, sobretudo,
conscientizadora. O conceito de educação rural está presente e vigora
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 135
Ana Maria Netto Machado (Org.)
ainda em todos os recantos do Brasil e, como veremos durante o desenvolvimento do texto, se mostra, também, em grande parte dos artigos da
legislação formulados para regulamentar a educação no Brasil nestes territórios.
Neste artigo, mostramos o mapeamento resultante do rastreamento
realizado em documentos legais nacionais sobre a presença de formulações normativas (artigos, incisos, capítulos, etc.) voltadas especificamente
para a educação dos cidadãos habitantes em zonas rurais ou do campo.
Em que momento e em que circunstâncias se manifesta, no Brasil, a preocupação com a educação destas populações? Que concepções lhe estão
associadas? Quais contextos e motivações levam a incluir itens nos diferentes documentos legais brasileiros que levam em conta o contingente de
habitantes das áreas rurais?
Como o leitor poderá constatar na parte final deste trabalho, a questão central tratada, a inclusão digital de docentes habitantes em zonas rurais, só se fez presente com destaque e consistência em programa específico (Programa Nacional de Tecnologia Educacional – ProInfo), em 2007,
quando explicitou-se a preocupação com a inclusão digital daqueles docentes através de um de seus objetivos: “promover o uso pedagógico das
tecnologias de informação e comunicação nas escolas de educação básica
das redes públicas de ensino urbanas e rurais” (BRASIL, 2007c, p. 3). Há
também uma menção rápida, mas que vale a pena revelar aqui, nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, seis
anos antes (Resolução CNE/CEB n. 01/2002), encontrada no artigo 13:
Os sistemas de ensino, além dos princípios e diretrizes que orientam a Educação Básica no país, observarão, no processo de normatização complementar da
formação de professores para o exercício da docência nas escolas do campo, os
seguintes componentes:
I - estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual
e coletiva, da região, do país e do mundo;
II - propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão
democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contri136
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
buições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos
que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas
(BRASIL, 2002, grifo nosso).
Em 2006, o coordenador da Educação do Campo, ligado à SECAD
– Secretaria de Educação do Campo, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação, já anunciava, num dos Seminários de Educação do
Campo, realizado em Lages/SC, que entre as ações daquela Secretaria estavam a melhoria de infraestrutura das escolas do campo (incluindo internet para todas as escolas) e a formação inicial e continuada de educadores
do e para o campo.
Entretanto parece-nos relevante contextualizar a evolução, ou
as mudanças, na consciência e atenção pública em termos de educação
para estas populações que, na verdade, data de meados do século passado, como veremos adiante, sendo visível a transformação da concepção
de rural, o sentido e a importância deste contingente de cidadãos para o
desenvolvimento do país.
Inicialmente, tomamos como documento base o Parecer n°
36/2001, que teve como relatora a Professora Edla de Araújo Lira Soares,
aprovado pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação em dezembro de 2001. Este documento apresentou os argumentos
necessários à aprovação, na referida Câmara, das Diretrizes Operacionais
para a Educação Básica nas Escolas do Campo, constituindo-se “num importante marco para a educação do campo porque contemplam e refletem
um conjunto de preocupações conceituais e estruturais presentes historicamente nas reivindicações dos movimentos sociais”, como afirma Henriques et al. (2007, p. 17).
Nosso intuito é o de trazer à tona as referências da autora à questão que nos ocupa, descrevendo e analisando as menções à educação para
este segmento da população nos documentos legais brasileiros. Para tanto,
examinamos os documentos citados, na íntegra, além de outros que não
estão referidos neste Parecer, e elaboramos a tabela abaixo, organizando
o conjunto de documentos legais encontrados por ordem cronológica e
destacando os trechos que levam em conta, diretamente, a educação para
populações do campo.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 137
Ana Maria Netto Machado (Org.)
O mapeamento permitiu chegar a uma série de considerações que
revelam aspectos significativos das mudanças na percepção e concepção
governamental sobre zonas rurais e urbanas, cujos efeitos se fazem sentir
inclusive na nomenclatura que vai sendo utilizada, assumindo formas diversificadas ao longo do século passado e do século XXI.
No quadro que segue, incluímos um total de 31 formulações (artigos, incisos, parágrafos, etc.) voltadas para a educação das populações
de espaços não urbanos, encontrados em 26 documentos legais, entre os
quais há uma gama de dez tipos diferentes de texto: Cartas Magnas, Constituições, Leis, Decreto-Lei, Decretos, Textos Constitucionais, Cartas dos
Estados, Constituições dos Estados, Planos e Resoluções.
ANO
DOCUMENTO
ARTIGO/PARÁGRAFO/
INCISO N°
1891
Carta Magna do Brasil
Art. 72
1934
Constituição do Brasil
Art. 156
1946
Decreto Lei 9613
Art. 14; § III
1961
Lei de Diretrizes para a Educação Nacional - n° 4024
Artigos 57 e 105
1988
Carta Magna
Art. 208 e Art. 210
1988
Carta Magna
Art. 62
1989
Texto constitucional do Estado do RS
Art. 217
1989
Carta de Rondônia
Art. 195
1989
Constituição do Pará
Art. 280
1989
Carta do Mato Grosso do Sul
Art. 195
1989
Lei Maior de Minas Gerais
Art. 198
1989
Constituição do Maranhão
§ 1° do Art. 218
1989
Constituição de Sergipe
1989
Constituição do Ceará
1989
Carta do Acre
1989
Constituição do Pará
Art. 215
§ 6° do Art. 231;
§ 8° do Art. 231
§ II do Art. 194
§ 1º do Art. 280
§ IV do Art. 281
1989
Constituição da Paraíba
Art. 211
1989
Constituição de Tocantins
Art. 136
1989
Carta do Rio Grande do Sul
Art. 216
138
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
ANO
DOCUMENTO
ARTIGO/PARÁGRAFO/
INCISO N°
1991
Constituição do Amapá
Inciso XV do Art. 283; §
único do Art. 286
1991
Constituição de Roraima
§ II do Art. 149
1991
Carta do Amapá
Inciso XIV do Art. 283
1996
Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional
9394
Art. 23, 26 e 28
1996
Lei N° 9424
Art. 2°
2001
Plano Nacional de Educação
Objetivo e Meta n° 16
2002
Resolução Conselho de Educação Básica (CEB)N°01
Documento completo.
2007
Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE
Documento completo.
2007
Decreto n° 6.300
Documento completo.
Quadro 1 – Menções às populações não urbanas em documentos legais brasileiros.
Fonte: A autora (2008).
Examinando o quadro apresentado, alguns pontos merecem ser
destacados. O primeiro documento recuperado é o do final do século
XIX: a Carta Magna de 1891. No artigo 72, lemos:
A Constituição assegura a todos os brasileiros e a estrangeiros residentes no país
a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade nos termos seguintes: § 6° - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. § 24 – É garantido o livre exercício de qualquer profissão
moral, intelectual e industrial (BRASIL, 1891).
Apesar de não se referir à educação rural, o caráter universal e laico
dos direitos que garante constitui-se em precedente e condição estabelecida
para incluir entre as funções do Estado a educação pública em áreas rurais.
A menção ao direito à propriedade, em um país de grandes extensões territoriais, de produção econômica agropecuária, indiretamente assinala a importância do espaço rural, numa determinada concepção de celeiro do país.
Entre a Carta Magna de 1891 e a de 1988 passou-se quase um século. A partir do século XX, agrupamos as iniciativas que tomaram forma
de documentos legais em três grandes blocos que podem corresponder a
momentos historicamente significativos. O primeiro, em torno da primeiTOC TOC TOC! Eu quero entrar 139
Ana Maria Netto Machado (Org.)
ra metade do século XX, incluiria três documentos: Constituição de 1934,
o Decreto Lei 9.613 de 1946, que criou a lei orgânica do ensino agrícola
e a Lei 4.024 de 1961, que fixava as Diretrizes para a Educação Nacional.
O segundo bloco é marcado pela Constituição de 1988 que desencadeia, nos anos seguintes (até 1991), a elaboração de uma série de Cartas
e Constituições dos diferentes Estados, sobretudo das Regiões Norte e
Nordeste, com iniciativas pontuais, que chamam a atenção, por parte dos
Estados de Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Um terceiro agrupamento reúne os documentos da década de 1990
e é marcado pela promulgação da Lei de Diretrizes e Bases para e Educação Nacional, n° 9394 de 1996, que dará cobertura às regulamentações
do último e quarto bloco de documentos, já no século XXI, com Planos,
Resoluções e Decretos nos anos 2001, 2002 e 2007. E, penetrando no teor
dos artigos, emergem reflexões importantes para compreender como se
processa a construção de políticas públicas e como elas vão ganhando fôlego e força até se efetivarem como políticas de Estado.
O artigo 156 da Constituição de 1934 destina verba para realização
do ensino em zonas rurais; o artigo 14 do Decreto Lei 9613, de 1946,
articula o ensino agrícola voltado para o ingresso na educação superior
vinculado a essa área de estudo e o artigo 57 da Lei de Diretrizes para a
Educação Nacional n° 4024, de 1961, focaliza pela primeira vez, a formação de professores para as escolas rurais.
Vejamos em detalhe como se expressam tais ideias nos referidos artigos e as implicações que podemos delas depreender. Na Constituição de
1934, o artigo 156 determina:
A União, os Estados e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento e
o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento de renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos. Parágrafo
Único. Para realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará, no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento
anual (BRASIL, 1934, grifo nosso).
Esta é a primeira lei a considerar a educação rural e a destinar-lhe
recursos. Entretanto, como revela Henriques et al. (2007, p. 16), “as polí140
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
ticas públicas necessárias para o cumprimento dessa determinação nunca foram implementadas”. Além de a educação rural ficar dependente de
recursos da União, e não dos Estados ou Municípios (que estariam mais
próximos e com melhores possibilidades de estabelecer prioridades para
o interior do Brasil), estes recursos nunca chegaram. O resultado desta
falta de implementação da lei provavelmente favoreceu e acentuou as desigualdades entre espaços urbanos e espaços rurais, com consequências que
perduram até os dias atuais.
Em 1946, aprova-se o Decreto Lei n° 9613, cujo artigo 14 diz:
A articulação do ensino agrícola e deste com outras modalidades de ensino farse-á nos seguintes moldes: III – É assegurado ao portador de diploma conferido em virtude de um curso agrícola técnico, a possibilidade de ingressar em
estabelecimentos de ensino superior para a matrícula em curso diretamente relacionado com o curso agrícola técnico concluído, uma vez verificada a satisfação
das condições de admissão determinadas pela legislação vigente (BRASIL, 1946,
grifo nosso).
Chama a atenção aqui o que poderíamos chamar de uma espécie
de confinamento: limitação da educação superior às atividades agrícolas,
privilegiando-se uma educação voltada especificamente à formação profissional rural, sem evidência de compromisso com uma educação universal ou, então, com a valorização das dimensões culturais das regiões, ou
históricas, considerando-se basicamente a dimensão e valor econômico
(setor produtivo primário). Percebe-se aqui uma forte presença do paradigma rural então dominante. As leis são pensadas de cima para baixo,
com forte tendência de operar a fixação do homem no meio rural, por
meio de uma estratégia de oferecer-lhe uma formação pouco universal,
centrada em conhecimentos específicos associados à produção agrícola,
e somente podendo ingressar no ensino superior em curso diretamente
relacionado a esta área.
Fernandes e Molina (2004, p. 56) se expressam sobre esta questão,
contrapondo a visão conservadora a uma nova vertente, que reivindica
a denominação de educação do campo, construindo um conceito mais
amplo para abordar estas questões. “A Educação Rural, em suas correntes
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 141
Ana Maria Netto Machado (Org.)
mais conservadoras, tem uma visão exterior que ignora a própria realidade
que se propõe trabalhar”. Quem deve decidir pelo futuro das comunidades do campo? É o que discutem estes autores. Não cabe a elas o direito
de serem protagonistas de sua própria história? Forçá-los a uma formação
específica, em qualquer que seja a área, já seria uma violação do direito à
cidadania e do direito de decidir sobre seu futuro.
Fernandes e Molina (2004, p. 55) indicam o caminho do paradigma da educação do campo, enfatizando que, sob esta nova perspectiva, “a
Educação do Campo pensa o campo e sua gente, seu modo de vida, de organização do trabalho e do espaço geográfico, de sua organização política
e de suas identidades culturais, suas festas e seus conflitos”. Neste sentido,
não se preparam atualmente políticas públicas para estas comunidades,
mas com a sua efetiva participação, resultante, como veremos mais adiante, da conscientização política promovida pelos diversos movimentos sociais, destacando-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
reconhecido nacionalmente e internacionalmente pelo importante papel
que tem desempenhado na educação popular e pela participação na formulação de políticas públicas decisivas para a melhoria da qualidade de
vida no campo.
Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, n° 4024, através de seus artigos 57 e 105, reforça a ideia de que o homem do campo
precisa se integrar a seu meio e recomenda a realização de formação de
educadores para atuarem nas escolas rurais primárias, seguindo a mesma
concepção de educação. Vejamos como a referidas leis tratam estes importantes temas:
Art. 57. A formação de professores, orientadores e supervisores para as escolas
rurais primárias poderá ser feita em estabelecimentos que lhes prescrevem a integração no meio. Art. 105. Os poderes públicos instituirão e ampararão serviços
e entidades, que mantenham na zona rural escolas ou centros de educação, capazes de favorecer a adaptação do homem ao meio e o estímulo de vocações e
atividades profissionais (BRASIL, 1961, grifo nosso).
Fica evidente a intenção de uma política pública alinhavada sob as
bases da educação rural, pensada por protagonistas externos e, como re142
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
porta Henriques et al. (2007, p. 16), que pretendia “frear a onda migratória que levava um grande contingente populacional do campo para as
cidades, gerando problemas habitacionais e estimulando o crescimento
dos cinturões de pobreza hoje existentes nos grandes centros urbanos”.
Ao examinar o teor dos documentos legislativos que antecedem a
Constituição de 1988, chamamos a atenção para a formulação de uma educação voltada exclusivamente à preparação para o trabalho e para as lides
do campo, como forma de mantê-lo naquele meio. O interior do Brasil era
visto como celeiro produtor dos alimentos consumidos nas cidades. Assim
sendo, procurava-se segurar o homem do campo no campo, cabendo a ele
somente o ensino profissionalizante, tecnocrático, evitando a conscientização dos trabalhadores rurais sobre os seus direitos e sobre sua precária condição existencial, favorecendo a sua alienação e seu refúgio em esperanças
traduzidas muitas vezes pela “vontade de Deus” (FREIRE, 1996).
Já a Carta Magna de 1988 começa a realizar uma mudança na concepção da educação pensada para o espaço rural. Embora ainda tenha sido
construída para o homem rural, traz em seu bojo o respeito àquelas comunidades, pois a partir de então a educação para as comunidades do campo
passou a ser tratada como “segmento específico, prenhe de implicações sociais e pedagógicas próprias”, como ressaltam Henriques et al. (2007, p. 16).
Ao analisar a Constituição de 1988, a relatora Edla Soares (BRASIL, 2001a, p. 10) acredita que os seus artigos 208 e 210, “inspiraram a
LDBEN de 1996, configurando uma concepção de mundo rural como espaço específico, diferenciado e ao mesmo tempo integrado no conjunto da
sociedade”. Para melhor entendimento, transcrevemos a seguir os artigos
supracitados:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia
de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele
não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado
aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adeTOC TOC TOC! Eu quero entrar 143
Ana Maria Netto Machado (Org.)
quado às condições do educando; VII - atendimento ao educando, no ensino
fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1º O acesso ao ensino obrigatório
e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da
autoridade competente. § 3º Compete ao poder público recensear os educandos
no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola. [...] Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos
para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e
respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º O ensino
religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental. § 2º O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem
(BRASIL, 2000, p. 168-9, grifo nosso).
Com a promulgação desta Constituição, a universalização da educação fundamental começou a ganhar detalhamento, passando a atender
alguns segmentos da população que ficaram até então excluídos, tais como
os indígenas, os portadores de deficiência, os que não tiveram acesso na
idade adequada, etc.
Não estão nomeados especificamente os povos do campo, mas de
alguma forma estão subentendidos e começam a aparecer no cenário das
políticas públicas nacionais. Há indícios, principalmente no artigo 210
deste documento, de que começam a ser respeitados seus modos de vida,
suas culturas e suas formas de organização, o que fica implícito na frase
“respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”.
O artigo 208 é a ferramenta legal que amplia o concede a todos os
brasileiros o direito à educação escolar. Esta, segundo Henriques et al.
(2007, p. 16), é a “premissa básica da democracia”. E sendo direito de todos, começa-se, ainda que de forma sutil, a pensar a educação para as populações esquecidas do campo.
Em 1991, foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
(SENAR), através da Lei n° 8.315 (BRASIL, 1991), nos termos do artigo
62 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (de 1988), onde
144
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
se previa sua criação nos moldes do SENAC e SENAI. O SENAR é uma
realidade em vários estados brasileiros, e seu objetivo é “organizar, administrar e executar, em todo o território nacional, a formação profissional
rural e a promoção social de jovens e adultos, homens e mulheres que
exerçam atividades no meio rural”1. O SENAR, de acordo com informações em seu sítio na internet, desenvolve um “processo educativo, não formal, participativo e sistematizado, que possibilita ao homem aquisição de
conhecimentos, habilidades e atitudes para o exercício de uma ocupação”.
Para tanto, trabalha ainda hoje dentro de oito linhas de ação (conjunto de
áreas ocupacionais): agricultura, pecuária, silvicultura, aquicultura, extrativismo, agroindústria, atividades de apoio agro-silvo-pastoril e a atividades relacionadas à prestação de serviços.
Quando se trata de promoção social, o SENAR desenvolve atividades com vistas ao “desenvolvimento de aptidões pessoais e sociais do trabalhador rural e de sua família, numa perspectiva de maior qualidade de
vida, consciência crítica e participação na vida da comunidade”. Trabalha,
para tanto, com sete grandes áreas de atividades: alimentação e nutrição,
apoio às comunidades rurais, artesanato, cultura esporte e lazer, educação,
organização comunitária e saúde.
A partir da promulgação da Constituição brasileira de 1988, nos
três anos subsequentes, muitos estados passaram a introduzir artigos
referentes à educação em espaços rurais em suas constituições estaduais, embora ainda tratem diferentemente a mesma questão. Atualmente alguns estados buscam metas altas de qualidade na educação rural
e outros apresentam em suas constituições indícios de preparação do
homem do campo para as atividades a ele inerentes – sem clara alusão
à preocupação com uma educação universal, a exemplo do que já ocorreu no passado, principalmente nas décadas de 1950 e 1960, quando se
pensava em apenas fixar o homem no campo, limitando-se a educação
ao trabalho ligado à terra.
Chama a atenção que em 1989, as mesorregiões Norte e Nordeste
eram as que se mobilizavam para elaborar Cartas (Roraima, Acre) e Constituições Estaduais (Pará, Maranhão, Tocantins, Ceará, Paraíba, Sergipe).
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www.senar.org.br
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De modo geral, estas regiões incluem enormes extensões rurais, com exceção de Paraíba e Sergipe que são estados proporcionalmente menores.
O Estado de Mato Grosso do Sul também elaborou sua Carta Estadual nesse ano. E os estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul atribuíram a seguinte nomenclatura, para seus respectivos documentos constitucionais: Lei Maior (MG) e Texto Constitucional (RS). Embora a relatora
Edla Soares (BRASIL, 2001a) tenha diversificado a forma de se referir às
Constituições dos estados brasileiros, denominando algumas de Cartas e
outras de Constituições, tal como consta no quadro 1, todos os documentos dos estados, quando de sua publicação, consistiam em Constituições
propriamente ditas de cada Estado. Em 1991, um pouco mais tardiamente, o Estado do Amapá aprovou sua Constituição Estadual e Roraima também passou a ter a sua.
Passamos agora a comentar e analisar as constituições e os referidos
artigos, parágrafos e incisos que permitirão visualizar como a educação
rural, ou do campo – como preferimos denominá-la neste estudo – é concebida pelos diferentes estados analisados no Parecer n° 36/01 da Câmara
de Educação Básica do CNE, aprovado em dezembro daquele ano.
Note-se que a Constituição de 1988 desencadeou uma série de constituições estaduais que também traziam em seu bojo a preocupação com
a oferta de uma educação rural pensada a partir da realidade das comunidades a que se destinavam. Como já afirmamos anteriormente, alguns
Estados avançam mais do que outros na formulação de políticas públicas
concebidas a partir do “paradigma da educação do campo”, nos termos
de Fernandes e Molina (2004, p. 7). Para Soares (BRASIL, 2001a), por
exemplo, o estado do Rio Grande do Sul é o único da federação a “transpor a lógica compensatória”, ao incluir no artigo 217 o assunto da reforma
agrária. Vejamos como se expressa a ideia no próprio artigo:
Art. 217 - O Estado elaborará política para o ensino fundamental e médio de orientação e formação profissional, visando a: I - preparar recursos humanos para
atuarem nos setores da economia primária, secundária e terciária; II - atender
às peculiaridades da formação profissional, diferenciadamente; III - auxiliar na
preservação do meio ambiente; IV - auxiliar, através do ensino agrícola, na implantação da reforma agrária. (RIO GRANDE DO SUL, 1989, grifo nosso).
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Pode-se afirmar que o Estado do Rio Grande do Sul, em 1989, ao
inserir no texto constitucional questões de extrema importância para a
população rural como a reforma agrária, trata de maneira mais qualificada a educação voltada para aquela população, pois apresenta metas mais
elevadas, daí a expressão da relatora: “superação da lógica compensatória”.
A constituição do Rio Grande do Sul registra a necessidade de melhorar a
infraestrutura para o funcionamento das escolas no meio rural. Também
explicita a necessidade de ofertar um número de vagas adequado ao ensino fundamental completo, de modo a absorver os alunos das regiões,
evitando assim que estudantes da área rural deixem de estudar ou tenham
de se locomover por grandes distâncias para acessar esse nível de ensino.
Embora hoje as metas sejam ainda mais ambiciosas, como ofertar ensino
médio e ensino superior no âmbito rural, previstos pelo Grupo Permanente de Trabalho da Educação do Campo da SECAD (BRASIL, 2003), o
referido artigo já se traduzia, à época, em importante passo. Segue o artigo
216, para melhor entendimento do que acabamos de discorrer:
Art. 216 - Todo estabelecimento escolar a ser criado na zona urbana deverá ministrar ensino fundamental completo. § 1º - As escolas estaduais de ensino fundamental incompleto, na zona urbana, serão progressivamente transformadas
em escolas fundamentais completas. § 2º - Na área rural, para cada grupo de
escolas de ensino fundamental incompleto, haverá uma escola central de ensino
fundamental completo que assegure o número de vagas suficiente para absorver
os alunos da área. § 3º - O Estado, em cooperação com os Municípios, desenvolverá programas de transporte escolar que assegurem os recursos financeiros indispensáveis para garantir o acesso de todos os alunos à escola. § 4º - Compete
a Conselhos Municipais de Educação indicar as escolas centrais previstas no § 2º
(RIO GRANDE DO SUL, 1989, grifo nosso).
Em 1989, a Constituição estadual de Mato Grosso do Sul, em seu
artigo 195, previu a expansão de ensino técnico e agropecuário e afirmou
que este será gratuito2: Art. 195. O Estado, tendo em vista as peculiari2 Este artigo da Constituição do Estado do Mato Grosso do Sul não foi referenciado no Parecer n° 36/01 da
Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. Soares (2001) informou que o Artigo n° 154
daquela Constituição trata deste assunto. Após examinar o referido documento, descobrimos que se tratava do
artigo n° 195.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
dades regionais e as características de grupos sociais, estimulará, diretamente ou através de incentivos fiscais, a criação e expansão do ensino
técnico e de agropecuária, a serem ministrados gratuitamente ou através
de bolsa de estudo. (MATO GROSSO DO SUL, 1989, grifo nosso).
Em 1989, a Lei Maior de Minas Gerais, em seu artigo 198, decreta:
Art. 198 - A garantia de educação pelo Poder Público se dá mediante: IX - promoção da expansão da rede de estabelecimentos oficiais que ofereçam cursos
gratuitos de ensino técnicoindustrial, agrícola e comercial, observadas as peculiaridades regionais e as características dos grupos sociais (MINAS GERAIS,
1989, grifo nosso).
A Constituição de Minas Gerais, como podemos perceber, prevê a
oferta de cursos gratuitos profissionalizantes e abre a perspectiva de observação das características regionais, levando em conta também os grupos sociais e seus modos de vida, organização. Enfim, abrange um conceito que já se aproxima do de educação de campo, pensado a partir das
características regionais e sociais.
Passamos agora à Carta de Rondônia, de 1989. Em seu artigo 195,
afirma que o Estado está autorizado a criar escolas técnicas, agrotécnicas
e industriais, entretanto aparece somente a preocupação com o “desenvolvimento regional”, sem nítida preocupação com as populações do campo
e suas nuances, como em outros casos que vimos acima.
Vejamos como o artigo trata a questão:
Art. 195 – O Estado está autorizado a criar escolas técnicas, agrotécnicas e industriais, atendendo às necessidades regionais de desenvolvimento.
Parágrafo único – Na efetivação dos planos regionais de desenvolvimento, incluir-se-á a implantação das escolas previstas no “caput” deste artigo (RONDÔNIA, 1989, grifo nosso).
A Constituição do Pará (1989), por sua vez, traz a obrigatoriedade
de o Estado expandir o ensino médio, nos termos do artigo 280, sendo que
fica explícito o respeito às características das realidades estaduais específicas para o ensino rural, trazendo também a formação docente como meta.
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A prioridade da interiorização do ensino é também premissa de qualificação do ensino no meio rural, fazendo do Estado do Pará um dos estados
que preconiza as metas mais qualificadas para o interior, o que causou,
inicialmente, certa surpresa3. O referido artigo está assim redigido:
Art. 280. O ensino público será organizado em redes estadual e municipais, em
regime de colaboração, obedecendo aos princípios desta Constituição e visando:
II - a responsabilização progressiva do Município no atendimento em creches,
pré-escolas e ensino fundamental:
§ 1°. A responsabilidade progressiva, referida no inciso II, far-se-á a partir da
educação infantil e do primeiro ciclo do ensino fundamental e, à medida que os
Municípios assumam as escolas fundamentais, o Estado será obrigado a, concomitantemente, expandir o ensino médio, através da criação de escolas técnicas,
agrícolas ou industriais e de escolas de formação de professores para o primeiro
grau, priorizando, em qualquer caso, o interior do Estado (PARÁ, 1989, grifo
nosso).
Citamos também o parágrafo IV do artigo 281 da mesma Constituição, que prevê a inclusão de medidas para qualificação da educação rural e
inclusão destas medidas no plano estadual de educação, conforme segue:
Art. 281. A lei estabelecerá o plano estadual de educação, de duração plurianual
e ajustamentos anuais, de forma integrada, articulada e harmônica com o plano
nacional de educação e com os planos municipais de educação, e de acordo com
a política estadual de educação, devendo conter, obrigatoriamente:
IV - medidas destinadas ao estabelecimento de modelos de ensino rural, que
considerem a realidade estadual específica (PARÁ, 1989, grifo nosso).
Na Constituição do Acre (Carta do Acre), de 1989, percebemos
uma intenção clara de valorização cultural e comprometimento com as
características regionais, embora não fique explícito um direcionamento
consistente para tratar com a especificidade necessária a educação rural,
3 Por outro lado, temos notícia do trabalho de Salomão Hage, no PA, liderando o Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Rural na Amazônia – GEPERUAZ, com ações em torno da alfabetização cidadão na Transamazônica e das classes multisseriadas no Pará. Consultar o site: www.ufpa.br/ce/geperuaz
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
como era usualmente denominada à época. O artigo 194 daquele documento apresenta-se da seguinte forma:
Art. 194. Na estruturação do currículo, observar-se-á o seguinte:
I - conteúdos mínimos fixados a nível nacional para o ensino, de modo a assegurar
a formação básica comum e a unidade nacional;
II - conteúdos voltados para a representação dos valores culturais, artísticos e
ambientais da região;
III - o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas, também, a utilização de suas línguas maternas
e processos próprios de aprendizagem;
IV - ensino da cultura e da história acreana nas escolas de primeiro e segundo
graus, bem como da educação ambiental;
V - ensinamentos de espanhol nas escolas de primeiro e segundo graus, em caráter facultativo, que deverão ser regulamentados pelo Conselho Estadual de Educação;
VI - obrigatoriedade, no ensino de primeiro grau, em todas as escolas públicas e
privadas, dentro da área de educação para a saúde, de ensinamento de primeiros
socorros e prevenção de acidentes e doenças ocupacionais, que deverão ser regulamentados pelo Conselho Estadual de Educação (ACRE, 1989, grifo nosso).
Em 1989, a Constituição de Tocantins, através de seu Artigo 136,
surpreendeu por apresentar também metas altamente qualificadas para a
educação das populações do interior. Segue o artigo, na íntegra:
Art. 136. O Estado instituirá programa especial de ensino para a zona rural,
observando as peculiaridades do setor.
Parágrafo único. Ao profissional do magistério na zona rural, é assegurado isonomia de vencimentos com os da zona urbana, observando o nível de formação
(TOCANTINS, 1989, grifo nosso).
A referida lei assegura a valorização dos docentes da zona rural,
através da garantia de isonomia salarial destes com os da zona urbana.
Valoriza-se, através desta medida, a formação docente, bem como se estimula o professor do campo, pois as estatísticas mostram que este tem sa150
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lário inferior ao professor da zona urbana e também dispõe de condições
precárias de trabalho. De acordo com dados do Ministério da Educação:
[...] a remuneração dos professores das áreas rurais é bem inferior àquela de seus
colegas que lecionam em escolas urbanas. Os professores que atuam na 4ª e 8ª
série do ensino fundamental, em exercício na área rural, recebem praticamente a
metade do salário dos que atuam na área urbana [...] (BRASIL, 2004, p. 22-23).
A iniciativa de Tocantins abre a oportunidade de desenvolver neste
momento uma breve discussão, sobre a isonomia salarial dos professores,
antes de continuarmos a descrever e analisar as Constituições dos demais
estados que entre 1989 e 1991 formularam documentos legais próprios.
A tabela abaixo, de número 27 no documento original do Ministério de Educação, acompanha o fragmento anterior (BRASIL, 2004, p. 23)
e revela a real necessidade de, no mínimo, equiparar os salários dos professores da zona rural com os dos professores da zona urbana:
Localização
Salário do Professor do Ensino Fundamental (R$)
4ª série
8ª série
Urbano
619,45
869,86
Rural
296,34
351,07
Variação
109,0%
147,8%
Quadro 2 - Salário médio dos professores do ensino fundamental
(Brasil, SAEB, 2004, p. 23)
Este mesmo estudo (BRASIL, 2004) revela: “[...] nas escolas rurais, os salários tendem a ser menores e acabam se constituindo em mais
um elemento que determina a intensa rotatividade desses profissionais da
educação [...]”. É justamente com base nesta análise que a SECAD tem
como um de seus objetivos estabelecer salários mais altos para os profissionais do magistério do campo, como forma de incentivo para estes
profissionais se fixarem em áreas rurais, sustando a alta rotatividade de
professores que hoje se verifica, considerada prejudicial aos educandos.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Ainda com base nos dados apresentados pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2004, p. 15), percebemos que o professor enfrenta “[...] de
um lado, a precariedade da estrutura física e, de outro, a falta de condições
e a sobrecarga de trabalho [...] o que possivelmente interfere no processo
de ensino/aprendizagem”.
Sobre este aspecto, valemo-nos da análise de Kuenzer sobre o mundo
do trabalho contemporâneo, quando se refere ao atual modelo de acumulação flexível do capital, que acaba invadindo, com a sua lógica, também a instituição da escola. Denuncia Kuenzer (2002, p. 81): “os métodos flexíveis de
organização e gestão do trabalho, não só exigem novas competências, como
também invadem a escola com os novos princípios do toyotismo”. Neste contexto, o professor foi se tornando e precisa assumir a postura de um
profissional “tarefeiro”, que se sente desvalorizado, pois, infelizmente, não
sobra tempo nem recursos para realizar um trabalho de qualidade, ou para
ascender em sua formação profissional. Neste sentido, as ações da SECAD,
ao incentivar as lutas por melhores salários para os professores do campo
e também para melhorar a infraestrutura das escolas rurais, inclusive com
oferta de laboratórios de informática com acesso à internet, tornam-se cruciais para alavancar um processo de valorização do professor, dos educandos
e das comunidades no entorno das escolas do interior.
Com este objetivo são lançadas linhas de ação pelo Ministério da
Educação (BRASIL, 2007b, p. 33) e uma delas é justamente “promover
a formação e fomentar a remuneração/incentivos diferenciados às educadoras e educadores do campo” através de várias medidas, entre elas assegurar “adicional salarial para os professores que atuem em escolas do
campo; fomentar política de oferta de moradia para os professores que
desejarem residir no campo”.
Retomando as Constituições dos estados, em 1989, a Carta Política de Sergipe, através do parágrafo 3° de seu artigo 215, previu a adaptabilidade dos calendários escolares das escolas rurais, de modo que as
férias possam coincidir com o período de colheitas. E o inciso VIII do
mesmo artigo traz a valorização de aspectos culturais e sociais, além de
se referir novamente à adequação curricular e de calendário, de acordo
com as necessidades de cada região, conforme podemos constatar por
meio de sua leitura:
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Art. 215. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
VIII - fixação de currículo e calendário escolar, adequados à realidade sócioeconômica de cada região, assegurado, na formação prática, o acesso aos valores
culturais, artísticos e históricos nacionais e regionais.
§ 3º O calendário na zona rural será estabelecido de modo a permitir que as
férias escolares coincidam com o período de cultivo do solo (SERGIPE, 1989,
grifo nosso).
A interiorização do ensino é a meta apresentada pelo Estado da Paraíba, em 1989, que a prevê nos termos de sua Constituição:
Art. 211. A lei estabelecerá o plano estadual de educação, de duração plurianual,
visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à
integração das ações do Poder Público que conduzam à:
[...]
§ 2º O Estado, em articulação com os Municípios, promoverá o mapeamento
escolar, estabelecendo critérios para a ampliação e a interiorização da rede escolar pública (PARAÍBA, 1989, grifo nosso).
Em 1989, a Constituição do Maranhão traz também a perspectiva da
adaptabilidade dos currículos das escolas rurais de forma a se permitir que
a elaboração do calendário daquelas escolas leve em conta as estações do
ano e os ciclos agrícolas, além de valorizar aspectos culturais e sociais. Tais
ideias se expressam no parágrafo 1° do artigo 218, transcrito a seguir:
Art. 218 - Os conteúdos do ensino fundamental, para a formação básica comum
e o respeito aos valores culturais e artísticos regionais, atenderão aos aspectos
sociais, históricos e geoeconômicos do Estado.
§ 1o - Os alunos de escolas rurais, em regiões agrícolas, têm direito a tratamento
especial, adequado à sua realidade, devendo o Poder Público adotar critérios que
levem em conta as estações do ano e seus ciclos agrícolas.
§ 2o - O ensino fundamental é obrigatório e gratuito, com período de oito horas
diárias para o turno diurno, e contará com a atuação prioritária dos Municípios
e assistência técnica e financeira do Estado, inclusive para os que não tiveram
acesso na idade própria.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
§ 3o- O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas e privadas em todos os níveis (MARANHÃO,
1989, grifo nosso).
A Constituição do Ceará, datada de 1989, determina, no parágrafo
6° do artigo 231, que as escolas rurais do Estado devem obrigatoriamente
instituir o ensino de cursos profissionalizantes. E o parágrafo 8° daquele
artigo prevê que em cada microrregião do Estado, seja implantada uma
escola técnico-agrícola, trazendo novamente a questão da adaptabilidade
da escola às características do espaço rural, possibilitando mudanças no
calendário escolar, de acordo com a realidade de cada microrregião. Vejamos como o dispositivo se apresenta:
Art. 231. Os recursos públicos serão destinados às escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, definidas em lei que:
§ 6°. As escolas rurais do Estado devem obrigatoriamente instituir o ensino de
cursos profissionalizantes;
§ 8°. Em cada microrregião do Estado será implantada uma escola técnica agrícola que deve ter os currículos e o calendário escolar adequados à realidade da
microrregião (CEARÁ, 1989, grifo nosso).
Cabe salientar que os termos e teor dos artigos da Constituição do
Ceará parecem menos avançados do que todos os que mostramos acima a
partir das Constituições dos estados.
Pela interpretação que fazemos do parágrafo XV do artigo 283 e
do parágrafo único do artigo 286 da Constituição do Amapá (1991), é
talvez a que deixa mais explícita e detalhada a consideração das particularidades regionais e talvez até tenha servido de inspiração para o cerne
da concepção de educação do campo presente nas Diretrizes e Bases para
a Educação Nacional (9394/1996). Este documento também prevê a
oferta de cursos gratuitos profissionalizantes, observando as características regionais e sociais. Conclui-se que o Estado leva em conta também
a realidade dos grupos sociais e suas culturas, o que pode ser constatado
nos artigos abaixo expostos, pois, além de incluir no ensino fundamental
matérias de caráter regional, inclui também técnica agropecuária e pes154
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
queira, percebendo, de certa forma, a diversidade das populações que
habitam o interior daquele estado:
Art. 283. É dever do Estado garantir:
XV - promoção da expansão da rede de estabelecimentos oficiais que ofereçam
cursos gratuitos de ensino técnico-industrial, agrícola e comercial, observadas as
peculiaridades regionais e as características dos grupos sociais;
XVI – oferecimento da infra-estrutura necessária aos professores e profissionais
da área da educação em escolas do interior.
Art. 286. Respeitando o conteúdo mínimo do ensino fundamental estabelecido
pela União, o Estado lhe fixará, conteúdo complementar, com o objetivo de assegurar a formação política e cultural regional.
Parágrafo único. No que se refere ao conteúdo complementar ou diversificado, é
facultado ao estado:
I – inserir, no currículo escolar, as matérias de:
a) História do Amapá;
b) Cultura do Amapá;
c) Educação ambiental;
d) Estudos amazônicos;
e) Técnica Agropecuária e Pesqueira (AMAPÁ, 1991, grifo nosso).
No mesmo ano em que foi promulgada a Constituição do Amapá,
o foi também a de Roraima (1991), que em seu parágrafo II do artigo 149
apresenta os conteúdos mínimos com os quais pretende trabalhar na educação, com enfoque para a adaptação do currículo ao meio rural ou urbano. Trazemos o artigo na íntegra para melhor entendimento:
Art. 149. Observada a legislação federal, serão fixados conteúdos mínimos para
o ensino fundamental e médio, de maneira a assegurar, além da formação básica:
a promoção dos valores culturais e regionais;
currículos adaptados aos meios, urbano e rural, visando ao desenvolvimento da
capacidade de análise e reflexão crítica sobre a realidade (RORAIMA, 1991,
grifo nosso).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 155
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Além da noção de adaptabilidade do currículo ao meio, adotada
posteriormente pela LDBEN 9394 de 1996, note-se a perspectiva de uma
educação que engloba o fortalecimento da cultura local e a preocupação
com uma formação crítica, elemento que não tinha aparecido ainda nos
demais documentos legais. Também é digno de nota e curioso que seja no
documento de um Estado tão periférico de nosso país que o documento
situe lado a lado os currículos para os meios urbanos e rurais, dando uma
ideia destes termos como uma adjetivação do substantivo educação.
Parece-nos importante esta observação, pois ao analisar a sequência de documentos, vemos que a educação das populações rurais começa
a ser considerada timidamente como um adendo, um complemento, um
segmento que parecia não ter importância anteriormente, e vai, progressivamente, se fazendo cada vez mais presente nos textos legais. Na Constituição de Roraima, urbano e rural são desdobramentos da educação e
aparecem, de certa forma, nivelados no texto.
O que se percebe nos documentos constitucionais dos estados analisados é que todos eles, em maior ou menor grau, começam a tratar a
população do campo como segmento da sociedade que tem suas especificidades e passam a formular políticas públicas que a insiram no contexto
legal, como forma de romper com a história de descaso com estas populações. Considerando os dados oficiais, de acordo com o Ministério da
Educação (BRASIL, 2004, p. 05),
[...] os cerca de 32 milhões de pessoas que residem na área rural encontram-se
em franca desvantagem, tanto em termos de capital físico (recursos financeiros),
quanto de capital sociocultural (escolaridade e freqüência à escola) em comparação aos que residem na área urbana.
Entretanto cabe chamar a atenção para que, a partir dos estudos empreendidos, do levantamento da relatora Edla Soares (BRASIL, 2001a)
e dos demais documentos consultados, muitos estados brasileiros ainda
não teriam se preocupado em normatizar tais especificidades no campo
educativo.
Percebemos que os primeiros passos para um tratamento específico
das realidades do campo se apresentam nas constituições estudadas pela
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
oferta de cursos profissionalizantes (agrotécnicos), pela consciência da
necessidade de melhores condições de infraestrutura das escolas do meio
rural e pela adaptação do calendário escolar, de forma que este possa se
adaptar às atividades agrícolas de cada região. Esta possibilidade, como vimos, está expressa nas constituições dos Estados de Rondônia, Pará, Mato
Grosso do Sul, Maranhão, Amapá e Ceará. Entretanto estes Estados não
vão muito além desta perspectiva de adaptação do calendário escolar e da
oferta de ensino profissionalizante no interior.
A seguir percebemos um grupo de Estados brasileiros, que, além
de prever a adaptabilidade do calendário escolar, consideram também a
adaptabilidade dos currículos com vistas à formação do educando com
consciência crítica, pois incentivam a valorização da cultura e da forma
de organização dos diferentes grupos sociais. Esta intenção fica expressa
quando os Estados abordam a questão do currículo mínimo para o ensino
fundamental e médio, prevendo formação regional, básica, mas também
universal. Nesta linha, destacam-se os Estados de Minas Gerais, Sergipe,
Acre, Roraima e do Pará.
Por último, destacamos as iniciativas louváveis dos Estados do Rio
Grande do Sul e do Tocantins. Este por assegurar a isonomia salarial dos
professores da zona rural com os professores da zona urbana; e aquele por
se propor a auxiliar na implantação da reforma agrária, através do ensino
agrícola – passos extremamente importantes para reparar a dívida histórica do Estado brasileiro com as populações do espaço rural.
Antes de passar aos documentos seguintes, é necessário esclarecer que a parecerista Edla Soares (BRASIL, 2001a) não abordou em seu
relato a Lei 5692, de 1971, e consideramos pertinente mencionar que
esta se constituía de uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Como afirma Leite (1999, p. 46 e 47), a referida lei não trouxe avanços
qualitativos no trato da educação destinada às populações rurais, ao contrário, “acentuou as divergências sociopolíticas existentes na escolaridade
do povo brasileiro e consagrou o elitismo que sempre esteve presente no
processo escolar nacional”.
Os avanços sociais com relação ao direito a uma educação de qualidade no campo não surgiram da boa vontade dos governantes, tendo
sido um processo de questionamento da sociedade civil organizada.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Destaca-se a participação ativa de muitos movimentos sociais4, que se
sentaram à mesa com os governantes, apontando as necessidades do
povo do campo e exigindo tomadas de decisões que os levassem em
conta, ao contrário do que aconteceu no passado, quando passavam despercebidos pelos governantes e por si próprios, devido à falta de conscientização de seus direitos básicos. Os movimentos sociais atuaram e
continuam atuando em ambos os lados, ou seja, reivindicando junto ao
Estado e fazendo um trabalho político de conscientização das comunidades do campo sobre a situação em que se encontram, fazendo-os
vislumbrar as possibilidades futuras, visando aumento de qualidade de
vida em todos os aspectos. A luta é fazer com que os povos do campo
passem a ser protagonistas de sua própria história.
Passamos agora à análise de alguns aspectos da Lei de Diretrizes e
Bases para a Educação Nacional, n° 9394, datada do ano de 1996. Em seus
artigos 23 e 28, a lei assim se pronuncia:
Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de estudos, grupos não-seriados, com base
na idade, na competência e em outros critérios, ou de forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar
(BRASIL, 1996).
Art. 28. Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades
da vida rural e de cada região, especialmente:
I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e
interesses dos alunos da zona rural;
II – organização escolar própria, incluindo a adequação do calendário escolar às
fases do ciclo agrícola e condições climáticas;
III – adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 1996a, grifo
nosso).
Os artigos acima citados conferem aos estados brasileiros uma ampla liberdade de organização curricular, de flexibilidade de seus calendá4 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, PRONERA, Sindicatos, Associações de Moradores,
CNBB, e outros.
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rios escolares e de organização sem precedentes, numa clara concepção de
mundo rural que considera as diversas realidades regionais e a especificidade para uma educação de qualidade.
A análise destes aspectos apresentados pela Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996a) e a leitura do Plano Nacional de Educação, aprovado
por meio da lei n° 10.172, em 2001 (BRASIL, 2001b), possibilitou-nos
confrontar dois posicionamentos contraditórios de ambas as leis no que
se refere às classes multisseriadas ou unidocentes. De acordo com o Ministério da Educação (BRASIL, 2004, p. 14), “o Censo Escolar 2002 mostrou que 64% daquelas que oferecem o ensino fundamental de 1ª a 4ª série
são formadas, exclusivamente, por turmas multisseriadas ou unidocentes”,
um número relativamente alto de escolas nesta modalidade e que demandam, portanto, muita atenção quando se pensa na formulação de políticas
públicas para uma parcela representativa da população (do campo).
Vejamos como o Plano Nacional de Educação trata o assunto. Em
sua meta número 16, observamos a seguinte afirmação: “Associar as classes isoladas unidocentes remanescentes a escolas de, pelo menos, quatro
séries completas” (BRASIL, 2001b). Há nesta citação a ideia implícita de
que são poucas as escolas que ainda trabalham com turmas multisseriadas, o que não se verifica quando consultados os dados do Censo Escolar,
como afirmamos anteriormente. Há também a ideia de que a forma de trabalho da escola multisseriada não seria a mais adequada, fazendo-se alusão ao modelo de ensino seriado, urbano como referência de qualidade5.
De acordo com o Ministério da Educação (BRASIL, 2004, p. 17),
esta não é a solução para os problemas da escola do campo, pois “observese que o legislador não levou em consideração o fato de que a unidocência em si não é um problema, mas sim a inadequação da infra-estrutura
física e a necessidade de formação docente especializada exigida por essa
estratégia de ensino”. E nos arriscamos a acrescentar: salários que venham
valorizar e estimular o professor a trabalhar em escolas do campo.
A SECAD6 anuncia em seu Portal que o ano de 2005 teria sido “o
ano de revisão do Plano Nacional de Educação no congresso Nacional”.
5 Dissertação de Silva (2007) revelou que o modelo de escola multisseriada favorece a aprendizagem significativa, ao promover a interação entre diferentes sujeitos em momentos de aprendizado diverso.
6 www.portal.mec.gov.br/secad - Portal Secad, acesso em 24 de agosto de 2006.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
E continua “Esse instrumento público é omisso e falho no concernente
à Educação do Campo, estando o processo de revisão a merecer atenção
especial [...]”
Em 1996, a Lei n° 9424, que regulamenta o Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – Fundef, no artigo 2°, previu cálculos diferenciados para o repasse
aos estados e municípios, de montantes que considerassem as especificidades das escolas rurais, constituindo-se em passo muito importante para
a percepção de sua realidade. Podemos constatar com a leitura do seguinte
artigo:
Art. 2° - A distribuição a que se refere o parágrafo anterior, a partir de 1998, deverá considerar, ainda, a diferenciação de custo por aluno segundo os níveis de
ensino e tipos de estabelecimentos, adotando-se a metodologia do cálculo e as
correspondentes ponderações, de acordo com os seguintes componentes:
I – 1ª a 4ª série;
II – 5ª a 8ª série;
III – estabelecimento de ensino especial;
IV – escolas rurais (BRASIL, 1996b, grifo nosso).
Em 2002, a Resolução CNE/CEB n° 01 institui as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, que vêm ao encontro das aspirações da sociedade que clamava por políticas públicas
adequadas à realidade dos povos do campo. Além do artigo já citado no
início deste capítulo (artigo 13), o inciso II do artigo 15 e seu parágrafo
único contemplam, finalmente, a questão do acesso ao desenvolvimento
científico e tecnológico. Citamos ambos a seguir:
Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação
às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes
próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa
de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.
[...]
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Art. 15 No cumprimento do disposto no § 2º, do art. 2º, da Lei 9424/96, que determina a diferenciação do custo-aluno com vistas ao financiamento da educação
escolar nas escolas do campo, o Poder Público levará em consideração:
[...]
II - as especificidades do campo, observadas no atendimento das exigências de
materiais didáticos, equipamentos, laboratórios e condições de deslocamento
dos alunos e professores apenas quando o atendimento escolar não puder ser
assegurado diretamente nas comunidades rurais (BRASIL, 2001a, grifo nosso).
O Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPT
de Educação do Campo) foi criado no âmbito do Ministério da Educação em 2003. Ao longo deste período tem abordado as reais condições
de subsistência da escola do campo e aponta para as seguintes linhas de
ação, com o objetivo de ampliar o direito à educação de todos os povos do
campo (BRASIL, 2003, p. 36-38, grifo nosso):
a. Aumentar o acesso. Exigir o cumprimento do art. 6º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, no que se refere
ao dever que tem o Poder Público de proporcionar Educação Infantil e Ensino
Fundamental nas comunidades rurais. Assegurar a oferta das séries finais do
Ensino Fundamental bem como do Ensino Médio em escolas do campo a todos
os alunos que as demandarem nos locais próximos às suas residências. Oferecer
transporte escolar para alunos do campo para escolas situadas apenas neste mesmo meio, admitindo-se o transporte para escolas urbanas apenas em situações
excepcionais; Oferecer transporte escolar em qualidade adequado e organizado
de tal forma que nenhuma criança ou jovem despenda mais do que uma hora
no trajeto residência-escola e vice-versa; Apoiar, estimular e incentivar as Escolas Agrotécnicas a cumprirem o estabelecido no item 12, tópico de Objetivos e
Metas da Educação Tecnológica e Profissional do Plano Nacional de Educação,
no que se refere à reorganização da rede de escolas agrotécnicas para garantir educação profissional especificidade permanente para a população do campo, considerando as peculiaridades e potencialidades da atividade agrícola da região. E
b. Promover a formação e fomentar a remuneração/incentivos diferenciados às
educadoras e educadores do campo. Implementar programas de formação para
todas as educadoras e educadores do campo, de nível médio e superior, através
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 161
Ana Maria Netto Machado (Org.)
de convênios e parcerias entre Secretarias, Universidades, Movimentos Sociais e
Organizações do Campo. Promover cursos de formação em serviço para educadoras e educadores não habilitados (1a a 4a séries e licenciaturas - 5a. a 8a. e ensino
médio). Considerar os interesses e necessidades do campo, podendo utilizar a
pedagogia da alternância como metodologia para o desenvolvimento das práticas e da pesquisa em Educação do Campo. Promover cursos de formação continuada para educadoras e educadores do nível fundamental, médio e superior;
Estimular a criação de cursos de pós-graduação de Educação do Campo; Adicional salarial para os professores que atuem em escolas do campo; Fomentar
política de oferta de moradia para os professores que desejarem residir no campo; Realizar concursos públicos específicos destinados à seleção de educadoras
e educadores para a educação do campo; Incluir no orçamento, recursos suficientes para as Secretarias de Educação dos estados, Prefeituras, Universidade
que estão com ações concretas em Educação do Campo; Incluir nos currículos
e programação dos cursos de formação dos profissionais da educação, temas tais
como pluralidade cultural, meio ambiente, saúde e temas locais, de acordo com
o item 21 do Tópico Objetivos e Metas da Educação Superior, do Plano Nacional
de Educação; c. Melhorar a Qualidade. Imediata implementação das Diretrizes
Operacionais Curriculares para a Educação Básica nas Escolas do Campo; Definir políticas específicas para as escolas multisseriadas com material didático,
formação das educadoras e educadores e equipamentos adequados ao perfil
destas escolas; Garantir, pelo menos, um auxiliar de classe por turma nas escolas multisseriadas, bem como uma relação alunos/turma diferenciada para que
não haja comprometimento da aprendizagem dos alunos; Promover estudos e
pesquisas sobre as diversas iniciativas de educação do campo, com especial foco
na avaliação das suas diferentes formas de organização, funcionamento, processos de implementação e resultados; Apoiar, desenvolver e disseminar iniciativas
de educação do campo com propostas pedagógico-organizacionais adequadas às
necessidades e interesses do campo; Desenvolver e disseminar estratégias educativas para o campo; Melhorar as condições infra-estruturais das escolas, definindo e promovendo o alcance de padrões mínimos de funcionamento, incluindo:
estrutura física adequada, biblioteca e recursos pedagógicos; Desenvolver uma
política integrada com os ministérios e Secretarias de Estado da Saúde, da Educação, da Cultura, do Meio ambiente, dentre outras para viabilizar a resolução dos
problemas da Educação e da sustentabilidade dos povos do campo; Desenvolver
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pesquisa integrada envolvendo universidades, fundações, movimentos sociais,
governo e ONGs, para acompanhar, avaliar e divulgar os trabalhos em desenvolvimento; Estimular a socialização das pesquisas realizadas pela EMBRAPA,
IBAMA, EMATER, Universidades e por outras instituições, que possam subsidiar o estudo da educação tomando por base o desenvolvimento sustentável dos
grupos.
A Secretaria da Educação do Campo, criada em 2004, no âmbito
da SECAD, representa a materialização de algumas das ações previstas no
GPT de Educação do Campo, pois tem sido responsável, no âmbito do
Ministério da Educação, pelas ações para transpor o conceito de educação
rural ainda presente em todos os recantos do país, visando, cada vez mais,
conceber e realizar uma educação para população do campo, sob o paradigma da educação do campo e não mais sob o paradigma da educação
rural (FERNANDES; MOLINA, 2004).
Passamos a discorrer sobre o recente Plano de Desenvolvimento da
Educação, conhecido como PAC da Educação. Em abril de 2007, o Governo Federal lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação, com ênfase
na melhoria da qualidade da educação básica. Procuraremos agora buscar
neste plano o que ele estabelece para a interface em questão: educação do
campo e tecnologias de informação e comunicação (mais especificamente, computador e internet).
De acordo com o Ministério da Educação (BRASIL, 2007b, p. 12),
de 2002 a 2006, muitos “programas de inclusão digital foram incrementados”. As principais medidas do Plano de Desenvolvimento da Educação
para ampliar o acesso ao mundo digital são pontuadas pelo Ministério da
Educação (BRASIL, 2007b, p. 13) em nota que aborda os planos de ação
que visam realizar essa interface:
[...] vale registrar o esforço do governo federal, no âmbito do PDE, para dinamizar o processo de ensino-aprendizagem, considerando todas as dimensões de
acesso ao mundo digital: energia elétrica (Programa Luz para Todos na Escola),
equipamento e formação (programa Nacional de Informática na Educação –
Proinfo), conectividade (Programa Governo Eletrônico: Serviço de Atendimento ao cidadão – GSAC e TV Escola) e produção de conteúdos digitais.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 163
Ana Maria Netto Machado (Org.)
De acordo com o mesmo documento (BRASIL, 2007b, p. 37), no
item 2.4 – Alfabetização, Educação Continuada e diversidade – o Ministério anuncia: “as diretrizes do PDE contemplam ainda o fortalecimento da
inclusão educacional [...] há uma dívida a ser resgatada. O PDE procura
responder a esse anseio com várias ações”, dentre as quais citamos as que
podem estar vinculadas à educação do campo ou ao ensino com mediação
tecnológica (BRASIL, 2007b, p. 43): o “[...] Programa Incluir: Acessibilidade no Ensino Superior [...], Programa Nacional de Informática na Educação do Campo (Proinfo – Campo), Pró-jovem Campo – Saberes da Terra e Programa Dinheiro Direto nas Escolas do Campo (PDDE Campo)”.
Consideramos de extrema importância para a valorização do professor em geral, e especificamente do professor do campo, as ações deste
plano para promover a formação de professores e garantir-lhes o piso salarial nacional. No que a este se refere, seria desnecessário discorrer neste
momento, pois este assunto já foi tratado anteriormente. No quesito formação, está sendo prevista a formação dos professores do campo, utilizando-se a metodologia do ensino à distância, como podemos perceber
através da citação a seguir, retirada do Portal do MEC:
O principal objetivo da Universidade Aberta do Brasil é oferecer formação inicial
de professores em efetivo exercício da educação básica pública que ainda não
têm graduação, o que significa atender a demanda de milhares de professores,
formar novos docentes e propiciar formação continuada a quase dois milhões de
professores (BRASIL, 2007a).
Ressaltamos aqui a necessidade de que todos os professores tenham
acesso continuado às Tecnologias de Informação e Comunicação, com as
quais precisam se familiarizar, pois o manejo dos instrumentos tecnológicos – dentro das modalidades dos programas propostos pelo governo para
a formação dos professores ainda não titulados (boa parte do contingente
das regiões menos urbanizadas) – é absolutamente necessário para que o
professor-estudante possa usufruir da formação.
Vemos que há uma espécie de hiato nas propostas da legislação. Não
houve praticamente tempo para a inclusão digital. Os diversos “programas
de inclusão digital foram incrementados” entre 2002 e 2006 (citados aci164
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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ma) pelo MEC (BRASIL, 2007a). De fato as Linhas de Ação traçadas em
2003 pelo GPT de Educação do Campo (BRASIL, 2003) são detalhadas
e exigentes. Entretanto temos um espaço a preencher entre as propostas do
PAC da Educação, que se preocupa com a infraestrutura (eletrificação) uma
das condições para implantação das tecnologias (funcionamento dos equipamentos básicos, os computadores), da Universidade Aberta do Brasil que
pretende capacitar docentes por meio da educação a distância e as propostas
do GPT. A aproximação dos professores do campo às tecnologias, para processar a inclusão digital é lenta, difícil e requer mediações e metodologias
que não estão disponíveis facilmente.
O trabalho de campo realizado pela autora (pesquisa de Mestrado)
– que teve como sujeitos professores do campo em formação universitária
semipresencial (estudantes de Pedagogia), oriundos de dois municípios
do interior do Estado de Santa Catarina – constatou que, após dois semestres de aulas de Informática, aqueles que não tinham familiaridade anterior
com equipamentos e programas continuaram receosos de aproximar-se
deles e utilizá-los. Diante de tal realidade, como fazer esta formação chegar a todos os cantos do país e atingir o objetivo explicitado no referido
Plano? Mediações se fazem necessárias e cabe perguntar-se se elas podem
dispensar um acompanhamento presencial dedicado e respeitoso dos elementos culturais e regionais destes sujeitos. O contato com os sujeitos da
pesquisa mostrou ser muito importante manter tal respeito e esperamos
que este texto tenha deixado clara a necessidade de se considerar o campo
como um universo peculiar, diferente, mas não menos importante do que
o universo urbano.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
CATALUNHA: EDUCAÇÃO QUE PROMOVE A
DIGNIDADE DO POVO CAMPESINO. VAMOS
CONSTRUIR A NOSSA?
Ilsen Chaves da Silva
Se formos cidadãos do mundo, partilhemos os acertos!
V
alorizar e preservar o local sem perder de vista o global. Eis o que
entendemos imprescindível para o desenvolvimento regional
acompanhando os avanços e as experiências bem sucedidas realizadas no país e fora dele.
No momento em que vivemos se desfaz a idealização da felicidade
urbana. Porém ainda se tem pouca clareza sobre a vocação do campo, que
deixou há algumas décadas a sua ocupação exclusivamente agrária-rural,
para ser substituída, nos países e regiões considerados desenvolvidos, sobretudo pela agroindústria, que hoje também se constitui em motivo de
grande preocupação por suas consequências em termos de degradação
ambiental.
A região serrana de Santa Catarina, após ter sobrevivido da pecuária
em grandes fazendas até meados do século XX, assistiu a transformações
em suas atividades econômicas, passando,
[...] grosso modo, desde o início da extração da madeira (1945) para a indústria
da construção civil nacional em pleno ‘desenvolvimentismo’ e acrescentamos
com seu auge na década de 1970, com o corte desordenado de nossas matas nativas de araucárias [...] até pelo menos o advento da atual onda de globalização,
seu papel primordial no contexto econômico estadual e nacional tem sido vinculado ao setor primário – exploração de recursos naturais e produção agropecuária
(MUNARIM, 2000, p. 85).
Há algum tempo, volta-se para novos empreendimentos como as
plantações de pinus, que vêm transfigurando inclusive a paisagem tradicional.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 169
Ana Maria Netto Machado (Org.)
É novamente a monocultura se expandindo, sem garantir desenvolvimento sustentável para a população e desencadeando, além de degradação ambiental (empobrecimento do solo e contaminação das águas),
novo movimento de êxodo rural. Isso acontece porque os pequenos municípios, bem como as pequenas propriedades rurais, neste modelo de
produção econômica não oferecem condições de subsistência à população que neles reside. Diante disso os jovens cidadãos migram para estudar
e para trabalhar nas cidades, permanecendo no campo os velhos desesperançados, solitários, sem sonhos.
Para pensar o local sem perder de vista o global, um caminho pode
ser analisar experiências bem sucedidas desenvolvidas em outras localidades. Este o motivo de olhar para a história e experiência catalã, pois pode
contribuir, pela via da educação dos povos, para o desenvolvimento econômico-social regional. Faz-se necessário pensar uma educação que faça
sentido não somente para que as populações do campo sobrevivam, mas
para que suas formas de vida não desapareçam. Uma educação que seja
também política, em que os educadores (a partir de uma formação voltada
para o campo) possam intervir no poder local, para pensar coletivamente
e encontrar soluções de organização e trabalho para que as pessoas que ali
vivem tenham acesso à alimentação, à moradia, à educação e à saúde, sem
precisar abandonar a terra onde nasceram, preservando suas identidades
individual e coletiva. Este é o modelo que encontramos na experiência
catalã, que parece ter descoberto a vocação do campo para seu povo.
A Espanha, bem como a França e outros países europeus, viveu,
desde a década de 1960, o que está se vivenciando no Brasil a partir da
década de 1990: o abandono e a previsão de que se findava a vida no espaço campesino. Com isto houve a descentralização e consequentemente
a desativação das pequenas escolas, num processo de concentração das
mesmas em espaços urbanos. Com uma defasagem de mais ou menos
trinta anos, ocorreram no Brasil processos semelhantes aos ocorridos na
Europa, fato que se explica por meio da própria história. O processo civilizatório (no contexto da dominação europeia) do Brasil só se iniciou no
século XVI. Como país subdesenvolvido, do terceiro mundo, do sul, considerado periférico, temos vivido tentando acompanhar as mudanças do
primeiro mundo, na maioria das vezes sem a maturidade necessária e sem
170
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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privilegiar as condições locais. Por isso nos anos 1990 passou-se a cultivar
a ideia do urbano como progresso e do rural como atraso, acarretando
como consequência o abandono do campo. Porém, na Catalunha, a partir
da organização e reação dos professores e das comunidades rurais, com o
apoio da Universidade de Barcelona, o próprio Estado retomou o processo, modificando seu olhar, como veremos logo adiante neste trabalho.
Restam no Brasil problemas a resolver, porém o processo de voltar
às raízes, de buscar soluções próprias, bem como a visão de que a vida no
campo pode ser de qualidade, desfazendo-se a polaridade cidade/campo,
sobretudo em tempos em que as tecnologias da comunicação e informação podem chegar aos territórios, permite que as pessoas não precisem
aglomerar-se nos grandes centros urbanos. Assim, viver no campo não
significaria mais isolamento, ideia que vem se construindo.
Estas são as razões pelas quais convido o leitor para juntos fazermos
um passeio pela distante Catalunha. Em uma conferência pronunciada em
1986, na Universidade de Sorbonne (Paris), sob o título La vocación europea de Cataluña, o presidente da Generalitat1, Jordi Pujol, disse palavras
que tomaremos emprestadas, pois servem de corolário para o que aqui
avançamos. Traduzimos as palavras do presidente da Generalitat, para refletir com o leitor o pensamento do chefe da nação neste momento a respeito da Catalunha e seu sentimento nacional:
Talvez os catalães possamos oferecer uma válida mensagem para o resto da Europa e para outros povos: Na Espanha sempre temos lutado contra o ressentimento; contra a incompreensão; na Europa, na Catalunha, contra o perigo da perda
da identidade. E não é seguro, por exemplo, que nossa sociedade europeia de final
do século não necessite de exemplos coroados pelo êxito, de construção pacífica
de uma identidade coletiva. Nós, ao menos não temos a sensação de fazê-la exclusivamente por nós (PUJOL apud PUJALS, 1995, p. 95).
Devo informar que meu interesse por este antigo território e novíssima nação2 que é a Catalunha3 despertou a partir do Seminário Cata1 Generalitat é a forma de governo da Catalunha, que lhe garante a autonomia como nação.
2 O Estatuto qua outorga autonomia à Catalunha é de 1979, mas a região continua mantendo laços administrativos com a Espanha.
3 Em Pujals, J.M. Miserachs, X. E ManentT, R (1995, p. 11) assim encontramos: “Pese que a Cataluña es
hoy un país relativamente pequeño – 32.000 kilómetros cuadrados, seis millones de habitantes -, constiuye la
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
rinense de Educação do Campo realizado em Santa Catarina4 em 2006 e
também de contatos realizados durante a ANPEd de 2006, que trouxeram
informações a respeito do Movimento Educacional que lá se desenrola.
A partir destes contatos procurei conhecer sua história. O Principado da
Catalunha passou a fazer parte da Espanha após sua unificação, efetuada
pelos reis Fernando II e Isabel de Castela, em 1468. Desde então, constituiu-se como comunidade autônoma da Espanha, conseguindo o status
de nação por meio de referendo popular em 2006. Palco de muitas lutas,
congrega povos de diferentes origens e línguas: são falados o catalão e o
espanhol, ambos considerados línguas oficiais, e também o aranês, entre
outras (CATALONIA, 2011).
Constitui hoje esta nação um modelo para muitas outras, no que
concerne à luta pela autonomia e o desenvolvimento social e econômico
de seus povos, pois agrega diferenças étnicas, linguísticas e culturais, tentando construir-se como terra acolhedora, e espaço democrático e justo. É
a terra de Antoni Gaudi, Salvador Dali, Juan Miró e Pablo Picasso, artistas
plásticos que entraram para o rol de patrimônio cultural universal, assim
como representa diversas culturas, por ter sido habitada e conquistada
por diferentes povos, nos apresenta uma longa e conflituosa caminhada
na sua construção. Na Catalunha também está a Universidade de Barcelona, estreitamente ligada à história da cidade de mesmo nome (capital da
Catalunha). Recentemente celebrou seu aniversário de 555 anos, sendo
a principal Universidade Pública da Espanha e uma das principais da Europa, tanto pelo número de programas que abriga quanto pela excelência
adquirida no campo acadêmico-científico.
Conhecer um pouco da história deste povo ajuda-nos a perceber
que, mesmo para nações e países muito mais antigos que o nosso, que
construíram muito antes sua identidade, são necessárias lutas e constância
para se construir uma sociedade agregadora. O caso da Catalunha se nos
apresenta como alentador, considerando que vivemos e pertencemos a um
primeira régión turística y la décima región industrial de Europa. Un país de España situado entre los Pirineos y
el Meditérraneo, en medio de grandes culturas (la francesa e la castellana), que es el resultado de una voluntad
de ser histórica, tan enérgica como su voluntad de convivencia com los demás, sin perder por ello su identidad
(...) una identidad que desborda los limites territoriales de la actual Cataluña política (...) y que se alimentado de muchas aportaciones procedentes de los países con los que comparte le lengua y la historia (Valencia,
Mallorca e Rosellón)”.
4 Um dos três estados da região sul do Brasil.
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país cuja colonização se iniciou já na modernidade, e que estava no rol de
países que significaram zonas de garimpo para os navegadores europeus.
Sendo assim, nossos cinco séculos, dos quais três foram como colônia,
constituem um tempo relativamente curto para a construção de uma sociedade igualitária e uma educação que contemple as diferenças e agregue
a todos(as) como cidadãos e cidadãs. Enfrentamos uma tarefa árdua que
exige a participação de todos os atores sociais, movimentos e muita luta.
Se isto se nos apresenta como um aspecto preocupante, aponta
também para possibilidades de um futuro promissor para o nosso país, no
sentido da construção de uma sociedade justa, humana e igualitária, requerendo para tanto movimentos, lutas, resistências. A implementação de
recentes políticas públicas no Brasil em prol da cidadania para todos, tais
como as Diretrizes Operacionais para A Educação do Campo, a resolução,
de 30/04/2002, do Conselho Nacional de Educação/CEB (Câmara de
Educação Básica), as duas conferências resultantes da ampla mobilização
dos trabalhadores do campo nos últimos vinte anos, a I Conferência Nacional Por uma educação Básica do Campo, realizada em Luziânia (Goiás, de
27 a 31 de julho de 1998), considerada uma espécie de batismo coletivo da
luta dos movimentos sociais e das educadoras e dos educadores do campo
pelo direito à Educação e a II Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo (Luziânia, em agosto de 2004), quando “(...) o novo momento político do país complexificou os desafios e ampliou os parceiros da luta e
do debate da Educação do Campo” (BRASIL, 2004, p.16).
Percebemos assim que, em continentes diferentes e em tempos
também diferentes, temos como aproximação o desejo de mudança, de
construção pacífica e coletiva da identidade dos povos.
O Estatut d’Autonomia de Catalunya (2006), em seu preâmbulo,
apresenta o texto que transcrevemos para tentar compreender o espírito
que o anima, o que permite compreender porque a Catalunha se constitui
em um caso de referência para pensar uma organização social diferenciada,
mais humana e igualitária. Como pudemos compreender, o texto refere-se
à construção desta nação através dos séculos, promovendo a convergência entre gerações, tradições e culturas o que, segundo postula, a constitui
como terra de acolhida ou acolhimento. Considera a vocação constante
de seu povo para o autogoverno, relatando-nos de que maneira...
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[...] através dos séculos formou-se e reconstituiu-se esse pensamento de autonomia, o que se observa pelo percurso de construção e sucessivas reformulações da
Generalitat – criada em 1359, nas Cortes de Cervera, o sistema institucional em
que se organiza politicamente o autogoverno da Catalunha, que é uma espécie de
ordenamento jurídico específico que garante a organização das normas e as Constituições e direitos da Catalunha (Estatut d’Autonomia de Catalunya, 2006).
O texto remete aos diversos momentos de reestruturação dessa
Carta (1714/ 1932/ 1977/ 1978/ 2006).
Vale ressaltar a permanente luta deste povo para não ser subjugado
pela cultura hegemônica madrilense (de Madri, capital da Espanha), lutando para preservar sua cultura, linguagem e autonomia de nação a partir
das leituras da história dessa região da Espanha. Houve nesse contexto
uma busca constante por uma ideologia que contemplasse os povos que
lá vivem com os direitos humanos em sua plenitude. A liberdade coletiva
conta com as instituições da Generalitat e carrega uma história de afirmação e respeito dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, individuais e dos povos.
É uma história de mulheres e homens da Catalunha que vêm perseguindo um objetivo, de fazer possível a construção de uma sociedade democrática e avançada de bem-estar e progresso, solidária com o conjunto
da Espanha e inserida na Europa. O povo catalão continua proclamando e
contando com os valores superiores da vida coletiva – a liberdade, a justiça
e a igualdade – e manifesta a própria vontade de avançar por uma via de
progresso que assegure uma qualidade de vida digna para todos os que
vivem e trabalham na Catalunha. Os poderes públicos estão a serviço dos
interesses gerais e dos direitos da cidadania, com respeito pelo princípio
da solidariedade.
Provavelmente estas informações já fizeram com que nosso leitor
perceba o interesse de conhecermos o processo percorrido pela nação da
Catalunha, porque ela está sendo examinada como um contraponto para
pensar nossa experiência no Brasil. Considerando ainda que, no interior
de suas lutas, o que mais chama a atenção é o Processo de Renovação Pedagógica lá desenvolvido nas últimas três décadas, o qual já revela resultados, inclusive para o equilíbrio demográfico e social das regiões cam174
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pesinas, que anteriormente careciam de qualidade e atenção e não eram
contempladas com Educação adequada.
El Secretariat D’Escola Rural de Catalunya, por meio de construção
coletiva de mestres e populações envolvidas são responsáveis pelas mudanças. A Catalunha representa mais um movimento de mobilização coletiva que vem comprovar a relevância da participação para que se garantam
políticas públicas capazes de assegurar o desenvolvimento social e econômico, incluindo aqueles e aquelas que têm estado à margem de grande
parte dos bens conquistados pela humanidade.
Tentando ler o mundo, solicitação e necessidade apontadas por
Paulo Freire, buscamos para este diálogo ideário de Boaventura de Souza
Santos (2002), em conferência proferida durante o painel: “Quais os limites e possibilidades da cidadania planetária?”.
Pensando uma cidadania que acolha a todos(as), pode-se perceber,
a partir dos temas trabalhados por Santos, que a busca do povo catalão
coincide com a busca de muitos outros povos, é a utopia possível de sociedade daqueles e daquelas que não estão incluídos “porque esta é uma
sociedade de modelo liberal que inclui o próprio mercado e os direitos
dos cidadãos autônomos, vinculados a interesses particulares” (SANTOS,
2002, p. 1). Porém, segundo Santos, e a partir das nossas constatações,
vivências e leituras, vemos que muitos são os que são excluídos. Vivemos
em uma sociedade global “[...] onde o direito é falso universalismo. Isso
porque nem todos têm direitos, muitos não são cidadãos, ficaram fora do
contrato social, lançados no estado da natureza” (SANTOS, 2002, p. 1).
Nosso foco também o é para Santos, quando afirma: “É também uma sociedade onde sobretudo nas cidades coloniais, a sociedade civil não foi
constituída. Para os indígenas, os nativos eram constituídos pelos colonos,
ou seja, a sociedade civil é sempre o outro” (SANTOS, 2002, p. 1). E poderíamos dar sequência a seu pensamento afirmando que, para as camadas
mais empobrecidas, a sociedade civil são os ricos; para as comunidades
campesinas, a população urbana; para os analfabetos, os que dominam os
segredos da escrita.
Portanto olhar para a Catalunha remete de volta ao nosso local, para
que encontremos motivação, no sentido de assumirmos protagonismo e
nos organizarmos em nossa região, estado e nação, para a construção de
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um espaço melhor para se viver, que acolha estes cidadãos planetários, dos
quais fala Santos, em uma sociedade realmente inclusiva.
Se olharmos em volta, para o mundo globalizado e insensível do valor e do mercado, constataremos que buscamos outra forma de organização
social. A experiência da Catalunha ajuda a acender uma chama de esperança
que cresce e toma vulto; aqui e lá acendem-se outra e outra, e começam a
aquecer e iluminar esse mundo hostil para a maioria dos povos do mundo.
Como exemplo de uma das ações promissoras, poderíamos citar o
evento realizado pela UNESCO, Educação para todos na América Latina
e no Caribe, nas versões ocorridas na Tailândia (1990), em Cuba (2002)
e em Buenos Aires (2007), para pensar a Educação como alternativa imprescindível e constitutiva para a inclusão, conquista da cidadania e autonomia individual e coletiva.
Os itens 18 e 195 do documento Educación de Calidad para Todos:
un asunto de derechos humanos – Documentos de discusión sobre políticas educativas revestem-se de interesse para a temática aqui tratada:
18 A pertinência da educação alude à necessidade de que esta seja significativa
para as pessoas de distintos estratos sociais e culturas e com diferentes capacidades e interesses, de forma que possam apropriar-se de conteúdos da cultura
mundial e local, e construir-se como sujeitos, desenvolvendo sua autonomia e
autogoverno e sua própria identidade. Para que haja pertinência, a educação tem
que ser flexível e adaptar-se às necessidades e características dos estudantes e aos
diversos contextos sociais e culturais. Isto exige transitar desde uma pedagogia da
homogeneidade até uma pedagogia da diversidade, aproveitando esta como uma
oportunidade para enriquecer os processos de ensino/aprendizagem e otimizar
o desenvolvimento pessoal e social.
19. O desenvolvimento de um currículo relevante e significativo para toda a população enfrenta uma série de dilemas que deveriam melhor considerar-se como
equilíbrios a alcançar entre o mundial e o local, entre o universal e o singular,
como dizer, converter-se em cidadão do mundo e participar ativamente na comunidade de origem; entre as necessidades do mercado de trabalho e as de desenvolvimento pessoal; entre o comum e o diverso; entre o disciplinar e a integração
dos conteúdos (UNESCO, 2007).
5
Tradução livre da autora.
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Vale a pena examinar a série de documentos advindos desses encontros com os representantes dos países latino-americanos que se encontram no site da UNESCO. O que constatamos é que, pela solidariedade
ou pela própria necessidade de conter a explosão social, as preocupações
das minorias, dos militantes dos movimentos sociais, das ONGs e também dos órgãos governamentais dos diversos países convergem neste momento histórico. Penso, portanto, que podemos nos inspirar no caminho
percorrido pela Catalunha, respeitando nosso contexto e participando na
construção de projetos, de políticas de Educação que possam vir a garantir
a sua universalidade, sem a perda dos valores locais, de modo a preservar a
cultura e as peculiaridades dos povos de nossa região e país.
Tecendo algumas reflexões a propósito do documento oficial - ‘El
secretariat d’escola rural de Catalunya’
Antes de falar do Secretariado faz-se necessário contextualizar
a Catalunha, sobretudo na segunda metade do século passado. A partir
desta reflexão pode-se compreender o empenho levado a termo por tantos mestres anônimos que a própria ausência de infraestrutura exigiu. O
Secretariado mudou uma realidade educativa que, na maioria dos casos,
estava arraigada à supressão das escolas a serviço dos povos que habitavam
lugares de acesso difícil.
Durante a década de 1960 formulou-se uma proposta para todo o
Estado que consistia em uma política de concentração de alunos em escolas maiores, porque se entendia ser mais conveniente transportá-los do
meio rural aos grandes centros da capital da comarca ou para as cidades.
Aquele modelo de escola foi defendido diante de pais, mães e filhos, com
o argumento de que as escolas maiores têm mais recursos e possibilidades
de formação de qualidade: “A concentração possibilita haver cantina, professores especialistas de ginástica, de música [...]”.
Às famílias que queriam manter as pequenas escolas próximas a sua
residência não urbana eram dados vales de transporte escolar, de cantina, alojamento para que aceitassem, de mais ou menos bom grado, transladar as crianças às concentrações escolares e deixar que as escolas dos
povoados, com escassos ou nenhum recurso, fechassem as portas naqueTOC TOC TOC! Eu quero entrar 177
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le momento. Aos mestres aos quais se suprimia o espaço da escola rural
ofereciam-se em troca alternativas como a possibilidade de transferência
para uma escola de maior porte, o reconhecimento equivalente aos mestres urbanos. Há que se dizer que como exceção foi permitida a sobrevivência de algumas escolas do povo catalão, com a resolução de conceder
um complemento econômico aos mestres que trabalhassem em escolas
consideradas de difícil desempenho. Outra alternativa foi conceder ajustes àqueles que organizassem e servissem as refeições nas escolas que assistiam alunos procedentes de localidades dispersas.
A Lei Geral de Educação de 1970 (LGE) acelerou o processo de
concentração das escolas (processo semelhante ao conhecido no Brasil
como nucleação escolar), com ênfase na seriação escolar e na igualdade de
oportunidades. Durante todo aquele período o Ministério da Educação
tinha muito claro que se havia entrado em um processo de concentração
escolar crescente e irreversível. O meio rural estava condenado a desaparecer juntamente com suas escolas. Vale ressaltar que estas tendências não
são específicas do caso da Catalunha, mas se constituem em políticas internacionais que foram implementadas ao redor do mundo.
Estabelecendo um paralelo com a situação no Brasil, na região serrana de Santa Catarina, vivenciamos momento semelhante, que tomou
corpo em 1991, com a Proposta da Descentralização do Ensino, encabeçada pela Secretaria de Educação do Estado (SC). A descentralização impôs
aos municípios a responsabilidade pelo ensino das então 1ª a 4ª séries e,
em contrapartida, os Municípios que aderissem receberiam mais verbas,
o que instigou as prefeituras a aceitarem a proposta. Consequência disto foi que, junto às escolas urbanas, os municípios assumiram também as
escolas rurais (multisseriadas). São pequenas escolas em locais distantes,
com poucos alunos, e tendendo a diminuir devido ao êxodo rural, sendo
as verbas escassas. A solução encontrada naquele momento foi o processo
que se chamou de nucleação: a criação de um núcleo que passou a agregar
várias escolas pequenas, oferecendo, como na Espanha, o transporte escolar, mais estrutura e outras supostas vantagens, especialmente uma escola
com características mais urbanas.
No contexto espanhol, os Movimentos de Renovação Pedagógica
da Catalunha, aparecem como reações de escolas diferentes; e em meio ao
178
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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surgimento de documentos sobre a melhoria da escola pública nos anos
de 1975 e 1976, associando-se a eles iniciativas de alguns mestres isolados
que crêem que outra escola (rural e urbana) é possível. A origem do Secretariat é a luta pela melhoria da escola, sendo a renovação pedagógica um
movimento de mestres. O Secretariat experimentará um desenvolvimento
paralelo ao da escola do meio rural.
Uma série de etapas das Jornadas da Escola Rural da Catalunha permitem entrever as metas e as maneiras como se desenvolveu o movimento
ao longo do tempo. A ideia trazida pela LGE – Lei Geral de Educação, promulgada em 1970, é a de universalidade e urbanização, fechando escolas
do meio rural, e transladando os alunos para os centros urbanos com a
promessa de melhorias. Porém, passado o impacto, alguns mestres iniciaram um processo de discussão e reação a esta política. Após nove anos,
organizou-se a Primeira Jornada da Escola Rural da Catalunha (junho de
1979), tendo como propostas: reunir o esforço de equipes de mestres que
se preocupavam com a escola rural e lutavam por sua manutenção, recolher algumas experiências pessoais de mestres que reconheciam os problemas e as experiências realizadas em sua própria formação, e os quais
buscavam instituições que desenvolvessem estudos sobre temas relacionados com a escola rural para que subsidiassem os mestres (Departament
D’Ensenyament i Cultura de La Generalitat, La Inspecció Tècnica d’EGB i El
Departement de Planificació de I’ICE de l’Autònoma).
A origem e o desenvolvimento do conceito de Zona Escolar Rural
se dá no que podemos chamar de segunda etapa desse processo (1980 e
1987). No ano de 1980 é realizada em Tàrrega (Urgell) a II Jornada trazendo
o lema “Suportem as concentrações” e “Comecem a falar de Zona ou Setor
escolar”. Como se percebe, há uma forte reação à ideia governista de acabar
com as pequenas escolas do interior e já desponta uma proposta de escolas rurais organizadas por Zonas. Pode-se considerar este um marco, pois
teve início naquele momento um processo participativo, crítico e criativo
no qual se constatou o protagonismo dos movimentos de mestres de escola
rural com a confluência dos outros setores e instituições. Este processo vai
se definindo ao longo de cinco anos (entre 1983 e 1987), em que acontecem
da 3ª a 6ª jornadas, num crescente processo de discussão e amadurecimento
que culmina no documento Projecte de Zones Escolars per a L’escola Rural.
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A terceira etapa desenvolve-se entre os anos 1988 e 1990, quando
são constituídas as Zonas Escolares Rurais, sendo criadas as primeiras
quinze zonas, sendo que a partir da 7ª Jornada se inicia a aplicação da reforma da escola rural (1990). Já a 5ª etapa coincide com a mudança de
século em Torroella de Montgri, na qual são assumidos alguns compromissos para a escola rural do século XXI: 1) compromisso da inovação, o
melhor argumento será a qualidade; 2) compromisso da participação: a
união faz a força; 3) o compromisso da comunicação: do isolamento para
a rede; 4) o compromisso da formação inicial e permanente: Escola rural
e Universidade; 5) o compromisso da reflexão crítica, a continuidade e a
persistência do Secretariado da Escola Rural da Catalunha.
Como se pode perceber, houve uma longa caminhada de construção coletiva, de retomadas e constantes avaliações, de parcerias entre
a Generalitat, que é o poder público catalão e os professores do campo,
com a assessoria da Universidade de Barcelona, por meio de seus mestres
e programas de formação, objetivando garantir eficiência, eficácia e objetividade, sem suprimir as subjetividades das pessoas e das comunidades
neste trabalho sui generis que é a educação para e com os povos do campo. Trata-se de uma educação que visa considerar a dimensão global, sem
perder de vista a local, com suas especificidades. O local olhado como um
lugar para se viver e crescer com perspectivas de futuro (o que conecta
a proposta catalã com o teor do documento da UNESCO evocado em
páginas anteriores).
Olhar para esta pequena nação, considerar seus estudos e caminhada, afigura-se como relevante para pensar alternativas para a nossa região,
reconhecê-la como espaço único mas que está em relação com outros espaços distantes, a fim de que possamos também construir uma educação
para o nosso campo, no sentido de que as mulheres, homens e crianças
que nele vivem tenham autonomia para buscar alternativas de trabalho
que lhes garantam uma melhor qualidade de vida.
Para dar sentido a esta confrontação entre a experiência catalã e a
brasileira, trazemos a voz da Conselheira Marta Barrera6, do Secretariat
d’Escola Rural: “A Escola Rural é uma escola pública com aspectos especí6 Exposat davant Consellera d’Ensenyament, Hble. Sra. Marta Cid i Pañella al Secretariat d’escola Rural
celebrat a Ulldemolins al 27de març de 2004.
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ficos que a fazem um Modelo de Escola Diferente”, e tentamos estabelecer
um paralelo com as Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo
– CNE/ CEB nº1, 03/04/2002.
Listamos alguns dos aspectos diferenciais trabalhados pela conselheira: Interação entre alunos de diferentes níveis cursos e idades e entre
mestres e alunos. Agrupamentos flexíveis e enriquecimento em dobro, já
que a Escola traz a diferença de níveis, e pela ZER (Zona de Educação
Rural) com o encontro de companheiros que têm em comum o mesmo
espaço geográfico ou um espaço próximo. “Atenção individual – métodos
de trabalho próprios. Atenção à diversidade que permite respeitar os ritmos de trabalho, de maturação e de aprendizagem de cada aluno(a). Princípio da Reforma que é uma propriedade intrínseca a (I’ER7), pois há dois
níveis de atuação fora e dentro do âmbito da I’ER que podem mostrar-se
inovadores e que pelas trocas de experiência, se potenciam, se constata a
melhora na qualidade do ensino” (BARRERA, 2004).
Traçamos um paralelo com alguns aspectos das Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo brasileiras, como por exemplo o parágrafo único do Art.2º:
A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos
estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos
que associem às soluções exigidas por essas questões, “qualidade social” da vida
coletiva do país (BRASIL, 2002).
“Flexibilidade – Uma forma de trabalhar livre, dentro de uma organização geral mais pautada”; flexibilidade de horários, de currículo, de
materiais, de recursos, de agrupamentos, de atividades, de espaços etc.; os
meninos e meninas de diferentes idades, interesses e necessidades convivem e aprendem em um espaço organizado de maneira heterogênea e
flexível, de maneira que permita atender a todos e cada um deles. No Art.
7º das Diretrizes está contido o seguinte texto que converge em sua semântica para o anterior:
7
Escola Rural.
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É de responsabilidade dos respectivos sistemas de ensino, por meio de seus órgãos normativos, regulamentar as estratégias específicas de atendimento escolar
do campo e a flexibilização da organização do calendário escolar, salvaguardando, nos diversos espaços pedagógicos e tempos de aprendizagem, os princípios
da política de igualdade (BRASIL, 2002).
O artigo 13, parágrafo I, do documento brasileiro em análise salienta a necessidade de estudos do professor que trabalha com as escolas do
campo, sobre a diversidade e o protagonismo das crianças e jovens, bem
como dos adultos das regiões campesinas na construção da qualidade de
vida de cada um e na participação coletiva de qualidade das comunidades
do país e do mundo.
Quanto à Metodologia, Barrera evidencia aquela que potencia a autonomia, a responsabilidade e os hábitos de trabalho (planos de trabalho,
projetos, assembleias, conferências, desdobramentos de grupos, trabalho
individual em duplas, em pequenos grupos, em grandes grupos...) referese à globalização dos conteúdos e habilidades básicas trabalhados e desenvolvidos no próprio fazer da I’ER, na própria metodologia intrínseca
e constante. Prova disto são os bons resultados que os alunos das escolas
rurais têm obtido nas provas de capacidades básicas que o Departamento
de Ensino tem levado a termo.
No intuito de dialogar com a conselheira e a experiência catalã a que
ela se refere assinalamos os pontos relevantes da reforma acima citados, ou
seja, a interação dos alunos de diferentes níveis de idade, conhecimento e
interesses, a atenção individual e os métodos de trabalho que respeitem
as diferenças atendendo assim à diversidade, flexibilidade na maneira de
trabalhar. Estes elementos estão fortemente presentes em nossas escolas
multisseriadas (SILVA, 2007) e podem tornar-se aliados de um ensino
significativo, de qualidade, como se alcançou na Catalunha, elementos relevantes tanto na escola multisseriada e do campo, quanto poderiam ser
na urbana, que também busca novos paradigmas que a tornassem menos
fragmentada e mais significativa.
O que precisa se desencadear é a caminhada de construção coletiva
dos inúmeros interessados no desenvolvimento do campo (bem como da
região serrana de Santa Catarina), de todos os sujeitos envolvidos com
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esse processo: autoridades estaduais e municipais, secretários de educação, professores, alunos, pais e mães, líderes comunitários, Universidade,
ONGs, igrejas, para realizar a caminhada da redenção da escola pública no
campo e na cidade, mas cada qual com a sua especificidade, para que cumpram sua função social, contribuam para o desenvolvimento dos povos
desta região e sejam eles os protagonistas: do campo e da cidade, brancos
e negros, homens, mulheres e crianças.
Neste direcionamento, não se pode esquecer que, para haver efetiva
participação, seja dos(as) professores(as), dos pais e mães e da comunidade como um todo, há que se conquistar a “cidadania ativa”8, categoria
conceitual que consideramos indispensável nesta construção. Falamos da
cidadania almejada e que vem sendo aos poucos pensada e construída pela
parcela da população que acredita na possibilidade de outro mundo possível, de uma sociedade e cidadania planetárias, conforme defendeu Santos
no Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2002):
Penso que em todas as tradições da modernidade há as versões dominantes e as
versões dominadas. Há versões suprimidas, conhecimentos suprimidos, marginalizados, que fizeram parte dessa modernidade, mas que nunca puderam ter o direito
de cidadania. E aí está um conceito de sociedade civil que é aquilo que nos acostumamos a chamar de sociedade civil estranha, a dos oprimidos, dos de baixo, daqueles que estão numa situação de praticamente não cidadania, mas que lutam efetivamente para adquirir esta cidadania e entrar no contrato social (SANTOS, 2002).
E continua ainda o referido autor em seu raciocínio, que endossamos: esta sociedade, que é nosso foco não inclui o mercado, constitui-se
realmente daqueles(as) que lutam por seus direitos, “é a sociedade civil
do terceiro setor, das organizações solidárias, das organizações não governamentais, dos movimentos sociais”. E conclui seu pensamento afirmando: “É essa sociedade civil que há de ser o embrião da sociedade civil
planetária que queremos construir”. São muitos os atores a ocupar-se de
conceituar o tipo de cidadania que precisamos fortalecer. Para Benevides
8 Cidadania ativa – apoiamos esse conceito nos estudos de Scherer-Warren I. (1999), Benevides (2003),
Chauí (.2006), Santos (2002), entendendo como cidadão ativo aquele que efetivamente participa das lutas e
das decisões, que interfere, ou seja, que exerce uma cidadania conquistada e não dada, diferente de cidadania
apenas representativa.
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(2003), a cidadania ativa; para Warren-Sherer (1999), uma cidadania sem
fronteiras; para Chauí (2006), uma cidadania cultural, sendo que todas
convergem para um ponto comum: a inclusão das populações historicamente marginalizadas.
É dessa cidadania que precisamos e da qual falamos; comungamos
com os autores citados e especialmente com Santos (2002, p. 4), que assim encerrou sua conferência: “É uma utopia, mas não vos deixeis intimidar pela ideia de que somos utópicos. Todas as grandes ideias, antes de se
realizarem, foram consideradas utópicas”.
Considerações finais
Realizar esta pesquisa - buscando parceiros na distante Catalunha,
percorrendo a literatura de lá advinda, acessando os caminhos trilhados por
aqueles povos em busca de autonomia, da vida de qualidade para as regiões
campesinas - sustentada pela construção, organização, estudo e, especialmente, pela formação de redes, mostrou-nos mais uma vez que é pela perspectiva de luta coletiva que nos fortaleceremos e poderemos buscar garantir
formas de desenvolvimento sustentável para nossas regiões e país.
Nosso objetivo com esta pesquisa, no entanto, não é o de copiarmos um modelo, mas nos espelharmos no processo de construção lá realizado, para que continuemos nossa luta por um Brasil mais humano, que
agregue seus diferentes povos, garantindo vida digna a todas e todos. A
luta está presente no Movimento de Educação do Campo, sendo preciso
fortalecer as fileiras e garantir que seus efeitos cheguem a cada pequena,
mas não por isso pouco importante, escola do campo, em cada rincão deste nosso país continental.
Referências
BARRERA, M. Un model d´escola i una escola model. Ulldemolins: Exposat davant
Consellera d’Ensenyament, Hble. Sra. Marta Cid i Pañella al Secretariat d’escola Rural, març de 2004. Disponivel em: http://erural.pangea.org/informacions/escola%20
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TOC TOC TOC! Eu quero entrar 185
O ENSINO DE ARTE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA:
LUTAS, CONQUISTAS, CONCEPÇÕES E
NOMENCLATURAS
Tania Antunes de Oliveira
Arte é Arte. Educação é educação
Lucimar Bello Pereira Frange
E
ste artigo resulta de um capítulo da dissertação de Mestrado Arte
e professores de arte na escola: expansão ou extinção? Descompassos
entre legislação, formação e trabalho. Nele se levou em consideração
um conjunto de documentos oficiais que amparam o ensino da Arte como
disciplina curricular obrigatória nos diversos níveis da educação básica.
Ao todo foram sete documentos oficiais examinados. O primeiro deles é
a Lei de Diretrizes de Base nº 5692/71(LDB); o segundo é a Constituição
de 1988; o terceiro, a Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional nº
9394/96 (LDBEN) que por muitos é vista como a cartilha dos profissionais da área da Educação; o quarto: Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), datado de 1997, como um referencial para servir de apoio pedagógico; o quinto: Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) (Resolução
02/98 decorrente do Parecer CNE/CEB de nº 04/98); como sexto documento, também no ano de 1998, foi publicada a Proposta Curricular
de Santa Catarina, organizada por um grupo de educadores de diversas
universidades e da rede de ensino estadual de SC; e o sétimo documento
consiste em um Parecer elaborado a partir da Federação dos Arte-Educadores do Brasil (FAEB-1986)9 e aprovado em 04/10/2005, que mudou
de nomenclatura de Educação Artística para Arte.
9 A Federação de Arte-Educadores do Brasil – FAEB constitui-se em entidade representativa nacional das
Associações Estaduais, Regionais e Municipais dos profissionais de arte-educação do país. Fundada em setembro de 1987, tem entre seus objetivos mais importantes representar a luta das entidades associadas pelo
fortalecimento e valorização do ensino da arte, em busca de uma educação comprometida com a identidade social e cultural brasileira. Além da atuação crítica na discussão de questões de natureza profissional e da
sua ação pedagógica, também atua na revisão dos conhecimentos produzidos por professores pesquisadores,
estimulando-os a permanente produção de novos conhecimentos e criando os meios necessários para a sua
efetiva divulgação junto à sociedade. http://www.faeb.art.br Acesso, em 31/03/10. A FAEB solicita à Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação retificação do termo “educação artística” por “arte,
com base na formação específica plena em uma das linguagens.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 187
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Estes documentos costumam ser bastante referenciados pelos autores que pesquisam na área de Arte. Entretanto, nos estudos que temos
feito sobre a presença da Arte na escola, provavelmente o parágrafo 2º do
artigo 26 da LDBEN, nº 9394/96, é o mais citado. Praticamente decorado pelos professores de Arte: “O ensino da arte constituirá componente
curricular obrigatório, nos diversos níveis da Educação Básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. O artigo 26 da Lei nº
9.394/96/1996 inclui um parágrafo que trata dos currículos de Ensino
Fundamental e Médio e estabelece que as escolas da Educação Básica devem ter uma base curricular comum e outra diversificada, a fim de atender
às características culturais de cada região, a sua diversidade:
Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais
da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
O exame transversal deste conjunto de documentos permite descobrir muitas outras referências importantes relativas ao lugar da Arte na
Educação ou, mais amplamente ainda, o papel e o lugar da Arte visto como
importante para o desenvolvimento da nação. Vários destes documentos
se inspiram uns nos outros e retomam, repetem, ampliam ou, em alguns
casos, restringem as formulações presentes nos documentos anteriores.
Entre o primeiro documento considerado (LDB, nº 5692/71) e a
LDBEN em vigor (nº 9394/96) passaram-se 25 anos e é compreensível
que ambos formulem propostas muito diferentes para o Ensino de Arte,
visto que houve avanços significativos naquelas duas década e meia que
as separam. A primeira, a LDB, nº 5692/71, foi implementada durante
um período histórico com características muito marcantes: a ditadura militar. E a segunda LDBEN, nº 9394/96, foi formulada num período em
que a democracia estava em processo de ampliação e consolidação. Entre
as duas leis foi processado, a partir do final da ditadura (1983), o texto da
Constituição brasileira de 1988, o qual é reconhecido internacionalmente
como avançado em termos de princípios democráticos. Deste contexto
histórico trazemos alguns elementos pontuais encontrados de tais docu188
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
mentos e confrontá-los, dando destaque a alguns aspectos que consideramos importantes.
A LDB de 1971 é o marco de um momento importante na trajetória do ensino de Arte no Brasil, pois definiu a sua obrigatoriedade para a
educação escolar. A referida Lei instituiu os componentes dos currículos,
dispondo de duas modalidades: 1) disciplinas, entendidas como áreas do
conhecimento, com objetivos, conteúdos, metodologias e processos de
avaliação específica; 2) atividades, entendidas como desenvolvimento de
práticas e procedimentos.
Neste contexto, a Arte passou a fazer parte da segunda modalidade dentro do currículo escolar, sendo vista como atividade apenas. Sob a
denominação, «Educação Artística», a Arte passou a integrar o currículo
das escolas de 1º e 2º graus, porém como «atividade» (entendida como
desenvolvimento de práticas e procedimentos e, portanto, desprovida de
conteúdo) e não como disciplina. Essa foi a denominação oficialmente
escolhida para agrupar os conhecimentos de Música, Teatro e Artes Plásticas na referida lei. Esta forma de entendimento propiciou a implantação
de Licenciaturas Curtas, nas quais os conhecimentos da área eram trabalhados de forma concomitante e o professor de educação artística atuava
numa concepção de atuação polivalente. O modo de ensinar refletia uma
pedagogia tradicional, do fazer pelo fazer do escolanovismo e do tecnicismo, com práticas que foram ficando desacreditadas. Assim, com o passar
do tempo, a concepção de ensino de Arte permaneceu durante muito tempo fundamentado unicamente pelo fazer artístico.
Datam desse período a representação e a valorização do ensino de
Arte como capazes de propiciar o desenvolvimento pessoal do aluno, a
difundida livre expressão10, espaço para que se pudesse exteriorizar a sensibilidade. A partir desta perspectiva muitas situações, nem sempre muito
planejadas, foram desenvolvidas em sala de aula, calcadas numa atuação
improvisada e espontânea. A produção artística era concebida apenas
como a possibilidade de externar a subjetividade pessoal do aluno, sem estabelecer uma relação mais explícita com o caráter teórico e prático de sua
10 Segundo Ferraz e Fusari (1999), Hebert Read contribuiu para a formação de um dos movimentos mais
significativos da Educação Artística. Influenciado por Augusto Rodrigues, liderou a criação de uma “Escolinha
de Arte” nos moldes da Educação através da Arte (uma publicação de Read traduzida em vários países).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 189
Ana Maria Netto Machado (Org.)
elaboração-criação, ou seja, a intervenção do professor era explicitamente
condenada. O que valia era a livre expressão dos sentimentos da maneira
mais espontânea possível.
Estas modalidades de atividades livres deixaram marcas ou heranças que se perpetuam nas práticas atuais, mesmo com a presença de
disciplinas de Arte na escola contemporânea. Essa visão estreita da contribuição da Arte na Educação, e principalmente no desenvolvimento
dos alunos no processo ensino/aprendizagem, relegou a um plano secundário ou inferior na hierarquia da educação escolar a área de conhecimento da Arte.
Esta compreensão custou, inclusive, a retirada do ensino de Arte
das três primeiras versões da nova LDBEN (Lei de Diretrizes e Base da
Educação Nacional), em meados da década de 1980 quando houve uma
grande mobilização nacional entre professores de Arte das várias regiões
do país. Na busca de reconquistar o espaço e a valorização da disciplina,
professores começaram a se organizar em manifestos e movimentos em
defesa do ensino de Arte na Educação Básica. A respeito desta questão,
afirma Barbosa:
O ano de 1986 foi especialmente danoso para o ensino da Arte no Brasil. Ainda
em julho de 1986, em um Encontro de Secretários de Educação no Rio Grande
do Sul, o Secretário de Educação de Rondônia propôs a extinção da educação
artística do currículo, o que foi aprovado pela maioria dos secretários presentes
(BARBOSA, 2004, p. 1):
Um ato que gerou danos ainda hoje não reparados, com a retirada
da obrigatoriedade da área do currículo. Sobretudo por não ser considerada uma disciplina, a Educação Artística não tinha o poder de reprovar
nenhum aluno, o que tornava em geral a atividade desvalorizada ou despertava pouco interesse nos alunos, fazendo com que a mesma fosse vista
como “aulinha de desenho” e o professor encarado como mero decorador
de festas e eventos na escola. Em seu artigo Tendências e Concepções do Ensino de Arte na Educação Escolar Brasileira: Um Estudo a Partir da Trajetória Histórica e Sócio-Epistemológica da Arte/Educação, Silva, (2007, p. 10)
elucida a situação do ensino da Arte naquele momento, pontuando que:
190
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Apesar de uma trajetória conceitual curta, a concepção de ensino da arte como
atividade cristalizou no ensino de arte diferentes práticas pedagógicas, que encontramos, ainda hoje, nas escolas brasileiras, tais, como: (1) cantar músicas da
rotina escolar e/ou o canto pelo canto; (2) preparar apresentações artísticas e
objetos para a comemoração de datas comemorativas; (3) fazer a decoração da
escola para as festas cívicas e religiosas; entre outras. Na realidade, a referida Lei,
no campo do ensino da arte, caracterizou-se como uma ação não planejada, pois,
as atividades eram desenvolvidas, apenas, para cumprir as formalidades e ocupar
os horários, sendo ministradas por professores de outras áreas que não compreendiam o significado da Arte na Educação (SILVA, 2007, p. 10).
Enquanto nas escolas o ensino de arte era praticado nestes moldes,
a sociedade começava a mobilizar-se, na década no final da qual foi promulgada a Constituição Brasileira de 1988. Nesta movimentação social,
os professores de Arte também se organizaram buscando reverter tal quadro. Conforme Araújo,
Organizados, os arte/educadores protestaram, convictos da importância da arte
para a formação do aluno. Iniciou-se, aí, uma longa luta política e conceitual dos
arte/educadores brasileiros para tornar a arte uma disciplina curricular obrigatória, com todas as suas especificidades (objetivos de ensino, conteúdos de estudos,
e sistema de avaliação) (ARAÚJO, 2007, p. 12),
Passada uma década e meia do início de tais mobilizações, pode-se
constatar que foi por meio de um documento11, construído com a participação de 847 professores (e enviado pela FAEB em 2005), reivindicando
a mudança da nomenclatura de Educação Artística para Arte, que a conquista se deu. Vejamos o que diz o documento: “solicitação de retificação
do termo que designa a área de conhecimento Educação Artística pela designação Arte, com base na formação específica plena em uma das linguagens: Artes Visuais, Dança, Música e Teatro”.
Desde a aprovação, em 04 de outubro de 2005, a Educação Artística
passa a se chamar Arte e a resolução destaca ainda que não se deva reforçar
11 Este é o sétimo documento anunciado no início do capítulo. Alteramos a ordem de apresentação, ficando
o sexto documento, a Proposta Curricular de SC em último lugar.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 191
Ana Maria Netto Machado (Org.)
a noção de polivalência na formação e na atuação dos professores de Arte.
Entendia-se que cada profissional deveria ocupar seu lugar no ensino de
acordo com sua formação específica, garantindo a qualidade do ensino e
buscando superação do amadorismo a que os professores de Arte estavam
sujeitos, até então.
O movimento de arte-educação da FAEB repercutiu tão forte nos
anos 1990 que permite ainda nos dias de hoje há discussão sobre a diversidade cultural e a inclusão social, questões que passaram a habitar, desde
aquela época, obrigatoriamente o debate sobre currículo nos meios educacionais. A condição de legitimidade para os professores de Arte atuarem,
na escola, efetivou-se com a conquista alcançada, a partir da aprovação da
LDBEN (no. 9.394/96), na qual se revogaram as disposições anteriores e
o ensino da Arte passou a ser considerado disciplina obrigatória na educação básica conforme o seu artigo 26, parágrafo 2°, supracitado.
Vale ressaltar que, mais do que garantir a permanência do ensino de
Arte na educação escolar, a nova nomenclatura trazia uma nova concepção de Arte. Ao longo dos anos, o ensino da arte vinha sofrendo alterações
em sua nomenclatura que tentavam forçar a mudança dos conceitos e sobretudo dos pré-conceitos com relação à arte presentes na escola. Segundo Ferraz e Fusari (2001) a Educação por meio da Arte surgiu no Brasil a
partir das ideias do filósofo inglês Herbert Read (1909-1978) que foram
seguidas por educadores, artistas, filósofos, psicólogos etc. Era preciso recuperar o ato de criar, que é o que sugere uma educação através da Arte,
em contraponto à adoção de modelos preestabelecidos, outrora presente
no modelo tecnicista que influenciou a educação escolar brasileira durante tanto tempo. Sobre esse contexto Ferraz e Fusari (2001, p. 19) afirmam:
A educação através da Arte é, na verdade, um movimento educativo e cultural de
um ser humano completo, total, dentro dos moldes do pensamento idealista e
democrático. Valorizando no ser humano os aspectos intelectuais, morais e estéticos, procura despertar sua consciência individual, harmonizada ao grupo social
ao qual pertence (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 19).
Enfim, a nomenclatura Arte traz consigo uma nova concepção de
ensino da Arte e, inevitavelmente, um novo posicionamento do professor
e dos alunos no processo ensino/aprendizagem.
192
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Como área de conhecimento, esperava-se que Arte passasse a
ser incluída, a partir da legislação, passando a fazer parte substancial da
educação escolar, enquanto construção social, histórica e cultural,
orientando-se pelas noções de interculturalidade ou diversidade cultural. Devemos reconhecer que foi uma etapa admirável na medida em que
provocou um processo de discussão nas redes escolares. Neste período se
configurava a oportunidade de resgate do perfil humanista e criador da
educação brasileira, abandonado em detrimento de um ensino técnico e
profissionalizante.
Os documentos mais recentes da Educação, posteriores à Constituição de 1988, como a conhecida LDBEN, inspiram-se no texto constitucional. É importante então explorar nesta fonte, de que maneira ela
concebe e menciona a Arte. A Arte aparece em dois dos dez títulos que
compõem o documento. Os títulos são divididos em capítulos, e a Arte é
mencionada em dois capítulos que, por sua vez, estão incluídos em dois
dos grandes títulos. Vejamos quais.
O primeiro a mencionar a Arte é o artigo 23, que trata do que É
competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Este artigo faz parte do Capítulo II, denominado “Da União”, que
por sua vez está inserido no grande Título III, que trata Da organização
do Estado.
E o segundo artigo a mencionar a Arte é o 206, que orienta o seguinte: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios”; o
mesmo está incluído no capítulo III, Da Educação, da Cultura e Do Desporto, Seção I, Da Educação, que faz parte do grande Título VIII da Constituição: Da ordem social.
Chamou-nos a atenção que o termo Arte seja citado na Constituição em um tópico que não é destinado diretamente à Educação. A Arte é
mencionada, neste contexto, em um patamar de suma importância, mesmo antes de se começar a falar em educação. A Educação é um capítulo
do Título VIII da Constituição, dentro do qual a arte é mencionada, entre outras disciplinas. Porém a arte está presente no Título III, quando a
Constituição trata Da organização do Estado. O que a arte estaria fazendo
em tópico tão fundamental para um país? No decorrer deste capítulo, veremos em que situações e de que maneira a Arte aparece nesses tópicos.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 193
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Examinando o Título III da Constituição de 1988, buscamos ver
onde aparecia a Arte. E constatamos que está incluída lado a lado a uma
lista de elementos fundamentais, essenciais não só para a vida do ser humano, do cidadão, como para a organização e desenvolvimento da própria
nação. Ressaltando que a Arte contribui na construção da identidade nacional, como se vê nas manifestações populares, nas festas, no artesanato
e na cultura.
São elementos que dão à Arte uma função muito mais importante
do que aquela que lhe é atribuída em documentos educacionais propriamente ditos. E talvez os próprios professores de Arte não tenham se detido nestes tópicos, nem se valido deles para demonstrar o valor do seu
trabalho para a educação e a força que a disciplina tem nesse documento
vital para o Brasil, força que também poderia e deveria ter nas escolas.
O texto da Constituição de 1988 deu grande importância à Arte, tanto que a incluiu em vários itens do artigo 23 do Capítulo II, quando define
as “competências dos estados e dos municípios”. Deste capítulo constam 12
itens. Destaco aqui os que têm relação direta com a Arte e ressalvo tratar-se
de um capítulo que não é destinado especificamente à Educação Há um capítulo que trata especificamente da Educação, mas ele se encontra adiante,
no Capítulo III do grande Título VIII da Constituição (quase no final). O
documento tem dez grandes títulos e trata também da Cultura e do Desporto. A seguir destaco alguns dos doze tópicos do artigo 23 (Da organização
do Estado), grifando com negrito os termos conectados com a Arte. Parecenos importante mostrar todos os tópicos a título comparativo.
I - Zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e
conservar o patrimônio público;
II - Cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III - Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos;
IV - Impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e
de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - Proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
VI - Proteger o MEIO AMBIENTE e combater a poluição em qualquer de suas
formas;
VII - PRESERVAR AS FLORESTAS, A FAUNA E A FLORA;
VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o ABASTECIMENTO
ALIMENTAR;
IX - Promover programas de CONSTRUÇÃO DE MORADIA e a melhoria das
CONDIÇÕES HABITACIONAIS E DE SANEAMENTO BÁSICO;
X - COMBATER AS CAUSAS DA POBREZA e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
XI - Registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e
exploração de RECURSOS HÍDRICOS E MINERAIS em seus territórios;
XII - Estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito
(BRASIL, 1988, grifo nosso).
Como se pode constatar, a Arte e a Cultura aparecem em quatro
das cinco primeiros tópicos. Isto é, um terço dos itens da lista tem ligação
direta com a Arte. Os outros oito, dos quais destacamos algumas palavras
(em caixa alta) referem-se a elementos fundamentais para a sobrevivência
digna do ser humano, tais como alimentação, saúde, moradia, saneamento
básico; ou então a elementos básicos para a sustentabilidade da humanidade como um todo, tais como a preservação do meio ambiente (flora e
fauna), o combate à pobreza, a proteção das riquezas do país, etc.
Pode se observar que muito já se escreveu e celebrou sobre a obrigatoriedade do ensino da Arte dentro do currículo escolar, como conquista
na LDBEN, mas pouco se chamou a atenção para o fato da Arte fazer parte
do texto constitucional, profundamente articulado a itens de fundamental
importância para o indivíduo e para a sociedade brasileira. Vendo como a
arte está inserida nesta relação, pode-se perceber que não se trata de algo
supérfluo ou complementar – é muito mais do que uma obrigação para
a escola, é uma necessidade para o bem-estar da nação. E tão importante quanto a necessidade que temos de moradia, saúde, alimentação e um
meio ambiente preservado, pois trata das questões e manifestações que
nos tornam mais humanos.
Em contrapartida, no capítulo constitucional destinado à Educação, a Arte aparece mais timidamente, insinuada como algo complemenTOC TOC TOC! Eu quero entrar 195
Ana Maria Netto Machado (Org.)
tar ou opcional à vida humana. É como se entrasse em contradição com
o capítulo anterior que tem um olhar abrangente no que se refere à Arte,
quando deveria ser justamente o contrário, afinal a Arte faz parte (ou deveria fazer parte) do currículo como elemento do eixo central da educação.
Talvez seja pelo fato de que os documentos que se referem à educação não
darem tanta ênfase ao lugar e papel da Arte, que o direito ao ensino da Arte
aparece com pouca força, justificando a desvalorização que sofre dentro
das unidades escolares.
Mostramos, em seguida, como aparece a Arte no artigo 206 do capítulo III, que é o que se refere à educação e é composto de sete itens. Destes,
apenas um menciona a arte e a cultura dentro do caput: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. Apesar de
menção tão rápida, e apenas em um item, a arte e a cultura estão lado a lado
do pensamento e do saber. Vejamos de que falam os sete itens. São eles:
I - Igualdade e condições para acesso e permanência a escola;
II - Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento,
a arte e o saber.
III - Pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;
IV - Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V - Valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei,
planos de carreira, com egresso exclusivamente por concurso público de provas e
títulos aos da redes públicas.
VI - Gestão democrática do ensino público, na forma desta lei
VII - Garantia de padrão de qualidade (BRASIL, 1988).
Comparando o texto do artigo 206 da Constituição, referente à
Educação com o artigo 3º da LDBEN 9394/96, constata-se que esta reproduz os sete itens que tratam de como deve ser ministrado o ensino.
E acrescenta quatro itens novos que aqui sintetizamos: 1) Respeito à liberdade e apreço à tolerância; 2) Coexistência de instituições públicas e
privadas de ensino; 3) Valorização de experiência extra-escolar; 4) Vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. Poderíamos
dizer que os itens novos retratam os avanços ocorridos nos oito anos que
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
se passaram depois da promulgação da Constituição de 1988, os avanços
da democracia no Brasil, mas nada de novo com relação à arte, para cumprir o que determina a constituição nacional.
É curioso que o texto mais citado da LDBEN de 1996 na literatura de
arte seja o §2º do artigo 26, aquele que afirma que “O ensino de Arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação
básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.
É importante lembrar que esta lei não deixa clara a obrigatoriedade
do ensino de arte em todos os níveis de ensino, mas apenas nos diversos
níveis de ensino, abrindo brechas para que os dirigentes educacionais ofereçam ou não a disciplina em algumas séries ou níveis de ensino; nem a lei
também estipula o número de aulas por semana a ser ministradas, o que
faz com que algumas políticas educacionais adotem uma aula apenas.
Analisando o documento minuciosamente, encontramos outras
menções à arte, dando-lhe um grau de maior importância, porém parece
ser pouco conhecida pelos próprios profissionais da educação e até dos
professores de Arte. No artigo 3º da LDBEN 9394/96, onde diz ”o ensino
será ministrado com base nos seguintes princípios”, totalizando 11 itens,
está, no segundo item, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento e a arte”, como referido acima.
O artigo 24 da LDBEN determina que “A educação básica, nos níveis fundamentais e médios será organizada de acordo com as seguintes
regras comuns”. Seguem cinco importantes itens e a arte aparece apenas
uma vez, no quarto item, que diz o seguinte: “poderão organizar-se classes, ou turmas com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de
adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou
outros componentes curriculares”. O teor do artigo é uma sugestão, que,
pelo menos no caso estudado nesta pesquisa, não tem sido seguida, mas
poderia ser promissora, se planejada adequadamente12.
Partindo daquilo a que refere este artigo, pontuamos que é mais do
que hora da escola repensar a questão do horário integral, entendendo
que apenas quatro horas diárias não comportam todas as disciplinas a que
12 Dentro de uma perspectiva inspirada em Vygotsky, muito presente no Estado de SC a partir da Proposta Curricular de Santa Catarina, que veremos no próximo capítulo, trabalhar com alunos de idades e níveis
diferentes pode ser extremamente estimulante para a aprendizagem significativa. Nas leituras realizadas não
identificamos trabalhos que citem este tópico da LDBEN.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 197
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o aluno tem direito de acesso em sua formação. Este problema se coloca
sempre quando se pensa em incluir uma nova disciplina na grade curricular. A preocupação de qual disciplina deve perder carga horária para que
outra possa ser incluída. O objetivo não é o de retirar ou privar o aluno
de conhecimentos e sim acrescentar-lhe oportunidades de conhecimento.
Porém esta ampliação requer mudanças de vários tipos (espaço físico, ampliação da carga horária escolar para conter novas disciplinas criadas pela
legislação, professores habilitados para tais disciplinas emergentes).
Continuando a analisar a LDBEN, encontramos o artigo 32 que
diz o seguinte: “O ensino fundamental obrigatório, com duração de nove
anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 anos de idade, terá por
objetivo a formação básica do cidadão mediante [...]”. Dentre os quatro
itens em que se divide, o segundo faz menção à Arte, entre outros elementos, como pilares que orientam o ensino fundamental para obter a formação básica do cidadão: “a compreensão do ambiente, natural e social, do
sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade”.
Podemos destacar que o ensino da Arte está amparado por documentos legais, que dão força para que os professores de Arte reivindiquem
os direitos que lhes são dados por lei, sendo que estes direitos estão adquiridos, não deveriam ser causa de tantas polêmicas nas unidades escolares
ou fora das instituições de ensino. Além do que, nos documentos analisados, a Arte é bastante abrangente, e não é destacada unicamente dentro
do espaço escolar e sim valorizada junto com princípios essenciais para a
nação.
Embora este artigo focalize o Ensino Fundamental, não podemos
deixar de citar o artigo 36 da LDBEN, o qual define que o currículo do Ensino Médio observará o disposto na Seção I daquele capítulo e as quatro
diretrizes que a LDBEN aponta, sendo a Arte a primeira delas, destacando
“a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da Ciência
das Letras e das Artes, o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura, a língua portuguesa como instrumento de comunicação,
acesso ao conhecimento e exercício da cidadania”.
Pode parecer surpreendente este texto da lei, porque as Artes são
mencionadas antes da Língua Portuguesa, disciplina que na escola é sem198
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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pre vista como a disciplina mais importante na estrutura curricular, junto
com a Matemática. Mas nos textos da legislação, sobretudo na Lei maior
brasileira que é a Constituição, a Arte aparece em posição de destaque, e
também neste item da LDBEN, junto à Ciência e às Letras.
O quarto documento aqui considerado são os PCNs (1997). Vejamos de que forma esse material contribui para fortalecer o ensino da Arte
dentro do currículo escolar. Segundo Souza (1998)13, que recupera o processo de elaboração dos PCNs, eles foram resultado de um longo trabalho que contou com o conhecimento de muitos educadores brasileiros e
têm a marca de suas experiências e de seus estudos, permitindo assim que
fossem produzidos no contexto das discussões pedagógicas atualizadas.
Inicialmente foram elaborados documentos em versões preliminares para
serem analisados e debatidos por professores que atuam em diferentes
níveis de ensino. Trabalharam nele especialistas da educação e de outras
áreas, além de instituições governamentais e não governamentais – que,
apesar de nem sempre estarem bem articuladas entre si, trazem sugestões
importantes como subsídios para a atuação do professor na sala de aula.
Entretanto teóricos como Ana Mae Barbosa são bastante críticos com relação o teor deste documento, analisando-o desde a perspectiva históricocultural.
Tiveram o objetivo de dar suporte a LDBEN, vale lembrar que a
LDBEN é lei federal, devendo ser cumprida, enquanto os PCNs são modelos a serem seguidos, apesar da não obrigatoriedade.
Os PCNs, apoiando-se nas referências dos documentos legais
maiores como a LDBEN, situam a Arte como um conhecimento que envolve tanto a experiência subjetiva de apropriação dos conteúdos da Arte
quanto o desenvolvimento da competência de criar significados por meio
de produções artísticas. O trecho destacado dos PCNs, em seu volume
seis, especificamente voltados para Arte ressalta a importância da arte para
a sociedade:
Entende-se que aprender arte envolve não apenas uma atividade de produção
artística pelos alunos, mas também a conquista da significação do que fazem, pelo
13 Paulo Renato Souza Ministro da Educação e do Desporto entre 1995 a 2002.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 199
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desenvolvimento da percepção estética, alimentada pelo contato com o fenômeno artístico visto como objeto de cultura através da história e como conjunto
organizado de relações formais [...]. Ao fazer e conhecer arte o aluno percorre
trajetos de aprendizagem que propiciam conhecimentos específicos sobre sua
relação com o mundo (PCNs, 2001, p. 44).
É importante, entretanto, lembrar que, quanto ao conceito de Arteeducador, o que a Lei espera, segundo os PCNs (2001), é que o Arte-educador não precisa necessariamente ser um artista14, mas ele deverá possuir
um amplo entendimento sobre o processo de produção artística, estar atualizado sobre questões culturais do seu contexto instigando e envolvendo
o seu aluno a compartilhar de seu entorno/ambiente/comunidade, analisando as suas manifestações culturais nas diferentes modalidades como
Artes Visuais, Dança, Música e Teatro. Nesta concepção, a habilitação de
Arte-educador hoje requer conhecimentos que vão além de formar profissionalmente para a educação formal, porque também contribui para a
dinamização dos vários espaços referentes à cultura regional.
O volume sexto dos PCNs (2001), específico para a área do ensino
da Arte, expõe um entendimento que define a Arte na educação, mencionando conteúdos, objetivos, assinalando tanto aspectos que se referem ao
ensino e à aprendizagem, quanto a arte como manifestação humana. Este
documento foi elaborado para que o educador possa conhecer a área em
sua contextualização histórica e ter contato com os conceitos referentes à
natureza do conhecimento artístico. Os currículos organizam os conhecimentos, culturas, valores e artes que todo ser humano tem direito. Para que
esses currículos possam, então, ser formulados nas escolas, espera-se que as
Diretrizes Curriculares venham a oferecer uma significativa contribuição
(ARROYO, 2006). Com relação ao ensino da Arte, consta nos PCNs que:
A educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico, que
caracteriza um modo particular de dar sentido às experiências das pessoas: por
meio dele, o aluno amplia a sensibilidade, a percepção, a reflexão e a imagi14 Esta questão é bastante polêmica: até que ponto pode ter domínio do processo de criação artística um professor que não produz arte? Comparando com outras áreas, até que ponto um professor de odontologia pode
ensinar o que não pratica? Essa discussão excede o campo da Arte, mas há cursos como o da FUNDARTE, em
Montenegro (RS) que propôs formar artista e professor em um mesmo curso.
200
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nação. Aprender arte envolve, basicamente, fazer trabalhos artísticos, apreciar e
refletir sobre eles. Envolve, também, conhecer, apreciar e refletir sobre as formas
da natureza e sobre as produções artísticas individuais e coletivas de distintas
culturas e épocas (PCNs, 2001, p. 6).
Ao primeiro olhar, a flexibilidade presente na proposta estabelecida
para o ensino de Arte na escola busca atender as diferenciadas condições
das escolas, levando em consideração também a disponibilidade de recursos humanos de que cada instituição dispõe. Segundo Penna (2001),
diante das condições do sistema de ensino em nosso país, seria irrealista
pretender vincular a abordagem de cada linguagem artística a séries determinadas, num programa curricular fechado. Vejamos um exemplo: um
aluno que tenha que se transferir de escola pode tornar a repetir conteúdos já estudados na escola anterior, na mesma modalidade artística, ou então pode ter dificuldades em acompanhar um trabalho mais aprofundado
em uma linguagem que não tenha sido contemplada em sua antiga escola.
Em relação a esse questionamento, as orientações dos PCNs para a área
de Artes refere o seguinte:
Nos casos de mudanças de escola, que afetam com frequência os alunos das camadas populares, os efeitos práticos dessa flexibilidade podem até mesmo invalidar as recomendações do próprio documento acerca da continuidade do processo educativo (PCNs, 1997, p. 62).
Segundo Penna (2001), e também a nosso ver, a proposta dos
PCNs para a área de Arte é ambiciosa e complicada de ser viabilizada na
realidade escolar brasileira. Para sua aplicação efetiva, seria necessário poder contar com recursos humanos com qualificação – o que implica desde
a valorização da prática profissional até ações de formação continuada e
acompanhamento pedagógico constante – e recursos materiais que atendam às necessidades da prática pedagógica em cada linguagem artística.
Penna afirma que:
Ao se pensar a prática pedagógica na escola, a primeira grande questão é: como
realizar, na sala de aula, a proposta dos PCN para Arte, com suas quatro moda-
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 201
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lidades artísticas? O fato é que os PCN-Arte, que apresentam uma proposta tão
abrangente, não chegam a apresentar de modo claro a forma de encaminhar concretamente o trabalho com as diversas linguagens artísticas. As disposições neste
sentido são poucas e dispersas pelo texto, de modo que a questão de quais linguagens artísticas, quando e como serão abordadas na escola permanece, em grande
medida, em aberto. Os PCN-Arte optam pela organização dos conteúdos por
modalidade artística - e não por ciclo, como nos documentos das demais áreas
-, delegando às escolas a indicação das linguagens artísticas e «da sua seqüência no andamento curricular» (PCN-Arte, p. 54). Neste sentido, sugerem que,
«a critério das escolas e respectivos professores, [...] os projetos curriculares se
preocupem em variar as formas artísticas propostas ao longo da escolaridade,
quando serão trabalhadas Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro.» (PENNA
apud PCN-ARTE, 1997, p. 62-63).
Nós, professores, temos consciência dos problemas encontrados no
dia a dia em sala de aula ao pôr em prática a proposta de Arte conforme
sugerem os PCNs, que trazem as quatro modalidades artísticas (Artes Visuais, Artes Cênicas, Dança e Música). Ressaltamos que as escolas não
estavam preparadas para desenvolver as atividades de Arte, e muitas ainda
não estão em condições, levando em conta também os recursos disponíveis (em geral escassos), tais como espaço, materiais, profissionais capacitados para as diversas modalidades.
Neste contexto, ao primeiro olhar, esta liberdade de escolha por determinados conteúdos e modalidades artísticas pode parecer algo muito
positivo. Segundo os PCNs esta flexibilidade tem, então, várias implicações, como nos casos de transferência, que podem vir a trazer prejuízos
para a formação do aluno. Já que cada escola pode selecionar tanto as modalidades artísticas quanto os próprios conteúdos: “os conteúdos podem
ser trabalhados em qualquer ordem, conforme decisão do professor, em
conformidade com o desenho curricular de sua equipe” (PCN, V.6, 2001,
p. 49). A liberdade para escolher, no entanto, precisa ser acompanhada
de maturidade, formação qualificada. Mas a realidade, na maioria das vezes não corresponde a esta necessidade. Não há suficientes professores de
Arte e muitos dos que têm formação acabam não ministrando aulas em
sua matéria específica.
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Os PCNs têm por finalidade favorecer um padrão de qualidade no
ensino, em nível nacional, inclusive em termos dos conteúdos estudados.
Será que são eficazes? Será que um documento tem mesmo tanto poder
sobre a realidade educacional?
Outro documento (o quinto aqui analisado) entrou em vigor em
seguida aos PCNs e refere-se às Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs
– Resolução CEB Nº 2, de 7 de abril de 1998). Voltado para o Ensino
Fundamental, traz a Arte como área de conhecimento, considerando-a
juntamente com as demais disciplinas. Dentro das propostas dos DCNs a
Arte é abordada na primeira proposta.
A busca de definição, nas propostas pedagógicas das escolas, dos
conceitos específicos para cada área de conhecimento, sem desprezar a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade entre as várias áreas. Neste
aspecto, as propostas curriculares dos sistemas e das escolas devem articular fundamentos teóricos que embasem a relação entre conhecimentos
e valores voltados para uma vida cidadã, em que, como prescrito pela
LDBEN,
[...] o ensino fundamental esteja voltado para o desenvolvimento da capacidade
de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e
do cálculo; compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da
tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade, desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, fortalecimento dos vínculos de família,
dos laços de solidariedade humana e de tolerância.
Os DCNs abordam a questão da interface entre as disciplinas, reforçando a interdisciplinaridade entre as áreas dos conhecimentos trabalhando e colocando Arte na lista de meios básicos para o desenvolvimento da
sociedade.
O sexto documento aqui considerado é a Proposta Curricular de
Santa Catarina (PCSC), que não é uma lei, mas um documento de 243 páginas que foi construído coletivamente pelo chamado Grupo Multidisciplinar, e trata do ensino de Arte em 27 páginas. Este grupo atuou de 1995
a 1998, coordenado pelos Secretários de Educação do Estado de Santa
Catarina, João Matos e Eliane Neves Rebello. Lemos na proposta:
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 203
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Sabe-se que muito já se avançou e se caminha a passos largos para reflexões cada
vez mais consistentes sobre a arte e o seu ensino. Há uma busca de novas metodologias de ensino e aprendizagem de arte nas escolas. A arte, hoje, é compreendida
como patrimônio cultural da humanidade (PCSC, 1998, p. 193).
A Proposta Curricular de Santa Catarina, tem como pressuposto
que a Arte gera conhecimento e é detentora de um campo amplo de conhecimento, por relacionar-se com as demais áreas e por desenvolver o
pensamento e a reflexão. A proposta curricular catarinense compreende
que o objeto artístico é portador de referência que proporciona um encontro ativo entre o espectador e a obra (visual, cênica e musical); que o
apreciador do objeto artístico, ao viver esta experiência, mesmo no coletivo, vive um processo de criação. E que esta vivência possibilita conhecer e
compreender os bens culturais e os significados de sua cultura.
Segundo a Proposta Curricular (1998) os conteúdos trabalhados
deverão contemplar uma postura interdisciplinar, devendo corresponder
às linguagens visual, música e cênica. O professor de Arte terá como ponto
de partida, no seu planejamento, a linguagem específica de sua formação.
A Proposta Curricular de Santa Catarina...
[...] propõe uma postura filosófica/metodológica na qual o professor assume o
papel de mediador no desenvolvimento cognitivo do aluno. Dessa forma, é indispensável que o professor tenha domínio do saber, que busque a ampliação dos conhecimentos de maneira contínua, no que diz respeito à história da arte, que desenvolva a reflexão estética e as possibilidades de leitura das manifestações artísticas e
aplicação: enfim, deve participar de todo o processo artístico (PCSC, 1998, p. 194).
O professor de Arte, na posição de mediador do conhecimento, é
responsável por desempenhar essa função da melhor maneira possível,
procurando continuamente se manter atualizado, contribuindo na formação de cidadãos.
Até aqui analisamos alguns aspectos de documentos legais ou orientadores referentes ao ensino de Arte, ficando claro que a importância do
ensino de Arte para o currículo escolar está institucionalmente reconhecida na legislação e foi fruto de lutas e movimentos de várias décadas dos
204
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
envolvidos com arte. A seguir, vamos discutir algumas das terminologias
que foram sendo usadas, seja nas legislações, seja entre professores ou artistas, desde os anos 1950 (metade do século XX), e que estão associadas
a concepções de Arte e seus diferentes papéis na sociedade.
Sobre as terminologias, que representam correntes ou concepções
de arte que se sucedem ou convivem, qual seria mesmo a mais adequada,
e por quê? Arte-Educação com hífen ou Arte/Educação com barra? Arte
educação sem hífen ou ensino de arte? Ou, apenas Arte? Nos parágrafos
acima fizemos um estudo da legislação e constatamos que o ensino de
Arte teve várias denominações, como: educação através da arte, Educação
Artística15 e, por último, Arte ou Artes Visuais. São muitas as dúvidas com
relação à nomenclatura da disciplina ensino de arte.
Pelo que pudemos observar, o último parecer mudou a designação
da disciplina a ser ministrada na escola de Educação Artística para Artes.
Entretanto as práticas e discursos dos professores assumem variadas denominações. Muitos adotam Arte-educação.
Segundo Ferraz e Fusari (2001), a Educação por meio da Arte surgiu no Brasil em 1948 a partir do ideário do filósofo Read (1948), com
características idealistas. Em 1971, a arte foi incluída no currículo escolar
brasileiro, sob o nome de Educação Artística (lei 5692/71), prevendo-se
o trabalho com as várias modalidades artísticas (música, teatro, dança e
artes plásticas). O importante, na época, era a expressão individual e o
ensino por meio da técnica. Nesta concepção, eram oferecidos cursos de
curta duração (dois anos), havendo pouco tempo para aprofundar cada
uma destas modalidades. Concretamente, o que aconteceu, foi o seguinte:
os professores estavam despreparados para realizar esse trabalho e a consequência foi a desvalorização da disciplina.
No final da década de 1970, constituiu-se no Brasil o movimento
Arte-educação, com o objetivo de promover uma atuação educativa e criadora, ativa e centralizada no educando. Este movimento (teórico e político), liderado por Barbosa, teve grande repercussão entre os professores
nas escolas brasileiras, e representou o abandono da posição idealista, referida por Ferraz e Fusari abaixo:
15 Mac-Dowell (2010) afirma que em muitos governos municipais e estaduais essa denominação continua a
ser usada, talvez por desconhecimento ou, quem sabe, rebeldia.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 205
Ana Maria Netto Machado (Org.)
A Educação através da Arte vem se caracterizando pelo posicionamento idealista,
direcionado para uma relação subjetiva com o mundo. Embora tenha tido pouca repercussão na educação formal, contribuiu com a enunciação de uma visão de arte e
de educação com influências recíprocas. Quanto à Educação Artística nota-se uma
preocupação somente com a expressividade individual, com técnicas, mostrandose, por outro lado, insuficiente no aprofundamento do conhecimento da arte, de
sua história e das linguagens artísticas propriamente ditas. Já a Arte educação vem
se apresentando como um movimento em busca de novas metodologias de ensino
e aprendizagem de arte nas Escolas. Revaloriza o professor da área, discute e propõe
um redimensionamento do seu trabalho, conscientizando-o da importância da sua
ação profissional e política na sociedade (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 21).
Esses autores procuram mostrar o que está por trás das palavras que
definem as concepções da relação da Arte com a Educação. Cada uma dessas denominações tem seus partidários e seus críticos e também a sua importância em cada determinado momento histórico. Em todo caso, mesmo Read, afirma Zanin (2003, p. 65), ressaltava a relação à importância da
Arte para a Educação:
[...] que a educação através da arte significa uma educação que tem a arte como uma
das suas principais aliadas, que permita uma maior sensibilidade para o mundo ao
nosso redor. Segundo ele, a educação tem por objetivo desenvolver, juntamente
com a singularidade, a consciência social do indivíduo (ZANIN, 2003, p. 65).
Lendo esse trecho, vemos que Barbosa (2008), ao considerar “que
arte é cognição, para a qual colaboram os afetos e os sentidos”, não está tão
longe assim de Read. O trabalho que a Arte faz potencializa a cognição,
mostra Barbosa, e a cognição é o processo pelo qual o organismo se torna
consciente de seu meio ambiente. Ferraz e Fusari recuperam a história do
surgimento do movimento liderado por Barbosa da seguinte maneira:
É no contexto dessa problemática que, no final da década 70 constitui-se no Brasil o movimento arte-educação. No início, este movimento organizou-se fora da
educação escolar e a partir de premissas metodológicas fundamentadas nas idéias
da escola nova e da educação através da arte. Esse modo de conceber o ensino
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
da arte vem propondo uma ação educativa criadora, ativa e centrada no aluno. O
principal propósito da arte-educação pode ser percebido nas palavras de Noêmia
Varela16 (1988, p. 2): “o espaço da arte-educação é essencial à educação numa dimensão muito mais ampla, em todos os seus níveis e formas de ensino. Não é um
campo de atividade, conteúdos e pesquisas de pouco significado. Muito menos
está voltado apenas para as atividades artísticas. É território que pede presença
de muitos, tem sentido profundo, desempenha papel integrador plural interdisciplinar no processo formal e não formal da educação. Sob esse ponto de vista, o
arte-educador poderia exercer um papel de agente transformador na escola e na
sociedade (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 20-21).
É nosso dever como professores de Arte exercer nosso papel de
agentes transformadores, que propõe Noêmia Varela. Nós, professores de
arte, juntamente com os demais professores, por meio de uma proposta de trabalho interdisciplinar, temos a possibilidade de contribuir para a
preparação dos educandos, para que eles possam compreender melhor o
mundo em que vivem e que, por meio deste conhecimento, eles façam a
diferença na sociedade onde estão inseridos.
Segundo Iavelberg (2008), a terminologia Arte-Educação refletiu
um avanço conceitual na área de Arte (no que se refere ao mundo educacional), porque incluiu as culturas como conteúdo das aulas e a produção
artística de forma contextualizada. Deste modo, abriu-se espaço para que
a diversidade da produção artística de qualidade pudesse ser conhecida
nas escolas, aproximando o aluno do trabalho dos artistas, dos críticos,
historiadores de arte e agentes culturais. Schilaro (2007) complementa a
visão sobre Arte-educação: ela diz respeito também ao conhecimento de
teorias, técnicas, materiais, recursos e instrumentos.
A própria Barbosa (2004, p. 32) assim define Arte-educação em
determinado momento de sua trajetória: “Arte-Educação é uma certa
epistemologia da arte como pressuposto e como meio são os modos de
16 Segundo Benetti (2007), para Barbosa, op. cit., Noêmia Varela foi “criadora da Escolinha de Arte do Recife
e posteriormente diretora técnica da Escolinha de Arte do Brasil, através dos Cursos Intensivos de Arte Educação que organizava no Rio, foi a grande influenciadora do Ensino da Arte em direção ao desenvolvimento
da Criatividade, que caracterizou o Modernismo em Arte Educação”. Noêmia atua, hoje, na Escolinha de Arte
do Recife, fundada em 1953 e atuou na Escolinha de Arte do Brasil, fundada em 1948, até final dos anos 80
(FRANGE, 2001, p.31).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 207
Ana Maria Netto Machado (Org.)
inter-relacionamento entre a arte e o público, ou melhor, a intermediação
entre o objeto de arte e o apreciador”.
Quatro anos mais tarde, em entrevista concedida a Rezende, Barbosa responde à pergunta ”o que vem a ser arte-educação?”. Naquela oportunidade, ela contou como foi que esta expressão surgiu. Sabemos quanta
repercussão teve, e mesmo aceitação e seguidores. Mas também teve seus
críticos, mais tarde, como veremos:
Para mim, Arte/Educação é todo e qualquer trabalho consciente para desenvolver a relação de públicos (criança, comunidades, terceira idade etc.) com a arte.
Ensino de arte tem compromisso com continuidade e currículo, quer seja educação formal ou informal. Arte Educação foi o termo usado por meus mestres. Eu
acrescentei o hífen, Arte-Educação, no momento em que a arte era recusada pelos educadores, nos anos de sua introdução obrigatória no currículo escolar, em
torno de 1973-1974, para dar idéia de diálogo e mútuo pertencimento entre as
duas áreas. Na época, meus mestres gostaram da idéia. Recentemente, em 2000,
um lingüista nos aconselhou a usar a barra, pois este sinal, sim, é que significa
mútuo pertencimento. Tanto é assim que a barra é muito usada em endereços de
sites, quando um assunto específico está dentro de outro mais amplo. Mas Arte/
Educação e ensino de arte são faces diferentes de uma mesma moeda, a moeda
concreta da intimidade com a arte (BARBOSA, 2008, p. 3).
Refletindo sobre a justificativa dada por Barbosa para o emprego da
expressão Arte-educação, poderíamos perguntar se, de fato, a Arte pertence à Educação e a Educação pertence à Arte. É certo que a Arte foi incluída
por lei na escola, logo na Educação, mas isso não quer dizer que ela pertença, como área, à Educação, ou esteja contida nela. Na defesa da cumplicidade entre Arte e Educação, podemos retomar as ideias de Varela17 (2010)
sobre a necessidade de demonstrar aos educadores a importância da arte
para a educação. Pelos anos 1970, ela dizia o seguinte: “[...] a linguagem
arcaica que chamamos de arte estava presente de forma construtiva, dinâmica, profunda, enraizada no processo da vida. E se está no viver e na
17 Segundo Benetti (2007), para Barbosa op cit., Noêmia Varela foi “criadora da Escolinha de Arte do Recife
e posteriormente diretora técnica da Escolinha de Arte do Brasil, através dos Cursos Intensivos de Arte Educação que organizava no Rio, foi a grande influenciadora do Ensino da Arte em direção ao desenvolvimento da
Criatividade, que caracterizou o Modernismo em Arte Educação”.
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existência do ser humano, por que não está na educação?”. Tais lutas tiveram como consequência a oficialização do ensino de Arte pela legislação,
como vimos nas páginas anteriores. E é aí que outros questionamentos
vão surgindo, mostrando os limites daquela proposta, válida na época em
que foi idealizada, mas que teria perdido o sentido nos dias atuais.
É importante aqui trazer o depoimento de Frange (1995), que foi
entusiasta da Arte-educação, porém, em determinado momento, mudou
de posição e justifica esta mudança com um importante esclarecimento.
No seu livro intitulado Por que se esconde a violeta? (1995), faz viajar nas linhas poéticas em torno da relação entre os campos da Arte e da Educação.
As distinções que ela elabora deixam claras suas restrições ao conceito de
Arte-educação. É preciso, entretanto, reconhecer sua importância histórica para levar a Arte para dentro das escolas.
Frange afirma ‘Arte é Arte e Educação é Educação’. Assim, apresenta
a questão, à sua maneira:
Arte é Arte. Educação é Educação. Não existe história-educação; geografia-educação; matemática-educação, Português-educação como disciplinas e assim por diante, mas existe História, Geografia, Matemática, Português dentro de nossos currículos [...]. Arte não é adjetivo de educação. No meu entender, arte não é uma parte da
educação, nem da história da arte, muito menos da estética. Arte é arte, educação é
educação, historia da arte é história da arte. Temos trabalhado com arte nos espaços
educacionais referindo-nos somente a uma educação formal instituída. Onde estão
os espaços para uma educação instituinte?(FRANGE, 1995, p. 24-25)
A instituição de ensino deve proporcionar subsídios para que os professores de Arte possam desempenhar diversas atividades. O professor precisa de Arte precisa de espaços adequados de acordo com o trabalho que
será desenvolvido. Demonstrações como estas por parte da escola fazem
com que o professor de Arte e os alunos sejam incluídos no espaço escolar.
Segundo Frange (1995), Ruskin18 foi a primeira pessoa na Inglaterra a destacar a Arte como direito público e como uma das obrigações do
18 John Ruskin (Londres, 1819 - 1900) foi escritor, pintor, crítico artístico, professor e pensador. Licenciado
pela Universidade de Oxford, concluiu seu Mestrado em 1843 e fez carreira de professor de Belas Artes naquela
mesma Universidade.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Estado. A Arte está em toda parte, em todos os lugares, e nesse sentido ela
não é prioridade dos educadores, nem dos artistas e não está apenas nos
espaços escolares. Conforme Frange (1995, p.194), para Ruskin, “A Arte
é uma necessidade social, por isso nenhuma nação poderia negligenciar
este aspecto sem perigo para existência intelectual [...] a arte não é privilegio dos artistas, conhecedores e educadores, mas parte de todo homem
enquanto herança”.
Batista (2009, p. 107), em seu artigo intitulado Qual o lugar da arte no
currículo escolar?, traz uma discussão sobre os eixos norteadores do ensino
de Arte, e também menciona que a arte de criar não é uma vantagem de artistas e sim um contemplar e um fazer essenciais à qualidade humana – mas
que necessita ser incentivado, trabalhado, envolvidos em projetos educacionais. Assim, a criatividade não está restrita à criação de obras artísticas,
mas ao poder de dar sentido para a compreensão de mundo, criar novos
pensamentos e possibilidades de leitura das relações, permitir criar novas
resoluções para antigos problemas. Arte é uma ferramenta poderosa que a
educação não aproveita, sobretudo é importante para desenvolver a desejada autonomia que a escola tem tanta dificuldade para promover.
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212
Ana Maria Netto Machado (Org.)
A BUSCA DE RECONHECIMENTO DAS ARTES NO
CAMPO CIENTÍFICO
Maira Virginia Xavier Cruz
E
ste artigo é fruto de pesquisa de dissertação de Mestrado sobre
o processo de inserção das Artes no campo científico brasileiro,
observados os modos como a área vem processando sua inclusão,
reivindicando, buscando e conquistando legitimação junto às demais áreas e, também, sobre como se desenha a pesquisa em Artes atualmente em
nosso país. Compreendemos que a pesquisa e a produção de conhecimentos em Artes pressupõem espaços que somente há poucas décadas começaram a se estabelecer como foros organizados e formais, estruturando
uma comunidade de pares que até há pouco tempo ainda tinha escassa
consciência de sua condição. Estamos nos referindo ao papel das Artes na
pós-graduação, nas associações de pares e em instituições de fomento e
avaliação de pesquisa como o CNPq e a CAPES.
Tais espaços, além de fomentarem e organizarem este campo de conhecimento, são fundamentais para a formação, produção e divulgação do
fenômeno artístico. Muito embora a consolidação desta área de conhecimento seja, de certa forma, recente e conflitante dentro do espaço científico estabelecido no país, vivemos contemporaneamente discussões que
envolvem os novos parâmetros de pesquisa em Artes e sobre Artes.
Escrever sobre a Arte representa um duplo desafio: por um lado
não podemos negar as evidências históricas de que, na passagem do século XIX para o século XX, continuamos vinculados a um modelo no qual
se considera que tudo pode ser explicado pela razão (incluídas aí tanto a
Arte como a Ciência). Por outro lado, os significados da Arte, hoje, apontam para outras direções, nas quais a dúvida muitas vezes inquieta tanto o
espectador (aquele que vê a Arte) como o pesquisador (aquele que pensa
sobre a Arte ou analisa Arte).
Portanto pesquisar sobre a pesquisa em Artes supõe a aventura de
acolher este duplo desafio: reconhecermo-nos na história do desenvolvimento das ciências e convivermos com todas as incertezas pertinentes à
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 213
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Arte, na busca de um maior sentido para as inquietações das atividades
artísticas e humanas.
Estas incertezas relativas à Arte têm trazido à tona uma realidade
complexa, permeada por uma série de mudanças operadas na concepção
de obra de Arte que se arrisca aqui apontar como um problema epistemológico. Deste modo, a pesquisa que dá origem a este artigo teve por objetivo contribuir para a reflexão dos artistas e pesquisadores de/em Artes,
sobre seu fazer e seu papel no contexto das mudanças que, no século XXI,
nos desafiam.
Pode-se constatar que o processo de inserção das Artes no campo
científico brasileiro se deu de forma concomitante ao processo de estruturação da comunidade de pesquisadores da área de Artes, observando
neste processo as relações que se estabeleceram como pano de fundo para
as pesquisas em Artes.
A pesquisa que realizamos teve como campo de investigação três instâncias essenciais: a CAPES e o CNPq, como organismos público-federais
que financiam, avaliam e organizam a pós-graduação e a pesquisa nacional;
as associações de pesquisadores de Artes (com especial foco na Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP) e os programas
de pós-graduação em Artes do Brasil. Do ponto de vista metodológico, tratou-se de uma pesquisa bibliográfico-documental, que analisou formas de
construção social, a partir de referências conceituais da sociologia, como a
concepção de campo científico, poder simbólico e habitus, de Pierre Bourdieu (2009); utilizando também autores da área de artes, tais como Zamboni (2008), Oliveira e Makowiecky (2008), e outros que, além de teóricos,
exerceram ou exercem liderança política para consolidar a área.
A problemática principal em análise relaciona-se com o processo de
construção da área, enquanto comunidade de pesquisadores e a inserção
legítima no campo científico: a caminhada, estruturação, lutas, conquistas, dificuldades e tendências. A pesquisa foi delineada a partir de vivências pessoais e profissionais da pesquisadora, observadas as dificuldades
de ser professora de Arte1 na Educação Básica, que muito embora não
1 Estabelecemos aqui uma relação com o trabalho de Oliveira, (2010), cuja dissertação de mestrado versa sobre a inserção dos graduados em Arte-Educação egressos da universidade local, no campo de trabalho, no caso,
nas escolas. Acompanhando seu trabalho de pesquisa e vivenciando as mesmas trajetórias, ficam claras as dificul-
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
sejam o foco do trabalho, tangenciam a problemática, haja vista que se
ocultam sob as linhas deste texto. A partir dos estudos realizados durante
o mestrado, no exercício da docência universitária e na participação de
nossa pequena comunidade de pós-graduação, foi tornando-se evidente
que a posição daquele que trabalha com Artes envolve resistência e luta
não só para que as portas se abram, mas também para que não se fechem,,
deixando-o do lado de fora.
Não obstante, quando delineamos nosso foco de pesquisa, ponderamos sobre os atores e o meio das Artes e que a produção artística aparece para estes em primeiro lugar e o ensino, em segundo. E a pesquisa? E a
produção científica? Por um lado, a produção artística não pode ser confundida com a produção científica. Por outro, se compararmos as práticas
artísticas com as educativas, constatamos que na educação não há nada
semelhante ao produzir arte. Há neste caso algo a mais.
Os educadores que estavam acostumados a ensinar, por exemplo,
caso passassem a pesquisar, tinham de fazer um esforço a mais e adotar
uma nova atitude. Mas, para os artistas, acostumados a fazer arte, ensinar
arte exige uma segunda postura, diferente da primeira. E pesquisar2, no
sentido acadêmico-científico, exige uma terceira posição.
Zordan (2011) criou a terminologia professorartista3 para designar
o artista que além de produzir arte, ensina arte. No caso da pesquisa científica há sempre pelo menos dois pertencimentos: o da área específica em
que a pesquisa se desenvolve e o da Ciência como campo e comunidade
de pesquisadores, que constitui um espaço comum para profissionais de
áreas diferentes, que, no entanto, têm um ofício comum: pesquisar.
Para o caso do artista parece haver um desdobramento quanto à inserção profissional. Pois, assim como no campo da pesquisa, também no
campo educacional não há um espaço garantido e legítimo para quem é
dades enfrentadas pelos professores de Arte para obter reconhecimento perante a comunidade de educadores e
valorização de seu trabalho pelos colegas de outras áreas. Conforme situa Oliveira, historicamente, a inclusão de
professores de Arte na escola não tem sido fácil. É um processo que exige dos professores de Arte uma vigilância
ou militância constante, no sentido de mostrar que seu trabalho contribui efetivamente para a formação de qualidade das crianças e jovens. Os educadores, de modo geral, não têm essa visão. Ela precisa ser construída e é, para o
professor de Artes que deseja trabalhar na escola, um trabalho extra, muito cansativo e desanimador.
2 Pesquisar em geral faz parte do fazer artístico, mas não no sentido teórico e acadêmico. Pesquisa de materiais, de técnicas, ferramentas, tecnologias etc.
3 Termo criado por Zordan busca ressignificar o papel do professor e dos artistas, tanto numa faculdade de
Educação como pelos artistas de um Instituto de Artes.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 215
Ana Maria Netto Machado (Org.)
da área de Artes. O espaço tem que ser conquistado por meio de lutas,
provas, demonstrações da validade das Artes.
Então as perguntas se sucederam: seria o artista e/ou o professor
de Artes duplamente marginalizado? Do campo da educação e também
do campo da ciência? Arte e Ciência estariam uma de costas para a outra?
Seu casamento seria litigioso? Ou sua incompatibilidade consentida?
Em meio a estes questionamentos não podemos esquecer que vivemos um momento histórico marcado por significativas mudanças nos
diferentes segmentos da sociedade, nas formas de vida e, também, em termos conceituais e metodológicos, transformações que muito têm desafiado o sentido e a compreensão das Artes e, sobretudo, da pesquisa em e
sobre Artes4.
Na avaliação de Zamboni (2008, p. 58) os problemas encontrados
para legitimar o espaço das Artes junto à comunidade científica brasileira
também se relacionam com uma dificuldade estrutural. Pois se trata “[...]
de uma área que sequer conhecia a si própria” (2008, p. 56). Para o autor, a
pesquisa em Arte tem como pano de fundo um problema de estruturação
metodológica e nas suas palavras: “Estava posta, então, uma grande questão,
que se debate até hoje: na realidade, o que é a pesquisa no fazer artístico?”.
Torna-se fato que as fronteiras da Arte hoje são difíceis de distinguir, pois se projetam nas tecnologias, numa hibridação de gêneros e
propostas variadas que muitas vezes aliam-se na criação de suas representações culturais, nos meios de comunicação, como também, em formas de visualidade geradas no cotidiano. Nesse sentido, Fusari e Ferraz
assinalam que,
[...] a arte está intimamente vinculada ao seu tempo, não podemos dizer que ela
se esgote em um único sentido ou função. É por isso que, ao buscarmos definições para a arte, podemos esbarrar em conceitos até contraditórios e que foram
incorporados pela cultura (FUSARI; FERRAZ, 2001, p.103).
4 Conforme apontamos como problemática, a inserção das Artes Visuais no sistema de pós-graduação brasileiro é recente, o que traduz novos parâmetros quanto ao entendimento e compreensão desta modalidade de
pesquisa. Autores como Zamboni (2001) e Cattani (2001) distinguem e fundamentam metodologicamente
os processos de investigação “sobre” Arte (considerando a obra pronta), da investigação “em” Artes (reflexão
sobre o processo da criação artística). Para estes autores, estas questões, se não tomadas de maneira apropriada,
geram certa dúvida e até confusão.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Para as autoras torna-se imprescindível no processo de compreensão da Arte refletir sobre os seus sentidos, funções e significados, em suas
múltiplas formas, tanto em nosso tempo quanto em outras épocas. Neste
sentido somos levados a historicizar, mesmo que brevemente os produtos
culturais e a Arte, que têm em comum a pesquisa, a indagação e a intuição, mas que necessitam ser postos em relação com as condições sociais às
quais as pesquisas se aplicam.
No processo de institucionalização da pesquisa em Artes, alguns
acontecimentos e datas são pertinentes para que se possa visualizar como
se insere a Arte no sistema universitário brasileiro e como deste decorre
o processo de pesquisa. De modo geral, a pesquisa em Artes no Brasil advém da denominação de Artes Plásticas5, tendo em seu início a influência estrangeira de Lévi-Strauss, Roger Bastide e Jean Maügué, professores
franceses que lecionavam em 1934 na recém aberta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Há que se considerar que o espaço
da USP abrigava a Arte pelo acesso à disciplina de História da Arte (em
caráter optativo) no Departamento de História – ECA/USP e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Por um longo período a comunidade artística aspirou a criar no
Brasil um instituto de Artes, o que trouxe alguns problemas, segundo Zanini (2008), em função da tendência da Academia à utilização de métodos
da história, por meio da disciplina de História da Arte. Conforme Zanini
(2008, p. 34), a Arte estava se “distanciando dos paradigmas de sua pesquisa e comunicação”. Nota-se também que, neste contexto acadêmico,
no rol de professores não havia a presença de artistas. Portanto uma das
implicações do contexto da época era a existência de pouquíssimos pesquisadores com formação específica no exterior, principalmente no que
tange às Artes Plásticas. Muitos artistas tinham formação no exterior, mas
não como pesquisadores em Artes.
5 A arte é designada por inúmeras nomenclaturas, tanto no espaço do ensino de Artes como currículo escolar quanto como nome de um campo rico em experiências práticas, porém diferentes nos conceitos que os
constituem. Fundada oficialmente em 1816 durante o Brasil Colônia como Belas Artes, prossegue em variadas
denominações: Desenho, Artes Aplicadas, Educação Artística, Expressão Plástica, Artes Plásticas, Arte-Educação. Atualmente, após as teorizações Segunda Guerra, que descrevem estarmos numa civilização de imagens,
o campo começa a ser designado por Artes Visuais. Desde sua inserção, sua história reflete as transformações
registradas pela história do Brasil.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Na falta de um departamento próprio, a disciplina que mais se aproximava do conhecimento específico permaneceu durante muito tempo
sendo a disciplina de História da Arte, cuja integração e ampliação ocorreu por intermédio da Escola de Comunicações Culturais – ECC/USP,
criada em 1966, logo, um pouco anterior à Escola de Comunicações e Artes – ECA/USP, que sob um diversificado rol de conhecimentos acresceu
iniciativas em torno do Cinema e das Artes Cênicas e, com maior desenvoltura, no curso de Educação Artística6 (1971).
Segundo Prado, em 1970 “a ECA-USP era um dos grandes centros
de produção e difusão de conhecimento, no Brasil e internacionalmente.
O modelo de pós-graduação com mestrado e doutorado, ainda único na
época, foi uma das referências iniciais em todo o país no campo das Artes”
(PRADO, 2009, s/p.).
Em termos históricos, Prado também elucida que a primeira pesquisa em Artes data de 1972, quando da criação do primeiro curso de
graduação em Educação Artística – ECA/USP. Em 1974 teve início o primeiro mestrado em Artes na ECA/USP e, em 1980, o primeiro doutorado
em Artes, também na ECA/USP (PRADO, 2009).
Por conseguinte, entre as décadas de 1970 e 1980, a área de Artes teve
um desempenho que pode ser considerado incipiente no meio acadêmico,
haja vista que os primeiros doutores em História da Arte, em Filosofia da
Arte ou em Estética haviam se formado havia várias décadas na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP (1934). Na área de Poéticas
Visuais, por exemplo, o primeiro título de doutor outorgado no Brasil data
do início de 1980, pela USP, ou seja, há apenas 30 anos. Se acrescentarmos
a estes dados que no mesmo contexto já encontrávamos as principais agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos (CNPq e CA6 O curso de Educação Artística teve seu início pela Lei Federal nº 5.692, que estabeleceu as Diretrizes e Bases
da Educação Nacional em 1971, dispondo da obrigatoriedade do ensino de Artes nas escolas primárias e secundárias (1º e 2º graus) no Brasil. Incorporada na educação escolar como atividade artística colocou ênfase no processo
expressivo e criativo (concepção humanística), muito embora seu currículo propusesse atividades voltadas à pedagogia tecnicista e profissionalização, de acordo com a concepção educacional que vigorava no país. O ensino da
arte era dessa forma centrado em técnicas e habilidades, se contornos fixos, causando a fragmentação do ensino.
Neste mesmo período, de forma informal, multiplicava-se o Movimento das Escolinhas de Arte, onde Augusto
Rodrigues tornou-se elemento fundamental no movimento Educação pela Arte – MEA, de 1948, inspirado nas
ideias de Herbert Read (1926), que enfatizavam a liberdade de expressão e educação dos sentidos. Estas variadas
formas de pensar o ensino da Arte e seu processo compuseram uma espécie de anemia teórica, apresentando
como resultados uma prática diluída e dicotomizada em seus fundamentos (FUSARI e FERAZ, 2001).
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
PES), ambas atuantes desde 1951, esta espera, em termos de qualificação e
produção de pesquisa, se quantificada, representa anos de distanciamento.
Conforme Machado (2005), a institucionalização da pesquisa na
universidade, por meio da estruturação de um sistema de pós-graduação
nacional é entretanto recente no Brasil. CAPES e CNPq foram fundados
há pouco mais de meio século. Mas há que se considerar que suas funções
eram bastante diferentes das atuais. O sistema de pós-graduação (stricto
sensu) tem em nosso país pouco mais de 40 anos e é só nos últimos 15
anos que seu impacto, em termos de produção científica, se tornou significativo. De modo que se pode pensar que as Artes estão defasadas, o que
de certa forma é um fato, porém o distanciamento no tempo não é tão
grande se compararmos com o sistema de pós-graduação de modo geral.
Sendo assim, o suposto atraso das Artes para institucionalizar a pesquisa e
a formação de uma comunidade científica na área tem que ser relativizado,
pois não é tão significativo como parece.
Todavia, durante a década 1980, houve significativas mudanças na
hierarquia política institucional do CNPq. Conforme Caixeta (2007),
diversas iniciativas7 foram promovidas para ampliar o número de áreas
pertencentes às Ciências Humanas e Sociais do CNPq, muito embora
houvesse por parte da comunidade científica das áreas exatas, uma grande
resistência, temendo-se o fato de que os recursos seriam então divididos
com mais uma área. No testemunho de Caixeta:
Houve grande resistência por parte da comunidade das ciências exatas, pois, já
estavam indignados com o crescimento das ciências Humanas e Sociais, mais ainda com a idéia de criação da área de Artes que para eles não poderia ser considerada ciência. Pelo contrário, era o contraponto da ciência – ‘arte é arte’(CAIXETA,
2007, p. 44).
No contexto histórico dos anos de 1980, além de as Artes enfrentarem junto aos órgãos de fomento, CNPq e CAPES, um preconceito
7 Nomes como Lynaldo Cavalcanti, então presidente do CNPq; Manoel Marcos Formiga, diretor da pasta
de Superintendência de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do CNPq; George Zarur, coordenador da
área de Ciências Humanas e Sociais e Silvio Zamboni, analista em C&T foram importantes para a aprovação
da área de Artes no CNPq, principalmente frente ao Conselho Consultivo de Ciências e Tecnologia – CCCT
(CAIXETA, 2007, p. 44).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 219
Ana Maria Netto Machado (Org.)
quanto a seu caráter científico, também sua participação no âmbito cultural encontrava-se afastada, de certa forma banida, pela conjuntura política
pela qual passou o Brasil nos movimentos políticos da época. Pouco vista
no interior das universidades, distanciada do conhecimento acadêmico,
sofrendo a rigidez do campo científico e exilada da cultura do país, a Arte
como campo artístico quase desaparece do cenário cultural brasileiro, em
anos de censura e exclusão. É claro que os artistas estavam presentes, mesmo quando exilados, de maneira indireta, encontrando formas de resistência e manifestação.
Porém o fato de não haver, no CNPq, uma representatividade da área
específica de Artes, dificultou a compreensão, por parte das demais áreas
com maior tradição, acerca da natureza da pesquisa científica em Artes. Em
parte, esta percepção é verdadeira, pois o CNPq, em meados dos anos de
1980, não dispunha de uma área de Artes e as pesquisas vinham avolumar o
número de trabalhos junto às Ciências Humanas e Sociais. Muitos trabalhos
chegavam ao CNPq, às vezes formulados fora dos padrões usuais predominantes nas áreas mais consolidadas, devido ao pouco conhecimento dos
procedimentos necessários para solicitar auxílio à referida agência. Também
porque em grande parte os solicitantes não respondiam ao perfil científico e
tecnológico atendido na época pelo CNPq, ou por falta de tradição e recursos humanos capacitados na área, o que acabou por determinar a precariedade inicial das atividades de pesquisa em Artes.
Esse fato chamou a atenção do corpo técnico e de dirigentes do
CNPq, entre eles Silvio Zamboni, funcionário técnico de Ciência e Tecnologia (C&T) que passou a dedicar-se à formação e criação da área de
Artes no CNPq. Conforme Zamboni (2008), havia o interesse em se criar
a área de Artes e ele traçou como meta estabelecer um trabalho de conscientização, de sensibilização e mobilização da comunidade artística por
meio de reuniões, nas variadas cidades do Brasil. Fora todo um trabalho
de promoção das Artes, inclusive nos programas de pós-graduação de
existentes na época.
A participação de Silvio Perini Zamboni tornou-se fundamental no
processo de conscientização da área de Artes junto à comunidade científica e artística em nosso país. Foi um dos personagens que articulou, junto
às comunidades científica, acadêmica e artística, o nascimento institu220
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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cional da pesquisa em Arte, preocupando-se ou ocupando-se com o seu
processo de consolidação, tanto com a inclusão da área de Artes junto ao
CNPq quanto com a fundação da Associação Nacional dos Pesquisadores
em Artes Plásticas – ANPAP.
Desta forma, a institucionalização do fomento às Artes, no âmbito
do CNPq e a criação de associações da comunidade científica e pesquisadores nas diversas subáreas das artes são fatos de importância decisiva no
desenvolvimento e reconhecimento da área, enquanto pesquisa. Um fato
que nos chama a atenção: a formação de Zamboni era na área da agricultura porém, sensibilizado pela pintura, a que se dedica em horas de lazer,
aproximou-se da área artística. Atualmente é reconhecido por suas exposições artísticas no experimento da fotografia.
Percebe-se o quão importante foram esta aproximação de Zamboni
à atividade artística e o empreendimento de uma gestão que interessou em
olhar as Artes como área a ser oficializada. Conforme explica Zamboni:
Quando fui convidado pelo CNPq para construir o embrião de uma área de artes,
esta não tinha existência oficial nem formal no conselho. Sua existência para o
órgão vinha embalada numa aura de clandestinidade. Não existia um espaço físico, uma pasta, uma rubrica sequer para receber as solicitações que lá chegassem
na época. Os raros projetos que por ali apareciam eram julgados por assessores
de outras áreas, normalmente por aqueles que, movidos talvez pela proximidade
de interesse ou por uma simpatia, aceitavam acolher o processo de examinar o
mérito (ZAMBONI, 2008, p.98).
Iniciava-se para Zamboni uma etapa que seria a criação de uma associação que respaldasse as pesquisas em Artes, para evitar que o campo artístico perdesse espaço no caminho ao reconhecimento e à especificidade. Segundo Zamboni (2008, p. 99) “Uma vez reconhecida a área,
entendi ser de proveito urgente embarcar na oficialidade recém admitida,
aproveitando a maré a nosso favor, para iniciar um trabalho digamos de
consolidação da área então fundada”. Na ideia de construir uma associação
que reunisse vozes e esforços dos pesquisadores, realizou-se uma primeira
reunião em Brasília, onde seria, mais tarde no mesmo ano de 1987, instaurada a fundação oficial da ANPAP.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 221
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Contudo, sendo a comunidade de Artes uma das últimas a se organizar como associação formal, muitos problemas apontados por Zamboni acompanharam sua implementação. Dentre eles, podemos destacar a
dificuldade de normatização das pesquisas que tratam do fazer artístico,
a subjetividade dos resultados das pesquisas em Artes, o baixo número
de profissionais titulados, a falta de critérios específicos para avaliação das
pesquisas, a falta de compreensão, por parte dos associados, sobre a função de uma associação de pesquisadores ou, conforme Zamboni (2008, p.
100), “a falta de politização dos pesquisadores da área”.
Para Zamboni, diante da consolidação da área no CNPq, e da fundação da ANPAP, permanece em aberto outra importante questão: o que
é pesquisa em Arte? Zamboni nos relata sobre o desafio enfrentado naquele momento:
O que é pesquisa, o que é boa pesquisa, o que não é boa pesquisa? Este foi o grande
desafio naquele momento determinado. Precisava de pesquisa. A demanda grande
não queria dizer nada, foi interessante até politicamente, para forçar a questão da
formação da área no CNPq. Agora, o que eu estava pretendendo lá era fazer uma
área, evidentemente, o mais séria possível. Uma área engatinhando na pesquisa. Os
artistas sempre foram muito atuantes, mas, na ciência e tecnologia, eram totalmente
despreparados, não sei se é esse o termo ideal, faltava um engajamento enquanto
uma classe de pesquisadores. Então, era fundamental você ter critérios, e os mais
claros, definidos e rígidos, possíveis, para você fazer daquela área nascente uma área
respeitável, do ponto de vista científico (ZAMBONI apud CAIXETA, 2007, p. 45).
A falta de politização da área e as necessidades de estabelecimento
de critérios adequados e diferenciados para as pesquisas em Arte apontados por Zamboni continuam constituindo-se em questões pertinentes
na ANPAP, assim como nos demais foros organizados de discussão entre as comunidades de pesquisadores em artes. Desta forma, o fato de
termos associações8 organizadas, produzindo conhecimento em Artes
8 Consideramos parte deste universo de construção da comunidade artística e científica na área de Artes um
conjunto de associações: a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, a ANPAP, desde 1986; e
no mesmo ano a Federação de Arte-educadores do Brasil (FAEB); bem como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM) em 1988 e a Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM)
em 1991; a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), por sua vez criada em 1998; e a Associação Nacional de Dança (ANDA) criada em 2008. Menção ao Grupo de Trabalho Arte
Educação da ANPEd é aqui oportuna.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
é o que vem representando um impulso considerável à organização das
comunidades artísticas, na produção de pesquisas e no fortalecimento
de programas de pós-graduação no país. Contribui também o fato da
área de Artes ter conseguido a inclusão formal junto ao CNPq, compartilhando o bloco Linguística, Letras e Artes, e passar também a ser
considerada pela CAPES, com destinação de editais específicos para fomento da pesquisa em Artes.
Quanto à CAPES e ao CNPq, os dois órgãos classificam os programas em nove grandes áreas, bem como são responsáveis pela distribuição
de programas e cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) nestas
áreas de conhecimento. Observa-se que aquela que inclui Artes (Linguística, Letras e Artes) é a que tem menor número de programas: 161 (o que
representa 5,4 % do total de programas brasileiros). Em contraste, vemos
que é grande a área das Ciências da Saúde, e a que tem maior número de
programas e cursos: 484 (três vezes mais e 16% do total de programas).
CURSOS RECOMENDADOS PELA CAPES
GRANDE ÁREA
Número de Programas
e Cursos de Pós-graduação
Total
1-CIÊNCIAS AGRÁRIAS
322
2-CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
237
3-CIÊNCIAS DA SAÚDE
484
4-CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA
278
5-CIÊNCIAS HUMANAS
406
6-CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS
376
7-ENGENHARIAS
328
8-LINGUISTICA, LETRAS E ARTES
161
9-MULTIDISCIPLINAR
336
EM TODAS AS ÁREAS
2.928
Quadro 1 - Número de programas e cursos de pós-graduação da grande área que inclui
Artes, em relação às demais áreas. Fonte: CAPES (2010)
Na apreciação de distribuição de PPGs por área de conhecimento,
é importante analisar certa desproporção entre as diferentes áreas, quanto
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 223
Ana Maria Netto Machado (Org.)
ao número de programas. Os dados revelam que este é um dos campos
onde a guerra por espaços, muitas vezes se faz valer numa confusão de discursos e leviandade de conceitos, expressos nas dificuldades em equilibrar
o reconhecimento de determinadas áreas.
Estes dados são significativos se os tomarmos relativamente, visto
que, no contexto dos 2.928 programas existentes em 2010 no Brasil, a
grande área de Linguística, Letras e Artes, conta somente com 161 programas. Neste sentido, as contribuições de Bourdieu (2009) apontam
para uma questão que consideramos ser pano de fundo para discutir as
relações de reconhecimento da ciência e a inserção da Arte na comunidade científica. Seus conceitos relativos aos processos de legitimação
social e dinâmica da autoridade científica são relevantes, sendo a noção
de campo social muito útil para analisar nosso objeto de pesquisa – a
pesquisa em Arte.
Bourdieu (2009) nos permite entender a tessitura das relações de
poder que estão em jogo neste campo, que não seria muito diferente do
que acontece em qualquer outro dos campos sociais. As diversas forças
(que poderiam ser áreas do conhecimento, por exemplo) entram em luta,
disputando por prestígio, espaço e recursos (formas de poder), a partir
de uma categoria específica de capital, presente na ciência, que é o capital
simbólico.
Para Bourdieu, o poder simbólico é um poder invisível, que está por
toda parte, sendo exercido por todos, com a cumplicidade daqueles que
tem consciência de que o exercem, mas também daqueles que não a têm
e nem estão interessados em saber nada disso. Para compreender o que
se passa em um dado campo social, torna-se fundamental perceber que
o poder está por toda parte, mas em geral velado, e é “necessário saber
descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente
ignorado, portanto reconhecido” (BOURDIEU, 2009, p. 07).
A compreensão das noções de campo social, habitus e capital simbólico, tal como desenvolvidos por Bourdieu, na obra O Poder Simbólico
(2009), oferecem recursos teóricos para abordar, de maneira bastante esclarecedora, como são reconhecidos (ou não) determinados campos, ou
áreas de conhecimento, como é o caso das Artes. A partir dos conceitos
desenvolvidos pelo autor, é possível compreender de que maneira a di224
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
nâmica dos diferentes grupos contribuiu, ao longo da história do conhecimento humano, para converter propriedades e características que têm
caráter social, quer dizer, que são construídas pelo movimento da história
e pelas relações entre os homens, como consequência de jogos de forças
entre pessoas e/ou instituições, em propriedades que assumem a aparência de uma ordem natural.
Isto quer dizer que passamos a considerar fatos sociais como se
fossem naturais, quando são de fato construções humanas. Esta transformação (de acontecimentos sociais em naturais) acontece ou se processa,
conforme teoriza Bourdieu, por meio da geração de valores e concepções
que, diante das contingências de cada época, influenciam sobremaneira o
modo de pensar das pessoas, suas maneiras de conceber o mundo e também de agir. De maneira específica, cada um destes campos se reveste de
conceitos e estruturas, criando jogos de linguagens que se tornam portadores de um determinado habitus, adaptado às exigências e necessidades
de funcionamento de cada campo. No caso desta pesquisa, interessou-nos
compreender especificamente como esse processo teorizado por Bourdieu vem se dando para a área de Artes no Brasil.
Atualmente, este cenário da pesquisa em Arte vem sedo ampliado:
a pós-graduação brasileira nesta área cresceu na última década, chegando a dimensões consideráveis, sobretudo quanto à formação de recursos
humanos qualificados e na implementação de novos cursos, consequentemente estimulando uma produção significativa de pesquisas.
Retomando os dados apontados na tabela dos cursos recomendados e reconhecidos pela CAPES anteriormente, o total de cursos de pósgraduação em Artes no Brasil é atualmente 54, compondo-se de 38 cursos
de mestrado e 16 cursos de doutorado, variando suas áreas de concentração entre Artes, Artes Visuais, Ciências da Arte e Cultura Visual, Música,
Artes Cênicas e Dança.
Cabe salientar que, no cômputo dos 38 programas de pós-graduação existentes atualmente na área de Artes, se divididos por áreas de concentração, obtemos 18 programas voltados às Artes Plásticas/Visuais, 13
para Música, 6 para Artes Cênicas e somente 1 para Dança. Também se
observa que o ensino da Artes está pouco presente nos programas, existindo apenas um curso com foco educacional. Trata-se do Programa de
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 225
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Artes Visuais da USP, cuja área de concentração abrange: Poéticas Visuais,
Teoria, Ensino e Aprendizagem da Arte.
De modo geral perpassa estes dados o problema da nomenclatura e
suas mudanças de Artes Plásticas para Artes Visuais e/ou Cultura Visual,
estabelecidas desde o nível de graduação. Também a cultura da Dança e
do Teatro requer ainda no Brasil um grande incremento, em termos de
reconhecimento cultural e de políticas públicas que viabilizem a consolidação destas áreas no país, em termos de pesquisa.
Hoje, mais do que nunca, a Arte e a Cultura se tornaram rentáveis e
geradoras de empregos, pois há demanda por profissionais cada vez mais
criativos e inovadores. Porém se faz uma ressalva sobre as contribuições
do campo da Arte, porque, atualmente, o mercado profissional oferece
uma gama enorme de opções e entre elas há muitas carreiras consideradas
novas, devido à evolução tecnológica, comportamental e à própria evolução do mundo industrializado.
Presentemente, é importante pensar nestas relações entre diferentes segmentos do mundo do trabalho sob forma de diálogo, pois a criatividade e, de forma geral, os conhecimentos do campo artístico, se tornam
importantes e necessários para o mercado industrial atual. No entanto,
estas aproximações, dependendo do entendimento que se tem, podem
contribuir mais ou menos ativamente no processo de desenvolvimento do
país. Para que a contribuição dos artistas pesquisadores seja considerada
necessária, adquirindo espaço relevante na agenda política e educacional
brasileira, é preciso que se instale a consciência necessária de que o desenvolvimento de um país inclui, necessariamente, pensar na dimensão
cultural, na elaboração de um projeto nacional de desenvolvimento humano, no qual a Arte tenha um papel significativo. E, enquanto formação
cultural, no Brasil, observa-se que tais concepções podem influenciar a
abertura de novos cursos/programas de Artes.
A pesquisa também revelou dados relativos à distribuição de programas de pós-graduação em Artes, de acordo com as regiões (no quadro
abaixo), instituições e áreas de concentração (ver Apêndice). Seguindo a
tendência das demais áreas, a região sudeste mantém quase um terço do
total de programas.
226
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
M
D
Total
Centro-Oeste
4
1
5
Nordeste
8
2
10
Norte
1
-
1
Sudeste
18
9
27
Sul
8
3
11
BRASIL:
39
16
54
Quadro 2 - Distribuição dos programas de pós-graduação em Artes por região.
Fonte: CAPES (2010)
De modo geral, os principais pontos de apoio para o desenvolvimento da pesquisa em Artes e a sua contribuição para a consolidação dos
programas de pós-graduação no país podem ser relacionados à atuação
da ANPAP, bem como ao trabalho desenvolvido pelas demais associações
de pesquisadores em Artes, incluindo-se as que vêm se constituindo mais
recentemente (como é o caso da –ANDA, em 2008, voltada a dança), pois
é nestes espaços que se desenvolve a produção, a pesquisa e a socialização
dos conhecimentos.
Consideramos que a participação dos programas de pós-graduação
na ANPAP resulta na reflexão sobre o que representa a pesquisa em Arte
para a comunidade acadêmica e científica. Isto porque, atualmente encontra-se vinculado à ANPAP o Fórum de Coordenadores de Pós-Graduação
em Arte, abrigando um espaço para discussões dos problemas e desenvolvimento dos programas de pós-graduação em Arte no Brasil. Estão
representados neste Fórum 19 programas, que desde 1991, se articulam
também com as representações de área da CAPES.
A opção da pesquisa em estender um olhar à ANPAP se deve à
constatação de que esta associação é atualmente uma articuladora entre
as áreas de Artes Plásticas e Visuais, e que, além de divulgar as pesquisas
em Artes, abriga discussões da produção dos programas de pós-graduação. Do mesmo modo, os números apontados nas últimas publicações dos
anais da ANPAP levam a crer que as pesquisas apresentadas neste fórum
são de fato um respaldo à formação de novos pesquisadores. Contudo
qual a difusão destes trabalhos na prática? Qual oportunidade de acesso
que tem um professor-pesquisador nesta associação?
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 227
Ana Maria Netto Machado (Org.)
A ANPAP, atualmente, vem acumulando um número expressivo
de trabalhos nos seus últimos anos (Anais), totalizando nos seus 19 encontros (até o ano de 2010) a publicação de 367 trabalhos, oriundos de
pesquisadores de 17 estados brasileiros, distribuídos nos cinco comitês:
1) Poéticas Artísticas, 2) História, Teoria e Crítica de Artes, 3) Curadoria,
4) Patrimônio, Conservação e Restauro e 5) Educação em Artes Visuais.
Em Oliveira e Makowiecky (2008) pudemos analisar os vários depoimentos dos ex-presidentes e representantes dos cinco comitês da ANPAP,
na forma de testemunhos históricos, envolvendo autocríticas de suas áreas
de pesquisa. Situamos um apanhado de fatores que foram decisivos para o
retardamento da pesquisa em Arte no Brasil, dentre eles: 1) o número insuficiente de profissionais titulados na área; 2) o restrito número de cursos de
mestrados e doutorados na área; 3) os poucos pesquisadores com formação
no exterior antes dos anos de 1970 e 1980; 4) a pouca identificação das Artes nas universidades; 5) a dificuldade para inserir as Artes na classificação
de áreas do CNPq; 6) as objeções das demais áreas quanto à aprovação de
uma nova área de pesquisa; 7) falta de consenso, fragilidade, desorganização e despolitização da comunidade artística, com relação à pesquisa; 8) os
raros projetos de solicitação de financiamento para pesquisa, enviados ao
CNPq; 9) a falta de critérios próprios de avaliação das pesquisas.
Atualmente, no CNPq, a comunidade artística busca definir suas
linhas de trabalho, critérios de julgamento e outros parâmetros para a legitimidade de suas atividades. Contudo não se pretende afirmar que em
termos de pesquisa em Artes os critérios sejam ou devam ser os mesmos
daqueles em uso para outras áreas. Entendemos que neste ponto é que
está todo o potencial da ANPAP. É provável que os problemas levantados
pela pesquisa em Artes difiram dos definidos para outras áreas, onde os
procedimentos de pesquisa são diferenciados entre os muitos campos de
conhecimento. Neste sentido, para Zamboni,
Em ciência são inúmeros e incontáveis os estudos que versam sobre metodologia científica. Para cada área científica existem proposições de modelos metodológicos que se diferenciam entre si, visando sempre em consideração as suas
especificidades. À medida que se caminha das áreas tidas como exatas para as
ciências humanas e sociais, vai se tornando mais difícil a utilização de parâmetros
228
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
quantificáveis, e se adentrando em metodologias mais complexas com resultados menos exatos. Possivelmente a arte é a área que está no fim dessa sequência
de subdivisões do conhecimento humano, onde é mais difícil qualquer possível
quantificação (ZAMBONI, 2001, p. 48).
Diante do contexto até aqui ilustrado, observamos que a comunidade artística teve, em dado momento, a necessidade de criar uma organização cujo objetivo consistiu e consiste em estabelecer parâmetros metodológicos de pesquisa no espaço acadêmico e científico. Estes parâmetros,
pensados diante da constatação da deficiência em se utilizar medidas científicas fundamentadas nas outras áreas, é o que nos permite hoje cogitar
sobre modos e acordos metodológicos condizentes com as especificidades de determinados campos artísticos.
Pois as diversas faces da arte, tais como criação, recepção, crítica e
ensino, podem ser pesquisadas em variadas disciplinas. Estas disciplinas encontram fundamentação em história da arte, teoria estética, filosofia da arte,
sociologia da arte, antropologia da arte, ensino da arte, análise do discurso,
semiótica, restauração e outros ramos do conhecimento que, de uma maneira ou outra, oportunizam uma reflexão sobre o fenômeno artístico.
Para Cattani (2001) e Zamboni (2001), as diversas disciplinas que
fundamentam as pesquisas nessa área, são denominadas como pesquisa
sobre Arte. Como forma de diferenciação, para os autores, a pesquisa em
Artes elabora-se sobre seu próprio objeto, o fazer, com ênfase ao processo
de criação. Segundo Zamboni (2001, p. 07) a pesquisa em Artes inclui
“pesquisas relacionadas com a criação artística, que se desenvolvem visando como resultante final a produção de uma obra de arte, e que são empreendidas, ipso facto, por um artista”, ou seja, estas duas definições envolvem
outra questão: quem pesquisa?
De modo geral, as pesquisas em Arte são feitas por artistas e estes
podem ser enquadrados, segundo Zamboni (2001, p. 59), em dois tipos:
o pesquisador e o não pesquisador (este último muito mais voltado a uma
pesquisa intuitiva). Ressalva o autor que, para que um trabalho artístico
possa ser considerado uma pesquisa em Arte, deve receber um tratamento
metodológico e a sua aplicabilidade deve seguir um conjunto de parâmetros, observadas suas particularidades – que, isoladas e definidas, poderão
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 229
Ana Maria Netto Machado (Org.)
contribuir para a definição dos fundamentos metodológicos básicos que
caracterizam a pesquisa em Artes (principalmente as pesquisas em Artes
Visuais). Ou seja, tais parâmetros e particularidades devem ser maleáveis,
mas, sobretudo, precisam ter, em si, certo rigor metodológico.
Não obstante, os paradigmas da pesquisa em Artes vêm se modificando nos últimos anos, buscando seu reconhecimento junto à comunidade científica, nas universidades, no CNPq, e nas associações de pesquisa. Não que os problemas postos estejam resolvidos por completo, mas se
apresentam de forma mais condizente com a produção de conhecimento
em Artes. Acreditamos que é diante das circunstâncias adversas que mais
se necessita de conhecimento do pesquisador, para com seu próprio universo de atuação, em que as inserções da Arte, cada vez mais amplas e confluentes, levantam a questão sobre os novos parâmetros de pesquisa em e
sobre Artes. Esses novos parâmetros vêm oferecendo importantes contribuições para o aprofundamento teórico e para a compreensão do que seja
uma pesquisa de arte, nos nossos dias.
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TOC TOC TOC! Eu quero entrar 231
PERFIL DO TRABALHADOR-ESTUDANTE
NO CONTEXTO DA UNIVERSALIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR
Marcia Cristine Araldi W.
É
relativamente recente, nos estudos brasileiros o interesse pelo estudante de Educação Superior. As pesquisas dedicadas a este setor
têm priorizado, no Brasil, temáticas ligadas à legislação, às políticas nacionais (e mais recentemente, às internacionais), aos programas
e processos de avaliação institucional (voltados para garantir a qualidade
da formação) e a aspectos da formação de professores e práticas gestoras.
O estudante da educação superior, como objeto ou sujeito de estudos e pesquisas, começa a aparecer nas publicações nacionais associado, sobretudo, aos processos de democratização das sociedades e ao reconhecimento (em nível mundial) do direito das populações ao acesso
à educação superior. Porém há indícios de que a temática ganha importância não só no Brasil como no mundo. Conforme Morosini (2010),
a tendência internacional para os próximos anos será a de priorizar os
estudos sobre o estudante1 que é, ou deveria ser, o personagem central
da formação superior, seu sentido. Neste artigo procuro caracterizar o
perfil do trabalhador-estudante de nível superior e discutir as condições
às quais está submetido no atual contexto de expansão e universalização
da educação superior.
Ao acompanhar os desenvolvimentos dos autores que se interessaram
pelo estudante, da educação superior, como objeto ou sujeito de pesquisa,
diversas são as terminologias que se referem a ele. Por exemplo, há aqueles
que utilizam a designação ou expressão específica trabalhador-estudante ou
estudante-trabalhador; os que focam o aluno do turno noturno; aqueles que
abordam o acesso, a permanência ou o abandono, ou ainda a evasão dos cursos; bem como os que procuram de alguma forma estabelecer o perfil dos
alunos de educação superior que estudam e trabalham.
1 Afirmação proferida na palestra encomendada pelo eixo temático Educação Superior da ANPEdSul
(2010).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 233
Ana Maria Netto Machado (Org.)
A Enciclopédia de Pedagogia Universitária (MOROSINI, 2006, p.
200) dedica um verbete ao sujeito desta pesquisa, que se encontra entre as
páginas sobre educação inclusiva. A expressão aparece como “estudantetrabalhador” e assim refere:
[...] denominação atribuída aos estudantes de cursos superiores que, além de estudarem, estão inseridos no mundo do trabalho. Via de regra são estudantes de
cursos noturnos, sobretudo de instituições particulares, pois são essas que oferecem o maior número de vagas nesse turno.
O texto mostra que esse estudante difere dos demais acadêmicos
que somente se dedicam à universidade e não necessitam custear seus próprios estudos, por estar no mundo do trabalho (BITTAR, 2006, p. 200) e
a ele se dedicar quase que integralmente. Aponta também que este jovem
teria pulado uma etapa de vida...
[...] ao ingressar no processo produtivo em idade mais precoce que a dos jovens
de camadas sociais mais privilegiadas do ponto de vista econômico, esse estudante não passou pela crise da adolescência, pois o trabalho o transforma em pessoa
adulta ao considerá-lo como um trabalhador qualquer, assumindo todas as responsabilidades inerentes a essa condição. Por já pertencer ao mundo do trabalho,
esse estudante já chega à universidade, nos cursos noturnos, impregnado das determinações do processo de produção: rotina, disciplina, burocracia, e submissão
às normas e regras estabelecidas (BITTAR, 2006, p. 200).
Gorz (apud BITTAR, 2006, p. 200), refere que o
[...] fato de estes trabalhadores freqüentarem cursos noturnos é sinal de uma aspiração de massa, isto é, fugir à condição operária voltando à escola. Mas essa
tentativa quase sempre acaba em fracasso, pois não há vínculo entre escola e fábrica, entre a necessidade de mudar a natureza e a organização do trabalho e o
que a escola ensina”.
Assim, “o estudante-trabalhador aliena-se em relação ao que fazer,
ao como fazer, ao que faz. O trabalho, que se poderia considerar como
234
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
espaço e tempo de realização pessoal, de formação integral, se transforma
numa atividade que é aceita como um mal necessário e inevitável” (PUCCI; OLIVEIRA; SGUISSARDI apud BITTAR, 2006, p. 200). O cansaço
físico e o desgaste diário desse estudante, acrescenta Bittar...
[...] conferem um sentimento de impotência ou até mesmo de descompromisso
com o aprofundamento dos estudos. Esses componentes, somados ao fato de que
em muitos casos o estudante não está matriculado no curso de sua preferência,
geram uma visão utilitarista do conhecimento, pois ele acredita ter sentido estudar somente aquilo que supostamente seria aplicável na vida prática do trabalho
(BITTAR, 2006, p. 201).
A síntese, elaborada nos verbetes da enciclopédia, integra diversos aspectos importantes que aprofundarei no desenrolar do artigo. A perspectiva
em que é descrito o trabalhador-estudante nestes verbetes vem ao encontro
de meus questionamentos, quando confirma a falta de aprofundamento do
olhar de educadores e de instituições, beirando ao descaso, pelo estudante da educação superior, principalmente pelo estudante que trabalha. Este
mesmo estudante que durante o ensino fundamental e médio é alvo de estudos e pesquisas de todas as naturezas. O fato de o verbete estar na sessão
dedicada à educação inclusiva, leva a perguntar: quem é este indivíduo para
o mundo da educação superior? Por que este sujeito não tem merecido o
mesmo tratamento científico que é dado aos demais alunos da educação em
geral? Pode este sujeito estar enredado em um sistema tal, em que sua permanência na obscuridade seja necessária para a manutenção deste mesmo
sistema? São questionamentos que permeiam minha investigação.
Macedo et al. (2005) observaram o ritmo e a intensidade das mudanças do mundo do trabalho, a evolução do conhecimento em todas as
áreas, a transformação da ciência e do saber em força produtiva, o surgimento contínuo de novas especialidades e a demanda permanente por
novos tipos de profissionais – mudanças marcadas pela flexibilidade e pela
interdisciplinaridade em níveis até há pouco tempo, afirmam os autores,
inimagináveis.
Eles revelam que se caminha, na sociedade contemporânea para
uma intensificação do processo de individualização, no qual as exigências
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 235
Ana Maria Netto Machado (Org.)
de qualificação2 postas para os trabalhadores – entre os quais está o indivíduo que trabalha e estuda – aumentam cada vez mais, transferindo para
cada indivíduo a responsabilidade (que é também do Estado, da Educação
e da sociedade como um todo), pela aquisição de competências. Consequentemente, também fica transferida para cada indivíduo a responsabilidade por seus fracassos e/ou sucessos.
No panorama evidenciado por Macedo et al. (2005), os pesquisadores assinalam um fator que considero relevante para minha pesquisa:
eles chamam a atenção para o crescimento de um segmento novo da população que seria formado por esses indivíduos que ao mesmo tempo trabalham e estudam: o trabalhador-estudante.
O trabalho como condicionante dos limites do estudo: um perfil do
trabalhador-estudante
Guimarães (2006), em sua dissertação intitulada TrabalhadoresEstudantes: Um olhar para o contexto da relação estudo, trabalho e ensino superior noturno, investigou esse sujeito do trabalho e do estudo e
constatou que, quando ele deseja estudar, é levado a buscar o ensino
pago. Afirma que, para ele, é o trabalho que fixa os limites do estudo e
que o ensino superior é procurado pelo trabalhador-estudante como
uma forma de ascensão social e financeira, além de se constituir em
uma procura de realização e valorização. As escolhas da instituição e
do curso são, entretanto, para Guimarães (2006), limitadas pelos mecanismos de controle presentes na sociedade. O estudo superior seria
um meio de ascender à categoria mais bem posicionada da classe trabalhadora. A autora investigou 102 acadêmicos de uma IES particular
de ensino noturno. Em suas conclusões salienta que o ensino superior
brasileiro continua “discriminatório”, pois “presenciamos uma democratização apenas relativa”, enfatiza Guimarães (2006, p. 64), “num
2 Este conjunto de considerações e razões leva a refletir sobre a mobilidade ocupacional nas sociedades contemporâneas como um processo ilegível. Tenho refletido sobre o fato de que tais procedimentos estão ligados
ao que Sennett (2003, p. 53-73), chama de “flexibilidade”, ou seja, o processo de ser ou se manter flexível, para
o autor, está baseado na argumentação de que na “nova ordem”, os indivíduos devem estar tolerantes à fragmentação e cuidar de obter por seus próprios méritos a condição de permanecer no sistema. Devem cuidar, isto é,
se responsabilizar por sua trajetória pessoal e profissional. A flexibilidade, para o autor, legitima o poder vigente
e o maior impacto deste processo advém sobre o caráter pessoal do sujeito desta nova ordem.
236
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
intrincado processo de estratificação vão se definindo instituições
diferentes para diferentes classes sociais, cursos nobres e cursos mais
populares, escolas diurnas e noturnas que sedimentam diferenças educacionais e sociais anteriores”.
Nosella (1998) contribui para compreensão de como é que se
chega à situação retratada por Guimarães (2006). Já em 1998 ele observava que este cenário do ensino superior encontra explicação na trajetória
sócio-histórica da escola brasileira e apontava que é a partir da década de
1930 que o chamado “populismo” se sobrepõe ao “elitismo” educacional, abrindo as portas da escola ao mundo do trabalho. Segundo Nosella
(1998, p. 173), “o populismo no âmbito educacional fez uma conciliação
conservadora entre as pobres escolas do faz-de-conta e as que adotam modelos pedagógicos arrojados, entre instituições universitárias de beira-deestrada e universidades de excelência”. Note-se que o populismo, conforme Nosella,
[...] ao ensinar aos trabalhadores e ao povo o caminho da escola, não se preocupou em que condições esse processo iria acontecer: o populismo não estabelece um critério médio, unitário e universal e para toda a nação; sua função é
cicatrizar a ferida social produzida pela manutenção da enorme desigualdade e
tensão entre o ponto máximo e o ínfimo. Assim, por exemplo, o populismo não
estabelece um nível de qualidade médio e geral para se ingressar no ensino superior, através de um vestibular único e universal, mas possibilita, sem maiores
problemas, a coexistência de vestibulares altamente competitivos com outros
meramente ilusórios, a enorme diferença existente entre as instituições universitárias brasileiras é escamoteada distribuindo-se diplomas de “igual” valor
burocrático (NOSELLA, 1998, p. 173).
Evidentemente, essa igualdade de faz de conta dos diplomas logo
fica desmascarada, quando da absorção dos titulados no mercado de trabalho, ficando evidente a estratificação das instituições e dos seus egressos, como visto acima com Guimarães (2006). Nosella (1998, p. 174) vai
mostrando as contradições presentes no ponto de encontro entre o trabalho e a formação superior, que muitas vezes assumem a característica de
paradoxos difíceis de esclarecer, dada a complexidade dos elementos enTOC TOC TOC! Eu quero entrar 237
Ana Maria Netto Machado (Org.)
volvidos. Na passagem seguinte, Nosella (1998) expõe as ambiguidades
presentes no processo de inclusão do trabalhador na educação superior.
Por um lado, o trabalho intelectual tem que se tornar menos exigente, para
que este novo aluno possa acompanhar e, ao mesmo tempo, descaracteriza o estudo como trabalho. Assim se expressa Nosella:
O populismo, ao “trazer ao colo” os trabalhadores mais simples, consagra
no inconsciente coletivo, os modelos de trabalho mais arcaicos, criando um
“anti-herói” sofrido, desqualificado. Fixa-se assim, a dicotomia entre trabalho
braçal (emprego simples ou até subemprego) e trabalho intelectual. Indiretamente, esvazia-se o trabalho intelectual de seu conteúdo duro, disciplinado,
muscular-nervoso, o estudo perde o sentido de trabalho e a disciplina externa
é considerada negativa. Aula e estudo não são propriamente trabalhos, estudar não é jornada de trabalho, é antes um não-trabalho. Assim, ter um emprego de dia e estudar à noite não representa propriamente uma dupla jornada
de trabalho, quando, na verdade, o estudo sério para quem está empregado é
um segundo trabalho ainda mais duro, com isso, no momento em que o mundo do trabalho entra na escola, o rigor científico se afasta dela (NOSELLA,
1998, p. 174).
Ao enquadrar dentro de políticas populistas este processo de inclusão de trabalhadores na educação superior, Nosella (1998) propõe um
alerta com relação às boas causas difundidas amplamente, no sentido da
democratização da educação superior. Pois, na verdade, não parece ser
exatamente a busca da justiça social o que levou a acolher este novo perfil
de estudante, mas sim as novas necessidades do mercado de trabalho, que
requer mão de obra instruída.
No contexto populista, descrito acima por Nosella (1998), o mundo do trabalho se aproxima do mundo da escola, mas os dois mundos não
parecem se integrar, e o efeito desta aproximação é a descaracterização do
padrão exigente da ciência. Vale a pena enfatizar e repetir a contundente
declaração do autor: “no momento em que o mundo do trabalho entra na
escola, o rigor científico se afasta dela”.
Segundo o autor, a entrada do mundo do trabalho nas escolas foi
positiva, mas é preciso observar que a massificação sem um adequado
238
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
acompanhamento por parte do Estado envolveu o trabalhador-estudante
em inúmeras modalidades escolares, com turnos e horários incompatíveis
com a qualidade do trabalho intelectual.
Para Nosella (1998, p. 174), a escola para o mundo do trabalho
tornou-se uma “escola do não-trabalho”, isto é, uma “escola do faz-deconta”. O autor entende, assim, que o currículo oculto3 ensina que se
pode estudar sem muito suar, que o trabalhador ao ter o privilégio de
estudar, mesmo à noite, foge do trabalho mal-pago, duro, braçal, rotineiro. “O populismo mistificou o trabalho intelectual, despojando-o de
toda ascese, pois encara a escola como um prolongamento dos cuidados
familiares, como uma proteção ao mais fraco, com uma atividade ligada mais à assistência social do que à produção científico-tecnológica”.
(NOSELLA, 1998, p. 174).
A partir destas concepções, o autor acredita que as aspirações populares para uma melhor formação profissional, técnica e humanista, foram
atendidas através de pacotes escolares noturnos, muitas vezes caros em tempo e dinheiro e muitas vezes fraudulentos, levando o Brasil a bater o recorde
mundial na modalidade de ensino noturno. Assim, indaga Nosella:
Mas, a quem interessa a dupla jornada de trabalho, a do estudo e a do emprego?
Menos tempo livre para o trabalhador, cultura de baixa qualidade, diploma desvalorizado, aumento da competitividade no acesso ao emprego, com pré-seleção
(triagem), efetivada pelos diplomas escolares? A quem interessa tudo isso? Se o
trabalhador completou a escolarização legalmente obrigatória, com que direito
exige-se dele outros diplomas? O diploma tornou-se um álibi para o baixo salário e uma motivação para o multiplicar-se dos cursos de baixa qualidade (NOSELLA, 1998, p. 176).
3 Fidalgo e Machado (2000, p. 85-86) referem que atualmente, o currículo é visto como um artefato cultural, à medida que traduz valores, pensamentos e perspectivas de uma determinada época ou sociedade, portanto o termo currículo oculto se refere aos conteúdos não escritos, mas presentes na educação escolar. E dizem
respeito às posturas adotadas por estudantes, professores e demais profissionais em suas relações entre si e com
a escola enquanto instituição. É o conjunto de normas e valores implícitos nas atividades escolares, porém não
mencionados. É constituído tanto de práticas quanto de mensagens não explicitadas e podem desenvolver nos
alunos a aceitação da hierarquia e do privilégio. Em política da educação, há pressuposição de que, em qualquer
tipo de educação formal, encontra-se o objetivo de socializar os alunos para os sistemas políticos e econômicos
específicos que estão no poder naquele momento. Tem-se, então, no currículo oculto, a “agenda secreta dos
sistemas educacionais formais; os contornos subtextuais da instrução”.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 239
Ana Maria Netto Machado (Org.)
Todos esses questionamentos, bem como a qualidade e a equidade4,
principalmente na educação superior, vêm sendo debatidos profundamente, por parte da sociedade e de pensadores da educação e expressam o declínio do processo de populismo educacional5. Para Nosella (1998, p. 181),
a expansão da escolarização pelos sistemas de ensino noturno, em todas as
modalidades que se apresentam, precisará ser repensada, já que, retomando
a expressão do autor, o estudo é “[...] um trabalho duro, muscular e nervoso,
sabe-se que é difícil um cidadão médio encaixar uma jornada de trabalho
intelectual sério com a jornada de emprego”. E complementa:
Ao afirmarmos que é difícil trabalharmos com qualidade 12/13 horas diárias, não
estamos dizendo que isso seja impossível, os empregos de hoje não são as fábricas
de ontem. Algumas horas noturnas (3 no máximo), por alguns dias da semana
(de 3 a 4) e com um método e currículo adequados, e bem dosados, podem ser
utilizadas: mas não é possível continuar a fingir que o dia e a noite se equivalem e
que o estudo não é trabalho (NOSELLA, 1998, p. 181).
Retomo agora a pesquisa de Guimarães (2006), que é mais recente
que o artigo de Nosella (1998), para dizer que também é rica em detalhes
e reveladora da complexidade do tema. A autora ocupa-se diretamente
das condições do aluno propriamente dito, de suas dificuldades, da atitude do professor em relação a este perfil de estudante que trabalha. Lendo
a passagem abaixo, percebe-se que a situação precária desse indivíduo é a
pequena ponta visível de um iceberg, e representa profundos e graves problemas das sociedades do início do século XXI:
No interior das instituições, as diferenças também aparecem, embora de forma
mais sutil, na condução do ensino voltado para um aluno ideal, na ausência de um
projeto político pedagógico construído em conjunto e que tenha clareza de objeti4 O entendimento sobre o que seja qualidade no contexto da educação superior tem sido amplamente debatido em reuniões internacionais como a Conferência Regional de Educação Superior da América Latina
e Caribe (CRES, 2008), que reuniu 4000 participantes, e antecedeu, em um ano, a Conferência Mundial de
Educação Superior, promovida pela UNESCO em Paris, em julho de 2009.
5 Esse caráter populista vai se transformando ou sendo substituído por um movimento que vem da cultura
democrática, dos direitos humanos, que gera a nomenclatura do acesso e depois da permanência, da educação superior como direito de todos. Em meu entendimento parece haver um resíduo que permanece na nova
versão, ela não apaga o populismo, nem os novos interesses em jogo. Minha pesquisa visa contribuir para o
entendimento dessas forças determinantes, que envolvem o sujeito pesquisado.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
vos e posicionamento diante da diversidade, na qualificação do corpo docente e até
mesmo no posicionamento do professor diante dos estudantes. A condescendência
do professor, diante das dificuldades do trabalhador-estudante, pode levar à discriminação; em contrapartida, defender que estes estudantes devem ter o mesmo
tratamento daqueles que possuem total disponibilidade para os estudos, sob uma
pretensa promoção de qualidade para todos, é assumir uma ideologia liberal, oferecendo tratamento igual para realidades muito distintas, deixando para os estudantes toda a responsabilidade sobre seu próprio sucesso (GUIMARÃES, 2006, p. 64).
Ou fracasso, caberia acrescentar. Esta passagem encontra-se em um
contexto no qual a autora se refere às condições objetivas que definem as
atitudes das famílias, dos professores, da escola, da comunidade. Nesse aspecto, as teorizações de Bourdieu (1998, p. 50) são esclarecedoras e vêm
ao encontro de meus questionamentos, sobretudo quando ele se refere ao
papel da transmissão do capital cultural, que seria decisivo para o sucesso
escolar, pois “define as condutas escolares e as atitudes diante da escola e o
prosseguimento dos estudos”. Para o autor:
O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e
tornou-se parte integrante da pessoa, um habitus. Aquele que o possui pagou com
sua própria pessoa e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo. Esse capital
pessoal não pode ser transmitido instantaneamente por doação ou transmissão
hereditária, por compra ou troca. Pode ser adquirido, no essencial, de maneira
dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condições primitivas
de aquisição (BOURDIEU, 1998, p. 74).
Assim sendo, Bourdieu (1998) atribui a responsabilidade pela
perpetuação das desigualdades sociais à instituição escolar e elucida os
mecanismos objetivos que determinam a eliminação contínua dos estudantes. Ele afirma que “cada família transmite a seus filhos, mais por vias
indiretas que diretas, certo capital cultural, e as atitudes das famílias dos
estudantes são a expressão do sistema de valores implícitos ou explícitos
que eles devem à sua posição pessoal” (BOURDIEU, 1998, p. 46). Utilizando este conceito, fica mais clara a passagem de Guimarães (2006)
acima, pois os estudantes originários das classes populares e médias não
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
contam com a mesma herança cultural que os de classes privilegiadas. Por
isto, um mesmo tratamento, como assinala Guimarães (2006), resulta em
discriminação. Mas, da mesma maneira, um tratamento condescendente,
resulta, como afirma Nosella (1998) em páginas anteriores, na distribuição de “diplomas de ‘igual’ valor burocrático”, o que caracteriza para este
autor uma formação ilusória. E pode ser considerado uma outra forma de
discriminação.
Então, a partir de Nosella (1998) e Guimarães (2006), pode-se
pensar que há dois pesos e duas medidas na formação superior, quando se
trata de trabalhadores-estudantes. Ou eles fracassam porque são julgados
segundo a escala de valores das classes privilegiadas, ou eles têm sucesso
em instituições que se afastaram do rigor acadêmico, e são, como diz Nosella (1998), de baixa qualidade. De uma ou outra forma, a discriminação
apontada por Guimarães (2006) estaria presente e, por trás dela, a injustiça, no sentido empregado por Dubet (2008) em O que é uma escola justa:
a escola das oportunidades. Este autor, que segue a tradição de Bourdieu e
Passeron (2008) desenvolve o que ele considera ser a ilusão da igualdade
de oportunidades, enfocando-a do ponto de vista dos direitos humanos e
da injustiça social. A imputação da responsabilidade pelo sucesso ou fracasso é uma injustiça social que fortalece, torna legítimas as desigualdades
sociais – esta é a ideologia liberal ou neoliberal.
Uma das conclusões a que chega Guimarães (2006) pode ser discutida. Partindo da consideração de que o ensino superior aumenta as chances dos indivíduos ocuparem melhores lugares na subdivisão da classe trabalhadora, a autora afirma que a busca do ensino superior estaria, cada vez
mais, identificando-se com a luta pela cidadania. Ao me deparar com essa
consideração da autora, defronto-me com o seguinte questionamento:
como poderia o trabalhador-estudante identificar-se com estas “lutas pela
cidadania” e participar delas se não possui tempo livre sequer para estudar,
como visto com Nosella (1998)? Que tempo teria para participar de movimentos estudantis, já que tem o dia ocupado com seu trabalho e o turno
da noite com aulas? É importante aqui indagar até que ponto a população
jovem brasileira estaria de fato reivindicando acesso à educação superior?
A bibliografia pertinente sugere que a ampliação de vagas e a massificação do acesso da população brasileira à educação superior, com o
242
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
aumento do número de IES particulares na última década e meia, e com
a expansão do sistema público federal de educação superior (REUNI)6
(muito recentemente), resulta muito mais de programas governamentais
(no caso do Brasil, programas do governo Luiz Inácio Lula da Silva, 20032010), alinhados com diretrizes de órgãos internacionais, como o BM,
OCDE e OMC (DIAS SOBRINHO, 2004) do que da reivindicação dos
movimentos de estudantes de ensino médio ou superior. É fato que alguns
dos documentos internacionais (CRES2008, FNES2009 e CMES2009)
estabelecem a educação superior como um direito universal, isto é, para
todos. Porém não há indícios de que tais definições, no caso da educação
superior, resultem predominantemente de movimentos sociais, ao menos
em nosso país.
Em contrapartida, as publicações em torno da temática da ampliação do acesso à educação superior indicam que os trabalhadores, jovens
ou nem tão jovens, estão sendo induzidos, ou até coagidos (NOSELLA,
1998; GUIMARÃES, 2006), a duplicar sua jornada de trabalho para garantir o que se vem chamando de empregabilidade (MOROSINI, 2001;
ROCHA, 2004), para manter as chances de ter um emprego, ou para simplesmente não ficarem à margem do mercado de trabalho.
A pesquisa de Guimarães (2006) revela a precariedade das condições do estudante que trabalha. Ocorre-me perguntar até que ponto as
condições a que estão submetidos os estudantes, objeto de nossa pesquisa, são de fato muito diferentes das de outros trabalhadores. As teorizações de autores como Antunes (2002), Sennett (2003), Frigotto (1994),
por exemplo, analisam a precariedade do trabalho de modo geral no contexto da fase atual do capitalismo contemporâneo, globalizado. Ao focar
o trabalhador-estudante, estes temas fundamentais e mais amplos constituem passagem obrigatória, pois, como aponta Rocha (2004, p. 160), “no
6 A expansão da educação superior conta com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais (REUNI), que tem como principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na
educação superior. Com o REUNI, o governo federal adotou uma série de medidas para retomar o crescimento
do ensino superior público, criando condições para que as universidades federais promovam a expansão física,
acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior. Os efeitos da iniciativa podem ser percebidos
pelos expressivos números da expansão, iniciada em 2003 e com previsão de conclusão até 2012. As ações do
programa contemplam o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos,
a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país. O REUNI foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e
é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 243
Ana Maria Netto Machado (Org.)
estágio da subsunção material, do mercado mundial realizado, a vida, o
trabalho e a formação se confundem. Fora do ambiente escolar, a subjetividade do discente passaria a outro segmento biográfico, experimentando
agora sua demanda produtiva como sujeito econômico”. Neste contexto,
entendo com Guimarães (2006) que o trabalho vem condicionando os
limites do estudo para o tipo de aluno que é objeto dessa pesquisa e este
vivencia com frequência uma condição de humilhação e de discriminação.
Outros estudos, como os de Nagai (2009) e Tombolato (2005) são
voltados para investigar a dimensão da saúde do indivíduo que trabalha de
dia e estuda no período noturno, o qual tem uma dupla jornada que afeta
seu cotidiano. Estes estudos mostram que, como consequência da carga
excessiva de trabalho (e estudo), estes sujeitos apresentam sonolência,
ansiedade e depressão, que interferem tanto no desempenho acadêmico
como no trabalho.
Parece importante confrontá-los com alguns aspectos levantados
por Guimarães (2006), comentados acima, em especial dois deles. Em
primeiro lugar, estes estudantes estão longe de enquadrar-se no perfil de
um aluno ideal ou idealizado: trata-se de um aluno real, cujo cotidiano
é precário, e é um aluno sem tempo e sem saúde (ou melhor, com saúde
frágil). E, em segundo lugar, os professores que se deparam com estes
estudantes na sala de aula oscilam, como afirma Guimarães (2006, p.
64), entre ser condescendentes (ter pena do aluno porque está cansado, mal alimentado, com sono, doente etc., aceitando seu desempenho,
que muitas vezes é medíocre, e validando-o), ou ser exigente, tratando-o
igualmente ao aluno que só estuda, e neste caso avaliando-o como um
aluno fraco. De uma ou outra forma, a discriminação e a injustiça estão presentes, como visto acima, a partir das considerações de Nosella
(1998) e Dubet (2008).
Outra forma de abordar o trabalhador-estudante é praticada por
alguns autores tomando como objeto o estudante de ensino noturno.
Guimarães (2006, p. 65), recuperando a história dos estudos sobre o estudante que trabalha, narra que os primeiros estudos a respeito do ensino
noturno e seus estudantes abordavam o ensino público fundamental e médio. A maioria das pesquisas produzidas sobre esse nível de ensino aponta
para as dificuldades das escolas em atender às necessidades educacionais
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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desses estudantes que chegam cansados devido ao trabalho desenvolvido
durante o dia, com fome, falta de tempo e de motivação para os estudos.
Uma pesquisa sobre o estudante noturno no ensino médio foi realizada por Viana (1997), intitulada As condições de trabalho e estudo do
trabalhador-aluno: uma questão de vida e luta. A autora analisa o conhecimento, a compreensão e a expectativa do trabalhador-aluno com relação à escola e a sua condição como tal. Ela aplicou um questionário a 234
alunos do ensino médio noturno, que revelou o seguinte: estudar à noite
é para estes estudantes a única via de qualificação para melhorar a sua situação no trabalho e enfrentar as dificuldades que se lhes apresentam, como
por exemplo falta de emprego, baixa remuneração, péssimas condições de
trabalho e de sobrevivência. Neste caso, segundo a autora, para estes trabalhadores-alunos, a escola passa a ter uma importância secundária, pois
eles não dispõem de tempo para estudar. “Este aluno, além do índice de
reprovação pela falta de base e de estudo, eleva o índice de evasão detectado no sistema escolar, pela dificuldade de conciliar estudo e trabalho, pois
o trabalho é sua prioridade de vida” (VIANA, 1997, p. 167).
A pesquisa considerou significativos: o cansaço, a falta de tempo
para estudar, as condições de funcionamento da escola, a falta de professores, o intenso absenteísmo e a péssima qualidade do ensino. Viana (1997,
p. 173) concluiu que “o trabalhador-aluno não faz parte de um projeto
político-educacional voltado para sua realidade”. Apesar de seu estudo
remontar há mais de uma década, cabe perguntar se tem havido efetivos
avanços nas políticas voltadas para este tipo de aluno, que, em 2010, representou um número muito maior do que na época do estudo de Viana
(1997), sobretudo na educação superior7.
É importante pensar também que, assim como as instituições de
ensino superior são diversificadas em seus modelos, os estudantes que trabalham também não podem ser tratados de maneira genérica. Suas condições e características variam conforme seus contextos e vivências, enquanto trabalhadores, estudantes e cidadãos, e dependem de uma série de
fatores que requer estudo e sistematização. Desta forma, é compreensível
7 De fato, é somente a partir de programas como PROUNI e ENEM que implementações voltadas para
o tipo de aluno estudado por Viana (1997) podem ser observadas. Mas é importante destacar que as implementações começaram pela educação superior e é por essa via que a qualidade do ensino médio e da educação
básica pública, em geral, começa a ser atendida.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 245
Ana Maria Netto Machado (Org.)
que se façam diferentes leituras sobre esses sujeitos e suas circunstâncias
escolares, econômicas, psicológicas e sociais.
Terribili Filho e Quaglio (2005) dedicaram-se a descrever as dificuldades encontradas no dia a dia dos estudantes-trabalhadores do ensino
superior noturno. Sua pesquisa foi realizada com 166 estudantes, de duas
instituições privadas, e revelou alguns aspectos do entorno educacional,
relativos aos transportes, trânsito, segurança pública e condições de alimentação, mostrando o impacto destes elementos cotidianos na condição físico-psíquica dos alunos e no seu desempenho no processo ensinoaprendizagem. Constataram que, em decorrência desses fatores, aqueles
alunos frequentemente chegavam atrasados ou perdiam aulas e provas.
O fator ‘estar bem disposto fisicamente’ foi apontado por esse estudo como sendo o mais relevante entre os itens não relacionados à sala de
aula, que têm uma forte relação com o entorno educacional e o impacto
no desempenho estudantil. Diante da situação vivenciada pelos estudantes, cabe perguntar: teriam eles condições de usufruir adequadamente da
educação superior?
Parece bastante claro que eles estão em situação de desvantagem
com relação aos alunos que se dedicam exclusivamente aos estudos (tradicionalmente os filhos das classes favorecidas, uma elite oriunda de famílias
de classe média ou alta). E mais, talvez se possa pensar em dupla desvantagem desses alunos: a primeira, uma desvantagem atual, descrita pelas
pesquisas recém-citadas, e a segunda referente ao passado desses alunos,
sua herança cultural, como referi anteriormente a partir de Bourdieu
(1998, p. 52). Via de regra eles não contam com uma bagagem cultural
vinda da família. Há indícios de que muitos indivíduos que compõem a
maioria de alunos trabalhadores que frequenta as IES privadas8 são os primeiros membros de sua família a ingressarem em uma formação superior
(ZAGO, 2006).
8 Os números divulgados pelo último censo do INEP (2008) demonstram uma evolução nesse quadro. Em
2008, 62,6 % do total de alunos matriculados no ensino superior, frequentavam o turno noturno. Nas instituições públicas, 37,7% dos alunos frequentavam o curso à noite. No ensino privado, este percentual mostrava-se
mais expressivo, alcançando a marca de 70,9%. Em 2002, havia 1.627.016 estudantes no ensino noturno privado e em 2008, 2.698.829. Nas IES públicas em 2008 havia apenas 480.784 estudantes no ensino noturno.
Estes números sugerem que são principalmente as IES privadas as que estão dando acesso aos estudantes que
precisam trabalhar para cursar formação superior. De modo geral estudam a noite aqueles que não podem
estudar de dia por ocupar o dia trabalhando.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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Trata-se, portanto, de um novo tipo de aluno ao qual a universidade
tradicional (fortemente seletiva) não estava acostumada. É preciso também dizer que, até pouco tempo atrás9 não eram as universidades tradicionais brasileiras, as públicas, aquelas que acolhiam estes novos alunos, uma
vez que o ingresso se dava por meio de exames vestibulares exigentes, que
representam uma barreira intransponível para esse perfil aqui estudado.
Esta situação começa a modificar-se, nos últimos anos, a partir das novas
políticas governamentais, por meio de programas como o ENEM10, que
criaram uma nova forma de ingresso para os estudantes oriundos de escolas públicas, nas universidades públicas federais.
Furlani (2001) trabalhou em seu livro intitulado A claridade da
noite: os alunos do ensino superior particular noturno, com uma perspectiva que expõe a realidade do estudante do ensino superior noturno que
participa do mundo do trabalho. A autora mostra que os estudos sobre
este tema são extremamente relevantes no contexto atual brasileiro, mas
são ainda pouco considerados pela academia, havendo muitas lacunas e
questionamentos a serem compreendidos sobre o assunto. Os estudantes
do ensino superior noturno, segundo o estudo que realizou em 1997 com
696 alunos, não encontravam alternativa para efetivar a escolaridade e a
formação, já que o sistema educacional e as políticas públicas e sociais não
ofereciam opções a esse tipo de estudante; 13 anos depois, esta realidade
mudou e diversas alternativas vêm sendo implementadas. Porém ainda se
constituem em novidade e a sua avaliação ainda requer bastante atenção,
haja vista os dados trazidos pela autora:
[...] Em nosso estudo, os alunos das universidades santistas (representativos do
macrocosmo universitário brasileiro) são jovens, na maioria dos cursos. Mas nas
salas de aula noturnas encontraremos, também, os mais maduros, principalmente em algumas carreiras, a maioria delas não tão valorizadas, com menos procura
9 Segundo Morosini (2006), ao tratar do sistema de vagas para populações racial e socialmente discriminadas, em 2001, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF), foi aprovada a primeira lei no Brasil instituindo a política de cotas para negros: a Lei
3.708, que determinou que 40% das vagas oferecidas para os cursos de graduação fossem destinadas a negros e
pardos, dando início a uma série de adesões por parte de IES.
10 Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), tem o objetivo de avaliar o desempenho
do estudante ao fim da escolaridade básica. O ENEM é utilizado como critério de seleção para os estudantes
que pretendem concorrer a uma bolsa no ProUni. Disponível em <http://www.enem.inep.gov.br/enem>
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
(em reduzida escala encontrá-los-emos nas mais disputadas). [...] Apesar de uma
maioria solteira, sem filhos, grande parte é trabalhador-estudante, perfil que lhe
acarreta grandes responsabilidades e dependência total de seu trabalho, já que sua
contribuição econômica para a família é primordial. A face trabalhadora é constituinte de sua identidade, pois, somente 26 dos 696 respondentes dos questionários
nunca trabalharam e a maioria começou cedo, entre 16 e 20 anos. [...] A trajetória
da educação básica para a média dos alunos se deu em escolas públicas diurnas e
noturnas, sendo o período da noite freqüentado mais a partir do ensino médio,
quando muitos se iniciam no trabalho. [...] Os alunos pertencem à mesma classe
que a de seus pais: a média baixa; seus pais, em grande parte, têm, no máximo, primário (fundamental incompleto). [...] A jornada de 44 horas semanais é cumprida
por metade dos pesquisados; essa mesma proporção de respondentes dorme pouco, alimentam-se mal, alguns fazem deslocamentos interurbanos, possuindo pouco
ou quase nenhum tempo para estudo. [...] Apesar da dura realidade para conciliar
trabalho e estudo, negam esse conflito e nem sempre o percebem como derivado de
conjunturas sociais objetivas, presentes na tensão que ocorre em seu cotidiano, no
choque entre itinerário passado e planos de futuro (FURLANI, 2001, p. 154-156).
A pesquisa de Viana (1997), referida anteriormente, deixa claro o
seguinte problema: a relação idade/série frequentada pelos alunos pesquisados mostra que 92% dos estudantes do então terceiro ano do ensino
médio estavam, à época da pesquisa, com idades entre 18 e 32 anos, isto
é, defasados com relação à idade esperada para cursar esse nível de estudo.
Para Viana:
[...] este dado caracteriza e reforça uma situação que tem raízes na divisão de
classes, na qual o aluno privilegiado pela sua classe social tem todas as condições
favoráveis de se dedicar exclusivamente à escola (em geral particular), concluindo seus estudos, a nível médio, dentro da faixa etária de 17 e 18 anos, considerada
‘ideal’ pela escola e pelos órgãos governamentais responsáveis pelo ensino (VIANA, 1997, p. 167).
Segundo a autora, tal situação é incompatível com a realidade do
trabalhador-estudante que, por sua condição socioeconômica, necessita
trabalhar para sobreviver. Segundo os dados disponibilizados pelo INEP
(2008), havia no Brasil em 1997 um total de 2.985.137 estudantes matri248
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
culados em cursos de graduação, o que representava 5,7% da população
do país. Considerando-se a faixa etária esperada para cursar formação superior, entre 18 e 24, em 2008, 9% da população neste intervalo de idade
frequenta este nível de ensino. Apesar da elevação do percentual, trata-se,
ainda, de um dos percentuais mais baixos do mundo, mesmo entre os países da América Latina (INEP, 2008).
Antes da implementação das novas oportunidades de estudo superior em IES públicas, a literatura vinha mostrando o paradoxo instalado no
Brasil: as vagas em universidades públicas sendo ocupadas por jovens das
classes privilegiadas, que tinham garantido pela origem familiar o “capital
cultural” (BOURDIEU, 1998) necessário para ingressar por meio de vestibular nestas instituições e usufruir da gratuidade, mesmo sem precisar dela;
enquanto os jovens de classes desfavorecidas trabalhavam para custear seus
estudos em IES privadas, ocupando parte das 2.641.099 de vagas11 oferecidas em 2008 por estas IES (aumento de 4% em relação a 2007). Não é
então a população de baixa renda a que vinha beneficiando-se da educação
superior pública brasileira, embora ela fosse aquela que dependeria essencialmente das IES públicas para a sua formação! Também os trabalhos de
Macedo et al. (2005), Silva Jr. e Sguissardi (2001) e Trindade (1999) mostram que a universidade pública brasileira tem sido extremamente seletiva,
favorecendo basicamente os jovens de classe média e alta.
O panorama delineado pelos pesquisadores até aqui revela o que se
conhece sobre o trabalhador-estudante da educação superior, suas condutas, seu cotidiano, a dificuldade de conciliar estudo e trabalho, as dificuldades de concluir os cursos iniciados, questões que trazem à tona discussões
que permitem conhecer aspectos das consequências das desigualdades
presentes na educação superior.
Acesso, permanência, evasão e abandono: a complexa equação
“universalizar com qualidade”
Quanto ao acesso, permanência, evasão e abandono dos estudantes
no ensino superior, pesquisas recentes discutem as articulações e contra11 Some-se ainda a estas vagas as 463.969 vagas ofertadas em 2008 em cursos de Educação Tecnológica, que
aumentaram 17,8% com relação a 2007. As IES privadas são responsáveis por 94% dessas vagas (INEP, 2008).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 249
Ana Maria Netto Machado (Org.)
dições entre uma maior demanda da população brasileira pela elevação
do nível escolar e as políticas governamentais de inclusão no sistema da
educação superior. Catani, Hey e Gilioli (2006), em seu artigo intitulado PROUNI: democratização do acesso às Instituições de Ensino Superior,
analisam em que medida o PROUNI12 seria um instrumento efetivo de
democratização da educação superior no Brasil, indagando se ele não seria
um mero dispositivo de estímulo à expansão das IES privadas, movido
por interesses outros que os educacionais. Os autores analisam a trajetória
desse programa social, desde a primeira proposta apresentada até a lei que
o sancionou (janeiro de 2005), bem como os desenvolvimentos posteriores a ela. Neste processo, segundo os pesquisadores, o governo Luiz Inácio
Lula da Silva cedeu à maioria das reivindicações feitas pelo lobby das IES
privadas. Apesar de induzi-las a oferecer bolsas a estudantes de baixa renda em troca de isenções fiscais, o PROUNI estaria priorizando apenas o
acesso destes estudantes à educação superior, sem, no entanto, garantir a
sua permanência.
A “reforma universitária do governo Lula envolve uma série de discussões e propostas, sendo o PROUNI anunciado como carro-chefe na
democratização da educação superior brasileira” (CATANI; HEY; GILIOLI, 2006, p. 126). No entanto, desde o anúncio de que o Projeto de
Lei seria encaminhado ao Parlamento (13.05.2004) até a versão definitiva
da Lei (Lei n. 11.096, de 13.01.2005), ela sofreu diversas alterações, influenciadas por pressões e interesses das IES particulares e beneficiadas.
Assim, “o parco teor cidadão do PROUNI, manifesto quando do lançamento da proposta, foi ainda mais restringido, pois os benefícios e a sua
amplitude foram reduzidos. Representou, também, um estímulo à ampliação das IES privadas” (CATANI; HEY; GILIOLI, 2006, p. 126). Em seu
artigo, os autores salientam ainda que o PROUNI promove uma política
pública de acesso à educação superior, mas, como dito acima, pouco se
preocupa com a permanência do estudante, elemento fundamental para a
12 Segundo Catani, Hey, e Gilioli (2006, p. 126), o princípio do ProUni segue essa orientação: promove o
acesso à educação superior com baixo custo para o governo, isto é, se trata de uma engenharia administrativa
que equilibra o impacto popular, atendendo às demandas do setor privado e à regulação das contas do Estado,
cumprindo a meta do Plano Nacional de Educação (PNE - Lei nº 10.172/2001) de aumentar a proporção de
jovens, entre 18 e 24 anos, matriculados em curso superior para os 30% programados até 2010. Pretende, ainda, atender ao aumento da demanda por acesso à educação superior, valendo-se da alta ociosidade do ensino
superior privado (35% das vagas em 2002, 42% em 2003 e 49,5% em 2004).
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TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
democratização desse nível de formação. O programa orienta-se por uma
concepção de assistência social, oferecendo benefícios e não direitos aos
bolsistas. “Os cursos superiores ofertados nas IES privadas e filantrópicas
são, em sua maioria, de qualidade13 questionável e voltada às demandas
imediatas do mercado” (CATANI; HEY; GILIOLI, 2006, p. 126).
Ao considerar o PROUNI como uma política de cunho assistencialista, em oposição à ideia de outorgar direitos aos cidadãos, Catani, Hey e
Gilioli (2006) ajudam a entender a contradição que assinalamos em uma
das considerações de Guimarães (2006), quando ela afirma que a busca
por educação superior, além de aumentar a chance dos indivíduos ocuparem melhores postos de trabalho, poderia, também, identificar-se com
uma forma de luta pela cidadania. Conforme o trio de autores, no caso
do PROUNI foi uma das estratégias utilizadas pelo governo para ampliar
o acesso à educação superior das populações economicamente carentes;
mas, na medida em que foi negociado com os interesses dos setores privados, não teria o caráter de um direito conquistado por meio de lutas
cidadãs. Estes argumentos mostram que o PROUNI foi uma concessão
de cima para baixo e não tanto o resultado de lutas das bases. De todas as
formas, Guimarães (2006) não se referia ao PROUNI especificamente.
Porém a questão continua polêmica e complexa.
Outro estudo que trata do acesso ao ensino superior (mas não enfoca a questão da permanência) é o de Pinto (2004), que trabalhou com
base nos indicadores da educação superior produzidos pelo INEP, o IBGE
e a UNESCO, analisando a situação do acesso à educação superior no Brasil nos últimos 40 anos. O autor considerou as diferenças nas matrículas
e a oferta de vagas, o perfil dos concluintes e a qualificação dos docentes.
Comparando seus achados – obtidos a partir dos indicadores da taxa de
escolarização e do grau de privatização do setor no Brasil – com dados de
outros países da América Latina e do mundo, revelou que, embora, desde
a década de 1960, a política do governo federal tenha sido a de ampliar as
vagas pela via da privatização, a Taxa de Escolarização Bruta, na Educação
Superior do país, continua sendo uma das mais baixas da América Latina.
13 Em artigo sobre as Universidades Comunitárias, Machado (2009) analisa a necessidade de se distinguir
esse perfil de IES, presente nos estados de SC e RS, das IES particulares; no artigo oferece evidências da qualidade da formação ofertada nestas instituições, que além de não serem lucrativas, visam ao desenvolvimento
regional.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
Isto apesar do grau de privatização da educação superior ser um dos mais
altos do mundo. Este raciocínio tende a mostrar que esta forma de expansão, por meio da privatização, não teria sido uma solução eficaz, apesar da
propaganda em seu favor.
Segundo Pinto (2004), “o resultado deste processo foi uma grande
elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos mais concorridos e
nas instituições privadas14, onde é muito pequena a presença de afro-descendentes e de pobres” (PINTO, 2004). As propostas apresentadas até
muito recentemente15 pelo MEC vinham sendo orientadas pelo princípio
de expansão de vagas, sem recursos adicionais, no setor público, e subsídios ao setor privado, em troca de bolsas de estudo.
Catani, Hey e Gilioli (2006), como também Zago (2006), compartilham desta crítica feita por Pinto (2004). Para democratizar o perfil dos
alunos propõem-se também cotas, tanto no setor público quanto no privado. Porém, para Catani, Hey e Gilioli (2006), as medidas são paliativas,
pois não enfrentam a questão central – a solução seria a expansão do setor
público sem perda de qualidade16. Este é provavelmente o problema mais
difícil de ser resolvido na atual conjuntura: como universalizar o acesso à
educação superior com qualidade? Como garantir a qualidade da formação superior de maneira equivalente para os diferentes perfis de estudante,
cujas necessidades são, em alguns casos, especiais? E o que se deve considerar como qualidade? A equação, universalizar com qualidade, não têm
solução fácil e vem sendo alvo de muito interesse e discussão no mundo
todo, seja nos países mais desenvolvidos, como os da União Europeia, seja
nos emergentes da América Latina ou da Ásia.
Quando se trata do problema do acesso à educação superior, conhecer o perfil dos novos estudantes que nela ingressam em grandes
massas (massificação) torna-se cada vez mais relevante, e minha pesquisa
14 Alguns dos resultados obtidos por Pinto (2004) contrariam outros estudos, quanto à presença de alunos
de classes pobres em IES privadas. É fato que ele se refere aos cursos mais concorridos e esta pode ser uma
explicação para que a sua afirmação não seja exatamente contraditória com relação às demais pesquisas examinadas.
15 É preciso considerar as iniciativas dos últimos anos que se concretizaram, sobretudo a partir de 2009,
com a criação de IFETS, novas universidades federais etc., com efetiva ampliação de vagas públicas no ensino
superior com a implementação do REUNI.
16 Ao refletir-se com seriedade sobre a questão, parece claro que esta meta requer décadas para ser atingida,
considerando-se a curta história da educação superior brasileira e também seu caráter elitista, que acompanha
a história da instituição universidade no mundo ocidental.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
toma o problema como meta. Zago (2006, p. 03), por exemplo, realizou
uma pesquisa de grande importância para o tema em questão. Ela estudou
os percursos de estudantes universitários de camadas populares, e investigou as produções elaboradas nos últimos anos sobre o que denominou de
“trajetórias excepcionais”. Trata-se de uma linha de pesquisa inovadora, já
que é relativamente recente o interesse pelos casos que fogem à tendência
dominante, voltada para o chamado fracasso escolar nestes meios sociais.
A autora descobriu que não basta ter acesso ao ensino superior. Do seu
ponto de vista,
[...] torna-se redutor considerar indiscriminadamente os casos de estudantes que
têm acesso ao ensino superior como de sucesso escolar, termo esse que representa o acesso, ou vai além para definir tanto a chamada escolha pelo tipo de curso
quanto as condições de inserção, ou seja, de sobrevivência no sistema de ensino
(ZAGO, 2006, p. 4).
Ao combinar uma análise crítica sobre as formas de inserção na
universidade com a mobilidade do estudante, ou seja, suas preocupações
e práticas, foi possível desnaturalizar a categoria estudante e, ao mesmo
tempo, mostrar as contradições entre o aumento da demanda por educação superior (elevação do nível escolar) e as políticas de acesso no sistema de ensino. A análise do material levantado por Zago (2006) serviu de
pano de fundo para a segunda etapa da sua pesquisa, que teve por objetivo
conhecer, para além do acesso, as condições de permanência destes alunos no ensino superior, bem como as estratégias de investimento adotadas
ante a realidade do estudante e a exigência do curso.
Para a autora, a desigualdade de oportunidades de acesso ao ensino
superior é construída de forma contínua, durante toda a história escolar
dos candidatos. Zago (2006, p. 5) salienta: “nota-se, com certa frequência,
que quando a previsão do fracasso não se confirma e o estudante é aprovado no primeiro vestibular, ou mesmo após outras tentativas frustradas,
não raro ele duvida de sua capacidade e atribui o resultado obtido à ocorrência de uma chance, uma sorte”. O ensino superior representa para estes
estudantes um investimento para ampliar suas chances no mercado de trabalho cada vez mais competitivo, mas, ao avaliar suas condições objetivas,
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
a escolha do curso geralmente recai naqueles menos concorridos17 e que
proporcionam maiores chances de aprovação. “Essa observação suscita
uma reflexão sobre o que normalmente chama-se de escolha. Quem, de
fato, escolhe? Sob esse termo genérico escondem-se diferenças e desigualdades sociais importantes”, mostra Zago (2006, p. 6).
Seus resultados e análises convergem com as considerações feitas
no início deste trabalho, quando trouxe a voz de Guimarães (2006), interpretando-a com alguns conceitos de Bourdieu (1998). Zago (2006) preocupa-se com as escolhas que de certa forma não são exatamente opções
autônomas, nem usufruto de direitos. Bourdieu e Passeron (2008, p. 248)
contribuem para se entender essa espécie de destino social: “para que o destino social seja transformado em vocação da liberdade ou em méritos da
pessoa [...] é preciso que a escola consiga convencer os indivíduos que eles
mesmos escolheram ou conquistaram os destinos que a necessidade social
antecipadamente lhes assinalou”. Para a grande maioria não existe verdadeiramente uma escolha, mas uma adaptação, um ajuste às condições que o
candidato julga condizentes com a sua realidade e que representam um menor risco de exclusão do mercado de trabalho. Forças que não são explícitas,
e das quais os próprios estudantes não têm plena consciência, determinam
suas escolhas e os empurram para essa condição precária de vida, que estamos discutindo, a do trabalhador-estudante, com as consequências que os
estudos vêm mostrando, na saúde, no desempenho etc.
Um dos maiores problemas enfrentados pelos estudantes em questão, aponta Zago (2006), reside na qualidade da educação básica pública,
da qual dependem para prosseguir a sua escolaridade. A autora coloca que
a ampliação do número de vagas nos níveis fundamental e médio não eliminou os problemas relacionados à qualidade do ensino e salienta que,
[...] em breve, todos terão oito anos de escolarização, mas nem todos terão acesso
aos mesmos níveis de conhecimento. Muitos, nem mesmo a patamares mínimos.
Elimina-se, assim, a exclusão da escola, não a exclusão do acesso ao conhecimento, criando-se condições historicamente novas para demandas por qualidade de
ensino (ZAGO, 2006, p. 6).
17 Este aspecto pode ser conectado com o achado de Pinto (2004) quando assinala que estudantes pobres e
afro-descendentes não são encontrados em IES privadas em cursos altamente seletivos.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
Segundo a autora os efeitos dessa exclusão do conhecimento aparecem com toda a força na escolha do curso, e faz-se sentir igualmente
quando o estudante ingressa no ensino superior, sobretudo nas primeiras
fases do curso. Assim, Zago (2006) mostra que trabalhar e estudar não é
exclusividade de países em desenvolvimento nem atinge somente as famílias de baixa renda, e que a diversificação dos perfis dos estudantes é
vasta e ainda pouco conhecida. Também os tipos de trabalho realizados
pelos estudantes é diversificado, tanto quanto ao tipo de atividade, à carga
horária, à afinidade com o curso, aos ganhos financeiros etc. O confronto com dados de outros países, resguardadas as diferenças contextuais, é
permitido pelos dados recolhidos por Zago sobre a realidade da França:
Se tomarmos realidades diferentes em termos de políticas públicas para o ensino
superior, como é o caso da França, pesquisas realizadas nos anos de 1990 revelam
que uma minoria trabalha no início do curso, mas a situação inverte-se nas últimas
fases. As taxas de estudantes exercendo uma atividade remunerada variam, então,
de 20%, aos 18 anos, a 66,7% aos 26 anos e mais (GRIGNON & GRUEL, 1999, p.
67-69). As mudanças estão também na carga horária de trabalho e no tipo de ocupação, progressivamente mais voltada para a formação. Os recursos financeiros dos
pais são desiguais, mas parte dessa desigualdade é compensada por políticas públicas daquele país, mesmo sabendo-se que estas não excluem as disparidades sociais.
Em resumo, a atividade remunerada não tem uma função unicamente de sobrevivência material. A ela associam-se o desejo de autonomia em relação à família e a
constituição de um currículo mais favorável quando o jovem deixa a universidade,
como também foi verificado em nosso estudo (ZAGO, 2006, p. 09).
Apesar dos dados mostrarem uma realidade bastante distinta da
nossa, de um país que idealizamos, de Primeiro Mundo e com menos disparidade e desigualdades do que o Brasil, o panorama descrito fortalece a
necessidade de aprofundar pesquisas sobre nossos estudantes de educação
superior, justamente para que se possam buscar alternativas adequadas para
uma formação qualificada, a partir da nossa tão heterogênea realidade.
No grupo pesquisado por Zago (2006), a escolaridade esteve associada ao trabalho e à sobrevivência. Desde o início do curso superior, os
entrevistados, em sua totalidade, exerciam algum tipo de atividade remuTOC TOC TOC! Eu quero entrar 255
Ana Maria Netto Machado (Org.)
nerada em tempo integral ou parcial. Alguns eram trabalhadores-estudantes, segundo a autora, exercendo atividades que absorviam muitas horas
diárias; outros tinham uma carga horária mais flexível, em serviços prestados dentro da própria universidade, em forma de bolsa de treinamento,
estágio ou iniciação científica, em tempo parcial de 20 horas semanais. O
que se pode observar é que, embora todos dependessem do trabalho para
garantir a sua sobrevivência material, desenham-se perfis diferentes na
relação estudo-trabalho, com repercussões significativas na condição do
estudante e na constituição de suas carreiras universitárias.
A categoria “estudante médio” não existe, aponta Zago (2006, p.
10), porque não há uma condição de “estudante em geral”: as diferenças
são relacionadas ao próprio curso, a sua estruturação em termos de carga
horária, ao nível de exigência, entre outras realidades relacionadas às condições materiais, culturais e sociais do estudante. Ao criar a denominação
“estudante parcial”, a autora se reporta ao lugar que o estudo e o mundo
universitário têm para os entrevistados. Assim, para Zago (2006, p. 16)
“estudar essa população para entender as transformações nas demandas,
práticas escolares, e perfil dos estudantes na sociedade contemporânea,
representa uma necessidade para a pesquisa e as políticas educacionais em
todos os níveis de ensino”.
Os temas relacionados a evasão e/ou abandono no ensino superior
conectam-se com as temáticas do acesso e da permanência, pois caracterizam a falha nesta última. Os estudos mostram que a evasão é um dos
problemas que aflige todas as IES (as privadas, uma vez que a evasão representa risco para sua sustentabilidade; e as públicas porque caracteriza
desperdício de recursos da nação). A busca das causas da evasão tem sido
objeto de muitos trabalhos e pesquisas educacionais. Contribuem para o
entendimento deste problema Silva Filho (2007), Albuquerque (2008) e
Bardagi e Hutz (2009).
Para esses autores, a evasão estudantil no ensino superior é um
problema internacional que afeta o resultado dos sistemas educacionais,
envolvendo perdas de estudantes que iniciam, mas não terminam seus
cursos, promovendo desperdícios sociais, acadêmicos e econômicos. Para
Silva Filho (2007, p. 642), “no setor privado, é uma importante perda de
receitas”; ele mostra que, enquanto de 2% a 6% das receitas das IES priva256
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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das são despendidos com marketing para atrair novos estudantes, nada parecido é investido para manter os estudantes já matriculados. Além disso,
são raríssimas as IES brasileiras (públicas ou privadas) que possuem um
programa institucional profissionalizado de combate à evasão, com planejamento de ações, acompanhamento de resultados e coleta de experiências bem-sucedidas. Silva Filho distingue dois tipos de evasão que podem
ser contabilizadas (similares, mas não idênticas): A evasão anual média mede qual a percentagem de alunos matriculados em um
sistema de ensino, em uma IES, ou em um curso que, não tendo se formado, também não se matriculou no ano seguinte (ou no semestre seguinte, se o objetivo
for acompanhar o que acontece em cursos semestrais). A evasão total mede o
número de alunos que, tendo entrado num determinado curso, IES ou sistema
de ensino, não obteve o diploma ao final de um certo número de anos. É o complemento do que se chama índice de titulação. Por exemplo, se 100 estudantes
entraram em um curso em um determinado ano e 54 se formaram, o índice de
titulação é de 54% e a evasão nesse curso é de 46% (SILVA FILHO, 2007, p. 642).
Para o autor os dois conceitos ligam-se, observando-se os níveis de
reprovação e das taxas de evasão por ano, ao longo do curso, que não são
as mesmas. As taxas de evasão no primeiro ano de curso são “duas a três
vezes maiores do que a dos anos seguintes, sendo que esse é um problema
muito estudado no exterior e influi na relação entre evasão anual e índice
de titulação” (SILVA FILHO, 2007, p. 642).
Outra questão importante diz respeito às bases financeiras da evasão. De modo geral, as instituições, públicas e privadas, dão como principal razão da evasão a falta de recursos financeiros para o estudante prosseguir seus estudos. Segundo a pesquisa de Silva Filho (2007, p. 643) esse
motivo “é, também, o que o estudante declara quando perguntado sobre a
principal razão da evasão”.
No entanto, outros estudos brasileiros, afirma o autor, têm mostrado que esta resposta é uma simplificação: as dificuldades de ordem acadêmica, as expectativas do aluno em relação à sua formação e a própria integração do estudante na instituição constituem, na maioria das vezes, os
principais fatores que acabam por desestimular o estudante a priorizar o
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
investimento de tempo ou financeiro, para concluir o curso. Ou seja, para
Silva Filho (2007, p. 643), “o custo benefício do sacrifício para obter um
diploma superior na carreira escolhida não vale mais a pena”. Ao menos
para os muitos estudantes que se evadem. A consideração de Zago (2006)
sobre os estudantes que escolhem um curso de fácil acesso porque não se
acham capazes de serem aprovados no curso mais seletivo que almejam
condiz com esta consideração de Silva Filho (2007).
Os estudantes podem não ter consciência clara do motivo pelo qual
abandonam os cursos: parece ser mais fácil dizer que as dificuldades são
financeiras do que reconhecer ou admitir a defasagem cultural, até porque,
ao não ter clareza sobre as condições históricas envolvidas na construção
das desigualdades sociais, os estudantes podem considerar-se frustrados,
fracassados e incompetentes, quando não humilhados. Estes argumentos
são aqui colocados em caráter de hipótese que começa a descortinar-se a
partir deste conjunto de estudos e pesquisas examinados.
Retomando os dados sobre a evasão nos cursos superiores no Brasil,
é importante dizer que eles não diferem muito das médias internacionais e
variam bastante por dependência administrativa (pública ou privada), região e curso. E também, que há preocupação nos setores governamentais
com esse problema. Segundo os dados do INEP (2008), um dos objetivos
previsto pelo Plano Nacional de Educação (PNE) para o ensino superior
é a diminuição na taxa de evasão de alunos. É possível realizar um cálculo
aproximado da produtividade dos cursos superiores por meio dos dados
do INEP (2008), considerando um tempo médio de formação de quatro
anos. O percentual de conclusão – indicador que descrevo anteriormente
a partir da pesquisa de Silva Filho (2007) –, calculado pela razão entre o
número de concluintes de um ano e o de ingressantes quatro anos antes,
apresentou pouca variação no período recente. Dados do INEP (2008)
mostram que no ano de 2008 o percentual de concluintes em relação aos
ingressantes de 2005 foi de 57,3% e a maior proporção foi observada entre os alunos das instituições federais (67%), seguidos pelos alunos das
instituições estaduais (64,3%) e das municipais (61,2%). As instituições
privadas apresentaram o menor percentual de conclusão nos cursos de
graduação presencial em 2008, com 55,3% de concluintes. Diante destes
números, pode-se dizer que, seja nas públicas ou nas privadas, o percentu258
Ana Maria Netto Machado (Org.)
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al de abandono ou evasão é alto, sendo a média de concluintes em todos os
tipos de IES em torno de 61%. Logo o abandono é de praticamente 40%.
Albuquerque (2008), na pesquisa intitulada Do abandono à permanência num curso de ensino superior, definiu abandono acadêmico como a
desistência de frequentar o curso em que se ingressa sem o ter concluído,
obtendo transferência para outro curso ou abandonando a faculdade e/ou
universidade. A autora aponta para o fato de que o “insucesso acadêmico,
as desistências e a aparente desmotivação de muitos alunos é preocupante
para o país, para as instituições e não só inquietante como frustrante para
os professores e alunos” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 20). Aponta ainda
que o insucesso é muitas vezes explicado por desinteresse, desmotivação,
dificuldade de enquadramento dos alunos na faculdade ou ainda por dificuldade em gerirem a sua aprendizagem e seus métodos de estudo.
Vários são os aspectos analisados por Albuquerque (2008), um dos
que considero mais relevantes é o fato de que o maior número de abandonos ocorre durante o primeiro ano do curso. A explicação encontrada pela
autora concentra-se em que muitos estudantes utilizam-se do primeiro
ano como porta de entrada do ensino superior e, para conseguir inclusão, eles escolhem cursos que consideram de baixa procura, como uma
alavanca para ingressar. Este resultado é convergente com o obtido por
Zago (2006). A autora revela que muitos estudantes utilizam seu primeiro
ano de curso como “marca passo” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 21), para
conseguirem transferência de curso. Depois que estão incluídos e mais familiarizados com o novo nível de formação, tentam mudar de curso para
opções mais disputadas. O quanto eles obtêm sucesso nessa operação não
fica claro nos estudos (tema que merece investigação).
O fenômeno do abandono pode ser compreendido, segundo Albuquerque quer do ponto de vista individual, quer do institucional:
Abandonar um curso pode representar, a nível individual, o fracasso para atingir
uma meta, a ausência de interesse ou a incapacidade para satisfazer o trabalho
acadêmico. O mesmo fenômeno, a nível institucional18, pode afetar a organiza18 Lembro aqui as considerações de Nosella (1998) sobre as IES desprestigiadas que facilitam a aprovação
e cujos diplomas têm somente valor burocrático. Pois tanto a alta como a baixa taxa de abandono dos cursos
pode assumir significados opostos, quanto ao prestígio institucional, o que exige uma análise criteriosa do campo e mostra o quanto ele se apresenta confuso e difícil de compreender.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
ção, a programação acadêmica e, em muitos casos, o prestígio institucional. [...]
Conjugando estas perspectivas, alguns estudos apontam para a necessidade de
uma intervenção precoce, que pressupõe a identificação dos problemas que estão
associados a este fenômeno. Estes autores identificam alguns desses problemas:
inadequada escolha do curso – por decisões influenciadas por amigos, familiares,
modas e não por vocação; notas de admissão muito baixas; insuficiente integração dos estudantes nos ambientes intelectuais e sociais das faculdades; fraca relação entre docentes e discentes. [...] Outros ao invés, salientam que a permanência
dos estudantes nos cursos aumenta quando existe: boa adaptação do estudante
à nova realidade; quando as relações professor-estudante são positivas; quando
existe suporte acadêmico e social dos colegas e docentes; quando os estudantes
acreditam no seu próprio sucesso e quando se sentem envolvidos e valorizados pelas instituições onde frequentam os seus cursos (ALBUQUERQUE, 2008, p. 21). De acordo com Albuquerque (2008), há um longo rol de motivos
que podem justificar o abandono: o absenteísmo, as reprovações, a trajetória escolar, a vida pregressa, a escolha de um curso que consideram mais
fácil para garantir o ingresso/acesso, pois é uma opção menos concorrida
etc. Influencia também, segundo a autora, a caracterização demográfica,
que engloba itens referentes ao gênero, idade, residência, meio de subsistência e via de ingresso no ensino superior, bem como as decisões e intenções dos estudantes ao ingressar no ensino superior e suas expectativas
sobre o seu próprio desempenho acadêmico. Albuquerque (2008, p. 21)
refere também que “pela primeira vez deixaram de ser feitas provas vocacionais específicas para o acesso ao curso e grande percentagem dos novos
estudantes não têm noção do curso nem das suas saídas profissionais”.
Talvez seja importante pensar que a inclusão destes novos estudantes se deu, no Brasil, de maneira muito rápida e de roldão, como consequência de políticas internacionais, que foram geradas pelas mudanças no
mundo do trabalho e que vêm se impondo em nosso país, em efeito cascata, sem a devida consideração pelas realidades regionais.
Para Bardagi e Hutz (2009), em Não havia outra saída: percepções
de alunos evadidos sobre o abandono do curso superior, este problema em
cursos superiores é um fenômeno em expansão no Brasil, mas são poucos
os estudos sobre as características da evasão e suas consequências na vida
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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do estudante. Sua pesquisa buscou identificar as “razões da insatisfação de
carreira e as percepções sobre a evasão em oito alunos evadidos, três mulheres e cinco homens entre 20 e 25 anos (M=22,6), de diferentes áreas,
que abandonaram o curso em diferentes momentos da graduação” (BARDAGI e HUTZ, 2009, p. 95).
Alguns dos resultados obtidos por Bardagi e Hutz (2009) corroboram os achados de Albuquerque (2008), pois mostram que o desligamento costuma ser maior nos anos iniciais do curso e em um único ano
(a saída tende a ser maior nos primeiros três meses). Com relação aos
cursos, evidenciam que “há menor abandono nos cursos mais valorizados, enquanto cursos menos valorizados e com baixo status apresentam
os maiores índices” (BARDAGI; HUTZ, 2009, p. 95). Não há consenso
quanto a diferenças de gênero; alguns estudos, referem os autores, apontam para predomínio da evasão masculina mas os dados disponíveis não
são conclusivos a esse respeito.
Diversas pesquisas sugerem que há fragilidade nas escolhas iniciais,
pouca atividade exploratória sobre os cursos e expectativas irrealistas sobre as carreiras. A decisão de se evadir foi majoritariamente impulsiva,
causada por uma insatisfação de longo prazo e não relacionada a novas
escolhas de carreira, afirmam Bardagi e Hutz (2009, p. 95), salientando,
[...] aspetos como a desorientação e o desamparo na chegada à universidade e
ao curso, a falta de informação, o despreparo para lidar com a diferença entre
o ensino médio e a universidade, a dificuldade de acesso aos professores e a superficialidade nos contatos interpessoais como causas de saída. Em relação aos
efeitos da decisão, os alunos referem inicialmente predominância de sentimentos
de tristeza, solidão, vergonha, culpa e raiva após a saída do curso, contra somente
39% que apontam alívio e satisfação (BARDAGI e HUTZ, 2009, p. 96).
A partir dos resultados de pesquisa apresentados pode-se esboçar a
hipótese da inadequação das IES ao perfil da majoritária parcela dos estudantes da educação superior. As universidades estão organizadas e promovem uma formação dirigida a um estudante cujo perfil não corresponde à
maioria do alunado que está ingressando nas IES no início do século XXI.
Esta hipótese de trabalho é importante de ser levantada, pois a tendência
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
verificada é a de que o estudante é inadequado à instituição, a seus métodos, a sua exigência, responsabilizando-o e culpabilizando-o pelo fracasso.
A média de 40% de evadidos sinaliza um desencontro/desconforto importante de ser analisado entre o novo perfil, “o novo aluno”, de estudante
e a tradição universitária.
De certa forma, esta dinâmica interpretativa dos fenômenos educacionais já esteve em vigor em décadas anteriores, referida aos processos de
ensino-aprendizagem escolares. Se as crianças não aprendiam na escola,
a causa estava nas crianças. Foi a época dos estudos psicológicos sobre
os problemas de aprendizado e os tratamentos para resolvê-los, sempre
centrados no aluno problemático. Durante décadas processou-se o deslocamento das causas do então chamado fracasso escolar, do aluno com
problemas, para a inadequação dos métodos de ensino, ou para a responsabilização do professor e da escola. Provavelmente ainda se vive esta fase
e continua-se dentro da lógica de encontrar um culpado pelo fracasso.
Patto (1999), em sua obra intitulada A produção do fracasso escolar:
histórias de submissões e rebeldia, recupera esta trajetória, mostrando as razões políticas, ideológicas e históricas que estão por trás das teorias que
identificam as causas de tais problemas no lado mais frágil (aluno, professor, escola). Pareceria que, na atualidade, o trabalhador-estudante de
ensino superior está na posição que antes esteve o aluno de escola. A advertência pode ser importante de ter-se em mente, para tentar entender os
complexos meandros que envolvem esse personagem que é o trabalhadorestudante.
Esta reflexão ganha mais interesse quando se analisam as soluções
imaginadas pelos pesquisadores para fazer face aos problemas do trabalhador-estudante. Uma das tendências é mostrarem a necessidade de implementar estratégias que favoreçam a atividade exploratória dos estudantes
e de serviços de apoio ao estudante da educação superior. Catani, Hey e
Gilioli (2006), em artigo já referido, ao denunciar os investimentos das
IES privadas em marketing para atrair a clientela e a falta de investimentos em ações que garantam a permanência daqueles que ingressaram nos
cursos, indicam a necessidade de serviços de apoio a este novo estudante,
cujo perfil dispõe de poucos recursos para manter-se no ambiente acadêmico universitário.
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
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Uma reflexão que se impõe diante dos resultados de tantas pesquisas, que, por vias e interesses diferenciados, focam esse novo perfil de
estudante, segue a direção de admitir que este contingente da população
cuja formação pregressa (familiar e escolar) é deficitário com relação ao
padrão erudito, em termos de “capital cultural” (BOURDIEU, 1998) também tem contribuído para a configuração de IES que, para atender a estes
alunos, se distanciam cada vez mais da tradição dos modelos clássicos de
universidade.
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TOC TOC TOC! Eu quero entrar 265
SOU MESTRE... E DAÍ? FORMAÇÃO STRICTO SENSU E
DESENVOLVIMENTO: MOBILIDADE PROFISSIONAL,
ATUAÇÃO E PERSPECTIVAS DE IMPACTO REGIONAL
DOS EGRESSOS DOS MESTRADOS DA UNIPLAC
Abel Varela
E
m 1992, isto é, há quase vinte anos, Celso Furtado, um dos intelectuais brasileiros mais reconhecidos, economista de formação,
apresentou um diagnóstico da realidade mundial, identificando
as utopias a perseguir e as prioridades estratégicas para alcançá-las. Aquele texto sintético desdobrou-se em inúmeras teorias de economistas, de
cientistas sociais, de educadores e de pensadores da ciência. Iniciamos
este artigo com este pensamento de Furtado, que foi guia durante a elaboração desta pesquisa.
O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o
curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem
estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos. Devemos
nos empenhar para que essa seja a tarefa maior dentre a preocupação no correr
do próximo século: estabelecer novas prioridades para a ação política em função
de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao alcance de todos os povos
e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. O objetivo deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das
necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação concebida
como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético
e da ação solidária. A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva
para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e o poder militar,
seria dirigida para a busca da felicidade, esta entendida como a realização das
potencialidades e aspirações dos indivíduos e das comunidades vivendo solidariamente. (FURTADO, 1992, p. 76).
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 267
Percorremos aqui diversas concepções de desenvolvimento, passando por visões de economistas clássicos e por noções de crescimento e
desenvolvimento econômico até chegar a formulações mais recentes que
envolvem preocupações com o meio ambiente, valorizam a conexão entre
local e global e postulam o conceito de território – do qual o fator econômico é um entre outros, como a cultura, os valores, as tradições etc. Procuramos identificar nas diferentes teorias a valorização do fator humano,
que se traduz em diferentes termos, e constatamos que em praticamente
todas elas se apresenta, com maior ou menor intensidade, a consciência
de que não há desenvolvimento sem algum tipo de investimento no ser
humano, sobretudo na educação das populações. Enquadramos a formação stricto sensu como um intenso investimento nos sujeitos, levantando a
hipótese de que os egressos deste nível de formação podem se constituir
em importante força para promover o desenvolvimento das regiões onde
se instalam.
Autores contemporâneos, como Valdir Dallabrida (2010), Filippim
e Rossetto (2008), Tarso Genro (1995) e Herbert de Sousa (1992) foram fontes deste estudo em relação aos novos e múltiplos conceitos de
desenvolvimento. Filippim e Rossetto (2008) traçam uma trajetória dos
conceitos de desenvolvimento ao longo da história e destacam as relações
entre poder local e desenvolvimento, além de investigarem a região serrana do estado de Santa Catarina (SC) e a importância das políticas públicas
para o desenvolvimento regional. Também pesquisamos autores que trabalham com a perspectiva do desenvolvimento sustentável e da educação
ambiental, como Sachs (2000) e Grün (2002), e o indiano Amartya Sen
(1999), cujo entendimento de desenvolvimento como liberdade revolucionou a compreensão dos processos sociais e educacionais, e cujo pensamento articulamos às ideias de Tarso Genro (1995) sobre participação
política.
Quanto aos campos da ciência e da universidade, nos quais situamos a formação stricto sensu, autores como Bruno Latour (2000) e Gérard
Fourez (1995) foram referências importantes, aliados ao clássico educador brasileiro Anísio Teixeira (2005), protagonista da estruturação do nível de formação stricto sensu no Brasil, bem como ao criador do modelo
de universidade de pesquisa, Whilhelm von Humboldt (2003). Este foi
268
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
estudado diretamente, mas também por meio de autores como Pereira
(2008) e Machado (2009). Como pano de fundo para compreender os
processos históricos, Otaíza de Oliveira Romanelli (2000) e Dermeval Saviani (2007) ajudaram a entender a deficiência estrutural de um projeto
nacional de educação em nosso país e o papel da Universidade brasileira
no século XX, sobretudo quanto à necessidade da formação de pós-graduação no país.
Foi a partir desta rede teórica que planejamos a pesquisa de campo, focando os mestres egressos dos primeiros cursos implementados na
UNIPLAC, a partir de 2005. A hipótese foi de que este contingente humano com formação para pesquisa, tendo adquirido uma visão ampla dos
processos sociais, e tendo se conectado com as respectivas comunidades
científicas, poderia ser decisivo para promover as transformações sociais
que estão postas como meta de governos e instituições, mas que progridem de maneira lenta ou com resultados pouco expressivos.
É importante também destacar, com relação às frentes de trabalho
teórico (Desenvolvimento e Universidade) que procuramos pôr em discussão nesta pesquisa, que elas encontram justificativa de cunho pessoal,
profissional e contextual no próprio autor. Ser graduado em Administração e também professor em nível superior, desde 2003, filho de professora, e tendo tido duas irmãs também professoras, a Educação esteve e
está muito presente em minha história de vida e profissional. Porém só
no Mestrado passou de mera familiaridade a objeto de estudo e pesquisa.
Articular estas duas áreas de interesse e atuação (Administração e Educação) nesta investigação permitiu aprofundar a reflexão, até então intuitiva,
de que a educação é a chave-mestra para o desenvolvimento. A pesquisa
permitiu também enfrentar o desafio de trabalhar com um problema recorrente no discurso lageano, manifesto na difundida expressão popular
atraso regional. Fato intrigante que aqui transformei em pesquisa para
aprofundar a compreensão das causas dessa situação constatada, que foi
construída ao longo do tempo, a fim de buscar entender melhor suas determinações.
Outra justificativa para a pesquisa relaciona-se às características
da região da Serra Catarinense, que é a mais extensa do estado de SC e a
que apresenta a menor densidade demográfica e eleitoral (FILIPPIM E
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 269
Ana Maria Netto Machado (Org.)
ROSSETTO, 2008). Tem 18 municípios, articulados pela Associação dos
Municípios da Região Serrana (AMURES), dos quais oito1 têm os piores
índices de desenvolvimento humano (IDH) do estado de Santa Catarina.
Estes municípios com baixo IDH contrastam com alguns dos mais altos
IDHs brasileiros, encontrados em municípios de outras regiões do mesmo
estado (com destaque para os municípios de Joinville, Blumenau e Jaraguá
do Sul), retratando as fortes desigualdades de nosso país. Quais os fatores que contribuem para essa realidade? Qual a dificuldade em programar
alternativas eficazes que alavanquem o desenvolvimento? São perguntas
que incitaram a reflexão aqui desenvolvida.
Um elemento relativamente novo na região é a formação stricto sensu
(mestrados/doutorados) que levou, no caso da UNIPLAC, em torno de
quarenta anos para ser implementada. A fundação mantenedora da UNIPLAC foi fundada em 1959 e transformou-se em Universidade apenas em
1999. Foi a primeira fundação de ensino superior (comunitária) do interior de SC a ser criada e a última do estado a conquistar o estatuto de universidade. Seu primeiro Programa de pós-graduação stricto sensu começou
em 2005, com o Mestrado em Educação, recomendado pela CAPES em
2008. O Mestrado em Saúde Coletiva iniciou em 2006 e teve apenas uma
turma, assim como o Mestrado em Administração (MACHADO; RIGO;
PAIM; NUNES, 2009). Até 2011 os Mestrados da UNIPLAC titularam
aproximadamente 60 mestres.
Fizeram parte da amostra da pesquisa os egressos que responderam ao questionário de pesquisa (36 respondentes), todos mestres que
defenderam suas dissertações entre 2007 e dezembro de 2010 – de um
total de 67 egressos titulados neste período, representando 54% do total
de egressos. Dentre os que responderam, 25 são do Mestrado em Educação (69%), 7 do Mestrado em Saúde Coletiva (19%) e 4 do Mestrado em
Administração (11%).
No gráfico abaixo visualizamos a proporção de egressos que responderam à pesquisa em relação ao total de egressos dos três programas
de mestrado. Do Mestrado em Educação, de um total de 44 egressos, responderam 25, significando 56% do total, que foi o maior percentual de
1 Bocaina do Sul, Bom Retiro, Campo Belo do Sul, Capão Alto, Cerro Negro, Ponte Alta do sul, Rio Rufino
e São José do Cerrito.
270
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
respostas. Do Mestrado em Saúde Coletiva, de 15 concluintes, 7 responderam ao questionário, significando 47% do total, e em relação ao Mestrado de Administração, 4 responderam, de um total de oito, um percentual
de 50% do total.
No de egressos
50
45
40
35
30
Responderam
25
20
Total
15
10
5
0
Educação
Saúde coletiva
Administração
Gráfico 1 – Quantidade de egressos respondentes por curso.
No gráfico seguinte visualizamos a titulação dos 36 sujeitos. Observa-se que grande parte tem graduação em áreas associadas à Educação,
havendo egressos de outras áreas, dentre as quais se destacam, quantitativamente, Administração, Fisioterapia, Enfermagem, Odontologia e Psicologia. Esta é uma tendência que se percebe crescendo nestes últimos anos
no Mestrado em Educação da UNIPLAC: uma procura mais diversificada de graduados de várias áreas do conhecimento.
Foi constatada na pesquisa intensa mobilidade profissional dos
egressos, um indicador de que o Mestrado abriu-lhes possibilidades de
novos trabalhos ou funções/atribuições. Alguns egressos foram aprovados em concursos públicos federais2 em outras cidades ou estados, enquanto outros assumiram novas funções, com maior responsabilidade, em
2 Podemos enquadrar estas migrações como ‘fuga de cérebros’, fenômeno conhecido entre países, quando
aquelas nações cuja ciência é muito avançada identificam sujeitos qualificados e atraem-nos, oferecendo-lhes
boas oportunidades de trabalho, promovendo a migração de capital humano dos países periféricos para os
centrais. Este fenômeno vem acontecendo dentro do Brasil, entre os grandes pólos urbanos e o interior, e entre
regiões.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 271
Ana Maria Netto Machado (Org.)
seus respectivos setores de atividade profissional. Esta segunda situação
ocorreu na educação municipal e na esfera comunitária ou particular de
nível superior, o que indica autoafirmação e empoderamento nos diferentes espaços do mundo do trabalho.
No de egressos
14
12
Licenciaturas
Saúde
10
Administração
8
6
4
2
Titulação dos egressos
Pe
da
go
gia
Le
Ci tra
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Gráfico 5 – Titulação de nível de Graduação dos egressos dos três mestrados3
A pesquisa revelou que perto de cem por cento dos egressos consideraram a influência do mestrado em suas vidas decisiva. O Mestrado
modificou a forma de verem o mundo, passando os titulados a compreenderem as relações entre as vivências pessoais e profissionais na sua
realidade local, bem como suas determinações históricas e políticas em
nível global. Além da evolução pessoal, consideram que ampliaram sua
visão do mundo, tornando-se mais críticos, participando de sua comunidade, contribuindo na busca de esclarecimento para os problemas detectados. E também difundindo, em alguns casos, a própria formação, ao
compartilhar artigos com colegas de trabalho, ou utilizá-los na docência
de nível superior (ou na gestão escolar, orientação pedagógica, ou nos
setores de serviços, como hospitais e clínicas), na tentativa de colocar o
3 Este gráfico classificou os egressos independentemente do Mestrado cursado. A observação se faz necessária, pois diversos alunos do Mestrado em Educação são enfermeiros por exemplo.
272
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
conhecimento e as teorias adquiridas a serviço da comunidade da qual
participam.
Do ponto de vista profissional, podemos distinguir as conquistas
dos egressos conforme sua inserção. Vimos que aqueles da Educação que
atuavam no ensino fundamental (a maioria ligados à rede municipal de
ensino) atestaram progressos salariais e funcionais, assumindo novos postos de maior responsabilidade e, em muitos casos, de liderança. Praticamente todo este grupo de egressos (com exceção de uma, que abandonou
o sistema) assumiu novos cargos, tais como direção, orientação etc., após
o término do curso. Apesar de festejar estes avanços, eles acreditam que o
conhecimento adquirido no Mestrado poderia ser mais bem aproveitado
na própria rede: os resultados das pesquisas, por exemplo, poderiam ser
mais difundidos e aproveitados para qualificar o sistema. Por outro lado,
reconhecem avanços na educação municipal, que consideram decorrentes
da melhor capacitação de seu quadro funcional.
Já os professores da rede estadual pesquisados, que foram apenas
três, confirmaram avanços salariais, porém consideram que o espaço para
iniciativas (inovação) foi pouco ampliado. Este resultado contrasta com a
situação dos professores da rede municipal, já que o município de Lages
tem apostado no Mestrado da UNIPLAC, inclusive concedendo bolsas
aos professores, na busca da qualificação do sistema educacional local. Já
o sistema estadual não depende de políticas locais.
Portanto eles vêm sendo valorizados nos segmentos sociais onde
atuam e são chamados a assumir maior responsabilidade e/ou liderança, alguns, inclusive, em postos de comando. Os resultados da amostra
pesquisada revelam que se aposta no crescimento qualificado dos egressos, que ganham maior visibilidade, passando a ser vistos como capazes
de influenciar a opinião pública. Como enfatiza Fourez (1995, p. 44), os
cientistas não vivem em uma torre de marfim, mas são pessoas com visão
social e política do mundo: “os cientistas, por conseguinte, não são indivíduos observando o mundo com base em nada, são participantes de um
universo cultural e lingüístico, no qual inserem seus projetos individuais
e coletivos”.
Com relação ao total de egressos respondentes, verificou-se um aumento significativo na atuação docente em nível superior. 100% de auTOC TOC TOC! Eu quero entrar 273
Ana Maria Netto Machado (Org.)
mento (de 9 para 18), sobretudo entre os egressos da Saúde Coletiva e da
Administração, se consideramos os que se mantiveram na região. Pelo menos quatro egressos da Educação já atuavam em nível superior e continuaram (duas delas migrando para outros estados). Daqueles que atuavam na
educação básica, quatro passaram a atuar, esporádica ou efetivamente, na
educação superior, um deles migrando para outra região de SC.
Por um lado, tais números sugerem que a formação adquirida no
Mestrado representa uma porta de entrada ao ensino superior, aspiração4 de
muitos dos que buscam a formação stricto sensu. Por outro lado, é importante lembrar que, na primeira fase da pós-graduação brasileira, que tem aproximadamente meio século, a meta era a formação de docentes qualificados
para o ensino superior. Mas, a partir de meados de 1990 (BIANCHETTI;
MACHADO, 2008), as metas mudaram, passando-se a almejar a formação
de pesquisadores. Nossos dados parecem indicar que a demanda por formação em nível de mestrado na região5 ainda funciona dentro do primeiro
paradigma, pois ainda há necessidade de melhorar os quadros da docência
superior em termos de titulação para satisfazer a legislação.
Com relação a manter-se participando da comunidade científica,
em congressos, apresentando trabalhos6, por exemplo, foi declarada uma
expressiva participação. Porém nem sempre pôde ser confirmada esta participação no currículo Lattes dos respondentes. Há que se considerar, entretanto, que diversos sujeitos responderam que não costumam atualizar
os seus Lattes. Uma minoria declarou não ter apresentado qualquer tipo
de trabalho em eventos após concluir o Mestrado. Um dado que chamou a
4 Alguns dos egressos continuam trabalhando na educação básica e isto é visto por algumas pessoas como
retrocesso, atraso: “estudou tanto para continuar como professorinha de primário!!” (Respondente). Teixeira
(2005, p. 151) diz que o fato de não termos Universidade durante mais de quatro séculos resultou em que deixamos de criar as condições para a formação de uma cultura comum nacional. Ou seja, é importante buscar na
história do Brasil as explicações para fenômenos que estão ocorrendo ainda hoje na região serrana de SC.
5 Nossa formação regional, de latifúndio, pecuária e agricultura, não via necessidade de educação da população, que só mais tarde, com a indústria, passou a ser requisitada, pela demanda por mão de obra especializada.
Segundo Rossato (2005, p. 138), durante a Colônia, o Império e mesmo no início da República, vários pedidos
de Universidade foram apresentado às autoridades da época, e todos foram negados. Houve, assim, uma resistência histórica à criação da Universidade no Brasil. Nossa região não fugiu à regra.
6 Outro fator importante é tornar conhecidas as pesquisas que são realizadas nas Universidades. Neste sentido,
Machado (2007, p. 5) diz que “ao não se tornar conhecida, ao permanecer nos bastidores, em relatórios confinados, não acessíveis e indisponíveis, a pesquisa não pode servir de base a novos estudos, não promove descobertas
nem contribui para a evolução do conhecimento”. A partir desta colocação, cabe-nos fazer uma pergunta: em que
medida as pesquisas de pós-graduação stricto sensu da UNIPLAC vêm contribuindo para fazer avançar o conhecimento em nível regional e o desenvolvimento econômico na região serrana de Santa Catarina?
274
Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
atenção foi que um pequeno número de egressos é responsável por quase
a metade da produção de trabalhos e participação em eventos científicos,
sendo que a grande maioria declarou ter dificuldades em manter vínculo
com o programa que o formou após o término do curso. Esta declaração
foi acompanhada de lamento e expressão do desejo de voltar a participar
de grupos de pesquisa e da comunidade científica. A razão mais evocada
para este afastamento, via de regra, foi o acúmulo de demandas do trabalho, uma vez concluído o mestrado.
Nesta linha, poderíamos tentar explicar este comportamento chamando a atenção para os ritmos diferentes da vida profissional e da vida
acadêmico-científica: a primeira exigindo respostas rápidas e a segunda
exigindo paciência e trabalho sistemático, muito mais lento. O egresso,
apesar de ter participado deste processo e ter adquirido o novo hábito, ao
voltar ao trabalho, se depara com demandas de outra ordem. Preencher o
currículo Lattes, por exemplo, pode representar, no campo profissional,
uma atividade e um tempo de dedicação de pouco valor prático, e por isso
deixada de lado.
Latour, ao escrever sobre a construção das produções científicas, insiste na importância das citações e referências na construção das ciências
– mas, no campo profissional, este trabalho pode parecer inútil. Se Latour
ressalta que “uma monografia sem referências é como uma criança desacompanhada a caminhar pela noite de uma grande cidade: isolada, perdida, pode acontecer-lhe qualquer coisa” (LATOUR, 2000, p. 58), preocupar-se com referências no dia a dia do trabalho pode parecer desprezível.
Porém quem cursou um Mestrado e tomou consciência de como é
demorado e requer esforço e dedicação referenciar um texto para que fique
fundamentado e se sustente poderá entrar em conflito diante da necessidade de abandonar tal rigor. Assim como parece difícil para o mestrando,
durante o curso, abandonar o imediatismo do pensamento cotidiano de
senso comum, para assimilar as práticas do pesquisador, também se revela
árduo compartilhar7 a cultura acadêmico-científica com aqueles que estão
7 Referenciar é conectar pessoas e ideias dos autores, de lugares e tempos diferentes. Nossa região ficou
muito isolada das demais regiões do Estado por um longo período; grandes extensões de terra, comunicação
difícil durante muito tempo, e esse processo dificultou a construção de políticas de desenvolvimento. A formação stricto sensu poderia ser uma forma de acelerar a saída do isolamento que ainda perdura em muitos aspectos.
Sem articulação, comunicação, uma região pode ficar isolada dos demais centros de um Estado.
TOC TOC TOC! Eu quero entrar 275
Ana Maria Netto Machado (Org.)
ao nosso lado mas não participaram do processo de elaboração de uma
dissertação. Este, efetivamente, é um desafio que precisa ser enfrentado
no cotidiano do trabalho dos egressos, pois os conhecimentos e os procedimentos adquiridos no Mestrado agora precisam ser colocados a serviço
das transformações da realidade, sejam elas enfrentadas no ambiente de
trabalho, na família ou na comunidade.
Vale a pena aprofundar um pouco mais a importância do conhecimento, da sistemática científica, da referência teórica, a fim de trazê-la para
o mundo profissional, o mundo da prática, o mundo da realidade cotidiana, onde é preciso tomar decisões muitas vezes urgentes. Latour (2000, p.
58) descreve o significado e a importância de uma referência da seguinte
maneira; é como se fosse uma parada no caminho, como uma bússola para
nos dar a direção, para se recompor, conferir o mapa, confirmar e retomar
o trajeto se for o caso, do trabalho que está sendo feito, pois as citações
devem ajudar a fundamentar o trabalho. Isto significa trabalhar com conhecimento, logo, com referências, para encontrar melhores soluções para
os problemas que nos desafiam.
No Mestrado os egressos tiveram acesso à literatura científica, aos
autores clássicos, como uma orientação para seguir seu caminho de busca
de entendimento, não apenas na vida acadêmica, mas também profissional, e – por que não dizer? – na vida propriamente dita, nas decisões que
ela impõe. Mas aquele que não participou deste tipo de formação (mestrado) muitas vezes não é sensível aos dizeres do egresso8. O mestre (nesta
região geográfica) fala de um universo pouco valorizado em seu mundo
profissional, onde a palavra, as ideias, os livros, a leitura e a escrita têm
uma importância menor, são consideradas pouco práticas e, por isso, pouco eficazes – sua relevância pode não ser percebida (e em geral não é percebida) pela maioria dos colegas de trabalho. Eis aí um grande desafio para
os egressos, que precisa ser enfrentado.
Lidar com estas conquistas, sem que sejam assumidas apenas como
um privilégio que outorga vantagens pessoais representa um problema.
Os egressos do Mestrado se inserem na comunidade científica, que é diferente da comunidade local, mas podem trabalhar para estabelecer fluxos
8 Alguns depoimentos questionaram por que o mestrando investia tantos recursos no mestrado. Um deles
relatou ter sido questionado da seguinte maneira: por que não comprou um carro novo, ao invés de desperdiçar
seu dinheiro em um curso tão caro que pouco retorno teria?
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Ana Maria Netto Machado (Org.)
TOC! TOC! TOC! Eu quero entrar!
entre uma e outra. Porém o diálogo entre estes dois mundos é complexo
e as conexões não estão prontas. Como poderiam ser processadas? A resposta não está dada e essa interface entre mundo científico e mundo do
trabalho pouco é trabalhada durante o curso de mestrado. O fato é que
o egresso passa a ter então uma espécie de dupla existência, que precisa
compatibilizar e compartilhar. Um desafio cujos caminhos não são aprendidos no Mestrado e é preciso construí-los. Contudo sozinho ele pode
ter poucas chances de integrar estas duas faces de existência que parece
experimentar após a conclusão do Mestrado.
O desafio que se apresenta ao egresso é não se afastar deste seu
mundo,mas sim que, junto com seus colegas, construa alternativas para as
mudanças que se fazem necessárias. Ele pode e deve dar sua contribuição,
ajudando na elaboração de capacitações, reuniões, articulações, desenvolvimento de projetos juntamente com pares e chefias, colaborando para o
aprimoramento do seu setor profissional.
Outro aspecto relevante que emergiu do trabalho de campo é que,
a partir do Mestrado, se coloca a possibilidade de que os conhecimentos
construídos venham a se transformar em ação e que a teoria incida sobre
a realidade; isto é, que os conceitos se materializem em projetos, que efetivamente se trabalhe para melhorar a vida das pessoas, das comunidades
e das próprias condições de trabalho. Fourez (1995, p. 130-131) chama a
atenção para o problema:
[...] os conceitos científicos mais precisos não teriam sentido algum se não se
aproximassem, em determinado momento, de um conceito mais flexível ou de
uma experiência do senso comum. Os cientistas imaginam por vezes possuir conceitos precisos e univocamente determinados, estes não teriam significado se não
fossem traduzíveis na experiência mais flexível do cotidiano.
O conhecimento deve ser empregado a serviço da vida humana, a
ciência pode e deve contribuir para elevar as condições de vida em todos os seus sentidos: moral, ético e na produção da existência, para usar
a difundida expressão de Karl Marx. O conhecimento, enquanto entendimento do mundo, não é, pois, um enfeite ou uma ilustração na mente ou
na memória, mas sim um mecanismo fundamental para tornar a vida mais
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satisfatória e plenamente realizada, torná-la mais longeva, com mais saúde
e qualidade. Entretanto esta passagem da teoria à ação não está garantida
pelo fato de se ter acesso ao conhecimento científico, conceitos, leituras,
teorias e reconhecer o seu valor. A distância existente entre os conceitos
(complexos e demorados para serem construídos) e a vida prática ou experiência cotidiana, de senso comum9 (com seu ritmo rápido) pode ser
tão grande que torne incomunicáveis os dois mundos.
Este problema está posto para os egressos, que passam a habitar
dois mundos distintos e distantes: O mundo do trabalho e a comunidade
científica. Eles estão desafiados a realizar a conexão, a ponte ou a tradução, como refere Fourez acima, entre os dois espaços. Este é um grande
desafio que se coloca para os egressos, qual seja, colocar o conhecimento
adquirido no mestrado a serviço das mudanças requeridas na sociedade,
em particular em seu ambiente de trabalho. Esta é uma conexão necessária, mas que deve ser feita com paciência e estratégia, pois o entorno dos
egressos (seus colegas de trabalho), em sua maioria não tiveram acesso
direto à comunidade científica. Portanto esta caminhada tem que ser vista
como um processo em construção, que pode levar tempo e que vai sendo
construído aos poucos.
A transformação da realidade precisa de muitas mediações. Com
forças humanas qualificadas, transformar a realidade da sociedade pode
ser viável e aqui cabe a pergunta de Dallabrida (2010): por que algumas
regiões10 se desenvolvem e outras não? (subtítulo de sua obra). Pudemos
observar, a partir da pesquisa teórica, bem como da pesquisa de campo realizada, que o desenvolvimento está profundamente conectado com a for9 A valorização das questões práticas, aliada à pouca valorização do intelecto, está ainda presente na região,
sendo a presença local da formação em nível de mestrado um fato novo que pode transformar esta visão. Aqui
caberia uma pergunta: seriam os egressos privilegiados? Porque são poucos, são pioneiros (o curso começou
em 2005 e portanto tem seis anos). A própria UNIPLAC tem apenas 12 anos como universidade e é importante salientar que há forças internas que gostariam de retornar a época em que a IES dedicava-se exclusivamente
ao ensino de graduação. Isto por considerar-se a formação para a pesquisa um investimento oneroso com pouco
retorno prático. Por outro lado, a bolsa de estudos outorgada pelo Município de Lages para cursar mestrado é
um aspecto que merece ser ressaltado, pois é um fator importante na manutenção do próprio curso. Romanelli
(2000, p. 35) ressalta que, durante o período em que não tivemos Universidade no Brasil, houve, na sua visão,
uma perfeita harmonia entre a grande propriedade, o mandonismo e a cultura transplantada da Europa. Nossa
região, na sua constituição, mantém vivas muitas destas características.
10 Naquelas regiões onde o princípio associativo é mais forte, o desenvolvimento acontece mais facilmente,
tese difundida no contexto dos estudos sobre território, na linha dos estudos de Dallabrida (2010). O contrário
também acontece: em regiões onde predominam latifúndios, concentração da terra e riqueza, as dificuldades
para se desenvolver parecem ser maiores.
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mação do capital humano e social locais. A formação favorece o posicionamento de novas lideranças, com visão ampliada e mais fundamentada
no conhecimento dos processos sociais, com potencial para contribuir na
construção deste novo processo, com projetos e políticas que promovam
o desenvolvimento local. Ou seja, a formação humana vem antes das obras
e construções ou do crescimento do PIB, pois a noção de desenvolvimento trabalhada nesta pesquisa está para além da visão tradicionalmente hegemônica centrada no aumento da riqueza11, no valor econômico (crescimento). O percurso realizado nesta pesquisa colocou em evidência que
as políticas públicas devem visar, primeiramente, o ser humano, conforme
formula Sen (1999, p. 29): “o fim maior e último de qualquer política de
desenvolvimento são os seres humanos”.
A maneira como Fourez (1995, p. 52) articula o pertencimento dos
cientistas a uma sociedade objetiva, estabelecida socialmente, e a agrupamentos sociais permite ver com mais clareza as conexões entre o desenvolvimento e a formação científica: “a ciência supõe um enraizamento
social e histórico, e uma interpretação global não deixa de ter influência
sobre as pesquisas locais, pois os cientistas pertencem à cultura, para a
qual contribuem”.
A formação recebida durante o mestrado, está referida ao que Fourez denomina dimensão global, com incursões nos chamados autores
clássicos (revisitação da história) mas também autores contemporâneos
(atualização da produção científica dos pares). O que contribui para o esclarecimento dos problemas abordados pelos estudos e pesquisas que, de
modo geral, têm ênfase em aspectos locais, pois os elementos estão imbricados. Surge então a ampliação do conhecimento que até então detinham
e esta evolução do pensamento eleva seu potencial, o que se faz perceptível entre seus colegas e superiores de trabalho, nos diferentes postos que
ocupam. É neste campo social concreto que é possível impactar de forma
positiva o desenvolvimento local. Também porque os novos mestres estão
imbuídos de valores da cultura regional onde estão vivendo e exercendo
suas atividades profissionais.
11 Ao longo deste trabalho, ficou evidente, a partir dos autores pesquisados, a importância do fator humano
como vital para desenvolver uma região. Furtado (1992, p. 79) já dizia que a capacitação do fator humano é
de fundamental importância, que contribuiu para a formação de seres humanos, capazes de contribuir com
políticas de desenvolvimento.
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Confirmamos crescimento e empoderamento dos egressos a partir
da sua titulação de Mestre. Porém, considerando o pouco tempo de atuação dos sujeitos de nossa amostra após a obtenção do título (no máximo 3
anos para os mestres mais antigos), a avaliação da repercussão da formação
nos espaços sociais e profissionais onde atuam foi limitada. Uma pergunta
indagou aos sujeitos sobre iniciativas e projetos empreendidos por eles. As
respostas apresentaram diversidade de ações, muitas das quais faziam parte
do fluxo de trabalho cotidiano ou foram iniciadas apenas, não sendo possível definir se foram consequência da formação de mestrado nem avaliar seu
resultado. Para entender o impacto concreto, precisaríamos de uma investigação longitudinal, que considerasse um tempo maior após a titulação, o
que poderá ser realizado mais adiante, em uma próxima pesquisa.
Até que ponto o conhecimento adquirido no mestrado pode vir a
incidir no desenvolvimento local? é uma pergunta que obteve resposta
parcial. Do ponto de vista teórico, pode-se sustentar esta hipótese. Entretanto, para obter uma confirmação empírica, com os egressos estudados,
faz-se necessário deixar transcorrer mais tempo e empreender uma investigação complementar.
Entendendo as pessoas como o principal recurso para o desenvolvimento, podemos considerar que a formação stricto sensu, que é capaz de
favorecer a autonomia de pensamento, pode promover atores capazes de se
organizarem e serem protagonistas, assumindo papel de liderança nas organizações e instituições em que atuam, visando a transformação social. Contudo, se a formação leva a posicionamento favorável, as ações efetivas não
parecem estar garantidas pela formação/titulação de Mestre em dois anos.
Podemos considerar que os egressos galgaram posições favoráveis
para exercer liderança e assim contribuir com ações para o aprimoramento dos processos envolvidos nos segmentos sociais onde estão inseridos.
Porém os resultados da pesquisa sugerem que talvez sejam necessárias novas ações e programas, por parte da universidade ou dos próprios PPGs,
a fim de que os conhecimentos científicos possam efetivamente incidir
sobre a realidade para transformá-la.
Machado e Mendes (2009, p. 29) referem que neste processo de
construção de políticas para o desenvolvimento, os Mestrados contribuem para a formação de novas lideranças, nestes tempos de maior participação e democracia. Dizem os autores:
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[...] parece que não mais precisamos formar uma elite dirigente, porque a sociedade que pretende abolir as desigualdades e educar seus cidadãos necessita de
um grande contingente de dirigentes, de pessoas esclarecidas, líderes sociais, capazes de encontrar seu lugar na comunidade e nela interferir para o bem comum.
Depreendeu-se do conjunto das reflexões resultantes da pesquisa,
tanto empírica como teórica, uma visão complexa dos campos ou mundos
distintos e distantes envolvidos na problemática estudada. A Universidade
(quase milenar), a Ciência (em sua configuração e força contemporâneas)
e o mundo do Trabalho (em acelerada transformação) constituem importantes setores da Sociedade ou seus sustentáculos. Os Mestres egressos
do stricto sensu, em número crescente, são novos atores na cena local (e
também global). Eles passam a ter uma posição bastante peculiar na sociedade, pois a formação stricto sensu (mestrados e doutorados) os situa na
interseção entre essas instituições de considerável relevância no mundo
contemporâneo. Por isso, é um ator social que está apto (ao menos potencialmente), para contribuir com o desenvolvimento de maneira efetiva,
conjuntamente com outros atores sociais, sobretudo se trabalhar em grupo, equipes, redes. Ele está na encruzilhada desses mundos e pesa sobre
seus ombros o desafio de conectá-los, pois é ele que participa, em diversos
momentos de sua existência, de cada um deles. São mundos diferentes,
parcialmente superpostos, mas não estão harmonicamente conectados, ao
menos não no sentido de que suas ações convirjam para um desenvolvimento que privilegie o ser humano.
Nasce, portanto, desta pesquisa um trabalho de intervenção social,
lento, mas promissor. Trabalho que resultou na criação de uma rede de
egressos12 do stricto sensu da região, que leva em consideração as teorizações dos autores pesquisados, Fourez e Latour, entre outros, que por sua
vez convergem com a visão humboldtiana de universidade. Associa-se a
esta uma visão de desenvolvimento focada no empoderamento (SEN,
1999) das pessoas e na sua pertinência aos territórios.
12 Acaba de ser criada, sob a responsabilidade da Dra. Ana Maria Netto Machado, e com a nossa participação
direta, a REDE DE EGRESSOS: CONHECIMENTO PARA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, grupo de pesquisa cadastrado no Diretório de Pesquisas do CNPq.
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