A VIDA EM ANEXO Coiote Flores

Transcrição

A VIDA EM ANEXO Coiote Flores
A VIDA EM ANEXO
TOMO II - versos
primeira parte
Coiote Flores
Coiote Flores
é responsável por:
criação, capa e arte interna (exceto onde
especificado), diagramação, edição, revisão,
cópias e distribuição de todo material contido
neste livreto.
Coiote Flores é irresponsável.
A acrescentar, é um autor nascido em meados do
século que precede o vigente (ver data de publicação abaixo), é e foi amante de incontáveis
criaturas, inanimadas ou não.
Todos os textos em A VIDA EM ANEXO - TOMO II
foram escritos antes da efetivação do Acordo Ortográfico de 1990 e mantidos em sua forma
original.
Porto Alegre, 24 de Outubro de 2012.
I
se eu acordasse todo dia e visse esse rosto no espelho, seria feliz
se me chamassem, assim de longe
e eu percebesse que fosse comigo
eu sorriria feliz por terem lembrado de mim
e se eu tivesse o prazer de dar a alegria que as pessoas sentem ao te ver
me sentiria bem quista onde quer que fosse
se pudesse ser quem não se pode ter porque ninguém pode ter a quem todos tem
eu ficaria feliz por tornar ao bem aqueles que me querem bem
II
sonhei contigo esta noite
despia-se da camisola branca
para enfiar-se no vestido preto, frente ao espelho
os cabelos lisos penteados para trás e para os lados
o salto discreto, pele macia destacada entre este
e o vestido
mas eu não estava lá
em um táxi chegava ao baile à noite
no balcão à esquerda, uísque e gin
dançava entre amigas e casais desconhecidos
canções às quais dificilmente dava atenção
interrompida pelo beijo de um estranho
a quem permitiu tocar-te
e eu não estava lá
sonhei contigo esta noite
chegavas em casa cansada
despia-se de costas ao espelho para voltar à camisola
e deitada na cama ignorava lembranças da noite
apenas chorava, com o rosto apoiado nas mãos
cerrado em lágrimas
porque eu não estava lá.
III
não mereço nem um sopro de vento carregando teu cuspe a mim
- sonhar com teu escarro sobre minha face seria ambiocioso demais
se sonhar com teu desprezo e ousar lembrar, terei construído um altar
sobre o qual eu posso me arrastar
e esse arraste em tua direção
é mais do que merece meu corpo transitar
não devo ousar ter de ti os restos de escárnio, vociferação
- o ecoar de teus gritos, ao meu ouvido, outr’ambição
mereço apenas o não merecimento
o nem descontentamento
pois existir lembrando que mereço teu desprezo
é existir em exagero
IV
dos vícios inerentes ao homem
- dentre tais o jogo e o etil é do coração o mais inebriante
seja paixão fortuita ou pago vil
nele me enredo, me enrosco
num salto, de olhos fechados
nos teus olhares embriagados
deixo-me guiar e me embosco
que te pertencer, por ti cair
é honraria por qual anseio
rege-me e guarda em teu esteio
sem tua ordem não hei de sair
soaram sinos na noite em que me beijaste
saltei mundos sem um só movimento
mas os de nossas bocas e almas
umas contra as outras,
uma dentro da outra
V
Ela joga seu corpo com força contra o meu
Sua perna prende a minha contra si
beija vorazmente, vampírica, meu pescoço
seria a cocaína que a move, a torna?
Ela tem ânsia em seus olhos
fome de carne nos lábios sorridentes
sua mão fecha em meu dorso, prende
com unhas cravadas à pele
me permito, dou; deixo pertencer e usar!
estou dentro dela e me movo
à medida que ela gira, contorna
domina o ato em risadas e força
há escárnio, contente escárnio
em me ter sob si e em si
e há gozo que compartilhamos
embora eu esteja aqui, e ela ali
me deixo, me entrego
ela fez-me seu
e goza seu poder
altiva enquanto caminha
pra fora do quarto.
VI
um caso, não um namoro, não um compromisso
nada de rúbrica, de anel ou promessa
sem grinalda nem terno, nem bodas
testemunhas, padrinho ou madrinha
um caso, não mais, sem enlace
sequer acordo, apenas é.
nenhuma jura conjunta, nem votos
repetidos, ensaiados, sacramentados
mas um caso que me toma
tempo, amor, devoção; beijos
abraços, encontros, anseios
e se perguntassem que é isso
e o que há de ser disso
entôo, orgulhoso: eu caso!
VII
Encontre-me de manhã a teu lado
e ria pra mim: ‘bom dia, anjo!
tens sonhos intranqüilos tão livres de paz
quanto meu coração, se longe de ti.’
‘Tenho sonhos intranqüilos no coração
que teme alucinar fantasias distantes
de ti, que agora me acorda fiel,
de nós e o que tornámo-nos juntos’
‘Querubim, anjo, arcanjo e deus meu!
que fiz pra merecer tantas juras
inda havendo tantas, vezes justas,
a querer de ti tão torpe devoção?’
‘Como perguntas, se é que perguntas?!
não há mistério, segredo, resposta.
nem há outra, justa ou impura;
há apenas nossa alvorada conjunta.’
VIII
não tens tu uma casa de repouso
às margens daquele lago que
tanto amavas visitar à tua infância
cercada da grama verde e aparada,
adornada por pedras e árvores
d’onde teus filhos pulariam aos risos
nem tens sobre tua pele as
vestes caras que tua mãe exibia
nos bailes elegantes, adornada
de diamantes, rubis, ouro encravados
em anéis, pulseiras e colares
como os que não tens
que tu tem agora, senão
meu desejo em ver-te nua
jogada à grama à encosta de uma árvore?
tens nada senão meu anseio
priaprismado à tua frente
a fitar, rubro e apaixonado
IX
e ela dançava para mim
e seus olhares, para mim
e cada movimento, para mim
trazia uísque, para si
e eu dançava, com ela
e cada olhar foi para ela
e cada gesto, foi por ela
roubava o uísque, para mim
e nós queríamos
que fosse assim
que cada dança
fosse nossa
e que a noite, já sem fim
fosse dia, pra dormir.
X
no meu sonho só havia tu
a me ensinar sobre tardes de paz
de entregar-se à areia e dar
a alma ao ar
não quis acordar senão
para ouvir tua voz, a ensinar
sobre tardes de paz e dar
o corpo à viagem
e onde chegamos só havia paz
a dividirmos pelas tardes ao mar
de banhar-se em risos e dar
o eu ao nós
XI
cercara-se de muros, armara-se aos dentes;
pedras de indiferença, escopetas misóginas
lançara ao mundo as palavras, que
todo o amor agora é inimigo – aniquilado,
uma vez em seu caminho
correra à torre, observava por frestras
tremia ao som da aproximação
carruagens que transversavam
seu reino lhe imbutiam medo
e se encolhia, trêmulo
escondera-se no aposento mor;
entre devaneios paranóicos
em que o amor lhe chamava
insistia e por fim, invadia
pereceu, ainda só, ainda trêmulo.
XII
Eu toquei a fronte da Beleza quando te descobri
Beijei o próprio Amor ao te trazer para mim
Tu me deste o coração dentro daquele copo
- a cada gole de teu uísque minh’alma escorria gozo
Entendi agora que é na mulher que reside meu ki
e é nas tuas formas que busco minha paz
Tu me entregaste o Amor naquele beijo
e meu coração tornou-se teu
Tu me ensinaste sobre o âmago feminino
e arrancaste de mim a mentira;
não mais preciso fingir desavenças
pois aprendi por ti a dar braço a quem amo
Agora que me deste essa dádiva
me jogo entregue a ti;
usa como quiseres, que já tenho o Amor
já tenho a ti e mais nada me impede.
XIII
quantas garrafas de conhaque vou esvaziar antes de perder você?
procuramos em bares e lares algum motivo para viver.
mas agora não temos mais tempo pra buscar,
desistimos de tudo que prometemos, e troca-se o
amor por placebo.
não há mais danças, nem trocamos cartas
acenarei com a cabeça se nos virmos na rua
hoje seria aniversário da primeira noite em que amanhecemos juntos,
mas vamos celebrar a distância
eu tomo meu vinho e tu dorme em outro lugar da cidade, que
desconheço.
não sou mais bem-vindo em tua casa
e tu não quer mais errar pelas ruas.
XIV
queria explicar-te que te amo e o quanto
mas, amor,
amor não se define
– nem se mede, [vocativo pejorativo
então digo-vos (assim, no plural só pra ti,
porque és minha divindade
e honro-me sendo teu servo,
devoto fiel,
crente,
amigo);
TE AMO.
te amo e te abraço cada abraço
como o primeiro contato com meu bem inatingível
como te beijo imaginando meus lábios cometendo ousadia
ao tocar pele tão além de seu merecimento
e se seguro tua mão digo até que sou egoísta,
quero mais que tudo não te deixar cair
mas aproveito, um pouquinho,
pra que me mantenhas em pé.
XV
O que foi?
foi a menina que perdeu a virgindade nos braços de seu pai
e foi a mãe que perdeu o filho na ira de um policial
o estudante que teve o rosto queimado no que diz-se acidente
e sua amiga, violentada e ignorada pelos pedestres ao redor
foi o acidente de carro que culminou n’outro velório
e o porre que levou mais um a vagar até um revólver
a libertinagem descuidada que cortou sua respiração
foram os anos que passamos contando corpos
porque ser adulto significa não celebrar aniversários
nem chorar cada morte senão com a garrafa na mão
envelhecemos contando os poucos que ficaram
porque o número dos que foram não sabemos precisar…
XVI
Hoje
acordo para ver os contornos de seu rosto contra a pouca luz que entra no
quarto;
cada curva prende minha atenção e não consigo desviar meus olhos do
que vejo
da mesma forma que não consigo controlar minhas mãos que querem
tocar
cada parte de seu corpo e todas, passo a passo, ao mesmo tempo.
são os seios que desejo sob minhas palmas como os lábios que quero
contra os meus;
são as mãos que quero a massagear-me como o calcanhar que anseio em
minhas coxas.
ela tem a pele que meu corpo deseja tocar e tornar seu, como tem as
costas
e o dorso e os pés e todo o corpo que desejo fazer minha paixão.
quero beijar cada centímetro seu, quero acordar e ser teu – por hoje.
quero cada pedaço de ti pra mim para dizê-los todos meus – hoje.
beijo teu rosto, pescoços, pés, pernas, ventre, teus lábios
acordo para ver teu sorriso e despedir-me por hoje.
arte de Pedro Gutierrez
XVII
tu me olhaste
e sem saber o que vias, eu me aproximei
tu me falaste
e sem saber o que pensavas, te abracei
tu me tocaste
e sem saber o que sentias, te beijei
XVIII
O sol se pôs, meu bem, venha para dentro
preparei chá pra ti, pegue um cigarro
estão todos mortos lá fora, aceite.
Só entre nós ainda há vida, sente
que trago o chá para ti, fiz um jarro
está quente ainda – acende um incenso.
Não levante antes que terminemos
há tanto para falarmos sem palavras!
tocam-se mãos, braços, cabelos
sem gastar voz, almas entrelaçadas
dizem que o amor ainda vive,
e a cada gole que tomo do teu corpo
ofereço-te o meu e tantos outros
somos infinitos; o amor persiste.
XIX
Se não for solidão, é mentira
e abrem-se os olhos, frustrados
se não há amor, fica só
e não sabe a quem dizer que é
Se estiver entre homens, mente
que solidão não há, só amor
e não sabe a quem falar
que mentiu, que é dor
e se é dor, é verdade
e se acabar, é mentira
e se sorrir, é amor
e não é verdade.
XX
Ela debruçou-se sobre mim e pediu que eu lhe desse um motivo para não
mais chorar.
Que podia eu fazer? Tantos anos obstinado a não zelar pelos outros
tornaram-me um inapto no momento em que mais desejei ser bom para
outro ser humano.
Mas não estaria ela, assim como eu, acima da mera condição humana?
Era uma deusa que se deitava sobre mim e suplicava por palavras que lhe
cessassem as lágrimas.
E pela primeira vez questionei minha própria divindade. Merecia a
confiança que ela depositava em mim? Merecia sequer estar em sua
companhia, isto, por si, uma dádiva maior?
Meus pensamentos fizeram-se voz e ela respondeu com um sorriso,
chamando-me tolo e amado.
-Se me tens aqui e eu a ti, todo o resto é desprovido de fins.
E assim foram findas nossas dúvidas e lágrimas.
XXI
há de se ter no tempo de uma existência
no singelo tempo a cada concedido
entre a escuridão em ventre
e a escuridão do não mais ser
há de se ter nesse tempo de tudo
apenas uma mostra, dizem
pois que o que dizem nada me diz
já tive de tudo em muitas mostras
meu anjo cantou pra mim à noite
mundos rugiram, surgiram, fundiram
um universo inteiro desfaria-se
sem eu saber
pois em tua companhia, em teus braços
em tuas pernas sobre as minhas
e teus beijos contra os meus
tive meu tudo, meu tempo
tive nesse singelo tempo
mais que sonharia se o tivesse
de novo mil vezes
tive a cada mostra
de teu afeto, tudo
e tudo mil vezes
XXII
O poema que escrevi pra ela,
eternizado e jamais lido.
Como poderia confessar
que tantas palavras
são criação sua
em mim?
Finjo que não sinto
pra que não fuja de mim.
Mas como fazê-la entender
que amo o nosso amor assim,
sem jogos, sem enlace, sem ciúme?
Apenas dela, em todo, enquanto com ela;
sempre com ela, enquanto quiser.
pensando nela, se acordado
se sonho com ela, sorrio
se pede por mim,
a toco.
E se pedir que eu vá,
repouso por perto
para ouvi-la
me chamar
de amor.
XXIII
Nunca me declarei pra ti, (rasuras escondiam o nome), porque temo
te afugentar dizendo “eu te amo”. Por que me arriscar em módicas
palavras se posso te amar constantemente de tantas formas? Não, não
ousaria dizê-las; te amo me entregando pra ti. Te amo como estou
agora, prostrado a teus pés, olhando para ti como quem contempla o
paraíso no firmamento, te toco e te dou meu corpo e me assumo teu
servo. Aquelas palavras assustam porque ser amada parece envolver
uma responsabilidade que não é justa receber sem pedir, como um fardo. Não quero que tu tenhas que carregar meu amor. Pelo contrário, te
amando não peço coisa alguma em troca, exceto que aceite ser amada.
XXIV
é saudade, é amor;
ouço teu nome a cada hora, a cada instante
vejo teu rosto como lembrança de cada noite
de cada instante em que chamaste meu nome
com vontade, com amor
é saudade? é, amor;
querer tuas mãos outra vez entre as minhas
teu ventre entre meus braços e teus lábios
se abrindo em ébrios sorrisos e teu rosto
contra o meu, e com amor
é vontade! é, amor,
de me jogar, entregue e submisso a tuas carícias
de te ver jogar-se, entregue a mim e submissa
à minha volúpia tal qual eu à tua;
de te tomar, de agarrar-me à tua fronte nua
de me deixar agarrar por tuas mãos, lábios
tuas pernas contra meu corpo
é teu amor
que vem contra
a saudade.
XXV
Toda mulher precisa ser acariciada:
no corpo, pelo toque;
na alma, com cachaça
e todo homem deve provir para a mulher amada;
ela é o único amor de sua vida, mesmo que por uma noite apenas.
Quem ousaria negar a quem o escolheu e que o aceitou um único gesto de oferenda?
Toda mulher precisa ser adorada:
no corpo, com o toque;
na alma, pela boca.
XXVI
Lágrimas enquanto te ouvia: de tristeza, de alegria
em saber que a sensibilidade ainda há
Na tua voz, na tua música,
no teu humanismo.
E na cadência de estrela descobri sentir.
Obrigado por reaver a mim minha alma
Por tua existência musical
me vi além da carne:
há espírito
e ele é bom.
XXVII
Teu sorriso carrega um poder que somente uma deusa da mais alta
estirpe tem sobre os corações humanos;
torna tuas as minhas vontades, faz de minha mente um pouso de
repouso para lembranças fotográficas de tua fisionomia.
E é no encontro com tua pele que meu corpo transforma-se em alma e
esta em plenitude,
que em tu companhia não há outra existência senão a tua, e eu
próprio só me justifico existir por ti.
Por que te implorar um último beijo antes de me esvanescer na morte
se o merecimento do carinho de teus lábios sobre minha face faz de
mim imortal?
Não ouso pedir que faça-me teu; antes que se faça som já faço-me
entregue.
XXVIII
Primeira Elegia
meu anjo apocalíptico
de lábios finos
– tantas vezes beijei
não temi, nem desejei
traz a ti o inferno
e teu sorriso terno
a esconder tua sina
não quis, não sabia
fostes e levastes contigo
parte deste coração
que nunca foi teu
e agora chora tua ausência
como poderia saber
teu amor por mim iria
com teu corpo
- que nunca foi meu
e agora perece, distante?
XXIX
À beira do lago, em seu lar, repousa;
entre livros, espera e drinques
enquanto caminho apressado
em ânsia por seu abraço, seus brindes.
Sobre o lago é que os ventos sopram;
empurram a chuva para mim
E entre almofadas ela aguarda;
suas lágrimas, próximas do fim.
Saudosa, me abraça, sorri
e depois do beijo, me cobre.
Molhado, me banha, aquece
- adoração ao vadio nobre.
E sobre sua cama, deitamos
Me serve o vinho e o fumo
e entre a embriaguez e o sono
nos despimos e amamos.
XXX
Meu almoço é um fermentado de cevada e a janta, farinha de soja, meras
sobras.
Não tenho os réis para te presentear com colares ou ouro, mas se sobra
pra cachaça, sou teu.
Que passeio ilustre à beira do lago!
em meus bolsos um maço rasgado
e o isqueiro importado da esquina
me devolva o amor que te dei
que até este era emprestado
Peço folha e caneta na mesa do bar e te escrevo um poema
- só me restam as letras e
estas, entrego a ti.
Fique para mim teu beijo – tão gratuito quanto minha arte, mas
de longe muito mais valioso!
XXXI
Pelas águas que banharam nossos corpos
à entrada litorânea entre ilha e continente
onde areia nos cobriu e fez-nos entes
queridos um ao outro, amando em risos torpes
Pelas noites que uniram nossos gestos
fossem córeo ou teu lamento entre meus braços
em que contemplei sorrisos vastos
ou lágrimas de embriagados manifestos
Pelos dias em que me acolheste e chamaste teu
sem deixar-se possuir, mas ofertando entrega
por um longo abraço que não nega;
este brinde é teu e, teu sorriso, meu.
XXXII
Nostálgico
Onde estão nossos poemas, nossos sonhos,
promessas, cartas enterradas em
gavetas onde estão nossas fotos?
Onde estão as mentiras, as belas mentiras
sussurradas, exclamadas, recontadas
onde fingimos nosso amor?
Onde estão os jeans rasgados, os concertos
as brigas pela embriaguez de amar
onde jamais se fez amor?
Onde fica o retorno?
XXXIII
Foram tantas fugas, mentiras, desculpas
Tolices que inventei para estar só
e agora, só, lamento só por uma
Tão única, esquiva e turva;
sandices contei para ser teu
e agora, só tormento por tua
fuga; verdadeira, desnuda,
me disseste jamais ter só eu
e só agora lamento.
XXXIV
Não sei o que será da garrafa quebrada que está atirada ao lado da cama
já me irrita o odor exalado pelos resquícios de cachaça nela deixados
Também não sei o que fazer com o papel amassado e o invólucro de bala
que me pediste pra guardar no bolso da calça jeans
Só sei que guardo com amor
tudo em que você tocou
Não sei o que fazer com o par de meias que me emprestaste
na noite em que te visitei com minhas vestes encharcadas pela chuva;
tão preocupadamente me convenceste a tomar um banho
e trocar de roupa
Que agora não me desfaço nem da cartela da pastilha anti-gripal
que me deste e insistiu até eu tomar só por prevenção
Só sei que guardo com amor
tudo em que você tocou
Não sei pra onde ir sem lembrar de ti;
é o cartaz do filme que vimos, é a rua em que nos beijamos pela primeira
vez
O bar onde me ofereceste uma cerveja
a cerveja que disseste preferir.
Não sei o que fazer com cada lembrança,
mas sei que guardo com amor
tudo que você me deixou.
XXXV
Insone
Meu corpo é uma nuvem
E tu verá o que teus olhos quiserem
Meu olhar é fotográfico
E eu serei o que teu foco olhar.
Teu céu é redenção
e nem sei onde acaba essa canção.
XXXVI
Tão seguro de si é o tolo que acredita estar infeliz
a dois passos de uma atriz
a dois drinques de um sorriso
Infame alma! que não vê gozo na desgraça
Larga tua amarra de si;
é teu desespero que abre caminho à liberdade;
podes tudo! e tudo é teu se nada tens consigo;
tomai o ar e o destilai
Serve em teu corpo o elixir mais próximo
e sente a euforia!
XXXVII
Amanhecer à distância
A manhã nublada eleva o espírito do homem, como se esse fosse
amálgama com os ares que preenchem o visto dos morros da serra.
O café preto de origem inidentificável cria a ilusão de estarmos longe
daqui.
É o vapor a tocar meu rosto,
é uma cabana aquecida, perdida entre
árvores ao norte.
O porto seguro de nossa mente,
em forma de abrigo do frio,
como abraço de deus nos gestos de uma mulher;
há paz e conforto em algum lugar.
Quando o encontro, já está dentro de mim.
XXXVIII
Uma taça de vinho com o mundo
O mundo tem rido da tua mentira, meu caro;
por trás das máscaras deles observa a desconfiança
É justificado; também ludibriaram a outrem e a si
e da mesma forma viram-se
traídos em diferentes momentos.
Que culpa tens?
Alguma, nenhuma, a mesma deles, talvez.
Quem pode simular a voz alheia?
Tal qual não entendes a ti não sou eu detentor da verdade submersa de
cada um
seja eu, tu ou demais representantes da digníssima raça humana.
Mas, ai!, justifico meu descaso pelo mundo assim!
Não é caso de se importar ou não com o próximo homem
apenas de admitir a ignorância quanto ao que ele é,
pensa ser ou o que o move.
Nada se pode presumir e daí ser impossível julgar.
Podes tu me entender?
XXXIX
Dança encoberta
Tu carrega a música contigo
e o resto do mundo dança
e enquanto eles rodam e exibem-se
infelizes
nós fugimos da chuva em que escorregam.
Carrego comigo os discos
e o resto da festa canta
e se todos gritam, desafinam & se
exprimem
engolimos a água que lhes negam.
não atirei minhas dores contra ti àquela noite porque elas foram
embora mais cedo,
quando ainda se falava de amor e todos cantavam & tocavam &
vociferavam solidão.
XL
Força de repulsão
Aproxima-te e me beija a fronte; me sinto pequena.
De longe, mando-te beijo; te sentes despedida.
Me dizes os beijos; sinto-me enganada.
Te beijo sem dizer, sentes invasão.
Sem braços, de costas, sentimos saudade.
De frente, sentimos vontade.
De quê?
Houve amor um dia aqui, não?
Sobra um rastejar para longe, eco distante;
Amor, ainda me ouve? Não.
Resta um longínquo sopro pra longe.
XLI
Vou me deixar levar pela loucura, pelas noites febris, delírios de tragos
juvenis
revolver a terra até que vire lama, areia movediça, calabouço pro
inferno
e vou te arrastar comigo pelos confins de uma mente obscura
para que enxergues comigo a loucura e confunda
com amor, com paixão, transformando meu seqüestro egoísta
em ternura.
XLII
Adieu, chérie
Teu terno liso, risca de giz, esconde teu corpo,
um risco infeliz
Meu terno incolor, de humano aprendiz, descobre meu corpo,
certeza de atriz
Nosso encontro inventado, teu vestido passado
me foi desenhado – e eu cortei, decepcionado.
Declarei morte à métrica, neguei o amor
e só me sobrou guarda-roupa empoeirado,
poesia pela metade
e a felicidade em gritar
Me tornaste homem feliz
e tudo que te deixei
foi de lado.
XLIII
Na cruz
Vejo-te à minha frente, nua, teus braços estendidos
Tens o rosto virado para o lado, mas sorri
porque me queres abaixo de ti, ajoelhado
a beijar-te os pés, sobrepostos
Qual faço até me erguer
para acariciar-te as pernas
beijar canela, joelho, coxas, sexo
até tremeres a barriga ao toque
Vejo-te erguida, ao ar
em posição crucifical
imóvel, suspensa, a arfar
enquanto alcanço teus seios, acaricio teus braços,
busco teus lábios no rosto que se vira para encontrar o meu
e encontro tua língua além de meus lábios
e sinto teus braços libertos da cruz sobre minhas costas
e nossos medos esvaídos de nossos corpos
contato: [email protected]
http://coioteflores.wordpress.com

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