Sobre Campos Lindos - Escravo, nem pensar!

Transcrição

Sobre Campos Lindos - Escravo, nem pensar!
Sobre Campos Lindos
Nos dias 2 e 3 de agosto, aconteceu a formação do “Escravo, nem pensar!” para
lideranças populares em Campos Lindos, nordeste do Tocantins, fronteira com
o município de Riachão, no Maranhão. O encontro reuniu quinze camponeses
das comunidades Raposa, Vereda Bonita, São Francisco e Fazenda Sussuarana,
todas atingidas pelo projeto da soja que tem transformado a vida das pessoas
desde o final de 1997.
Muitas histórias foram narradas nesses dois dias de encontro, indicando a
necessidade de expor o problema em busca de soluções. Sobre os problemas, as
lideranças poderiam falar durante horas, dias até. As atividades que
envolveram elaboração de propostas para solucioná-los, porém, deixaram-nos
angustiados: parece não haver alternativa ou saída para uma situação de
opressão e injustiça, de negação de direitos, de violência e de destruição.
O discurso de desenvolvimento trouxe para a região de Campos Lindos os
milhares de hectares de plantações de soja, que abastecem tradings do setor,
como a Bunge e a Cargill. O desenvolvimento trouxe estradas para escoar a
produção. O desenvolvimento trouxe trabalhadores do Piauí e gente de todo o
Estado, na esperança de conseguir emprego. “O dinheiro corre solto em
Campos Lindos”, ouvia-se há cerca de quatro anos. Os bares ficavam lotados,
Campos Lindos era uma festa.
Passada a euforia, a população começou a perceber que o aclamado
desenvolvimento trouxe outros fatores. Onde antes era cerrado, estende-se um
grande deserto de soja. O desenvolvimento expulsa famílias de posseiros que
há gerações ocupam a região, envenena as águas, escraviza trabalhadores. Mais
uma vez nos perguntamos: progresso para quem?
A história mostra bem como o desenvolvimento baseado na monocultura, no
latifúndio, na exportação e na exploração de trabalhadores é produzido. Um
belo dia, decidiu-se que aquela imensa área de cerrado seria dividida entre
grandes proprietários, amigos do então governador e “fundador” do Tocantins
Siqueira Campos, entre eles a senadora Kátia Abreu e o ex-ministro da
agricultura Dejandir Dalpasquale. Aquela terra, afinal, não tinha dono e nada
produzia, era dominada pelo cerrado, precisava ser retirada do atraso e
contribuir para desenvolver o Tocantins, cuja economia tem seu carro-chefe no
defendido agronegócio.
Parece que estamos de volta à década de 70, quando o governo militar impôs
uma política de ocupação à Amazônia que desconsiderou a existência de
populações tradicionais e concedeu, por meio de incentivos fiscais e construção
de infra-estrutura, grandes porções de terra a fazendeiros, empresários e
multinacionais. Naquela época, chegaram à região as estradas e o progresso,
que não poderia conviver com a mata, sinal de atraso, e com os camponeses,
que não trazem lucro. Assim, integramos a Amazônia à nação, promovendo um
desenvolvimento que gerou a devastação da floresta, os conflitos agrários e o
trabalho escravo.
Mas não estamos naquele passado nem tão distante. A história se repete em
Campos Lindos, mostrando que nada aprendemos com ela. E que os
beneficiados continuam sendo os mesmos. E os que pagam pelo progresso
também.
Antes de o desenvolvimento chegar, contam as lideranças, a vida em
comunidade realmente existia. Se o transporte e a comunicação eram mais
difíceis, a qualidade de vida era bem melhor. O trabalho era organizado
coletivamente, em sistema de mutirão, com papéis definidos. Havia fartura de
água, frutas e caça, abundantes no cerrado. Aliado a isso, os camponeses
desenvolviam cultivo bastante diversificado de milho, mandioca, arroz, feijão,
fava, abóbora em pequenas áreas, além da criação de animais, suficientes para
fornecer rica alimentação às famílias. Não havia dependência do dinheiro.
Ninguém trabalhava de empregado. Quando uma família passava por
dificuldades, as outras ajudavam. Só era necessário comprar querosene e sal, e
nesse momento a comunidade se juntava e um único animal partia na direção
de Balsas (MA) para reabastecer as casas.
Hoje, a situação é bem diferente. Muitas famílias foram expulsas de suas terras,
com medo das ameaças ou com indenizações baixíssimas. As que resistiram,
enfrentam cada vez mais dificuldades. O cerrado que proporcionava fartura
quase não existe. A água que abastece as comunidades está contaminada pelos
diversos tipos de veneno usados em todas as etapas do cultivo da soja. “Não
banhamos mais no rio porque saímos com coceira”, afirmam as lideranças. Em
função desse envenenamento, há muitas doenças e até casos de crianças que
morreram após a pulverização da lavoura com agrotóxicos por aviões.
As nascentes de vários rios e ribeirões estão praticamente todas devastadas e
cercadas pela soja, inclusive as três principais nascentes do rio Manoel Alves, o
mais importante da região – uma delas já está secando. A produção de gêneros
alimentícios tem diminuído cada vez mais: muitas plantas estão adoecendo e
morrendo, a exemplo da mandioca que apodrece antes de amadurecer. A
explicação que se dá é a contaminação do solo e da água, e a concentração das
pragas expulsas das lavouras rumo às posses agora ilhadas em um oceano de
soja. Não só as plantas morrem, como também animais. Muitas vacas abortaram
suas crias. A criação de gado também diminuiu, visto que as famílias foram
espremidas em lotes pequenos e não podem mais criá-lo solto. Os que tentaram,
tiveram seus animais mortos pelos funcionários das fazendas.
O êxodo rural povoou a periferia de Campos Lindos e de outras cidades.
Primeiro saíram os que não se atreveram a resistir ou que foram brutalmente
expulsos. Com a diminuição do número de famílias nas comunidades do
campo, a prefeitura passou a fechar as escolas que já não se encaixavam nas
cotas de quantidade de alunos exigidas. Os que teimaram em ficar já não
podem mais dar educação aos seus filhos, a não ser mudando-se por sua vez
para a cidade.
Com a redução das terras e da produção e o fim da vida em comunidade,
muitos homens são obrigados a trabalhar nas próprias fazendas de soja,
restando a eles o trabalho mais pesado, como a catação de raízes. Foi em
Campos Lindos uma das primeiras libertações de trabalhadores escravos
realizadas no Tocantins pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do
Trabalho e Emprego. Hoje, as comunidades acabam dependendo
economicamente daqueles que provocaram sua miséria, num ciclo cruel. Na
cidade, a maioria das pessoas vota nos candidatos do projeto e o defende. No
sertão, já não mais.
Ao mesmo tempo, a história dessas comunidades é também de luta e
resistência. Os que ficaram não querem desistir de suas terras e buscam
condições para superar as adversidades, junto com a Comissão Pastoral da
Terra. Algumas famílias conseguiram legalizar suas posses por meio da
concessão do título de propriedade, porém em área reduzida. Na comunidade
São Francisco, foi organizada e construída uma Escola Família Agrícola, que
pretende educar os jovens com fidelidade e coerência com suas raízes
camponesas, de forma integrada à sua realidade. Os camponeses tentam
aproveitar de forma sustentável todos os recursos que o cerrado ainda oferece.
Foram iniciados o plantio de mudas de árvores nativas e a produção de mel.
Uma casa de frutas foi construída para haver o processamento e
armazenamento das polpas.
Houve muitas conquistas, principalmente no que se refere à organização das
comunidades e à sua articulação enquanto camponeses, conscientes de qual o
seu papel na história. Podemos dizer que a história de Campos Lindos é
também lição de resistência. Resistência que ainda deve traçar um longo
caminho, já que o desenvolvimento insiste em expandir seus domínios.
Carolina Motoki, 7 de agosto de 2008