artigos - São Sebastião do Rio de Janeiro

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artigos - São Sebastião do Rio de Janeiro
São Sebastião do
Rio de Janeiro
Thays Pessotto de Mendonça Zugliani
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A
partir do reconhecimento e proteção pela Unesco
de paisagens culturais, abriu-se a possibilidade
de exame mais detalhado do sentido presencial e
intangível do patrimônio cultural. Inicialmente,
o recorte não foi pensado para tratar de áreas urbanas,
mas para as diferentes combinações de natureza e cultura
que resultam em cenários especiais, frutos da interação
entre natureza e homem, facilmente identificáveis visualmente por muitos e muitos habitantes deste incansável e generoso planeta que habitamos. Paisagens que sofreram um processo de culturalização de sua imagem,
transformando-as em ícones, demonstrativos da evolução das sociedades ao longo do tempo, sob a influência
das condições do meio ambiente que as contém, numa
relação muitas vezes demonstrativa de uma utilização
dos recursos naturais feita de maneira sustentável. Estão incluídos nesta categoria e já reconhecidos como
patrimônio cultural da humanidade, por exemplo, os
campos de plantio de arroz das Cordilheiras Filipinas,
o Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta ou Ayre’s Rock na
Austrália, indissociável da cultura dos aborígenes, a Costa Amalfitana na Itália, com suas cidades que se derramam na direção do mar, e outras mais evidentes, como
os jardins criados intencionalmente pelo homem, por
razões estéticas, como a Paisagem Cultural de LedniceValtice na República Tcheca. Todos esses locais têm retratos que, além de apresentarem atributos paisagísticos
notáveis, únicos mesmo, trazem associados à imagem
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outros aspectos de natureza intangível, provenientes da
cultura dos povos que habitam essas paisagens. Uma
mente mais imaginativa pode sentir o aroma do limão
numa representação da Costa Amalfitana, ou ouvir os
ritmos aborígenes provenientes de uma celebração ao
sopé do Uluru-Kata Tjuta.
A Cidade Maravilhosa de São Sebastião do Rio de
Janeiro é uma paisagem cultural por definição e enquadrável em qualquer das categorias definidas pela Unesco.
É de valor único não apenas para os brasileiros mas para
toda a humanidade. Em primeiro lugar, tem-se o sítio
natural de formação da cidade, a estupenda e única combinação de costões rochosos de escarpas verticais que
mergulham no mar e montanhas recobertas por vegetação exuberante, formando o pano de fundo da baía
fechada, acolhedora e protetora dos que ali procuraram
abrigo ao longo do tempo. Ou, nas palavras do Professor
Aziz Nacir Ab’Saber:
“No extenso litoral brasileiro, o grande destaque, em
termos de cenários e beleza natural, fica para a Baía da
Guanabara e seu entorno. Sobre o seu caráter de paisagem
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Vista parcial da Baía de Guanabara,
destacando-se o Corcovado
e o Morro do Pão de Açúcar.
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de exceção, sempre existiu grande consenso entre viajantes
naturalistas e turistas eventuais. Nesse sentido, é possível
afirmar que a diversidade de suas formas de relevo – sua
compartimentação topográfica e hidrológica, completada
por um revestimento vegetal de marcante tropicalidade –
constitui uma das combinações de heranças da natureza,
de máxima excepcionalidade na face da Terra. Vale dizer,
no contexto do ‘planeta vivente’ por excelência.”
Permeando esses tecidos, temos a cidade com o mérito de ter-se restringido ao insterstício entre mar e montanha florestada, guardando ao longo dos anos um equilíbrio de proporções entre mar, cidade e floresta urbana,
compondo uma cenografia única. A imagem dessa combinação peculiar está gravada na memória de quase todos os habitantes do mundo. Dependendo do momento
em que é retratada, acompanha a imagem uma trilha
sonora que vai desde o mais puro samba carioca, passando por Tom Jobim até Fausto Fawcet e outros poetas
modernos que falam de beleza e caos.
Talvez seja a ameaça dos caos, cada vez mais presente no cotidiano daqueles que habitam e adoram essa
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cidade, que tenha motivado o esforço ainda em curso de
buscar-se o reconhecimento pelo mundo de todas as certezas que temos sobre essa porção de terreno que contém o Rio. Existe por este viés a possibilidade de tratarmos cultura e patrimônio como recursos estratégicos,
capazes de propor fórmulas alternativas de desenvolvimento, que tenham como protagonistas o território e
os valores culturais da sociedade. Podemos fazer uso
desta “Cena de Identidade”, como qualificou Milton Santos, para, a partir dela, compreendermos nossa trajetória e projetarmos o futuro que desejamos.
A partir do reconhecimento da paisagem como um
recurso, podemos, no caso do Rio de Janeiro, elencar cada
um dos valores associados a ela, que são muitos, razão
pela qual nos propomos a abordar aqui os principais. O
que pretendemos nesta reflexão sobre esse lugar tão especial – que nem todas as violências impostas pelos homens ao longo de quase quinhentos anos conseguiu destruir, roubar-lhe os encantos que teimam em parecer novos a cada dia, de cada ponto observado, sempre diferentes vistos sob cada luz do dia ou da noite – é observar a
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contribuição de cada elemento para a construção dessa
paisagem cultural, a história da cidade-capital, sua evolução urbana, a preservação da floresta, a baía, os pontos
focais desse cenário reverenciado por todos como uma
das cidades mais lindas do mundo.
De início, a centralidade de seu porto, para a vigilância da enorme costa portuguesa nas Américas, teve
papel fundamental na atribuição à cidade do papel de
capital da Colônia, tendo sido a principal razão da transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro. Na
verdade, percebe-se nos retratos produzidos da cidade
em seu período colonial que a imagem de porto e praça
de comércio se sobrepõe à feição da natureza notável,
não havendo uma maior preocupação com a representação pormenorizada dos elementos naturais que compõem
o espaço no qual a cidade acontece. É a partir de 1808,
com a vinda da Família Real, que os muitos viajantes que
por ali passam ocupam-se de retratar a beleza cênica do
Rio, desenhando com cuidado os rochedos e morros interligados ora pelo mar, ora pela luxuriante vegetação
tropical, entremeada esporadicamente pelas edificações
que começam a se adensar e a se sofisticar, de forma a
atender ao gosto não apenas da corte portuguesa mas
também dos muitos militares e diplomatas estrangeiros
que chegavam acompanhados de artistas que deviam retratar a terra exótica e distante para a Europa. No Rio de
Janeiro, a cidade declarada Município Neutro da Corte
em 1834, o papel de cidade-capital vai se consolidando
após a invenção de uma unidade chamada Brasil, declarado um reino independente, em 1822, estranhamente
pelo herdeiro do Trono português.
O valor histórico do Rio de Janeiro está ligado à sua
função como capital do País desde a Colônia, passando
pelo Império até a República, períodos de grandes transformações econômicas e sociais do País, estando relacionados a cada um deles períodos de renovações urbanas
na capital que vão pouco a pouco marcando o território,
produzindo um resultado no tecido urbano que é hoje
um somatório de tempos. Internacionalmente, o Porto
do Rio de Janeiro tem papel de destaque na comerciali-
Morro do Pão de Açúcar.
Ao fundo, à direita,
enseada de Botafogo.
zação de produtos tanto da exploração da Colônia, quanto da produção do Império e da República. A cidade teve
uma trajetória única e singular no contexto da formação
do Brasil. Desde os tempos de conquista e consolidação do
Império português na América tropical ao período posterior do processo de formação da Nação brasileira, com a
independência política, o Rio de Janeiro exerceu uma centralidade decisiva para a construção das bases geopolíticas
do Brasil moderno. Capital do vice-reinado, corte imperial e capital da República, a história da cidade se confunde com a história política e social do Brasil até a construção de Brasília em 1960. De 1763 a 1960, o Rio de Janeiro
foi palco dos mais importantes momentos políticos da
Colônia, do Império e das primeira e segunda repúblicas.
A Baía de Guanabara
Na verdade, é na baía que tudo se inicia. Guanabara
em tupi-guarani tem o significado de baía ou enseada, de
águas que penetram para dentro da terra. Não se pode
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afirmar com certeza qual das muitas expedições enviadas
pelo Rei D. Manoel para o reconhecimento da costa do
Brasil foi a primeira a aportar no Rio de Janeiro. Certo é
que já na carta de Tomé de Souza, primeiro GovernadorGeral do Brasil, datada de 1553, está descrita a formosura da enseada e suas qualidades protetoras para a implantação ali de uma vila, uma “povoação honrada e boa”. Esse
acidente geográfico, visitado também pelo florentino
Américo Vespúcio entre os anos de 1501 e 1503, é descrito
como um lago tranqüilo, já que as terras que a circundam impedem que o furor dos ventos provenientes do
oceano atinja suas águas diretamente. As terras ao seu
redor se distribuíam em uma concavidade formadora de
um único e acessível porto.
A ocupação das margens da baía se dá na medida
em que as atividades de defesa do território e de exploração econômica da Colônia ganham importância, sempre
em função de sua centralidade em relação à costa. A fundação da cidade, em 1565, se dá sob a ameaça da ocupação francesa, levada a cabo por Nicolas Durand de
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Villegagnon que, com cerca de 600 pessoas, ocupou uma
das ilhas do interior da baía, a qual passou a receber seu
nome. Não foi por outro motivo que também os franceses vieram a ocupá-la, reforçando a caracterização da baía
como ponto estratégico no que se refere aos aspectos político, econômico e militar. O mapa da França Antártica,
produzido por Jean de Léry entre 1557 e 1558, identifica
os acidentes geográficos em torno da baía, bem como os
aldeamentos dos tupinambás, mas é de 1579 o mapa da
cartografia francesa considerado mais completo da área,
que representa a entrada da barra, com o Morro do Pão
de Açúcar, a Ilha do Forte de Villegagnon, com a vila francesa próxima e a característica montanhosa do terreno
nas áreas adjacentes.
Os franceses, que angariaram a simpatia dos nativos, foram hostilizados pelos portugueses, que tinham
o firme propósito de manter sua hegemonia sobre o território e consagrar a unidade desta invenção chamada
Brasil, para o que aquele ponto era peça estratégica.
Assim, após a primeira investida contra os franceses em
1560, foram definitivamente expulsos em 1565, quando
Estácio de Sá fundou a Cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro. A denominação não escapa da tradição portuguesa de atribuição de nomes para as cidades a partir
dos elementos naturais presentes em seu contexto territorial que sejam referências geográficas de reconhecimento do terreno. O nome Sebastião era ao mesmo tempo uma homenagem ao Rei de Portugal, D. Sebastião e
ao santo de mesmo nome, que havia protegido os portugueses na batalha pela conquista da área.
A seleção do local para a instalação da cidade não
deveria fugir ao critério da engenharia militar, que determinava a localização de forma a combinar a possibilidade de defesa da costa e de controle das rotas marítimas
com a facilidade de penetração para o interior. Foi assim
que Mem da Sá transferiu o núcleo urbano inicial na
barra para o interior da baía, reconstruindo a vila sobre
um morro que viria a ser conhecido como o do Castelo,
e que mais tarde balizaria junto com outros três o crescimento da cidade na várzea. A escolha do novo lugar
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estava amparada pela disponibilidade maior de terrenos
para abrigar seu crescimento.
Esses aspectos geográficos, complementados pelos
outros dotes naturais da área envoltória da baía, tal como
sua rede hidrográfica, que oferecia grande possibilidade
de penetração e de comunicação no território, e as terras
que se estendiam ao norte e ao sul interligando-a ao restante do litoral, são tratados nos mapas subseqüentes,
novamente de autoria dos portugueses que a haviam
reconquistado e, também dos holandeses, que em 1624
tentarão investidas para a conquista da Bahia, antes de
ocupar Pernambuco em 1630. Como edificações junto à
Baía de Guanabara, têm-se, de início, uma pequena ocupação sobre o Morro do Castelo, com a Sé, e o Colégio
dos Jesuítas, além dos fortes de defesa da Baía (posteriormente complementados por guarnições e fortins). A rede
hidrográfica de grande comunicabilidade, com o conjunto de rios que deságuam na baía, é fator determinante
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O que antes era praia agora
transformada no Aterro do Flamengo.
Ao lado direito, Praça Paris.
mapa produzido por João Teixeira Albernaz mostra o
rio navegável que vem da entrada da barra até o primeiro
porto, onde é hoje a Praça XV de Novembro.
É esse porto que ganha importância com a descoberta de ouro nas Minas Gerais por volta de 1645, tornando-se o principal da Colônia em função de ser a porta
de entrada para o Caminho Novo das Minas que subia
para transpor a Serra do Mar em direção ao interior.
Mesmo com o crescimento da cidade e a consolidação de sua função portuária, a orla da Baía de Guanabara permanece inalterada até o final do século XIX.
Foram as obras de urbanização, com a transferência do
porto, nos primeiros anos do século XX, para a região
da Prainha (hoje Praça Mauá), que deram início ao processo de aterramento da baía. Antes disso, já se havia
modificado o ambiente natural para acomodação da
cidade com o aterramento de mangues e lagos, como no
caso da área do hoje Passeio Público, antes da intervenção paisagística de Mestre Valentim e
depois de Glaziou, Lagoa do Boqueirão. As modificações de modernização
do Centro alteram o contorno da baía
do Caju até Copacabana, com aterros
para a construção da ampliação do
cais, das avenidas Rodrigues Alves e
Beira-Mar e, posteriormente, do Aeroporto Santos Dumont e do Parque do
Flamengo. Outra grande intervenção
foi o aterro de grandes áreas da enseada de Botafogo para a criação do bairro
da Urca em 1908.
A vida da baía está ligada à saúde
dos rios e córregos que compõem a
bacia hidrográfica disposta no seu entorno e cujos componentes nela deságuam. Tendo sido
historicamente utilizada como via de penetração para
o interior do território, bem como via de escoamento
da produção econômica da região, esta bacia foi também responsável por considerável adensamento das
ocupações em toda a área, com conseqüente impacto
na implantação das fazendas e engenhos, que os utilizavam para o escoamento de sua produção. Ainda hoje temos, em especial em Jacarepaguá e na Baixada Fluminense, alguns marcos dessas ocupações, como a Casa da Fazenda do Engenho D’Água, a Fazenda da Taquara, a Fazenda de São Bento e de São Bernardino. Já em 1666, o
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negativo na qualidade da água. Esta é hoje a maior concentração urbana e populacional da zona costeira do
Brasil. São cerca de 55 rios e córregos que trazem um
grande volume de poluentes para a baía, que, apesar
disso, ainda abriga uma população de cerca de 70 botos-cinza (dados da Dra. Ana Paula Leite Prates, Ministério do Meio Ambiente). Próximo ao litoral da Ilha
do Governador, no Canal da Maré e na Ilha do Fundão,
observa-se a existência de manguezais, depositórios de
grande biodiversidade.
A Floresta Urbana
Outro valor importantíssimo agregado à paisagem
é o ambiental. Apesar do desaparecimento de cerca de
93% da cobertura original da Mata Atlântica, seus remanescentes ainda possuem uma grande importância ecológica e cultural. São considerados parte proeminente
da lista dos 25 hotspots de biodiversidade, que agregam
as mais ricas e ameaçadas reservas de vida animal e vegetal do planeta (Myers et al., 2000). A Unesco vem reconhecendo essa importância, tendo concedido em 1999 o
título de Patrimônio da Humanidade para as reservas
de Mata Atlântica do Sudeste brasileiro (estados do Paraná e de São Paulo) e da Costa do Descobrimento (estados da Bahia e do Espírito Santo). O Estado do Rio de
Janeiro, com cerca 928.900has de Mata Atlântica remanescente, abriga quase 10% do que resta da outrora grande floresta. Essa área foi recentemente classificada em
cinco blocos que apresentam uma concentração maior
de fragmentos florestais. Quatro deles compartilham as
características básicas da maior parte do que resta da
Mata Atlântica. São espaços rurais, em geral montanhosos, que conseguiram sobreviver ao impacto destrutivo
das atividades agropecuárias. Um desses blocos, no entanto, apresenta um diferencial histórico importante,
situando-se no interior da área metropolitana do Rio
de Janeiro (Rocha et al., 2003).
Essa floresta urbana, talvez a maior do mundo, tem
papel fundamental na composição do cenário natural do
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Rio. Representa um dos primeiros (data de 1861) exemplos de restauração ecológica por meio do reflorestamento da América Latina ou mesmo do Ocidente. É um
excelente exemplo de planejamento e gestão de zona
periférica de área urbana em desenvolvimento, num
binômio no qual uma parte influencia a outra ao longo
do tempo. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro, criado
por D. João VI em 1809, contribuiu decisivamente para
o estudo científico das espécies integrantes da Mata
Atlântica, de grande diversidade, tendo fornecido mudas para o processo de reflorestamento das encostas devastadas pelo plantio do café. Esse aspecto confere um
significado cultural ao valor natural da floresta urbana,
transformando-a num atributo cultural, um legado de
eventos históricos e de desenvolvimento social, que também tem valor ambiental, reafirmando sempre a impos21
O Jardim Botânico,
criado por
Dom João VI
em 1809, pesquisa
as espécies
integrantes da
Mata Atlântica.
sibilidade de dissociação entre patrimônio ambiental
e patrimônio cultural.
O Parque Nacional da Tijuca é composto por quatro partes que se integram em um conjunto: o Maciço da
Tijuca, a Serra da Carioca, o Conjunto Pedra da Gávea e
Pedra Bonita, a Serra dos Pretos Forros e Covanca. É justamente o conjunto dessas encostas verdes, localizadas
no cerne da metrópole, que compõe o pano de fundo da
apreensão visual da cidade vista do mar. Os habitantes do
Rio contribuem com esse processo, agregando a esta imagem um valor intangível e presencial. Intangível é a forma como esse recurso natural e cultural é fruído diariamente por centenas de habitantes da metrópole a seus
pés, quer seja de modo contemplativo, apreciando de longe ou de perto sua beleza, ou de modo ativo, servindo-se
da floresta para práticas de lazer. Em seu sentido presencial, a floresta confere ao Rio parte de sua identidade
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visual, é sua presença no contexto da cidade,
parte da “Cena de Identidade” do carioca.
É importante assinalar que o processo
de culturalização de áreas naturais no Brasil
não se iniciou com os portugueses. As primeiras transformações do cenário natural
do litoral Atlântico pelas atividades desenvolvidas pelos seres humanos datam de pelo
menos 12.000 anos atrás. Tanto os paleoindígenas quanto os indígenas não produziram processos mais intensos de desflorestamento. No entanto, a prática da queimada
para a implantação de pequenos cultivos está
presente nessa região há milhares de séculos.
Os índios não tinham o hábito de ocupar o
interior das florestas, em geral preferiam
ocupar as áreas de transição entre ecossistemas, como a zona costeira, onde o manejo
múltiplo dos recursos naturais se dava mais
facilmente. É sabida a existência de sítios
arqueológicos das ocupações de povos coletores-caçadores (sambaquis) e de aldeias
tupinambás na região metropolitana do
Rio, porém, sobre as áreas florestadas pouco se sabe, podendo uma pesquisa científica voltada para o registro
das ocupações anteriores revelar novos dados que confiram ainda maior valor a esse componente da paisagem.
A História do Brasil contada pelos
monumentos e sobrados
O complexo urbano-paisagístico do Rio de Janeiro é um caso bastante singular no conjunto dessa categoria, em geral composta por cidades onde a unidade
no uso de determinada tipologia arquitetônica é uma
das características mais marcantes.
A cidade, iniciada na barra, posteriormente transferida para o interior da baía, sobre o Morro do Castelo,
onde as edificações principais eram o Colégio dos Jesuítas, a Igreja Matriz e Casa de Vereança, desce para a várANO V / Nº 9
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das por lagoas, pântanos e praias, aterradas
ao longo dos últimos quatro séculos. Parte
do território da cidade fluminense foi modificada e ampliada, tendo como principal
instrumento a terra fornecida com o desmanche de morros da cidade. É opinião consensual que os agenciamentos feitos pelo
homem sobre esse sítio agregaram-lhe valor. Parte dessas ações encontram amparo
nas tradições do urbanismo português, no
qual as questões de interesse coletivo, como
a saúde da população, regras de higiene e
outros aspectos da saúde pública, mereciam regulamentação feita pela Câmara por
meio de normas de posturas.
São também características de nossa
herança portuguesa a implantação da cidade sobre as colinas, o papel das igrejas e
ordens religiosas no traçado urbano, a praça do comércio, a própria relação da cidade com o território. Costeando a praia, o
caminho longo, do qual partem as vias que
criarão o traçado em formato de tabuleiro
de xadrez de conformação da área urbana,
os espaços públicos definidos nos primeiros
séculos da cidade e até mesmo boa parte dos
lotes mantêm-se até hoje, sendo entrecortados pelas intervenções dos anos subseqüentes que têm
uma função de modernização da cidade.
Embora a produção açucareira do Rio de Janeiro
não fosse das mais significativas, a posição meridional da
cidade possibilitou, ao longo do século XVII, a tão propalada centralidade entre as províncias espanholas do
estuário do Rio da Prata e os portos negreiros na África.
Essa posição geográfica privilegiada será substituída sem que o porto perca sua importância pelo acesso
ao Caminho do Ouro, região mineira de extração do
minério, por volta de 1704.
Datam da segunda metade do século XVIII, no período do Vice-Reinado, as grandes obras de estruturação
FOTO: RIOTUR
Arcos da Lapa.
Uma preocupação
do governo no
século XVIII
com o abastecimento
de águas
para a cidade.
zea na marinha próxima ao porto e daí segue, desenvolvendo-se num quadrado irregular que tem em cada
ponta um morro: o do Castelo, o de Santo Antônio (hoje
Largo da Carioca), que se colocava atrás da lagoa de
mesmo nome e alimentava a vala que posteriomente
deu nome à Rua da Vala (hoje Uruguaiana) aos fundos.
Nas outras pontas do quadrado, na região da Prainha
(hoje Praça Mauá), temos o Morro de São Bento e o
Morro da Conceição. Até os dias de hoje, esse trecho da
área do Centro é sua porção mais carregada de sentido
simbólico e historicidade.
Quem transita atualmente pelo Centro não tem
noção de que circula sobre áreas anteriormente ocupaANO V / Nº 9
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Lagoa de Sacopenapan,
atual Lagoa
Rodrigo de Freitas.
FOTO: RIOTUR
da cidade: o aqueduto da Carioca, a preocupação com
sistema de abastecimento de águas para a cidade a ser
implantado mais tarde. É também desse período o emprego da pedra nas portadas de igrejas e monumentos,
acrescentando um acabamento luxuoso à cidade, até
então de pedra e cal. O Largo do Paço (atual Praça XV
de Novembro), espaço oficial do poder colonial, foi remodelado tanto em seu traçado, reordenado pelo Engenheiro-brigadeiro José Fernandes Pinto de Alpoim
quanto pela reforma de seus elementos de composição
do espaço urbano: o Paço dos Governadores, o sobrado
dos Telles de Menezes, a Igreja e o Convento de Nossa
Senhora do Carmo e a Igreja contígua da Ordem Terceira do Carmo. O Cais de Jacques Funck, com o chafariz
de Mestre Valentim também em pedra de cantaria, completou um pouco mais tarde essa “sala de visitas”, que
mereceu destaque nas descrições daqueles que visitaram
a cidade naquele período.
Com a chegada de forma triunfal de D. João, em 8
de março de 1808, no que foi descrito como mais do que
uma cerimônia oficial, uma verdadeira festa popular, o
Rio passa a ser a metrópole de um império que se pretende grande e marítimo, que ia dali para Lisboa até
Goa e Macau. A população da cidade dobrou e passou a
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ser formada também pelos muitos estrangeiros que aportavam, muitos deles versados em assuntos científicos
como a Botânica, já que nossa flora abria nova perspectiva de estudo da natureza. Em 1816, chega a Missão
Francesa, composta, dentre outros, pelo arquiteto Victor
Grandjean de Montigny, que projetou o prédio da Antiga Alfândega (hoje Casa França-Brasil), a Academia
de Belas Artes (cuja portada está hoje no Jardim Botânico do Rio de Janeiro), a sua própria residência na Gávea
(dentro da PUC), todos no estilo neoclássico, que aparece pela primeira vez no Brasil. O Teatro São João foi
construído no Largo do Rocio (hoje Praça Tiradentes),
o Jardim Botânico, criado próximo à Lagoa de Sacopenapan (Lagoa Rodrigo de Freitas). O comerciante Antônio Elias Lopes oferece sua casa para D. João, e as obras
do que será a Versailles Tropical se iniciam. Em São Cristóvão, no paço do reinado de D. Pedro I e de Pedro II,
terá participação decisiva o paisagista Glaziou, responsável pela remodelação de vários jardins da corte, como
o Passeio Público, inicialmente obra de Mestre Valentim.
Já aqui teremos, portanto, a semente do desenvolvimento da cidade nas direções sul e norte, a partir da criação
destes focos de atenção depositados pela Família Imperial. No Primeiro Reinado, a economia tinha substituíANO V / Nº 9
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sões sobre Arquitetura que marcaram o período de início da tão consagrada Arquitetura Moderna brasileira,
que vai produzir na cidade jóias como o Conjunto Residencial Parque Guinle, do arquiteto Lúcio Costa, o MAM
de Reidy, o edifício do Banco Boavista, de Niemeyer, entre tantas outras obras notáveis que quem visita o Rio
tem a oportunidade de ver.
Finalmente, para falarmos de paisagem cultural carioca, ou paisagem do Rio, ou qualquer outro nome que se
deseje dar à ode que esta cidade merece de seus habitantes, não podemos nos esquecer de quem lhe dá vida e sentido: o carioca. Nascido ou não na cidade, os muitos habitantes do Rio completam seu colorido especial, com sua
alegria que lhe permite sambar ao varrer o sambódromo,
manter o humor em tempos de caos. É este habitante reDesfile de escolas
de samba no
Sambódromo.
FOTO: RIOTUR
do o ouro pelo café, que trazia para cidades a possibilidade de construção de novos e luxuosos sobrados com
janelas e sacadas. A Santa Casa da Misericórdia tornase um hospital modelo. A distribuição de água na cidade é feita por um sistema de chafarizes espalhados por
vários pontos. A cidade ganhou arborização e iluminação a gás, rede de esgoto e abastecimento domiciliar de
água (1874), hotéis, jardins públicos.
No início do século XX, a modernidade se impunha
com o avanço do processo de industrialização. A cidade
busca aproximar-se do modelo parisiense Belle Époque,
com os edifícios em estilo art nouveau, neogóticos, neoromânticos, que recheiam a Cinelândia, e a recém aberta
Avenida Central (hoje Rio Branco), artéria de ligação de
duas extremidades da cidade, em uma delas, o novo porto. Para sua construção, a avenida derrubou cerca de 640
prédios de um área muito povoada. A população mais
pobre estava sendo expulsa do Centro, buscando abrigo
nos morros próximos, em edificações construídas precariamente, as favelas. Instalam-se o contraste entre a cidade rica e européia, dos projetos urbanísticos do Prefeito
Pereira Passos, inspirados em Haussman, e o inferno dos
excluídos, que marca não apenas esta mas todas as cidades da América Latina. A despeito da distrofia social, a
cidade desempenha seu papel de metrópole modelo ao
longo da primeira República.
Novas mudanças importantes voltam a ocorrer na
cidade com o Estado Novo, que com seu sistema presidencial forte, afastou-se dos princípios da democracia liberal. Os aspectos culturais se impõem, e o Rio surge como
a foco irradiador da cultura que se busca autêntica, a
partir das discussões mantidas na Semana de Arte Moderna de 1922. Novas intervenções urbanísticas são propostas, desta vez por Alfred Agache, e levadas a cabo no
que seria a Esplanada dos Ministérios Carioca, a área do
Castelo, planificada com o desmanche do Morro do Castelo para o aterramento que produziu a Avenida BeiraMar. O trinômio ministérios da Fazenda, do Trabalho e
da Educação e Saúde permanecem hoje como documentos desse momento, testemunhando a riqueza das discus-
sistente e iluminado que merece ver sua cidade elevada à
condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, para
que se possa falar do Rio de Janeiro da floresta urbana, da
arquitetura peculiar, do cenário natural único, da beleza
da Baía de Guanabara. Que nossa “Cena de Identidade”
não tenha manchas é nosso desejo para o futuro.
Thays Pessoto de Mendonça Zugliani – Natural do Rio de Janeiro, é formada
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula (RJ). Atualmente
exerce a função de Superintendente da 6ª SR/IPHAN. Foi agraciada com o prêmio
do Ministério da Cultura – “Mulheres que fazem cultura” no ano de 2005.
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