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Revista Trimestral de Direito Público ‐ RTDP
Belo Horizonte, ano 2013, n. 58, nov. 2013 Para uma teoria do ato administrativo unilateral
Celso Antônio Bandeira de Mello
1. Entre as classificações dos atos administrativos, uma, de supina importância (de par com a
divisão entre atos unilaterais e atos convencionais), embora muito pouco mencionada, é a que os
divide em atos ampliativos e atos restritivos da situação jurídica dos administrados. Comece­se por
esclarecer que atos ampliativos são os atos favoráveis ao administrado, ou seja, os que ampliam
sua esfera de desfrute das situações jurídicas e que restritivos são os desfavoráveis, ou seja, os
que restringem, comprimem ou suprimem uma dada situação jurídica desfrutada por alguém.
Embora jamais tenhamos encontrado esta advertência, é importante notar que a teoria do ato
administrativo unilateral foi largamente construída – e de modo altamente impróprio, porque
parcial – sobre esta última categoria, isto é sobre os atos que se apresentam como impositivos
para os administrados: atos restritivos de sua esfera jurídica (quais, exempli gratia, u m a
declaração de utilidade pública para fins de desapropriação, os atos fiscalizadores e sancionadores
em geral, as revogações, anulações ou que, de todo modo, constrangem o administrado a fazer,
não fazer ou suportar algo).
Tanto é exato que este viés errôneo presidiu o exame do ato administrativo que, na França, é
comum definir­se o ato administrativo referindo­o como uma “decisão executória”. Ora, isto,
evidentemente, não é exato, pois, para sê­lo, seria preciso excluir do campo dos atos
administrativos os atos ampliativos (como as permissões, concessões, admissões, licenças,
autorizações etc.) o que, evidentemente, ninguém faz, conquanto estes últimos não exibam a
totalidade das características presentes nos atos tomados como paradigmas para a construção da
teoria do ato administrativo. Deveras, a admissão, a autorização, a concessão, “exempli gratia”,
são atos administrativos, ninguém jamais o negou, e não se constituem em decisões executórias,
porque, à toda evidência, não se propõe a questão de executar estes atos contra a vontade do
admitido, do autorizado do concessionário, como não se proporia em relação a qualquer
beneficiário.
René Chapus anota que, no aresto Huglo (1982), o Conselho de Estado francês se manifestou no
sentido de que “o caráter executório” das decisões administrativas é “a regra fundamental do
direito público”. 1 Embora, ao nosso ver, sem descortinar que o discrímen importante é entre atos
unilaterais ampliativos e restritivos, o fato é que obras mais modernas procuram discernir a
decisão executória de outros atos administrativos. Assim, no Droit Administratif, de Georges Vedel
e Pierre Devolvé, os autores averbam que as decisões executórias são “uma variedade de atos
administrativos unilaterais”, mas que a expressão – cuja fortuna notoriamente se deve a Hauriou –
vinha sendo usualmente empregada como sinônimo de ato administrativo unilateral, o que eles
próprios, como o declaram, haviam feito até essa 12a edição.2
A presença da aludida perspectiva equivocada facilmente se nota também na teoria do processo
administrativo (chamado igualmente de procedimento administrativo), a qual está centrada, de
modo claro, nos atos restritivos, dada sua evidente preocupação em colocar limites que
resguardem o administrado de eventuais arbitrariedades administrativas. Por isto, nem todos os
princípios indicados como pertinentes ao processo administrativo são aplicáveis à generalidade
deles. Alguns destes princípios não podem ser referidos aos atos ampliativos, como ao diante
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Belo Horizonte, ano 2013, n. 58, nov. 2013 indicamos.
2. É óbvio que não pode servir como uma teoria do ato administrativo aquela que é erigida tão
somente sobre uma categoria deles e que, de conseguinte, imputará, ainda que apenas de modo
implícito, a todo e qualquer ato administrativo características só aplicáveis a uma espécie deles.
Outrossim, ao deixar de lado a necessária vestibular distinção entre as duas importantes espécies
mencionadas, escamoteia a necessidade de exame particularizado de cada qual e com isto redunda
na falta de percepção de aspectos que seriam decisivos para a compreensão de certos institutos. É
que alguns deles dizem respeito tão só a uma destas categorias, como ocorre com o tema da
manifestação da vontade do particular ou com o tema da chamada “coisa julgada” administrativa
ou da executoriedade, questões estas que não se aplicam aos atos restritivos. Outras vezes, o
próprio instituto em causa se apresenta distinto conforme estejam em questão atos ampliativos ou
restritivos, como sucede no caso da invalidação.
Não é nosso propósito aqui, evidentemente, pretender reelaborar toda a teoria do ato
administrativo, o que demandaria como é óbvio uma amplitude absolutamente incompatível com
este despretensioso artigo, mas tão somente atrair a atenção para aquilo que deve
obrigatoriamente presidir tal elaboração.
Bem observando, nota­se que a teoria da existência e d a validade dos atos administrativos é,
realmente, igual tanto para os atos restritivos como para os ampliativos, conquanto os efeitos da
invalidação, como se anotou, não sejam os mesmos em uma e outra categoria; mais além
salientamos que nos atos restritivos os efeitos da invalidação são ex tunc e nos atos ampliativos
geralmente são ex nunc. Assim também a teoria da eficácia, ou dos efeitos, é distinta entre eles,
não se propondo em relação aos ampliativos nada do que se relaciona com a imperatividade,
exigibilidade ou executoriedade.
Dessarte, o discrímen entre as duas espécies de atos é importantíssimo, porquanto preside uma
fundamental bipartição de regimes.
3. Comece­se por anotar que ao serem relacionados atributos ou características dos atos
administrativos unilaterais costuma­se arrolar como próprias deles, a presunção de legitimidade, a
imperatividade, a exigibilidade e a autoexecutoriedade. As duas primeiras certamente tanto se
aplicam a atos restritivos quanto ampliativos, pois não há duvidar que em ambas as hipóteses os
atos provenientes da Administração devem se presumir conformes ao Direito, até prova em
contrário ou até impugnação em juízo, assim como é de se reconhecer igualmente que possuem a
força jurídica inerente a quaisquer deles derivados do Poder Público. Não se trata, ressalve­se, de
afirmar que podem ser impostos forçosamente a terceiros, mas de assumir que possuem a força
jurídica de constituir por si mesmos uma situação jurídica, isto é, de deflagrar efeitos por si
próprios. Se estas duas características são comuns a todos os atos administrativos unilaterais, as
duas outras mencionadas, quais sejam, a exigibilidade e a executoriedade não comparecem no
caso dos atos ampliativos, valendo tão só para os restritivos.
Com efeito, a exigibilidade, ao nosso ver, é o atributo por força do qual a Administração pode
constranger o administrado a cumprir o disposto no ato valendo­se para tanto de meios indiretos
de compulsão, tais as multas, como as impostas ao administrado que não atendeu a intimação para
consertar a calçada fronteira à sua casa, a recusa em expedir o alvará de construção para a
reforma pretendida pelo particular se ele não quitar a obrigação de demolir a obra irregular ali
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Belo Horizonte, ano 2013, n. 58, nov. 2013 efetuada etc. Não faria sentido pretender constranger o particular a desfrutar de um benefício que
lhe estivesse sendo outorgado por meio de algum ato ampliativo.
A executoriedade é a prerrogativa de que dispõe a Administração de promover por si mesmo a
execução da pretensão administrativa, isto é, sem necessidade de obtê­la por meio do Poder
Judiciário, quando legalmente previsto ou perante situações urgentes ou nas quais inexista outra
via de direito igualmente eficaz para salvaguardar o interesse público em risco. É claro que, ao
emitir um ato benéfico ao administrado, que lhe amplia a situação jurídica, a Administração não
terá porque impor ao beneficiário sua concreção material. Daí que tal atributo só se propõe em
relação aos atos restritivos.
4. Consoante se observou, a mesma visão imperfeita se reproduz ao ser tratado o tema do
processo ou procedimento administrativo (expressões muitas vezes utilizadas como equivalentes).
De fato, é fácil perceber­se na enumeração dos princípios a ele reportados que nem todos são
pertinentes à generalidade dos processos. Assim, o princípio da oficialidade e o da gratuidade não
se aplicam obrigatoriamente nos procedimentos ampliativos de direito suscitados pelos
interessados.
5. No que atina ao tema dos atos cuja prática ou cuja eficácia depende de manifestação do
particular é evidente que diz respeito tão só aos atos ampliativos e que disto não se haveria de
cogitar em relação àqueles em que, inversamente, o Poder Público está preordenado a comprimir
ou suprimir direitos ou interesses do administrado, pois, para fazê­lo, como é óbvio, não irá pedir a
aquiescência daquele a quem queira desfavorecer.
Neste passo está­se a referir às mais variadas hipóteses em que o ato administrativo pressupõe a
concordância prévia ou posterior do administrado. É o que ocorre para a emissão de autorizações,
licenças, permissões, concessões e quejandos, as quais só são expedidas caso haja interessados
que previamente os requeiram ou que se habilitem a tanto. O mesmo sucede em relação a alguns
outros atos que a Administração pode praticar, mas cujos efeitos finais dependem de manifestação
concordante, como por exemplo, uma nomeação para cargo de livre provimento, pois não acarreta
investidura no cargo sem que o nomeado o aceite, tomando posse dele, ou a outorga de qualquer
situação honorífica dispensada a alguém, como uma comenda, “exempli gratia”. Sobre a natureza
destes atos e as diversas teorias que foram sugeridas ao respeito de alguns deles, pelo menos,
questionando se são atos bilaterais ou se são dois atos unilaterais que se conjugam para obtenção
do resultado final, se são contratos impregnados de um elemento de comando e outras variações, é
altamente elucidativa a exposição de Stassinopoulos.3 Ao nosso ver, deixando de lado o caso da
nomeação, que exigiria explicações mais minuciosas para seu completo esclarecimento,
entendemos que são dois atos unilaterais que se completam e que se reclamam.
6. Também as questões suscitadas ao respeito da chamada “coisa julgada administrativa” têm
lugar unicamente em relação aos atos ampliativos. Toda vez que a Administração decidir um dado
assunto em última instância, de modo contencioso, ocorrerá a chamada “coisa julgada
administrativa”. Algumas vezes, com esta nomenclatura, aliás muito criticada, pretende­se referir a
situação sucessiva a algum ato administrativo em decorrência do qual a Administração fica
impedida não só de se retratar dele na esfera administrativa, mas também de questioná­lo
judicialmente. Vale dizer: a chamada “coisa julgada administrativa” implica, para ela, a
definitividade dos efeitos de uma decisão que haja tomado.
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Belo Horizonte, ano 2013, n. 58, nov. 2013 O tema, repita­se, diz respeito exclusivamente aos atos “ampliativos” da esfera jurídica dos
administrados. O fenômeno aludido só ocorre em relação a este gênero de atos, pois se trata de
instituto que cumpre uma função de garantia dos administrados e que concerne ao tema da
segurança jurídica estratificada já na própria órbita da Administração. Logo, não tem porque se
propor quando em causa atos restritivos.
Ressalte­se que a chamada “coisa julgada administrativa” abrange a irrevogabilidade do ato, mas
sua significação é mais extensa. Com efeito, nela se compreende, além da irrevogabilidade, uma
irretratabilidade que impede o Poder Público de questionar do ato também na esfera judicial, ao
contrário da mera irrevogabilidade, que não proíbe a Administração de impugnar em juízo um ato
que considere ilegal e não mais possa rever na própria esfera.
Inversamente, seu alcance é menos extenso do que o da coisa julgada propriamente dita. Com
efeito, sua definitividade está restrita a ela própria, Administração, mas terceiros não estão
impedidos de buscar judicialmente a correção do ato.
Assim, o atingido por uma decisão produtora de coisa julgada administrativa em favor de outrem e
contrária a suas pretensões poderá recorrer ao Judiciário para revisá­la. Além disto, seu
questionamento na esfera judicial é admissível sempre que caiba ação popular, ação civil pública
ou que, por fas ou por nefas, haja legitimidade ativa do Ministério Público.
A coisa julgada administrativa, consoante entendemos, propõe­se unicamente em situações nas
quais a Administração haja decidido contenciosamente determinada questão – isto é, em que tenha
formalmente assumido a posição de aplicar o Direito a um tema litigioso; portanto, também, com as
implicações de um contraditório. Aliás, nisto se exibe mais uma diferença em relação à simples
irrevogabilidade, que, como visto, estende­se a inúmeras outras hipóteses.
7. Outra utilidade da distinção entre atos ampliativos e atos restritivos reside em que é a partir
dela que se consegue resolver adequadamente a questão de saber­se se os efeitos da invalidação
sempre, ou nem sempre, têm efeitos ex tunc e é com base nela que se poderá determinar se seus
efeitos serão desta espécie ou se e quando serão ex nunc.
Reformulando o entendimento que em época pretérita adotávamos na matéria, pensamos que o
assunto só se resolve adequadamente tomando­se em conta esta fundamentalíssima distinção – e
que cada vez nos parece mais importante para uma teoria do ato administrativo – entre atos
restritivos e atos ampliativos da esfera jurídica dos administrados.
Na conformidade desta perspectiva, parece­nos que efetivamente nos atos unilaterais restritivos da
esfera jurídica dos administrados, se eram inválidos, todas as razões concorrem para que sua
fulminação produza efeitos ex tunc, exonerando por inteiro quem fora indevidamente agravado
pelo Poder Público das consequências onerosas. Pelo contrário, nos atos unilaterais ampliativos da
esfera jurídica do administrado, se este não concorreu para o vício do ato, estando de boa­fé, sua
fulminação só deve produzir efeitos ex nunc, ou seja, depois de pronunciada.
Com efeito, se os atos em questão foram obra do próprio Poder Público, se estavam, pois,
investidos da presunção de veracidade e legitimidade que acompanha os atos administrativos, é
natural que o administrado de boa­fé (até por não poder se substituir à Administração na qualidade
de guardião da lisura jurídica dos atos por aquela praticados) tenha agido na conformidade deles,
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Belo Horizonte, ano 2013, n. 58, nov. 2013 desfrutando do que resultava de tais atos. Não há duvidar que, por terem sido invalidamente
praticados, a Administração deva fulminá­los, impedindo que continuem a desencadear efeitos;
mas também é certo que não há razão prestante para desconstituir o que se produziu sob o
beneplácito do próprio Poder Público e que o administrado tinha o direito de supor que o habilitava
regularmente.
Assim, v.g., se alguém é nomeado em consequência de concurso público inválido, e por isto vem a
ser anulada a nomeação dele decorrente, o nomeado não deverá restituir o que percebeu pelo
tempo que trabalhou. Nem se diga que assim há de ser tão só por força da vedação do
enriquecimento sem causa, que impediria ao Poder Público ser beneficiário de um trabalho
gratuito. Deveras, embora não compareça tal fundamento, a solução haverá de ser a mesma se
alguém é permissionário de uso de um bem público e mais tarde vem­se a descobrir que a
permissão foi invalidamente outorgada. A invalidação deverá operar daí para o futuro. Descaberia
eliminar retroativamente a permissão; isto é: o permissionário, salvo se estava de má­fé, não terá
que devolver tudo o que lucrou durante o tempo em que desfrutou da permissão de uso do bem.
As soluções indicadas – ressalte­se – não interferem com outro tema, qual o da cabível
responsabilização do agente público que haja operado de má­fé em um ou outro caso,
independentemente da boa ou má­fé do administrado.
8. Os tópicos focalizados são suficientes para exibir não apenas a importância da distinção entre
atos ampliativos e restritivos, mas a necessidade de revisar a teoria do ato administrativo seja
para corrigir­lhe a mencionada impropriedade, seja para que se possa, através disto, explorar
adequadamente o tema, iluminando aspectos que ficam na sombra ou simplesmente insuspeitados
quando se faz abstração do discrímen aludido ao construir teoricamente a matéria.
1 Droit Administratif Général, t. 1, 6a ed., Ed. Montchrestien, 1992, p. 375.
2 Presses Universitaires de France, 12a ed., 1992.
3 Michel Stassinopoulos, Traité des Actes Administratifs, Atenas, Librairie du Recueil Sirey, 1954,
pp. 57­62.
Como citar este conteúdo na versão digital:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto
científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Para uma teoria do ato administrativo unilateral . Revista Trimestral de Direito Público – RTDP , Belo Horizonte, n. 58,
2013.
Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=98135>. Acesso em: 2
dez. 2013.
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Belo Horizonte, ano 2013, n. 58, nov. 2013 Como citar este conteúdo na versão impressa:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto
científico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Para uma teoria do ato administrativo unilateral . Revista Trimestral de Direito Público – RTDP , São Paulo, n. 58, p. 58­
63, 2013.
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