Cadernos Nabuco - Faculdade Joaquim Nabuco

Transcrição

Cadernos Nabuco - Faculdade Joaquim Nabuco
Cadernos Nabuco
Número 1, julho de 2010
Revista Eletrônica
da Faculdade Joaquim Nabuco
Ciência, Cultura e Interdisciplinaridade
Recife - PE
1
Cadernos Nabuco
____________________________________________________________
Revista Eletrônica da Faculdade Joaquim Nabuco
Volume I – número I – julho de 2010
Publicação semestral
Grupo Ser Educacional
Diretor Presidente do Conselho Administrativo do Grupo Ser Educacional:
José Janguiê Bezerra Diniz
CEO:
Jânyo Diniz
Superintendente Acadêmico:
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Diretor-Geral da Faculdade Joaquim Nabuco:
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Diretora Adjunta:
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Maria Cecília Patrício, Phd.
Coordenação da Revista:
Priscila Lapa
Ivaldir H. de F. Junior
José Carlos Marçal
Comitê de avaliação:
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Carlos André Dantas Dias, Esp.([email protected])
Ghena Catarina do Valle, Esp. ([email protected])
Solano Mineiro de Souza Neto, Phd. ([email protected])
Maurício Souza, Esp. ([email protected])
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www.joaquimnabuco.edu.br
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SUMÁRIO
Editorial ........................................................................................................................ 04
Religião, ciência e sociedade: possibilidades de entendimento para o fenômeno
Morro da Conceição – Jamerson Moura .................................................................... 07
Expropiação Folk em Merchandising de produtos alimentícios no ciclo junino no
Recife – Jademilson Silva et al ...................................................................................... 27
Realidade Simulada como Instrumento para a Publicidade de produtos na TV
Digital – Nilton Melo e Ivaldir H. de F. Junior ......................................................... 42
Tropicalismo: a televisão como veículo de crítica à sociedade de consumo – Carlos
André Carvalho ............................................................................................................. 55
Nomes que ousamos dizer - Maria Cecília Patrício ................................................. 66
A essência da técnica e o Mito do ser: um confronto entre Heidegger e Caputo –
J. C. Marçal .................................................................................................................. 95
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Editorial
Caros leitores, professores, alunos e demais membros da comunidade acadêmica
da Faculdade Joaquim Nabuco e Grupo Ser Educacional: tamanha é a satisfação com
que apresentamos a todos a mais nova revista eletrônica de nossa comunidade
acadêmica e científica, a Revista Cadernos Nabuco.
Nossa revista surge do anseio de promover a plena e contínua forma de
comunicação entre aqueles que se interessam em produzir conhecimento em compasso
com o desenvolvimento das sociedades, bem como estreitar laços interdisciplinares
entre o conhecimento teórico-científico e a prática pedagógica de nosso exercício
profissional voltado à educação.
Frente a um novo ano que se apresenta, encontramo-nos desafiados em nos
inserir dentro das atuais mudanças e perspectivas que perpassam a sociedade brasileira
e, em específico, o estado de Pernambuco. Visto por muitos, e por um longo período,
como um gargalo para o desenvolvimento e progresso nacionais, nosso estado e a região
nordeste vivem hoje um novo horizonte de realizações socioeconômicas que
impulsionam sua população a inserção no novo contexto cultural mundial. Identificada
por alguns teóricos como pós-moderna devido à sua característica de fragmentação e
desrefenrencialização, a contemporânea sociedade mundial renova-se de maneira muita
rápida, certamente influenciada pelo progresso tecnológico e das comunicações e junto
a essa renovação se segue a alternância de paradigmas.
Nesse sentido, insere-se a revista de nossa faculdade, identificando-se como um
instrumento, um canal, um local de intercâmbio de informações e conhecimentos
produzidos acerca dos mais variados e pertinentes assuntos, voltada à criação e ao
desenvolvimento de um importante meio de debates e circulação de idéias.
Nesta primeira edição, procuramos englobar os mais diversos conhecimentos
teórico-científicos e acadêmicos, entendendo ser esse o passo primeiro rumo ao
caminho de uma produção de caráter contínuo e consistente. Essa primeira revista é
iniciada e concluída com dois artigos escritos pelos professores Jamerson Moura e José
Carlos Marçal, que irão tratar da produção de conhecimento científico, em suas áreas de
estudo, a partir da análise conceitual de seus principais referenciais teóricos; o primeiro
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procurando elucidar possibilidades de entendimento para o fenômeno socioreligioso
devocional que envolve a comunidade do Morro da Conceição, na capital
pernambucana, e o segundo procurando compreender o lugar da questão da técnica no
pensamento do filósofo Martin Heidegger a partir de um confronto com o filósofo John
D. Caputo.
Fortalecendo o corpo da revista, encontramos outros três artigos que tratarão de
áreas temáticas acadêmicas específicas, mais voltados para a área da comunicação
social. Sendo assim, identificamos com a leitura dos artigos: Expropiação Folk em
Merchandising de produtos alimentícios do ciclo junino no Recife, organizado pelo
professor Jademilson Silva; Realidade Simulada como Instrumento para a Publicidade
de produtos na TV Digital, realizado pelos professores Ivaldir Júnior e Nilton Melo; e
Tropicalismo: a televisão como veículos de crítica à sociedade de consumo, escrito pelo
professor Carlos André Carvalho, relevantes trabalhos para a análise profissional no
campo da publicidade; o primeiro objetivando analisar como se dá a expropriação da
cultura popular no contexto massivo e das ações mercadológicas em confronto com as
teorias de folkcomunicação; o segundo, promovendo a análise do ambiente de jogos
eletrônicos como um instrumento viável para a publicidade de produtos na TV digital e
o terceiro, por fim, desenvolvendo uma linha de interpretação diferenciada acerca da
utilização político-ideológica do movimento tropicalista por meio da comunicação de
massa em plena ditadura militar brasileira.
Apresentamos, também, o trabalho da professora Maria Cecília Patrício que
procura, num grande exercício de prática da alteridade, característico da Antropologia,
discutir como se podem perceber denominações diferentes para travestis brasileiras,
tanto na literatura quanto nas identificações pessoais de gênero e sexualidade, quando
de suas migrações para outras regiões, em específico, a Espanha.
Procuramos contemplar várias das produções de nossos professores, recurso
humano cognitivo de nossa organização, percebendo que os mesmos almejavam o
encontro com um instrumento de comunicação que pudesse dar divulgação aos seus
trabalhos e é dessa forma que se concebe a Revista Cadernos Nabuco, o nosso
permanente meio acadêmico interdisciplinar.
Por fim, agradecemos a todos os que colaboraram de inúmeras formas para que a
revista seja uma realidade e fique à disposição do nosso público de leitores, em especial.
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Desejamos-lhe, igualmente, uma ótima leitura e convidamos a todos que continuem
enviando colaborações, na espera que as conquistas continuem, pois, como defenderia
nosso principal abolicionista,
“é a imaginação, tocha divina apensa ao espírito do homem, que lhe
permite mover-se nas trevas da criação. Assim os peixes das profundezas
oceânicas trazem um facho que os ilumina na noite eterna. Sem isto para
que lhes serviriam os olhos? Sem imaginação, que utilidade teria para o
homem a inteligência?” (Joaquim Nabuco, in Pensées Détachées et
Souvenirs, 1937).
Conselho Editorial.
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Religião, ciência e sociedade:
possibilidades de entendimento para o fenômeno Morro da Conceição.
Jamerson Kemps Gusmão Moura1.
Resumo: O presente trabalho apresenta uma breve revisão teórica e bibliográfica dos
estudos acadêmicos acerca da religião, bem como a relação desta com a ciência e
sociedades nas quais a mesma está inserida, considerando, em específico, algumas das
características da Igreja Católica e as transformações pelas quais, religião e, em
específico, o Catolicismo passaram com o transcorrer do tempo. Em consonância com
um trabalho acadêmico maior, procurou-se identificar como as tensões, conflitos,
disputas e arranjos em torno da imagem de Nossa Senhora da Conceição, se refletem
nas relações socioreligiosas que envolvem os fiéis católicos do Morro da Conceição
situados na cidade do Recife2.
Palavras-chave:
religião,
revisão
bibliográfica,
Morro
da
Conceição;
socioreligiosidade.
Abstract: This paper presents a brief revision on academic literature about religion, and
its relationship with science and societies in which it is embedded, also considering
some Catholic Church characteristics and the transformations that religion and, in
particular, Catholicism have taken over with the passage of time. According to a bigger
academic work, we tried to identify how the tensions, conflicts, disputes and arranged
around the statue of the Saint Nossa Senhora da Conceição are reflected on the social1
Mestre em Antropologia e graduado em História, ambos pela UFPE. Professor da Faculdade Joaquim
Nabuco. E-mail: [email protected].
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Neste artigo, considera-se a existência e importância de fatos históricos, aspectos políticos,
socioreligiosos e simbólicos que formaram e continuam a participar do processo de constituição da
sociabilidade dos fiéis católicos da comunidade. O trabalho identifica-se com a preocupação de entender
como a representação da imagem de Nossa Senhora da Conceição junto aos seus fiéis católicos influencia
na formação e identificação dos mesmos. Seria Ela apropriada de forma diferente pelos católicos? Ou até
que ponto a representação da Santa da Conceição agrega ou desagrega seu rebanho de devotos? Percebeuse que a comunidade é composta por três pólos de devoção católica, quais sejam: primeiro: aquele que
está ligado à igreja oficial e seus representantes; segundo: o que está ligado à Igreja de Resistência e Fé,
formada pelo ex-pároco, padre Reginaldo Veloso e seus seguidores; terceiro: o pólo que se identifica com
as práticas do chamado “Catolicismo Popular”, dada a característica autônoma de devoção de seus fiéis
para com a Santa da Conceição e que os torna independentes em relação às lideranças religiosas dos dois
primeiros pólos. Contudo, ressalvamos a necessidade de leitura do trabalho na sua íntegra para uma
melhor compreensão de sua afirmação teórica.
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religious relations involving the Morro da Conceição Catholic faithful, located at Recife
city.
Key words: religion, literature revision, Morro da Conceição, social-religiosity.
Introdução
O estudo da religião dentro das ciências sociais há muito nos remete a análises
que procuram entender comportamentos humanos. Como entender, por exemplo, que
homens se encontrem sob o forte sol do meio-dia, no Oriente Médio, rezando para
aquilo que consideram como Deus, mas que, no entanto, é representado por um muro? E
no Brasil, considerando a influência histórica do Catolicismo, como entender a
convivência de católicos com fiéis de outras crenças e denominações religiosas? A
religião os afastaria ou os aproximaria?
Teorias científicas tentaram trazer à luz o entendimento dessas ações.
Bronislaw Malinowski (1984) argumentou que a religião surge das tragédias reais da
vida humana, do conflito entre os anseios humanos e a realidade, enquanto que para
Clifford Geertz,
[...] a religião é uma perspectiva, uma organização cognitiva do mundo, entre outras
possíveis (senso comum, ciência e estética), expressa em práticas e um conjunto de
símbolos que dão sentido à existência e alivia o sofrimento (1989:52).
Ainda se referindo aos estudos sobre religião, procura o antropólogo norteamericano, em um de seus recentes artigos intitulado de “O Futuro das Religiões”
(Geertz, 2006), nos encaminhar para um processo de análise mais específica da relação
existente entre sociedades e religiões, ressalvando que
[...] enquanto se desenrola a história política explosiva do século nascente, o desdobramento
mais notável – e o mais surpreendente – que as ciências sociais se vêem obrigadas a
enfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes
erroneamente, como o “retorno da religião”. Erroneamente porque na verdade a religião
nunca desapareceu – foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos
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enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que consideravam
o compromisso com a religião uma força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições
passadas inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo,
nacionalismo, racionalização e globalização (2006:01).
Lembrando um dos cavaleiros da modernidade, temos a globalização como
elemento dissipador da concepção estruturante de sociedade. Em trabalho realizado
sobre globalização e diversidade religiosa, Rita Laura Segato (1997) lembra que uma
das primeiras preocupações do cientista social deve partir da consideração e definição
dos conceitos de global e local, observando que as forças estruturantes podem
condicionar diversas expressões de caráter cultural e que estas podem responder às
exigências da primeira. Ao analisar o envolvimento de comunidades religiosas com a
resistência das diversidades locais, a autora atenta para o fato de que
[...] estamos no campo de uma diversidade horizontal desenhada pela coexistência de
coletividades diversas. Lealdades estabelecidas a partir de clivagens sociais que configuram
a natureza plural das sociedades contemporâneas. É nesta escala que se torna visível e
observável a presença das comunidades religiosas cujos credos, apesar de transladar-se em
percursos transnacionais, enraízam-se localmente, criando-se em âmbito nacional e local
(1997:225).
Não obstante ao tema proposto, dentre as ciências, encontramos na Psicologia,
e principalmente na Psicanálise, tentativas de entender o fenômeno religioso. Estudiosos
dessas ciências procuraram tomar como leitura mais sólida e apropriada o estudo da
mitologia do sagrado. Nesse sentido, observamos que a concepção, em nossos dias, de
mitologia (coleção de histórias baseada em mitos criados pelo homem) correspondeu
para o povo grego, por exemplo, à religião. Por conseguinte, correlacionando a
mitologia grega ao catolicismo, temos que Jesus Cristo ainda hoje é considerado como a
representação do „deus vivo‟ na concepção de todos os cristãos. Posto isso, poderíamos
nos perguntar: caso conseguíssemos, enquanto indivíduos, incorporar todos os valores
cristãos, não se tornaria o próprio Cristo um mito histórico? (Leach, 1983).
Para uma melhor compreensão do fenômeno, devemos considerar que os
rituais religiosos são instrumentos que dão margem a uma forma de comunicação, algo
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que a ciência antropológica já sustentava há algum tempo. Essa idéia foi ainda mais
aperfeiçoada tomando-se de empréstimo o trabalho dos etnólogos que salientavam o
fato de muitas espécies apresentarem um comportamento padronizado de cultura. Esse
procedimento foi chamado de ritual, e estes são instrumentos de comunicação utilizados
pelo homem entre os membros de uma etnia ou grupo social (Durkheim, 2003). Ainda
sobre os rituais, podemos dizer que esses servem como atenuantes contra o eterno medo
da morte; quanto à definição pessoal no que tange a escolha sobre em qual lado lutar no
eterno conflito entre o bem e o mal; bem como, para responder a perguntas clássicas
como: quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Nesse sentido, considere-se
também a afirmação do cientista social Émile Durkheim (idem, p. 279), onde aquele que
tem fé pode mais.
Na Sociologia, porém, a religião se torna objeto porque desempenha funções
sociais a partir da compreensão do ser, do indivíduo. Antonio Gramsci afirmara:
O mal está no interior do homem; existe em cada homem, por assim dizer, um Caim e um
Abel que lutam entre si: é preciso, se quer eliminar o mal do mundo, que cada um vença o
Caim que tem em si e faça com que triunfe o Abel: o problema do „mal‟, portanto, não é
político, ou econômico-social, mas „moral‟ ou „moralista‟. De nada vale modificar o mundo
exterior, o conjunto das relações: o que importa é o problema individual moral. (1978:322).
De um outro lado, a ciência sabe que não pode definir, desde sempre e para
sempre, o que é verdadeiro, mesmo que o que podemos chamar de totalitarismo da
ilusão religiosa, seja neutralizado pelo método científico. Todavia, ressalvamos que a
prática antropológica é sempre permeável de circunstâncias e ajustamentos que estão
além do empirismo como bem sabem nossos pares. O homem concebe o sagrado porque
só este pode dar um mínimo de sentido ao milagre. Se o indivíduo não sabe, nem tem
como explicar a miraculosa propriedade do que lhe acontece em torno de criações,
recriações e transformações, só um Deus, ou posteriormente, uma instituição religiosa,
poderiam explicar a quem ou ao o quê recorrer com o objetivo de entender o que se
passa no terreno da recriação permanente do mundo.
Observemos que, mesmo que ainda de forma incipiente, Claude Lévi-Strauss
(1986) afirmara que „a religião seria apenas a expressão da relação de distância que
separa o que conhecemos do que ainda não conhecemos ou poderemos conhecer‟.
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- Instituição religiosa e sociedade.
Permitindo-nos a uma breve análise sobre a sociedade ocidental, encontramos
no autor Louis Dumont (2000), um importante trabalho no qual o mesmo correlaciona
diferentes sociedades e encontra problemas na idéia de consciência coletiva. Para ele,
essa idéia de consciência funciona como um provedor de mudanças e interferências na
sociedade, explicando que o social está presente no espírito humano e também
afirmando que o individualismo é uma criação da própria sociedade. Existiria ainda,
entre nós, um processo organizacional que envolve o conceito de hierarquia, processo
presente nas sociedades modernas e que para Dumont é uma idéia universal.
Desnaturalizando a idéia de indivíduo, o autor nos leva a refletir sobre os aspectos
reguladores de sociedades e suas instituições, em específico, aquelas com finalidades
religiosas, servindo-nos como aporte na tentativa de melhor entender como se daria a
relação entre indivíduo-sociedade e reguladores sociais no campo de investigação por
nós trabalhado.
Para melhor conceituar seu argumento, Louis Dumont se vale de uma
estratégia de análise que considera a existência de uma unidade humana onde, para se
analisar a sociedade universal, precisar-se-ia analisar o particular, o micro e sua
diversidade (idem, p.238). Seria assim, apenas através deste processo, que se garantiria
o necessário olhar antropológico sobre a sociedade. Explica:
No tipo moderno de cultura, basicamente, o valor está mais ligado ao indivíduo, estando a
Filosofia mais voltada aos valores individuais em contrapartida à Antropologia, que se
voltaria mais aos valores sociais (...). Valor designa algo diferente do ser, algo que, distinto
da verdade científica, que é universal, varia muito com o meio social e até no seio de uma
sociedade dada não só com as classes sociais, mas também com os diferentes setores de
atividades e experiência (ibidem: 240-41).
Podemos identificar a necessidade de desmistificar a idéia ocidental e moderna
de individualismo como um dos eixos de análise deste estudo, pois, na sociedade
analisada, as idéias de igualdade e liberdade focam-se no indivíduo, havendo assim,
uma superioridade deste segundo elemento em relação ao primeiro (a sociedade e seus
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órgãos reguladores) – este, mais adiante será analisado – considerando-se as
transformações das sociedades modernas e o seu conseqüente processo de
secularização.
Percebemos que a relação existente entre praticantes de uma religião e
instituição reguladora, também foi pensada por estudiosos que viram no processo de
modernização social um iminente processo de secularização da sociedade - como
avaliaram as pesquisadoras Daniele Hervieu-Léger (1997) e Cecília Mariz (2006). Em
um momento anterior, defendeu-se a idéia de que com a modernidade, os indivíduos
passariam de um estágio de submissão - àquilo que é tido como desconhecido,
sobrenatural e sagrado - para um estágio de autonomia e controle de suas ações
mundanas. Pensava-se que, com o desenvolvimento dos meios de comunicação e da
produção científica, poder-se-ia obter uma formação social que levasse os indivíduos de
maneira geral a um estágio de independência religiosa e institucional.
Obviamente, não há como negar as transformações sociais pelas quais vem
passando a humanidade, em específico, desde o século XIX. As revoluções industrial,
científica e tecnológica têm impulsionado cada vez mais as transformações sóciourbanas de nossas grandes cidades. Deparamo-nos com um contexto diferenciado, haja
vista a massificação do estilo de vida urbano que faz com que o indivíduo depare-se
com problemas psicossociais relacionados à perda de referenciais simbólicos que, em
um outro momento, remetiam a um estilo de vida diferente e saudosista (Gusmão,
2005). Assim, a secularização, utilizando-se do uso de uma noção weberiana, faz
emergir na vida do indivíduo uma crise de sentido não antes vivida.
Como define Peter Berger (1985), a experiência religiosa desempenha um
importante papel seja como fator de integração social, seja como direcionamento de
vida. Contudo, na contramão desse processo, também passou a ser observado um
conjunto de realizações, modificações e fortalecimentos daquilo que pode ser chamado
como prática religiosa. Ora, como negar o surgimento de dezenas de instituições que se
propõem religiosas? Como negar a revitalização de denominações religiosas centenárias
frente às mudanças psicossociais de seus fiéis? E ainda, como se analisar o nível de
autonomia atingindo pelos indivíduos que procuram se utilizar de instrumentos próprios
para o estabelecimento de meios de comunicação divinal particulares?
Por outro lado, Berger (1985; 2001), em alguns de seus trabalhos, analisa e
termina por reavaliar sua tese sobre o processo de secularização na sociedade moderna,
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uma vez que este aspecto não deve ser predominante em relação a outros fatores, como
destaca Cecília Mariz (2001). Segundo o autor, há equívocos na teoria da secularização.
Para ele, a idéia de modernidade, aquela advinda do Iluminismo3, não deve ser tomada
como regra ou condição essencial para o processo de formação de uma secularização
uniforme, pois não se pode afirmar que vivemos em um mundo secularizado, uma vez
que o mundo de hoje é tão religioso quanto antes (Berger, 2001).
A secularização a nível societal não está necessariamente vinculada à secularização no nível
de consciência individual. Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em
muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida
das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes, levando a grandes
explosões de fervor religioso (2001:10).
Como destacamos acima, a pesquisadora Cecília Mariz, em consonância com a
releitura conceitual feita por Berger, analisou o que estava sendo proposto pelo teórico
norte-americano, podendo constatar que,
[...] na verdade, o estudioso em questão preocupa-se em esclarecer que a modernidade
trouxe sim, mudanças significativas no modo de viver a religião, mas lembra também, que
estas transformações se desenvolveram de formas diferentes, pois, paralelo ao
enfraquecimento institucional presenciado em alguns locais, também se observara o que o
autor chama de novas formas institucionais de prática religiosa, e às vezes, grandes
explosões de fervor religioso (2001:26).
Ainda sobre a idéia de secularização, encontramos em Daniele Hervieu-Léger
uma outra análise sobre religião e sociedade. No texto: “Representam os surtos
emocionais contemporâneos o fim da secularização ou o fim da religião?” (1997),
preocupa-se a autora em não só entender a religião como instrumento simbólico da
verdade, mas também, melhor analisar a categoria secularização, pois, os processos
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É importante observar que o autor trabalha com o intuito de revisar um conceito específico de
secularização - aquele que se refere aos trabalhos defendidos nos anos 1950 e 1960 e que se ligam
diretamente aos conceitos mais fortemente difundidos pelo Iluminismo no século XVIII, seguindo ideais
de racionalização da humanidade - em contrapartida ao que o próprio teórico defendeu em outros
trabalhos sobre o mesmo tema a partir da análise dos trabalhos de Émile Durkheim. Ver, GUERRA,
Lemuel (2002).
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sociais pelos quais vêm passando a humanidade remetem os indivíduos e o mundo
moderno a uma perda de unidade e sentido que lhes conferiam o fato de serem tidos
como o reflexo de um cosmos sagrado. Segundo Hervieu-Lèger, esta crise relacional
entre modernidade e religião foi por muito tempo analisada e discutida, em debates
extremamente passionais promovidos por Max Weber, Talcott Parsons e Peter Berger e que Marc Henri Piault já havia classificado como um “campo de investigação do
religioso que parece estar se reconstruindo a partir da renovação de crenças e de
pertencimentos religiosos sobre as quais já se tinha enunciado, precipitadamente, aliás,
o desencantamento” (2003:365). No entanto, a preocupação maior da estudiosa seria o
de promover uma revisão do que realmente se pretende por conceito de secularização,
almejando encontrar um melhor caminho para a construção de uma sociologia da
modernidade religiosa.
Uma perspectiva mais interessante, do ponto de vista da construção de uma sociologia da
modernidade religiosa, talvez consista mais em apreender, no interior da própria tensão que
manifesta entre as „tendências dessecularizantes‟ e as „tendências secularizantes‟ ativamente
presentes, juntas, nas experiências de renovação emocional, algo da natureza
intrinsecamente contraditória do próprio processo de secularização (...) entendendo que esta
tensão entre modernidade e antimodernidade, existente no seio das comunidades
emocionais, revela-se de muito significativo na relação ambivalente que os novos
movimentos religiosos cristãos mantêm com a tradição das igrejas e confissões no espaço
das quais se inscrevem. Por um lado, participam do „espontaneísmo religioso‟ que
corresponde perfeitamente à temática da subjetividade que vem nutrindo a cultura moderna
do indivíduo. Este espontaneísmo introduz elementos de ruptura com o conjunto das
crenças, das doutrinas, dos saberes, das normas e das práticas obrigatórias que a própria
instituição define como sendo o corpo da Tradição, cuja integridade ela preserva e cujas
apropriações ela controla. É nesta direção que se pode considerar que estes fenômenos
contribuem para o processo de desregulação institucional que acompanha o movimento
geral da secularização (1997:44-5).
- Secularização e Catolicismo
Dentre as variadas religiões que podem ser estudadas pelo cientista social, eis
que sempre encontraremos na religião cristã uma inesgotável fonte de análises. Focando
o cristianismo ocidental, verificamos que o século XX ficou marcado por uma
efervescência sociocultural que em muito modificou a relação entre indivíduos e
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religião. No caso brasileiro, passamos pela preponderância de um catolicismo
hegemônico para a proliferação e difusão de outras denominações religiosas ou ainda,
para a afirmação dos que se identificam como sem-religião4.
O Cristianismo sempre ocupou um importante espaço na formação cultural da
sociedade ocidental. No caso brasileiro, a Igreja Católica serviu de instrumento para
afirmação de um modelo social imposto com o processo de colonização, e ainda ocupa
um espaço de destaque dentre as demais religiões. Percebemos que o catolicismo passou
por um importante período de sua história, não só no contexto mundial, mas também, no
caso específico brasileiro, quando na década de 1960, aconteceu o Concílio Vaticano
II5. Considerados os aspectos culturais da sociedade brasileira, observa-se a forte
influência que o catolicismo exerce quando de sua inserção no cotidiano dos fiéis,
principalmente através de suas paróquias, modificando diretamente, o tipo de relações
sociais entre esses elementos. Percebe-se também que o transcorrer dessa relação não se
dá por uma via de mão única e que características de várias outras formas de praticar o
catolicismo podem ser observadas entre os grupos que o adotam como religião.
Todo esse cenário de mudanças foi em muito estudado pelos cientistas sociais
brasileiros, e a partir desses estudos, podemos apontar para aquelas que seriam as
principais características do cenário religioso brasileiro, dentre elas: 1ª) conflitos entre o
processo de secularização frente ao fortalecimento da adoração religiosa individual ou
por intermédio institucional; 2ª) um viés de pluralidade religiosa diante do declínio de
uma religião hegemônica; 3ª) um sincretismo religioso muitas vezes propagado como
harmônico, mas que tem gerado diferentes interpretações.
Quanto à característica sincrética das formas de religiosidade brasileira,
lembramos que não cabe neste trabalho um maior aprofundamento do tema - mesmo
que facilmente pudéssemos encontrar vasto campo de investigação na comunidade por
nós estudada - contudo, vale ressaltar os trabalhos já produzidos por Pierre Sanchis
(1994; 2002), Cecília Mariz (2002), Maristela Andrade (2002), Patrícia Birman (2002),
Ronaldo Almeida (1996), Roberto Motta (1992) e Carlos Rodrigues Brandão (1992),
4
Comparando dados quantitativos temos que em 1940, 95,2% da população se declaravam católica. Já
com base no Censo de 1970, encontrávamos um percentual em torno dos 92%. Em 1991, o percentual
caiu vertiginosamente para 83,3% da população e em 2000 identifica-se 73,8% da população brasileira
como católica.
5
Como observou Reginaldo Prandi (1997:30), “esse processo de um lado significou importante passo na
direção de uma elaboração teológica para os problemas sociais, a Teologia da Libertação; de outro,
formou a trilha mais conservadora que veio a dar na Renovação Carismática”.
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entre outros, que apontam para iniciativas de se entender como o catolicismo
„hegemônico brasileiro‟ sempre esteve imbricado de outras devoções.
No que se refere ao conflito existente frente ao processo de secularização da
sociedade ocidental, acreditamos termos introduzido nosso leitor nessa discussão,
considerando sua importância para a formação de um contexto sociocultural urbano
bastante diferenciado no século XX. Diante dessas considerações e ressalvas, passemos
a analisar o perfil da religiosidade brasileira: suas mudanças, pluralidade e
especificidade.
- Campo religioso brasileiro
A par de uma oferta religiosa mais diversificada, estamos vendo formar-se em nossa terra
um contingente cada vez mais numeroso de desencaixados de qualquer religião, desfiliados
de toda instituição religiosa, desligados de toda e qualquer autoridade religiosamente
constituída, e essa é a melhor parte da história (Pierucci, 2004:17).
Em estudos recentes, Antonio Flávio Pierucci preocupou-se em entender como
os efeitos da modernidade e secularização poderiam de fato transformar o cenário
religioso brasileiro. Constatou inicialmente, que diante de tais mudanças sociais foi o
catolicismo que saiu como maior perdedor dentro do processo, pois tal religião viu sua
hegemonia eclesiástica ceder espaço não só para o culto a outras denominações, como
também, presenciou o crescimento de uma parcela da população que se dirigia não só
para uma experiência ritualística individualizada, mas também, para a autodeclaração de
não necessitar de algum tipo de prática religiosa.
Em seus trabalhos, o autor afirma que ao se pensar em desenvolver uma
sociologia da religião brasileira, a mesma não pode deixar de ocorrer sem considerar o
declínio da religião católica. Situada com o que ocorria de transformações sociais no
mundo, a academia brasileira procurou, mais especificamente nas décadas de 1950 e
1960, desenvolver uma leitura revisionista do que já havia sido realizado. Esse
revisionismo terminou por consagrar-se na década de 1970, quando se deixou de estudar
tão somente o catolicismo como religião oficial brasileira e consideraram-se outras
16
perspectivas de estudo. Baseado no trabalho de Procópio Camargo (1973), o autor
considerou que
[...] a sociologia da religião no Brasil (...) desde o início, teve que ser posta em termos não
simples. Secularização sim, mas com mobilização religiosa acrescida. Efervescência
religiosa sim, mas por causa do aprofundamento da secularização (2004:21).
Sobre a temática proposta, as pesquisadoras Cecília Mariz e Maria das Dores
Machado reafirmam a identificação de duas tendências que marcam o processo de
transformação da religião no Brasil. Estas tendências se referem ao crescimento de
pentecostais e daqueles que se identificam como sem religião, conforme já destacamos.
Contudo, vale salientar que, em seus trabalhos, as pesquisadoras preocuparam-se em
revelar algumas das estratégias utilizadas pelas instituições religiosas tradicionais no
intuito de promover uma maior institucionalização de suas ações, ou até mesmo, um
resgate desse controle frente às mudanças sociais vigentes.
O debate que busca relacionar a globalização com a cultura e, em particular com a religião,
tem apontado não só para a „banalização das fronteiras religiosas‟, como também para um
reforço à tendência de privatização das escolhas religiosas com a correspondente
secularização do espaço público. Estes dois processos são inter-relacionados. Se, por um
lado, percebe-se esta „banalização das fronteiras‟ na crescente dificuldade, por parte das
religiões tradicionais, em regular e manter seus adeptos dentro dos „limites seguros e
estáveis de seus sistemas de crenças‟, por outro, esta se explica pela crescente subjetivação
da religião. O indivíduo não mais atribui autoridade a uma instituição para limitar ou definir
o conteúdo de suas crenças. O pluralismo religioso é, assim, reforçado, mas ganha um
caráter distinto desde que o papel da instituição é enfraquecido (1998:37).
Uma das principais preocupações de nossas autoras foi entender como
pentecostais e católicos se apropriaram de estratégias que pudessem condicioná-los
diante do novo quadro de religiosidade apresentado no Brasil. Observaram que no caso
dos católicos, o levantar de uma bandeira que apontava para a necessidade de ligação de
seus fiéis a uma instituição pareceu ser o melhor argumento frente aos processos
iminentes de secularização e divisão de fiéis. Nesse caso, o que se viu foi o
17
fortalecimento de alguns dos grupos de leigos que serviram como instrumentos
fundamentais para tal retomada, “pois a queda evidente na proporção de católicos
parece estar sendo acompanhada por um relativo reavivamento religioso, e mais ainda
por uma intensificação da diversidade na experiência de ser católico” (Mariz,
2006:53).
Propondo-se a uma revisão do que já foi trabalho com o catolicismo, Mariz
analisa o trabalho de Lemuel Guerra (2000; 2003), onde o mesmo apostaria na teoria do
reavivamento com base nos trabalhos de Rodney Stark e Lawrence Iannaccone (1994),
uma vez que, esses criticaram a teoria de mercado religioso proposta por Peter Berger
(1985) que, por sua vez, não se preocupou em explicar o que poderia ser considerado
como aumento da mobilização religiosa frente aos processos decorrentes da
modernidade.
O modelo de Berger sugeria que a maior pluralização estaria relacionada com a
secularização e menor religiosidade. No paradigma do mercado religioso de Stark e
Iannaccone se argumenta que a competitividade criada por uma situação de pluralismo
religioso fomentaria a participação confessional, ou seja, maior mobilização religiosa
(2006:55).
Diante desse quadro de novas formações, onde religião e modernidade se
tensionam, sem exclusão, e às vezes, com reforço do religioso, qual seria o formato
desse novo perfil católico brasileiro? Pesquisas recentes vêm apontando para o que já
foi levantado neste trabalho e indicam para uma diversidade de práticas religiosas
dentro do próprio catolicismo. Faustino Teixeira (2005) parte para uma classificação
que condicionaria o catolicismo como: 1) santorial; 2) erudito ou oficial; 3) o dos
reafiliados, marcado pela inserção em um „regime forte‟ (CEB‟s, RCC, etc.); e 4) um
midiático emergencial.
Neste sentido, considerando o trabalho realizado por Cecília Mariz,
constatamos a existência de pelo menos dois pólos de prática católica que podem, por
vez, englobar a classificação anterior:
18
Por um lado, não somente continua forte um catolicismo popular autônomo expresso em
festas tradicionais variadas, devoções aos santos com práticas de estilos mágicos (...) por
outro, a própria hierarquia tem proposto discursos e práticas diversas, e por vezes
discordantes, através de suas distintas „campanhas culturais‟, como foram os casos da
Teologia da Libertação e da Renovação Carismática (2006:56).
Essas duas formas de atuar do catolicismo brasileiro apontadas por Cecília
Mariz, remetem-nos diretamente ao que passamos a identificar como os pólos de
vivência católica presentes na comunidade do Morro da Conceição. A comunidade
citada, devido a sua importância e simbolismo socioreligioso e político, esteve sempre
envolvida em uma espécie de laboratório de prática de pesquisa que comprovaria todas
as mudanças ocorridas nas religiões mundiais e no Brasil. De fato, as transformações
ocorrem e o Morro da Conceição é um exemplo prático desse processo. Frente às
mudanças estruturais e estruturantes, precisou a comunidade católica recriar-se e se
autoidentificar, ressalvando-se que isso não necessariamente a condicionou a uma
prática religiosa homogênea. Observa-se nesse caso, que há uma relação simbólica entre
a representação de Nossa Senhora da Conceição e a Igreja Católica, bem como entre
padres (antigos e novos) e leigos, e que essa relação norteia tal comunidade.
O que se observa é que essas relações, marcadas por conflitos, disputas e
tensões, acirraram-se ao ponto de a simples tentativa de se classificar a comunidade
católica do Morro da Conceição, passar por uma divisão de titularidade, pois, se
fôssemos questionados a respeito de alguma informação sobre a comunidade católica do
morro, eis que responderíamos com outra questão: qual comunidade católica específica?
A que está ligada à igreja oficial ou a que realiza atividades paralelas a ela (no caso, a
Igreja de Resistência e Fé)? Ou ainda, estaríamos falando do grupo de fiéis que pratica
sua devoção de maneira autônoma ou daqueles que a praticam segundo seus reguladores
(líderes) religiosos?
Nesse sentido, como característica diferenciada e instigante da comunidade,
podemos constatar a existência do que identificamos como o terceiro pólo de
representação católica no Morro da Conceição, e que é formado pela participação dos
fiéis nas práticas do Catolicismo Popular. Esses devotos de Nossa Senhora visitam,
convivem ou moram no morro, sem necessariamente estarem ligados a membros dos
grupos religiosos existentes. Os representantes autônomos são devotos, peregrinos e
19
pagadores de promessas, bem como, representantes do ainda desestruturado turismo
religioso local. Esses, indiferentes a qualquer querela histórica, política, simbólica ou
institucional, compõem o maior número de pessoas encontradas no cotidiano do campo
religioso estudado, correspondendo a grande maioria dos fiéis católicos da comunidade.
- A comunidade católica do Morro da Conceição
Passemos a observar então, o campo religioso citado, inserido nas dificuldades
socioeconômicas enfrentadas por comunidades brasileiras de baixa renda que têm como
características comuns: a habitação nas áreas de morro, o alto nível de desemprego e a
conseqüente desocupação de seus moradores, dentre outros. Assim como em outras
áreas, também no Morro da Conceição, tais dificuldades influenciam o crescimento do
mercado informal, concentrando, por sua vez, atividades rotineiras do tipo: levar os
filhos à escola, comprar alimentos ou realizar atividades de lazer, em torno do centro do
bairro6. Manuel M. Marzal, explica que: “a simples proximidade entre casa e templo
de denominação religiosa influencia diretamente a procura pela instituição por parte
da comunidade” (2000:68). Identificamos a partir disto, a comunidade do Morro da
Conceição que se constitui como um dos principais centros comunitários de atividades
políticas, culturais e religiosas da cidade do Recife7.
Identificada a comunidade religiosa citada, procuramos concentrar nossas
análises considerando a existência de pólos de atividades católicas ligadas à Igreja de
Nossa Senhora da Conceição. Nesta dissertação, apresentamos como ocorre o processo
de convivência, bem como, a constituição de redes de sociabilidade entre os fiéis
católicos do Morro da Conceição, pois, na comunidade, existem três pólos de atividades
religiosas. O primeiro seria aquele que está ligado ao atual pároco da igreja, pe. Josivan
Sales que, atualmente, representa os interesses da igreja oficial e relaciona-se com
outros variados grupos católicos que, naquela igreja, realizam atividades (dentre eles: os
6
Ver MAFRA, Clara (2003). A Habitação do Morro: impressões de moradores de duas favelas do Rio de
Janeiro sobre religião e espaço público. Religião e Espaço Público, BIRMAN, Patrícia (org.).
7
Tentemos desenhar um perfil social e estatístico da comunidade: Área: 0,37 km com uma densidade de
248,15 hab./ha.; 10.142 é número total de habitantes sendo os mesmos englobados nas Zonas Especiais de
Interesse Social (Zeis); Número de domicílios: 2.570; distância do marco zero da cidade: 6,8 km; Estudo
sobre chefes de família: a) com menos de quatro anos de estudo: 15,6%; b) com mais de 11 anos de
estudo: 2,2%; c) sem rendimento mensal: 10,9%; d) com até um salário mínimo: 37%; e) Renda média:
R$ 284,30. Fonte: Atlas Municipal do Desenvolvimento Humano no Recife (2000).
20
grupos ligados a Legião de Maria, Apostolado da Oração, Renovação Carismática
Católica, Terço dos Homens, Vicentinos, Pastorais e outros). Em contrapartida,
encontramos o pólo que está ligado ao pe. Reginaldo Veloso, caracterizado pela
participação de antigos leigos discípulos das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s) e
que após o afastamento do padre da paróquia do morro, decidiram continuar, a partir da
constituição da Igreja de Resistência e Fé, atuando de forma paralela às atividades da
igreja oficial. Ainda existe o pólo que, independe de qualquer liderança ou instituição e
identifica-se com as práticas do Catolicismo Popular. Todavia, há de se ressalvar que,
havendo a necessidade de execução de algum tipo de ação mais oficial na relação entre
o fiel e a Santa da Conceição (casamentos, missas, batizados etc.), os membros do
último pólo tendem a procurar as lideranças eclesiásticas oficiais do primeiro pólo8.
Nesse sentido, considerando as diferentes formas de atuar dos citados fiéis católicos,
destacamos o que ressalva o pesquisador Marc Piault:
Percebemos então como o modelo hierarquizado e centralizado da Igreja Católica,
usualmente transposto para as representações e as práticas políticas, é desconstruído por
intermédio de comunidades que questionam as modalidades práticas por meio em que a fé
se expressa no cotidiano (2003:368).
Observe-se ainda, a influência que as lideranças religiosas – leigas ou
eclesiásticas – exercem sobre os fiéis, observando a apresentação de tendências
ideológicas, estratégias de desenvolvimento aplicadas, os conflitos de interesse e as suas
formas de convivência, pois, nesse contexto, situa-se uma das questões essenciais ao
pesquisador: a necessidade de entender até que ponto a devoção e a representação de
Nossa Senhora da Conceição, aproximam ou afastam os grupos de fiéis católicos do
Morro da Conceição, considerando que “a religião é sempre e a pleno título uma forma
operante de conhecer e organizar a vida e o mundo e que por isso é uma ideologia em
sentido amplo” (Durkheim, 2003:192). Todavia, mesmo considerando que o argumento
de Émile Durkheim seja o de destacar que a religião serviria como instrumento de união
8
Há de se ressalvar novamente, que as conclusões apresentadas aqui, são oriundas de um intenso trabalho
de campo realizado durante os anos de elaboração da dissertação de mestrado que serviu como base para
elaboração desse artigo, e que já foi aqui citada. Dessa maneira, destaca-se a necessidade de novas
análises quanto a esta convivência socioreligiosa, considerando-se que houve uma significativa mudança
no campo religioso estudado, representada pela alternância de poder na Arquidiocese de Olinda e Recife,
com a chegada de dom Fernando Saburido, no último ano.
21
entre os indivíduos, objetivamos entender se o simbolismo e cultos atribuídos à Santa da
Conceição, agregam ou desagregam os fiéis católicos que convivem com a comunidade.
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26
Expropiação Folk em Merchandising de produtos alimentícios no ciclo
junino no Recife
Jademilson Silva1
Eliana Queiroz2
Leonardo Willie3
Betânia Macieal4
Resumo: O presente estudo exploratório analisa no âmbito do folkmarketing a
expropriação da cultura popular em produtos alimentícios, durante o São João
2009, da multinacional Coca-Cola e grandes empresas fabricantes de alimentos.
nas peças de merchandising em pontos-de-venda (PDV) no Recife, Estado de
Pernambuco, no Brasil. Como problema, questionamos se ao divulgarem seus
produtos com temática alusiva aos festejos juninos, via propaganda, as empresas
expropriam a cultura popular? É nosso objetivo analisar como se dá a
expropriação da cultura popular no contexto massivo e das ações mercadológicas
em confronto com as teorias de folkcomunicação, sua variante folkmarketing, bem
como a cultura popular, a educação e o merchandising num breve estudo de caso.
A pesquisa foi exploratória, bibliográfica e documental, tendo como técnicas de
coleta o registro fotográfico, a ficha de registro de campo e observações
sistemáticas. Como percurso metodológico, entendemos ser as estratégias
comunicacionais contidas nas peças de merchandising em PDV de empresas
públicas e privadas um elemento folkcomunicacional. Desta forma, elas exercem
uma função social e são mais um instrumento midiático, a partir da fotografia, que
detecta concepções culturais mediante metalinguagens (gráfica, icônica),
metáforas, recursos de construção e figuras de pensamento. Como suporte de uma
comunicação verbal e não-verbal, acreditamos que o PDV revitaliza os dados
1
Jornalista, Radialista, Especialista em Comunicação e Marketing, Mestre em
Extensão/Comunicação Rural e Desenvolvimento Local (Posmex/Ufrpe), Professor Universitário,
Pesquisador da Rede Folkcom. E-mail: [email protected].
2
Jornalista, Radialista, Especialista em Turismo Cultural, Mestranda em Extensão/Comunicação
Rural e Desenvolvimento Local (Posmex/Ufrpe), Pesquisadora da Rede Folkcom.
3
Publicitário, Especialista em Marketing, Mestrando em Extensão/Comunicação Rural e
Desenvolvimento Local (Posmex/Ufrpe)
4
Pedagoga, Mestre em Comunicação Social (Universidade Metodista/SP), Doutora em
Comunicação (Salamanca/Espanha), Professora do Programa de Mestrado Posmex/Ufrpe,
Presidente da Rede Folkcom.
27
históricos na memória dos consumidores, reforça a imagem e marca dos produtos
impressos nas bandeirolas, targets e banners, permitindo complementar
subliminarmente o que o texto escrito não revela em imagens persuasivas.
Palavras-chave: Folkcomunicação, Cultura Popular, Educação, Propaganda,
Identidade.
Abstract: This exploratory study analyzes popular culture expropriation of
alimentary products through Folkmarketing theory, exploring point of purchase
(POP) merchandising of major food companies during "junina" parties in 2009, in
Recife, Pernambuco, Brazil. As the starting research problem, we ask if by
advertsing their products with themes alluding to "junina" parties these companies
expropriate popular culture. Our aim is to analyze how popular culture
expropriation happens in the mass media context, using Folkcommunication
theory and its variant, Folkmarketing, as well as the relationship between popular
culture, education and merchandising in a case study. The research was
exploratory, bibliographic and documentary, having as data recollection technique
photography, field journal and systematic observation. As methodological
strategies, we believe that communication strategies present in POPs is a
folkcommunication element, exerting a social function, detecting cultural
conceptions that can be understood through its metalanguage (graphical, iconic)
and expressing metaphorically thought's images and processes. Thus, they must be
analyzed in their own discourse as support for verbal and non-verbal
communication that recomposes a past time and historical knowledge in
consumer's minds, reinforcing product branding present in merchandising
resources and complementing what written text can't reveal in persuasive images.
Key words: Folkcomunication, Popular Culture, Education, Propaganda, Identity.
28
Introdução
Bastante festejado no mês de junho no interior dos Estados do Nordeste do
Brasil, o ciclo junino ao misturar sagrado e profano não somente atrai turistas para
a festa por ter adquirido ares massivos, mas é alvo de estratégias de ações
mercadológicas por parte de empresas públicas e privadas nacionais e
estrangeiras, entre elas Coca-Cola, Sadia, Vitamilho e Yoki. Isto porque o São
João também é comemorado nos centros urbanos, movimentando o comércio com
as temáticas da cultura popular do período e tem importância econômica e cultural
do São João para a região. Percebemos, então, que o ciclo junino tem sido
apropriado por essas instituições com objetivos mercadológicos para maior
visibilidade de seus produtos e serviços.
A apropriação da cultura local por diversos segmentos empresariais em
ações mercadológicas tem sido pesquisada no âmbito do folkmarketing pelo
professor Severino Lucena Filho (1997, 2007). Porém, este breve estudo de caso
pretende verificar como a cultura popular é tratada por tais campanhas
mercadológicas, em especial pelo merchandising. Diante disso, indagamos se ao
divulgarem seus produtos com temática alusiva aos festejos juninos, via
propaganda, as empresas expropriam a cultura popular? Ainda buscamos
elementos para conseguir analisar os seguintes objetivos: identificar elementos de
expropriação da cultura popular no merchandising de supermercados, verificar se
essa forma de atuação da propaganda contribui para a educação do povo no
tocante à cultura popular e visualizar formas de identidade e pertencimento nessas
campanhas.
O nosso referencial teórico está estabelecido na folkcomunicação e também
em teorias que norteiam a cultura popular, educação, identidade e propaganda. O
nosso caminho metodológico está alicerçado no método Estudo de Caso (Yin,
2005), sendo uma pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa e a coleta de
dados realizada mediante observações sistemáticas, registro fotográfico e fichas
de registro in loco. O corpus foi formado por merchandising e propagandas da
Coca-cola, Sadia, Vitamilho e Yoki, empresas de alimentação que realizaram suas
campanhas em diversos supermercados do Recife. Na análise, fizemos o
confronto das teorias com a realidade empírica pesquisada. Na conclusão, temos
29
um esboço da expropriação no campo da cultura popular e as abordagens
comunicacionais das organizações.
O São João é a principal festa do solstício de inverno. Inicialmente uma
festa pagã de comemoração da colheita, o catolicismo se apropria dela e
acrescenta o culto a São João Batista para torná-la sagrada. Na véspera do dia 24
de junho (São João), no Nordeste do Brasil fogueiras são acesas, queimam-se
fogos e surgem comidas de milho, como a canjica e a pamonha. Dos festejos
juninos também fazem parte Santo Antônio, 13, e São Pedro, 29. (Araújo, 2007).
A Teoria da Folkcomunicação (1967) é de autoria do jornalista
pernambucano Luiz Beltrão, que analisou a comunicação popular como
manifestação própria de um grupo marginalizado que atuava como retransmissor
ou decodificador de mensagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa.
(Beltrão, 2001).
O jornalista brasileiro de Pernambuco Luiz Beltrão atuou no Diário de
Pernambuco, o mais antigo em circulação na América Latina, foi pioneiro
também na fundação do curso de jornalismo da Universidade Católica de
Pernambuco, responsável pela fundação do Instituto de Ciência da Informação –
ICINFORM (1963), e da primeira revista de Comunicação (1965), Comunicações
& Problemas. A Teoria da Folkcomunicação faz parte da
primeira tese de
doutorado em comunicação, defendida em 1967 pela Universidade de Brasília
A proposta original de Luiz Beltrão está vinculada à formulada por Katz e
Lazarsfeld5 como Teoria da Comunicação, nos paradigmas do fluxo
comunicacional em duas etapas, e depois ampliada por Wilbur Schramm6, na
teoria da comunicação em múltiplas etapas. Beltrão observou que, no Brasil,
havia simultaneamente o sistema de comunicação massiva e os grupos primários,
receptores das mensagens midiáticas, e entre eles um sistema mediador,
5
O modelo comunicacional de Lazarsfeld considera os líderes de opinião, pessoas capazes de influenciar
individualmente e coletivamente as pessoas, de uma maneira informal os seus comportamentos, em camadas
sociais distintas. Ele questiona o modelo de Lasswell (1948) no tocante à passividade do receptor da
mensagem. Considera que a mídia, através do excesso de informação pode levar ao alheamento, mas não a
um poder hipnótico e alienador sobre os receptores.
6
O modelo comunicacional de Schramm percebe a comunicação como um todo. Considera que o emissor e o
receptor sempre se situam em campos de experiência, ou seja, um conjunto de vivências sociais e culturais
adquiridas na vida cotidiana. A mensagem liga um campo a outro. Há produção de sentidos. Menciona o
feedback ou retroalimentação. Quanto mais experiência comum, mas a mensagem é retroalimentada.
30
denominado
folkmidiático.
Tais
manifestações
populares
tinham
tanta
importância comunicacional quanto as massivas. Tratam-se dos processos de
comunicação popular, preservados pelas comunidades rústicas do Brasil rural e
dos subúrbios metropolitanos (festas, folguedos, repentes, literatura de cordel),
que operam como recodificadores das mensagens da grande mídia. Logo, é na
proposta de Beltrão que tais manifestações culturais constituem-se em objetos de
estudo em si mesmos. (Marques de Mello, 2008).
Para Beltrão (2001, p.79), “Folkcomunicação é, assim, o processo de
intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, idéias e atitudes da
massa, através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore”.
Segundo Hohlfeldt (2008), esse conceito vem sendo ampliado, passando a
folkcomunicação a ser entendida como:
O estudo dos procedimentos comunicacionais pelos quais as manifestações da
cultura popular ou do folclore se expandem, se sociabilizam, convivem com outras
cadeias comunicacionais, sofrem modificações por influência da comunicação
massificada e industrializada ou se modificam quando apropriadas por tais
complexos. (Hohfeldt, 2008, p.82).
No contexto desta nova abrangência, surge o folkmarketing7 „como uma
estratégia comunicacional cujo suporte simbólico na gestão do processo de
comunicação reside na apropriação de elementos da cultura folk pela cultura de
massas e pela cultura erudita (Lucena, 2007a) e ainda dentro do segmento da
indústria massiva, onde as festas populares convertem-se em:
Conteúdo midiático de natureza mercadológica e institucional, via apropriação do
universo simbólico da festividade, como estratégia comunicacional, pelas empresas
que são parceiras/gestoras e patrocinadoras dos eventos culturais. (Lucena, 2007b, p.
90).
7
Segundo Muylaert (1993) apud Lucena Filho (2004, p. 62), o marketing cultural é uma das ferramentas de
comunicação mais seguras para que o produto associado a determinado evento tenha reforçada a imagem
desejada”. O folkmarketing emerge do quarto P (promoção) da tese básica do Marketing, quando utiliza-se
das manifestações folclóricas e elementos das culturas populares como tema central e estratégia
comunicacional.
31
Através do folkmarketing, as organizações públicas e privadas identificamse com seus públicos-alvos, falando a mesma linguagem e mostrando as imagens
que eles querem ouvir e ver, fazendo assim com que percebam os valores que
querem agregar para suas marcas e produtos. Fator reforçado por Benjamin
(2004), quando justifica que “os processos comunicacionais que ocorrem na
preparação, realização e no tempo que sucede à festa são muito variados, indo
desde a comunicação interpessoal, grupal até a comunicação de massas”. Ainda na
festa, observa-se a apropriação pelos órgãos de Governo dos rituais, folguedos e
danças de natureza comunitária, para convertê-los em espetáculos de massa e
atração turística. E também a expropriação da cultura popular8. Neste sentido,
destacamos a importância da cultura no processo folkcomunicacional pretendido
para o São João, abordada por Cascudo:
A função de qualquer cultura é sempre o resultado da participação humana e em seu
serviço. Estuda-se, evidentemente, a criação, desenvolvimento e transformação do
esforço humano para adaptar-se e conquistar o ambiente em que vive. (Cascudo,
1983, p.114).
Partindo do pressuposto de que, na sociedade moderna, a convivência entre
pessoas, famílias e sociedades exige negociações entre os diferentes, as mediações
passaram a ser um instrumento importante de reconfiguração das interações
comunicacionais e culturais. Reforça tal opinião Trigueiro (2006):
Com a globalização da comunicação, ao invés da tão propagada homogeneização
cultural, do desaparecimento das culturas locais e das culturas tradicionais o que
estamos vendo é uma nova ressignificação das manifestações locais e
conseqüentemente do nosso folclore, das culturas populares (Trigueiro, 2006, p.153)
8
Segundo Benjamin (2004, p.83), o termo “expropriação traz para o estudo da cultura popular o sentido de
exploração econômica predatória.”
32
Estamos, portanto, em pleno processo de transmutação da nossa identidade
cultural. Opinião compartilhada pela pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
e coordenadora do Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior, Rúbia
Lóssio: “Assim, a cultura de massa, envolvida num processo do contexto urbanoindustrial, reprocessa a cultura através da tecnologia da informação, resultando em
uma nova maneira de enxergar a cultura”. (Lossio, 2004, p.8).
Além de verificar a relação entre a teoria beltraniana com a cultura popular,
também cabe aqui neste breve estudo verificar o entrelaçamento da
folkcomunicação e a educação.
Portanto, resgataremos dos estudos de John
Dewey (1959), filósofo norte-americano e um dos fundamentadores teóricos da
Escola Nova, em 1916, em Educação e Democracia, o conceito de educação como
uma necessidade da vida, um processo de transmissão de conhecimentos dos mais
velhos para os mais novos. O autor ainda nos relata que a sociedade não somente
assegura a sua continuidade por transmissão, mediante comunicação. Em seu
sentido genuíno, sociedade é, pois, comunicação ou mútua participação.
Ora, segundo Dewey, comunicação é educação. Nada se comunica sem que
os dois agentes em comunicação – o que recebe e o que comunica – se mudem ou
se transformem de certo modo. Quem recebe a comunicação tem uma nova
experiência que lhe transforma a própria natureza. Quem a comunica, por sua vez,
se muda e se transforma no esforço para formular a sua própria experiência.
(Dewey, 1959).
Beltrão reconhecia nos agentes de folkcomunicação, nas sociedades rurais
ou periféricas, um caráter nitidamente institucional. Para Beltrão (1967), cultura é
produzida em um meio determinado, a partir da participação ativa dos integrantes
de um grupo social específico. É esta cultura que confere coesão social a tal
grupo, permitindo o compartilhamento de suas crenças, de sua "leitura do
mundo". Pedro Demo (1996), lembra ainda que a “cultura constitui o contexto
próprio da educação, porque é motivação fundamental de mobilização
comunitária e quadro concreto da criatividade histórica” (Demo, 1996, p.58).
A propaganda é considerada um meio pelo qual produtos e serviços são
direcionados a seus públicos de interesse utilizando uma linguagem persuasiva.
33
Propaganda exerce uma função adjetiva e expressa a idéia de dever, de
necessidade, de algo que deve ser propagado. (Sandmann, 2007).
A propaganda tem um discurso próprio de atuação que pode ser feita através
de uma comunicação mercadológica ou organizacional. A linguagem da
propaganda se reveste de funções, que segundo Sandmann (2008) são três: 1)
Informativa; 2) Persuasiva (sedução); 3) de Lembrança.
A propaganda está estabelecida, atualmente, no contexto mais amplo da
comunicação, ou seja, na comunicação integrada de marketing, tendo como
objetivos conseguir novos clientes, fidelizar os clientes existentes, neutralizar
ações da concorrência, trabalhar de forma planejada, promover ações comerciais e
institucionais. (Tavares, 2009).
Focando a realidade do nosso objeto de pesquisa, no caso as ações
mercadológicas em ponto-de-venda (PDV), consideramos para a análise do nosso
corpus de estudo o merchandising, sendo considerado “um conjunto de técnicas
responsáveis pela informação e apresentação destacada dos produtos nas lojas, de
maneira tal que acelere sua rotatividade.” (Blessa, 2009, p.08). Ainda segundo a
autora, merchandising é uma técnica, ação ou material promocional usado no
ponto-de-venda que proporcione informação e melhor visibilidade a produtos,
marcas ou serviços, com o propósito de motivar e influenciar as decisões de
compra dos consumidores.
As lojas, supermercados, shoppings são considerados lugares de consumo e
a disputa pela mente, coração e dinheiro do consumidor é travada no âmbito das
estratégias de marketing e propaganda. A ambientação caprichada pode levar à
persuasão do consumidor. “O merchandising visual [...] cria o clima decorativo
para ambientar os produtos e a loja.” (Blessa, 2009, p.06). Nesta direção,
reafirmamos o uso crescente dos elementos da cultura local para justamente dar
maior visibilidade às mercadorias, utilizando-se do folkmarketing. Ainda mais
quando, no Brasil, 81% das decisões de marca são tomadas nos pontos-de-venda,
como supermercados e hipermercados. (Popai, 2007).
Foi realizada uma pesquisa exploratória, bibliográfica e documental nos
supermercados
de
Recife,
Pernambuco,
34
Brasil
das
redes
Carrefour,
Hiperbompreço e Extra. Para execução da mesma foi utilizada a prática da
metodologia participativa, sendo proposto o método estudo de caso de Yin (2005).
Como instrumentais utilizamos o registro fotográfico dos PDVs, bem como
observação sistemática com anotações em fichas de registro in loco, que foram
analisadas através do folkmarketing. Para analisar os dados coletados, dispomos
da abordagem qualitativa que segundo Oliveira (2005, p.60): é uma interpretação
da realidade dentro de uma visão complexa, sistêmica e holística. Para termos
uma relação dinâmica entre o mundo real, objetivo, concreto e o sujeito,
registramos cerca de 100 fotos, mas para análise separamos as que achamos mais
contemplativas para análise.
Com relação ainda à fotografia propriamente concordamos com Trigueiro
(2006, p.161) ao lembrar que ela se trata de “mais um instrumento midiático”
apropriado pelos produtores folkcomunicacionais, sendo um excelente dispositivo
técnico que possibilita detectar uma série de configurações e concepções culturais
e um suporte de comunicação que recompõe um tempo passado e revitaliza os
dados históricos, permitindo “acessar dados complementares, quase sempre
invisíveis, nos textos escritos e orais da realidade”.
O estudo consistiu no resgate de imagens dos PDVs nos supermercados de
maior circulação do Recife, PE, Brasil, durante a celebração dos festejos juninos
de 2009. Trabalhamos com uma amostra de 50 fotografias de um universo de 200
imagens. O período estudado é o compreendido entre 01 a 15 de junho de 2009.
Trata- se de um corte temporal suficiente para apreender as imagens
mercadológicas veiculados em PDV durante os festejos juninos. A escolha dos
supermercados se deu pelos critérios de maior circulação e preferência da opinião
pública.
O conceito de imagem não se limitou aos registros gráficos, mas também a
seus conteúdos simbólicos produzidos na análise dos discursos através das
metalinguagens.
Neta
concepção:
trabalhamos
com
o
eixo
temático:
tradição/inovação; territorialidade (global, nacional, regional); com as estratégias
comunicacionais de informação/persuasão; texto e ilustração. Porém com relação
aos referentes culturais, trabalhamos as categorias natureza da celebração junina,
35
significação comunitária do São João (pertencimento e identidade); o lugar do
nordeste do Brasil no imaginário junino. (Marques de Melo,2008, p.74,75)
Foto 1 – Merchandising da Sadia
Foto 2 – Mascotes da
Sadia
Empresa alimentícia no ramo de embutidos de carne e frango, com sede em
Santa Catarina, a Sadia - mesmo não tendo produtos focados para o festejo junino
- utilizou-o como temática nas ações de merchandising nos supermercados do
Recife presente nas bandeirolas (figura 1), típicas da época. Ainda o tradicional
mascote (figura 2), simbolizado como peru Sadia, se transverte na bandinha de
pífanos de Caruaru para criar laço de identidade e pertencimento com o target. Os
detalhes ficam para o chapéu do cangaço e a sandália rasteira do xaxado, dança
eternizada pelo bando de Virgulino Ferreira, o Lampião.
Foto 3 – Merchandising da Vitamilho
comemorativa
36
Foto 4 – Embalagem
No caso da Vitamilho, que faz parte do tradicional grupo empresarial local
ASA, apropria-se do contexto do folkmarketing simbolizado por seus produtos
derivados do milho e outros cereais em barracas típicas do interior, chamadas de
palhoças (figura 3). A própria embalagem (figura 4), utiliza-se do recurso de
sazonalidade e imprime as bandeiras, balões e a tradicional fogueira, que são
acesas, em especial, na véspera de São João. Além do mais, a xilogravura, vem
ilustrando as bandeirolas da palhoça, fazendo a cultura popular emergir no
contexto mercadológico de comunicação.
Foto 5 – Pau-de-sebo da Yoki
Foto 6 – Pé-de-
moleque da Yoki
A Yoki é uma organização fundada por imigrantes japoneses, no Estado de
São Paulo, nos anos 60 e estabeleceu-se como fabricante de farináceos, em
especial a farinha de milho, milho e a canjica. Nas ações de merchandising em
PDV, percebemos o uso do pau-de-sebo (figura 5), brincadeira cada vez mais
extinta nas chamadas festas interioranas. Tal abordagem remete ao imaginário das
pessoas mais velhas, porém com pouco simbolismo para os mais jovens. Aqui
inferimos um processo de educação via cultura popular, uma forma de trazer para
um contexto massivo algo tipicamente popular. Ademais, vislumbramos tal
análise na culinária, quando a Yoki traz para o seu mix de produtos o tradicional
doce pé-de-moleque (figura 6), utilizando designer moderno e atrativo nas
embalagens.
37
Foto 7 – Merchandising da Coca-cola
Foto 8 – Lata
comemorativa da Coca
A multinacional americana Coca-cola também participa do arraial do
consumo com ações de folkmarketing, que remetem ao identitário das pessoas. Na
peça promocional (figura 7), identificamos a referência à quadrilha matuta, que
mesmo estilizada na atualidade, rememora o cotidiano do interior e dos subúrbios
metropolitanos. Na própria lata, em versão comemorativa, percebemos não só os
elementos da nossa cultura, como a fogueira e o sanfoneiro, como o boi do norte
do país.
Observamos
nas
peças
publicitárias
que
há
uma
apropriação
e
ressignificação das manifestações culturais e do folclore, mas ao mesmo tempo há
a expropriação da cultura popular junina, pois faz parte da cultura popular
trabalhar com os alimentos in-natura para confecção das suas comidas típicas e
não com os industrializados. Ao se apropriarem dos elementos que fazem parte do
imaginário, pertencimento das comunidades, as empresas se expropriam da
cultura popular ao tentarem educar a população a prepararem a comida junina
utilizando os produtos industrializados de sua marca, indo de certa forma na
contramão da tradição junina. Porém,
tal
estratégia
de
comunicação
mercadológica, ao utilizar-se do folkmarketing, ressignifica as manifestações
locais, emprestando-lhes um valor que já se encontra presente na cultura em si
mesma como motivação essencial do processo participativo. É também um
processo híbrido de apreensão das culturas.
Percebemos ainda que as fotografias utilizadas no merchandising dos PDV
permitem detectar concepções culturais. Como estratégias metodológicas,
entendemos ser as estratégias comunicacionais contidas nas peças de
merchandising em PDV de empresas públicas e privadas um elemento
folkcomunicacional por exercer uma função social e ser mais um instrumento
midiático, a partir da fotografia, que ao detectar concepções culturais, através de
metalinguagens (gráfica, icônica), nas maneiras de expressar-se, como metáforas,
os recursos de construção e as figuras de pensamento (Beltrão, 2004.p.94) devem
ser analisadas em seu discurso como suporte de uma comunicação verbal e nãoverbal que recompõe um tempo passado e revitaliza os dados históricos na
38
memória dos consumidores, reforça a imagem e marca dos produtos impressos
nas bandeirolas, targets e banners, permitindo complementar subliminarmente o
que o texto escrito não revela em imagens persuasivas.
Com relação à propaganda, na tentativa de inferir um processo de educação
via comunicação popular, observa-se uma linguagem persuasiva, de forte sedução,
ao mesmo tempo em que, pela lembrança, reforça o imaginário das pessoas,
resgatando um sentimento de pertença, que por sua vez tenta atrelar uma
experiência de vida na sociedade mediante um resgate de uma forte tradição de
contexto de participação popular, no caso o festejo junino.
E a este processo de coesão entre folclore e comunicação, dá-se o nome de
folkcomunicação, que tem sido cada vez mais pesquisado por estudiosos.
Percebe-se ainda a importância da festa junina como processo comunicacional de
intercâmbios metalinguísticos dos PDVs no meio mercadológico. Por fim,
afirmamos que este é apenas um trabalho embrionário e deixamos pistas para
futuras pesquisas e debates sobre a dinâmica da comunicação mercadológica pelo
viés do estudo da cultura popular e sua formas imbricadas em uma sociedade de
contexto massivo.
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40
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Edição do NP.
41
Realidade Simulada como Instrumento para a Publicidade de produtos na TV
Digital
Nilton Melo1
Ivaldir H. de F. Junior2
Resumo: O presente artigo tem como maior objetivo a análise do ambiente de jogos
eletrônicos como um instrumento viável para a publicidade de produtos na TV digital.
Para que esse objetivo fosse atingido foi demonstrada quantitativamente qual dimensão
o negócio de videogames tomou em termos de perfil da demanda e geração de
dividendos e sua atual relevância para a indústria do entretenimento. Foram sugeridas
maneiras para maximizar a eficácia da publicidade no meio estudado através da forma
como os anúncios são veiculados e foi apresentada uma alternativa a uma limitação
técnica na capacidade de execução de jogos eletrônicos na TV digital.
Palavras chaves: TV digital, videogames, publicidade.
Abstract: This article aims to discuss the electronic environment games analysis as a
viable instrument for the advertising of products in the digital TV. It was demonstrated
quantitatively to which dimension the business of videogames took in terms of profile
of the demand and generation of shares and its current relevance for the entertainment
industry. We have suggested a way to maximize the effectiveness of the advertising
through announcements and the way that they are divulgated. We have showed an
alternative to the technique capacity limitation of electronic games execution into the
digital TV.
Key words: Digital TV, videogames, advertising.
INTRODUÇÃO
O detalhamento dos ambientes criados em videogames evoluiu de tal forma,
que hoje em dia, em alguns casos podem ser confundidos com a realidade. E, se
ainda não reproduzem nosso mundo perfeitamente, o desejo dos seus usuários por
1
Graduado em Administração e Mestre em Ciência da Computação. Professor da Joaquim Nabuco.
Mestre em Ciência da Computação pela UFPE e Doutorando em Ciência da Computação pela UFPE e
Professor da Joaquim Nabuco.
2
42
terem uma experiência tão autêntica quanto possível, fará com que essa indústria se
desenvolva rapidamente nessa direção. Este desejo vem começando a chamar a
atenção de algumas agências de publicidade, que, timidamente, vêm fazendo
propaganda de produtos dentro dos jogos com resultados animadores, como o
aumento do níveo de reconhecimento de marcas, atribuídos justamente ao desejo de
simulação perfeita da realidade que os jogadores buscam. Para eles, é melhor dirigir
um carro virtual de uma marca conhecida do que um carro “genérico”.
A TV digital foi concebida tendo pelo menos um aspecto fundamental em
comum com os videogames: a interatividade. Apesar desse aspecto já ser explorado
no que diz respeito a jogos eletrônicos, os mesmos ainda são incrivelmente simples
se comparados aos dos consoles de videogames ou dos apresentados em
computadores, além de ainda não explorarem a questão da publicidade. Então, por
que não utilizar esses jogos, que possuem a capacidade de criar realidades simuladas,
como instrumento para a publicidade de produtos na TV digital, já que a sua
apresentação é até desejável pelo jogador?
A partir do dia 2 de dezembro, a TV digital já se tornará uma realidade no
Brasil, com o início das transmissões na cidade de São Paulo. Esse marco trará uma
série de desafios para os publicitários, que deverão se adaptar a uma seletividade
maior (com cortes de comerciais, permitidos por gravadores digitais de vídeo, ou
DVR, da sigla em inglês), implementação de aspectos interativos e investimento em
novos equipamentos. De acordo com artigo intitulado À espera da TV digital (2007)
publicado no sítio info exame, 41% dos usuários brasileiros de DVR da transmissora
Sky já não vêem comerciais.
1. TV analógica
TVs analógicas estão no mercado há mais de 50 anos. O sistema de
funcionamento das mesmas permanence imutável desde a sua criação. As bases
desse sistema, de acordo com Brain (2007) são:
As imagens são capturadas por uma câmera de vídeo, que tira fotos das
cenas na velocidade de 30 imagens por segundo.
43
A câmera transforma essas imagens em pequenos pontos individuais
chamados pixels. A cada pixel é designada informação de cor e brilho.
Os pixels são combinados com sinais de sincronização chamados de
sinais de sincronização horizontal e vertical, para que o aparato eletrônico dentro
das TVs possa decodificar a informação de como os pixels serão apresentados.
O sinal que chega à televisão, já com as informações de cor e brilho de cada
pixel, como também com a sincronização horizontal e vertical forma um conjunto de
dados denominado de vídeo composto. O som chega completamente separado da
imagem. A exibição pode ocorrer de diversas formas, sendo as mais comuns a
transmissão por ondas de rádio, por meio de equipamentos, como o videocassete, ou
por cabos.
1.1. Transmissão de sinal analógico
Ainda de acordo com Brain (2007), os sinais sonoros e de vídeo composto,
que são transmitidos em ondas sonoras contínuas, é gerado por meio de freqüências
específicas denominadas de sinal AM (para imagem) e sinal FM (para o som). Os
dois são codificados e enviados pelas estações de TV propagando-se pelo ar. A
propagação dessa onda pode sofrer interferências, culminando em uma distorção que
se reflete na qualidade de imagem ou som apresentada pelos aparelhos.
Figura 1. Representação gráfica de onda de um sinal
analógico.
.
1.2.
Qualidade da imagem na TV analógica
A qualidade da imagem exibida por monitores de vídeo pode ser medida
quantitativamente pelo número de pixels que apresenta. Quanto maior o número de
44
pixels, melhor a qualidade da imagem. Essa relação é denominada resolução de
imagem. A resolução da imagem de uma TV analógica é de 480i. Esse padrão é
definido pelo número de pontos (pixels) que existem nas telas verticalmente. A letra “i”
indica que esses pontos são mostrados em linhas interlaçadas, significando que a
exibição ocorre com interlaçe alternado entre linhas horizontais pretas, sem informação
de imagem, e linhas com informação de imagem, provocando um efeito de oscilação.
1.3.
Benefícios da mudança para a TV digital
De acordo com Collins (2001), a diferença básica entre a transmissão de sinal
analógico e digital é que o digital não é codificado em ondas contínuas e sim em
correntes elétricas binárias (informação de zero e um) alternadas, com as informações
codificadas nessas numerações. Nesse caso, o “zero” é obtido quando não há corrente e
o “um” quando há corrente. Como não é uma propagação de onda sonora, está menos
sujeito a interferências.
Figura 2. Representação gráfica de sinal digital.
.
Para Robin e Poulin (2000), o primeiro grande benefício percebido na transição
da TV analógica para a digital está justamente na qualidade da imagem exibida, ou em
sua resolução. Enquanto que na TV analógica o padrão é 480i, na TV digital são três os
padrões: 720p, 1080i e 1080p, todos definidos como alta resolução. Na prática, são
exibidos muito mais pontos por polegada do que no padrão antigo, além da
possibilidade da apresentação da imagem em progressive scan, que seria a letra “p” do
720p e 1080p. A diferença básica desse sistema para o interlaçado é que, enquanto no
interlaçado existem linhas alternadas, no progressive, o conjunto de pixels que formam
as linhas é apresentado de forma linear e progressiva, sem alternância ou efeito de
oscilação.
Além da resolução mais alta, o padrão da TV digital foi concebido para mostrar
vídeos em aspecto widescreen, (16:9), que possuem um formato retangular, em
45
contraste com o formato quadrado (4:3) da TV analógica, resultando em um ganho de
área de 33%.
Figura 3. Área de apresentação de imagem da TV digital e analógica.
.
A última grande diferenciação entre os dois padrões que o consumido final
percebe é a questão da interatividade, só possível na TV digital.
1.4.
Interatividade na TV digital
Para Lemos (2000), interatividade é um caso específico de interação, a
interatividade digital, compreendida como um tipo de relação tecno-social, ou seja,
como um diálogo entre homem e máquina, através de interfaces gráficas.
A TV digital permite esse diálogo entre homem e máquina, que pode ser
utilizado para alterar o que está sendo exposto na tela da TV.
O sinal que carrega as imagens e sons, seja ele digital ou analógico, é
somente canal de uma via, ou seja, o telespectador só recebe a informação. Para
interagir com a TV digital, é necessário um canal de retorno, que pode ser obtido
através de uma conexão à internet ou uma mensagem de texto enviada de um celular
à transmissora. Aberto esse canal de retorno, é possível fazer votações, comprar
produtos, receber informações sobre um programa qualquer ou jogar.
46
1.5.
Videogames
Newman (2004) define videogame como um jogo que envolve interação com
uma interface de usuário para gerar resposta visual num equipamento de vídeo.
Normalmente, a interface utilizada para manipular os jogos é denominada
controle, que varia de acordo com a plataforma utilizada pelo jogo. Os mais comuns
são o teclado, o mouse, o joystick (tipo de interface que possui uma alavanca e
botões) ou gamepad (este com direcionais em forma de cruz ou de pequenas
alavancas e botões). Existem outras formas de manipulação da ação na tela menos
comuns como, por exemplo, telas sensíveis ao toque, microfones para comandos
sonoros, sensores sensíveis à inclinação, ou controles remoto de TV.
1.5.1. Breve histórico
Newman (2004) detalha pontos relevantes da história dos videogames, que
aqui são apresentados resumidamente. O primeiro jogo da história foi criado em
1958 no Laboratório Nacional de Brookhaven para manter entretidos os seus
visitantes e se chamava Tennis for Two. O jogo consistia em uma simulação de tênis,
com linhas que representavam uma quadra vista por uma das laterais e um ponto que
representava uma bola.
Figura 4. O primeiro videogame da história: Tennis for Two.
.
47
Os videogames só começaram a ser explorados comercialmente em
novembro de 1971, com o lançamento da primeira máquina de jogos destinada a
estabelecimentos comerciais, que possuía um sistema de depósito de moedas. O jogo
se chamava Computer Space e consistia em uma nave que deveria destruir dois
discos voadores. Em 1972, foi lançado o primeiro videogame destinado às
residências e que podia ter seus jogos trocados por programação dos seus circuitos
através de caixas que alteravam sua programação interna se acoplando na máquina.
Era o Odyssey.
Essa primeira geração de videogames terminou com o lançamento do Atari
2006 em 1977.
Somente em 1985 foi lançado um outro console no mercado americano: o
Nintendo entertainment system (NES), da empresa japonesa Nintendo, a qual
inaugurou a terceira geração da indústria e diversos paradigmas que perduram até
hoje, como controles que possuem direcionais, que permitem o movimento dos
personagens com o polegar esquerdo e os jogos de saga, onde o jogador segue
linearmente por diversas fases até chegar a um fim.
O próximo salto aconteceu em 1994, com o lançamento do Playstation da
japonesa Sony que inaugurou a apresentação de imagens tridimensionais, permitindo
que o jogador pudesse ir para qualquer lugar onde desejasse no mundo virtual.
Figura 5. Comparação entre o que é exibido e a realidade (do lado esquerdo, estão fotos de
lugares reais, no direito, sua recriação virtual), no jogo Crysis, para computadores.
.
48
1.5.1.1.
O Nintendo Wii
O terceiro grande competidor atualmente, ao lado da Sony e Microsoft, é o
Nintendo Wii. Foi criada uma seção para o mesmo, pois sua estratégia é diferenciada. O
Wii, lançado em dezembro de 2006, tenta quebrar o paradigma da busca de realismo
trazendo como contrapartida funcionalidade na interface, buscando um público que
normalmente não joga videogame. O seu controle é simplificado, possuindo sensores de
movimento e poucos botões, tornando a experiência de jogar mais intuitiva.
1.6.
Publicidade
Kotler (1998) define publicidade como qualquer forma não pessoal de
apresentação e promoção de idéias, bens ou serviços, paga por um patrocinador
identificado.
Atualmente, Publicidade é um termo que pode englobar várias áreas de
conhecimento envolvendo a difusão de idéias, como o planejamento, criação,
veiculação e produção de peças publicitárias. A mesma se expandiu ao ponto de poder
beneficiar todas as atividades humanas. Profissionais liberais, como médicos,
engenheiros, divulgam por meio dela, os seus serviços; os artistas anunciam suas
exposições, seus discos, etc. A própria ciência vem utilizando os recursos da
publicidade, promovendo suas descobertas e seus congressos por meio de cartazes,
revistas, jornais, filmes, internet e outros.
A prática de publicidade em videogames foi iniciada em 1978 com o jogo
Adventureland, onde o seu criador pôs no jogo um anúncio do seu próximo projeto.
2. Relevância dos videogames na atualidade e perfil da demanda
A cada ano, os videogames se tornam mais importantes para a indústria do
entretenimento. Na versão 2007 do seu relatório anual a Entertainment Software
Association (ESA) traça um panorama quantitativo geral da relevância que essa forma
de diversão vem adquirindo desde 1996. Em 2007, os videogames geraram dividendos
na ordem de 7,4 bilhões de dólares em todo o mundo, em contraste com 2,6 bilhões de
49
dólares gerados no ano de 1996. Em termos de unidades de jogos vendidos, houve um
crescimento de 74,1 milhões em 1996, para 240,7 milhões em 2007.
Em setembro desse ano, a Microsoft alardeou o lançamento do Halo 3 como um
marco para a indústria do entretenimento. De acordo com Fukushiro (2007), o jogo de
ação do Xbox 360 sobre uma guerra interplanetária, gerou em apenas 24 horas 170
milhões de dólares, mais do que o filme Homem-Aranha 3 (11º filme mais rentável da
história) em sua data de estréia nos Estados Unidos.
2.2.
Perfil dos jogadores
Ainda de acordo, com o relatório anual da ESA (2007), 33% do total de
residências nos Estados Unidos possuem pelo menos um console de videogame. Dessas,
67% dos integrantes da família jogam com regularidade, sendo 18% com idade abaixo
de 18 anos, 47,6% com idade entre 18 e 49 anos e 24,2% com idade acima de 50 anos.
Esses números demonstram que a maior parte dos usuários são economicamente ativos.
Quando essa informação é cruzada com a expansão do total de pessoas que costumam
interagir com consoles, é possível entender porque grandes empresas começam a
investir na publicidade dentro dos ambientes dos jogos.
3. Publicidade em videogames
Segundo Mills (2007), a Google comprou em fevereiro do corrente ano por
US$23 milhões de dólares a Adscape, empresa especializada em veiculação de
publicidade em jogos, seguindo a Microsoft, que em 2006 comprou por US$200
milhões a Massive, a maior empresa especializada em publicidade em videogames.
Ainda segundo o mesmo artigo é estimado que em 2010 esse segmento do Marketing
gere US$700 milhões de dólares.
3.2.
Eficácia das ações publicitárias em videogames
Em agosto de 2007, a Massive divulgou o resultado do primeiro grande estudo
sobre a eficácia da Publicidade em jogos, onde 300 jogadores foram expostos a uma
50
versão de um jogo sem anúncios e outros 300 jogaram uma versão com anúncios. Ao
final, foram feitas perguntas idênticas sobre marcas que estavam sendo analizadas aos
dois grupos. Os pontos principais do estudo revelaram os seguintes fatos:
A familiaridade com as marcas cresceu 64%;
A classificação das marcas cresceu 37%;
A consideração de aquisição de produtos associados cresceu 41%;
A publicidade veiculada teve um incremento no índice de lembrança de
41%.
3.3.
Tipos de veiculação de publicidade em videogames
A veiculação de Publicidade em jogos eletrônicos pode ser dividida em dois
grandes grupos: A publicidade estática e a publicidade dinâmica. A publicidade estática
consiste na inserção das marcas nas próprias linhas de código do jogo, não permitindo
alterações posteriores pelo anunciante. Já a publicidade dinâmica permite que os
anunciantes façam inserções posteriores em jogos online, alterando o cenário do jogo
quantas vezes desejarem, inclusive com meios para as empresas saberem quantas vezes
e quando os mesmos foram vistos.
Nos dois grupos, o esforço de marketing pode se apresentar das seguintes
formas:
Em duas dimensões: como em um panfleto pregado em uma parede virtual, por
exemplo; Em três dimensões: como, por exemplo, em um carro modelado
dentro do jogo, possível de ser visto de todos os ângulos; Interativos: que
podem ser alterados pelo jogador. Exemplo: um objetivo onde existe um
outdoor bloqueando o único caminho possível. Nesse caso, o jogador precisaria
rasgá-lo. Em vídeos: como em um trailer de um filme sendo exposto em uma
televisão dentro do jogo.
4. Jogos na TV digital
A interatividade na TV digital foi idealizada a partir da definição de padrões
de programação. Dessa forma, uma aplicação escrita para TV digital com base em
um padrão de determinado país, será compatível com todos os aparelhos do mercado
51
nessa região. Essas aplicações são desenvolvidas para serem executadas nos próprios
televisores ou em set-up-boxes (conversor externo de sinal digital para analógico
para televisões incompatíveis com o novo formato).
O problema é que esses set-up-boxes não possuem capacidade de
processamento suficiente para rodarem jogos com uma complexidade gráfica
adequada, já que foram concebidos fundamentalmente para a atividade de assistir
televisão. Assim sendo, não permitem a veiculação de anúncios do tipo interativo, ou
em três dimensões. Porém, devido à própria natureza da TV digital, que permite que
os jogos sejam transmitidos ao espectador através de uma solicitação feita por uma
conexão com a transmissora, os mesmos têm a capacidade de exibir anúncios
dinâmicos.
4.2.
Sugestão para a baixa capacidade de processamento dos set-up-boxes
De acordo com Jordan (2007), o Playstation Portable (PSP, videogame
portátil da Sony) possui a capacidade de ser conectado por rede wireless ao
Playstation 3, habilitando a funcionalidade de se assitir vídeos, ver fotos, escutar
músicas, ou até mesmo jogar determinados jogos que estão no console. O PSP teve
essa funcionalidade (chamada de Remote Play) habilitada em setembro desse ano,
com o lançamento do jogo Lair, primeiro compatível com a tecnologia. O jogo é
executado no PSP de forma perfeita, sem lentidão, apesar do portátil ter uma
capacidade de processamento muito inferior a do Playstation 3. Isso é possível por
que o PSP, nesse caso, funciona como uma simples tela recebendo um vídeo do jogo
do Playstation 3, que processa todos os aspectos do jogo, com exceção dos
comandos dados ao personagem, que são realizados e enviados pela conexão sem fio
ao Playstation 3.
52
Figura 7. Lair, do Playstation 3, sendo executado no PSP por meio de Remote Play.
Para que o Remote Play funcione, é necessário uma conexão estável e rápida entre os
dois aparelhos. Esse tipo de relação existe na TV digital, que poderia usar a essência
da tecnologia para permitir ao espectador a experiência de jogar algo mais complexo.
Nesse caso, os set-up-boxes seriam utilizados para processar e enviar a execução dos
comandos através da internet para computadores com grande capacidade de
processamento instalados nas emissoras, que por sua vez geraria as imagens do jogo
que seriam enviadas como um vídeo para a TV dos jogadores.
5. Considerações finais
Com as considerações do artigo, foi constatado que a indústria de videogames
tomou grandes proporções e está em rápida expansão. Em termos de veiculação de
publicidade dentro de jogos, existe um mercado ainda pequeno, porém, já com grandes
empresas inseridas pretendendo transformar a atividade em grande fonte de lucro
através do investimento em estudos e da profissionalização do segmento, que pode,
inclusive, ser aproveitado pelas emissoras de TV digital, se vencidas algumas barreiras
técnicas, sendo a mesma, portanto, viável como uma plataforma de marketing dirigido a
jogadores de videogames.
Assim sendo, podem ser objetos de pesquisas futuras, a implementação de uma solução
para a baixa capacidade de processamento dos set-up-boxes; ou o desenvolvimento de
uma interface adequada para jogos na TV digital.
53
REFERÊNCIAS
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John Wiley & Sons, Inc, 2001.
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Disponível
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FUKUSHIRO, Luiz. Quem São os Maiores Criadores de Videogames: E Por Que o
Talento Deles Vale Ouro. Veja. São Paulo, n. 2031, p. 108-112, outubro. 2007.
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2007. Disponível em: <http://www.news.com/Google-snags-AdScape-for-23million%2C-source-says/2100-1024_3-6160100.html> Acesso em: 10 de out.
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Average Brand Familiarity by up to 64%: Massive: 2007. Disponível em:
<http://www.massiveincorporated.com/site_network/pr/08.08.07.htm>.
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em: 21 de out. 2007.
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2007.
Disponível
<http://www.pocketgamer.co.uk/r/PSP/Sony+PSP/news.asp?c=4092>.
em: 22 de out. 2007.
54
em:
Acesso
Tropicalismo: a televisão como veículo de crítica à sociedade de consumo
Carlos André Carvalho1
Resumo: Plenamente conscientes de que fazem parte de um novo contexto cultural em
que a comunicação de massa é peça indissociável, os artistas da Tropicália, movimento
musical nascido no Brasil no final de 1967, queriam se adequar às condições, sem
deixar, entretanto, de serem críticos à nova realidade da indústria cultural. Atentos à
transformação, eles sabiam que os novos valores eram fornecidos pelos veículos de
massa e a música reproduzida e reproduzível pelas novas formas de comunicação visual
e auditiva. Ao ocupar o espaço da TV, os tropicalistas, já hostilizados pelos militantes
de esquerda em razão da adoção do rock e das guitarras em suas composições musicais,
da crítica à xenofobia musical, bem como da inserção de elementos da cultura pop e de
massa, ganha também a irritação da direita que, consciente da força da linguagem do
espetáculo, avalia a entrada dos tropicalistas na televisão como uma conquista mais
ameaçadora à ordem instituída que os discursos engajados da esquerda.
Palavras-chave: tropicalismo, meios de comunicação de massa, música.
Abstract: Tropicalia‟s artists were aware that they were taking part into a new cultural
context where the mass communication is an inseparable part of the system. Tropicalia
was a musical movement that was born in Brazil around 1976. The artists wanted to fit
the epoch conditions but being critical to the cultural industry reality at the same time.
They were watching the changes at that time and they knew that new values were being
created through mass communication vehicles as TV and radio. When those artists
appeared on TV– they have been harassed by communists because they have adopted
the rock and roll and pop culture in their compositions - the Brazilian dictatorial
government felt upset with their ideas because they knew the strength of their show
language and they started to think that the movement could be a threat to the established
order.
Key words: tropicalism, mass communication vehicles, music.
1
Professor da Faculdade
[email protected].
Joaquim
Nabuco.
55
Mestre
em
Literatura
pela
UFPE.
E-mail:
Introdução
A canção popular é uma forma de expressão artística que se afirma através dos
meios de comunicação e os tropicalistas souberam como ninguém tirar o maior proveito
disso. O período de nascimento do tropicalismo – segunda metade da década de 1960 –
coincide com o das maravilhas da tecnologia que condicionam o surgimento do
“homem planetário”, ou seja, do habitante de um planeta que se reconhece de súbito
como uma unidade. Expressões como “galáxia de Gutenberg”, “era da informação ou
“aldeia global”, todas formuladas pelo teórico canadense Marshall McLuhan, passaram
a batizar a nova condição existencial no planeta, que se caracterizaria principalmente
por um processo de mutação nas noções de tempo e espaço.
Na visão de McLuhan, se a imprensa teria tribalizado o homem, os meios
eletrônicos, a partir da década de 1960, tinham surgido para retribalizá-lo. A televisão,
por exemplo, contribuía de forma decisiva para reconstruir uma tradição oral, o que
afastaria o homem da visão linear e seqüencial do paradigma da imprensa
(SEVCENKO, 1997: 05). McLuhan mostra que não é fácil analisar o contexto sóciocultural desprezando os meios de comunicação.
Claro que bem antes de McLuhan, os meios de comunicação se fizeram
presentes na vida do homem, por conta da necessidade básica de indivíduos e grupos
trocarem experiências e informações úteis. Com o tempo, o homem foi melhorando os
meios para se comunicar melhor com os seus semelhantes e a própria linguagem
articulada faz parte desses avanços. A lingüística moderna, por exemplo, nos ensina que
não há no cérebro do homem qualquer seção que seja destinada exclusivamente à
habilidade de falar.
Verifica-se, então, nos últimos duzentos anos, uma aceleração intensa no ritmo
de invenção de novos meios, num processo que acompanha a industrialização. Um bom
exemplo da dinâmica dos novos tempos nos é dado por Walter Benjamin, quando
mostra que a litografia não chegou a causar maiores repercussões na sociedade européia
no início do século XIX, pois foi logo suplantada pela fotografia, que, por sua vez, já
era um passo para a invenção do cinema (BENJAMIN, 1990:234). Era o surgimento do
que ele denomina “era da reprodutibilidade técnica”. Noutras palavras, ele se referia à
era em que obras de arte e mensagens de todo tipo podem ser reproduzidas com o
56
auxílio de máquinas que elevam a quantidade de cópias a um patamar sem precedentes
na história do homem.
O tropicalismo, movimento musical que tomou de assalto a chamada Música
Popular Brasileira no final de 1967 – e que também englobou outras áreas como as artes
plásticas, o cinema e o teatro –, aproveitou todas estes temas que estavam sendo
discutidos naquele período para fazer um uso crítico dos meios de comunicação.
Plenamente conscientes de que fazem parte de um novo contexto cultural em
que a comunicação de massa é peça indissociável, e como parte integrante desse
universo, o grupo tropicalista queria se adequar às condições, sem deixar, entretanto, de
serem críticos à nova realidade da indústria cultural. Atentos à transformação, eles
sabem que os novos valores são fornecidos pelos veículos de massa, como os jornais, o
rádio, a televisão, a música reproduzida e reproduzível, vale dizer, pelas novas formas
de comunicação visual e auditiva, realidade esta a que ninguém pode fugir (ECO, 1987:
11).
Em 1968, o então empresário de Gil e Caetano, Guilherme Araújo, fechou o
primeiro contrato com a TV Tupi, para os dois baianos apresentarem um programa
semanal, Divino Maravilhoso, que estreou em 28 de outubro. No programa, os
apresentadores pretendiam chocar os telespectadores, tanto pelo visual agressivo quanto
pelos cenários, pintados com cores berrantes, e pela irreverência das atrações
apresentadas em estilo de happenings. O público conservador enviava cartas agressivas
à direção da TV Tupi, pedindo a suspensão dos tropicalistas pelas ofensas à moral e aos
bons costumes. (CALADO, 1997: 234-235).
Ao ocupar o espaço da TV por meio de programas anárquicos, o tropicalismo, já
abertamente hostilizado pelos militantes de esquerda em razão da adoção do rock e das
guitarras em suas composições musicais, da crítica à xenofobia musical, bem como da
inserção de elementos da cultura pop e de massa, e, ainda, do uso de palavras
americanas nas letras, além do rebolado no palco, ganha também a irritação da direita
que, consciente da força da linguagem do espetáculo, avalia a entrada dos tropicalistas
na televisão como uma conquista mais ameaçadora à ordem instituída que os discursos
engajados da esquerda, uma vez que, em seus programas, estavam desorganizando
valores cristalizados no espaço da televisão e atingindo o povo; massa de espectadores
estrategicamente observada e manipulada pelos militares.
57
Enquanto o discurso da música de protesto permanecia numa retórica vazia, o
tropicalismo ia tecendo críticas à indústria cultural e às imagens arcaizantes ou
desenvolvimentistas do país, utilizando-se da linguagem do espetáculo. “O mesmo
veículo com o qual o governo promovia encenações de protesto era utilizado pelos
tropicalistas para subverter comportamentos, para agredir telespectadores como uma
forma de ação política de resistência ao regime militar” (ANDRADE, 2002:44).
Assimilando a cultura de massa, a arte da metade do século XX ganha novas
funções, inclusive a de questionar as fronteiras entre as diversas espécies de linguagem,
entre os diferentes produtos culturais, entre o que se deveria considerar arte elevada e
aquilo que se convencionou tratar como arte de segunda categoria. Existe uma idéia
generalizada de que o importante não é criar textos, mas uma nova forma de
sensibilidade, que incorpore de forma crítica a linguagem que a humanidade mais
absorve nessa época, vale dizer, a linguagem produzida pelos meios de comunicação de
massa e pela indústria da propaganda. É isso que o tropicalismo, de forma consciente,
vai pôr em xeque.
A crítica aos meios de comunicação de massa não se resumia apenas às
apresentações dos tropicalistas na TV. As letras de músicas também servia para criticar
os mass media. E sempre que faziam isso preferiam usar uma linguagem irônica. Um
bom exemplo é a letra de Parque Industrial, Tom Zé, uma das doze músicas do discomanifesto Tropicália – ou Panis et Circencis:
(...)
As revistas moralistas
Traz uma lista de pecados das vedetes
E tem jornal popular
Que nunca se espreme
Porque pode derramar
É um banco de sangue
Encadernado
58
Já vem pronto e tabelado
É somente folhear e usar
Porque é made, made, made
Made in Brazil
(...)
Para citar mais um exemplo, na letra de “Alegria, Alegria”, Caetano Veloso
também não esquece de criticar a profusão de títulos de revistas e jornais disponíveis
nas bancas, o que deixa o leitor com preguiça de “ler tanta notícia”:
(...)
O Sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Sem lenço, sem documento
(...)
A explosão do tropicalismo
O ano de 1967 é considerado um marco na história da cultura brasileira. Entre
outros acontecimentos, as idéias de Oswald de Andrade, o mais radical e inventivo dos
modernistas de 22, fazem uma reaparição explosiva através de sua peça O Rei da Vela,
pelo Teatro Oficina, de São Paulo, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. No
cinema, a polêmica é provocada por Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Esses dois eventos, por sua vez, vão ser acompanhados por novas explosões,
como a ocorrida no III Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV
59
Record, em outubro do mesmo ano. Pegando a platéia totalmente desprevenida, dois
novos compositores baianos entram no palco com uma postura abertamente
revolucionária. Caetano Veloso, acompanhado pelas guitarras elétricas dos Beat Boys,
canta “Alegria, Alegria”, cuja letra, de acordo com o poeta Décio Pignatari, traz para a
poesia a técnica cinematográfica da “câmara-na-mão”. Gil, acompanhado pelos
Mutantes e escorado pelo criativo arranjo do maestro Rogério Duprat – que mistura
berimbau com guitarras elétricas –, ataca de “Domingo no Parque”. Ambas fundem as
duas tendências citadas acima, utilizando instrumentos e técnicas de origem estrangeira
e, ao mesmo tempo, tema e características bem nacionais.
Apesar do impacto causado, as músicas de Caetano e Gil não foram as
vencedoras do festival, ficando, respectivamente, em quarto e segundo lugar. Mas o
festival foi o ponto de partida de uma atividade que logo seria denominada de
tropicalismo e transformaria ambos em astros. Por essa época, os festivais, promovidos
pelas redes de televisão, transformavam-se em espaço de movimentação e manifestação
de idéias revolucionárias. Os artistas possuíam fiéis e participativas torcidas
organizadas. Formada por intelectuais de esquerda e estudantes, a agitada platéia
constituía-se como foco de resistência ao regime militar.
Em 1968, Caetano Veloso tentou definir o que seria tropicalismo. Um
movimento musical? Um comportamento vital? “Ambos. E mais: uma moda. Acho
bacana tomar isso que a gente está querendo fazer como tropicalismo. Topar esse nome
e andar um pouco com ele. Acho bacana” (CAMPOS, 1974: 195). Gilberto Gil também
concordou com o termo: “A imprensa inaugurou aquilo tudo com o nome de
tropicalismo. E a gente teve que aceitar porque tava lá, de certa forma era aquilo
mesmo, era coisa que a gente não podia negar. Afinal não era nada que viesse desmentir
ou negar nossa condição de artista” (História da Música Popular Brasileira – fascículo
Gilberto Gil.2
Como o próprio Gil confirma acima, a denominação de tropicalismo ao trabalho
que o grupo vinha fazendo não partiu deles mesmos, pelo menos diretamente. Tudo
começa, no início de fevereiro de 1968, quando, reunidos numa mesa de bar, o jornalista
Nelson Motta, na época colunista do jornal Última Hora, os cineastas Gláuber Rocha,
Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Arnaldo Jabor, além do fotógrafo Luís Carlos Barreto
2
Fascículo História da MPB, Abril Cultural, 1971, p. 10
60
divertiam-se imaginando uma grande festa. A idéia era celebrar algo que ninguém sabia
ainda explicar muito bem, mas já estava acontecendo. O jornalista Carlos Calado
resgata muito bem os acontecimentos:
Os amigos não precisaram de muita conversa para concluírem que Tropicália – a recémlançada canção de Caetano Veloso, que o próprio Barreto ajudara a batizar, semanas antes,
ligando-a à obra homônima de Hélio Oiticica – tinha tudo a ver com o delírio tropical de
Terra em Transe, de Glauber, ou com a antropofagia oswaldiana da peça O Rei da Vela,
cuja temporada carioca começara havia três semanas. Algo de novo parecia estar ocorrendo
na cultura brasileira e, na falta de outro nome, entre risadas e inúmeras rodadas de chope, a
coisa foi chamada de Tropicalismo.(CALADO , 1997: 173)
No dia 5 de fevereiro, Nelson Motta, abria sua coluna diária, Roda Viva, com o
título A Cruzada Tropicalista, aproveitando a conversa do bar na noite anterior. Já no
texto de abertura, começa falando do sucesso que o filme Bonnie and Clyde vinha
fazendo na Europa e a sua influência estava englobando a moda, a música, a decoração,
as comidas, os hábitos. Era a volta dos anos 30. E mais adiante anuncia:
(...) Baseados neste sucesso e também no atual universo pop, com o psicodelismo morrendo
e novas tendências surgindo, um grupo de cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais
resolveu fundar um movimento brasileiro, mas com possibilidades de se transformar em
escala mundial: o Tropicalismo. (CALADO , 1997: 175)
O texto, com cara de manifesto, sugere aos leitores assumir completamente tudo
que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de
cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicidade e o novo universo que ela
encerra, ainda desconhecido. Segundo o texto, o lançamento da Cruzada Tropicalista
seria realizado em uma festa no hotel Copacabana Palace. Nelson, com ironia e
deboche, seguia descrevendo a decoração e o menu da comemoração (palmeiras,
vitórias-régias, abacaxis, vatapá, maria-mole e xarope Bromil), dava algumas dicas
de como deveriam ser as roupas dos homens e das mulheres, sugestões muito cafonas
61
para época. Também sugeria a divulgação da filosofia do movimento através de
cartazes, que trariam provérbios, chavões e até „cantadas‟ da época.
Mesmo com o evidente tom humorístico do suposto manifesto, o lançamento do
tropicalismo foi levado a sério por muita gente, inclusive pelo compositor Caetano
Veloso, que já era a grande sensação da música popular brasileira. Os outros jornais,
como o Tribuna da Imprensa de 8 de fevereiro do mesmo ano, não demoraram a
repercutir a novidade espalhada por Nelson Motta.
(...) Nelson Motta acaba de lançar o manifesto tropicalista, a cruzada tropicalista cuja
característica é a volta da cafonice brasileira. O papa será Caetano Veloso e terá roupa
assim: terno de linho branco (S-120), lapelas largas, ou azul-marinho listadinho de branco,
gravata vermelha de rayon, chapéu-chile, sapato bicolor corcodilo etc. (CALADO , 1997:
179)
Gilberto Gil, que já demonstra inquietações quanto aos rumos que a música
popular estava tomando, depois de lançar o seu primeiro LP, em 1967, parte para
uma excursão ao Recife, onde faz uma série de shows no Teatro Popular do
Nordeste, de Hermilo Borba Filho. Gil, que havia escutado falar da musicalidade e
apego ao regionalismo da Banda de Pífanos de Caruaru, resolve ir a até a cidade, no
agreste de Pernambuco, para conhecer o trabalho do grupo.
O acontecimento foi importantíssimo para o compositor na estruturação do
movimento que já começa a ganhar formas na cabeça dele, mas que só teria uma
denominação no ano seguinte. Nas palavras do próprio Gil: “O que influenciou o
tropicalismo foi a Banda de Pífanos e os Beatles”. (RODRIGUES, 2001:18)
O tropicalismo, ao mesmo tempo em que se deparava com o problema da
importação cultural e da ênfase nas raízes nacionais, acabou por lançar mão – via poetas
concretos – da antropofagia proposta pelo modernista Oswald de Andrade, que
representou a ruptura mais radical do modernismo com as tradições acadêmicas e
passadistas, tendo como postura básica de sua criação “ver com olhos livres” (TELES,
1986:330). No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald, sob a ótica
antropofágica, expõe o caráter de confluência. O manifesto se refere ao Brasil como o
62
matriarcado do Pindorama (país das palmeiras, como os índios o denominavam), gênese
dessas pulsões primárias.
A idéia de Oswald, no entanto, não era rejeitar totalmente a civilização e pregar
a volta a estágios naturais, mas defender uma composição dessas pulsões naturais com
os avanços da cultura e da sociedade contemporânea. A “deglutição” era uma forma
encontrada para trabalhar influências aparentemente opostas, como o rural e o urbano, o
antigo e o novo, o industrial e o manual, o animal e o racional. O resultado do processo
de deglutição seria uma nova forma cultural, que sintetizavam essas influências
díspares.
Na própria sugestão de deglutição há um componente irônico, expresso na
tentativa de unir a cultura a um ato tão primitivo como a “antropofagia”. Assim como os
antropófagos comiam seus inimigos para assimilar suas qualidades cabia ao homem
moderno usar dos mesmos procedimentos.
Na mesma época em que trava contato com a obra oswaldiana, Caetano Veloso
mostra ter assimilado as idéias sobre antropofagia, lançadas pelo escritor 40 anos antes.
Várias pessoas ficaram histéricas quando ouviram a música com arranjo de guitarras
elétricas, acompanhamento a cargo de uma conjunto de iê-iê argentino e letra psicodélica.
A elas tenho a declarar que adoro guitarras elétricas. Esse negócio de folclore não me
interessa. Me recuso a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades
técnicas. (ACUIO, 1968. Grifo nosso)
Dentro da ótica antropofágica de Oswald de Andrade, o depoimento de Caetano
Veloso pode ser interpretado de várias formas. Por que não usar guitarras, se esses
instrumentos mesmo sendo “estrangeiros” podem ser assimilados sem fazer com que a
música popular perca suas características “nacionais”? Ou, ainda, por que temer o novo
em nome de uma falsa pureza nacional dentro da música popular? Numa outra
entrevista, Caetano já tinha alertado para isso. Segundo ele, o tropicalismo era
rompimento “com uma ala da música brasileira que tinha uma impostação de seriedade,
mas que era, na realidade, um respeito obrigatório a certos conhecimentos primários do
63
universo jazzístico americano, na música, e na letra um respeito a conceitos também
primários de pensamentos políticos” (BELTRÃO, 1968).
A postura de Caetano não era nada mais que uma releitura das idéias de Oswald,
que achava que o povo brasileiro devia se livrar da interpretação materialista e moral
que jesuítas e colonizadores fizeram da antropofagia (por gula ou por fome). A
antropofagia ritual foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma
elevada cultura-asteca, maia, inca. É ligada à transformação do tabu (o intocável, o
limite) em totem, do valor oposto em valor favorável, ávida como devoração pura. O
tropicalismo transferiu, então, a antropofagia, antes restrita aos limites do âmbito
literário, para música popular inserida nos meios de comunicação, na indústria cultural.
REFERÊNCIAS.
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de Janeiro: Bloch Editores, 1968.
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Editora 34, 1997.
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Companhia Editora de Pernambuco, 2001, p. 18
SEVCENKO, Nicolau. “McLuhan assombra o Rei”. Folha de São Paulo. Caderno
Mais! 23 de fevereiro de 1997
64
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 9. ed. São
Paulo: Vozes, 1986, p. 330
História da Música Popular Brasileira – fascículo Gilberto Gil. São Paulo: abril
Cultural, 1971.
65
Nomes que ousamos dizer
Maria Cecília Patrício1
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir como se percebe denominações
diferentes para travestis brasileiras, tanto na literatura quanto nas identificações pessoais
de gênero e sexualidade. Se propõe a discutir como os nomes determinados para
travestis brasileiras mudam conforme elas migram, e é a Espanha o grande alvo neste
momento. Faz parte de um processo em que se construir, enquanto travesti, abrange a
denominação específica para tal e o contexto, o espaço e o momento no qual se aciona
tal nomeação para a pessoa. Desta maneira, a discussão aqui se empenha a levar em
consideração a teoria queer, noções de cultura e gênero e identidade no que tange a
entender travestis e travestilidade.
Palavras chave: travestis, transexuais, nomes.
Abstract: This article aims to discuss how to realize different names for Brazilian
transvestites, both in literature and in personal identifications of gender and sexuality. It
proposes to discuss how the names for certain Brazilian transvestites change as they
migrate, and Spain is the major target now. It takes part of a process to build, as
transvestite, the specific name for it and what are the space and time which trigger such
appointment to the person. Thus, the discussion here is committed to take queer theory
account, culture, gender and identity notions in a way to understand transvestites and
their identity.
Key Works: transvestites, transsexuals, names.
Ter, dar ou receber um nome faz parte de um processo de construção identitária
que gera comportamentos definidos para tal denominação. Gera gênero (BUTLER,
2007), e por isso significa ganhar um lugar social que implica classe e status,
1
Doutora em Antropologia pela UFPE. Professora de Antropologia e Sociologia da Faculdade Joaquim Nabuco e
FADE. E-mail: [email protected].
66
comportamentos que criam e recriam normas. É o nome que faz surgir os exemplares,
como afirma Butler. E isso está bem claro para as travestis que mudam de lugar, entre
estados brasileiros e até entre países, onde em cada um deles descobrem nomes que dão
resposta sobre seu comportamento em sua trajetória. De travesti no Brasil, passam a
transexuais quando começam a conviver com a realidade espanhola, por exemplo. E,
como afirma Butler: “Ser llamado por un nombre es también una de las condiciones
por las que un sujeto se constituye en el lenguaje”2 (1997: 17).
Uma trajetória que contribui para a apresentação de gênero como processo e
contestação, em que as travestis são protagonistas de um movimento que é cultura e, por
estar nela, circulam pelas categorias sem grandes problemas, se intitulando trans,
transex ou travestis, independente do lugar onde estão localizadas. Gênero é o
nomeamento da prática, como impressão de linguagem no corpo que se comunica para
se fazer inteligível. O que acontece através de habitus apreendido e aprendido no trajeto
da travestilidade e dá corpus ao gênero construído na pessoa, com o objetivo de se fazer
entendível aos olhos da sociedade.
Há uma pluralidade de nomeações que distingue a pessoa travesti. As
mesmas, por estarem inseridas num mundo em que a infinidade de termos de
identificação é grande e a preocupação com a afirmação da pessoa é importante, se
perguntam como devem se referir a si mesmas, de forma politicamente correta. Trato
aqui de nomes que designam identificação, classificação e categorias, enquanto
travestis.
1.1 PARA LÊ-LAS. PEQUENA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Silva (1993; 2007a) afirma que travesti é a invenção do feminino, não como
inversão (Oliveira, 1994), mas semelhante à idéia de “(re) construção do feminino” de
Pelúcio Silva (2004), “montada” sobre um corpo de nascimento masculino. Mesmo se
dando conta da figura da “travesti histórica” (SILVA, 1996: 20), o autor reflete sobre a
figura da “nova travesti”, novas atrizes na cena urbana, que se configura como um fato
novo em nosso cotidiano, e possui “inscrições observáveis e comprováveis”.
Atrizes que obrigam, por sua presença, a uma “reflexão sobre mudança
2
“Ser chamado por um nome é também uma das condições pelas quais um sujeito se constitue na
linguagem”
67
social, processo de transformação cultural” (SILVA, 1996: 21) e nacionalidade
enquanto pertença a um grupo na sociedade atual. Que se diferenciam mais do que se
assemelham (MEJÍA,
2006), embora
expressem em
seu próprio corpo a
heteronormatividade (WITTIG, 1978; BUTLER, 2003) socialmente estabelecida e,
desta forma, a ambigüidade (SILVA, 1993) clara, na visão de muitos que apenas as
olham, e não as vêem. Silva (1993, 1996, 2007a) trabalha com a noção de trans para
falar de suas interlocutoras e destaca seu caráter identitário múltiplo e transitório.
Travestis são pessoas que transformam seus corpos esteticamente com a
tecnologia disponível para deixá-los com traços do sexo oposto (PATRÍCIO, 2002),
“vestem-se e vivem cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero feminino sem,
no entanto, desejar explicitamente recorrer à cirurgia de transgenitalização para
retirar o pênis e construir uma vagina” (BENEDETTI, 2005:18), como não poderia
deixar de ser, pois, precisam se distinguir de diversos atores e suas identidades que se
incluem no universo da travestilidade no Brasil.
Couto (1999: 22) utiliza o termo travestismo, esclarecendo que é usado no Brasil
desde 1939. Segundo dados do GGB afirma que“alguns estudiosos defendem que seria
mais correto” utilizar “travestido ou travestis” como categoria êmica, por seu uso
popular na Bahia, local de seu trabalho. Para ele, há duas distinções claras para ser
travesti: uma funciona para “fins de excitação sexual”; outra, como “forma de pertencer
publicamente ao outro gênero. Para a maioria, como estratagema de atração de
clientes na arena da prostituição”.
Por isto, faz de sua obra um estudo sobre corpo em mutação, que diferencia
muito bem travestis de transexuais, drag-queens e transformistas, para apontar que no
corpo estão os problemas de aceitação social da pessoa, mas é na mente que está o
problema de auto-aceitação de cada um3. Couto (1999) parte para a discussão acerca da
transexualidade e seus problemas, no panorama nacional e internacional. Seu estudo se
propõe como um manual, também de auto-ajuda, para quem busca conhecimento sobre
a transexualidade sob diferentes pontos de vista.
Fry e MacRae (1991) apontam que, na década de 60 em São Paulo, em que
empreendimentos comerciais direcionados para o público gay começaram a surgir, uma
3
Utilizo o artigo indefinido um, ao invés de uma, por uma questão de deixar claro em minha escrita a
possibilidade de se pensar que travestis e transexuais podem ser tanto de homem para mulher, quanto
mulher para homem, o que Couto (1999) analisa quando disserta sobre a transexualidade, embora eu não
firme análise sobre o fenômeno da travestilidade de mulher a homem.
68
determinada confraternização, chama atenção à presença de duas figuras:
No palco apareceram duas personagens, um homem com corpo e porte de halterofilista e
um [grifo meu] travesti, Fedra de Córdoba. Enquanto o “machão” permanecia imóvel, em
pé e com as costas para o público, o travesti fazia literalmente de tudo para conquistá-lo:
rebolava, se insinuava, colocando-se num papel de absoluta e estereotipada subserviência.
(FRY; MACRAE, 1991: 25).
Este jogo de forte/fraco, dominador/dominado foi o estopim para vaias e início
de discriminação à travestis dentro do próprio movimento homossexual, que
considerava aquela cena um “grotesco machismo”, e demonstrava “o abismo entre
ideologia e comportamentos vigentes” (FRY; MACRAE, 1991: 26). No estudo, não se
utiliza outra palavra que denote identidade diferenciada para travesti. Travesti é tanto o
feminino – caracterizado pela figura de Fedra de Córdoba – como o masculino, marcado
pelo michê que se traveste de heterossexual – estereótipo do macho. Assim sendo, está
caracterizado dentro do sexo biológico, ou fisiológico, masculino, e sexo social
feminino, o que significa que a ambigüidade está presente na sua identidade desde longa
data, com o que concorda Silva (1993; 1996).
Na década de 70, no Recife, Silva (2007b) destaca um termo bem interessante,
utilizado para se referir às travestis da época, o que ainda se escutava há bem pouco
tempo entre elas:
O delegado Fernando Albuquerque, do 2º Distrito Policial, fechou ontem, em Santo Amaro,
uma residência, onde grande número de homossexuais se reuniam para realização de
bacanais. Somente duas bonecas [grifo meu] foram presas e na Delegacia [sic] negaram-se
a fornecer o verdadeiro nome, ficando por isso no xadrez por mais de 72 horas. (Diário de
Pernambuco. 24 de fevereiro de 1970. 1º Caderno, p.08. In: SILVA, 2007b).
Em campo de pesquisas (PATRÍCIO, 2008), o termo “bonecas” é reconhecido
como de boa sonoridade, e dá a elas uma conotação de fabricadas, pois a palavra tanto
remonta à idéia de modelos, como a Barbie – ideal de beleza de origem estadunidense –,
como esconde a discriminação que sofrem socialmente, por um dia terem tido outra
configuração corporal e de gênero.
69
No estudo de Silva (2007b), um dos poucos sobre o Recife, na década de 70 a
repressão policial às travestis, durante o período momesco, era apenas um dos
argumentos da discriminação, porque eram perseguidas não apenas nas ruas, mas
também em “clubes, blocos, troças, maracatus e outros ajuntamentos”. [Pois,] “o
simples ato de travestir-se não era em si um ato de imoralidade, desde que o travestido
fosse um heterossexual” (SILVA, 2007b: 03). O que confirma a tese da sociedade
heteronormativa (Wittig, 1978; Butler, 2003).
No estudo de Peres (2004) a referência a travestis no feminino decorre do
“respeito à solicitação” das mesmas, assim como o questionamento do travestismo
como termo que remete a patologização sendo este substituído por travestilidade, com o
que também concordo, pelo fato de abarcar “uma imensa complexidade de formas de
expressão travesti existentes, considerando a heterogeneidade dos modos de ser no seu
mundo” (PERES, 2004: 120).
Embora o uso também do termo subcultura possa denotar uma certa
ambigüidade em seu discurso. O que o autor justifica, tratando-se da reflexão acerca da
situação de vulnerabilidade em que se encontram suas interlocutoras. As mesmas de
outros estudiosos, como Parker (1991), que vê como perversa a inclusão das travestis no
mundo em que as relações sociais trazem como marca a exclusão e opressão para quem
não se encaixa nos modelos pré-estabelecidos culturalmente.
Uma das conclusões de Peres (2004) remete à experiência de algumas
interlocutoras minhas4, pois a destituição de direitos que sentem na pele por terem um
dia feito escolhas por se modificar corporalmente, modifica o que a sociedade espera
delas. Infelizmente, no caso de travestis, pode chegar a vias de agressão e causar não
apenas estranhamento e discriminação na escola e no trabalho, como também violência
e até morte. Esta destituição de direitos pode ser incluída nesta análise, quando percebo
o porquê da necessidade das travestis brasileiras buscarem uma experiência
internacional.
No estudo de Jayme (2001), travestis se distinguem muito bem de transexuais e
transformistas por modificarem seu corpo, embora querendo “manter o órgão sexual
masculino” (2001: 02). Afirmam-se 'mulheres' dia e noite, assim como as interlocutoras
de Silva (1993; 1996).
4
O Grupo Oxumaré foi o meu primeiro contato sistematizado com a realidade da travetilidade no Recife.
Ele funciona na Ong Gestos.
70
Em seu estudo, Jayme (2001) traz uma abordagem de identidade, corpo e gênero
que questiona as identidades culturais e as relações de gênero na sociedade
contemporânea, a partir de estudo com travestis em Belo Horizonte e Lisboa. A
construção do ser travesti, se molda pela construção do corpo, assim como acontece no
estudo de Silva (1993; 1996; 2007a), em que o novo corpo mostra a “nova pessoa” que
surge através do uso de injeções de hormônios, silicone e acessórios externos, como
maquiagens, perucas, interlaces, e educação deste corpo.
Em se tratando de nomes, o estudo de Jayme (2001) revela algo diferente do que
tento trabalhar aqui. Ela utiliza transgênero para designar todas as suas interlocutoras,
numa tradição estadunidense clara e sem discussão. Travestis são cada uma de suas
entrevistadas, mas não há nenhum questionamento quanto a isso, só na introdução do
estudo é que diferencia travestis de transformistas, drag-queens e transexuais, no tocante
a incluí-las todas no universo de transgêneros, explicitamente designadas no masculino
(os/dos transgêneros).
O nome quer dizer o que cada uma delas escolhe para si, ou recebe em batismo
na casa5 onde é adotada, um “nome de guerra”. Por exemplo: Bárbara Brasil. Se é
travesti, transexual ou transformista não está claro. Conclui ser difícil dar conta de uma
teoria de identidade que trate da subjetividade do universo estudado, justamente por ele
ser complexo e cheio de armadilhas instáveis.
No estudo de Benedetti (1998; 2005) o corpo e as representações de gênero
constituem os objetivos-chave. Suas entrevistadas são travestis de Porto Alegre, de
camadas populares, profissionais do sexo de baixo nível de escolaridade e que vivem
em situação de vulnerabilidade social e familiar, como, aliás, a maioria das travestis
estudadas pela Antropologia e Psicologia, no Brasil.
Ele utiliza o termo universo trans para identificar um domínio social no que
tange à questão das (auto) identificações (...) [quando] classificam pessoas, hábitos,
práticas, valores e lógicas como pertencentes a esse domínio (BENEDETTI, 2005: 1718).
Quanto à categoria, o termo travesti é apontado por ele como sobrepondo-se à
transexual, pois de mais antiguidade e de maior presença no universo estudado. Assim
5
Significa não apenas o espaço de moradia, mas também o lugar no qual a travesti se sente adotada. Pode
ser entendido como a casa: pensão onde ela vive; cidade onde está ou mesmo o país onde seus direitos são
respeitados.
71
como, a não atribuição médico-psicológica recente na história ocidental.
Lopes
(2000),
ensaísta
e
comunicólogo,
afirma
que,
na
sociedade
contemporânea, o que mais importa é a “valorização do artifício como categoria
central” (2000) que caracteriza o travestimento. Travesti é “uma realidade social” e
por isso todos somos um pouco travestis. Este autor afirma que é no jogo de identidades
e de gêneros que as travestis se inserem, em que papéis se intercambiam,
interseccionam-se num encontro inesperado, sensível em meio a um mundo de
violências (2000: 153). Por isso, defende o uso da palavra trans: “Na vida e no texto,
transimagens, transescritura, transdiário” (LOPES, 2002: 69), indicando a velocidade
como característica da sociedade em que vivemos e a “máscara” a tática de coexistir
nela. Não se preocupa com termos e terminologias em seus textos, pois sua ênfase é a
literatura, e não o campo antropológico.
Dennis Werner (s/d), se refere às travestis pelo pronome masculino
(os/dos/eles/deles), assim como Oliveira (1994), em seu estudo em Salvador. Ambos
fazem comparação com as mulheres prostitutas em seu ethos, até porque, no ambiente
em que realizaram pesquisa, mulheres e travestis dividem espaços de trabalho, o que é
comum em muitas cidades.
No estudo de Patrício (2002), o interesse é a identidade de gênero e a mobilidade
de travestis em Campina Grande, na Paraíba. Nele há um quadro de explicações que diz
o seguinte:
Travesti: Homem ou mulher que se veste e assume características físicas e psicossociais
atribuídas ao sexo oposto (COUTO, 1999). Estão incluídos nessa definição aqueles que
praticam o homoerotismo. A travesti também se caracteriza pelo uso de hormônios e
silicone no corpo. Aqui se distingue da transexual por não querer fazer a cirurgia de
adequação sexual; Transexual: Homem ou mulher que deseja ser do sexo oposto,
submetendo-se à cirurgia para transformação do órgão sexual externo (PATRÍCIO, 2002:
14).
Na citação, o significado de ser travesti não está apenas no fato de ter
modificado totalmente o corpo com silicone, pois o reconhecimento na travestilidade é
ainda mais forte, como é o caso de uma de suas interlocutoras, mais prestigiada que
modificada corporalmente.
72
Patrício (2002), além de utilizar a palavra travestismo, enquanto o universo que
congrega as suas interlocutoras, dedica-se a discussão do termo trans para se referir a
figuras que transitam entre ser travesti e transformista. Trans tem significado quando
destaca-se como prefixo de transformar, transitar, o que realmente se aproxima do que
Lopes defende em seus ensaios (2000; 2002).
No estudo de Pelúcio Silva (2007), suas interlocutoras são “vistas como corpos
desviantes, os seres abjetos que demarcam as bordas da normatividade” (PELÚCIO
SILVA, 2007: 05). Pouco espaço é dedicado à discussão de nomes, mas é encontrado
em sua tese que o termo
[...] travesti pode ser bastante simplificador quando busca contemplar a gama de
possibilidades de se viver esta condição. A travestilidade aponta para a multiplicidade dessa
experiência, ligada a construção e desconstrução dos corpos. Ainda que haja uma rigidez na
gramática de gênero das travestis, há também uma patente fluidez na elaboração de
categorias êmicas autoclassificatórias, uma vez que estas estão estreitamente ligadas a
marcas identitárias que se associam ao trânsito dos corpos pelos territórios, o que se
vincula, por sua vez, às transformações desses mesmos corpos. (PELÚCIO SILVA, 2007:
19).
Travestilidade como processo de construção de um certo feminino,
glamourizado, ligado historicamente à noite e às artes cênicas (...), figura urbana e do
asfalto (Silva: 1993; 1996; 2007a). Pelúcio Silva aponta que o termo travestilidade é
utilizado pelas travestis que participam de movimentos sociais de luta por seus direitos
enquanto minorias.
O estudo de Figueiredo (2008) lida com histórias de narrativas da dor e
corporalidades de travestis no Recife, que ressignificam suas experiências corporais, de
gênero e de sexualidade vivenciadas em suas representações de feminilidade e
masculinidade, numa representação em que a paródia é a via de discurso, e a dor se
propõe como veículo aliado ao prazer, através da linguagem política (Teoria Queer) e
de satisfação (FIGUEIREDO, 2008). Sua análise tenta “vislumbrar a travestilidade
enquanto experiência através da perspectiva da identificação”. Ela procura se afastar
do termo transgênero, como categoria no mínimo problemática, pela incompreensão e
afastamento êmico que tal classificação (FIGUEIREDO, 2008: 30) significa nas
73
travestis por ela analisadas.
Em relação à nomeação, Figueiredo (2008) fala de autonomeação enquanto
gênero normativo, ou seja, o mesmo de que tratam muitos dos autores quando falam de
travestis e a suas reivindicações, por serem chamadas por pronomes e artigos femininos
e não masculinos.
É na configuração do termo travesti que as interlocutoras aparecem nos estudos
brasileiros, que caracteriza tanto uma identificação de gênero, como de nacionalidade, o
que se percebe também na necessidade da circulação que elas almejam e podem
alcançar, com o objetivo de ganhar prestígio entre os pares e a sociedade que as
discrimina.
1.2 DESCOBRINDO O VELHO MUNDO
Para a Espanha vamos em busca de realização e reconhecimento no seio familiar
e com um sonho, o de conhecer um outro mundo – a Europa – e de lá trazer, pelo
menos, muitas histórias para contar e ser "alguém que deu certo na vida"6, para poder
“retornar” com maior importância e respeito de seus entes.
Lá me deparo com uma realidade discursiva e uma teoria que coloca todas as
minhas certezas pelo avesso. Descubro, em idas e leituras realizadas no PIAHTCM 7,
material riquíssimo sobre a temática, que afirma, por exemplo:
Travesti: En general es un término peyorativo para los transexuales. Para algunos/as es un
término que tiene que ver claramente con aquellas personas que tienen una necesidad de
vestirse o transformarse con ropas del sexo opuesto, sin que realmente exista una
identificacíon interna con este sexo. Sin embargo, para otras personas, muchas de ellas
sudamericanas, el término identifica aquellas personas que todavía no han realizado un
cambio total de reasignación de sexo, aunque exista una identificación con el sexo opuesto.
Sería, entonces, un término sinónimo de transgénero. (ROMERO, 2006: 20) 8
6
Minha estratégia nas conversas iniciais, para poder falar e, posteriormente manter contatos com as
travestis brasileiras no Recife e em Madrid, foi utilizar como objetivo em meu discurso a assertiva
“alguém que deu certo na vida”.
7
Programa de Información y Atención a Homosexuales y Transexuales de la Comunidad de Madrid.
8
“Em geral é um termo pejorativo para os transexuais. Para alguns/mas é um termo que tem a ver
claramente com aquelas pessoas que tem necessidade de vestir-se outransformar-se com roupas do sexo
oposto, sem que realmente exista uma identificação interna com este sexo. Sem objeções, para outras
pesoas, muitas delas sul-americanas, o termo identifica aquelas pessoas que não realizaram uma mudança
74
Naquele primeiro quadro começo a perceber o quanto de estético tem a
nominação travesti no estudo e nas identificações que encontro na Espanha, mais
próximo do que designamos como Cross-Dresser, ou mesmo transformistas unidos a
uma comunidade que, nos Estados Unidos, é nomeada de transgeneristas.
Na visão de Dorian, interlocutora no Recife, se concretiza como um “nome
insultante” (BUTLER, 1997): (...) travesti é muito pesado. Até a própria palavra
travesti é muito agressiva, eles deviam pensar em outro nome. Desta maneira, o termo
vem sendo percebido assim no Brasil, e algumas vezes rechaçado pela literatura ativista
na Espanha. Isso remete diretamente à experiência delas, apontada mais à frente. A
classificação se torna rígida, pois o ato de classificar sugere patologização, insultando
quem é denominado como tal.
Assim, me aproximo dos estudos queer em termos de pensar sobre os
questionamentos das próprias interlocutoras sobre si mesmas e suas identidades que se
firmam no movimento que causa estranheza. Pois, segundo Louro:
Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade
desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. (...) Queer é um jeito de
pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de
ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da
ambigüidade, do 'entre-lugares', do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda,
perturba, provoca e fascina. (2004: 8)
Foi na década de 80, com os estudos de Wittig e tantos outros teóricos, que as
temáticas consideradas mais 'subversivas', em termos de sexualidade, vieram à tona,
porque questionam a relação sexo/gênero enquanto relação de poder. Neste sentido, o
que se conhecia como travesti é colocado como transexual na literatura de língua
espanhola, na acadêmica e também na de cunho informativo.
O termo travesti é vinculado à estética e, por isso, assunto de fetichismo, sem a
referência à identidade ou identificação (FIGUEIREDO, 2008), como também à
modificação corporal intensa que vem sendo realizada pelas pessoas que se identificam
total de reassignação sexual, mesmo que exista uma identificação com o sexo oposto. Seria então, um
termo sinônimo de transgênero.”
75
com a realidade da travestilidade, vivida na Espanha também por espanholas, intituladas
transexuales.
Em citação anterior, Romero (2006) fala sobre o direcionamento espacial, as de
Sudamerica, ficando clara a diferença entre as travestis espanholas e as do Brasil, por
exemplo. Uma das interlocutoras de seu estudo afirma:
[...] ya en los años 60 apareció dentro de mi perspectiva el concepto de travesti o de
travestí, como se decía entonces, (...) y entonces por primera vez vi algo que era
efectivamente lo que yo quería ser, entonces yo estuve aceptando y usando la palabra
travestí durante mucho tiempo porque de alguna manera se representaba aunque no fuera
una palabra muy exacta en todo su sentido pero en cuanto a identidad significaba
precisamente algo que era distinto de la homosexualidad y todo esto... (...) y bueno poco
después ya fui encontrando también el uso de la palabra transexual, ya me reconocí más
propriamente en esa palabra. (K.P. informante de Romero. p. 38).9
Esta informante de Romero afirma com categoria que a disposição de nomes,
mudando com o tempo, a coloca em posição de destaque no que se refere à formação de
sua identidade. O que antes servia para identificar seu modo de pensar e se comportar,
agora não serve mais, pois os termos vão mudando e as pessoas também, até porque a
intervenção tecnológica na modificação corporal muito contribuiu para se ir além das
aparências. As palavras dão nomes às coisas e aos comportamentos da gente e isso
muda com o avanço das pesquisas, que descobrem novos nomes que dão significados
diferentes aos comportamentos em que nos reconhecemos, ou não, como afirma K. P.
1.3 AMPLIANDO FRONTEIRAS: SIGNIFICADOS DOS NOMES QUE
INTERESSAM.
Na década de 1910, Hirschfeld (NIETO, 1998) desenvolve um estudo sobre
travestis. Sua investigação remonta a travestilidade, sem utilizar este termo, ao uso de
roupas do sexo oposto com fins de erotismo. Por este feito se desenvolveram
9
“nos anos 60 apareceu dentro de minha perspectiva o conceito de travesti, ou travestí, como se dizia
então, (...) e então, foi a primeira vez que vi algo que era efetivamente o que eu queria ser, então eu estive
aceitando e usando a palabra travesti durante muito tempo porque de alguma maneira se representava
mesmo que não fosse uma palabra muito exata em todo seu sentido porém enquanto identidade
significava precisamente algo que era diferente da homossexualidade e tudo isso... e bem pouco depois já
fui encontrando também o uso da palabra transexual, já me reconheci mais propriamente nessa palavra”.
76
investigações que estabeleceram o termo transexual como de destaque (na década de 40
e 50, com Caldwell e Alfred Kinsey).
Na década seguinte, 1960, surge o termo transgênero cunhado por Virginia
Prince e desenvolvido nos Estados Unidos para designar todos os que fazem parte de
uma comunidade transgenérica (NIETO, 1998; MEJÍA, 2006), com o fim de facilitar
“las vias para el reconocimiento de una realidad de géneros y identidades múltiples”10
(NIETO, 1998: 22). Transexual, até a década de 70, era a pessoa que passava pela
transgenitalização.
Nos anos 80 a concepção deixa de ser médica e passa a ser psicosocial, embora
continue um problema a ser tratado.
Quando se pensa na realidade do território espanhol, a transexualidade, a partir
de uma sentença em 1987 do Tribunal Supremo da Espanha, passa a ser “un fenómeno
sociológico que el derecho no puede ignorar y que obliga a tomar posturas”11 (GIL,
2006: 421). Mesmo assim, enquanto fenômeno sociológico, é bom entender o que
define seus autores. Sesma (2005) é um exemplo:
[...] cuando la identidad que me doy (me siento hombre) está en clara discrepancia con la
identidad que me asignan (me ven y me clasifican como mujer); entonces estamos ante una
situación de transexualidad. O sea, (...) Se tiende a distinguir entre 'transgénero' y
'transexual'. Pero ambos son transexuales, a efecto etimológicos. Que unos lleguen a
modificar sus genitales-cuerpo y otros no, es otro cantar. (...) La clave no es sino la
autoaceptación y felicidad personal. Y eso puede incluir, o no, a los genitales; pero
12
en
todos los casos esas personas son transexuales. (SESMA, In: RUIZ, 2005: 10).
Seu estudo se refere a um ponto de vista lingüístico. Não interessa ao
nomeamento destas pessoas a mudança corporal total13. Este “otro cantar” parece com
algo relacionado mais a uma questão de vontade própria de cada um do que à categoria,
10
“As vias para o reconhecimento de uma realidade de gêneros e identidades múltiplas”.
“um fenômeno sociológico que o direito não pode ignorar e que obriga a tomar posturas”
12
“(...) quando a identidade que me dou (me sinto homem) está em clara discrepância com a identidade
que me assinam (me veem e me classificam como mulher), então estamos diante de uma situação de
transexualidade. Ou seja, (…) se tende a distinguir entre transgênero e transexual. Porém ambos são
transexuais, a efeito etimológicos. Que uns cheguem a modificar seus genitais – corpo e outros não, é
outra história. (...) A chave não é senão a autoaceitação e felicidade pessoal. E isso pode incluir, ou não,
aos genitais; porém em todos os casos essas pessoas são transexuais.”
13
A transgenitalização, reassignação sexual, transforma o que antes seria uma genitália masculina/
feminina para o oposto (feminina/ masculina).
11
77
que nada tem a ver com o indivíduo, que não interfere no diferenciar-se entre ser
travesti ou transexual, pois todos são iguais segundo a própria Sesma.
No Brasil, entendemos transexual exatamente como uma pessoa que, pelo
menos, deseja passar por todo o processo de transgenitalização, pois primeiramente não
aceita seu órgão sexual masculino (não “desfrutando” dele), quando a transformação é
H-M, de homem a mulher (NIETO, 1998; GIL, 2006; RUÍZ, 2005; BECERRAFERNÁNDEZ, 2003; ROMERO, 2006). E, por isso, cuida de modificar seu corpo com
a reassignação.
No estudo de Romero (2006) há um reforço de que
[…] la transexualidad significa todo un sentimiento interno de pertenencia al otro sexo y el
proceso de cambio no és más que la adecuación del aspecto físico al sexo con el que la
persona se identifica. Para algunos esta adecuación empieza antes, para otros más tarde;
pero la pertenencia a un sexo o a otro es independiente de si se ha iniciado el cambio
exterior o no, porque ese sentimiento de pertenencia ya está dentro de ellos desde siempre
(Romero, 2006: 48). 14
A adecuación é a modificação corporal que se inicia com o tratamento para a
transgenitalização: a hormonização e a psicoterapia, que dão base para a cirurgia
definitiva. Desta maneira, interpreto como, por um lado, diferente da travestilidade,
pois, mesmo com a identificação com o sexo oposto, não há, nas travestis, a pretensão
de mudança dos genitais, nem o desejo de compreender a ambigüidade como problema,
já que convivem muito bem com isso. É o sentimento de pertencer ao outro sexo, que
compreendo como gênero, o que mais importa para Romero (2006). Em nossas
frutíferas e longas conversas, ela sempre apontava para a cabeça quando falava sobre
onde estava realmente o pertencimento ao outro gênero.
Por outro lado, nas diversas obras que tratam de transexuais na Espanha,
Sexólogos, Psicólogos, Psiquiatras, Médicos Endocrinologistas e Cirurgiões Plásticos
afirmam ser a transexualidade um processo que se inicia com a hormonização, a
14
“A transexualidade significa todo um sentimento interno de pertencimento ao outro sexo e o processo
de mudança não é mais que a adequação do aspecto físico ao sexo com o que a pessoa se identifica. Para
alguns, esta adequação começa antes, para outros, mais tarde, porém o pertencimento a um sexo ou a
outro é independente de se começou a mudança exterior ou não, porque esse sentimento de pertencimento
já está dentro deles desde sempre”.
78
vivência do fenômeno como o sexo contrário por um período de, no mínimo, dois anos,
comprovado através de algumas idas a psicanalistas específicos, assim como
modificações corporais iniciais e anteriores a transgenitalização. Ou seja, o uso de
hormônios, as operações estéticas e a vivência como se fosse de um gênero diferente ao
assinado em nascimento é um processo que travestis do mundo todo vivenciam sem a
necessidade de modificar seu sexo anatômico. E sem o acompanhamento médico
formal. Desta forma, é possível entender que travesti pode ser igual a transexual, pelo
processo de modificação corporal que acompanha as duas identidades.
Nos poucos trabalhos encontrados sobre travestis na Espanha, um deles utiliza o
termo como travestismo categorizando-o como transtorno, experiencia transitoria de
pertenecer ao sexo opuesto y de reducir los niveles de tensión o ansiedad que presenta
la persona que lo padece cuando no se traviste15 (GIL, 2006).
A travestilidade, como a entendo, não tem espaço nas discussões dos coletivos
na Espanha. O termo, neste país, parece se referir a uma imposição médica – transtorno
– e psicológica – conduta que necessita de ajuda profissional, o que na verdade não
encontra ressonância nos modelos representados pelas trans que conheço.
Acerca da Ciência Médica, a Teoria Queer, aponta que “(...) la medicina y la
pornografia dominantes funcionan como formas de pedagogia biopolítica que enseñan
como hacerse un cuerpo hetero16”. (PRECIADO, 2005). Do mesmo modo posso
analisar aqui com a ajuda da noção de habitus (BOURDIEU, 1994a; 1994b; 1988;
2007) enquanto um conjunto de disposições duráveis, que forma e é formado por
agências pedagógicas. É a Medicina formadora destes costumes (ROHDEN, 2001),
destas disposições, que trata de nomear o que usamos hoje, para determinar quem é
quem nas apresentações de gênero.
1.4 ADEQUAÇÕES DE CADA LOCAL
No caso dos Estados Unidos, a primeira noção, historicamente falando, afirma
que transexual é categoria médica. Logo após são realizados estudos sobre o termo
transgenderists, ou transgêneros. A Espanha se mostra contra transgênero e adota
15
“transtorno, experiência transitória de pertencer ao sexo oposto e de reduzir os níveis de tensão
ou ansiedade que apresenta a pessoa que o padece quando não se traveste”
16
“a medicina e a pornografia dominantes funcionam como formas de pedagogia biopolítica que
ensinam como fazer-se um corpo hetero”
79
transexual no discurso veiculado por coletivos em suas ações e escritos. Ou seja, não
aceita os termos desenvolvidos para a identidade de transgênero, pois os vê como
imposição de fora, por isso, o rechaço. E concorda com o termo transexual não
encontrando neste nenhuma conotação ditatorial.
Penso que a não aceitação da Espanha quanto a teorias transgenderists para
travestis, transformistas, drag-queens e drag-kings, etc., faz parte de um processo de
oposição ao que se produzia no período franquista, mesmo não tendo nada a ver com o
General Franco e seu poder, mas que chegaram ao conhecimento de estudiosos
exatamente num momento histórico de luta contra o que era imposição. Ou seja, em um
período em que está em voga a liberdade de opinião e de comportamento, assim como a
reivindicação por identificação contrária a tudo que lembre o momento.
1.5 COMO A ESPANHA PENSA A AMÉRICA LATINA
Em escrito sobre “Uma exposição fotográfica de transexuales en Paraguay”,
Cristina Santillán (2003-2004) afirma que,
la gran maioría de los estudios conciben la transexualidad como producto final de un
cambio, poniendo mayor énfasis en el resultado final o en los objetivos y no en la
interacción social y sus procesos. En este sentido, las distintas historias de vida no están
representadas en los discursos homogeneizadores de la transexualidad. No existe un
lenguaje adecuado para expresar los diversos y dispares deseos que llevan (o no) a la
reconstrucción o adecuación genital y corporal. Y muy especialmente no hay el lenguaje
que dé cuenta de multiplicidad de situaciones y significados de la sexualidad humana. 17
(SANTILLÁN, 2003-2004: 39).
Santillán afirma que é difícil determinar um termo próprio para a diversidade de
representações sociais encontradas na sociedade ocidental. Mostra que há problemas
que dificultam o determinar "a categoria", por conta de estudos fundamentalmente
antropológicos que se empenham em denominar de forma diversa, com termos locais,
17
“a grande maioria dos estudos concebem a transexualidade como produto final de uma mudança, pondo
maior ênfase no resultado final ou nos objetivos e não na interação social e seus processos. Neste sentido,
as distintas histórias de vida não estão representadas nos discursos homogeneizadores da transexualidade.
Não existe uma linguagem adequada para expressar os diversos e díspares desejos que levam (ou não) à
reconstrução ou adequação genital e corporal. E muito especialmente não há a linguagem que dê conta da
multiplicidade de situações e significados da sexualidade humana”.
80
seus interlocutores. Elenca os problemas como éticos; êmicos; de terminologia; e de
tradução, do inglês para o castelhano. Para ela, os termos desenvolvidos por
antropólogos em suas sociedades de estudo “no nos vale”, e sim a transexualidade
“como algo más diverso y complejo, entendida como la conformación de una
comunidad transgenérica”18 (SANTILLÁN, 40).
Quando se pensa sobre a América Latina, na literatura espanhola, se associa um
lugar pouco desenvolvido que não aceita os termos da metrópole. Autores, como Kim
Perez (In: TRUJILLO, 2003-2004) apontam:
Las transexuales que vivimos en Europa o América del Norte, en la confortable clase media
del sistema global corremos el peligro de olvidarnos de que allí está la verdadera fuerza
transformadora... y de nuevo aparece el prefijo 'trans'... a no ser que abramos nuestros
brazos a las compañeras que vienen de allá, previsiblemente para constituir el nuevo
proletariado sin papeles y sin derechos de nuestras sociedades del bienestar... para nativos
19
(p. 9).
Em se tratando de defender status de classe, nesta citação fica claro a disposição
de primeiro mundo e colonizador que a Espanha se coloca quando, por exemplo, esta
interlocutora de Pérez determina em sua localização e "classe social". O nós se
aproxima de América do Norte. Os/as outros/as são os/as da América Latina. Fica
determinado assim o reconhecimento da força transformadora que é nosso continente, o
sentido de união para com a nação colonizada, importante para a metrópole. Todavia,
também está claro o reconhecimento da desigualdade entre os lugares e as pessoas,
assim como os termos que, de novo, aparecem para marcar as diferenças entre os
nativos e os colonizadores.
Esta citação revela-nos um fenômeno interessante de hierarquização interna
entre as trans da Espanha, que inclui a autora, influenciando as nominações que
escolhem para designar a si mesmas enquanto espanholas, ativistas e participantes do
18
“como algo mais diverso e complexo, entendida como a conformação de uma comunidade
transgenérica”
19
“As transexuais que vivemos na Europa ou América do Norte, na confortável classe média do sistema
global corremos o perigo de esquecermos de que alí está a verdadeira força transformadora... e de novo
aparece o prefixo 'trans'... a não ser que abramos nossos braços às companheiras que vem de lá,
previsivelmente para constituir o novo proletariado sem documentos e sem direitos de nossas sociedades
de bem-estar... para nativos.”
81
próprio coletivo que estão retratando em suas falas.
Perez (In: TRUJILLO, 2003-2004) aponta o reconhecimento de venezuelanas,
argentinas e chilenas em defender para si o termo travesti como “nombre de calle, de
carro policial y desafío20”, também afirmado por Mejía (2006), e tão mal visto na
Espanha. O que confirmo, em conversa com brasileiras e tantas outras latinoamericanas, que a realidade, seja onde for, é problemática, mas, mesmo assim o termo
travesti acaba por não ser desprezado, principalmente no cotidiano.
Carla Antonelli (In: TRUJILLO, 2003-2004) em um de seus artigos, define a
América Latina como “un infierno para transexuales”. Através de notícias da Anistia
Internacional, demonstra fatos que comprovam sua afirmação:
El llamado Nuevo Mundo está todavía por ser explorado si por ello se entiende la
inculcación de la tolerancia y el respecto a los demás, así como la convivencia de
las personas independientemente de su raza, sexo o religión; pero sobre todo a
causa de su identidad sexual21 (p. 87).
Esta informação não distoa de uma realidade cruel de discriminação e violência
que sofrem as travestis todos os dias, principalmente em países como os da América
Latina, onde lemos, ouvimos na mídia, sensacionalista ou não, o quanto sofrem por não
se adequarem ao socialmente estabelecido.
No que pude ler sobre a América Latina, não encontrei com facilidade fatos
sobre Brasil, algumas vezes incluído nos "etc.", na lista de países latino-americanos que
herdaram da Europa uma sociedade patriarcal, intolerante e fascista. Sobre isso, Scott
(2007) comenta:
Os brasileiros figuram entre os recém-chegados, ocupando uma posição dúbia de quase
hispana, parcialmente isolada pela sua língua, mesmo que favorecida em comparação com
migrantes de origem não latinas. É impressionante como os brasileiros freqüentemente são
ignorados pelos próprios compiladores de dados sobre migrações das Américas! (p. 13)
20
“nome de rua, de viatura da polícia e desafio.”
“O chamado Novo Mundo está para ser explorado se por ele se entende o inculcamento da tolerância e
do respeito aos demais, assim como a convivência das pessoas independente de sua raça, sexo ou religião;
porém sobretudo por causa de sua identidade sexual. ”
21
82
Penso, em relação ao estudo de Antonelli (TRUJILLO, 2003-2004), que Brasil
não foi incluído em sua pesquisa por falta de dados, como também, de um ponto de
vista mais específico, por não fazer parte da América hispânica, assim, com menos
representação nos coletivos na Espanha, pois fica claro, em visitas a eventos nas
associações, a quase nulidade da participação de brasileiros.
Resumindo: ser travesti na maior parte da literatura disponível quer dizer ser de
outro local e época, se possível menos desenvolvido, mesmo que em observações de
campo e conversas com interlocutoras, até as espanholas, as identidades fiquem
afirmadas como de travestis e não de transexuais, como os escritos e associações
informam. É possível imaginar que estas noções de travesti e transexual, defendidas
pelos coletivos e alguns estudiosos de gênero na Espanha, façam parte de uma imagem
de América, e me arrisco a dizer, de Brasil.
1.6 SOBRE TRANSGÊNERO E SEU USO NA ESPANHA
Em termos de conceito, Garaizabal (Apud NIETO, 1998) defende o mesmo que
Nieto (1998), considerando a relativização de gênero. Ambos têm perspectivas iguais,
porém este último com um olhar menos politizado, quando esclarece:
Eliminar el concepto psiquiátrico de la transexualidad supone, pues, eliminar el tratamiento
médico de la misma. Claro que esta desmedicalización de la transexualidad probablemente
conllevará, como bien señala una activista defensora de los derechos civiles de los
transgeneristas, la desaparición de las ayudas económicas dirigidas a facilitar el pago de la
cirugía de cambio de sexo, objetivo prioritário de la comunidad transgenérica a nivel
internacional22 (NIETO, 1998: 27).
Para Nieto (1998), o termo transgênero é mais apropriado atualmente do que a
forma como venho designando, travestilidade. E transexual é mais um termo empregado
22
“Eliminar o conceito psiquiátrico da transexualidade supões, pois, eliminar o tratamento médico da
mesma. Claro que esta desmedicalização da transexualidade provavelmente levará, como bem assinala
uma ativista defensora dos direitos civis dos transgêneros, ao desaparecimento das ajudas econômicas
dirigidas a facilitar o pagamento da cirurgia de mudança de sexo, objetivo prioritário da comunidade
transgenérica em âmbito internacional.”
83
em seus estudos. Na obra citada23, transgênero é tema novedoso, contradictório, falto de
consenso, sometido a debate, con polémica asegurada y apasionante24 (NIETO, 1998:
15).
Mesmo assim, percebe-se que ele também une na categoria transgênero todas as
apresentações de gênero, quando afirma que a “los preoperados y postoperados se unem
los no operados que no se quierem operar. Igualmente, forman parte de la comunidad,
travestidos y en su más amplia acepción cross-dressers”25. (NIETO, 1998: 29). O que é
bem comum quando se lê sobre o significado da própria palavra.
Fica claro que os estudos antropológicos não estão em consonância total com a
discussão sobre transexualidade, a título de produção escrita, que as associações de
transexuais estão realizando no propósito de legitimar o conceito. O próprio Nieto
continua,
La comunidad transgenérica se compone, en definitiva, de un conjunto de 'identidades
personales', que se organizan (o aspiran a organizarse) en forma de movimiento social y
que en la reivindicación de sus derechos se desprenden del encapsulamiento de los sistemas
de sexo/género que societa-riamente les viene impuesto y en ese hacer intentan
desvincularse de 'la agencia de los controladores privilegiados de los cuerpos individuales:
la profesión médica'. En tanto que comunidad, los transgeneristas parecen reunir los
requisitos de la 'unitas multiplex', la conjunción de lo singular y lo diverso, de la unidad y la
multiplicidad.26 (1998: 31)
O termo transgênero surgiu nos Estados Unidos, coincidindo com o fechamento
de clínicas de transgenitalização, por isso, é “una forma de emancipación de la tutela de
los médicos” (MEJÍA, 2006: 169), defendida por esta autora como a melhor forma de
identificação. Mas, que, por esta origem, a população trans na Espanha não se identifica,
23
Compilação de textos traduzidos da língua inglesa, de 1975 até 1993.
“tema novo, contraditório, ausente de consenso, submetido a debate, com polêmica garantida e
apaixonante”.
25
“aos pré-operados e pós- operados se unem os não operados que não querem operar. Igualmente,
formam parte da comunidade travestis e em sua mais ampla acepção cross-dressers”
26
“A comunidade transgenérica se compões, definitivamente, de um conjunto de 'identidades pessoais',
que se organizam (ou aspiram a organizar-se) em forma de movimento social e que na reivindicação de
seus direitos se desprendem do encapsulamento dos sistemas de sexo/gênero que socialmente vem
imposto e nesse fazer tentam desvincular-se da 'agência dos controladores privilegiados dos corpos
individuais: a profissão médica'. No entanto, em comunidade, os transgeneristas parecem reunir os
requisitos da 'unitas multiplex', a conjunção do singular e do diverso, da unidade e multiplicidade”.
24
84
pois “le parece un intento de imposición desde el exterior”. Assim como me parece
uma inversão do jogo de representação democrática, em que a Espanha precisa criar
uma legitimidade para os termos que adota, como próprios, em sua população.
Mejía informa que o termo transexual também foi cunhado pela Medicina, mas
não rechaçado pela Espanha, porque “las trans nunca hemos sufrido la dictadura de los
médicos” (2006: 161). Pois se entende como ditadura apenas a política franquista, uma
forma muito reduzida, porém contextualizada, de compreender o termo. Todavia, uma
forma de entender a repressão, não apenas às travestis, embora seu alvo de análise seja
este, porque eram os policiais quem mais as reprimiam, diferente da Espanha atual.
Policiais estes, sob o mando do General Franco, que muito utilizavam a palavra travesti
para as trans que ali se encontravam.
Transgênero parece o mais apropriado cientificamente, por se referir a trânsito
ou transgressão de normas pré-definidas, e assim proporia uma maior relativização.
Mas, na Espanha, mesmo com a rejeição aos termos travesti e transgênero no ativismo e
na literatura, utilizar a palavra trans é comum quando se conversa com as interlocutoras.
Todavia, reconheço a força do nome travesti, de destaque como nome usual,
independente de que trabalho realizem e em que lugar estejam; por isso não é possível
desprezar nem substituir definitivamente o nome pelo qual elas ainda se identificam.
Intitular-se travesti não é problema na América Latina. Já na Espanha esse uso é
complicado, pelo fato da própria América Latina e Brasil continuarem sendo um
problema enquanto lugares que exportam pessoas das mais variadas formas possíveis.
Sobre nomes e seus usos, Butler (1997) afirma:
Uno no está simplemente sujeto por el nombre por el que es llamado. Al ser llamado con un
nombre insultante, uno es menospreciado y degradado. Pero el nombre ofrece también otra
posibilidad: al ser llamado por un nombre se le ofrece a uno también, paradójicamente, una
cierta posibilidad de existencia social, se le inicia a uno en la vida temporal de lenguaje,
una vida que excede los propósitos previos que animaban ese nombre. Por lo tanto, puede
parecer que la alocución insultante fija o paraliza a aquel al que se dirige, pero también
puede producir una respuesta inesperada que abre posibilidades. Si ser objeto de la
alocución equivale a ser interpelado, entonces la palabra ofensiva corre el riesgo de
introducir al sujeto en el lenguaje, de modo que el sujeto llega a usar el lenguaje para hacer
85
frente a este nombre ofensivo. 27(p. 17)
Lembro do estudo de Silva (2007b), em que “as bonecas” se negavam a
fornecer seu nome de registro, e por isso continuavam presas; afrontavam o poder
policial da época, assim como a própria mídia e a sociedade, tanto por negarem seus
nomes oficiais, o que as protegia, por um lado, como por assumirem seus nomes de rua,
fazendo deles seu escudo.
São palavras como travestis e “bonecas” que caracterizam ofensivamente a
pessoa, dependendo do contexto em que esteja vinculada e do espaço em que é
mencionada. Embora, por exemplo, as trans28 do encontro de Cogam29 , fora do espaço
das palestras se cumprimentavam como bem queriam, não importando a discussão
travada naquele dia30.
Garaizabal (Apud NIETO, 1998) percebe a diversidade na transgeneridade,
embora afirme que todas são transexuais:
Mi experiencia me permite afirmar que hoy, en nuestro país, muchas personas que se
definen y viven como transexuales no tienen ninguna intención de someterse a la
intervención quirúrgica de cambio de sexo. Entre otros factores porque no viven mal sus
genitales. Más aún: porque disfrutan con ellos. Suelen ser personas equilibradas, que
27
“Um não está simplesmente sujeito pelo nome pelo qual é chamado. Ao ser chamado com um nome
insultante, é menosprezado e degradado. Porém o nome oferece também outra possibilidade: ao ser
chamado por um nome se oferece a um também, paradoxalmente, uma certa possibilidade de existência
social, se inicia a um a vida temporal da linguagem, uma vida que excede os propósitos prévios que
animavam esse nome. Portanto, pode parecer que a locução insultante fixa ou paralisa aquele ao que se
dirige, porém também pode produzir uma resposta inesperada que abre possibilidades. Se ser objeto da
locução equivale a ser interpelado, então a palabra ofensiva corre o risco de introduzir o sujeito na
linguagem, de modo que o sujeito chega a usar a linguagem para fazer frente a este nome ofensivo”.
28
Continuo utilizando este termo, principalmente em relação ao evento da Cogam por lá se encontrarem
tanto travestis como transexuais (as operadas).
29
I Taller de Prevención de la transmisión de VIH e ITS dirigido a personas Transexuales trabajadoras
del sexo. Organizado por Cogam, com participação de Aprampt e Programa de Información y Atención a
Homosexuales y Transexuales de la Comunidad de Madrid. [sic]
30
Tal como afirmou Tina, que travesti e transformista não é igual a transexual. Por isso não concorda que
todas sejam denominadas de transexuales. Todavia, para ela, ser chamada de transexual, travesti ou
transgênero não importa muito, pois com todas as discussões e modificações de lei, nada mudou em
relação ao preconceito das pessoas e os horrores que estão acontecendo nas ruas e mesas de cirurgia. O
estigma (GOFFMAN, 1963) é o mesmo para todas, mesmo mudando suas (auto) definições quanto à
apresentação de gênero. Outra colocação importante foi a de Ana que não aceita nenhum dos termos em
vigência, pois todos eles não dizem realmente como ela se sente, são apenas denominações atualizadas
para determinar quem não se satisfaz com o gênero assinado em nascimento, por isso se diz o tempo todo
mulher. Ambas são espanholas, têm mais de 40 anos de idade e aproximadamente 30 anos trabalhando
como profissionais do sexo na Casa de Campo, que teve suas atividades, neste ramo, proibidas no ano de
2007.
86
reivindican su diferencia y su transexualidad con orgullo; que gustan de mostrar su
ambigüedad y ambivalencia en relación a los géneros, siendo conscientes de la estructura
inestable y construida que éstos tienen. 31(p. 47)
Este posicionamento de Garaizabal é adequado para o uso do termo
travestilidade no Brasil, modificando a palavra, apenas, e mantendo o ethos do grupo.
Entendo a defesa de Garaizabal (Apud NIETO, 1998) por sua posição de psicóloga e
feminista. E no mesmo texto fica claro que as categorias não podem ser estanques, pois,
na prática, a experiência humana é muito mais rica que os escritos que pretendem
estabelecer categorias de identificação.
Garaizabal adota uma postura crítica em relação à perspectiva clínica, que
denomina transexual como um transtorno da pessoa, possuindo graus de evolução
(transexuais verdadeiros, transexuais primários, transexuais secundários...) e sem
perspectiva que não seja a mudança de sexo com a intervenção cirúrgica. Mais uma vez:
é o corpo em evidência para se pensar as trans. Contudo, a autora continua utilizando o
termo transexual em todo o seu artigo, ao falar das novas apresentações de gênero.
1.7 CABE UNIR OS NOMES ÀS PESSOAS?
Em termos de estudos de identificação de travestis brasileiras, não é adequado
utilizar transexuais como termo êmico para caracterizá-las, apenas porque me propus
realizar um estudo entre Brasil e Espanha, onde elas circulam e se ambientam nos
termos modificados e onde até algumas delas presenciam uma política, que vem
funcionando, em que todas são “transexuales”.
Porque, quando se trata de identificar as interlocutoras, individual ou
coletivamente, mesmo entendendo o caráter transitório do gênero no qual se
autodenominam no Brasil, não cabe sonoramente, lingüisticamente, nem tem
significado na vida real delas. Figueiredo (2008) até “brinca” com a proximidade das
palavras transgênero e transgênico e por isso parecer algo que ninguém, pelo fato da
31
“Minha experiência me permite afirmar que hoje, em nosso país, muitas pessoas que se definem e
vivem como transexuais não tem nenhuma intenção de submeter-se a intervenção cirúrgica de mudança
de sexo. Entre outros fatores porque não vivem mal com seus genitais. Mas ainda: porque desfrutam com
eles. Costumam ser pessoas equilibradas, que reivindicam sua diferença e sua transexualidade com
orgulho; que gostam de mostrar sua ambiguidade e ambivalência em relação aos gêneros, sendo
conscientes da estrutura instável e construída que estes tem.”
87
impropriedade que a mistura produz, quer adotar para si. Apenas dentro das discussões
de movimentos sociais, discussões impostas e apenas de cunho político, o que não
conduz a nenhum uso no cotidiano delas. Principalmente porque no Brasil, e no Recife,
a teoria queer não funciona.
Desta maneira, opto por reafirmar a categoria travestilidade, em consonância
com a literatura brasileira analisada, quando fala da condição e ressignificação das
palavras na realidade das travestis que convivo, muitas com experiências que apontam
para uma multiplicidade dentro do universo vivido e compartilhado por elas. Opto por
travestis e trans, principalmente por estar lidando com pessoas que circulam em espaços
transnacionais, o que implica mudanças de comportamento e nomenclaturas
diferenciadas para a adaptação ao território em que se encontram.
Concordo com as interlocutoras brasileiras quando afirmam que o motivo da
defesa do termo transexual "para todas" vem de uma insatisfação com a experiência no
trabalho e a linguagem falada pela maioria: bajubá ou pajubá (PELÚCIO SILVA,
2007), desenvolvida nas ruas e grupos de pares, principalmente na realidade da
prostituição, porque travesti passa a ser reconhecida como nome marginal, devido à
discriminação que tem sofrido historicamente por nossas terras. O que muito já se
experimentou na Espanha.
Uma outra questão é a multiculturalidade da Europa, que oferece a quem está
por lá uma anonimidade de pessoa comum, o que elas almejam em determinadas
situações, principalmente naquelas em que o “apontar o dedo” e o “olhar pelo canto do
olho” (SILVA, 1993) significam ameaças. Anonimidade marcada pela presença da
diversidade sexual enquanto direito, o que diminui qualquer discriminação neste
sentido, em meio à gama de diferenças entre as pessoas.
Na Espanha, as travestis brasileiras “não se sentem mal” (grifo meu) ao serem
nomeadas transexuais. E isso se justifica pelo fato do termo transexual não remeter a
atitudes homofóbicas, ou transfóbicas, na mesma intensidade que elas sofrem no Brasil:
nem por conta dos sentidos da palavra, diferentes lá e aqui, nem tampouco pela
condição em que se apresentam em termos de gênero. Embora isso seja importante para
entender o posicionamento delas no Brasil, quando retornam.
Na Espanha, há uma adesão coletiva a um movimento que quer o país na linha
democrática e que por isso reforça a integração plena na comunidade européia,
88
rejeitando um passado ditatorial, já não desejado e imbricado diretamente a um
movimento não mais interessante para a construção da nação. Este movimento tem
como pressuposto ressignificar o país enquanto livre de identidades e nomes que
sugerem algum tipo de imposição.
Segundo Antonio Burgos, na década de 7032, o argumento sobre a democracia na
Espanha era justificativa para rechaçar qualquer pretensão ditatorial e que lembrasse o
governo do General Franco. Sobre as travestis, ele afirma:
[...] hay un grupo, dentro de los homosexuales, que no sólo continúa padeciendo la
represión franquista, sino que en la ola de libertades públicas ha sido presa fácil de una
manipulación consumista en el mundo del cine y del espectáculo. Son los viejísimos
imitadores de estrellas, ahora, dicho a la europea, travestis. (...) el travestismo tiene unas
viejas raíces en el mundo español del espectáculo; sólo que el general cortó de raíz estas
manifestaciones. Acabada la rabia, el fenómeno ha vuelto a aparecer en toda su grandeza
subterránea. No es que se haya inventado nada. Es que ha salido a la luz pública cuanto
había. En los más duros años de la dictadura, cuando no solamente se perseguía con la Ley
de Vagos y Maleantes a los imitadores de estrellas, sino que los eminentísimos señores
cardenales - arzobispos dictaban penas de excomunión contra los espectáculos dichos
revisteriles de las estrellas imitadas, por las ciudades y pueblos de Andalucía, Extremadura,
Canarias, había hombres de dudoso sexo que secretamente imitaban las canciones y los
contoneos de doña Concha Piquer, de Carmen Miranda, de Mari Paz. (...) El travestismo
está de moda y sus productos subculturales son comercializados sin miramientos, tal como
son vendidos en circuitos industriales los 'posters' del Che o los discos con las canciones de
la resistencia española. Para muchos es un mundo nuevo. Para otros, simplemente un
mundo recuperado33. (Triunfo, 1977: 41).
32
Revista Triunfo, 1977
“há um grupo, dentro dos homossexuais, que não só continua padecendo da repressão franquista, senão
que na onda das liberdades públicas tem sido presa fácil de uma manipulação consumista no mundo do
cinema e do espetáculo. São os antigos imitadores de estrelas, agora, dito à européia, travestis. (…) o
travestismo tem velhas raízes no mundo espanhol do espetáculo; só que o general cortou na raiz estas
manifestações. Acabada a raiva, o fenômeno voltou a aparecer em toda a sua grandeza subterrânea. Não
se inventou nada. É que saiu à luz pública quanto havia. Nos mais duros anos da ditadura, quando não
somente se perseguia com a Lei dos Vagos e Meleantes aos imitadores de estrelas, senão que os
eminentíssimos senhores cardeais – arcebispos ditavam penas de excomunhão contra os espetáculos ditos
de revista das estrelas imitadas, pelas cidades e povoados de Andaluzia, Estremadura, Canárias, haviam
homens de sexo duvidoso que secretamente imitavam as canções e danças de Dona Concha Piquer, de
Carmem Miranda, de Mari Paz. (…) O travestismo está na moda e seus produtos subculturais são
comercializados sem deslumbre, tal como são vendidos em circuitos industriais os posters de Che ou os
discos com as canções de resistência espanhola. Para muitos é um mundo novo. Para outros,
simplesmente um mundo recuperado.”
33
89
O movimento político espanhol, segundo o ativismo queer, procura termos para
abarcar a diversidade sexual e torná-la um elemento negociável na legislação. E têm
conseguido. Terminam assim por realçar as enormes limitações de alguns termos e
tentam englobar as diferentes apresentações de gênero na terminologia transexual. Com
esta direção política definida, passam a enfatizar a rotulação diferenciadora estigmática
de travesti como aplicável, na prática, a imigrantes34. Alguns destes imigrantes se
integram na luta e no atendimento de ONGs e OGs que estão encabeçando
reivindicações pela legitimação de leis e nomenclaturas oficiais.
Por isso, penso que há uma vontade política forte no uso do termo, pois algumas
travestis espanholas com quem mantive contato participam com freqüência dos
coletivos e obtêm com isso representação política nas discussões de governo, o que é
muito importante, principalmente quando se observa as conquistas, em termos de leis35
que a Espanha tem obtido nesta última década.
Por isso, entendo o uso da expressão transexuais 'para todas/os' como uma
política em que o movimento se une à produção acadêmica, teoria queer36, com uma
ressalva do uso do termo transgênero não ser adotado, por uma questão bem clara para o
ativismo. Nós, brasileiros, ainda não estamos bem posicionados, geopoliticamente, para
fazer esta relação, lidar com uma política inclusiva, que na Espanha admite assessores e
secretários transexuais.
Entendo que o termo, prefixo usado sem o restante da palavra, "trans", por si só
dá margem a várias interpretações e realidades que consegui visualizar em campo. E,
para a luta política compreendo a necessidade da junção de conceitos que se proponha
abarcar a comunidade em questão. Mas, com isso, o termo travesti nem aparece como
possibilidade. Desta forma, pelo fato de se defender a transexualidade como termo igual
para todas, com o objetivo de luta por direitos iguais, termina-se por defender a
transexualidade, como entendemos no Brasil, e seu tratamento médico e legal, tal como
afirma Nieto (1998).
No Recife transgênero foi um dos termos que tentou firmar terreno entre elas,
mas, não consubstanciou-se. Atualmente elas preferem trans por abarcar uma
possibilidade maior de inclusão dentro da própria travestilidade. E não excluem
34
Ver Kim Perez In: TRUJILLO, 2003-2004.
Ver Lei de Identidade de Gênero, 03/2007.
36
Com teóricos emprestados da Psicanálise e do pós estruturalismo francês (PRECIADO, 2003; 2005).
35
90
“travesti”, porque percebido com maior força, melhor correspondência ao gênero que
escolheram para si e facilidade na rapidez da identificação.
Desde a primeira viagem à Europa, quando passam um tempo na Espanha, as
travestis brasileiras se adequam a novas intitulações, o que denota uma hierarquização
terminológica, clara também nas modificações de comportamento delas mesmas em
relação às que ficam. Estas modificações acabam implicando politicamente na vida
pessoal, ao ponto de ser possível pensar a Europa como modeladora de nomenclaturas
mais atualizadas e “apropriadas” para uso corrente no Brasil. Entendendo desta
maneira, acaba-se por confundir o real objetivo da viagem, incidindo sobre a
modificação corporal definitiva – a transgenitalização – o motivo da circulação daquela
travesti, o que não condiz com o desejo pessoal de muitas, embora seja interessante
enquanto um dos truques que usam para serem melhor reconhecidas perante os que
ficam.
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94
A essência da técnica e o Mito do ser: um confronto entre Heidegger e Caputo.
por J. C. Marçal1
RESUMO: Este artigo visa discutir a idéia de Heidegger sobre a essência da técnica e a
interpretação de Caputo para tal abordagem. Definir a essência da técnica como Gestell
– e entender que a te/xnh (tékhne) é o modo próprio do pensamento calculador em
contraposição ao pensamento medidante – delimita a questão da essência da técnica à
sua esfera ontológica. Para Caputo, a técnica em Heidegger representa o ponto alto de
sua filosofia e só é possível de ser pensada a partir daquilo que Caputo chama de Mito
do ser fundado por Heidegger: Mito que aponta para os gregos e os alemães como
aqueles que realizaram de modo autêntico o destinamento do ser na História. Temos que
analisar, portanto, se a essência da técnica em Heidegger conduz seu pensamento
político e torna possível seu endossamento ao nazismo.
Palavras-chaves: Técnica, Gestell, Mito, Ontologia, Ciência.
ABSTRACT: This article aims at discussing the Heidegger´s idea on technique essence
and the Caputos´s interpretation on such account. Defining technique essence as Gestell
– and understanding that te/xnh (tékhne) is the proper way of calculator thought unlike
the meditative thought – delimits the technique essence question into its ontological
sphere. For Caputo, technique in Heidegger´s thought represents the peak of his
philosophy and it is only possible to be thought from Being Myth, as Caputo says,
founded by Heidegger. This Myth points to the Greeks and Germans as those who have
carried out in a proper way the Being destination on History. Therefore, we have to
analyze if the technique essence in Heidegger´s thought lends to his political thought
and makes possible his Nazism endorsement.
Key-words: Technique, Gestell, Myth, Ontology, Science.
1
Doutorando do Programa Interinstitucional em Filosofia (UFPE-UFPB-UFRN).Professor da Faculdade
Joaquim Nabuco. E-mail: [email protected].
95
Em termos gregos, para Heidegger, noei=n (noein), e0o/n (eón) e moi=ra (moira)
definem um território em comum, o Ereignis: o advento, o acontecimento-apropriação
pelo qual o ser se ilumina no que lhe é próprio, ou seja, na sua essência e na sua
proveniência. Neste sentido, parte-se primeiramente do pensamento (noei=n) para o
trazer de volta ao ser como Dobra (e0o/n) que só é possível ser pensado a partir de sua
destinação (moi=ra). Mas desde Parmênides – Frag. 6 – que o pensamento está atrelado
ao dizer, le/gein (légein). O dizer, em sentido mais originário – via Homero – nos indica
um “pôr” (legen), constituindo uma plurivocidade do termo. Heidegger interpreta esta
dinâmica de sentidos afirmando que “para os Gregos, deixar qualquer coisa ser postadiante-de tal como já está posta, é deixá-la aparecer”2. Le/gein e noei=n formam um par
que surge como o “deixar-estar-posto-diante-de (Vorliegen-lassen) e o tomar à sua
guarda (In die Acht nehmem)”3: o primeiro determina o segundo, ocorrendo uma copertença, uma reciprocidade mútua entre ambos.
Deste modo, o pensamento, em sua abertura original, se mostra como uma
memória e uma escuta, um recolhimento do presente4. Tanto assim é, que noei=n irá
aparecer no Fragmento 3 de Parmênides atrelado ao verbo ei]nai (einai). Ser e pensar, o
mesmo. O to\ au0to – (to auto) o mesmo – é compreendido como uma relação de
pertença mútua entre ser e pensar. Mais ainda: o pensamento pertence ao ser. Só onde
há ser, eclode o pensar. O pensamento meditante, segundo Heidegger, é aquele que se
mantém na obediência ao ser. O pensamento calculador, por outro lado, é aquele que se
afastou de seu elemento original. Não se trata de um pensamento vazio, sem conteúdo,
mas de um pensamento que se mantém na obediência daquilo que não lhe é próprio.
Como nos diz Heidegger na sua carta Sobre o “Humanismo”:
Para primeiro aprendermos a experimentar, em sua pureza, a citada essência do pensar, o
que significa, ao mesmo tempo, realizá-la, devemos libertar-nos da interpretação técnica do
pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles. O próprio pensar é tido, ali, como
uma tékhne, o processo da reflexão a serviço do fazer e do operar5.
2
ZARADER, Marlene. Heidegger e as palavras da origem. Lisboa: Piaget, 1998.p. 134.
Op. Cit. p. 135.
4
Cf. Op. Cit. p. 138.
5
HEIDEGGER, Martin. Sobre o “Humanismo”. In:______. Conferências e Escritos Filosóficos. São
Paulo: Abril, 1984. (Os Pensadores). pp. 149-50.
3
96
O sentido da reflexão, neste ponto, se assenta sobre a praxis e a poíesis. A
poi/hsiv , que já no Banquete (205b) de Platão surge como produção – e que tem na
natureza, fu/siv, sua máxima expressão – rege a essência daquilo que foi denominado
como te/xnh. Este entrelaçamento, que une sob uma co-pertença termos que
aparentemente são distintos entre si, permite que Heidegger pense a essência da técnica
atrelada à sua compreensão muito particular da verdade, a0lh/qeia (alétheia). Se nós
traduzirmos a palavra grega a0lh/qeia de modo direto, teremos o termo desvelamento
(Unverborgenheit). O que se pensa com esta afirmação é que a a0lh/qeia
precisamente, “a saída para fora da lh/qh, o surto ao aparecer, a vinda à presença”6
a0lh/qeia fala de um deixar para trás a lh/qh, sua origem e, neste deixar para trás,
assinala sua desocultação, ou seja, ela mesma, como condição de conhecimento do ente,
aponta para a primeira determinação da fu/siv grega, ou seja, “a eclosão mesma do ente
no seu ser”7, já que o ser é o que se oculta e se vela e se mostra a partir deste
ocultamento8.
É assim que Heidegger poderá definir a técnica como “uma forma de
desencobrimento”9. Este desencobrimento vale como o traço fundamental da técnica,
daí sua relação com a verdade. As quatro causas fundantes da filosofia – causa
materialis, formalis, finalis e efficiens – encontram seu seio no âmbito mesmo deste
desencobrimento. Por quê? Ora, é no desencobrimento que se funda toda produção.
Produzir já diz este trazer à tona, o desocultar daquilo que estava velado, de-monstrar,
trazer à luz. Diferentemente da fu/siv, que é um “surgir e elevar-se por si mesmo”10, a
técnica “des-encobre o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá”11. Mas, em
sentido diverso da técnica entendida como poi/hsiv, a técnica moderna é uma
exploração que “impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal,
ser beneficiada e armazenada”12; trata-se de uma provocação. Heidegger, para acentuar
esta diferença, usa de exemplos que, num primeiro momento, nos parecem estranhos – a
6
ZARADER, M. Op. Cit. p. 78.
HEIDEGGER, Martin. Einführung in die Metaphysik. Tübigen: Niemeyer. 1953. p. 77. Apud
ZARADER, M. Op. Cit. p. 78.
8
Cf. ao ser como ser dos objetos da experiência – e sua relação com o poder de conhecer – ver o segundo
capítulo, § 27, da obra Que é uma coisa?(Die Frage nach dem Ding) de Heidegger. Rio de Janeiro:
Edições 70, 1990. pp. 228-9.
9
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In:______.Ensaios e conferências. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, 2002.p. 17.
10
Op. Cit. p. 16
11
Op. Cit. p. 17.
12
Op. Cit. p. 19.
7
97
nós, aqueles inseridos na vida fáctica da técnica moderna. Assim, o trabalho do
camponês, bem como o antigo moinho de vento, não provocam e desafiam o solo
agrícola ou o rio. A técnica moderna dis-põe da natureza, e isto mesmo no sentido de
uma exploração.Este processo abre e ex-põe a própria natureza.
Há, neste ponto, a compreensão de um desencobrimento explorador: aquele que
extrai, transforma, estoca, distribui e reprocessa. Entretanto, mesmo aqui, sabendo-se
que é o homem quem realiza a exploração que des-encobre o chamado do real, para
Heidegger o homem não possui em seu poder o desencobrimento “em que o real cada
vez se mostra ou se retrai e se esconde”.O homem realiza sua participação no
desencobrimento quando age na técnica. Isto significa que a essência da técnica está
para além de sua onticidade. Este modo de pensar só é possível porque Heidegger,
desde os primórdios de sua Analítica Existencial, elaborou a questão do sentido do ser à
luz da diferença ontológica. Ele salta do essentia latino-romântico para o Wesen grecogermânico.
O homem é provocado a abordar a natureza como objeto de investigação.
Heidegger propõe um termo de difícil tradução para indicar esta “interpelação única que
reúne o homem e o real à volta de uma única tarefa de que eles são apenas os dois
elementos complementares”13: Ge-Stell. Nas palavras de Heidegger, Ge-Stell significa
“a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o
real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade”14. Esta compreensão está atrelada
à própria compreensão heideggeriana da diferença ontológica: a diferença entre o ser e
os entes. Esta diferença, e sua estruturação na vida fáctica, comporta, ainda, uma idéia
heideggeriana bastante interessante: trata-se do destinamento do ser. Este destinamento
nos diz que “o ser se nos atribui e se aclara e clarificante arruma o tempo-espaço, onde o
ente pode aparecer”15. E ainda mais: “[...] o ser, ao remeter-se, produz o campo livre do
espaço de jogo temporal e com isso o homem primeiramente num campo livre liberta as
suas respectivas possibilidades essenciais remetidas”16.
13
ZARADER, M. Op. Cit. p. 148.
HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Op. Cit. p. 24.
15
Idem. O Princípio do Fundamento. Lisboa: Piaget, 1999.p. 95
16
Op. Cit. p. 138.
14
98
A história do direcionar e do libertar é a base para entendermos que, na época
moderna, “o presente mostra-se em posição de objetividade”17. Deste modo, Heidegger
pode entender que a essência historial da técnica, posterior a aparição histórica da
ciência – entendida aqui como teoria do real – é que determina seu curso. O Ge-Stell
determina, nas diversas manifestações da técnica, sua essência enquanto comum. Este
encadeamento histórico – que envolve um a priori e um a posteriori – permite pensar o
coração da ciência moderna como e0pisth/mh (epistéme). Esta determinação da essência
da técnica não se dá como algo técnico ou maquinal, mas indica, outrossim, o modo
como o real se des-encobre - e aí reside a dis-ponibilidade. Não se trata, contudo, de
pensar uma demonia da técnica, já que Heidegger localiza o perigo em outro lugar. Uma
vez que ao realizar a técnica o homem já participa da dis-posição – entendida como um
modo de desencobrimento – entende-se o perigo atrelado ao fato do homem ficar exposto a um perigo que provém do próprio destino. O perigo mesmo é o destino do
desencobrimento, nomeadamente quando o homem equivoca-se com o desencobrimento
e chega a interpretá-lo mal. Para Heidegger, não se trata de um entre tantos outros
perigos, mas este é o perigo.
É aqui que entra Caputo como um contraponto a Heidegger. Caputo quer nos
fazer ver que Heidegger funda o Mito do ser. Este Mito não surge inicialmente nas
primeiras conferências de Heidegger em Friburgo que deram origem a Ser e Tempo, já
que inicialmente teríamos aqui uma “hermenêutica da facticidade” que Caputo
compreende em duas frentes: “[...] por um lado, do mundo da vida fáctico das
comunidades do Novo Testamento, sedimentadas abaixo da ontoteologia dogmática da
tradição; e, por outro lado, do mundo da vida fáctico da ética aristotélica, sedimentada
abaixo da metafísica da ousia”18. Se seguirmos Caputo, podemos mesmo afirmar que já
no § 44 de Ser e Tempo há uma possibilidade de divisarmos este Mito, uma vez que ali
se pensa o fenômeno originário da verdade (Das ursprüngliche Phänomen der
Wahrheit) em oposição ao conceito tradicional de verdade (Der traditionelle
Wahrheitsbegriff)19. Isto é possível porque são os primeiros gregos que pensavam o ser
na sua existência como presença dentro da a0lh/qeia. A verdade só pode ser romantizada
e cristianizada como veritas após as tentativas de Platão e Aristóteles em precisar “esta
17
ZARADER, M. Op. Cit. p. 145.
CAPUTO, John D. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Piaget, 1998. p. 19.
19
Cf. HEIDEGEER, M. Sein und Zeit. 19ª ed. Tübingen: Niemeyer, 2006. pp. 214 e 219.
18
99
concepção com uma <<definição>> do elo existente entre o pensamento e o ser que
relegou para segundo plano o aspecto da alétheia como desocultação”20.
O problema, para Caputo, é que a a-létheia, assim com a diffèrance de Derrida,
não é nem um nome nem um conceito e, portanto, não possui unidade nominal. A alétheia original deve ser, seguindo estas prescrições, ante-histórica. Mas parece que a
alétheia grega, aquela que surge historicamente entre os pré-socráticos, é a mesma que
esta a-létheia original. Não é de se estranhar que Caputo pergunte como isto é possível,
ou seja, como este Wesen da história – que permite que a história seja – e que nunca
pode ele mesmo ser histórico, pode deixar suas marcas numa época histórica? O Mito
do ser remete a um começo primordial situado exclusivamente entre os primeiros
gregos, excluindo qualquer possibilidade de pensarmos uma inserção desta escuta atenta
originária entre a tradição greco-judaica. O Mito do ser é também o Mito da Origem
(Ursprung) e do Começo (Aufang). É assim que Caputo pode escrever que “os
<<Gregos>> de Heidegger não são algo meramente <<histórico>> (geschichtlich), mas
destinadores (geschicklich), condutores do próprio destino (Geschick) do Ocidente”21.
Caputo não está propenso a aceitar a idéia de um povo grego originário doador de
determinadas tradições lingüísticas, científicas e sociais do Ocidente. Este Mito do ser,
que ganha contornos heróicos e poéticos no último Heidegger, possibilita-o pensar o
Quádruplo. Escreve Caputo:
Heidegger demonstra nestes escritos uma decidida preferência pelos primeiros gregos, pela
experiência grega de ser como physis e alétheia e pela experiência dos „deuses‟ como parte
do „Quádruplo‟, O Quádruplo – terra e céu, mortais e deuses – é uma profunda concepção
de Hölderlin que Heidegger deriva de suas leituras desse poeta sobre o mundo grego. Então
o deus que emerge nos últimos escritos de Heidegger é um deus poético, uma experiência
poética do mundo como algo sagrado ou merecedor de reverência. 22
O problema crucial aqui, para Caputo, é que estas determinações partem da
compreensão heideggeriana do Wesen que não constitui algo que é humano. A diferença
20
CAPUTO, J. Op. Cit. p. 40.
Op. Cit. p. 16.
22
Idem. Heidegger e a teologia. Revista Perspectiva Filosófica. Vol II, 26. 2007. (Trad. do Autor).
pp.123-4.
21
100
ontológica aponta sempre para a essência numa esfera anterior ao ôntico. A essência da
tecnologia, portanto, não é tecnológica; a essência da linguagem não reside no discurso
humano; a essência da habitação não se relaciona com quatro paredes e um teto; a
essência da destruição não se dá na aniquilação nuclear; a essência da dor nada tem a
ver com o sentimento23.
Caputo entende que Heidegger, influenciado por Hölderlin e os primeiros
gregos, está contra as turbinas, os computadores e “as horríveis e trituradoras rodas do
Gestell”24. Heidegger, segundo Caputo, esquece a alta taxa de mortalidade entre os
primeiros gregos, bem como o lugar reservado às mulheres e aos escravos. A crítica que
Heidegger faz à tecnologia é, então, a parte mais poderosa de sua obra, onde tudo é
sintetizado ao sabor do logos. Esta abordagem que surge apenas nos anos 30 se
distancia do que nos é dito em Ser e Tempo onde a ciência aparece de modo positivo
quando, no § 69, b, procura-se estabelecer um conceito existencial da ciência (einen
existenzialen Begriff der Wissenschaft)25. O Gestell preenche o esclarecimento dado no
seu próprio afastamento. No invisível do esclarecimento emerge a tecnologia que não é
o ser, mas o modo como pretende ser, sendo algo dado, que não é o Ereignis e nem
tampouco o Es gibt – e isto, para Caputo, parece um grande distanciamento do real, da
História, da vida dos homens que trabalham e sofrem. Só um deus pode nos salvar, eis a
célebre conclusão de Heidegger e isso mesmo porque o ser se representou como Gestell.
Diante desta essência da técnica que coloca em um só bojo a produção de trigo
para produzir o pão que alimenta e a produção de armas que matam, Caputo coloca a
phronêsis26. Esta não é um conhecimento do imutável, mas sim conhecimento que lida
com um cenário que oscila e que se dá num mundo que muda. Ela é “uma sensibilidade
para as exigências da situação individual, uma intuição (nous) que o entendimento
prático efectua das idiossincrasias do particular”27. O intuito de Caputo é definir que
esta postura de Heidegger em favor do Wesen aponta para suas escolhas políticas. É
conhecida a anuência de Heidegger à pergunta de Löwith se seu envolvimento político
estava na essência de sua filosofia, acrescentando que era sua concepção de
historicidade que constituía a base deste envolvimento. Agora se torna claro o intuito de
23
Cf. Idem. Desmitificando Heidegger. Op. Cit. p. 176.
Op. Cit. p.58.
25
Cf. HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Op. Cit. p. 357.
26
Cf. CAPUTO, J.. Desmitificando Heidegger. pp. 98-9.
27
Op. Cit. p. 99.
24
101
Caputo: o infernal endossamento de Heidegger ao nazismo está na base de sua própria
filosofia – o Mito do ser (que reúne sobre um único privilégio os primeiros gregos e os
alemães) valida o programa político nazista na medida em que o povo (Volk) alemão
está na ponta, dentro da História, da escuta atenta do destinamento do ser. Trata-se de
uma mitologia greco-alemã onde se trata de responder ao destino de um povo que
possui a característica particular de já estar, pelo próprio destinamento do ser, fadado a
escutá-lo de modo autêntico. É na sua carta aberta à universidade alemã que Heidegger
afirma que os alemães têm a responsabilidade do Ocidente, criando uma reciprocidade
entre seu povo e a magna graecia. Heidegger apela aos alemães que assumam a sua
missão histórica.
A essência da técnica que produz campos de concentração é a mesma daquela
que extrai alimentos da terra, repete Caputo. Entretanto, parece que há certa intenção
não dita nestas linhas. De fato, o endossamento de Heidegger ao nazismo está na base
de sua filosofia, mas isto não significa que podemos pensar esta base à luz de sua
compreensão da essência da técnica. Pensemos na escrita, uma das mais antigas
manifestações da técnica. A questão é que a e0pisth/mh, enquanto modo do homem lidar
com o mundo, é histórica exatamente devido à escrita. Mesmo que Heidegger afirme
que a essência da linguagem não resida no discurso – apesar de sabermos que o sentido
(Der Sinn) é o que pode ser articulado na interpretação28 - remontamos ao par noei=n e
le/gein. Este retorno nos obriga a privilegiar a “hemenêutica da facticidade” de Ser e
Tempo em detrimento ao Mito do ser que surge depois. Na escrita – aquela mesma que
pode elaborar um poema que pensa a verdade do ser ou declarar uma guerra – vemos
que não é a delimitação em si do seu Wesen que atinge e modifica o mundo, mas sim o
seu Wesen enquanto ocorrência, facticidade, coisa viva e real que, desentranhado de seu
ponto originário, ganha corpo e pode ser pensado e dito, modificando o estado de coisas
ou a conjuntura do mundo.
Mesmo o pensamento da verdade do ser se diz historicamente na escrita. Sem
esta técnica não poderíamos escutar o que Heidegger teria para nos dizer. O próprio
Heidegger não teria escutado o apelo a-histórico do destinamento do ser oriundo dos
primeiros gregos. Talvez se trate muito mais de estabelecer não apenas a essência
daquilo que se mostra e que é pensado como gênero ou universal, mas sim de entender
28
HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Op. Cit. p. 161.
102
também que o sentido mesmo do que se mostra não se capta apenas olhando um dos
pontos de sua origem. Talvez Caputo esteja saudoso da essentia medieval. Uma coisa é
certa: o endossamento ao nazismo levado a termo por Heidegger – um pensador de tão
grande envergadura – nos mostra que se de fato há um destinamento autêntico do ser
dentro da História, esta escuta passou muito longe do povo alemão. A escrita, seja em
sua essência ou em seu modo fáctico de aparecer, assim nos mostra e une o passado
com o presente. As lições não são puras memórias de uma essência atemporal, mas nos
perseguem temporalmente naquilo que é, pela escrita, a própria memória.
O saudosismo de Caputo frente a essentia o obriga a redimensionar a
problemática da técnica dentro do pensamento heideggeriano. O essencialismo de
Heidegger, segundo Caputo, não aponta diretamente para a vida, para aquilo que possa
de fato interessar aos homens. Entretanto, a diferença ontológica em Heidegger nos leva
a repensar a questão da Ética, já que aqui não se trata de analisar a esfera ôntica, mas
sim de apontar os fundamentos desta própria esfera. Acredito que Caputo forja, à luz de
suas influências francesas – mais especificamente Derrida, Levinas e Lyotard – um
modo de ler a questão da técnica em Heidegger que não parece condizer com a própria
leitura heideggeriana ao problema. Não se trata de debater as implicações éticas da
técnica moderna – mesmo que Heidegger esteja buscando revalorizar a escuta atenta ao
sentido do ser – mas sim de apontar para o terreno comum em que qualquer técnica se
torna possível. Como bem nos lembram Cocco e Fleig:
No texto Contribuições à Filosofia, Heidegger indica a partir do que se anuncia o
abandono do ser: primeiro, na completa indiferença com o plurissignificante
(Vieldeutigkeit), ou seja, a redução do significado e do sentido do ser ao monopólio da
explicação técnica; segundo, na obstrução do pensar ao se implantar valores e idéias como
imutáveis; terceiro, na angústia vazia frente ao perguntar e à negação que causam cegueira
em relação ao essencial („que é invisível aos olhos‟); e, por último, na fuga da meditação e
na impotência do esperar que somem a partir da supervalorização do calcular. 29
A palavra chave aqui é esta: Vieldeutigkeit. Este reducionismo é o alvo visado
por Heidegger em suas críticas à técnica moderna. O advento da escrita enquanto
29
COCCO, Ricardo e FLEIG, Mário. A questão da técnica em Martin Heidegger. Revista Controvérsia,
v. 2 n° 1, jan-jun 2006. p. 10.
103
técnica fundamental aponta desde sempre para um lugar mais original. Se noei=n e
le/gein se articulam numa unidade, já que o pensamento, como dissemos anteriormente,
está atrelado ao seu dizer, a te/xnh, portanto – enquanto modo do pensamento – também
está atrelada ao seu dizer. Mas não se trata aqui do dizer enquanto teoria (qewri/a), mas
sim da efetividade múltipla do aparecimento das diversas técnicas, seus usos e
direcionamentos. A teoria é pura consideração (Betrachtung) daquilo que é o real. Mas
é apenas no domínio da elaboração, do elaborar (trachten) que a técnica pode ser
motivo de um juízo ético. Na esfera do desencobrimento – portanto no universo
ontológico – a crítica de Heidegger à técnica só poderia mesmo ter este caráter, ou seja,
fundamentar historicamente uma das bases essenciais de sua estrutura filosófica: o
esquecimento do sentido do ser.
Se a técnica moderna é uma provocação (Herausfordern) e não mais uma
produção no sentido da poi/hsiv, talvez sejamos levados a pensar a urgência de
criarmos um campo em que ambas as esferas citadas possam conviver em certa
harmonia, pois é certo que o homem contemporâneo – sobrevivente de duas Grandes
Guerras - esteja mais propenso a lhe dar com a técnica sem um distanciamento radical,
mas também sem perder de vista aquilo que lhe é essencial. O ressentimento de Caputo
é justificado, bem como a preocupação de Heidegger. Caberia, portanto, pensar cada
esfera primeiramente de modo separado, para então podermos estar munidos de uma
junção capaz de nos levar até a real dimensão do problema. Caputo reclama que falta
em Heidegger uma devida compreensão da esfera do pão e da carne, já que Heidegger
“escutou o Sorge em „sorgen um das „tägliche Brot‟”30, mas não de modo adequado.
Sorge, a cura, o cuidado, é entendida em Caputo de um modo a acentuar a facticidade
greco-judaica, já que a cura não significará Kampf, mas sim kardia31.
Acredito que o Caputo de The Mystical Element in Heidegger´s Thought e
Heidegger and Aquina está muito mais centrado numa fenomenologia-hermenêutica
bem feita que possibilita realmente interessantes leituras sobre Heidegger à luz de suas
influências ditas e não ditas de Aquino e Mestre Eckhart. O Caputo de Desmitificando
Heidegger parece, assim como o próprio Heidegger que ele quer criticar, muito mais
voluntarioso e heróico, já que o excesso de seu tom bíblico parece comprometer sua
30
CAPUTO, J. Op. Cit. p. 100.
Novamente parecemos escutar um eco francês nas idéias de Caputo. Cf. ver ZARADER, Marlene. La
Dette impensée. Heidegger et l‟héritage hébraïque. Paris: Seuil, 1990.
31
104
lucidez filosófica. Sua busca por uma kardia evangelizada só é possível de ser
justificada se levarmos em conta sua abordagem extremamente negativa às
considerações de Heidegger sobre a essência da técnica. O saudosismo medieval de
Caputo deveria ser contrastado com a radicalidade da antropologia filosófica de
Eckhart, Silesius e Boehme, por exemplo, ou ao menos escutar de modo mais tranqüilo
as considerações de Bultmann ou Tillich32.
Caputo critica Heidegger por ter medo da animalidade do homem, por negá-lo
enquanto animal rationale, ou melhor, por negar a dimensão animal do homem. Caputo
afirma que com Paulo, Agostinho, Pascal, Lutero e Kierkegaard, Heidegger aprendeu
que o homem é concebido de forma adequada como temporalidade. Não é aí que reside
seu distanciamento da animalidade, mas sim quando este não pensa aquilo que é próprio
do homem enquanto animal: sua fome, sua sede, sua dor física, suas limitações
corporais. Loparic parece conhecer esta querela e suas possibilidades, mas aponta num
sentido completamente diverso. Loparic chega mesmo a equacionar o instinto da
animalidade com a razão humana neste processo histórico de tecnificação. Ele afirma
que “o instinto da animalidade e a ratio da humanidade tornam-se idênticos. Dizer que o
instinto é o caráter da humanidade significa dizer que a animalidade, em cada uma de
suas formas, está totalmente submetida ao cálculo e ao planejamento”33.
Invertidas as ordens, somos novamente levados a pensar a partir da essência.
Mas que fique claro: todo pensamento da essência transcende ao próprio cálculo, ao
próprio planejamento; por isso transcende também a sua animalidade. O terrível
endossamento de Heidegger – e seus esforços gigantescos para encobrí-lo nos anos
seguintes – coloca nosso pensamento numa suspensão desconfortável em relação às
suas idéias mais originais. Suas cartas neste período nos atemorizam ainda mais. Mas o
confronto mesmo com suas idéias principais parece sempre conduzir a um
distanciamento maior deste período nebuloso de sua vida. A questão da técnica em
Heidegger se transforma, portanto, numa questão também radical: é possível pensar
Heidegger filósofo dissociado do homem Heidegger? E ainda mais: a hermenêutica da
facticidade se desdobra mesmo no Mito do ser? É sempre neste sentido que realizamos,
32
Cf. a uma comparação entre Heidegger e Bultmann ver MACQUARRIE, John. An Existentialist
Theology: A Comparision of Heidegger and Bultmann. New York: Harper, 1965. Cf. a uma aproximação
entre Eckhart e Tillich ver DOURLEYJ, John. Tillich e Meister Eckhart: Apreciação Crítica. Disponível
em: <http://www.metodista.br/correlatio>.
33
LOPARIC, Z. 1996. Heidegger e a pergunta pela técnica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência,
série 3, v. 6, nº2. São Paulo :UNICAMP, p. 107-137.
105
no pensamento mesmo de Heidegger, suas lições sobre a História da Filosofia, a saber:
realizar sempre o passo de volta (Schritt züruck) pensando o impensado de seus dizeres.
Nada mais justo.
REFERÊNCIAS
CAPUTO, John D. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Piaget, 1998.
______. Heidegger e a teologia. Revista Perspectiva Filosófica. Vol II, 26. 2007.
______. Heidegger and Aquinas. New York: Fordham University Press, 2000.
______. The Mystical Element in Heidegger´s Thought. New York: Fordham University
Press,1986.
COCCO, Ricardo e FLEIG, Mário. A questão da técnica em Martin Heidegger. Revista
Controvérsia, v. 2 n° 1, jan-jun 2006.
DOURLEYJ, John. Tillich e Meister Eckhart: Apreciação Crítica. Disponível em:
<http://www.metodista.br/correlatio>.
HANSEN-LOVE. Fundamentalontologie oder Seinsmystik? Wort und Warheit, n.4,
1949.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In:______.Ensaios e conferências. 2ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Einführung in die Metaphysik. Tübigen: Niemeyer. 1953.
______. O Princípio do Fundamento. Lisboa: Piaget, 1999.
______. Que é uma coisa? Rio de Janeiro: Edições 70, 1990.
______. Sein und Zeit. 19ª ed. Tübingen: Niemeyer, 2006.
______. Sobre o “Humanismo”. In:______. Conferências e Escritos Filosóficos. São
Paulo: Abril, 1984. (Os Pensadores).
LOPARIC, Zeljko. Heidegger e a pergunta pela técnica. Cadernos de História e
Filosofia da Ciência, São Paulo, UNICAMP série 3, v. 6, n.2.
106
MACQUARRIE, John. An Existentialist Theology: A Comparision of Heidegger and
Bultmann. New York: Harper, 1965.
PLATÃO. O Banquete. Lisboa: EA, 1988.
PÖGGELER, Otto. Metaphysics and Topology of Being in Heidegger. Man and Work,
8, 1975.
ZARADER, Marlene. Heidegger e as palavras da origem. Lisboa: Piaget, 1998.
______. La Dette impensée. Heidegger et l‟héritage hébraïque. Paris: Seuil, 1990.
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