Cadernos Nabuco - Faculdade Joaquim Nabuco
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Cadernos Nabuco Número 1, julho de 2010 Revista Eletrônica da Faculdade Joaquim Nabuco Ciência, Cultura e Interdisciplinaridade Recife - PE 1 Cadernos Nabuco ____________________________________________________________ Revista Eletrônica da Faculdade Joaquim Nabuco Volume I – número I – julho de 2010 Publicação semestral Grupo Ser Educacional Diretor Presidente do Conselho Administrativo do Grupo Ser Educacional: José Janguiê Bezerra Diniz CEO: Jânyo Diniz Superintendente Acadêmico: Inácio Feitosa Diretor-Geral da Faculdade Joaquim Nabuco: Abner Mesquista Diretora Adjunta: Anny Jatobá Comitê editorial: José Carlos Marçal, MsC. Jamerson Kemps Moura Gusmão, MsC. Maria Cecília Patrício, Phd. Coordenação da Revista: Priscila Lapa Ivaldir H. de F. Junior José Carlos Marçal Comitê de avaliação: Anny Jatobá, MsC. ([email protected]) Carlos André Dantas Dias, Esp.([email protected]) Ghena Catarina do Valle, Esp. ([email protected]) Solano Mineiro de Souza Neto, Phd. ([email protected]) Maurício Souza, Esp. ([email protected]) Ivaldir H. de Farias Junior, MsC. ([email protected]) Karina Koblitz, Esp. ([email protected]) Ladjane Rameh, MsC. ([email protected]) João Martins, MsC. ([email protected]) Priscila Lapa, MsC. ([email protected]) José Carlos de Mélo e Silva, MsC. ([email protected]) Endereço para correspondência (Adress for correspondence) PAULISTA: Av. Senador Salgado Filho S/N - Centro - Paulista/PE - CEP: 53.401-440 - Fone: (81) 2121-5999 - (81) 2121-5999 RECIFE: Av. Guararapes, 233 - Centro - Recife/PE - Fone: (81) 2121-5999 – Fone: (81) 2121-5999 www.joaquimnabuco.edu.br 2 SUMÁRIO Editorial ........................................................................................................................ 04 Religião, ciência e sociedade: possibilidades de entendimento para o fenômeno Morro da Conceição – Jamerson Moura .................................................................... 07 Expropiação Folk em Merchandising de produtos alimentícios no ciclo junino no Recife – Jademilson Silva et al ...................................................................................... 27 Realidade Simulada como Instrumento para a Publicidade de produtos na TV Digital – Nilton Melo e Ivaldir H. de F. Junior ......................................................... 42 Tropicalismo: a televisão como veículo de crítica à sociedade de consumo – Carlos André Carvalho ............................................................................................................. 55 Nomes que ousamos dizer - Maria Cecília Patrício ................................................. 66 A essência da técnica e o Mito do ser: um confronto entre Heidegger e Caputo – J. C. Marçal .................................................................................................................. 95 3 Editorial Caros leitores, professores, alunos e demais membros da comunidade acadêmica da Faculdade Joaquim Nabuco e Grupo Ser Educacional: tamanha é a satisfação com que apresentamos a todos a mais nova revista eletrônica de nossa comunidade acadêmica e científica, a Revista Cadernos Nabuco. Nossa revista surge do anseio de promover a plena e contínua forma de comunicação entre aqueles que se interessam em produzir conhecimento em compasso com o desenvolvimento das sociedades, bem como estreitar laços interdisciplinares entre o conhecimento teórico-científico e a prática pedagógica de nosso exercício profissional voltado à educação. Frente a um novo ano que se apresenta, encontramo-nos desafiados em nos inserir dentro das atuais mudanças e perspectivas que perpassam a sociedade brasileira e, em específico, o estado de Pernambuco. Visto por muitos, e por um longo período, como um gargalo para o desenvolvimento e progresso nacionais, nosso estado e a região nordeste vivem hoje um novo horizonte de realizações socioeconômicas que impulsionam sua população a inserção no novo contexto cultural mundial. Identificada por alguns teóricos como pós-moderna devido à sua característica de fragmentação e desrefenrencialização, a contemporânea sociedade mundial renova-se de maneira muita rápida, certamente influenciada pelo progresso tecnológico e das comunicações e junto a essa renovação se segue a alternância de paradigmas. Nesse sentido, insere-se a revista de nossa faculdade, identificando-se como um instrumento, um canal, um local de intercâmbio de informações e conhecimentos produzidos acerca dos mais variados e pertinentes assuntos, voltada à criação e ao desenvolvimento de um importante meio de debates e circulação de idéias. Nesta primeira edição, procuramos englobar os mais diversos conhecimentos teórico-científicos e acadêmicos, entendendo ser esse o passo primeiro rumo ao caminho de uma produção de caráter contínuo e consistente. Essa primeira revista é iniciada e concluída com dois artigos escritos pelos professores Jamerson Moura e José Carlos Marçal, que irão tratar da produção de conhecimento científico, em suas áreas de estudo, a partir da análise conceitual de seus principais referenciais teóricos; o primeiro 4 procurando elucidar possibilidades de entendimento para o fenômeno socioreligioso devocional que envolve a comunidade do Morro da Conceição, na capital pernambucana, e o segundo procurando compreender o lugar da questão da técnica no pensamento do filósofo Martin Heidegger a partir de um confronto com o filósofo John D. Caputo. Fortalecendo o corpo da revista, encontramos outros três artigos que tratarão de áreas temáticas acadêmicas específicas, mais voltados para a área da comunicação social. Sendo assim, identificamos com a leitura dos artigos: Expropiação Folk em Merchandising de produtos alimentícios do ciclo junino no Recife, organizado pelo professor Jademilson Silva; Realidade Simulada como Instrumento para a Publicidade de produtos na TV Digital, realizado pelos professores Ivaldir Júnior e Nilton Melo; e Tropicalismo: a televisão como veículos de crítica à sociedade de consumo, escrito pelo professor Carlos André Carvalho, relevantes trabalhos para a análise profissional no campo da publicidade; o primeiro objetivando analisar como se dá a expropriação da cultura popular no contexto massivo e das ações mercadológicas em confronto com as teorias de folkcomunicação; o segundo, promovendo a análise do ambiente de jogos eletrônicos como um instrumento viável para a publicidade de produtos na TV digital e o terceiro, por fim, desenvolvendo uma linha de interpretação diferenciada acerca da utilização político-ideológica do movimento tropicalista por meio da comunicação de massa em plena ditadura militar brasileira. Apresentamos, também, o trabalho da professora Maria Cecília Patrício que procura, num grande exercício de prática da alteridade, característico da Antropologia, discutir como se podem perceber denominações diferentes para travestis brasileiras, tanto na literatura quanto nas identificações pessoais de gênero e sexualidade, quando de suas migrações para outras regiões, em específico, a Espanha. Procuramos contemplar várias das produções de nossos professores, recurso humano cognitivo de nossa organização, percebendo que os mesmos almejavam o encontro com um instrumento de comunicação que pudesse dar divulgação aos seus trabalhos e é dessa forma que se concebe a Revista Cadernos Nabuco, o nosso permanente meio acadêmico interdisciplinar. Por fim, agradecemos a todos os que colaboraram de inúmeras formas para que a revista seja uma realidade e fique à disposição do nosso público de leitores, em especial. 5 Desejamos-lhe, igualmente, uma ótima leitura e convidamos a todos que continuem enviando colaborações, na espera que as conquistas continuem, pois, como defenderia nosso principal abolicionista, “é a imaginação, tocha divina apensa ao espírito do homem, que lhe permite mover-se nas trevas da criação. Assim os peixes das profundezas oceânicas trazem um facho que os ilumina na noite eterna. Sem isto para que lhes serviriam os olhos? Sem imaginação, que utilidade teria para o homem a inteligência?” (Joaquim Nabuco, in Pensées Détachées et Souvenirs, 1937). Conselho Editorial. 6 Religião, ciência e sociedade: possibilidades de entendimento para o fenômeno Morro da Conceição. Jamerson Kemps Gusmão Moura1. Resumo: O presente trabalho apresenta uma breve revisão teórica e bibliográfica dos estudos acadêmicos acerca da religião, bem como a relação desta com a ciência e sociedades nas quais a mesma está inserida, considerando, em específico, algumas das características da Igreja Católica e as transformações pelas quais, religião e, em específico, o Catolicismo passaram com o transcorrer do tempo. Em consonância com um trabalho acadêmico maior, procurou-se identificar como as tensões, conflitos, disputas e arranjos em torno da imagem de Nossa Senhora da Conceição, se refletem nas relações socioreligiosas que envolvem os fiéis católicos do Morro da Conceição situados na cidade do Recife2. Palavras-chave: religião, revisão bibliográfica, Morro da Conceição; socioreligiosidade. Abstract: This paper presents a brief revision on academic literature about religion, and its relationship with science and societies in which it is embedded, also considering some Catholic Church characteristics and the transformations that religion and, in particular, Catholicism have taken over with the passage of time. According to a bigger academic work, we tried to identify how the tensions, conflicts, disputes and arranged around the statue of the Saint Nossa Senhora da Conceição are reflected on the social1 Mestre em Antropologia e graduado em História, ambos pela UFPE. Professor da Faculdade Joaquim Nabuco. E-mail: [email protected]. 2 Neste artigo, considera-se a existência e importância de fatos históricos, aspectos políticos, socioreligiosos e simbólicos que formaram e continuam a participar do processo de constituição da sociabilidade dos fiéis católicos da comunidade. O trabalho identifica-se com a preocupação de entender como a representação da imagem de Nossa Senhora da Conceição junto aos seus fiéis católicos influencia na formação e identificação dos mesmos. Seria Ela apropriada de forma diferente pelos católicos? Ou até que ponto a representação da Santa da Conceição agrega ou desagrega seu rebanho de devotos? Percebeuse que a comunidade é composta por três pólos de devoção católica, quais sejam: primeiro: aquele que está ligado à igreja oficial e seus representantes; segundo: o que está ligado à Igreja de Resistência e Fé, formada pelo ex-pároco, padre Reginaldo Veloso e seus seguidores; terceiro: o pólo que se identifica com as práticas do chamado “Catolicismo Popular”, dada a característica autônoma de devoção de seus fiéis para com a Santa da Conceição e que os torna independentes em relação às lideranças religiosas dos dois primeiros pólos. Contudo, ressalvamos a necessidade de leitura do trabalho na sua íntegra para uma melhor compreensão de sua afirmação teórica. 7 religious relations involving the Morro da Conceição Catholic faithful, located at Recife city. Key words: religion, literature revision, Morro da Conceição, social-religiosity. Introdução O estudo da religião dentro das ciências sociais há muito nos remete a análises que procuram entender comportamentos humanos. Como entender, por exemplo, que homens se encontrem sob o forte sol do meio-dia, no Oriente Médio, rezando para aquilo que consideram como Deus, mas que, no entanto, é representado por um muro? E no Brasil, considerando a influência histórica do Catolicismo, como entender a convivência de católicos com fiéis de outras crenças e denominações religiosas? A religião os afastaria ou os aproximaria? Teorias científicas tentaram trazer à luz o entendimento dessas ações. Bronislaw Malinowski (1984) argumentou que a religião surge das tragédias reais da vida humana, do conflito entre os anseios humanos e a realidade, enquanto que para Clifford Geertz, [...] a religião é uma perspectiva, uma organização cognitiva do mundo, entre outras possíveis (senso comum, ciência e estética), expressa em práticas e um conjunto de símbolos que dão sentido à existência e alivia o sofrimento (1989:52). Ainda se referindo aos estudos sobre religião, procura o antropólogo norteamericano, em um de seus recentes artigos intitulado de “O Futuro das Religiões” (Geertz, 2006), nos encaminhar para um processo de análise mais específica da relação existente entre sociedades e religiões, ressalvando que [...] enquanto se desenrola a história política explosiva do século nascente, o desdobramento mais notável – e o mais surpreendente – que as ciências sociais se vêem obrigadas a enfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes erroneamente, como o “retorno da religião”. Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu – foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos 8 enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que consideravam o compromisso com a religião uma força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização (2006:01). Lembrando um dos cavaleiros da modernidade, temos a globalização como elemento dissipador da concepção estruturante de sociedade. Em trabalho realizado sobre globalização e diversidade religiosa, Rita Laura Segato (1997) lembra que uma das primeiras preocupações do cientista social deve partir da consideração e definição dos conceitos de global e local, observando que as forças estruturantes podem condicionar diversas expressões de caráter cultural e que estas podem responder às exigências da primeira. Ao analisar o envolvimento de comunidades religiosas com a resistência das diversidades locais, a autora atenta para o fato de que [...] estamos no campo de uma diversidade horizontal desenhada pela coexistência de coletividades diversas. Lealdades estabelecidas a partir de clivagens sociais que configuram a natureza plural das sociedades contemporâneas. É nesta escala que se torna visível e observável a presença das comunidades religiosas cujos credos, apesar de transladar-se em percursos transnacionais, enraízam-se localmente, criando-se em âmbito nacional e local (1997:225). Não obstante ao tema proposto, dentre as ciências, encontramos na Psicologia, e principalmente na Psicanálise, tentativas de entender o fenômeno religioso. Estudiosos dessas ciências procuraram tomar como leitura mais sólida e apropriada o estudo da mitologia do sagrado. Nesse sentido, observamos que a concepção, em nossos dias, de mitologia (coleção de histórias baseada em mitos criados pelo homem) correspondeu para o povo grego, por exemplo, à religião. Por conseguinte, correlacionando a mitologia grega ao catolicismo, temos que Jesus Cristo ainda hoje é considerado como a representação do „deus vivo‟ na concepção de todos os cristãos. Posto isso, poderíamos nos perguntar: caso conseguíssemos, enquanto indivíduos, incorporar todos os valores cristãos, não se tornaria o próprio Cristo um mito histórico? (Leach, 1983). Para uma melhor compreensão do fenômeno, devemos considerar que os rituais religiosos são instrumentos que dão margem a uma forma de comunicação, algo 9 que a ciência antropológica já sustentava há algum tempo. Essa idéia foi ainda mais aperfeiçoada tomando-se de empréstimo o trabalho dos etnólogos que salientavam o fato de muitas espécies apresentarem um comportamento padronizado de cultura. Esse procedimento foi chamado de ritual, e estes são instrumentos de comunicação utilizados pelo homem entre os membros de uma etnia ou grupo social (Durkheim, 2003). Ainda sobre os rituais, podemos dizer que esses servem como atenuantes contra o eterno medo da morte; quanto à definição pessoal no que tange a escolha sobre em qual lado lutar no eterno conflito entre o bem e o mal; bem como, para responder a perguntas clássicas como: quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Nesse sentido, considere-se também a afirmação do cientista social Émile Durkheim (idem, p. 279), onde aquele que tem fé pode mais. Na Sociologia, porém, a religião se torna objeto porque desempenha funções sociais a partir da compreensão do ser, do indivíduo. Antonio Gramsci afirmara: O mal está no interior do homem; existe em cada homem, por assim dizer, um Caim e um Abel que lutam entre si: é preciso, se quer eliminar o mal do mundo, que cada um vença o Caim que tem em si e faça com que triunfe o Abel: o problema do „mal‟, portanto, não é político, ou econômico-social, mas „moral‟ ou „moralista‟. De nada vale modificar o mundo exterior, o conjunto das relações: o que importa é o problema individual moral. (1978:322). De um outro lado, a ciência sabe que não pode definir, desde sempre e para sempre, o que é verdadeiro, mesmo que o que podemos chamar de totalitarismo da ilusão religiosa, seja neutralizado pelo método científico. Todavia, ressalvamos que a prática antropológica é sempre permeável de circunstâncias e ajustamentos que estão além do empirismo como bem sabem nossos pares. O homem concebe o sagrado porque só este pode dar um mínimo de sentido ao milagre. Se o indivíduo não sabe, nem tem como explicar a miraculosa propriedade do que lhe acontece em torno de criações, recriações e transformações, só um Deus, ou posteriormente, uma instituição religiosa, poderiam explicar a quem ou ao o quê recorrer com o objetivo de entender o que se passa no terreno da recriação permanente do mundo. Observemos que, mesmo que ainda de forma incipiente, Claude Lévi-Strauss (1986) afirmara que „a religião seria apenas a expressão da relação de distância que separa o que conhecemos do que ainda não conhecemos ou poderemos conhecer‟. 10 - Instituição religiosa e sociedade. Permitindo-nos a uma breve análise sobre a sociedade ocidental, encontramos no autor Louis Dumont (2000), um importante trabalho no qual o mesmo correlaciona diferentes sociedades e encontra problemas na idéia de consciência coletiva. Para ele, essa idéia de consciência funciona como um provedor de mudanças e interferências na sociedade, explicando que o social está presente no espírito humano e também afirmando que o individualismo é uma criação da própria sociedade. Existiria ainda, entre nós, um processo organizacional que envolve o conceito de hierarquia, processo presente nas sociedades modernas e que para Dumont é uma idéia universal. Desnaturalizando a idéia de indivíduo, o autor nos leva a refletir sobre os aspectos reguladores de sociedades e suas instituições, em específico, aquelas com finalidades religiosas, servindo-nos como aporte na tentativa de melhor entender como se daria a relação entre indivíduo-sociedade e reguladores sociais no campo de investigação por nós trabalhado. Para melhor conceituar seu argumento, Louis Dumont se vale de uma estratégia de análise que considera a existência de uma unidade humana onde, para se analisar a sociedade universal, precisar-se-ia analisar o particular, o micro e sua diversidade (idem, p.238). Seria assim, apenas através deste processo, que se garantiria o necessário olhar antropológico sobre a sociedade. Explica: No tipo moderno de cultura, basicamente, o valor está mais ligado ao indivíduo, estando a Filosofia mais voltada aos valores individuais em contrapartida à Antropologia, que se voltaria mais aos valores sociais (...). Valor designa algo diferente do ser, algo que, distinto da verdade científica, que é universal, varia muito com o meio social e até no seio de uma sociedade dada não só com as classes sociais, mas também com os diferentes setores de atividades e experiência (ibidem: 240-41). Podemos identificar a necessidade de desmistificar a idéia ocidental e moderna de individualismo como um dos eixos de análise deste estudo, pois, na sociedade analisada, as idéias de igualdade e liberdade focam-se no indivíduo, havendo assim, uma superioridade deste segundo elemento em relação ao primeiro (a sociedade e seus 11 órgãos reguladores) – este, mais adiante será analisado – considerando-se as transformações das sociedades modernas e o seu conseqüente processo de secularização. Percebemos que a relação existente entre praticantes de uma religião e instituição reguladora, também foi pensada por estudiosos que viram no processo de modernização social um iminente processo de secularização da sociedade - como avaliaram as pesquisadoras Daniele Hervieu-Léger (1997) e Cecília Mariz (2006). Em um momento anterior, defendeu-se a idéia de que com a modernidade, os indivíduos passariam de um estágio de submissão - àquilo que é tido como desconhecido, sobrenatural e sagrado - para um estágio de autonomia e controle de suas ações mundanas. Pensava-se que, com o desenvolvimento dos meios de comunicação e da produção científica, poder-se-ia obter uma formação social que levasse os indivíduos de maneira geral a um estágio de independência religiosa e institucional. Obviamente, não há como negar as transformações sociais pelas quais vem passando a humanidade, em específico, desde o século XIX. As revoluções industrial, científica e tecnológica têm impulsionado cada vez mais as transformações sóciourbanas de nossas grandes cidades. Deparamo-nos com um contexto diferenciado, haja vista a massificação do estilo de vida urbano que faz com que o indivíduo depare-se com problemas psicossociais relacionados à perda de referenciais simbólicos que, em um outro momento, remetiam a um estilo de vida diferente e saudosista (Gusmão, 2005). Assim, a secularização, utilizando-se do uso de uma noção weberiana, faz emergir na vida do indivíduo uma crise de sentido não antes vivida. Como define Peter Berger (1985), a experiência religiosa desempenha um importante papel seja como fator de integração social, seja como direcionamento de vida. Contudo, na contramão desse processo, também passou a ser observado um conjunto de realizações, modificações e fortalecimentos daquilo que pode ser chamado como prática religiosa. Ora, como negar o surgimento de dezenas de instituições que se propõem religiosas? Como negar a revitalização de denominações religiosas centenárias frente às mudanças psicossociais de seus fiéis? E ainda, como se analisar o nível de autonomia atingindo pelos indivíduos que procuram se utilizar de instrumentos próprios para o estabelecimento de meios de comunicação divinal particulares? Por outro lado, Berger (1985; 2001), em alguns de seus trabalhos, analisa e termina por reavaliar sua tese sobre o processo de secularização na sociedade moderna, 12 uma vez que este aspecto não deve ser predominante em relação a outros fatores, como destaca Cecília Mariz (2001). Segundo o autor, há equívocos na teoria da secularização. Para ele, a idéia de modernidade, aquela advinda do Iluminismo3, não deve ser tomada como regra ou condição essencial para o processo de formação de uma secularização uniforme, pois não se pode afirmar que vivemos em um mundo secularizado, uma vez que o mundo de hoje é tão religioso quanto antes (Berger, 2001). A secularização a nível societal não está necessariamente vinculada à secularização no nível de consciência individual. Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes, levando a grandes explosões de fervor religioso (2001:10). Como destacamos acima, a pesquisadora Cecília Mariz, em consonância com a releitura conceitual feita por Berger, analisou o que estava sendo proposto pelo teórico norte-americano, podendo constatar que, [...] na verdade, o estudioso em questão preocupa-se em esclarecer que a modernidade trouxe sim, mudanças significativas no modo de viver a religião, mas lembra também, que estas transformações se desenvolveram de formas diferentes, pois, paralelo ao enfraquecimento institucional presenciado em alguns locais, também se observara o que o autor chama de novas formas institucionais de prática religiosa, e às vezes, grandes explosões de fervor religioso (2001:26). Ainda sobre a idéia de secularização, encontramos em Daniele Hervieu-Léger uma outra análise sobre religião e sociedade. No texto: “Representam os surtos emocionais contemporâneos o fim da secularização ou o fim da religião?” (1997), preocupa-se a autora em não só entender a religião como instrumento simbólico da verdade, mas também, melhor analisar a categoria secularização, pois, os processos 3 É importante observar que o autor trabalha com o intuito de revisar um conceito específico de secularização - aquele que se refere aos trabalhos defendidos nos anos 1950 e 1960 e que se ligam diretamente aos conceitos mais fortemente difundidos pelo Iluminismo no século XVIII, seguindo ideais de racionalização da humanidade - em contrapartida ao que o próprio teórico defendeu em outros trabalhos sobre o mesmo tema a partir da análise dos trabalhos de Émile Durkheim. Ver, GUERRA, Lemuel (2002). 13 sociais pelos quais vêm passando a humanidade remetem os indivíduos e o mundo moderno a uma perda de unidade e sentido que lhes conferiam o fato de serem tidos como o reflexo de um cosmos sagrado. Segundo Hervieu-Lèger, esta crise relacional entre modernidade e religião foi por muito tempo analisada e discutida, em debates extremamente passionais promovidos por Max Weber, Talcott Parsons e Peter Berger e que Marc Henri Piault já havia classificado como um “campo de investigação do religioso que parece estar se reconstruindo a partir da renovação de crenças e de pertencimentos religiosos sobre as quais já se tinha enunciado, precipitadamente, aliás, o desencantamento” (2003:365). No entanto, a preocupação maior da estudiosa seria o de promover uma revisão do que realmente se pretende por conceito de secularização, almejando encontrar um melhor caminho para a construção de uma sociologia da modernidade religiosa. Uma perspectiva mais interessante, do ponto de vista da construção de uma sociologia da modernidade religiosa, talvez consista mais em apreender, no interior da própria tensão que manifesta entre as „tendências dessecularizantes‟ e as „tendências secularizantes‟ ativamente presentes, juntas, nas experiências de renovação emocional, algo da natureza intrinsecamente contraditória do próprio processo de secularização (...) entendendo que esta tensão entre modernidade e antimodernidade, existente no seio das comunidades emocionais, revela-se de muito significativo na relação ambivalente que os novos movimentos religiosos cristãos mantêm com a tradição das igrejas e confissões no espaço das quais se inscrevem. Por um lado, participam do „espontaneísmo religioso‟ que corresponde perfeitamente à temática da subjetividade que vem nutrindo a cultura moderna do indivíduo. Este espontaneísmo introduz elementos de ruptura com o conjunto das crenças, das doutrinas, dos saberes, das normas e das práticas obrigatórias que a própria instituição define como sendo o corpo da Tradição, cuja integridade ela preserva e cujas apropriações ela controla. É nesta direção que se pode considerar que estes fenômenos contribuem para o processo de desregulação institucional que acompanha o movimento geral da secularização (1997:44-5). - Secularização e Catolicismo Dentre as variadas religiões que podem ser estudadas pelo cientista social, eis que sempre encontraremos na religião cristã uma inesgotável fonte de análises. Focando o cristianismo ocidental, verificamos que o século XX ficou marcado por uma efervescência sociocultural que em muito modificou a relação entre indivíduos e 14 religião. No caso brasileiro, passamos pela preponderância de um catolicismo hegemônico para a proliferação e difusão de outras denominações religiosas ou ainda, para a afirmação dos que se identificam como sem-religião4. O Cristianismo sempre ocupou um importante espaço na formação cultural da sociedade ocidental. No caso brasileiro, a Igreja Católica serviu de instrumento para afirmação de um modelo social imposto com o processo de colonização, e ainda ocupa um espaço de destaque dentre as demais religiões. Percebemos que o catolicismo passou por um importante período de sua história, não só no contexto mundial, mas também, no caso específico brasileiro, quando na década de 1960, aconteceu o Concílio Vaticano II5. Considerados os aspectos culturais da sociedade brasileira, observa-se a forte influência que o catolicismo exerce quando de sua inserção no cotidiano dos fiéis, principalmente através de suas paróquias, modificando diretamente, o tipo de relações sociais entre esses elementos. Percebe-se também que o transcorrer dessa relação não se dá por uma via de mão única e que características de várias outras formas de praticar o catolicismo podem ser observadas entre os grupos que o adotam como religião. Todo esse cenário de mudanças foi em muito estudado pelos cientistas sociais brasileiros, e a partir desses estudos, podemos apontar para aquelas que seriam as principais características do cenário religioso brasileiro, dentre elas: 1ª) conflitos entre o processo de secularização frente ao fortalecimento da adoração religiosa individual ou por intermédio institucional; 2ª) um viés de pluralidade religiosa diante do declínio de uma religião hegemônica; 3ª) um sincretismo religioso muitas vezes propagado como harmônico, mas que tem gerado diferentes interpretações. Quanto à característica sincrética das formas de religiosidade brasileira, lembramos que não cabe neste trabalho um maior aprofundamento do tema - mesmo que facilmente pudéssemos encontrar vasto campo de investigação na comunidade por nós estudada - contudo, vale ressaltar os trabalhos já produzidos por Pierre Sanchis (1994; 2002), Cecília Mariz (2002), Maristela Andrade (2002), Patrícia Birman (2002), Ronaldo Almeida (1996), Roberto Motta (1992) e Carlos Rodrigues Brandão (1992), 4 Comparando dados quantitativos temos que em 1940, 95,2% da população se declaravam católica. Já com base no Censo de 1970, encontrávamos um percentual em torno dos 92%. Em 1991, o percentual caiu vertiginosamente para 83,3% da população e em 2000 identifica-se 73,8% da população brasileira como católica. 5 Como observou Reginaldo Prandi (1997:30), “esse processo de um lado significou importante passo na direção de uma elaboração teológica para os problemas sociais, a Teologia da Libertação; de outro, formou a trilha mais conservadora que veio a dar na Renovação Carismática”. 15 entre outros, que apontam para iniciativas de se entender como o catolicismo „hegemônico brasileiro‟ sempre esteve imbricado de outras devoções. No que se refere ao conflito existente frente ao processo de secularização da sociedade ocidental, acreditamos termos introduzido nosso leitor nessa discussão, considerando sua importância para a formação de um contexto sociocultural urbano bastante diferenciado no século XX. Diante dessas considerações e ressalvas, passemos a analisar o perfil da religiosidade brasileira: suas mudanças, pluralidade e especificidade. - Campo religioso brasileiro A par de uma oferta religiosa mais diversificada, estamos vendo formar-se em nossa terra um contingente cada vez mais numeroso de desencaixados de qualquer religião, desfiliados de toda instituição religiosa, desligados de toda e qualquer autoridade religiosamente constituída, e essa é a melhor parte da história (Pierucci, 2004:17). Em estudos recentes, Antonio Flávio Pierucci preocupou-se em entender como os efeitos da modernidade e secularização poderiam de fato transformar o cenário religioso brasileiro. Constatou inicialmente, que diante de tais mudanças sociais foi o catolicismo que saiu como maior perdedor dentro do processo, pois tal religião viu sua hegemonia eclesiástica ceder espaço não só para o culto a outras denominações, como também, presenciou o crescimento de uma parcela da população que se dirigia não só para uma experiência ritualística individualizada, mas também, para a autodeclaração de não necessitar de algum tipo de prática religiosa. Em seus trabalhos, o autor afirma que ao se pensar em desenvolver uma sociologia da religião brasileira, a mesma não pode deixar de ocorrer sem considerar o declínio da religião católica. Situada com o que ocorria de transformações sociais no mundo, a academia brasileira procurou, mais especificamente nas décadas de 1950 e 1960, desenvolver uma leitura revisionista do que já havia sido realizado. Esse revisionismo terminou por consagrar-se na década de 1970, quando se deixou de estudar tão somente o catolicismo como religião oficial brasileira e consideraram-se outras 16 perspectivas de estudo. Baseado no trabalho de Procópio Camargo (1973), o autor considerou que [...] a sociologia da religião no Brasil (...) desde o início, teve que ser posta em termos não simples. Secularização sim, mas com mobilização religiosa acrescida. Efervescência religiosa sim, mas por causa do aprofundamento da secularização (2004:21). Sobre a temática proposta, as pesquisadoras Cecília Mariz e Maria das Dores Machado reafirmam a identificação de duas tendências que marcam o processo de transformação da religião no Brasil. Estas tendências se referem ao crescimento de pentecostais e daqueles que se identificam como sem religião, conforme já destacamos. Contudo, vale salientar que, em seus trabalhos, as pesquisadoras preocuparam-se em revelar algumas das estratégias utilizadas pelas instituições religiosas tradicionais no intuito de promover uma maior institucionalização de suas ações, ou até mesmo, um resgate desse controle frente às mudanças sociais vigentes. O debate que busca relacionar a globalização com a cultura e, em particular com a religião, tem apontado não só para a „banalização das fronteiras religiosas‟, como também para um reforço à tendência de privatização das escolhas religiosas com a correspondente secularização do espaço público. Estes dois processos são inter-relacionados. Se, por um lado, percebe-se esta „banalização das fronteiras‟ na crescente dificuldade, por parte das religiões tradicionais, em regular e manter seus adeptos dentro dos „limites seguros e estáveis de seus sistemas de crenças‟, por outro, esta se explica pela crescente subjetivação da religião. O indivíduo não mais atribui autoridade a uma instituição para limitar ou definir o conteúdo de suas crenças. O pluralismo religioso é, assim, reforçado, mas ganha um caráter distinto desde que o papel da instituição é enfraquecido (1998:37). Uma das principais preocupações de nossas autoras foi entender como pentecostais e católicos se apropriaram de estratégias que pudessem condicioná-los diante do novo quadro de religiosidade apresentado no Brasil. Observaram que no caso dos católicos, o levantar de uma bandeira que apontava para a necessidade de ligação de seus fiéis a uma instituição pareceu ser o melhor argumento frente aos processos iminentes de secularização e divisão de fiéis. Nesse caso, o que se viu foi o 17 fortalecimento de alguns dos grupos de leigos que serviram como instrumentos fundamentais para tal retomada, “pois a queda evidente na proporção de católicos parece estar sendo acompanhada por um relativo reavivamento religioso, e mais ainda por uma intensificação da diversidade na experiência de ser católico” (Mariz, 2006:53). Propondo-se a uma revisão do que já foi trabalho com o catolicismo, Mariz analisa o trabalho de Lemuel Guerra (2000; 2003), onde o mesmo apostaria na teoria do reavivamento com base nos trabalhos de Rodney Stark e Lawrence Iannaccone (1994), uma vez que, esses criticaram a teoria de mercado religioso proposta por Peter Berger (1985) que, por sua vez, não se preocupou em explicar o que poderia ser considerado como aumento da mobilização religiosa frente aos processos decorrentes da modernidade. O modelo de Berger sugeria que a maior pluralização estaria relacionada com a secularização e menor religiosidade. No paradigma do mercado religioso de Stark e Iannaccone se argumenta que a competitividade criada por uma situação de pluralismo religioso fomentaria a participação confessional, ou seja, maior mobilização religiosa (2006:55). Diante desse quadro de novas formações, onde religião e modernidade se tensionam, sem exclusão, e às vezes, com reforço do religioso, qual seria o formato desse novo perfil católico brasileiro? Pesquisas recentes vêm apontando para o que já foi levantado neste trabalho e indicam para uma diversidade de práticas religiosas dentro do próprio catolicismo. Faustino Teixeira (2005) parte para uma classificação que condicionaria o catolicismo como: 1) santorial; 2) erudito ou oficial; 3) o dos reafiliados, marcado pela inserção em um „regime forte‟ (CEB‟s, RCC, etc.); e 4) um midiático emergencial. Neste sentido, considerando o trabalho realizado por Cecília Mariz, constatamos a existência de pelo menos dois pólos de prática católica que podem, por vez, englobar a classificação anterior: 18 Por um lado, não somente continua forte um catolicismo popular autônomo expresso em festas tradicionais variadas, devoções aos santos com práticas de estilos mágicos (...) por outro, a própria hierarquia tem proposto discursos e práticas diversas, e por vezes discordantes, através de suas distintas „campanhas culturais‟, como foram os casos da Teologia da Libertação e da Renovação Carismática (2006:56). Essas duas formas de atuar do catolicismo brasileiro apontadas por Cecília Mariz, remetem-nos diretamente ao que passamos a identificar como os pólos de vivência católica presentes na comunidade do Morro da Conceição. A comunidade citada, devido a sua importância e simbolismo socioreligioso e político, esteve sempre envolvida em uma espécie de laboratório de prática de pesquisa que comprovaria todas as mudanças ocorridas nas religiões mundiais e no Brasil. De fato, as transformações ocorrem e o Morro da Conceição é um exemplo prático desse processo. Frente às mudanças estruturais e estruturantes, precisou a comunidade católica recriar-se e se autoidentificar, ressalvando-se que isso não necessariamente a condicionou a uma prática religiosa homogênea. Observa-se nesse caso, que há uma relação simbólica entre a representação de Nossa Senhora da Conceição e a Igreja Católica, bem como entre padres (antigos e novos) e leigos, e que essa relação norteia tal comunidade. O que se observa é que essas relações, marcadas por conflitos, disputas e tensões, acirraram-se ao ponto de a simples tentativa de se classificar a comunidade católica do Morro da Conceição, passar por uma divisão de titularidade, pois, se fôssemos questionados a respeito de alguma informação sobre a comunidade católica do morro, eis que responderíamos com outra questão: qual comunidade católica específica? A que está ligada à igreja oficial ou a que realiza atividades paralelas a ela (no caso, a Igreja de Resistência e Fé)? Ou ainda, estaríamos falando do grupo de fiéis que pratica sua devoção de maneira autônoma ou daqueles que a praticam segundo seus reguladores (líderes) religiosos? Nesse sentido, como característica diferenciada e instigante da comunidade, podemos constatar a existência do que identificamos como o terceiro pólo de representação católica no Morro da Conceição, e que é formado pela participação dos fiéis nas práticas do Catolicismo Popular. Esses devotos de Nossa Senhora visitam, convivem ou moram no morro, sem necessariamente estarem ligados a membros dos grupos religiosos existentes. Os representantes autônomos são devotos, peregrinos e 19 pagadores de promessas, bem como, representantes do ainda desestruturado turismo religioso local. Esses, indiferentes a qualquer querela histórica, política, simbólica ou institucional, compõem o maior número de pessoas encontradas no cotidiano do campo religioso estudado, correspondendo a grande maioria dos fiéis católicos da comunidade. - A comunidade católica do Morro da Conceição Passemos a observar então, o campo religioso citado, inserido nas dificuldades socioeconômicas enfrentadas por comunidades brasileiras de baixa renda que têm como características comuns: a habitação nas áreas de morro, o alto nível de desemprego e a conseqüente desocupação de seus moradores, dentre outros. Assim como em outras áreas, também no Morro da Conceição, tais dificuldades influenciam o crescimento do mercado informal, concentrando, por sua vez, atividades rotineiras do tipo: levar os filhos à escola, comprar alimentos ou realizar atividades de lazer, em torno do centro do bairro6. Manuel M. Marzal, explica que: “a simples proximidade entre casa e templo de denominação religiosa influencia diretamente a procura pela instituição por parte da comunidade” (2000:68). Identificamos a partir disto, a comunidade do Morro da Conceição que se constitui como um dos principais centros comunitários de atividades políticas, culturais e religiosas da cidade do Recife7. Identificada a comunidade religiosa citada, procuramos concentrar nossas análises considerando a existência de pólos de atividades católicas ligadas à Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Nesta dissertação, apresentamos como ocorre o processo de convivência, bem como, a constituição de redes de sociabilidade entre os fiéis católicos do Morro da Conceição, pois, na comunidade, existem três pólos de atividades religiosas. O primeiro seria aquele que está ligado ao atual pároco da igreja, pe. Josivan Sales que, atualmente, representa os interesses da igreja oficial e relaciona-se com outros variados grupos católicos que, naquela igreja, realizam atividades (dentre eles: os 6 Ver MAFRA, Clara (2003). A Habitação do Morro: impressões de moradores de duas favelas do Rio de Janeiro sobre religião e espaço público. Religião e Espaço Público, BIRMAN, Patrícia (org.). 7 Tentemos desenhar um perfil social e estatístico da comunidade: Área: 0,37 km com uma densidade de 248,15 hab./ha.; 10.142 é número total de habitantes sendo os mesmos englobados nas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis); Número de domicílios: 2.570; distância do marco zero da cidade: 6,8 km; Estudo sobre chefes de família: a) com menos de quatro anos de estudo: 15,6%; b) com mais de 11 anos de estudo: 2,2%; c) sem rendimento mensal: 10,9%; d) com até um salário mínimo: 37%; e) Renda média: R$ 284,30. Fonte: Atlas Municipal do Desenvolvimento Humano no Recife (2000). 20 grupos ligados a Legião de Maria, Apostolado da Oração, Renovação Carismática Católica, Terço dos Homens, Vicentinos, Pastorais e outros). Em contrapartida, encontramos o pólo que está ligado ao pe. Reginaldo Veloso, caracterizado pela participação de antigos leigos discípulos das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s) e que após o afastamento do padre da paróquia do morro, decidiram continuar, a partir da constituição da Igreja de Resistência e Fé, atuando de forma paralela às atividades da igreja oficial. Ainda existe o pólo que, independe de qualquer liderança ou instituição e identifica-se com as práticas do Catolicismo Popular. Todavia, há de se ressalvar que, havendo a necessidade de execução de algum tipo de ação mais oficial na relação entre o fiel e a Santa da Conceição (casamentos, missas, batizados etc.), os membros do último pólo tendem a procurar as lideranças eclesiásticas oficiais do primeiro pólo8. Nesse sentido, considerando as diferentes formas de atuar dos citados fiéis católicos, destacamos o que ressalva o pesquisador Marc Piault: Percebemos então como o modelo hierarquizado e centralizado da Igreja Católica, usualmente transposto para as representações e as práticas políticas, é desconstruído por intermédio de comunidades que questionam as modalidades práticas por meio em que a fé se expressa no cotidiano (2003:368). Observe-se ainda, a influência que as lideranças religiosas – leigas ou eclesiásticas – exercem sobre os fiéis, observando a apresentação de tendências ideológicas, estratégias de desenvolvimento aplicadas, os conflitos de interesse e as suas formas de convivência, pois, nesse contexto, situa-se uma das questões essenciais ao pesquisador: a necessidade de entender até que ponto a devoção e a representação de Nossa Senhora da Conceição, aproximam ou afastam os grupos de fiéis católicos do Morro da Conceição, considerando que “a religião é sempre e a pleno título uma forma operante de conhecer e organizar a vida e o mundo e que por isso é uma ideologia em sentido amplo” (Durkheim, 2003:192). Todavia, mesmo considerando que o argumento de Émile Durkheim seja o de destacar que a religião serviria como instrumento de união 8 Há de se ressalvar novamente, que as conclusões apresentadas aqui, são oriundas de um intenso trabalho de campo realizado durante os anos de elaboração da dissertação de mestrado que serviu como base para elaboração desse artigo, e que já foi aqui citada. Dessa maneira, destaca-se a necessidade de novas análises quanto a esta convivência socioreligiosa, considerando-se que houve uma significativa mudança no campo religioso estudado, representada pela alternância de poder na Arquidiocese de Olinda e Recife, com a chegada de dom Fernando Saburido, no último ano. 21 entre os indivíduos, objetivamos entender se o simbolismo e cultos atribuídos à Santa da Conceição, agregam ou desagregam os fiéis católicos que convivem com a comunidade. REFERÊNCIAS ANDRADE, Maristela Oliveira de. 500 anos de Catolicismos e Sincretismos no Brasil. João Pessoa. Ed. 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A pesquisa foi exploratória, bibliográfica e documental, tendo como técnicas de coleta o registro fotográfico, a ficha de registro de campo e observações sistemáticas. Como percurso metodológico, entendemos ser as estratégias comunicacionais contidas nas peças de merchandising em PDV de empresas públicas e privadas um elemento folkcomunicacional. Desta forma, elas exercem uma função social e são mais um instrumento midiático, a partir da fotografia, que detecta concepções culturais mediante metalinguagens (gráfica, icônica), metáforas, recursos de construção e figuras de pensamento. Como suporte de uma comunicação verbal e não-verbal, acreditamos que o PDV revitaliza os dados 1 Jornalista, Radialista, Especialista em Comunicação e Marketing, Mestre em Extensão/Comunicação Rural e Desenvolvimento Local (Posmex/Ufrpe), Professor Universitário, Pesquisador da Rede Folkcom. E-mail: [email protected]. 2 Jornalista, Radialista, Especialista em Turismo Cultural, Mestranda em Extensão/Comunicação Rural e Desenvolvimento Local (Posmex/Ufrpe), Pesquisadora da Rede Folkcom. 3 Publicitário, Especialista em Marketing, Mestrando em Extensão/Comunicação Rural e Desenvolvimento Local (Posmex/Ufrpe) 4 Pedagoga, Mestre em Comunicação Social (Universidade Metodista/SP), Doutora em Comunicação (Salamanca/Espanha), Professora do Programa de Mestrado Posmex/Ufrpe, Presidente da Rede Folkcom. 27 históricos na memória dos consumidores, reforça a imagem e marca dos produtos impressos nas bandeirolas, targets e banners, permitindo complementar subliminarmente o que o texto escrito não revela em imagens persuasivas. Palavras-chave: Folkcomunicação, Cultura Popular, Educação, Propaganda, Identidade. Abstract: This exploratory study analyzes popular culture expropriation of alimentary products through Folkmarketing theory, exploring point of purchase (POP) merchandising of major food companies during "junina" parties in 2009, in Recife, Pernambuco, Brazil. As the starting research problem, we ask if by advertsing their products with themes alluding to "junina" parties these companies expropriate popular culture. Our aim is to analyze how popular culture expropriation happens in the mass media context, using Folkcommunication theory and its variant, Folkmarketing, as well as the relationship between popular culture, education and merchandising in a case study. The research was exploratory, bibliographic and documentary, having as data recollection technique photography, field journal and systematic observation. As methodological strategies, we believe that communication strategies present in POPs is a folkcommunication element, exerting a social function, detecting cultural conceptions that can be understood through its metalanguage (graphical, iconic) and expressing metaphorically thought's images and processes. Thus, they must be analyzed in their own discourse as support for verbal and non-verbal communication that recomposes a past time and historical knowledge in consumer's minds, reinforcing product branding present in merchandising resources and complementing what written text can't reveal in persuasive images. Key words: Folkcomunication, Popular Culture, Education, Propaganda, Identity. 28 Introdução Bastante festejado no mês de junho no interior dos Estados do Nordeste do Brasil, o ciclo junino ao misturar sagrado e profano não somente atrai turistas para a festa por ter adquirido ares massivos, mas é alvo de estratégias de ações mercadológicas por parte de empresas públicas e privadas nacionais e estrangeiras, entre elas Coca-Cola, Sadia, Vitamilho e Yoki. Isto porque o São João também é comemorado nos centros urbanos, movimentando o comércio com as temáticas da cultura popular do período e tem importância econômica e cultural do São João para a região. Percebemos, então, que o ciclo junino tem sido apropriado por essas instituições com objetivos mercadológicos para maior visibilidade de seus produtos e serviços. A apropriação da cultura local por diversos segmentos empresariais em ações mercadológicas tem sido pesquisada no âmbito do folkmarketing pelo professor Severino Lucena Filho (1997, 2007). Porém, este breve estudo de caso pretende verificar como a cultura popular é tratada por tais campanhas mercadológicas, em especial pelo merchandising. Diante disso, indagamos se ao divulgarem seus produtos com temática alusiva aos festejos juninos, via propaganda, as empresas expropriam a cultura popular? Ainda buscamos elementos para conseguir analisar os seguintes objetivos: identificar elementos de expropriação da cultura popular no merchandising de supermercados, verificar se essa forma de atuação da propaganda contribui para a educação do povo no tocante à cultura popular e visualizar formas de identidade e pertencimento nessas campanhas. O nosso referencial teórico está estabelecido na folkcomunicação e também em teorias que norteiam a cultura popular, educação, identidade e propaganda. O nosso caminho metodológico está alicerçado no método Estudo de Caso (Yin, 2005), sendo uma pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa e a coleta de dados realizada mediante observações sistemáticas, registro fotográfico e fichas de registro in loco. O corpus foi formado por merchandising e propagandas da Coca-cola, Sadia, Vitamilho e Yoki, empresas de alimentação que realizaram suas campanhas em diversos supermercados do Recife. Na análise, fizemos o confronto das teorias com a realidade empírica pesquisada. Na conclusão, temos 29 um esboço da expropriação no campo da cultura popular e as abordagens comunicacionais das organizações. O São João é a principal festa do solstício de inverno. Inicialmente uma festa pagã de comemoração da colheita, o catolicismo se apropria dela e acrescenta o culto a São João Batista para torná-la sagrada. Na véspera do dia 24 de junho (São João), no Nordeste do Brasil fogueiras são acesas, queimam-se fogos e surgem comidas de milho, como a canjica e a pamonha. Dos festejos juninos também fazem parte Santo Antônio, 13, e São Pedro, 29. (Araújo, 2007). A Teoria da Folkcomunicação (1967) é de autoria do jornalista pernambucano Luiz Beltrão, que analisou a comunicação popular como manifestação própria de um grupo marginalizado que atuava como retransmissor ou decodificador de mensagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa. (Beltrão, 2001). O jornalista brasileiro de Pernambuco Luiz Beltrão atuou no Diário de Pernambuco, o mais antigo em circulação na América Latina, foi pioneiro também na fundação do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, responsável pela fundação do Instituto de Ciência da Informação – ICINFORM (1963), e da primeira revista de Comunicação (1965), Comunicações & Problemas. A Teoria da Folkcomunicação faz parte da primeira tese de doutorado em comunicação, defendida em 1967 pela Universidade de Brasília A proposta original de Luiz Beltrão está vinculada à formulada por Katz e Lazarsfeld5 como Teoria da Comunicação, nos paradigmas do fluxo comunicacional em duas etapas, e depois ampliada por Wilbur Schramm6, na teoria da comunicação em múltiplas etapas. Beltrão observou que, no Brasil, havia simultaneamente o sistema de comunicação massiva e os grupos primários, receptores das mensagens midiáticas, e entre eles um sistema mediador, 5 O modelo comunicacional de Lazarsfeld considera os líderes de opinião, pessoas capazes de influenciar individualmente e coletivamente as pessoas, de uma maneira informal os seus comportamentos, em camadas sociais distintas. Ele questiona o modelo de Lasswell (1948) no tocante à passividade do receptor da mensagem. Considera que a mídia, através do excesso de informação pode levar ao alheamento, mas não a um poder hipnótico e alienador sobre os receptores. 6 O modelo comunicacional de Schramm percebe a comunicação como um todo. Considera que o emissor e o receptor sempre se situam em campos de experiência, ou seja, um conjunto de vivências sociais e culturais adquiridas na vida cotidiana. A mensagem liga um campo a outro. Há produção de sentidos. Menciona o feedback ou retroalimentação. Quanto mais experiência comum, mas a mensagem é retroalimentada. 30 denominado folkmidiático. Tais manifestações populares tinham tanta importância comunicacional quanto as massivas. Tratam-se dos processos de comunicação popular, preservados pelas comunidades rústicas do Brasil rural e dos subúrbios metropolitanos (festas, folguedos, repentes, literatura de cordel), que operam como recodificadores das mensagens da grande mídia. Logo, é na proposta de Beltrão que tais manifestações culturais constituem-se em objetos de estudo em si mesmos. (Marques de Mello, 2008). Para Beltrão (2001, p.79), “Folkcomunicação é, assim, o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, idéias e atitudes da massa, através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore”. Segundo Hohlfeldt (2008), esse conceito vem sendo ampliado, passando a folkcomunicação a ser entendida como: O estudo dos procedimentos comunicacionais pelos quais as manifestações da cultura popular ou do folclore se expandem, se sociabilizam, convivem com outras cadeias comunicacionais, sofrem modificações por influência da comunicação massificada e industrializada ou se modificam quando apropriadas por tais complexos. (Hohfeldt, 2008, p.82). No contexto desta nova abrangência, surge o folkmarketing7 „como uma estratégia comunicacional cujo suporte simbólico na gestão do processo de comunicação reside na apropriação de elementos da cultura folk pela cultura de massas e pela cultura erudita (Lucena, 2007a) e ainda dentro do segmento da indústria massiva, onde as festas populares convertem-se em: Conteúdo midiático de natureza mercadológica e institucional, via apropriação do universo simbólico da festividade, como estratégia comunicacional, pelas empresas que são parceiras/gestoras e patrocinadoras dos eventos culturais. (Lucena, 2007b, p. 90). 7 Segundo Muylaert (1993) apud Lucena Filho (2004, p. 62), o marketing cultural é uma das ferramentas de comunicação mais seguras para que o produto associado a determinado evento tenha reforçada a imagem desejada”. O folkmarketing emerge do quarto P (promoção) da tese básica do Marketing, quando utiliza-se das manifestações folclóricas e elementos das culturas populares como tema central e estratégia comunicacional. 31 Através do folkmarketing, as organizações públicas e privadas identificamse com seus públicos-alvos, falando a mesma linguagem e mostrando as imagens que eles querem ouvir e ver, fazendo assim com que percebam os valores que querem agregar para suas marcas e produtos. Fator reforçado por Benjamin (2004), quando justifica que “os processos comunicacionais que ocorrem na preparação, realização e no tempo que sucede à festa são muito variados, indo desde a comunicação interpessoal, grupal até a comunicação de massas”. Ainda na festa, observa-se a apropriação pelos órgãos de Governo dos rituais, folguedos e danças de natureza comunitária, para convertê-los em espetáculos de massa e atração turística. E também a expropriação da cultura popular8. Neste sentido, destacamos a importância da cultura no processo folkcomunicacional pretendido para o São João, abordada por Cascudo: A função de qualquer cultura é sempre o resultado da participação humana e em seu serviço. Estuda-se, evidentemente, a criação, desenvolvimento e transformação do esforço humano para adaptar-se e conquistar o ambiente em que vive. (Cascudo, 1983, p.114). Partindo do pressuposto de que, na sociedade moderna, a convivência entre pessoas, famílias e sociedades exige negociações entre os diferentes, as mediações passaram a ser um instrumento importante de reconfiguração das interações comunicacionais e culturais. Reforça tal opinião Trigueiro (2006): Com a globalização da comunicação, ao invés da tão propagada homogeneização cultural, do desaparecimento das culturas locais e das culturas tradicionais o que estamos vendo é uma nova ressignificação das manifestações locais e conseqüentemente do nosso folclore, das culturas populares (Trigueiro, 2006, p.153) 8 Segundo Benjamin (2004, p.83), o termo “expropriação traz para o estudo da cultura popular o sentido de exploração econômica predatória.” 32 Estamos, portanto, em pleno processo de transmutação da nossa identidade cultural. Opinião compartilhada pela pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco e coordenadora do Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior, Rúbia Lóssio: “Assim, a cultura de massa, envolvida num processo do contexto urbanoindustrial, reprocessa a cultura através da tecnologia da informação, resultando em uma nova maneira de enxergar a cultura”. (Lossio, 2004, p.8). Além de verificar a relação entre a teoria beltraniana com a cultura popular, também cabe aqui neste breve estudo verificar o entrelaçamento da folkcomunicação e a educação. Portanto, resgataremos dos estudos de John Dewey (1959), filósofo norte-americano e um dos fundamentadores teóricos da Escola Nova, em 1916, em Educação e Democracia, o conceito de educação como uma necessidade da vida, um processo de transmissão de conhecimentos dos mais velhos para os mais novos. O autor ainda nos relata que a sociedade não somente assegura a sua continuidade por transmissão, mediante comunicação. Em seu sentido genuíno, sociedade é, pois, comunicação ou mútua participação. Ora, segundo Dewey, comunicação é educação. Nada se comunica sem que os dois agentes em comunicação – o que recebe e o que comunica – se mudem ou se transformem de certo modo. Quem recebe a comunicação tem uma nova experiência que lhe transforma a própria natureza. Quem a comunica, por sua vez, se muda e se transforma no esforço para formular a sua própria experiência. (Dewey, 1959). Beltrão reconhecia nos agentes de folkcomunicação, nas sociedades rurais ou periféricas, um caráter nitidamente institucional. Para Beltrão (1967), cultura é produzida em um meio determinado, a partir da participação ativa dos integrantes de um grupo social específico. É esta cultura que confere coesão social a tal grupo, permitindo o compartilhamento de suas crenças, de sua "leitura do mundo". Pedro Demo (1996), lembra ainda que a “cultura constitui o contexto próprio da educação, porque é motivação fundamental de mobilização comunitária e quadro concreto da criatividade histórica” (Demo, 1996, p.58). A propaganda é considerada um meio pelo qual produtos e serviços são direcionados a seus públicos de interesse utilizando uma linguagem persuasiva. 33 Propaganda exerce uma função adjetiva e expressa a idéia de dever, de necessidade, de algo que deve ser propagado. (Sandmann, 2007). A propaganda tem um discurso próprio de atuação que pode ser feita através de uma comunicação mercadológica ou organizacional. A linguagem da propaganda se reveste de funções, que segundo Sandmann (2008) são três: 1) Informativa; 2) Persuasiva (sedução); 3) de Lembrança. A propaganda está estabelecida, atualmente, no contexto mais amplo da comunicação, ou seja, na comunicação integrada de marketing, tendo como objetivos conseguir novos clientes, fidelizar os clientes existentes, neutralizar ações da concorrência, trabalhar de forma planejada, promover ações comerciais e institucionais. (Tavares, 2009). Focando a realidade do nosso objeto de pesquisa, no caso as ações mercadológicas em ponto-de-venda (PDV), consideramos para a análise do nosso corpus de estudo o merchandising, sendo considerado “um conjunto de técnicas responsáveis pela informação e apresentação destacada dos produtos nas lojas, de maneira tal que acelere sua rotatividade.” (Blessa, 2009, p.08). Ainda segundo a autora, merchandising é uma técnica, ação ou material promocional usado no ponto-de-venda que proporcione informação e melhor visibilidade a produtos, marcas ou serviços, com o propósito de motivar e influenciar as decisões de compra dos consumidores. As lojas, supermercados, shoppings são considerados lugares de consumo e a disputa pela mente, coração e dinheiro do consumidor é travada no âmbito das estratégias de marketing e propaganda. A ambientação caprichada pode levar à persuasão do consumidor. “O merchandising visual [...] cria o clima decorativo para ambientar os produtos e a loja.” (Blessa, 2009, p.06). Nesta direção, reafirmamos o uso crescente dos elementos da cultura local para justamente dar maior visibilidade às mercadorias, utilizando-se do folkmarketing. Ainda mais quando, no Brasil, 81% das decisões de marca são tomadas nos pontos-de-venda, como supermercados e hipermercados. (Popai, 2007). Foi realizada uma pesquisa exploratória, bibliográfica e documental nos supermercados de Recife, Pernambuco, 34 Brasil das redes Carrefour, Hiperbompreço e Extra. Para execução da mesma foi utilizada a prática da metodologia participativa, sendo proposto o método estudo de caso de Yin (2005). Como instrumentais utilizamos o registro fotográfico dos PDVs, bem como observação sistemática com anotações em fichas de registro in loco, que foram analisadas através do folkmarketing. Para analisar os dados coletados, dispomos da abordagem qualitativa que segundo Oliveira (2005, p.60): é uma interpretação da realidade dentro de uma visão complexa, sistêmica e holística. Para termos uma relação dinâmica entre o mundo real, objetivo, concreto e o sujeito, registramos cerca de 100 fotos, mas para análise separamos as que achamos mais contemplativas para análise. Com relação ainda à fotografia propriamente concordamos com Trigueiro (2006, p.161) ao lembrar que ela se trata de “mais um instrumento midiático” apropriado pelos produtores folkcomunicacionais, sendo um excelente dispositivo técnico que possibilita detectar uma série de configurações e concepções culturais e um suporte de comunicação que recompõe um tempo passado e revitaliza os dados históricos, permitindo “acessar dados complementares, quase sempre invisíveis, nos textos escritos e orais da realidade”. O estudo consistiu no resgate de imagens dos PDVs nos supermercados de maior circulação do Recife, PE, Brasil, durante a celebração dos festejos juninos de 2009. Trabalhamos com uma amostra de 50 fotografias de um universo de 200 imagens. O período estudado é o compreendido entre 01 a 15 de junho de 2009. Trata- se de um corte temporal suficiente para apreender as imagens mercadológicas veiculados em PDV durante os festejos juninos. A escolha dos supermercados se deu pelos critérios de maior circulação e preferência da opinião pública. O conceito de imagem não se limitou aos registros gráficos, mas também a seus conteúdos simbólicos produzidos na análise dos discursos através das metalinguagens. Neta concepção: trabalhamos com o eixo temático: tradição/inovação; territorialidade (global, nacional, regional); com as estratégias comunicacionais de informação/persuasão; texto e ilustração. Porém com relação aos referentes culturais, trabalhamos as categorias natureza da celebração junina, 35 significação comunitária do São João (pertencimento e identidade); o lugar do nordeste do Brasil no imaginário junino. (Marques de Melo,2008, p.74,75) Foto 1 – Merchandising da Sadia Foto 2 – Mascotes da Sadia Empresa alimentícia no ramo de embutidos de carne e frango, com sede em Santa Catarina, a Sadia - mesmo não tendo produtos focados para o festejo junino - utilizou-o como temática nas ações de merchandising nos supermercados do Recife presente nas bandeirolas (figura 1), típicas da época. Ainda o tradicional mascote (figura 2), simbolizado como peru Sadia, se transverte na bandinha de pífanos de Caruaru para criar laço de identidade e pertencimento com o target. Os detalhes ficam para o chapéu do cangaço e a sandália rasteira do xaxado, dança eternizada pelo bando de Virgulino Ferreira, o Lampião. Foto 3 – Merchandising da Vitamilho comemorativa 36 Foto 4 – Embalagem No caso da Vitamilho, que faz parte do tradicional grupo empresarial local ASA, apropria-se do contexto do folkmarketing simbolizado por seus produtos derivados do milho e outros cereais em barracas típicas do interior, chamadas de palhoças (figura 3). A própria embalagem (figura 4), utiliza-se do recurso de sazonalidade e imprime as bandeiras, balões e a tradicional fogueira, que são acesas, em especial, na véspera de São João. Além do mais, a xilogravura, vem ilustrando as bandeirolas da palhoça, fazendo a cultura popular emergir no contexto mercadológico de comunicação. Foto 5 – Pau-de-sebo da Yoki Foto 6 – Pé-de- moleque da Yoki A Yoki é uma organização fundada por imigrantes japoneses, no Estado de São Paulo, nos anos 60 e estabeleceu-se como fabricante de farináceos, em especial a farinha de milho, milho e a canjica. Nas ações de merchandising em PDV, percebemos o uso do pau-de-sebo (figura 5), brincadeira cada vez mais extinta nas chamadas festas interioranas. Tal abordagem remete ao imaginário das pessoas mais velhas, porém com pouco simbolismo para os mais jovens. Aqui inferimos um processo de educação via cultura popular, uma forma de trazer para um contexto massivo algo tipicamente popular. Ademais, vislumbramos tal análise na culinária, quando a Yoki traz para o seu mix de produtos o tradicional doce pé-de-moleque (figura 6), utilizando designer moderno e atrativo nas embalagens. 37 Foto 7 – Merchandising da Coca-cola Foto 8 – Lata comemorativa da Coca A multinacional americana Coca-cola também participa do arraial do consumo com ações de folkmarketing, que remetem ao identitário das pessoas. Na peça promocional (figura 7), identificamos a referência à quadrilha matuta, que mesmo estilizada na atualidade, rememora o cotidiano do interior e dos subúrbios metropolitanos. Na própria lata, em versão comemorativa, percebemos não só os elementos da nossa cultura, como a fogueira e o sanfoneiro, como o boi do norte do país. Observamos nas peças publicitárias que há uma apropriação e ressignificação das manifestações culturais e do folclore, mas ao mesmo tempo há a expropriação da cultura popular junina, pois faz parte da cultura popular trabalhar com os alimentos in-natura para confecção das suas comidas típicas e não com os industrializados. Ao se apropriarem dos elementos que fazem parte do imaginário, pertencimento das comunidades, as empresas se expropriam da cultura popular ao tentarem educar a população a prepararem a comida junina utilizando os produtos industrializados de sua marca, indo de certa forma na contramão da tradição junina. Porém, tal estratégia de comunicação mercadológica, ao utilizar-se do folkmarketing, ressignifica as manifestações locais, emprestando-lhes um valor que já se encontra presente na cultura em si mesma como motivação essencial do processo participativo. É também um processo híbrido de apreensão das culturas. Percebemos ainda que as fotografias utilizadas no merchandising dos PDV permitem detectar concepções culturais. Como estratégias metodológicas, entendemos ser as estratégias comunicacionais contidas nas peças de merchandising em PDV de empresas públicas e privadas um elemento folkcomunicacional por exercer uma função social e ser mais um instrumento midiático, a partir da fotografia, que ao detectar concepções culturais, através de metalinguagens (gráfica, icônica), nas maneiras de expressar-se, como metáforas, os recursos de construção e as figuras de pensamento (Beltrão, 2004.p.94) devem ser analisadas em seu discurso como suporte de uma comunicação verbal e nãoverbal que recompõe um tempo passado e revitaliza os dados históricos na 38 memória dos consumidores, reforça a imagem e marca dos produtos impressos nas bandeirolas, targets e banners, permitindo complementar subliminarmente o que o texto escrito não revela em imagens persuasivas. Com relação à propaganda, na tentativa de inferir um processo de educação via comunicação popular, observa-se uma linguagem persuasiva, de forte sedução, ao mesmo tempo em que, pela lembrança, reforça o imaginário das pessoas, resgatando um sentimento de pertença, que por sua vez tenta atrelar uma experiência de vida na sociedade mediante um resgate de uma forte tradição de contexto de participação popular, no caso o festejo junino. E a este processo de coesão entre folclore e comunicação, dá-se o nome de folkcomunicação, que tem sido cada vez mais pesquisado por estudiosos. Percebe-se ainda a importância da festa junina como processo comunicacional de intercâmbios metalinguísticos dos PDVs no meio mercadológico. Por fim, afirmamos que este é apenas um trabalho embrionário e deixamos pistas para futuras pesquisas e debates sobre a dinâmica da comunicação mercadológica pelo viés do estudo da cultura popular e sua formas imbricadas em uma sociedade de contexto massivo. REFERÊNCIAS. 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Luiz Beltrão: Pioneiro das ciências da comunicação no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB; Intercom 2008, p.77 LÓSSIO, R. O Uso da Tecnologia nas tradições Populares. Retirado da revista Continente Multicultural, Ano IV – nº 38, fevereiro/2004, p 7 e disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/geral/folclore/tecnologiatextos.pdf>,acessado em 04.06.2009 LUCENA FILHO, S.A. de. A festa junina em Campina Grande – PB: uma estratégia de Folkmarketing. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2007a. ______.Folkmarketing. In: GADINI, S.L; WOITOWICZ.K.J (orgs).Noções básicas de folkcomunicação: uma introdução aos principais termos, conceitos e expressões.Ponta Grossa,: editora UEPG, 2007b. _______.Do ex-voto ao folkmarketing. In: BREGUEZ, Sebastião (org.) Folkcomunicação: resistência cultural na Sociedade Globalizada. Belo Horizonte: INTERCOM, 2004. Edição do NP em folkcomunicação. p. 55 MARQUES DE MELO, José. Mídia e Cultura Popular: História, taxionomia e metodologia da folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008. SANDMANN, Antônio. A linguagem da propaganda. São Paulo, Contexto, 2000. 40 OLIVEIRA, Maria Marly.Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis,RJ:Vozes. 2008. 2ª. ed. TAVARES, Maurício. Comunicação empresarial e planos de comunicação. São Paulo: Atlas, 2009. TRIGUEIRO, Oswaldo. O ex-voto como veículo de comunicação popular. In; Schmidt, C. (org). Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos. São Paulo: Ductor, 2006. Belo Horizonte: INTERCOM, 2004. Edição do NP. 41 Realidade Simulada como Instrumento para a Publicidade de produtos na TV Digital Nilton Melo1 Ivaldir H. de F. Junior2 Resumo: O presente artigo tem como maior objetivo a análise do ambiente de jogos eletrônicos como um instrumento viável para a publicidade de produtos na TV digital. Para que esse objetivo fosse atingido foi demonstrada quantitativamente qual dimensão o negócio de videogames tomou em termos de perfil da demanda e geração de dividendos e sua atual relevância para a indústria do entretenimento. Foram sugeridas maneiras para maximizar a eficácia da publicidade no meio estudado através da forma como os anúncios são veiculados e foi apresentada uma alternativa a uma limitação técnica na capacidade de execução de jogos eletrônicos na TV digital. Palavras chaves: TV digital, videogames, publicidade. Abstract: This article aims to discuss the electronic environment games analysis as a viable instrument for the advertising of products in the digital TV. It was demonstrated quantitatively to which dimension the business of videogames took in terms of profile of the demand and generation of shares and its current relevance for the entertainment industry. We have suggested a way to maximize the effectiveness of the advertising through announcements and the way that they are divulgated. We have showed an alternative to the technique capacity limitation of electronic games execution into the digital TV. Key words: Digital TV, videogames, advertising. INTRODUÇÃO O detalhamento dos ambientes criados em videogames evoluiu de tal forma, que hoje em dia, em alguns casos podem ser confundidos com a realidade. E, se ainda não reproduzem nosso mundo perfeitamente, o desejo dos seus usuários por 1 Graduado em Administração e Mestre em Ciência da Computação. Professor da Joaquim Nabuco. Mestre em Ciência da Computação pela UFPE e Doutorando em Ciência da Computação pela UFPE e Professor da Joaquim Nabuco. 2 42 terem uma experiência tão autêntica quanto possível, fará com que essa indústria se desenvolva rapidamente nessa direção. Este desejo vem começando a chamar a atenção de algumas agências de publicidade, que, timidamente, vêm fazendo propaganda de produtos dentro dos jogos com resultados animadores, como o aumento do níveo de reconhecimento de marcas, atribuídos justamente ao desejo de simulação perfeita da realidade que os jogadores buscam. Para eles, é melhor dirigir um carro virtual de uma marca conhecida do que um carro “genérico”. A TV digital foi concebida tendo pelo menos um aspecto fundamental em comum com os videogames: a interatividade. Apesar desse aspecto já ser explorado no que diz respeito a jogos eletrônicos, os mesmos ainda são incrivelmente simples se comparados aos dos consoles de videogames ou dos apresentados em computadores, além de ainda não explorarem a questão da publicidade. Então, por que não utilizar esses jogos, que possuem a capacidade de criar realidades simuladas, como instrumento para a publicidade de produtos na TV digital, já que a sua apresentação é até desejável pelo jogador? A partir do dia 2 de dezembro, a TV digital já se tornará uma realidade no Brasil, com o início das transmissões na cidade de São Paulo. Esse marco trará uma série de desafios para os publicitários, que deverão se adaptar a uma seletividade maior (com cortes de comerciais, permitidos por gravadores digitais de vídeo, ou DVR, da sigla em inglês), implementação de aspectos interativos e investimento em novos equipamentos. De acordo com artigo intitulado À espera da TV digital (2007) publicado no sítio info exame, 41% dos usuários brasileiros de DVR da transmissora Sky já não vêem comerciais. 1. TV analógica TVs analógicas estão no mercado há mais de 50 anos. O sistema de funcionamento das mesmas permanence imutável desde a sua criação. As bases desse sistema, de acordo com Brain (2007) são: As imagens são capturadas por uma câmera de vídeo, que tira fotos das cenas na velocidade de 30 imagens por segundo. 43 A câmera transforma essas imagens em pequenos pontos individuais chamados pixels. A cada pixel é designada informação de cor e brilho. Os pixels são combinados com sinais de sincronização chamados de sinais de sincronização horizontal e vertical, para que o aparato eletrônico dentro das TVs possa decodificar a informação de como os pixels serão apresentados. O sinal que chega à televisão, já com as informações de cor e brilho de cada pixel, como também com a sincronização horizontal e vertical forma um conjunto de dados denominado de vídeo composto. O som chega completamente separado da imagem. A exibição pode ocorrer de diversas formas, sendo as mais comuns a transmissão por ondas de rádio, por meio de equipamentos, como o videocassete, ou por cabos. 1.1. Transmissão de sinal analógico Ainda de acordo com Brain (2007), os sinais sonoros e de vídeo composto, que são transmitidos em ondas sonoras contínuas, é gerado por meio de freqüências específicas denominadas de sinal AM (para imagem) e sinal FM (para o som). Os dois são codificados e enviados pelas estações de TV propagando-se pelo ar. A propagação dessa onda pode sofrer interferências, culminando em uma distorção que se reflete na qualidade de imagem ou som apresentada pelos aparelhos. Figura 1. Representação gráfica de onda de um sinal analógico. . 1.2. Qualidade da imagem na TV analógica A qualidade da imagem exibida por monitores de vídeo pode ser medida quantitativamente pelo número de pixels que apresenta. Quanto maior o número de 44 pixels, melhor a qualidade da imagem. Essa relação é denominada resolução de imagem. A resolução da imagem de uma TV analógica é de 480i. Esse padrão é definido pelo número de pontos (pixels) que existem nas telas verticalmente. A letra “i” indica que esses pontos são mostrados em linhas interlaçadas, significando que a exibição ocorre com interlaçe alternado entre linhas horizontais pretas, sem informação de imagem, e linhas com informação de imagem, provocando um efeito de oscilação. 1.3. Benefícios da mudança para a TV digital De acordo com Collins (2001), a diferença básica entre a transmissão de sinal analógico e digital é que o digital não é codificado em ondas contínuas e sim em correntes elétricas binárias (informação de zero e um) alternadas, com as informações codificadas nessas numerações. Nesse caso, o “zero” é obtido quando não há corrente e o “um” quando há corrente. Como não é uma propagação de onda sonora, está menos sujeito a interferências. Figura 2. Representação gráfica de sinal digital. . Para Robin e Poulin (2000), o primeiro grande benefício percebido na transição da TV analógica para a digital está justamente na qualidade da imagem exibida, ou em sua resolução. Enquanto que na TV analógica o padrão é 480i, na TV digital são três os padrões: 720p, 1080i e 1080p, todos definidos como alta resolução. Na prática, são exibidos muito mais pontos por polegada do que no padrão antigo, além da possibilidade da apresentação da imagem em progressive scan, que seria a letra “p” do 720p e 1080p. A diferença básica desse sistema para o interlaçado é que, enquanto no interlaçado existem linhas alternadas, no progressive, o conjunto de pixels que formam as linhas é apresentado de forma linear e progressiva, sem alternância ou efeito de oscilação. Além da resolução mais alta, o padrão da TV digital foi concebido para mostrar vídeos em aspecto widescreen, (16:9), que possuem um formato retangular, em 45 contraste com o formato quadrado (4:3) da TV analógica, resultando em um ganho de área de 33%. Figura 3. Área de apresentação de imagem da TV digital e analógica. . A última grande diferenciação entre os dois padrões que o consumido final percebe é a questão da interatividade, só possível na TV digital. 1.4. Interatividade na TV digital Para Lemos (2000), interatividade é um caso específico de interação, a interatividade digital, compreendida como um tipo de relação tecno-social, ou seja, como um diálogo entre homem e máquina, através de interfaces gráficas. A TV digital permite esse diálogo entre homem e máquina, que pode ser utilizado para alterar o que está sendo exposto na tela da TV. O sinal que carrega as imagens e sons, seja ele digital ou analógico, é somente canal de uma via, ou seja, o telespectador só recebe a informação. Para interagir com a TV digital, é necessário um canal de retorno, que pode ser obtido através de uma conexão à internet ou uma mensagem de texto enviada de um celular à transmissora. Aberto esse canal de retorno, é possível fazer votações, comprar produtos, receber informações sobre um programa qualquer ou jogar. 46 1.5. Videogames Newman (2004) define videogame como um jogo que envolve interação com uma interface de usuário para gerar resposta visual num equipamento de vídeo. Normalmente, a interface utilizada para manipular os jogos é denominada controle, que varia de acordo com a plataforma utilizada pelo jogo. Os mais comuns são o teclado, o mouse, o joystick (tipo de interface que possui uma alavanca e botões) ou gamepad (este com direcionais em forma de cruz ou de pequenas alavancas e botões). Existem outras formas de manipulação da ação na tela menos comuns como, por exemplo, telas sensíveis ao toque, microfones para comandos sonoros, sensores sensíveis à inclinação, ou controles remoto de TV. 1.5.1. Breve histórico Newman (2004) detalha pontos relevantes da história dos videogames, que aqui são apresentados resumidamente. O primeiro jogo da história foi criado em 1958 no Laboratório Nacional de Brookhaven para manter entretidos os seus visitantes e se chamava Tennis for Two. O jogo consistia em uma simulação de tênis, com linhas que representavam uma quadra vista por uma das laterais e um ponto que representava uma bola. Figura 4. O primeiro videogame da história: Tennis for Two. . 47 Os videogames só começaram a ser explorados comercialmente em novembro de 1971, com o lançamento da primeira máquina de jogos destinada a estabelecimentos comerciais, que possuía um sistema de depósito de moedas. O jogo se chamava Computer Space e consistia em uma nave que deveria destruir dois discos voadores. Em 1972, foi lançado o primeiro videogame destinado às residências e que podia ter seus jogos trocados por programação dos seus circuitos através de caixas que alteravam sua programação interna se acoplando na máquina. Era o Odyssey. Essa primeira geração de videogames terminou com o lançamento do Atari 2006 em 1977. Somente em 1985 foi lançado um outro console no mercado americano: o Nintendo entertainment system (NES), da empresa japonesa Nintendo, a qual inaugurou a terceira geração da indústria e diversos paradigmas que perduram até hoje, como controles que possuem direcionais, que permitem o movimento dos personagens com o polegar esquerdo e os jogos de saga, onde o jogador segue linearmente por diversas fases até chegar a um fim. O próximo salto aconteceu em 1994, com o lançamento do Playstation da japonesa Sony que inaugurou a apresentação de imagens tridimensionais, permitindo que o jogador pudesse ir para qualquer lugar onde desejasse no mundo virtual. Figura 5. Comparação entre o que é exibido e a realidade (do lado esquerdo, estão fotos de lugares reais, no direito, sua recriação virtual), no jogo Crysis, para computadores. . 48 1.5.1.1. O Nintendo Wii O terceiro grande competidor atualmente, ao lado da Sony e Microsoft, é o Nintendo Wii. Foi criada uma seção para o mesmo, pois sua estratégia é diferenciada. O Wii, lançado em dezembro de 2006, tenta quebrar o paradigma da busca de realismo trazendo como contrapartida funcionalidade na interface, buscando um público que normalmente não joga videogame. O seu controle é simplificado, possuindo sensores de movimento e poucos botões, tornando a experiência de jogar mais intuitiva. 1.6. Publicidade Kotler (1998) define publicidade como qualquer forma não pessoal de apresentação e promoção de idéias, bens ou serviços, paga por um patrocinador identificado. Atualmente, Publicidade é um termo que pode englobar várias áreas de conhecimento envolvendo a difusão de idéias, como o planejamento, criação, veiculação e produção de peças publicitárias. A mesma se expandiu ao ponto de poder beneficiar todas as atividades humanas. Profissionais liberais, como médicos, engenheiros, divulgam por meio dela, os seus serviços; os artistas anunciam suas exposições, seus discos, etc. A própria ciência vem utilizando os recursos da publicidade, promovendo suas descobertas e seus congressos por meio de cartazes, revistas, jornais, filmes, internet e outros. A prática de publicidade em videogames foi iniciada em 1978 com o jogo Adventureland, onde o seu criador pôs no jogo um anúncio do seu próximo projeto. 2. Relevância dos videogames na atualidade e perfil da demanda A cada ano, os videogames se tornam mais importantes para a indústria do entretenimento. Na versão 2007 do seu relatório anual a Entertainment Software Association (ESA) traça um panorama quantitativo geral da relevância que essa forma de diversão vem adquirindo desde 1996. Em 2007, os videogames geraram dividendos na ordem de 7,4 bilhões de dólares em todo o mundo, em contraste com 2,6 bilhões de 49 dólares gerados no ano de 1996. Em termos de unidades de jogos vendidos, houve um crescimento de 74,1 milhões em 1996, para 240,7 milhões em 2007. Em setembro desse ano, a Microsoft alardeou o lançamento do Halo 3 como um marco para a indústria do entretenimento. De acordo com Fukushiro (2007), o jogo de ação do Xbox 360 sobre uma guerra interplanetária, gerou em apenas 24 horas 170 milhões de dólares, mais do que o filme Homem-Aranha 3 (11º filme mais rentável da história) em sua data de estréia nos Estados Unidos. 2.2. Perfil dos jogadores Ainda de acordo, com o relatório anual da ESA (2007), 33% do total de residências nos Estados Unidos possuem pelo menos um console de videogame. Dessas, 67% dos integrantes da família jogam com regularidade, sendo 18% com idade abaixo de 18 anos, 47,6% com idade entre 18 e 49 anos e 24,2% com idade acima de 50 anos. Esses números demonstram que a maior parte dos usuários são economicamente ativos. Quando essa informação é cruzada com a expansão do total de pessoas que costumam interagir com consoles, é possível entender porque grandes empresas começam a investir na publicidade dentro dos ambientes dos jogos. 3. Publicidade em videogames Segundo Mills (2007), a Google comprou em fevereiro do corrente ano por US$23 milhões de dólares a Adscape, empresa especializada em veiculação de publicidade em jogos, seguindo a Microsoft, que em 2006 comprou por US$200 milhões a Massive, a maior empresa especializada em publicidade em videogames. Ainda segundo o mesmo artigo é estimado que em 2010 esse segmento do Marketing gere US$700 milhões de dólares. 3.2. Eficácia das ações publicitárias em videogames Em agosto de 2007, a Massive divulgou o resultado do primeiro grande estudo sobre a eficácia da Publicidade em jogos, onde 300 jogadores foram expostos a uma 50 versão de um jogo sem anúncios e outros 300 jogaram uma versão com anúncios. Ao final, foram feitas perguntas idênticas sobre marcas que estavam sendo analizadas aos dois grupos. Os pontos principais do estudo revelaram os seguintes fatos: A familiaridade com as marcas cresceu 64%; A classificação das marcas cresceu 37%; A consideração de aquisição de produtos associados cresceu 41%; A publicidade veiculada teve um incremento no índice de lembrança de 41%. 3.3. Tipos de veiculação de publicidade em videogames A veiculação de Publicidade em jogos eletrônicos pode ser dividida em dois grandes grupos: A publicidade estática e a publicidade dinâmica. A publicidade estática consiste na inserção das marcas nas próprias linhas de código do jogo, não permitindo alterações posteriores pelo anunciante. Já a publicidade dinâmica permite que os anunciantes façam inserções posteriores em jogos online, alterando o cenário do jogo quantas vezes desejarem, inclusive com meios para as empresas saberem quantas vezes e quando os mesmos foram vistos. Nos dois grupos, o esforço de marketing pode se apresentar das seguintes formas: Em duas dimensões: como em um panfleto pregado em uma parede virtual, por exemplo; Em três dimensões: como, por exemplo, em um carro modelado dentro do jogo, possível de ser visto de todos os ângulos; Interativos: que podem ser alterados pelo jogador. Exemplo: um objetivo onde existe um outdoor bloqueando o único caminho possível. Nesse caso, o jogador precisaria rasgá-lo. Em vídeos: como em um trailer de um filme sendo exposto em uma televisão dentro do jogo. 4. Jogos na TV digital A interatividade na TV digital foi idealizada a partir da definição de padrões de programação. Dessa forma, uma aplicação escrita para TV digital com base em um padrão de determinado país, será compatível com todos os aparelhos do mercado 51 nessa região. Essas aplicações são desenvolvidas para serem executadas nos próprios televisores ou em set-up-boxes (conversor externo de sinal digital para analógico para televisões incompatíveis com o novo formato). O problema é que esses set-up-boxes não possuem capacidade de processamento suficiente para rodarem jogos com uma complexidade gráfica adequada, já que foram concebidos fundamentalmente para a atividade de assistir televisão. Assim sendo, não permitem a veiculação de anúncios do tipo interativo, ou em três dimensões. Porém, devido à própria natureza da TV digital, que permite que os jogos sejam transmitidos ao espectador através de uma solicitação feita por uma conexão com a transmissora, os mesmos têm a capacidade de exibir anúncios dinâmicos. 4.2. Sugestão para a baixa capacidade de processamento dos set-up-boxes De acordo com Jordan (2007), o Playstation Portable (PSP, videogame portátil da Sony) possui a capacidade de ser conectado por rede wireless ao Playstation 3, habilitando a funcionalidade de se assitir vídeos, ver fotos, escutar músicas, ou até mesmo jogar determinados jogos que estão no console. O PSP teve essa funcionalidade (chamada de Remote Play) habilitada em setembro desse ano, com o lançamento do jogo Lair, primeiro compatível com a tecnologia. O jogo é executado no PSP de forma perfeita, sem lentidão, apesar do portátil ter uma capacidade de processamento muito inferior a do Playstation 3. Isso é possível por que o PSP, nesse caso, funciona como uma simples tela recebendo um vídeo do jogo do Playstation 3, que processa todos os aspectos do jogo, com exceção dos comandos dados ao personagem, que são realizados e enviados pela conexão sem fio ao Playstation 3. 52 Figura 7. Lair, do Playstation 3, sendo executado no PSP por meio de Remote Play. Para que o Remote Play funcione, é necessário uma conexão estável e rápida entre os dois aparelhos. Esse tipo de relação existe na TV digital, que poderia usar a essência da tecnologia para permitir ao espectador a experiência de jogar algo mais complexo. Nesse caso, os set-up-boxes seriam utilizados para processar e enviar a execução dos comandos através da internet para computadores com grande capacidade de processamento instalados nas emissoras, que por sua vez geraria as imagens do jogo que seriam enviadas como um vídeo para a TV dos jogadores. 5. Considerações finais Com as considerações do artigo, foi constatado que a indústria de videogames tomou grandes proporções e está em rápida expansão. Em termos de veiculação de publicidade dentro de jogos, existe um mercado ainda pequeno, porém, já com grandes empresas inseridas pretendendo transformar a atividade em grande fonte de lucro através do investimento em estudos e da profissionalização do segmento, que pode, inclusive, ser aproveitado pelas emissoras de TV digital, se vencidas algumas barreiras técnicas, sendo a mesma, portanto, viável como uma plataforma de marketing dirigido a jogadores de videogames. Assim sendo, podem ser objetos de pesquisas futuras, a implementação de uma solução para a baixa capacidade de processamento dos set-up-boxes; ou o desenvolvimento de uma interface adequada para jogos na TV digital. 53 REFERÊNCIAS BESSEL, Lucas. À Espera da TV Digital. Info Abril. 2007. Disponível em: <http://info.abril.com.br/aberto/infonews/092007/25092007-18.shl> Acesso em: 17 de out. 2007. BRAIN, Marshall. How digital television works: How Stuff Works: 2007. Disponível em: <http://electronics.howstuffworks.com/dtv.htm> Acesso em 18 de out. 2007. COLLINS, Gerald W. Fundamentals of Digital Television Transmission. New York: John Wiley & Sons, Inc, 2001. ROBIN, M.; POULIN, M. Digital Television Fundamentals: Design and Installation of Video and Audio Systems. New York: McGraw-Hill, 2000. LEMOS, André. Anjos Interativos e Retribalização do Mundo: Sobre Interatividade e Interfaces Digitais: 2000. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/lemos/interac.html> Acesso em 18 de out. 2007. NEWMAN, James. Videogames. New York: Routledge, 2004. KOTLER, Philip. Marketing Management. New York: Prentice-Hall, 1998. ESA. Essential Facts About the Computer and Videogames Industry: Electronic Software Association: 2007. Disponível em: <http://www.theesa.com/archives/files/ESA-EF%202007.pdf.> Acesso em 15 de out. 2007. FUKUSHIRO, Luiz. Quem São os Maiores Criadores de Videogames: E Por Que o Talento Deles Vale Ouro. Veja. São Paulo, n. 2031, p. 108-112, outubro. 2007. MILLS, E. Google Snags Adscape for $23 million, Source Says: CNET News.com: 2007. Disponível em: <http://www.news.com/Google-snags-AdScape-for-23million%2C-source-says/2100-1024_3-6160100.html> Acesso em: 10 de out. 2007. Massive Incorporated. Massive Study Reveals In-game Advertising Increases Average Brand Familiarity by up to 64%: Massive: 2007. Disponível em: <http://www.massiveincorporated.com/site_network/pr/08.08.07.htm>. Acesso em: 21 de out. 2007. JORDAN, Jon. Lair is Just the Start of the Ps3-psp Links-up, Says Sony? Pocket Gamer: 2007. Disponível <http://www.pocketgamer.co.uk/r/PSP/Sony+PSP/news.asp?c=4092>. em: 22 de out. 2007. 54 em: Acesso Tropicalismo: a televisão como veículo de crítica à sociedade de consumo Carlos André Carvalho1 Resumo: Plenamente conscientes de que fazem parte de um novo contexto cultural em que a comunicação de massa é peça indissociável, os artistas da Tropicália, movimento musical nascido no Brasil no final de 1967, queriam se adequar às condições, sem deixar, entretanto, de serem críticos à nova realidade da indústria cultural. Atentos à transformação, eles sabiam que os novos valores eram fornecidos pelos veículos de massa e a música reproduzida e reproduzível pelas novas formas de comunicação visual e auditiva. Ao ocupar o espaço da TV, os tropicalistas, já hostilizados pelos militantes de esquerda em razão da adoção do rock e das guitarras em suas composições musicais, da crítica à xenofobia musical, bem como da inserção de elementos da cultura pop e de massa, ganha também a irritação da direita que, consciente da força da linguagem do espetáculo, avalia a entrada dos tropicalistas na televisão como uma conquista mais ameaçadora à ordem instituída que os discursos engajados da esquerda. Palavras-chave: tropicalismo, meios de comunicação de massa, música. Abstract: Tropicalia‟s artists were aware that they were taking part into a new cultural context where the mass communication is an inseparable part of the system. Tropicalia was a musical movement that was born in Brazil around 1976. The artists wanted to fit the epoch conditions but being critical to the cultural industry reality at the same time. They were watching the changes at that time and they knew that new values were being created through mass communication vehicles as TV and radio. When those artists appeared on TV– they have been harassed by communists because they have adopted the rock and roll and pop culture in their compositions - the Brazilian dictatorial government felt upset with their ideas because they knew the strength of their show language and they started to think that the movement could be a threat to the established order. Key words: tropicalism, mass communication vehicles, music. 1 Professor da Faculdade [email protected]. Joaquim Nabuco. 55 Mestre em Literatura pela UFPE. E-mail: Introdução A canção popular é uma forma de expressão artística que se afirma através dos meios de comunicação e os tropicalistas souberam como ninguém tirar o maior proveito disso. O período de nascimento do tropicalismo – segunda metade da década de 1960 – coincide com o das maravilhas da tecnologia que condicionam o surgimento do “homem planetário”, ou seja, do habitante de um planeta que se reconhece de súbito como uma unidade. Expressões como “galáxia de Gutenberg”, “era da informação ou “aldeia global”, todas formuladas pelo teórico canadense Marshall McLuhan, passaram a batizar a nova condição existencial no planeta, que se caracterizaria principalmente por um processo de mutação nas noções de tempo e espaço. Na visão de McLuhan, se a imprensa teria tribalizado o homem, os meios eletrônicos, a partir da década de 1960, tinham surgido para retribalizá-lo. A televisão, por exemplo, contribuía de forma decisiva para reconstruir uma tradição oral, o que afastaria o homem da visão linear e seqüencial do paradigma da imprensa (SEVCENKO, 1997: 05). McLuhan mostra que não é fácil analisar o contexto sóciocultural desprezando os meios de comunicação. Claro que bem antes de McLuhan, os meios de comunicação se fizeram presentes na vida do homem, por conta da necessidade básica de indivíduos e grupos trocarem experiências e informações úteis. Com o tempo, o homem foi melhorando os meios para se comunicar melhor com os seus semelhantes e a própria linguagem articulada faz parte desses avanços. A lingüística moderna, por exemplo, nos ensina que não há no cérebro do homem qualquer seção que seja destinada exclusivamente à habilidade de falar. Verifica-se, então, nos últimos duzentos anos, uma aceleração intensa no ritmo de invenção de novos meios, num processo que acompanha a industrialização. Um bom exemplo da dinâmica dos novos tempos nos é dado por Walter Benjamin, quando mostra que a litografia não chegou a causar maiores repercussões na sociedade européia no início do século XIX, pois foi logo suplantada pela fotografia, que, por sua vez, já era um passo para a invenção do cinema (BENJAMIN, 1990:234). Era o surgimento do que ele denomina “era da reprodutibilidade técnica”. Noutras palavras, ele se referia à era em que obras de arte e mensagens de todo tipo podem ser reproduzidas com o 56 auxílio de máquinas que elevam a quantidade de cópias a um patamar sem precedentes na história do homem. O tropicalismo, movimento musical que tomou de assalto a chamada Música Popular Brasileira no final de 1967 – e que também englobou outras áreas como as artes plásticas, o cinema e o teatro –, aproveitou todas estes temas que estavam sendo discutidos naquele período para fazer um uso crítico dos meios de comunicação. Plenamente conscientes de que fazem parte de um novo contexto cultural em que a comunicação de massa é peça indissociável, e como parte integrante desse universo, o grupo tropicalista queria se adequar às condições, sem deixar, entretanto, de serem críticos à nova realidade da indústria cultural. Atentos à transformação, eles sabem que os novos valores são fornecidos pelos veículos de massa, como os jornais, o rádio, a televisão, a música reproduzida e reproduzível, vale dizer, pelas novas formas de comunicação visual e auditiva, realidade esta a que ninguém pode fugir (ECO, 1987: 11). Em 1968, o então empresário de Gil e Caetano, Guilherme Araújo, fechou o primeiro contrato com a TV Tupi, para os dois baianos apresentarem um programa semanal, Divino Maravilhoso, que estreou em 28 de outubro. No programa, os apresentadores pretendiam chocar os telespectadores, tanto pelo visual agressivo quanto pelos cenários, pintados com cores berrantes, e pela irreverência das atrações apresentadas em estilo de happenings. O público conservador enviava cartas agressivas à direção da TV Tupi, pedindo a suspensão dos tropicalistas pelas ofensas à moral e aos bons costumes. (CALADO, 1997: 234-235). Ao ocupar o espaço da TV por meio de programas anárquicos, o tropicalismo, já abertamente hostilizado pelos militantes de esquerda em razão da adoção do rock e das guitarras em suas composições musicais, da crítica à xenofobia musical, bem como da inserção de elementos da cultura pop e de massa, e, ainda, do uso de palavras americanas nas letras, além do rebolado no palco, ganha também a irritação da direita que, consciente da força da linguagem do espetáculo, avalia a entrada dos tropicalistas na televisão como uma conquista mais ameaçadora à ordem instituída que os discursos engajados da esquerda, uma vez que, em seus programas, estavam desorganizando valores cristalizados no espaço da televisão e atingindo o povo; massa de espectadores estrategicamente observada e manipulada pelos militares. 57 Enquanto o discurso da música de protesto permanecia numa retórica vazia, o tropicalismo ia tecendo críticas à indústria cultural e às imagens arcaizantes ou desenvolvimentistas do país, utilizando-se da linguagem do espetáculo. “O mesmo veículo com o qual o governo promovia encenações de protesto era utilizado pelos tropicalistas para subverter comportamentos, para agredir telespectadores como uma forma de ação política de resistência ao regime militar” (ANDRADE, 2002:44). Assimilando a cultura de massa, a arte da metade do século XX ganha novas funções, inclusive a de questionar as fronteiras entre as diversas espécies de linguagem, entre os diferentes produtos culturais, entre o que se deveria considerar arte elevada e aquilo que se convencionou tratar como arte de segunda categoria. Existe uma idéia generalizada de que o importante não é criar textos, mas uma nova forma de sensibilidade, que incorpore de forma crítica a linguagem que a humanidade mais absorve nessa época, vale dizer, a linguagem produzida pelos meios de comunicação de massa e pela indústria da propaganda. É isso que o tropicalismo, de forma consciente, vai pôr em xeque. A crítica aos meios de comunicação de massa não se resumia apenas às apresentações dos tropicalistas na TV. As letras de músicas também servia para criticar os mass media. E sempre que faziam isso preferiam usar uma linguagem irônica. Um bom exemplo é a letra de Parque Industrial, Tom Zé, uma das doze músicas do discomanifesto Tropicália – ou Panis et Circencis: (...) As revistas moralistas Traz uma lista de pecados das vedetes E tem jornal popular Que nunca se espreme Porque pode derramar É um banco de sangue Encadernado 58 Já vem pronto e tabelado É somente folhear e usar Porque é made, made, made Made in Brazil (...) Para citar mais um exemplo, na letra de “Alegria, Alegria”, Caetano Veloso também não esquece de criticar a profusão de títulos de revistas e jornais disponíveis nas bancas, o que deixa o leitor com preguiça de “ler tanta notícia”: (...) O Sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia Eu vou Sem lenço, sem documento (...) A explosão do tropicalismo O ano de 1967 é considerado um marco na história da cultura brasileira. Entre outros acontecimentos, as idéias de Oswald de Andrade, o mais radical e inventivo dos modernistas de 22, fazem uma reaparição explosiva através de sua peça O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, de São Paulo, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. No cinema, a polêmica é provocada por Terra em Transe, de Glauber Rocha. Esses dois eventos, por sua vez, vão ser acompanhados por novas explosões, como a ocorrida no III Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV 59 Record, em outubro do mesmo ano. Pegando a platéia totalmente desprevenida, dois novos compositores baianos entram no palco com uma postura abertamente revolucionária. Caetano Veloso, acompanhado pelas guitarras elétricas dos Beat Boys, canta “Alegria, Alegria”, cuja letra, de acordo com o poeta Décio Pignatari, traz para a poesia a técnica cinematográfica da “câmara-na-mão”. Gil, acompanhado pelos Mutantes e escorado pelo criativo arranjo do maestro Rogério Duprat – que mistura berimbau com guitarras elétricas –, ataca de “Domingo no Parque”. Ambas fundem as duas tendências citadas acima, utilizando instrumentos e técnicas de origem estrangeira e, ao mesmo tempo, tema e características bem nacionais. Apesar do impacto causado, as músicas de Caetano e Gil não foram as vencedoras do festival, ficando, respectivamente, em quarto e segundo lugar. Mas o festival foi o ponto de partida de uma atividade que logo seria denominada de tropicalismo e transformaria ambos em astros. Por essa época, os festivais, promovidos pelas redes de televisão, transformavam-se em espaço de movimentação e manifestação de idéias revolucionárias. Os artistas possuíam fiéis e participativas torcidas organizadas. Formada por intelectuais de esquerda e estudantes, a agitada platéia constituía-se como foco de resistência ao regime militar. Em 1968, Caetano Veloso tentou definir o que seria tropicalismo. Um movimento musical? Um comportamento vital? “Ambos. E mais: uma moda. Acho bacana tomar isso que a gente está querendo fazer como tropicalismo. Topar esse nome e andar um pouco com ele. Acho bacana” (CAMPOS, 1974: 195). Gilberto Gil também concordou com o termo: “A imprensa inaugurou aquilo tudo com o nome de tropicalismo. E a gente teve que aceitar porque tava lá, de certa forma era aquilo mesmo, era coisa que a gente não podia negar. Afinal não era nada que viesse desmentir ou negar nossa condição de artista” (História da Música Popular Brasileira – fascículo Gilberto Gil.2 Como o próprio Gil confirma acima, a denominação de tropicalismo ao trabalho que o grupo vinha fazendo não partiu deles mesmos, pelo menos diretamente. Tudo começa, no início de fevereiro de 1968, quando, reunidos numa mesa de bar, o jornalista Nelson Motta, na época colunista do jornal Última Hora, os cineastas Gláuber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Arnaldo Jabor, além do fotógrafo Luís Carlos Barreto 2 Fascículo História da MPB, Abril Cultural, 1971, p. 10 60 divertiam-se imaginando uma grande festa. A idéia era celebrar algo que ninguém sabia ainda explicar muito bem, mas já estava acontecendo. O jornalista Carlos Calado resgata muito bem os acontecimentos: Os amigos não precisaram de muita conversa para concluírem que Tropicália – a recémlançada canção de Caetano Veloso, que o próprio Barreto ajudara a batizar, semanas antes, ligando-a à obra homônima de Hélio Oiticica – tinha tudo a ver com o delírio tropical de Terra em Transe, de Glauber, ou com a antropofagia oswaldiana da peça O Rei da Vela, cuja temporada carioca começara havia três semanas. Algo de novo parecia estar ocorrendo na cultura brasileira e, na falta de outro nome, entre risadas e inúmeras rodadas de chope, a coisa foi chamada de Tropicalismo.(CALADO , 1997: 173) No dia 5 de fevereiro, Nelson Motta, abria sua coluna diária, Roda Viva, com o título A Cruzada Tropicalista, aproveitando a conversa do bar na noite anterior. Já no texto de abertura, começa falando do sucesso que o filme Bonnie and Clyde vinha fazendo na Europa e a sua influência estava englobando a moda, a música, a decoração, as comidas, os hábitos. Era a volta dos anos 30. E mais adiante anuncia: (...) Baseados neste sucesso e também no atual universo pop, com o psicodelismo morrendo e novas tendências surgindo, um grupo de cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais resolveu fundar um movimento brasileiro, mas com possibilidades de se transformar em escala mundial: o Tropicalismo. (CALADO , 1997: 175) O texto, com cara de manifesto, sugere aos leitores assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido. Segundo o texto, o lançamento da Cruzada Tropicalista seria realizado em uma festa no hotel Copacabana Palace. Nelson, com ironia e deboche, seguia descrevendo a decoração e o menu da comemoração (palmeiras, vitórias-régias, abacaxis, vatapá, maria-mole e xarope Bromil), dava algumas dicas de como deveriam ser as roupas dos homens e das mulheres, sugestões muito cafonas 61 para época. Também sugeria a divulgação da filosofia do movimento através de cartazes, que trariam provérbios, chavões e até „cantadas‟ da época. Mesmo com o evidente tom humorístico do suposto manifesto, o lançamento do tropicalismo foi levado a sério por muita gente, inclusive pelo compositor Caetano Veloso, que já era a grande sensação da música popular brasileira. Os outros jornais, como o Tribuna da Imprensa de 8 de fevereiro do mesmo ano, não demoraram a repercutir a novidade espalhada por Nelson Motta. (...) Nelson Motta acaba de lançar o manifesto tropicalista, a cruzada tropicalista cuja característica é a volta da cafonice brasileira. O papa será Caetano Veloso e terá roupa assim: terno de linho branco (S-120), lapelas largas, ou azul-marinho listadinho de branco, gravata vermelha de rayon, chapéu-chile, sapato bicolor corcodilo etc. (CALADO , 1997: 179) Gilberto Gil, que já demonstra inquietações quanto aos rumos que a música popular estava tomando, depois de lançar o seu primeiro LP, em 1967, parte para uma excursão ao Recife, onde faz uma série de shows no Teatro Popular do Nordeste, de Hermilo Borba Filho. Gil, que havia escutado falar da musicalidade e apego ao regionalismo da Banda de Pífanos de Caruaru, resolve ir a até a cidade, no agreste de Pernambuco, para conhecer o trabalho do grupo. O acontecimento foi importantíssimo para o compositor na estruturação do movimento que já começa a ganhar formas na cabeça dele, mas que só teria uma denominação no ano seguinte. Nas palavras do próprio Gil: “O que influenciou o tropicalismo foi a Banda de Pífanos e os Beatles”. (RODRIGUES, 2001:18) O tropicalismo, ao mesmo tempo em que se deparava com o problema da importação cultural e da ênfase nas raízes nacionais, acabou por lançar mão – via poetas concretos – da antropofagia proposta pelo modernista Oswald de Andrade, que representou a ruptura mais radical do modernismo com as tradições acadêmicas e passadistas, tendo como postura básica de sua criação “ver com olhos livres” (TELES, 1986:330). No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald, sob a ótica antropofágica, expõe o caráter de confluência. O manifesto se refere ao Brasil como o 62 matriarcado do Pindorama (país das palmeiras, como os índios o denominavam), gênese dessas pulsões primárias. A idéia de Oswald, no entanto, não era rejeitar totalmente a civilização e pregar a volta a estágios naturais, mas defender uma composição dessas pulsões naturais com os avanços da cultura e da sociedade contemporânea. A “deglutição” era uma forma encontrada para trabalhar influências aparentemente opostas, como o rural e o urbano, o antigo e o novo, o industrial e o manual, o animal e o racional. O resultado do processo de deglutição seria uma nova forma cultural, que sintetizavam essas influências díspares. Na própria sugestão de deglutição há um componente irônico, expresso na tentativa de unir a cultura a um ato tão primitivo como a “antropofagia”. Assim como os antropófagos comiam seus inimigos para assimilar suas qualidades cabia ao homem moderno usar dos mesmos procedimentos. Na mesma época em que trava contato com a obra oswaldiana, Caetano Veloso mostra ter assimilado as idéias sobre antropofagia, lançadas pelo escritor 40 anos antes. Várias pessoas ficaram histéricas quando ouviram a música com arranjo de guitarras elétricas, acompanhamento a cargo de uma conjunto de iê-iê argentino e letra psicodélica. A elas tenho a declarar que adoro guitarras elétricas. Esse negócio de folclore não me interessa. Me recuso a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas. (ACUIO, 1968. Grifo nosso) Dentro da ótica antropofágica de Oswald de Andrade, o depoimento de Caetano Veloso pode ser interpretado de várias formas. Por que não usar guitarras, se esses instrumentos mesmo sendo “estrangeiros” podem ser assimilados sem fazer com que a música popular perca suas características “nacionais”? Ou, ainda, por que temer o novo em nome de uma falsa pureza nacional dentro da música popular? Numa outra entrevista, Caetano já tinha alertado para isso. Segundo ele, o tropicalismo era rompimento “com uma ala da música brasileira que tinha uma impostação de seriedade, mas que era, na realidade, um respeito obrigatório a certos conhecimentos primários do 63 universo jazzístico americano, na música, e na letra um respeito a conceitos também primários de pensamentos políticos” (BELTRÃO, 1968). A postura de Caetano não era nada mais que uma releitura das idéias de Oswald, que achava que o povo brasileiro devia se livrar da interpretação materialista e moral que jesuítas e colonizadores fizeram da antropofagia (por gula ou por fome). A antropofagia ritual foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma elevada cultura-asteca, maia, inca. É ligada à transformação do tabu (o intocável, o limite) em totem, do valor oposto em valor favorável, ávida como devoração pura. O tropicalismo transferiu, então, a antropofagia, antes restrita aos limites do âmbito literário, para música popular inserida nos meios de comunicação, na indústria cultural. REFERÊNCIAS. ACUIO, Carlos. “O baiano que é de todo mundo”. Fatos e Fotos. Ano VII, Nº 362, Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1968. ANDRADE, P. Torquato Neto – uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. CALADO, Carlos. Tropicália – A história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997. CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e Outras Bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 11. RODRIGUES, Joana. “Gil chora”. Continente Multicultural. Ano 1, nº 11, Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2001, p. 18 SEVCENKO, Nicolau. “McLuhan assombra o Rei”. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 23 de fevereiro de 1997 64 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 9. ed. São Paulo: Vozes, 1986, p. 330 História da Música Popular Brasileira – fascículo Gilberto Gil. São Paulo: abril Cultural, 1971. 65 Nomes que ousamos dizer Maria Cecília Patrício1 Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir como se percebe denominações diferentes para travestis brasileiras, tanto na literatura quanto nas identificações pessoais de gênero e sexualidade. Se propõe a discutir como os nomes determinados para travestis brasileiras mudam conforme elas migram, e é a Espanha o grande alvo neste momento. Faz parte de um processo em que se construir, enquanto travesti, abrange a denominação específica para tal e o contexto, o espaço e o momento no qual se aciona tal nomeação para a pessoa. Desta maneira, a discussão aqui se empenha a levar em consideração a teoria queer, noções de cultura e gênero e identidade no que tange a entender travestis e travestilidade. Palavras chave: travestis, transexuais, nomes. Abstract: This article aims to discuss how to realize different names for Brazilian transvestites, both in literature and in personal identifications of gender and sexuality. It proposes to discuss how the names for certain Brazilian transvestites change as they migrate, and Spain is the major target now. It takes part of a process to build, as transvestite, the specific name for it and what are the space and time which trigger such appointment to the person. Thus, the discussion here is committed to take queer theory account, culture, gender and identity notions in a way to understand transvestites and their identity. Key Works: transvestites, transsexuals, names. Ter, dar ou receber um nome faz parte de um processo de construção identitária que gera comportamentos definidos para tal denominação. Gera gênero (BUTLER, 2007), e por isso significa ganhar um lugar social que implica classe e status, 1 Doutora em Antropologia pela UFPE. Professora de Antropologia e Sociologia da Faculdade Joaquim Nabuco e FADE. E-mail: [email protected]. 66 comportamentos que criam e recriam normas. É o nome que faz surgir os exemplares, como afirma Butler. E isso está bem claro para as travestis que mudam de lugar, entre estados brasileiros e até entre países, onde em cada um deles descobrem nomes que dão resposta sobre seu comportamento em sua trajetória. De travesti no Brasil, passam a transexuais quando começam a conviver com a realidade espanhola, por exemplo. E, como afirma Butler: “Ser llamado por un nombre es también una de las condiciones por las que un sujeto se constituye en el lenguaje”2 (1997: 17). Uma trajetória que contribui para a apresentação de gênero como processo e contestação, em que as travestis são protagonistas de um movimento que é cultura e, por estar nela, circulam pelas categorias sem grandes problemas, se intitulando trans, transex ou travestis, independente do lugar onde estão localizadas. Gênero é o nomeamento da prática, como impressão de linguagem no corpo que se comunica para se fazer inteligível. O que acontece através de habitus apreendido e aprendido no trajeto da travestilidade e dá corpus ao gênero construído na pessoa, com o objetivo de se fazer entendível aos olhos da sociedade. Há uma pluralidade de nomeações que distingue a pessoa travesti. As mesmas, por estarem inseridas num mundo em que a infinidade de termos de identificação é grande e a preocupação com a afirmação da pessoa é importante, se perguntam como devem se referir a si mesmas, de forma politicamente correta. Trato aqui de nomes que designam identificação, classificação e categorias, enquanto travestis. 1.1 PARA LÊ-LAS. PEQUENA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Silva (1993; 2007a) afirma que travesti é a invenção do feminino, não como inversão (Oliveira, 1994), mas semelhante à idéia de “(re) construção do feminino” de Pelúcio Silva (2004), “montada” sobre um corpo de nascimento masculino. Mesmo se dando conta da figura da “travesti histórica” (SILVA, 1996: 20), o autor reflete sobre a figura da “nova travesti”, novas atrizes na cena urbana, que se configura como um fato novo em nosso cotidiano, e possui “inscrições observáveis e comprováveis”. Atrizes que obrigam, por sua presença, a uma “reflexão sobre mudança 2 “Ser chamado por um nome é também uma das condições pelas quais um sujeito se constitue na linguagem” 67 social, processo de transformação cultural” (SILVA, 1996: 21) e nacionalidade enquanto pertença a um grupo na sociedade atual. Que se diferenciam mais do que se assemelham (MEJÍA, 2006), embora expressem em seu próprio corpo a heteronormatividade (WITTIG, 1978; BUTLER, 2003) socialmente estabelecida e, desta forma, a ambigüidade (SILVA, 1993) clara, na visão de muitos que apenas as olham, e não as vêem. Silva (1993, 1996, 2007a) trabalha com a noção de trans para falar de suas interlocutoras e destaca seu caráter identitário múltiplo e transitório. Travestis são pessoas que transformam seus corpos esteticamente com a tecnologia disponível para deixá-los com traços do sexo oposto (PATRÍCIO, 2002), “vestem-se e vivem cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero feminino sem, no entanto, desejar explicitamente recorrer à cirurgia de transgenitalização para retirar o pênis e construir uma vagina” (BENEDETTI, 2005:18), como não poderia deixar de ser, pois, precisam se distinguir de diversos atores e suas identidades que se incluem no universo da travestilidade no Brasil. Couto (1999: 22) utiliza o termo travestismo, esclarecendo que é usado no Brasil desde 1939. Segundo dados do GGB afirma que“alguns estudiosos defendem que seria mais correto” utilizar “travestido ou travestis” como categoria êmica, por seu uso popular na Bahia, local de seu trabalho. Para ele, há duas distinções claras para ser travesti: uma funciona para “fins de excitação sexual”; outra, como “forma de pertencer publicamente ao outro gênero. Para a maioria, como estratagema de atração de clientes na arena da prostituição”. Por isto, faz de sua obra um estudo sobre corpo em mutação, que diferencia muito bem travestis de transexuais, drag-queens e transformistas, para apontar que no corpo estão os problemas de aceitação social da pessoa, mas é na mente que está o problema de auto-aceitação de cada um3. Couto (1999) parte para a discussão acerca da transexualidade e seus problemas, no panorama nacional e internacional. Seu estudo se propõe como um manual, também de auto-ajuda, para quem busca conhecimento sobre a transexualidade sob diferentes pontos de vista. Fry e MacRae (1991) apontam que, na década de 60 em São Paulo, em que empreendimentos comerciais direcionados para o público gay começaram a surgir, uma 3 Utilizo o artigo indefinido um, ao invés de uma, por uma questão de deixar claro em minha escrita a possibilidade de se pensar que travestis e transexuais podem ser tanto de homem para mulher, quanto mulher para homem, o que Couto (1999) analisa quando disserta sobre a transexualidade, embora eu não firme análise sobre o fenômeno da travestilidade de mulher a homem. 68 determinada confraternização, chama atenção à presença de duas figuras: No palco apareceram duas personagens, um homem com corpo e porte de halterofilista e um [grifo meu] travesti, Fedra de Córdoba. Enquanto o “machão” permanecia imóvel, em pé e com as costas para o público, o travesti fazia literalmente de tudo para conquistá-lo: rebolava, se insinuava, colocando-se num papel de absoluta e estereotipada subserviência. (FRY; MACRAE, 1991: 25). Este jogo de forte/fraco, dominador/dominado foi o estopim para vaias e início de discriminação à travestis dentro do próprio movimento homossexual, que considerava aquela cena um “grotesco machismo”, e demonstrava “o abismo entre ideologia e comportamentos vigentes” (FRY; MACRAE, 1991: 26). No estudo, não se utiliza outra palavra que denote identidade diferenciada para travesti. Travesti é tanto o feminino – caracterizado pela figura de Fedra de Córdoba – como o masculino, marcado pelo michê que se traveste de heterossexual – estereótipo do macho. Assim sendo, está caracterizado dentro do sexo biológico, ou fisiológico, masculino, e sexo social feminino, o que significa que a ambigüidade está presente na sua identidade desde longa data, com o que concorda Silva (1993; 1996). Na década de 70, no Recife, Silva (2007b) destaca um termo bem interessante, utilizado para se referir às travestis da época, o que ainda se escutava há bem pouco tempo entre elas: O delegado Fernando Albuquerque, do 2º Distrito Policial, fechou ontem, em Santo Amaro, uma residência, onde grande número de homossexuais se reuniam para realização de bacanais. Somente duas bonecas [grifo meu] foram presas e na Delegacia [sic] negaram-se a fornecer o verdadeiro nome, ficando por isso no xadrez por mais de 72 horas. (Diário de Pernambuco. 24 de fevereiro de 1970. 1º Caderno, p.08. In: SILVA, 2007b). Em campo de pesquisas (PATRÍCIO, 2008), o termo “bonecas” é reconhecido como de boa sonoridade, e dá a elas uma conotação de fabricadas, pois a palavra tanto remonta à idéia de modelos, como a Barbie – ideal de beleza de origem estadunidense –, como esconde a discriminação que sofrem socialmente, por um dia terem tido outra configuração corporal e de gênero. 69 No estudo de Silva (2007b), um dos poucos sobre o Recife, na década de 70 a repressão policial às travestis, durante o período momesco, era apenas um dos argumentos da discriminação, porque eram perseguidas não apenas nas ruas, mas também em “clubes, blocos, troças, maracatus e outros ajuntamentos”. [Pois,] “o simples ato de travestir-se não era em si um ato de imoralidade, desde que o travestido fosse um heterossexual” (SILVA, 2007b: 03). O que confirma a tese da sociedade heteronormativa (Wittig, 1978; Butler, 2003). No estudo de Peres (2004) a referência a travestis no feminino decorre do “respeito à solicitação” das mesmas, assim como o questionamento do travestismo como termo que remete a patologização sendo este substituído por travestilidade, com o que também concordo, pelo fato de abarcar “uma imensa complexidade de formas de expressão travesti existentes, considerando a heterogeneidade dos modos de ser no seu mundo” (PERES, 2004: 120). Embora o uso também do termo subcultura possa denotar uma certa ambigüidade em seu discurso. O que o autor justifica, tratando-se da reflexão acerca da situação de vulnerabilidade em que se encontram suas interlocutoras. As mesmas de outros estudiosos, como Parker (1991), que vê como perversa a inclusão das travestis no mundo em que as relações sociais trazem como marca a exclusão e opressão para quem não se encaixa nos modelos pré-estabelecidos culturalmente. Uma das conclusões de Peres (2004) remete à experiência de algumas interlocutoras minhas4, pois a destituição de direitos que sentem na pele por terem um dia feito escolhas por se modificar corporalmente, modifica o que a sociedade espera delas. Infelizmente, no caso de travestis, pode chegar a vias de agressão e causar não apenas estranhamento e discriminação na escola e no trabalho, como também violência e até morte. Esta destituição de direitos pode ser incluída nesta análise, quando percebo o porquê da necessidade das travestis brasileiras buscarem uma experiência internacional. No estudo de Jayme (2001), travestis se distinguem muito bem de transexuais e transformistas por modificarem seu corpo, embora querendo “manter o órgão sexual masculino” (2001: 02). Afirmam-se 'mulheres' dia e noite, assim como as interlocutoras de Silva (1993; 1996). 4 O Grupo Oxumaré foi o meu primeiro contato sistematizado com a realidade da travetilidade no Recife. Ele funciona na Ong Gestos. 70 Em seu estudo, Jayme (2001) traz uma abordagem de identidade, corpo e gênero que questiona as identidades culturais e as relações de gênero na sociedade contemporânea, a partir de estudo com travestis em Belo Horizonte e Lisboa. A construção do ser travesti, se molda pela construção do corpo, assim como acontece no estudo de Silva (1993; 1996; 2007a), em que o novo corpo mostra a “nova pessoa” que surge através do uso de injeções de hormônios, silicone e acessórios externos, como maquiagens, perucas, interlaces, e educação deste corpo. Em se tratando de nomes, o estudo de Jayme (2001) revela algo diferente do que tento trabalhar aqui. Ela utiliza transgênero para designar todas as suas interlocutoras, numa tradição estadunidense clara e sem discussão. Travestis são cada uma de suas entrevistadas, mas não há nenhum questionamento quanto a isso, só na introdução do estudo é que diferencia travestis de transformistas, drag-queens e transexuais, no tocante a incluí-las todas no universo de transgêneros, explicitamente designadas no masculino (os/dos transgêneros). O nome quer dizer o que cada uma delas escolhe para si, ou recebe em batismo na casa5 onde é adotada, um “nome de guerra”. Por exemplo: Bárbara Brasil. Se é travesti, transexual ou transformista não está claro. Conclui ser difícil dar conta de uma teoria de identidade que trate da subjetividade do universo estudado, justamente por ele ser complexo e cheio de armadilhas instáveis. No estudo de Benedetti (1998; 2005) o corpo e as representações de gênero constituem os objetivos-chave. Suas entrevistadas são travestis de Porto Alegre, de camadas populares, profissionais do sexo de baixo nível de escolaridade e que vivem em situação de vulnerabilidade social e familiar, como, aliás, a maioria das travestis estudadas pela Antropologia e Psicologia, no Brasil. Ele utiliza o termo universo trans para identificar um domínio social no que tange à questão das (auto) identificações (...) [quando] classificam pessoas, hábitos, práticas, valores e lógicas como pertencentes a esse domínio (BENEDETTI, 2005: 1718). Quanto à categoria, o termo travesti é apontado por ele como sobrepondo-se à transexual, pois de mais antiguidade e de maior presença no universo estudado. Assim 5 Significa não apenas o espaço de moradia, mas também o lugar no qual a travesti se sente adotada. Pode ser entendido como a casa: pensão onde ela vive; cidade onde está ou mesmo o país onde seus direitos são respeitados. 71 como, a não atribuição médico-psicológica recente na história ocidental. Lopes (2000), ensaísta e comunicólogo, afirma que, na sociedade contemporânea, o que mais importa é a “valorização do artifício como categoria central” (2000) que caracteriza o travestimento. Travesti é “uma realidade social” e por isso todos somos um pouco travestis. Este autor afirma que é no jogo de identidades e de gêneros que as travestis se inserem, em que papéis se intercambiam, interseccionam-se num encontro inesperado, sensível em meio a um mundo de violências (2000: 153). Por isso, defende o uso da palavra trans: “Na vida e no texto, transimagens, transescritura, transdiário” (LOPES, 2002: 69), indicando a velocidade como característica da sociedade em que vivemos e a “máscara” a tática de coexistir nela. Não se preocupa com termos e terminologias em seus textos, pois sua ênfase é a literatura, e não o campo antropológico. Dennis Werner (s/d), se refere às travestis pelo pronome masculino (os/dos/eles/deles), assim como Oliveira (1994), em seu estudo em Salvador. Ambos fazem comparação com as mulheres prostitutas em seu ethos, até porque, no ambiente em que realizaram pesquisa, mulheres e travestis dividem espaços de trabalho, o que é comum em muitas cidades. No estudo de Patrício (2002), o interesse é a identidade de gênero e a mobilidade de travestis em Campina Grande, na Paraíba. Nele há um quadro de explicações que diz o seguinte: Travesti: Homem ou mulher que se veste e assume características físicas e psicossociais atribuídas ao sexo oposto (COUTO, 1999). Estão incluídos nessa definição aqueles que praticam o homoerotismo. A travesti também se caracteriza pelo uso de hormônios e silicone no corpo. Aqui se distingue da transexual por não querer fazer a cirurgia de adequação sexual; Transexual: Homem ou mulher que deseja ser do sexo oposto, submetendo-se à cirurgia para transformação do órgão sexual externo (PATRÍCIO, 2002: 14). Na citação, o significado de ser travesti não está apenas no fato de ter modificado totalmente o corpo com silicone, pois o reconhecimento na travestilidade é ainda mais forte, como é o caso de uma de suas interlocutoras, mais prestigiada que modificada corporalmente. 72 Patrício (2002), além de utilizar a palavra travestismo, enquanto o universo que congrega as suas interlocutoras, dedica-se a discussão do termo trans para se referir a figuras que transitam entre ser travesti e transformista. Trans tem significado quando destaca-se como prefixo de transformar, transitar, o que realmente se aproxima do que Lopes defende em seus ensaios (2000; 2002). No estudo de Pelúcio Silva (2007), suas interlocutoras são “vistas como corpos desviantes, os seres abjetos que demarcam as bordas da normatividade” (PELÚCIO SILVA, 2007: 05). Pouco espaço é dedicado à discussão de nomes, mas é encontrado em sua tese que o termo [...] travesti pode ser bastante simplificador quando busca contemplar a gama de possibilidades de se viver esta condição. A travestilidade aponta para a multiplicidade dessa experiência, ligada a construção e desconstrução dos corpos. Ainda que haja uma rigidez na gramática de gênero das travestis, há também uma patente fluidez na elaboração de categorias êmicas autoclassificatórias, uma vez que estas estão estreitamente ligadas a marcas identitárias que se associam ao trânsito dos corpos pelos territórios, o que se vincula, por sua vez, às transformações desses mesmos corpos. (PELÚCIO SILVA, 2007: 19). Travestilidade como processo de construção de um certo feminino, glamourizado, ligado historicamente à noite e às artes cênicas (...), figura urbana e do asfalto (Silva: 1993; 1996; 2007a). Pelúcio Silva aponta que o termo travestilidade é utilizado pelas travestis que participam de movimentos sociais de luta por seus direitos enquanto minorias. O estudo de Figueiredo (2008) lida com histórias de narrativas da dor e corporalidades de travestis no Recife, que ressignificam suas experiências corporais, de gênero e de sexualidade vivenciadas em suas representações de feminilidade e masculinidade, numa representação em que a paródia é a via de discurso, e a dor se propõe como veículo aliado ao prazer, através da linguagem política (Teoria Queer) e de satisfação (FIGUEIREDO, 2008). Sua análise tenta “vislumbrar a travestilidade enquanto experiência através da perspectiva da identificação”. Ela procura se afastar do termo transgênero, como categoria no mínimo problemática, pela incompreensão e afastamento êmico que tal classificação (FIGUEIREDO, 2008: 30) significa nas 73 travestis por ela analisadas. Em relação à nomeação, Figueiredo (2008) fala de autonomeação enquanto gênero normativo, ou seja, o mesmo de que tratam muitos dos autores quando falam de travestis e a suas reivindicações, por serem chamadas por pronomes e artigos femininos e não masculinos. É na configuração do termo travesti que as interlocutoras aparecem nos estudos brasileiros, que caracteriza tanto uma identificação de gênero, como de nacionalidade, o que se percebe também na necessidade da circulação que elas almejam e podem alcançar, com o objetivo de ganhar prestígio entre os pares e a sociedade que as discrimina. 1.2 DESCOBRINDO O VELHO MUNDO Para a Espanha vamos em busca de realização e reconhecimento no seio familiar e com um sonho, o de conhecer um outro mundo – a Europa – e de lá trazer, pelo menos, muitas histórias para contar e ser "alguém que deu certo na vida"6, para poder “retornar” com maior importância e respeito de seus entes. Lá me deparo com uma realidade discursiva e uma teoria que coloca todas as minhas certezas pelo avesso. Descubro, em idas e leituras realizadas no PIAHTCM 7, material riquíssimo sobre a temática, que afirma, por exemplo: Travesti: En general es un término peyorativo para los transexuales. Para algunos/as es un término que tiene que ver claramente con aquellas personas que tienen una necesidad de vestirse o transformarse con ropas del sexo opuesto, sin que realmente exista una identificacíon interna con este sexo. Sin embargo, para otras personas, muchas de ellas sudamericanas, el término identifica aquellas personas que todavía no han realizado un cambio total de reasignación de sexo, aunque exista una identificación con el sexo opuesto. Sería, entonces, un término sinónimo de transgénero. (ROMERO, 2006: 20) 8 6 Minha estratégia nas conversas iniciais, para poder falar e, posteriormente manter contatos com as travestis brasileiras no Recife e em Madrid, foi utilizar como objetivo em meu discurso a assertiva “alguém que deu certo na vida”. 7 Programa de Información y Atención a Homosexuales y Transexuales de la Comunidad de Madrid. 8 “Em geral é um termo pejorativo para os transexuais. Para alguns/mas é um termo que tem a ver claramente com aquelas pessoas que tem necessidade de vestir-se outransformar-se com roupas do sexo oposto, sem que realmente exista uma identificação interna com este sexo. Sem objeções, para outras pesoas, muitas delas sul-americanas, o termo identifica aquelas pessoas que não realizaram uma mudança 74 Naquele primeiro quadro começo a perceber o quanto de estético tem a nominação travesti no estudo e nas identificações que encontro na Espanha, mais próximo do que designamos como Cross-Dresser, ou mesmo transformistas unidos a uma comunidade que, nos Estados Unidos, é nomeada de transgeneristas. Na visão de Dorian, interlocutora no Recife, se concretiza como um “nome insultante” (BUTLER, 1997): (...) travesti é muito pesado. Até a própria palavra travesti é muito agressiva, eles deviam pensar em outro nome. Desta maneira, o termo vem sendo percebido assim no Brasil, e algumas vezes rechaçado pela literatura ativista na Espanha. Isso remete diretamente à experiência delas, apontada mais à frente. A classificação se torna rígida, pois o ato de classificar sugere patologização, insultando quem é denominado como tal. Assim, me aproximo dos estudos queer em termos de pensar sobre os questionamentos das próprias interlocutoras sobre si mesmas e suas identidades que se firmam no movimento que causa estranheza. Pois, segundo Louro: Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. (...) Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do 'entre-lugares', do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. (2004: 8) Foi na década de 80, com os estudos de Wittig e tantos outros teóricos, que as temáticas consideradas mais 'subversivas', em termos de sexualidade, vieram à tona, porque questionam a relação sexo/gênero enquanto relação de poder. Neste sentido, o que se conhecia como travesti é colocado como transexual na literatura de língua espanhola, na acadêmica e também na de cunho informativo. O termo travesti é vinculado à estética e, por isso, assunto de fetichismo, sem a referência à identidade ou identificação (FIGUEIREDO, 2008), como também à modificação corporal intensa que vem sendo realizada pelas pessoas que se identificam total de reassignação sexual, mesmo que exista uma identificação com o sexo oposto. Seria então, um termo sinônimo de transgênero.” 75 com a realidade da travestilidade, vivida na Espanha também por espanholas, intituladas transexuales. Em citação anterior, Romero (2006) fala sobre o direcionamento espacial, as de Sudamerica, ficando clara a diferença entre as travestis espanholas e as do Brasil, por exemplo. Uma das interlocutoras de seu estudo afirma: [...] ya en los años 60 apareció dentro de mi perspectiva el concepto de travesti o de travestí, como se decía entonces, (...) y entonces por primera vez vi algo que era efectivamente lo que yo quería ser, entonces yo estuve aceptando y usando la palabra travestí durante mucho tiempo porque de alguna manera se representaba aunque no fuera una palabra muy exacta en todo su sentido pero en cuanto a identidad significaba precisamente algo que era distinto de la homosexualidad y todo esto... (...) y bueno poco después ya fui encontrando también el uso de la palabra transexual, ya me reconocí más propriamente en esa palabra. (K.P. informante de Romero. p. 38).9 Esta informante de Romero afirma com categoria que a disposição de nomes, mudando com o tempo, a coloca em posição de destaque no que se refere à formação de sua identidade. O que antes servia para identificar seu modo de pensar e se comportar, agora não serve mais, pois os termos vão mudando e as pessoas também, até porque a intervenção tecnológica na modificação corporal muito contribuiu para se ir além das aparências. As palavras dão nomes às coisas e aos comportamentos da gente e isso muda com o avanço das pesquisas, que descobrem novos nomes que dão significados diferentes aos comportamentos em que nos reconhecemos, ou não, como afirma K. P. 1.3 AMPLIANDO FRONTEIRAS: SIGNIFICADOS DOS NOMES QUE INTERESSAM. Na década de 1910, Hirschfeld (NIETO, 1998) desenvolve um estudo sobre travestis. Sua investigação remonta a travestilidade, sem utilizar este termo, ao uso de roupas do sexo oposto com fins de erotismo. Por este feito se desenvolveram 9 “nos anos 60 apareceu dentro de minha perspectiva o conceito de travesti, ou travestí, como se dizia então, (...) e então, foi a primeira vez que vi algo que era efetivamente o que eu queria ser, então eu estive aceitando e usando a palabra travesti durante muito tempo porque de alguma maneira se representava mesmo que não fosse uma palabra muito exata em todo seu sentido porém enquanto identidade significava precisamente algo que era diferente da homossexualidade e tudo isso... e bem pouco depois já fui encontrando também o uso da palabra transexual, já me reconheci mais propriamente nessa palavra”. 76 investigações que estabeleceram o termo transexual como de destaque (na década de 40 e 50, com Caldwell e Alfred Kinsey). Na década seguinte, 1960, surge o termo transgênero cunhado por Virginia Prince e desenvolvido nos Estados Unidos para designar todos os que fazem parte de uma comunidade transgenérica (NIETO, 1998; MEJÍA, 2006), com o fim de facilitar “las vias para el reconocimiento de una realidad de géneros y identidades múltiples”10 (NIETO, 1998: 22). Transexual, até a década de 70, era a pessoa que passava pela transgenitalização. Nos anos 80 a concepção deixa de ser médica e passa a ser psicosocial, embora continue um problema a ser tratado. Quando se pensa na realidade do território espanhol, a transexualidade, a partir de uma sentença em 1987 do Tribunal Supremo da Espanha, passa a ser “un fenómeno sociológico que el derecho no puede ignorar y que obliga a tomar posturas”11 (GIL, 2006: 421). Mesmo assim, enquanto fenômeno sociológico, é bom entender o que define seus autores. Sesma (2005) é um exemplo: [...] cuando la identidad que me doy (me siento hombre) está en clara discrepancia con la identidad que me asignan (me ven y me clasifican como mujer); entonces estamos ante una situación de transexualidad. O sea, (...) Se tiende a distinguir entre 'transgénero' y 'transexual'. Pero ambos son transexuales, a efecto etimológicos. Que unos lleguen a modificar sus genitales-cuerpo y otros no, es otro cantar. (...) La clave no es sino la autoaceptación y felicidad personal. Y eso puede incluir, o no, a los genitales; pero 12 en todos los casos esas personas son transexuales. (SESMA, In: RUIZ, 2005: 10). Seu estudo se refere a um ponto de vista lingüístico. Não interessa ao nomeamento destas pessoas a mudança corporal total13. Este “otro cantar” parece com algo relacionado mais a uma questão de vontade própria de cada um do que à categoria, 10 “As vias para o reconhecimento de uma realidade de gêneros e identidades múltiplas”. “um fenômeno sociológico que o direito não pode ignorar e que obriga a tomar posturas” 12 “(...) quando a identidade que me dou (me sinto homem) está em clara discrepância com a identidade que me assinam (me veem e me classificam como mulher), então estamos diante de uma situação de transexualidade. Ou seja, (…) se tende a distinguir entre transgênero e transexual. Porém ambos são transexuais, a efeito etimológicos. Que uns cheguem a modificar seus genitais – corpo e outros não, é outra história. (...) A chave não é senão a autoaceitação e felicidade pessoal. E isso pode incluir, ou não, aos genitais; porém em todos os casos essas pessoas são transexuais.” 13 A transgenitalização, reassignação sexual, transforma o que antes seria uma genitália masculina/ feminina para o oposto (feminina/ masculina). 11 77 que nada tem a ver com o indivíduo, que não interfere no diferenciar-se entre ser travesti ou transexual, pois todos são iguais segundo a própria Sesma. No Brasil, entendemos transexual exatamente como uma pessoa que, pelo menos, deseja passar por todo o processo de transgenitalização, pois primeiramente não aceita seu órgão sexual masculino (não “desfrutando” dele), quando a transformação é H-M, de homem a mulher (NIETO, 1998; GIL, 2006; RUÍZ, 2005; BECERRAFERNÁNDEZ, 2003; ROMERO, 2006). E, por isso, cuida de modificar seu corpo com a reassignação. No estudo de Romero (2006) há um reforço de que […] la transexualidad significa todo un sentimiento interno de pertenencia al otro sexo y el proceso de cambio no és más que la adecuación del aspecto físico al sexo con el que la persona se identifica. Para algunos esta adecuación empieza antes, para otros más tarde; pero la pertenencia a un sexo o a otro es independiente de si se ha iniciado el cambio exterior o no, porque ese sentimiento de pertenencia ya está dentro de ellos desde siempre (Romero, 2006: 48). 14 A adecuación é a modificação corporal que se inicia com o tratamento para a transgenitalização: a hormonização e a psicoterapia, que dão base para a cirurgia definitiva. Desta maneira, interpreto como, por um lado, diferente da travestilidade, pois, mesmo com a identificação com o sexo oposto, não há, nas travestis, a pretensão de mudança dos genitais, nem o desejo de compreender a ambigüidade como problema, já que convivem muito bem com isso. É o sentimento de pertencer ao outro sexo, que compreendo como gênero, o que mais importa para Romero (2006). Em nossas frutíferas e longas conversas, ela sempre apontava para a cabeça quando falava sobre onde estava realmente o pertencimento ao outro gênero. Por outro lado, nas diversas obras que tratam de transexuais na Espanha, Sexólogos, Psicólogos, Psiquiatras, Médicos Endocrinologistas e Cirurgiões Plásticos afirmam ser a transexualidade um processo que se inicia com a hormonização, a 14 “A transexualidade significa todo um sentimento interno de pertencimento ao outro sexo e o processo de mudança não é mais que a adequação do aspecto físico ao sexo com o que a pessoa se identifica. Para alguns, esta adequação começa antes, para outros, mais tarde, porém o pertencimento a um sexo ou a outro é independente de se começou a mudança exterior ou não, porque esse sentimento de pertencimento já está dentro deles desde sempre”. 78 vivência do fenômeno como o sexo contrário por um período de, no mínimo, dois anos, comprovado através de algumas idas a psicanalistas específicos, assim como modificações corporais iniciais e anteriores a transgenitalização. Ou seja, o uso de hormônios, as operações estéticas e a vivência como se fosse de um gênero diferente ao assinado em nascimento é um processo que travestis do mundo todo vivenciam sem a necessidade de modificar seu sexo anatômico. E sem o acompanhamento médico formal. Desta forma, é possível entender que travesti pode ser igual a transexual, pelo processo de modificação corporal que acompanha as duas identidades. Nos poucos trabalhos encontrados sobre travestis na Espanha, um deles utiliza o termo como travestismo categorizando-o como transtorno, experiencia transitoria de pertenecer ao sexo opuesto y de reducir los niveles de tensión o ansiedad que presenta la persona que lo padece cuando no se traviste15 (GIL, 2006). A travestilidade, como a entendo, não tem espaço nas discussões dos coletivos na Espanha. O termo, neste país, parece se referir a uma imposição médica – transtorno – e psicológica – conduta que necessita de ajuda profissional, o que na verdade não encontra ressonância nos modelos representados pelas trans que conheço. Acerca da Ciência Médica, a Teoria Queer, aponta que “(...) la medicina y la pornografia dominantes funcionan como formas de pedagogia biopolítica que enseñan como hacerse un cuerpo hetero16”. (PRECIADO, 2005). Do mesmo modo posso analisar aqui com a ajuda da noção de habitus (BOURDIEU, 1994a; 1994b; 1988; 2007) enquanto um conjunto de disposições duráveis, que forma e é formado por agências pedagógicas. É a Medicina formadora destes costumes (ROHDEN, 2001), destas disposições, que trata de nomear o que usamos hoje, para determinar quem é quem nas apresentações de gênero. 1.4 ADEQUAÇÕES DE CADA LOCAL No caso dos Estados Unidos, a primeira noção, historicamente falando, afirma que transexual é categoria médica. Logo após são realizados estudos sobre o termo transgenderists, ou transgêneros. A Espanha se mostra contra transgênero e adota 15 “transtorno, experiência transitória de pertencer ao sexo oposto e de reduzir os níveis de tensão ou ansiedade que apresenta a pessoa que o padece quando não se traveste” 16 “a medicina e a pornografia dominantes funcionam como formas de pedagogia biopolítica que ensinam como fazer-se um corpo hetero” 79 transexual no discurso veiculado por coletivos em suas ações e escritos. Ou seja, não aceita os termos desenvolvidos para a identidade de transgênero, pois os vê como imposição de fora, por isso, o rechaço. E concorda com o termo transexual não encontrando neste nenhuma conotação ditatorial. Penso que a não aceitação da Espanha quanto a teorias transgenderists para travestis, transformistas, drag-queens e drag-kings, etc., faz parte de um processo de oposição ao que se produzia no período franquista, mesmo não tendo nada a ver com o General Franco e seu poder, mas que chegaram ao conhecimento de estudiosos exatamente num momento histórico de luta contra o que era imposição. Ou seja, em um período em que está em voga a liberdade de opinião e de comportamento, assim como a reivindicação por identificação contrária a tudo que lembre o momento. 1.5 COMO A ESPANHA PENSA A AMÉRICA LATINA Em escrito sobre “Uma exposição fotográfica de transexuales en Paraguay”, Cristina Santillán (2003-2004) afirma que, la gran maioría de los estudios conciben la transexualidad como producto final de un cambio, poniendo mayor énfasis en el resultado final o en los objetivos y no en la interacción social y sus procesos. En este sentido, las distintas historias de vida no están representadas en los discursos homogeneizadores de la transexualidad. No existe un lenguaje adecuado para expresar los diversos y dispares deseos que llevan (o no) a la reconstrucción o adecuación genital y corporal. Y muy especialmente no hay el lenguaje que dé cuenta de multiplicidad de situaciones y significados de la sexualidad humana. 17 (SANTILLÁN, 2003-2004: 39). Santillán afirma que é difícil determinar um termo próprio para a diversidade de representações sociais encontradas na sociedade ocidental. Mostra que há problemas que dificultam o determinar "a categoria", por conta de estudos fundamentalmente antropológicos que se empenham em denominar de forma diversa, com termos locais, 17 “a grande maioria dos estudos concebem a transexualidade como produto final de uma mudança, pondo maior ênfase no resultado final ou nos objetivos e não na interação social e seus processos. Neste sentido, as distintas histórias de vida não estão representadas nos discursos homogeneizadores da transexualidade. Não existe uma linguagem adequada para expressar os diversos e díspares desejos que levam (ou não) à reconstrução ou adequação genital e corporal. E muito especialmente não há a linguagem que dê conta da multiplicidade de situações e significados da sexualidade humana”. 80 seus interlocutores. Elenca os problemas como éticos; êmicos; de terminologia; e de tradução, do inglês para o castelhano. Para ela, os termos desenvolvidos por antropólogos em suas sociedades de estudo “no nos vale”, e sim a transexualidade “como algo más diverso y complejo, entendida como la conformación de una comunidad transgenérica”18 (SANTILLÁN, 40). Quando se pensa sobre a América Latina, na literatura espanhola, se associa um lugar pouco desenvolvido que não aceita os termos da metrópole. Autores, como Kim Perez (In: TRUJILLO, 2003-2004) apontam: Las transexuales que vivimos en Europa o América del Norte, en la confortable clase media del sistema global corremos el peligro de olvidarnos de que allí está la verdadera fuerza transformadora... y de nuevo aparece el prefijo 'trans'... a no ser que abramos nuestros brazos a las compañeras que vienen de allá, previsiblemente para constituir el nuevo proletariado sin papeles y sin derechos de nuestras sociedades del bienestar... para nativos 19 (p. 9). Em se tratando de defender status de classe, nesta citação fica claro a disposição de primeiro mundo e colonizador que a Espanha se coloca quando, por exemplo, esta interlocutora de Pérez determina em sua localização e "classe social". O nós se aproxima de América do Norte. Os/as outros/as são os/as da América Latina. Fica determinado assim o reconhecimento da força transformadora que é nosso continente, o sentido de união para com a nação colonizada, importante para a metrópole. Todavia, também está claro o reconhecimento da desigualdade entre os lugares e as pessoas, assim como os termos que, de novo, aparecem para marcar as diferenças entre os nativos e os colonizadores. Esta citação revela-nos um fenômeno interessante de hierarquização interna entre as trans da Espanha, que inclui a autora, influenciando as nominações que escolhem para designar a si mesmas enquanto espanholas, ativistas e participantes do 18 “como algo mais diverso e complexo, entendida como a conformação de uma comunidade transgenérica” 19 “As transexuais que vivemos na Europa ou América do Norte, na confortável classe média do sistema global corremos o perigo de esquecermos de que alí está a verdadeira força transformadora... e de novo aparece o prefixo 'trans'... a não ser que abramos nossos braços às companheiras que vem de lá, previsivelmente para constituir o novo proletariado sem documentos e sem direitos de nossas sociedades de bem-estar... para nativos.” 81 próprio coletivo que estão retratando em suas falas. Perez (In: TRUJILLO, 2003-2004) aponta o reconhecimento de venezuelanas, argentinas e chilenas em defender para si o termo travesti como “nombre de calle, de carro policial y desafío20”, também afirmado por Mejía (2006), e tão mal visto na Espanha. O que confirmo, em conversa com brasileiras e tantas outras latinoamericanas, que a realidade, seja onde for, é problemática, mas, mesmo assim o termo travesti acaba por não ser desprezado, principalmente no cotidiano. Carla Antonelli (In: TRUJILLO, 2003-2004) em um de seus artigos, define a América Latina como “un infierno para transexuales”. Através de notícias da Anistia Internacional, demonstra fatos que comprovam sua afirmação: El llamado Nuevo Mundo está todavía por ser explorado si por ello se entiende la inculcación de la tolerancia y el respecto a los demás, así como la convivencia de las personas independientemente de su raza, sexo o religión; pero sobre todo a causa de su identidad sexual21 (p. 87). Esta informação não distoa de uma realidade cruel de discriminação e violência que sofrem as travestis todos os dias, principalmente em países como os da América Latina, onde lemos, ouvimos na mídia, sensacionalista ou não, o quanto sofrem por não se adequarem ao socialmente estabelecido. No que pude ler sobre a América Latina, não encontrei com facilidade fatos sobre Brasil, algumas vezes incluído nos "etc.", na lista de países latino-americanos que herdaram da Europa uma sociedade patriarcal, intolerante e fascista. Sobre isso, Scott (2007) comenta: Os brasileiros figuram entre os recém-chegados, ocupando uma posição dúbia de quase hispana, parcialmente isolada pela sua língua, mesmo que favorecida em comparação com migrantes de origem não latinas. É impressionante como os brasileiros freqüentemente são ignorados pelos próprios compiladores de dados sobre migrações das Américas! (p. 13) 20 “nome de rua, de viatura da polícia e desafio.” “O chamado Novo Mundo está para ser explorado se por ele se entende o inculcamento da tolerância e do respeito aos demais, assim como a convivência das pessoas independente de sua raça, sexo ou religião; porém sobretudo por causa de sua identidade sexual. ” 21 82 Penso, em relação ao estudo de Antonelli (TRUJILLO, 2003-2004), que Brasil não foi incluído em sua pesquisa por falta de dados, como também, de um ponto de vista mais específico, por não fazer parte da América hispânica, assim, com menos representação nos coletivos na Espanha, pois fica claro, em visitas a eventos nas associações, a quase nulidade da participação de brasileiros. Resumindo: ser travesti na maior parte da literatura disponível quer dizer ser de outro local e época, se possível menos desenvolvido, mesmo que em observações de campo e conversas com interlocutoras, até as espanholas, as identidades fiquem afirmadas como de travestis e não de transexuais, como os escritos e associações informam. É possível imaginar que estas noções de travesti e transexual, defendidas pelos coletivos e alguns estudiosos de gênero na Espanha, façam parte de uma imagem de América, e me arrisco a dizer, de Brasil. 1.6 SOBRE TRANSGÊNERO E SEU USO NA ESPANHA Em termos de conceito, Garaizabal (Apud NIETO, 1998) defende o mesmo que Nieto (1998), considerando a relativização de gênero. Ambos têm perspectivas iguais, porém este último com um olhar menos politizado, quando esclarece: Eliminar el concepto psiquiátrico de la transexualidad supone, pues, eliminar el tratamiento médico de la misma. Claro que esta desmedicalización de la transexualidad probablemente conllevará, como bien señala una activista defensora de los derechos civiles de los transgeneristas, la desaparición de las ayudas económicas dirigidas a facilitar el pago de la cirugía de cambio de sexo, objetivo prioritário de la comunidad transgenérica a nivel internacional22 (NIETO, 1998: 27). Para Nieto (1998), o termo transgênero é mais apropriado atualmente do que a forma como venho designando, travestilidade. E transexual é mais um termo empregado 22 “Eliminar o conceito psiquiátrico da transexualidade supões, pois, eliminar o tratamento médico da mesma. Claro que esta desmedicalização da transexualidade provavelmente levará, como bem assinala uma ativista defensora dos direitos civis dos transgêneros, ao desaparecimento das ajudas econômicas dirigidas a facilitar o pagamento da cirurgia de mudança de sexo, objetivo prioritário da comunidade transgenérica em âmbito internacional.” 83 em seus estudos. Na obra citada23, transgênero é tema novedoso, contradictório, falto de consenso, sometido a debate, con polémica asegurada y apasionante24 (NIETO, 1998: 15). Mesmo assim, percebe-se que ele também une na categoria transgênero todas as apresentações de gênero, quando afirma que a “los preoperados y postoperados se unem los no operados que no se quierem operar. Igualmente, forman parte de la comunidad, travestidos y en su más amplia acepción cross-dressers”25. (NIETO, 1998: 29). O que é bem comum quando se lê sobre o significado da própria palavra. Fica claro que os estudos antropológicos não estão em consonância total com a discussão sobre transexualidade, a título de produção escrita, que as associações de transexuais estão realizando no propósito de legitimar o conceito. O próprio Nieto continua, La comunidad transgenérica se compone, en definitiva, de un conjunto de 'identidades personales', que se organizan (o aspiran a organizarse) en forma de movimiento social y que en la reivindicación de sus derechos se desprenden del encapsulamiento de los sistemas de sexo/género que societa-riamente les viene impuesto y en ese hacer intentan desvincularse de 'la agencia de los controladores privilegiados de los cuerpos individuales: la profesión médica'. En tanto que comunidad, los transgeneristas parecen reunir los requisitos de la 'unitas multiplex', la conjunción de lo singular y lo diverso, de la unidad y la multiplicidad.26 (1998: 31) O termo transgênero surgiu nos Estados Unidos, coincidindo com o fechamento de clínicas de transgenitalização, por isso, é “una forma de emancipación de la tutela de los médicos” (MEJÍA, 2006: 169), defendida por esta autora como a melhor forma de identificação. Mas, que, por esta origem, a população trans na Espanha não se identifica, 23 Compilação de textos traduzidos da língua inglesa, de 1975 até 1993. “tema novo, contraditório, ausente de consenso, submetido a debate, com polêmica garantida e apaixonante”. 25 “aos pré-operados e pós- operados se unem os não operados que não querem operar. Igualmente, formam parte da comunidade travestis e em sua mais ampla acepção cross-dressers” 26 “A comunidade transgenérica se compões, definitivamente, de um conjunto de 'identidades pessoais', que se organizam (ou aspiram a organizar-se) em forma de movimento social e que na reivindicação de seus direitos se desprendem do encapsulamento dos sistemas de sexo/gênero que socialmente vem imposto e nesse fazer tentam desvincular-se da 'agência dos controladores privilegiados dos corpos individuais: a profissão médica'. No entanto, em comunidade, os transgeneristas parecem reunir os requisitos da 'unitas multiplex', a conjunção do singular e do diverso, da unidade e multiplicidade”. 24 84 pois “le parece un intento de imposición desde el exterior”. Assim como me parece uma inversão do jogo de representação democrática, em que a Espanha precisa criar uma legitimidade para os termos que adota, como próprios, em sua população. Mejía informa que o termo transexual também foi cunhado pela Medicina, mas não rechaçado pela Espanha, porque “las trans nunca hemos sufrido la dictadura de los médicos” (2006: 161). Pois se entende como ditadura apenas a política franquista, uma forma muito reduzida, porém contextualizada, de compreender o termo. Todavia, uma forma de entender a repressão, não apenas às travestis, embora seu alvo de análise seja este, porque eram os policiais quem mais as reprimiam, diferente da Espanha atual. Policiais estes, sob o mando do General Franco, que muito utilizavam a palavra travesti para as trans que ali se encontravam. Transgênero parece o mais apropriado cientificamente, por se referir a trânsito ou transgressão de normas pré-definidas, e assim proporia uma maior relativização. Mas, na Espanha, mesmo com a rejeição aos termos travesti e transgênero no ativismo e na literatura, utilizar a palavra trans é comum quando se conversa com as interlocutoras. Todavia, reconheço a força do nome travesti, de destaque como nome usual, independente de que trabalho realizem e em que lugar estejam; por isso não é possível desprezar nem substituir definitivamente o nome pelo qual elas ainda se identificam. Intitular-se travesti não é problema na América Latina. Já na Espanha esse uso é complicado, pelo fato da própria América Latina e Brasil continuarem sendo um problema enquanto lugares que exportam pessoas das mais variadas formas possíveis. Sobre nomes e seus usos, Butler (1997) afirma: Uno no está simplemente sujeto por el nombre por el que es llamado. Al ser llamado con un nombre insultante, uno es menospreciado y degradado. Pero el nombre ofrece también otra posibilidad: al ser llamado por un nombre se le ofrece a uno también, paradójicamente, una cierta posibilidad de existencia social, se le inicia a uno en la vida temporal de lenguaje, una vida que excede los propósitos previos que animaban ese nombre. Por lo tanto, puede parecer que la alocución insultante fija o paraliza a aquel al que se dirige, pero también puede producir una respuesta inesperada que abre posibilidades. Si ser objeto de la alocución equivale a ser interpelado, entonces la palabra ofensiva corre el riesgo de introducir al sujeto en el lenguaje, de modo que el sujeto llega a usar el lenguaje para hacer 85 frente a este nombre ofensivo. 27(p. 17) Lembro do estudo de Silva (2007b), em que “as bonecas” se negavam a fornecer seu nome de registro, e por isso continuavam presas; afrontavam o poder policial da época, assim como a própria mídia e a sociedade, tanto por negarem seus nomes oficiais, o que as protegia, por um lado, como por assumirem seus nomes de rua, fazendo deles seu escudo. São palavras como travestis e “bonecas” que caracterizam ofensivamente a pessoa, dependendo do contexto em que esteja vinculada e do espaço em que é mencionada. Embora, por exemplo, as trans28 do encontro de Cogam29 , fora do espaço das palestras se cumprimentavam como bem queriam, não importando a discussão travada naquele dia30. Garaizabal (Apud NIETO, 1998) percebe a diversidade na transgeneridade, embora afirme que todas são transexuais: Mi experiencia me permite afirmar que hoy, en nuestro país, muchas personas que se definen y viven como transexuales no tienen ninguna intención de someterse a la intervención quirúrgica de cambio de sexo. Entre otros factores porque no viven mal sus genitales. Más aún: porque disfrutan con ellos. Suelen ser personas equilibradas, que 27 “Um não está simplesmente sujeito pelo nome pelo qual é chamado. Ao ser chamado com um nome insultante, é menosprezado e degradado. Porém o nome oferece também outra possibilidade: ao ser chamado por um nome se oferece a um também, paradoxalmente, uma certa possibilidade de existência social, se inicia a um a vida temporal da linguagem, uma vida que excede os propósitos prévios que animavam esse nome. Portanto, pode parecer que a locução insultante fixa ou paralisa aquele ao que se dirige, porém também pode produzir uma resposta inesperada que abre possibilidades. Se ser objeto da locução equivale a ser interpelado, então a palabra ofensiva corre o risco de introduzir o sujeito na linguagem, de modo que o sujeito chega a usar a linguagem para fazer frente a este nome ofensivo”. 28 Continuo utilizando este termo, principalmente em relação ao evento da Cogam por lá se encontrarem tanto travestis como transexuais (as operadas). 29 I Taller de Prevención de la transmisión de VIH e ITS dirigido a personas Transexuales trabajadoras del sexo. Organizado por Cogam, com participação de Aprampt e Programa de Información y Atención a Homosexuales y Transexuales de la Comunidad de Madrid. [sic] 30 Tal como afirmou Tina, que travesti e transformista não é igual a transexual. Por isso não concorda que todas sejam denominadas de transexuales. Todavia, para ela, ser chamada de transexual, travesti ou transgênero não importa muito, pois com todas as discussões e modificações de lei, nada mudou em relação ao preconceito das pessoas e os horrores que estão acontecendo nas ruas e mesas de cirurgia. O estigma (GOFFMAN, 1963) é o mesmo para todas, mesmo mudando suas (auto) definições quanto à apresentação de gênero. Outra colocação importante foi a de Ana que não aceita nenhum dos termos em vigência, pois todos eles não dizem realmente como ela se sente, são apenas denominações atualizadas para determinar quem não se satisfaz com o gênero assinado em nascimento, por isso se diz o tempo todo mulher. Ambas são espanholas, têm mais de 40 anos de idade e aproximadamente 30 anos trabalhando como profissionais do sexo na Casa de Campo, que teve suas atividades, neste ramo, proibidas no ano de 2007. 86 reivindican su diferencia y su transexualidad con orgullo; que gustan de mostrar su ambigüedad y ambivalencia en relación a los géneros, siendo conscientes de la estructura inestable y construida que éstos tienen. 31(p. 47) Este posicionamento de Garaizabal é adequado para o uso do termo travestilidade no Brasil, modificando a palavra, apenas, e mantendo o ethos do grupo. Entendo a defesa de Garaizabal (Apud NIETO, 1998) por sua posição de psicóloga e feminista. E no mesmo texto fica claro que as categorias não podem ser estanques, pois, na prática, a experiência humana é muito mais rica que os escritos que pretendem estabelecer categorias de identificação. Garaizabal adota uma postura crítica em relação à perspectiva clínica, que denomina transexual como um transtorno da pessoa, possuindo graus de evolução (transexuais verdadeiros, transexuais primários, transexuais secundários...) e sem perspectiva que não seja a mudança de sexo com a intervenção cirúrgica. Mais uma vez: é o corpo em evidência para se pensar as trans. Contudo, a autora continua utilizando o termo transexual em todo o seu artigo, ao falar das novas apresentações de gênero. 1.7 CABE UNIR OS NOMES ÀS PESSOAS? Em termos de estudos de identificação de travestis brasileiras, não é adequado utilizar transexuais como termo êmico para caracterizá-las, apenas porque me propus realizar um estudo entre Brasil e Espanha, onde elas circulam e se ambientam nos termos modificados e onde até algumas delas presenciam uma política, que vem funcionando, em que todas são “transexuales”. Porque, quando se trata de identificar as interlocutoras, individual ou coletivamente, mesmo entendendo o caráter transitório do gênero no qual se autodenominam no Brasil, não cabe sonoramente, lingüisticamente, nem tem significado na vida real delas. Figueiredo (2008) até “brinca” com a proximidade das palavras transgênero e transgênico e por isso parecer algo que ninguém, pelo fato da 31 “Minha experiência me permite afirmar que hoje, em nosso país, muitas pessoas que se definem e vivem como transexuais não tem nenhuma intenção de submeter-se a intervenção cirúrgica de mudança de sexo. Entre outros fatores porque não vivem mal com seus genitais. Mas ainda: porque desfrutam com eles. Costumam ser pessoas equilibradas, que reivindicam sua diferença e sua transexualidade com orgulho; que gostam de mostrar sua ambiguidade e ambivalência em relação aos gêneros, sendo conscientes da estrutura instável e construída que estes tem.” 87 impropriedade que a mistura produz, quer adotar para si. Apenas dentro das discussões de movimentos sociais, discussões impostas e apenas de cunho político, o que não conduz a nenhum uso no cotidiano delas. Principalmente porque no Brasil, e no Recife, a teoria queer não funciona. Desta maneira, opto por reafirmar a categoria travestilidade, em consonância com a literatura brasileira analisada, quando fala da condição e ressignificação das palavras na realidade das travestis que convivo, muitas com experiências que apontam para uma multiplicidade dentro do universo vivido e compartilhado por elas. Opto por travestis e trans, principalmente por estar lidando com pessoas que circulam em espaços transnacionais, o que implica mudanças de comportamento e nomenclaturas diferenciadas para a adaptação ao território em que se encontram. Concordo com as interlocutoras brasileiras quando afirmam que o motivo da defesa do termo transexual "para todas" vem de uma insatisfação com a experiência no trabalho e a linguagem falada pela maioria: bajubá ou pajubá (PELÚCIO SILVA, 2007), desenvolvida nas ruas e grupos de pares, principalmente na realidade da prostituição, porque travesti passa a ser reconhecida como nome marginal, devido à discriminação que tem sofrido historicamente por nossas terras. O que muito já se experimentou na Espanha. Uma outra questão é a multiculturalidade da Europa, que oferece a quem está por lá uma anonimidade de pessoa comum, o que elas almejam em determinadas situações, principalmente naquelas em que o “apontar o dedo” e o “olhar pelo canto do olho” (SILVA, 1993) significam ameaças. Anonimidade marcada pela presença da diversidade sexual enquanto direito, o que diminui qualquer discriminação neste sentido, em meio à gama de diferenças entre as pessoas. Na Espanha, as travestis brasileiras “não se sentem mal” (grifo meu) ao serem nomeadas transexuais. E isso se justifica pelo fato do termo transexual não remeter a atitudes homofóbicas, ou transfóbicas, na mesma intensidade que elas sofrem no Brasil: nem por conta dos sentidos da palavra, diferentes lá e aqui, nem tampouco pela condição em que se apresentam em termos de gênero. Embora isso seja importante para entender o posicionamento delas no Brasil, quando retornam. Na Espanha, há uma adesão coletiva a um movimento que quer o país na linha democrática e que por isso reforça a integração plena na comunidade européia, 88 rejeitando um passado ditatorial, já não desejado e imbricado diretamente a um movimento não mais interessante para a construção da nação. Este movimento tem como pressuposto ressignificar o país enquanto livre de identidades e nomes que sugerem algum tipo de imposição. Segundo Antonio Burgos, na década de 7032, o argumento sobre a democracia na Espanha era justificativa para rechaçar qualquer pretensão ditatorial e que lembrasse o governo do General Franco. Sobre as travestis, ele afirma: [...] hay un grupo, dentro de los homosexuales, que no sólo continúa padeciendo la represión franquista, sino que en la ola de libertades públicas ha sido presa fácil de una manipulación consumista en el mundo del cine y del espectáculo. Son los viejísimos imitadores de estrellas, ahora, dicho a la europea, travestis. (...) el travestismo tiene unas viejas raíces en el mundo español del espectáculo; sólo que el general cortó de raíz estas manifestaciones. Acabada la rabia, el fenómeno ha vuelto a aparecer en toda su grandeza subterránea. No es que se haya inventado nada. Es que ha salido a la luz pública cuanto había. En los más duros años de la dictadura, cuando no solamente se perseguía con la Ley de Vagos y Maleantes a los imitadores de estrellas, sino que los eminentísimos señores cardenales - arzobispos dictaban penas de excomunión contra los espectáculos dichos revisteriles de las estrellas imitadas, por las ciudades y pueblos de Andalucía, Extremadura, Canarias, había hombres de dudoso sexo que secretamente imitaban las canciones y los contoneos de doña Concha Piquer, de Carmen Miranda, de Mari Paz. (...) El travestismo está de moda y sus productos subculturales son comercializados sin miramientos, tal como son vendidos en circuitos industriales los 'posters' del Che o los discos con las canciones de la resistencia española. Para muchos es un mundo nuevo. Para otros, simplemente un mundo recuperado33. (Triunfo, 1977: 41). 32 Revista Triunfo, 1977 “há um grupo, dentro dos homossexuais, que não só continua padecendo da repressão franquista, senão que na onda das liberdades públicas tem sido presa fácil de uma manipulação consumista no mundo do cinema e do espetáculo. São os antigos imitadores de estrelas, agora, dito à européia, travestis. (…) o travestismo tem velhas raízes no mundo espanhol do espetáculo; só que o general cortou na raiz estas manifestações. Acabada a raiva, o fenômeno voltou a aparecer em toda a sua grandeza subterrânea. Não se inventou nada. É que saiu à luz pública quanto havia. Nos mais duros anos da ditadura, quando não somente se perseguia com a Lei dos Vagos e Meleantes aos imitadores de estrelas, senão que os eminentíssimos senhores cardeais – arcebispos ditavam penas de excomunhão contra os espetáculos ditos de revista das estrelas imitadas, pelas cidades e povoados de Andaluzia, Estremadura, Canárias, haviam homens de sexo duvidoso que secretamente imitavam as canções e danças de Dona Concha Piquer, de Carmem Miranda, de Mari Paz. (…) O travestismo está na moda e seus produtos subculturais são comercializados sem deslumbre, tal como são vendidos em circuitos industriais os posters de Che ou os discos com as canções de resistência espanhola. Para muitos é um mundo novo. Para outros, simplesmente um mundo recuperado.” 33 89 O movimento político espanhol, segundo o ativismo queer, procura termos para abarcar a diversidade sexual e torná-la um elemento negociável na legislação. E têm conseguido. Terminam assim por realçar as enormes limitações de alguns termos e tentam englobar as diferentes apresentações de gênero na terminologia transexual. Com esta direção política definida, passam a enfatizar a rotulação diferenciadora estigmática de travesti como aplicável, na prática, a imigrantes34. Alguns destes imigrantes se integram na luta e no atendimento de ONGs e OGs que estão encabeçando reivindicações pela legitimação de leis e nomenclaturas oficiais. Por isso, penso que há uma vontade política forte no uso do termo, pois algumas travestis espanholas com quem mantive contato participam com freqüência dos coletivos e obtêm com isso representação política nas discussões de governo, o que é muito importante, principalmente quando se observa as conquistas, em termos de leis35 que a Espanha tem obtido nesta última década. Por isso, entendo o uso da expressão transexuais 'para todas/os' como uma política em que o movimento se une à produção acadêmica, teoria queer36, com uma ressalva do uso do termo transgênero não ser adotado, por uma questão bem clara para o ativismo. Nós, brasileiros, ainda não estamos bem posicionados, geopoliticamente, para fazer esta relação, lidar com uma política inclusiva, que na Espanha admite assessores e secretários transexuais. Entendo que o termo, prefixo usado sem o restante da palavra, "trans", por si só dá margem a várias interpretações e realidades que consegui visualizar em campo. E, para a luta política compreendo a necessidade da junção de conceitos que se proponha abarcar a comunidade em questão. Mas, com isso, o termo travesti nem aparece como possibilidade. Desta forma, pelo fato de se defender a transexualidade como termo igual para todas, com o objetivo de luta por direitos iguais, termina-se por defender a transexualidade, como entendemos no Brasil, e seu tratamento médico e legal, tal como afirma Nieto (1998). No Recife transgênero foi um dos termos que tentou firmar terreno entre elas, mas, não consubstanciou-se. Atualmente elas preferem trans por abarcar uma possibilidade maior de inclusão dentro da própria travestilidade. E não excluem 34 Ver Kim Perez In: TRUJILLO, 2003-2004. Ver Lei de Identidade de Gênero, 03/2007. 36 Com teóricos emprestados da Psicanálise e do pós estruturalismo francês (PRECIADO, 2003; 2005). 35 90 “travesti”, porque percebido com maior força, melhor correspondência ao gênero que escolheram para si e facilidade na rapidez da identificação. Desde a primeira viagem à Europa, quando passam um tempo na Espanha, as travestis brasileiras se adequam a novas intitulações, o que denota uma hierarquização terminológica, clara também nas modificações de comportamento delas mesmas em relação às que ficam. Estas modificações acabam implicando politicamente na vida pessoal, ao ponto de ser possível pensar a Europa como modeladora de nomenclaturas mais atualizadas e “apropriadas” para uso corrente no Brasil. Entendendo desta maneira, acaba-se por confundir o real objetivo da viagem, incidindo sobre a modificação corporal definitiva – a transgenitalização – o motivo da circulação daquela travesti, o que não condiz com o desejo pessoal de muitas, embora seja interessante enquanto um dos truques que usam para serem melhor reconhecidas perante os que ficam. REFERÊNCIAS BECERRA-FERNÁNDEZ. Transexualidad. La busqueda de uma identidad. Madrid, Díaz de Santos, 2003. BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. 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Para Caputo, a técnica em Heidegger representa o ponto alto de sua filosofia e só é possível de ser pensada a partir daquilo que Caputo chama de Mito do ser fundado por Heidegger: Mito que aponta para os gregos e os alemães como aqueles que realizaram de modo autêntico o destinamento do ser na História. Temos que analisar, portanto, se a essência da técnica em Heidegger conduz seu pensamento político e torna possível seu endossamento ao nazismo. Palavras-chaves: Técnica, Gestell, Mito, Ontologia, Ciência. ABSTRACT: This article aims at discussing the Heidegger´s idea on technique essence and the Caputos´s interpretation on such account. Defining technique essence as Gestell – and understanding that te/xnh (tékhne) is the proper way of calculator thought unlike the meditative thought – delimits the technique essence question into its ontological sphere. For Caputo, technique in Heidegger´s thought represents the peak of his philosophy and it is only possible to be thought from Being Myth, as Caputo says, founded by Heidegger. This Myth points to the Greeks and Germans as those who have carried out in a proper way the Being destination on History. Therefore, we have to analyze if the technique essence in Heidegger´s thought lends to his political thought and makes possible his Nazism endorsement. Key-words: Technique, Gestell, Myth, Ontology, Science. 1 Doutorando do Programa Interinstitucional em Filosofia (UFPE-UFPB-UFRN).Professor da Faculdade Joaquim Nabuco. E-mail: [email protected]. 95 Em termos gregos, para Heidegger, noei=n (noein), e0o/n (eón) e moi=ra (moira) definem um território em comum, o Ereignis: o advento, o acontecimento-apropriação pelo qual o ser se ilumina no que lhe é próprio, ou seja, na sua essência e na sua proveniência. Neste sentido, parte-se primeiramente do pensamento (noei=n) para o trazer de volta ao ser como Dobra (e0o/n) que só é possível ser pensado a partir de sua destinação (moi=ra). Mas desde Parmênides – Frag. 6 – que o pensamento está atrelado ao dizer, le/gein (légein). O dizer, em sentido mais originário – via Homero – nos indica um “pôr” (legen), constituindo uma plurivocidade do termo. Heidegger interpreta esta dinâmica de sentidos afirmando que “para os Gregos, deixar qualquer coisa ser postadiante-de tal como já está posta, é deixá-la aparecer”2. Le/gein e noei=n formam um par que surge como o “deixar-estar-posto-diante-de (Vorliegen-lassen) e o tomar à sua guarda (In die Acht nehmem)”3: o primeiro determina o segundo, ocorrendo uma copertença, uma reciprocidade mútua entre ambos. Deste modo, o pensamento, em sua abertura original, se mostra como uma memória e uma escuta, um recolhimento do presente4. Tanto assim é, que noei=n irá aparecer no Fragmento 3 de Parmênides atrelado ao verbo ei]nai (einai). Ser e pensar, o mesmo. O to\ au0to – (to auto) o mesmo – é compreendido como uma relação de pertença mútua entre ser e pensar. Mais ainda: o pensamento pertence ao ser. Só onde há ser, eclode o pensar. O pensamento meditante, segundo Heidegger, é aquele que se mantém na obediência ao ser. O pensamento calculador, por outro lado, é aquele que se afastou de seu elemento original. Não se trata de um pensamento vazio, sem conteúdo, mas de um pensamento que se mantém na obediência daquilo que não lhe é próprio. Como nos diz Heidegger na sua carta Sobre o “Humanismo”: Para primeiro aprendermos a experimentar, em sua pureza, a citada essência do pensar, o que significa, ao mesmo tempo, realizá-la, devemos libertar-nos da interpretação técnica do pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles. O próprio pensar é tido, ali, como uma tékhne, o processo da reflexão a serviço do fazer e do operar5. 2 ZARADER, Marlene. Heidegger e as palavras da origem. Lisboa: Piaget, 1998.p. 134. Op. Cit. p. 135. 4 Cf. Op. Cit. p. 138. 5 HEIDEGGER, Martin. Sobre o “Humanismo”. In:______. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril, 1984. (Os Pensadores). pp. 149-50. 3 96 O sentido da reflexão, neste ponto, se assenta sobre a praxis e a poíesis. A poi/hsiv , que já no Banquete (205b) de Platão surge como produção – e que tem na natureza, fu/siv, sua máxima expressão – rege a essência daquilo que foi denominado como te/xnh. Este entrelaçamento, que une sob uma co-pertença termos que aparentemente são distintos entre si, permite que Heidegger pense a essência da técnica atrelada à sua compreensão muito particular da verdade, a0lh/qeia (alétheia). Se nós traduzirmos a palavra grega a0lh/qeia de modo direto, teremos o termo desvelamento (Unverborgenheit). O que se pensa com esta afirmação é que a a0lh/qeia precisamente, “a saída para fora da lh/qh, o surto ao aparecer, a vinda à presença”6 a0lh/qeia fala de um deixar para trás a lh/qh, sua origem e, neste deixar para trás, assinala sua desocultação, ou seja, ela mesma, como condição de conhecimento do ente, aponta para a primeira determinação da fu/siv grega, ou seja, “a eclosão mesma do ente no seu ser”7, já que o ser é o que se oculta e se vela e se mostra a partir deste ocultamento8. É assim que Heidegger poderá definir a técnica como “uma forma de desencobrimento”9. Este desencobrimento vale como o traço fundamental da técnica, daí sua relação com a verdade. As quatro causas fundantes da filosofia – causa materialis, formalis, finalis e efficiens – encontram seu seio no âmbito mesmo deste desencobrimento. Por quê? Ora, é no desencobrimento que se funda toda produção. Produzir já diz este trazer à tona, o desocultar daquilo que estava velado, de-monstrar, trazer à luz. Diferentemente da fu/siv, que é um “surgir e elevar-se por si mesmo”10, a técnica “des-encobre o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá”11. Mas, em sentido diverso da técnica entendida como poi/hsiv, a técnica moderna é uma exploração que “impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada”12; trata-se de uma provocação. Heidegger, para acentuar esta diferença, usa de exemplos que, num primeiro momento, nos parecem estranhos – a 6 ZARADER, M. Op. Cit. p. 78. HEIDEGGER, Martin. Einführung in die Metaphysik. Tübigen: Niemeyer. 1953. p. 77. Apud ZARADER, M. Op. Cit. p. 78. 8 Cf. ao ser como ser dos objetos da experiência – e sua relação com o poder de conhecer – ver o segundo capítulo, § 27, da obra Que é uma coisa?(Die Frage nach dem Ding) de Heidegger. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990. pp. 228-9. 9 HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In:______.Ensaios e conferências. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.p. 17. 10 Op. Cit. p. 16 11 Op. Cit. p. 17. 12 Op. Cit. p. 19. 7 97 nós, aqueles inseridos na vida fáctica da técnica moderna. Assim, o trabalho do camponês, bem como o antigo moinho de vento, não provocam e desafiam o solo agrícola ou o rio. A técnica moderna dis-põe da natureza, e isto mesmo no sentido de uma exploração.Este processo abre e ex-põe a própria natureza. Há, neste ponto, a compreensão de um desencobrimento explorador: aquele que extrai, transforma, estoca, distribui e reprocessa. Entretanto, mesmo aqui, sabendo-se que é o homem quem realiza a exploração que des-encobre o chamado do real, para Heidegger o homem não possui em seu poder o desencobrimento “em que o real cada vez se mostra ou se retrai e se esconde”.O homem realiza sua participação no desencobrimento quando age na técnica. Isto significa que a essência da técnica está para além de sua onticidade. Este modo de pensar só é possível porque Heidegger, desde os primórdios de sua Analítica Existencial, elaborou a questão do sentido do ser à luz da diferença ontológica. Ele salta do essentia latino-romântico para o Wesen grecogermânico. O homem é provocado a abordar a natureza como objeto de investigação. Heidegger propõe um termo de difícil tradução para indicar esta “interpelação única que reúne o homem e o real à volta de uma única tarefa de que eles são apenas os dois elementos complementares”13: Ge-Stell. Nas palavras de Heidegger, Ge-Stell significa “a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade”14. Esta compreensão está atrelada à própria compreensão heideggeriana da diferença ontológica: a diferença entre o ser e os entes. Esta diferença, e sua estruturação na vida fáctica, comporta, ainda, uma idéia heideggeriana bastante interessante: trata-se do destinamento do ser. Este destinamento nos diz que “o ser se nos atribui e se aclara e clarificante arruma o tempo-espaço, onde o ente pode aparecer”15. E ainda mais: “[...] o ser, ao remeter-se, produz o campo livre do espaço de jogo temporal e com isso o homem primeiramente num campo livre liberta as suas respectivas possibilidades essenciais remetidas”16. 13 ZARADER, M. Op. Cit. p. 148. HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Op. Cit. p. 24. 15 Idem. O Princípio do Fundamento. Lisboa: Piaget, 1999.p. 95 16 Op. Cit. p. 138. 14 98 A história do direcionar e do libertar é a base para entendermos que, na época moderna, “o presente mostra-se em posição de objetividade”17. Deste modo, Heidegger pode entender que a essência historial da técnica, posterior a aparição histórica da ciência – entendida aqui como teoria do real – é que determina seu curso. O Ge-Stell determina, nas diversas manifestações da técnica, sua essência enquanto comum. Este encadeamento histórico – que envolve um a priori e um a posteriori – permite pensar o coração da ciência moderna como e0pisth/mh (epistéme). Esta determinação da essência da técnica não se dá como algo técnico ou maquinal, mas indica, outrossim, o modo como o real se des-encobre - e aí reside a dis-ponibilidade. Não se trata, contudo, de pensar uma demonia da técnica, já que Heidegger localiza o perigo em outro lugar. Uma vez que ao realizar a técnica o homem já participa da dis-posição – entendida como um modo de desencobrimento – entende-se o perigo atrelado ao fato do homem ficar exposto a um perigo que provém do próprio destino. O perigo mesmo é o destino do desencobrimento, nomeadamente quando o homem equivoca-se com o desencobrimento e chega a interpretá-lo mal. Para Heidegger, não se trata de um entre tantos outros perigos, mas este é o perigo. É aqui que entra Caputo como um contraponto a Heidegger. Caputo quer nos fazer ver que Heidegger funda o Mito do ser. Este Mito não surge inicialmente nas primeiras conferências de Heidegger em Friburgo que deram origem a Ser e Tempo, já que inicialmente teríamos aqui uma “hermenêutica da facticidade” que Caputo compreende em duas frentes: “[...] por um lado, do mundo da vida fáctico das comunidades do Novo Testamento, sedimentadas abaixo da ontoteologia dogmática da tradição; e, por outro lado, do mundo da vida fáctico da ética aristotélica, sedimentada abaixo da metafísica da ousia”18. Se seguirmos Caputo, podemos mesmo afirmar que já no § 44 de Ser e Tempo há uma possibilidade de divisarmos este Mito, uma vez que ali se pensa o fenômeno originário da verdade (Das ursprüngliche Phänomen der Wahrheit) em oposição ao conceito tradicional de verdade (Der traditionelle Wahrheitsbegriff)19. Isto é possível porque são os primeiros gregos que pensavam o ser na sua existência como presença dentro da a0lh/qeia. A verdade só pode ser romantizada e cristianizada como veritas após as tentativas de Platão e Aristóteles em precisar “esta 17 ZARADER, M. Op. Cit. p. 145. CAPUTO, John D. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Piaget, 1998. p. 19. 19 Cf. HEIDEGEER, M. Sein und Zeit. 19ª ed. Tübingen: Niemeyer, 2006. pp. 214 e 219. 18 99 concepção com uma <<definição>> do elo existente entre o pensamento e o ser que relegou para segundo plano o aspecto da alétheia como desocultação”20. O problema, para Caputo, é que a a-létheia, assim com a diffèrance de Derrida, não é nem um nome nem um conceito e, portanto, não possui unidade nominal. A alétheia original deve ser, seguindo estas prescrições, ante-histórica. Mas parece que a alétheia grega, aquela que surge historicamente entre os pré-socráticos, é a mesma que esta a-létheia original. Não é de se estranhar que Caputo pergunte como isto é possível, ou seja, como este Wesen da história – que permite que a história seja – e que nunca pode ele mesmo ser histórico, pode deixar suas marcas numa época histórica? O Mito do ser remete a um começo primordial situado exclusivamente entre os primeiros gregos, excluindo qualquer possibilidade de pensarmos uma inserção desta escuta atenta originária entre a tradição greco-judaica. O Mito do ser é também o Mito da Origem (Ursprung) e do Começo (Aufang). É assim que Caputo pode escrever que “os <<Gregos>> de Heidegger não são algo meramente <<histórico>> (geschichtlich), mas destinadores (geschicklich), condutores do próprio destino (Geschick) do Ocidente”21. Caputo não está propenso a aceitar a idéia de um povo grego originário doador de determinadas tradições lingüísticas, científicas e sociais do Ocidente. Este Mito do ser, que ganha contornos heróicos e poéticos no último Heidegger, possibilita-o pensar o Quádruplo. Escreve Caputo: Heidegger demonstra nestes escritos uma decidida preferência pelos primeiros gregos, pela experiência grega de ser como physis e alétheia e pela experiência dos „deuses‟ como parte do „Quádruplo‟, O Quádruplo – terra e céu, mortais e deuses – é uma profunda concepção de Hölderlin que Heidegger deriva de suas leituras desse poeta sobre o mundo grego. Então o deus que emerge nos últimos escritos de Heidegger é um deus poético, uma experiência poética do mundo como algo sagrado ou merecedor de reverência. 22 O problema crucial aqui, para Caputo, é que estas determinações partem da compreensão heideggeriana do Wesen que não constitui algo que é humano. A diferença 20 CAPUTO, J. Op. Cit. p. 40. Op. Cit. p. 16. 22 Idem. Heidegger e a teologia. Revista Perspectiva Filosófica. Vol II, 26. 2007. (Trad. do Autor). pp.123-4. 21 100 ontológica aponta sempre para a essência numa esfera anterior ao ôntico. A essência da tecnologia, portanto, não é tecnológica; a essência da linguagem não reside no discurso humano; a essência da habitação não se relaciona com quatro paredes e um teto; a essência da destruição não se dá na aniquilação nuclear; a essência da dor nada tem a ver com o sentimento23. Caputo entende que Heidegger, influenciado por Hölderlin e os primeiros gregos, está contra as turbinas, os computadores e “as horríveis e trituradoras rodas do Gestell”24. Heidegger, segundo Caputo, esquece a alta taxa de mortalidade entre os primeiros gregos, bem como o lugar reservado às mulheres e aos escravos. A crítica que Heidegger faz à tecnologia é, então, a parte mais poderosa de sua obra, onde tudo é sintetizado ao sabor do logos. Esta abordagem que surge apenas nos anos 30 se distancia do que nos é dito em Ser e Tempo onde a ciência aparece de modo positivo quando, no § 69, b, procura-se estabelecer um conceito existencial da ciência (einen existenzialen Begriff der Wissenschaft)25. O Gestell preenche o esclarecimento dado no seu próprio afastamento. No invisível do esclarecimento emerge a tecnologia que não é o ser, mas o modo como pretende ser, sendo algo dado, que não é o Ereignis e nem tampouco o Es gibt – e isto, para Caputo, parece um grande distanciamento do real, da História, da vida dos homens que trabalham e sofrem. Só um deus pode nos salvar, eis a célebre conclusão de Heidegger e isso mesmo porque o ser se representou como Gestell. Diante desta essência da técnica que coloca em um só bojo a produção de trigo para produzir o pão que alimenta e a produção de armas que matam, Caputo coloca a phronêsis26. Esta não é um conhecimento do imutável, mas sim conhecimento que lida com um cenário que oscila e que se dá num mundo que muda. Ela é “uma sensibilidade para as exigências da situação individual, uma intuição (nous) que o entendimento prático efectua das idiossincrasias do particular”27. O intuito de Caputo é definir que esta postura de Heidegger em favor do Wesen aponta para suas escolhas políticas. É conhecida a anuência de Heidegger à pergunta de Löwith se seu envolvimento político estava na essência de sua filosofia, acrescentando que era sua concepção de historicidade que constituía a base deste envolvimento. Agora se torna claro o intuito de 23 Cf. Idem. Desmitificando Heidegger. Op. Cit. p. 176. Op. Cit. p.58. 25 Cf. HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Op. Cit. p. 357. 26 Cf. CAPUTO, J.. Desmitificando Heidegger. pp. 98-9. 27 Op. Cit. p. 99. 24 101 Caputo: o infernal endossamento de Heidegger ao nazismo está na base de sua própria filosofia – o Mito do ser (que reúne sobre um único privilégio os primeiros gregos e os alemães) valida o programa político nazista na medida em que o povo (Volk) alemão está na ponta, dentro da História, da escuta atenta do destinamento do ser. Trata-se de uma mitologia greco-alemã onde se trata de responder ao destino de um povo que possui a característica particular de já estar, pelo próprio destinamento do ser, fadado a escutá-lo de modo autêntico. É na sua carta aberta à universidade alemã que Heidegger afirma que os alemães têm a responsabilidade do Ocidente, criando uma reciprocidade entre seu povo e a magna graecia. Heidegger apela aos alemães que assumam a sua missão histórica. A essência da técnica que produz campos de concentração é a mesma daquela que extrai alimentos da terra, repete Caputo. Entretanto, parece que há certa intenção não dita nestas linhas. De fato, o endossamento de Heidegger ao nazismo está na base de sua filosofia, mas isto não significa que podemos pensar esta base à luz de sua compreensão da essência da técnica. Pensemos na escrita, uma das mais antigas manifestações da técnica. A questão é que a e0pisth/mh, enquanto modo do homem lidar com o mundo, é histórica exatamente devido à escrita. Mesmo que Heidegger afirme que a essência da linguagem não resida no discurso – apesar de sabermos que o sentido (Der Sinn) é o que pode ser articulado na interpretação28 - remontamos ao par noei=n e le/gein. Este retorno nos obriga a privilegiar a “hemenêutica da facticidade” de Ser e Tempo em detrimento ao Mito do ser que surge depois. Na escrita – aquela mesma que pode elaborar um poema que pensa a verdade do ser ou declarar uma guerra – vemos que não é a delimitação em si do seu Wesen que atinge e modifica o mundo, mas sim o seu Wesen enquanto ocorrência, facticidade, coisa viva e real que, desentranhado de seu ponto originário, ganha corpo e pode ser pensado e dito, modificando o estado de coisas ou a conjuntura do mundo. Mesmo o pensamento da verdade do ser se diz historicamente na escrita. Sem esta técnica não poderíamos escutar o que Heidegger teria para nos dizer. O próprio Heidegger não teria escutado o apelo a-histórico do destinamento do ser oriundo dos primeiros gregos. Talvez se trate muito mais de estabelecer não apenas a essência daquilo que se mostra e que é pensado como gênero ou universal, mas sim de entender 28 HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Op. Cit. p. 161. 102 também que o sentido mesmo do que se mostra não se capta apenas olhando um dos pontos de sua origem. Talvez Caputo esteja saudoso da essentia medieval. Uma coisa é certa: o endossamento ao nazismo levado a termo por Heidegger – um pensador de tão grande envergadura – nos mostra que se de fato há um destinamento autêntico do ser dentro da História, esta escuta passou muito longe do povo alemão. A escrita, seja em sua essência ou em seu modo fáctico de aparecer, assim nos mostra e une o passado com o presente. As lições não são puras memórias de uma essência atemporal, mas nos perseguem temporalmente naquilo que é, pela escrita, a própria memória. O saudosismo de Caputo frente a essentia o obriga a redimensionar a problemática da técnica dentro do pensamento heideggeriano. O essencialismo de Heidegger, segundo Caputo, não aponta diretamente para a vida, para aquilo que possa de fato interessar aos homens. Entretanto, a diferença ontológica em Heidegger nos leva a repensar a questão da Ética, já que aqui não se trata de analisar a esfera ôntica, mas sim de apontar os fundamentos desta própria esfera. Acredito que Caputo forja, à luz de suas influências francesas – mais especificamente Derrida, Levinas e Lyotard – um modo de ler a questão da técnica em Heidegger que não parece condizer com a própria leitura heideggeriana ao problema. Não se trata de debater as implicações éticas da técnica moderna – mesmo que Heidegger esteja buscando revalorizar a escuta atenta ao sentido do ser – mas sim de apontar para o terreno comum em que qualquer técnica se torna possível. Como bem nos lembram Cocco e Fleig: No texto Contribuições à Filosofia, Heidegger indica a partir do que se anuncia o abandono do ser: primeiro, na completa indiferença com o plurissignificante (Vieldeutigkeit), ou seja, a redução do significado e do sentido do ser ao monopólio da explicação técnica; segundo, na obstrução do pensar ao se implantar valores e idéias como imutáveis; terceiro, na angústia vazia frente ao perguntar e à negação que causam cegueira em relação ao essencial („que é invisível aos olhos‟); e, por último, na fuga da meditação e na impotência do esperar que somem a partir da supervalorização do calcular. 29 A palavra chave aqui é esta: Vieldeutigkeit. Este reducionismo é o alvo visado por Heidegger em suas críticas à técnica moderna. O advento da escrita enquanto 29 COCCO, Ricardo e FLEIG, Mário. A questão da técnica em Martin Heidegger. Revista Controvérsia, v. 2 n° 1, jan-jun 2006. p. 10. 103 técnica fundamental aponta desde sempre para um lugar mais original. Se noei=n e le/gein se articulam numa unidade, já que o pensamento, como dissemos anteriormente, está atrelado ao seu dizer, a te/xnh, portanto – enquanto modo do pensamento – também está atrelada ao seu dizer. Mas não se trata aqui do dizer enquanto teoria (qewri/a), mas sim da efetividade múltipla do aparecimento das diversas técnicas, seus usos e direcionamentos. A teoria é pura consideração (Betrachtung) daquilo que é o real. Mas é apenas no domínio da elaboração, do elaborar (trachten) que a técnica pode ser motivo de um juízo ético. Na esfera do desencobrimento – portanto no universo ontológico – a crítica de Heidegger à técnica só poderia mesmo ter este caráter, ou seja, fundamentar historicamente uma das bases essenciais de sua estrutura filosófica: o esquecimento do sentido do ser. Se a técnica moderna é uma provocação (Herausfordern) e não mais uma produção no sentido da poi/hsiv, talvez sejamos levados a pensar a urgência de criarmos um campo em que ambas as esferas citadas possam conviver em certa harmonia, pois é certo que o homem contemporâneo – sobrevivente de duas Grandes Guerras - esteja mais propenso a lhe dar com a técnica sem um distanciamento radical, mas também sem perder de vista aquilo que lhe é essencial. O ressentimento de Caputo é justificado, bem como a preocupação de Heidegger. Caberia, portanto, pensar cada esfera primeiramente de modo separado, para então podermos estar munidos de uma junção capaz de nos levar até a real dimensão do problema. Caputo reclama que falta em Heidegger uma devida compreensão da esfera do pão e da carne, já que Heidegger “escutou o Sorge em „sorgen um das „tägliche Brot‟”30, mas não de modo adequado. Sorge, a cura, o cuidado, é entendida em Caputo de um modo a acentuar a facticidade greco-judaica, já que a cura não significará Kampf, mas sim kardia31. Acredito que o Caputo de The Mystical Element in Heidegger´s Thought e Heidegger and Aquina está muito mais centrado numa fenomenologia-hermenêutica bem feita que possibilita realmente interessantes leituras sobre Heidegger à luz de suas influências ditas e não ditas de Aquino e Mestre Eckhart. O Caputo de Desmitificando Heidegger parece, assim como o próprio Heidegger que ele quer criticar, muito mais voluntarioso e heróico, já que o excesso de seu tom bíblico parece comprometer sua 30 CAPUTO, J. Op. Cit. p. 100. Novamente parecemos escutar um eco francês nas idéias de Caputo. Cf. ver ZARADER, Marlene. La Dette impensée. Heidegger et l‟héritage hébraïque. Paris: Seuil, 1990. 31 104 lucidez filosófica. Sua busca por uma kardia evangelizada só é possível de ser justificada se levarmos em conta sua abordagem extremamente negativa às considerações de Heidegger sobre a essência da técnica. O saudosismo medieval de Caputo deveria ser contrastado com a radicalidade da antropologia filosófica de Eckhart, Silesius e Boehme, por exemplo, ou ao menos escutar de modo mais tranqüilo as considerações de Bultmann ou Tillich32. Caputo critica Heidegger por ter medo da animalidade do homem, por negá-lo enquanto animal rationale, ou melhor, por negar a dimensão animal do homem. Caputo afirma que com Paulo, Agostinho, Pascal, Lutero e Kierkegaard, Heidegger aprendeu que o homem é concebido de forma adequada como temporalidade. Não é aí que reside seu distanciamento da animalidade, mas sim quando este não pensa aquilo que é próprio do homem enquanto animal: sua fome, sua sede, sua dor física, suas limitações corporais. Loparic parece conhecer esta querela e suas possibilidades, mas aponta num sentido completamente diverso. Loparic chega mesmo a equacionar o instinto da animalidade com a razão humana neste processo histórico de tecnificação. Ele afirma que “o instinto da animalidade e a ratio da humanidade tornam-se idênticos. Dizer que o instinto é o caráter da humanidade significa dizer que a animalidade, em cada uma de suas formas, está totalmente submetida ao cálculo e ao planejamento”33. Invertidas as ordens, somos novamente levados a pensar a partir da essência. Mas que fique claro: todo pensamento da essência transcende ao próprio cálculo, ao próprio planejamento; por isso transcende também a sua animalidade. O terrível endossamento de Heidegger – e seus esforços gigantescos para encobrí-lo nos anos seguintes – coloca nosso pensamento numa suspensão desconfortável em relação às suas idéias mais originais. Suas cartas neste período nos atemorizam ainda mais. Mas o confronto mesmo com suas idéias principais parece sempre conduzir a um distanciamento maior deste período nebuloso de sua vida. A questão da técnica em Heidegger se transforma, portanto, numa questão também radical: é possível pensar Heidegger filósofo dissociado do homem Heidegger? E ainda mais: a hermenêutica da facticidade se desdobra mesmo no Mito do ser? É sempre neste sentido que realizamos, 32 Cf. a uma comparação entre Heidegger e Bultmann ver MACQUARRIE, John. An Existentialist Theology: A Comparision of Heidegger and Bultmann. New York: Harper, 1965. Cf. a uma aproximação entre Eckhart e Tillich ver DOURLEYJ, John. Tillich e Meister Eckhart: Apreciação Crítica. Disponível em: <http://www.metodista.br/correlatio>. 33 LOPARIC, Z. 1996. Heidegger e a pergunta pela técnica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, v. 6, nº2. São Paulo :UNICAMP, p. 107-137. 105 no pensamento mesmo de Heidegger, suas lições sobre a História da Filosofia, a saber: realizar sempre o passo de volta (Schritt züruck) pensando o impensado de seus dizeres. Nada mais justo. REFERÊNCIAS CAPUTO, John D. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Piaget, 1998. ______. Heidegger e a teologia. Revista Perspectiva Filosófica. Vol II, 26. 2007. ______. Heidegger and Aquinas. New York: Fordham University Press, 2000. ______. The Mystical Element in Heidegger´s Thought. New York: Fordham University Press,1986. COCCO, Ricardo e FLEIG, Mário. A questão da técnica em Martin Heidegger. Revista Controvérsia, v. 2 n° 1, jan-jun 2006. DOURLEYJ, John. Tillich e Meister Eckhart: Apreciação Crítica. Disponível em: <http://www.metodista.br/correlatio>. HANSEN-LOVE. Fundamentalontologie oder Seinsmystik? Wort und Warheit, n.4, 1949. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In:______.Ensaios e conferências. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. 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