1 O TÍTULO DE UTILIDADE PÚBLICA FEDERAL E SUA

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1 O TÍTULO DE UTILIDADE PÚBLICA FEDERAL E SUA
O TÍTULO DE UTILIDADE PÚBLICA FEDERAL E SUA VINCULAÇÃO À ISENÇÃO DA
COTA PREVIDENCIÁRIA PATRONAL
Damião Alves de Azevedo*
1
Introdução
O objetivo deste artigo é demonstrar que a utilização do título de utilidade pública federal
como pré-requisito para o gozo de benefícios fiscais-previdenciários não é adequada ao comando
constitucional que estabelece esta renúncia fiscal em favor das instituições de assistência social (art.
195, § 7.º).1
Para compreender-se o conteúdo do título de utilidade pública e como ele foi vinculado aos
benefícios fiscais-previdenciários destinados às instituições de assistência social será preciso
recuperar-se historicamente seus significados originais e sua relação com o Certificado de Entidade
de Fins Filantrópicos. Somente a partir desta análise histórica será possível tratar do significado de
expressões legais para as quais não se tem definição conceitual clara, tais como serviços
desinteressados à coletividade (art. 1.º da Lei 91/35) ou entidades de fins filantrópicos (art. 18, IV,
da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), e perceber a inadequação da vinculação do título
regido pela Lei 91/35 ao marco legal da assistência social
e às imunidades e isenções
previdenciárias hoje existentes.
2
Os significados originais da declaração de utilidade pública antes e depois da Lei 91/35
O título de utilidade pública federal é regulado pela Lei 91/35. Mas mesmo antes desta lei ele
já era conferido a certas instituições. Não havia contudo critérios que disciplinassem por quem, e
nem a quem, o título poderia ser concedido. Era conferido tanto pelo Executivo como pelo
Legislativo. Não havendo requisitos para concessão, ela dependia unicamente da vontade das
autoridades públicas.
Não é fácil tentar compreender as razões pelas quais se conferia originalmente o título a essa
ou aquela entidade. Até os primeiros anos da República encontramos leis e decretos utilizando a
expressão “utilidade pública” apenas para tratar de desapropriações de imóveis de particulares em
benefício de órgãos públicos e, às vezes, em benefício de empresas privadas concessionárias de
serviços públicos, tais como companhias ferroviárias.
No início do século XX encontram-se os primeiros atos que utilizam a expressão “utilidade
pública” como uma característica de organizações da sociedade civil. São decretos que declaram de
utilidade pública certas pessoas jurídicas, mas não fundamentam esta competência e nem
esclarecem o significado da declaração. O traço significativo destas primeiras entidades declaradas
de utilidade pública é que se tratavam de instituições privadas de ensino e que a declaração de
utilidade pública era sempre vinculada ao reconhecimento público dos diplomas expedidos por
* Damião Alves de Azevedo é Coordenador de Justiça, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça.
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Não se entrará aqui na discussão sobre a natureza – ordinária ou complementar – da lei prevista neste artigo da
Constituição, por não ser um tema que se reflete diretamente sobre o objeto deste artigo. Para evitar-se a polêmica usouse aqui, genericamente, a expressão benefícios fiscais-previdenciários.
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aquelas escolas. Durante muito tempo, no Brasil, as escolas superiores foram um espaço reservado
aos membros da elite e da burocracia estatal, sendo elas próprias uma extensão desta mesma
burocracia.2
A mais antiga declaração de utilidade pública que encontramos é o Decreto 1.339, de 1905,
que declara de utilidade pública a Academia de Comércio do Rio de Janeiro e a Escola Prática do
Comércio de São Paulo. Também especifica o currículo, disciplinas e objetivos pedagógicos a que
devem se ater as instituições e determina que “A Academia do Comércio fica sendo considerada
como órgão de consulta do Governo em assuntos que interessem o comércio e a indústria”. Ao fim,
estende aos diplomados pelo extinto Instituto Comercial do Distrito Federal e pela extinta Academia
do Comércio de Juiz de Fora todos os direitos que fossem legalmente conferidos aos alunos da
Academia de Comércio do Rio de Janeiro.
O Decreto 2.305, de 1910, declara de utilidade pública a Academia de Comércio de
Pelotas/RS. Contudo a ementa deste decreto sequer faz menção a esta declaração, explicitando
apenas: “Reconhece como de caráter oficial os diplomas da Academia de Comércio de Pelotas”,
embora o conteúdo de seu artigo único fosse exclusivamente declará-la de utilidade pública. Parece
correto concluir que o objetivo central da norma é o reconhecimento público do ensino oferecido
naquela instituição, sendo a declaração de utilidade pública o instrumento através do qual o ato se
formalizava. Esta disciplina nos convence que o objetivo original do título de utilidade pública era
reconhecer oficialmente o ensino ministrado por escolas particulares e estabelecer uma cooperação
entre esta e o Estado. Todos os outros decretos de utilidade pública encontrados em nossa pesquisa
confirmam este entendimento.3
Todavia, a partir de 1917 ocorrem três mudanças. A primeira é que as declarações deixam de
ser feitas por decreto presidencial e passam a se dar por decreto legislativo. A segunda é o aumento
do número de declarações de utilidade pública, que até então eram bem raras.4 E a terceira diz
respeito à natureza das entidades tituladas. As declarações deixam de ser reservadas apenas ao
2
Citem-se os exemplos da Faculdade de Direito de Olinda; que passa por dificuldades administrativas e falta de
professores com a transferência da sede das decisões políticas para Recife, sendo logo também para lá transferida; e o da
Faculdade de Direito de Minas Gerais; que se transfere para Belo Horizonte juntamente com todo aparato
Administrativo que saiu de Ouro Preto, quando esta deixou de ser a capital do estado. E também as normas, ainda hoje
existentes, que garantem que filhos de servidores públicos, em especial militares transferidos de lotação, possam ser
matriculados em universidades públicas. Casos como estes revelam como as instituições públicas de ensino eram locais
onde os membros da burocracia lecionavam e seus filhos estudavam. A declaração de utilidade pública como um
reconhecimento do Estado a certas escolas privadas também não deixa de evidenciar a tradicional dificuldade da
sociedade brasileira em diferenciar as noções de público e estatal.
3
O Decreto 3.169, de 1916, ao declarar de utilidade pública a Escola Superior do Comércio do Rio de Janeiro e a Escola
de Comércio de Porto Alegre, expressamente determina que só manteriam tal condição “enquanto mantiverem e
executarem o programa de ensino nos moldes estabelecidos no decreto numero 1.339, de 9 de janeiro de 1905. Os
diplomas que conferirem encerrarão presunção de habilitação para o exercício das funções comerciais a que se destinam,
desde que seja instituída nos cursos a fiscalização oficial.” O Decreto 3.199, de 1916, traz exatamente a mesma
disposição ao declarar de utilidade pública as Escolas do Comércio José Bonifácio e Bento Quirino, em Campinas/SP. O
Decreto 3.141/1916, que declara de utilidade pública o Aero Club Brazileiro, dedicado ao ensino da aviação, foi o
primeiro que encontramos que não faz menção expressa ao reconhecimento de diplomas. Contudo ele não constitui
exceção, pois não havia instituições estatais de ensino da aviação, logo não havia necessidade de se adequarem a
quaisquer modelos previamente existentes, como era o caso de outras escolas. Ainda hoje, conforme dispõe o DecretoLei 205/67, os aeroclubes são instituições consideradas de utilidade pública por serem destinadas ao ensino da aviação.
4
Em 1917 encontramos 21 entidades declaradas nominalmente de utilidade pública (mais que o número total de
declarações até 1916), além de terem sido também tituladas, no mesmo ano, todas associações de escoteiros existentes
no país e todas as associações de imprensa sediadas na capital federal.
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reconhecimento de instituições de ensino, estendendo-se às mais diversas entidades da sociedade
civil. Ao que parece, a declaração de utilidade pública ganhou uma conotação política. Através dela
os parlamentares prestigiavam instituições de suas bases eleitorais. As declarações expedidas pelo
Congresso não remetem sua competência a nenhum outro diploma legal e não trazem qualquer
justificativa ou fundamentação, como antes fora feito em relação aos decretos sobre as escolas
privadas, que eram fundamentados no reconhecimento oficial dos diplomas.
A partir da Revolução de 1930 as declarações voltam a se centralizar no Presidente da
República. Os decretos presidenciais de declaração de utilidade pública passam a fundamentar-se no
Decreto 19.398, de 11/11/1930, que instituiu o governo provisório.
Em 1935 a Lei 91 veio organizar a matéria, atribuindo ao Presidente da República a
competência para concessão do título. Pelos lacônicos seis artigos da lei (o último dos quais como
sempre dispensável) fica patente o caráter discricionário da concessão do título. Seu artigo primeiro
estabelece que o título cabe à pessoa jurídica sem fins lucrativos dedicada ao “fim exclusivo de
servir desinteressadamente à coletividade”. Não se estabelece como definir este desinteresse,
restando à Administração caracterizá-lo em cada caso concreto.
A única obrigação determinada à pessoa jurídica detentora do título é a de apresentar todos
os anos um relatório circunstanciado dos serviços prestados à coletividade (art. 4.º). Contudo, não se
estabelecem quais informações devem estar contidas neste relatório. Não se determina como os
serviços devem ser prestados e nem os critérios de conferência das informações prestadas. Esta
indeterminação permanece ainda hoje, mesmo no Decreto 50.517/61 que regulamenta a Lei 91/35.
O artigo terceiro expressa com nitidez o caráter de mera honraria discricionária da qual o
título se revestia, ao determinar que nenhum favor do estado decorre da titulação, a não ser o direito
de fazer-lhe menção nos emblemas, flâmulas, bandeiras ou distintivos da detentora. A inexistência
de quaisquer ônus à Administração Pública justificava o caráter estritamente discricionário da
declaração. Pelo artigo terceiro fica claro que a natureza do título era a de uma láurea de dignidade,
uma honraria concedida à pessoa jurídica. Honraria em tudo semelhante, por exemplo, aos títulos ou
medalhas concedidos a pessoas físicas, em decorrência de elevados serviços prestados à nação.
3
A desnaturação do título
Porém, ocorreu com o título de utilidade pública algo semelhante ao que ocorreu com os
títulos nobiliárquicos que no passado se conferiam às pessoas físicas. Assim como aqueles títulos
acabaram por se tornar critério para concessão de certos privilégios pessoais, como tenças,
prebendas e sinecuras (que disfarçadamente permaneceram ainda no século XX, sob a forma de
concessão de tabelionatos e cartórios aos apanigüados do Estado), também ao título de utilidade
pública se conferiu um efeito para o qual ele não fora criado.
Apesar de ser um ato essencialmente discricionário e do qual não deveriam decorrer
vantagens ou privilégios do Estado, a Lei 3.577, de 1959, estabeleceu que ficavam “isentas da taxa
de contribuição de previdência dos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões as entidades de
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fins filantrópicos reconhecidas de utilidade pública, cujos membros de suas diretorias não percebam
remuneração” (art. 1.º). Isto é, isentava-as da cota previdenciária patronal. Assim, a Lei 3.577/59
transformou a declaração de utilidade pública de uma mera honraria em um pré-requisito para a
obtenção de benefícios fiscais, praticamente derrogando o disposto no art. 3.º da Lei 91/35.
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A criação do certificado de entidades de fins filantrópicos
Embora pareça óbvio que o objetivo da Lei 3.577/59 fosse apenas conceder a isenção
previdenciária às entidades declaradas de utilidade pública, o Decreto 1.117/62, que a regulou,
instituiu uma nova qualificação legal, a de entidade de fins filantrópicos. Seu art. 2.º definiu como
entidades filantrópicas as instituições que: a) destinassem a totalidade de suas rendas ao atendimento
gratuito de suas finalidades; b) que seus diretores, associados ou irmãos não recebessem
remunerações ou vantagens a qualquer título; c) que estivessem registradas no Conselho Nacional
do Serviço Social.
Entretanto, o Decreto 1.117/62 é precário. E, pior, é contraditório. Ele mistura a declaração
de utilidade pública e a certificação de entidades de fins filantrópicos, usando os dois termos para
tratar do mesmo objeto. A confusão é tão grosseira que chega a ser difícil explicá-la.
O art. 2.º da Lei 91/35 determina como competência do Ministério da Justiça processar os
pedidos de declaração de utilidade pública. Não obstante, o parágrafo único do artigo primeiro do
Decreto 1.117/62 determina que “o julgamento dos títulos necessários à declaração de utilidade
pública” passaria a ser competência do Conselho Nacional de Serviço Social. Note-se bem: apesar
da Lei 3.577/59 tratar de um título que já existia e que legalmente é competência do Ministério da
Justiça, o Decreto 1.117/62 declara expressamente que a “declaração de utilidade pública” caberia
ao CNSS.
Porém, ao tratar do prazo para obter-se a qualificação como entidade de fins filantrópicos, o
art. 3.º do Decreto 1.117/62 afirma que a qualificação como entidade filantrópica prevista no art. 2.º
corresponde a uma decretação de utilidade pública.
Esforçando-se para tentar dar coerência a este decreto, poder-se-ia imaginar que seus
redatores fizeram uma confusão e pretenderam determinar que a declaração de utilidade pública
prevista pela Lei 3.577/59 não seria aquela prevista na Lei 91/35, mas uma nova forma disciplinada
por aquele mesmo decreto. Mas, é claro, isto iria contra qualquer preceito de interpretação, vez que
o conceito de utilidade pública já existia no ordenamento jurídico e já havia uma lei que o regulava,
de modo que seria estranho admitir a existência de duas qualificações legais com fins distintos e
com nomes idênticos. Entretanto foi exatamente isso que ocorreu, instaurando-se uma aberrante
confusão terminológica pela qual dois decretos presidenciais chamavam de declaração de utilidade
pública tanto a titulação procedida no Ministério da Justiça, quanto a certificação efetuada pelo
CNSS.
E, aumentando ainda mais a confusão, o parágrafo único do art. 3.º do Decreto 1.117/62
estabelece que enquanto não fossem lavrados os decretos de utilidade pública (sic) expedidos com
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base em seu art. 2.º (que não trata de utilidade pública mas da certificação como entidade de fins
filantrópicos), seriam válidos para os efeitos da isenção as “declarações de Utilidade Pública”, já
expedidas pelos Governos e Câmaras Estaduais e Municipais. Isto é, apesar da Lei 3.577/59 parecer
dar a entender que está se referindo ao título de utilidade pública federal disciplinado pela Lei 91/35,
o Decreto 1.117/62 versa sobre as declarações de utilidade pública estaduais e municipais,
equiparando-as temporariamente ao certificado de entidade de fins filantrópicos, ainda que à época
não fosse possível saber quais estados e quais municípios dispunham de leis sobre utilidade pública,
e muito menos quais os critérios adotados em cada uma delas. Foi neste contexto quase risível que o
título de utilidade pública foi vinculado às isenções previdenciárias.
A expressão “entidade de fins filantrópicos” ainda está presente no ordenamento jurídico
atual, contida no art. 18, IV, da LOAS, e no art. 1.º do Decreto 2.536/98. Mantendo-se a tumultuada
tradição, este decreto usa dois nomes diferentes para o mesmo certificado: Certificado de Entidade
de Fins Filantrópicos (CEFF), utilizado pela LOAS, e Certificado de Entidade Beneficente de
Assistência Social (CEBAS), utilizado pela Lei 8.212/91, sobre o custeio da seguridade social.
Todavia, no âmbito do CNAS ele é mais conhecido simplesmente como Certificado de Entidade de
Assistência Social (CEAS).
Apesar da Lei 3.577/59 ter sido revogada pelo Decreto-Lei 1.572/77, a confusão instaurada
deixou vestígios. O título de utilidade pública transformou-se praticamente numa etapa para a
obtenção de benefícios fiscais previdenciários. Pelos dados disponíveis no Ministério da Justiça,
verificamos que em outubro de 2004 existiam 10.750 entidades declaradas de utilidade pública
federal. Mas antes da vinculação do título às isenções previdenciárias havia apenas 113 entidades
declaradas de utilidade públicao. O gráfico abaixo mostra o aumento do número das entidades que
Número de entidades
possuem o título de utilidade pública, de acordo com os dados do Ministério da Justiça.
70
60
50
40
30
20
10
0
53
6
6
8
15
15
61
20
1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962
5
A vinculação hoje: o art. 55, I, da Lei 8.212/91, que organiza a Seguridade Social
O título de utilidade pública continua a ser pré-requisito para o gozo de benefícios fiscais
previdenciários. Hoje tais benefícios têm fundamento constitucional. Dispõe o art. 195, § 7.º, da
Constituição, que “são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de
assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”.
O art. 55 da Lei 8.212/91 estabelece quais os requisitos a serem observados pelas entidades
de assistência social para deixarem de recolher as contribuições previdenciárias à seguridade social.
5
Dentre estes requisitos está, em seu inciso primeiro, o título de utilidade pública federal. A
promulgação da Lei 8.212/91 teve um impacto no número de pedidos de utilidade pública
semelhante ao verificado com a Lei 3.577/59. O gráfico a seguir mostra o aumento da média de
Número de entidades
declarações de utilidade pública ocorrido no período.
447
500
400
300
200
330
309
278
200
93
100
66
0
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
De acordo com o art. 55 da Lei 8.212/91, para poder gozar do benefício fiscal previdenciário
a entidade precisa: a) dispor do título de utilidade pública federal; b) do título de utilidade pública
estadual ou distrital ou municipal; c) estar registrada no CNAS; d) possuir o Certificado de Entidade
Beneficente de Assistência Social, expedido pelo mesmo CNAS. De posse destes documentos, a
entidade formaliza seu requerimento junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Veja-se como é o sistema de concessão dos benefícios fiscais-previdenciários atualmente. A
entidade primeiramente requer o título de utilidade pública. Depois de titulada a entidade requer o
certificado concedido pelo CNAS. Ela também precisa obter um outro título de utilidade pública
estadual ou municipal. Aqui já se vê a primeira incoerência, pois cada estado ou município pode
escolher os critérios que bem entenderem para considerar uma entidade de utilidade pública estadual
ou municipal. Podem até não dispor do título. Os títulos estaduais e municipais não precisam
observar a legislação federal, pois não se trata de competência concorrente. É uma norma de Direito
Administrativo para a qual cada ente federativo possui autonomia plena. Depois de obter todas estas
qualificações, a entidade requer ao INSS que a declare isenta.
Na primeira etapa, a declaração de utilidade pública federal, o art. 1.º da Lei 91/35, de forma
vaga, exige apenas que a entidade promova serviços desinteressados à coletividade, sem definir o
que sejam. Esta imprecisão conceitual se reflete sobre a questão fiscal.
O art, 2.º, e, do Decreto 50.517/61 elenca atividades consideradas de utilidade pública,
dispondo que a requerente do título deve promover a pesquisa científica, ou atividades educacionais,
ou atividades culturais, inclusive artísticas, ou atividades filantrópicas. Não seria adequado, de
acordo com o art. 1.º da Lei 91/35, admitir que as entidades fossem declaradas de utilidade pública
simplesmente por trabalhar nas atividades ali relacionadas. Se isto fosse feito, acabar-se-ia por
serem declaradas de utilidade pública entidades que, apesar de organizadas sob a forma de
associações ou fundações, atuam no mercado de forma idêntica às sociedades empresariais,
oferecendo serviços ao mercado a preços idênticos aos da concorrência, mantendo com os
beneficiários de seus serviços uma relação estritamente comercial, tratando-os exclusivamente como
consumidores, e sem disponibilizar seus serviços de forma ampla à coletividade.
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Para evitar-se isto, o Ministério da Justiça tem tentado verificar, através dos relatórios de
atividades apresentados, o benefício público dos serviços de educação, pesquisa e cultura, oferecidos
pelas entidades que requerem o título. Quando não é possível caracterizar o desinteresse por este
meio, o Ministério da Justiça verifica então se os serviços oferecidos pela entidade podem ser
caracterizados como promoção da filantropia.
Contudo o Decreto 50.517/61 não define o que seria filantropia. Sem uma definição precisa,
a caracterização da filantropia ficaria sujeita a um grau muito amplo de discricionariedade
administrativa, correndo-se o risco de alterações de acordo com diversidade de interpretações e
mesmo mudanças políticas ao longo do tempo. Para reduzir os limites de sua discricionariedade e
instituir um procedimento minimamente estável e justificável por padrões normativos válidos para
todos, o Ministério da Justiça tem que buscar em outras normas existentes a definição do seja
promoção da filantropia. A LOAS, em seu art. 18, IV, determina que cabe ao CNAS certificar as
entidades filantrópicas. O critério de definição das entidades filantrópicas adotado pelo Decreto
2.536/98, que regulamenta aquele dispositivo da LOAS, é meramente quantitativo. De acordo com
seu art. 3.º, VI, é filantrópica a entidade que reserve um percentual de 20% de seus serviços para
serem oferecidos gratuitamente.5
Ora, perceba-se então o ciclo vicioso que se estabelece. O Decreto 50.517/61 determina que
para se conceder o título de utilidade pública o Ministério da Justiça deve verificar, nos relatórios de
atividades da entidade, se ela promove a filantropia. Como aquele decreto não define o que seja
promover a filantropia, o Ministério da Justiça é obrigado a recorrer ao Decreto 2.536/98, sobre o
Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos. Entretanto, este mesmo Decreto 2.536/98 determina
que para pleitear o certificado a entidade deve possuir o título de utilidade pública federal. Deste
modo, a declaração de utilidade pública, por ser vaga e imprecisa, obriga que se utilizem os
requisitos sobre o Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos, enquanto que, por sua vez, a
concessão do certificado tem por requisito o título de utilidade pública. Em suma: para se ser de
utilidade pública é preciso promover filantropia, e para se ser filantrópica é preciso ser de utilidade
pública. Cria-se um processo burocrático auto-referente, perdendo-se de vista os interesses do
cidadão e da sociedade. O Ministério da Justiça não tem competência para tratar de assistência
social, mas depende dele um dos atos necessários para que uma entidade possa ser certificada como
de assistência social. O Conselho Nacional de Assistência Social pode deliberar sobre as políticas de
assistência social e sobre como as organizações privadas podem se integrar a elas, mas não tem
competência para participar da declaração de utilidade pública. Cria-se uma sobreposição de
competências que prejudica a definição de responsabilidades e o controle das entidades privadas por
parte da sociedade. O mesmo pode ser dito sobre os títulos de utilidade pública estaduais e
municipais como requisito presente no art. 55 da Lei 8.212/91.
Esta sobreposição de competências e qualificações desvirtua o significado do benefício
fiscal-previdenciário estabelecido pela Constituição, cujo art. 195, § 7.º, determina um benefício
5
O parágrafo quarto do mesmo artigo dispõe que as instituições de saúde podem substituir o critério da gratuidade pelo
oferecimento de 60% de seus serviços ao SUS e pela comprovação de que 60% das internações efetivamente realizadas
foram feitas através do SUS.
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fiscal dirigido a entidades de assistência social. A necessidade dos títulos de utilidade federal e dos
títulos estaduais para que uma associação ou fundação seja certificada como de assistência social é
mais que uma exigência burocrática. Ela obsta que as imunidades e isenções previdenciárias estejam
focadas na efetiva promoção da assistência social, pois o sistema fica adstrito à conferência de listas
de títulos que não se enquadram no marco legal da assistência social.
6 A inadequação do título de utilidade pública ao conceito constitucional da assistência social
A legislação sobre o título de utilidade pública federal baseia-se num vago conceito de
serviços desinteressados oferecidos à coletividade, que não permite a verificação dos objetivos
constitucionais da assistência social.
A definição de assistência social tem sido fonte de divergências e confusões históricas.
Originalmente, a filantropia e a assistência estavam associadas à caridade e a iniciativas
voluntariosas e isoladas de auxílio aos carentes, em geral a partir de uma perspectiva religiosa. Na
história de nosso país, a solidariedade pública não foi um traço característico da cena política e nem
um elemento formador de nossa cidadania. Assim, as iniciativas de origem privada em prol do
interesse público nunca foram muito difundidas entre nós e, quase sempre, foram relegadas às
igrejas ou a grupos dotados de motivações religiosas, tais como eram as Santas Casas e as
irmandades leigas, como as dos Vicentinos.
Em face desta tradição centralizadora, é preciso construir hoje uma compreensão da
assistência social que esteja vinculada ao comando constitucional e não mais à perspectiva
caritativa. P conceito da assistência social ganha relevância imediata quando se pretendem
implementar as imunidades previdenciárias que a Constituição reserva às entidades de assistência
social.
O gozo do benefício fiscal instituído pelo art. 195, § 7.º, da Constituição, depende que a
entidade seja considerada de assistência social. Este comando constitucional se baseia em razões
diferentes das imunidades tributárias reguladas pelo art. 150, VI. As imunidades tributárias
abrangem as entidades de assistência social. Mas estendem-se também a outras atividades que a
Constituição entende relevantes, merecedoras de estímulo ou que devem ser protegidas contra a
intervenção do Estado. Assim, por exemplo, a Constituição concedeu imunidade previdenciária à
edição e publicação de livros, jornais, periódicos e ao papel que lhes for destinado. Não se exige
nenhuma qualificação especial das editoras ou dos periódicos. Mesmo sendo sociedades
empresariais, que visam o lucro e concorrem no mercado como qualquer outra empresa, a
Constituição resolveu proteger este tipo de atividade comercial porque se entende que ela é relevante
para a cultura, para o acesso à informação e ao incremento da democracia.
Pela mesma razão a Constituição concede imunidade tributária a partidos políticos e suas
fundações, sindicatos de trabalhadores e instituições de educação. Quanto a este último caso vale
ressaltar que o único requisito imposto pela Constituição é que a instituição não possua fins
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lucrativos. Portanto, basta que a instituição de educação não se caracterize como sociedade,
organizando-se sob a forma de associação ou fundação, para gozar da imunidade tributária.
Já o benefício fiscal estabelecido pelo art. 195, § 7.º, da Constituição, não tem a mesma razão
daquele previsto no art. 150, VI, c. A imunidade tributária é apenas um estímulo a todas atividades
que a Constituição entendeu especialmente relevantes.6 Já as imunidades e isenções previdenciárias
se dirigem exclusivamente às instituições de assistência social. Portanto, é necessário se recorrer à
definição constitucional de assistência social para definirem-se quais serão as entidades que poderão
gozar das imunidades e isenções previdenciárias.
O art. 203 da Constituição dispõe sobre os objetivos da assistência social. Estes objetivos são
também tratados no art. 2.º da LOAS. Pela redação destes dispositivos fica claro que a Constituição
afasta qualquer perspectiva clientelista ou caritativa, determinando que assistência social é uma
atividade voltada para a promoção dos direitos sociais. Isto fica evidente na redação do parágrafo
único do art. 2.º da LOAS, que define que a assistência social visa “à universalização dos direitos
sociais”. Assim, o que dá sentido à assistência social, como elemento da seguridade social (art. 194
da Constituição), é a integração social de grupos e indivíduos excluídos, objetivando permitir-lhes
acesso aos direitos sociais. No contexto de Seguridade Social em que a Constituição a insere, a
assistência social deve estar voltada para o acesso a direitos, reduzindo-se a exclusão social ao
propiciarem-se oportunidades de emancipação àqueles que, sem tal assistência, não teriam acesso
seguro a certos direitos sociais.
Compreendendo-se que a assistência social é um dos elementos da Seguridade Social, é
forçoso concluir que as entidades privadas que pretendam ser qualificadas como entidades de
assistência social devem também dedicarem-se à promoção dos direitos sociais e não apenas à
caridade ou à distribuição de bens e recursos de forma clientelista. É a integração aos objetivos
constitucionais da assistência social que permite que uma instituição privada esteja também inserida
na disciplina da Seguridade Social e, portanto, seja dispensada da obrigação de com ela contribuir
pecuniariamente. As imunidades e isenções previdenciárias se destinam àquelas entidades que já
contribuem, com seus serviços, para a Seguridade Social, promovendo a integração social de grupos
historicamente excluídos.
A colaboração com os objetivos do Estado Democrático de Direito, através da promoção dos
direitos sociais, é a única justificativa legítima para que escolas, hospitais e outras organizações que
atuam no mercado possam gozar de imunidades e isenções previdenciárias.
Entretanto, como já se afirmou acima, a lacônica disciplina do título de utilidade pública não
permite aferir-se nada disto. O art. 55 da Lei 8.212/91 utiliza este título como se o fato da entidade o
possuir fosse garantia ou indício que ela se dedica à assistência social. Mas, como se explica acima,
o título de utilidade pública nada diz sobre assistência social.
Não raras vezes, quando uma entidade tem indeferido ou cassado seus Certificados de
Entidade de Fins Filantrópicos, ela centra-se sua defesa no fato de ainda possuir o título de utilidade
6
Prova disto é que o parágrafo quarto do art. 150 determina que “as vedações expressas no inciso VI, alíneas ‘b’ e ‘c’,
compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades
nelas mencionadas”.
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pública e estar regular perante o Ministério da Justiça. E, não raras vezes, quando se recorre à Justiça
para se discutir sua condição de isenta, a posse do título de utilidade pública acaba sendo fator
determinante na discussão acerca do gozo das imunidades e isenções, transformando um debate que
deveria estar orientado pela realização da assistência social numa discussão meramente burocrática
acerca da posse de títulos e documentos.7
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Conclusão
Para que seja possível construir um sistema de imunidades e isenções previdenciárias focado
no cidadão e não no cumprimento de requisitos documentais e burocráticos, permitindo-se que a
sociedade tenha efetivo acesso à assistência social, impõe-se que a concessão daqueles benefícios
fiscais-previdenciários tenha em vista a efetiva promoção de direitos por parte das entidades que os
pleiteiam. Um dos pontos necessários para isto é uma regulamentação que dê autonomia ao sistema
de Assistência Social, tornando-o independente de requisitos alheios à promoção de direitos, como
os títulos de utilidade pública federal, estaduais e municipais.
As imunidades e isenções previdenciárias encontram-se hoje tumultuadas por um enorme
entulho burocrático. Esta situação permite que diversas instituições que não estão efetivamente
voltadas para a promoção de direitos sociais sejam qualificadas como entidades de assistência social,
pois o foco da discussão permanece centrado na obtenção de títulos e documentos, cada qual
baseado numa regulamentação independente e, não raro, desconexa com as finalidades
previdenciárias para as quais são utilizadas. Para que seja possível se enxergar melhor as
organizações que compõem este complexo cenário é necessário remover-se este conjunto de
requisitos e documentos que apenas dificulta sua fiscalização, por parte do Estado e da sociedade, e
não permite a definição clara de competências e atribuições entre os órgãos envolvidos.
Excluírem-se os títulos de utilidade pública dos requisitos para qualificação como entidade
de assistência social e para a obtenção de imunidades e isenções previdenciárias é uma necessidade
urgente para que o sistema da o sistema nacional de assistência social possa se libertar de entraves
burocráticos hoje existentes e definir com maior clareza os critérios de cooperação entre Estado e
sociedade na promoção dos direitos sociais. Enquanto a competência estatal continuar diluída entre
órgãos estanques, e indefinida por regulamentações sobrepostas e conflitantes, será muito difícil
estruturar um sistema de imunidades e isenções que incentive a participação da sociedade
organizada nas atividades voltadas ao combate à exclusão e à nossa imensa disparidade social.
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No Recurso Extraordinário nº 110.838-0/SP, por exemplo, o STF decidiu retroagir o gozo das isenções previdenciárias
à data de requerimento do título de utilidade pública. Embora a Lei 91/35 nada disponha sobre isenções e nada tenha a
ver com os objetivos constitucionais da assistência social, os tribunais têm, de modo inadequado, utilizado o título de
utilidade pública como determinante elemento de prova nas ações em que se discutem a cobrança de contribuições
previdenciárias a instituições que possuem o Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos. Talvez isto se dê em razão
do apelo de institucionalidade que possui o Ministério da Justiça, cujas certidões de regularidade acabam por se tornar
elementos de convencimento até em questões que transcendem o real alcance e significado do título de utilidade pública.
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