A escadaria da mansão convidava os que chegavam a

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A escadaria da mansão convidava os que chegavam a
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A escadaria da mansão convidava os que chegavam a adentrar o recinto mais luxuoso da
propriedade. A fachada estava adornada com faixas prateadas que titulavam o evento da noite.
No salão da nobreza, muitos dos convidados, vagarosos, conversavam e circulavam dentre as
personalidades mais influentes da cidade e também do país. As mulheres usavam seus mais
belos vestidos, sobrepostos por xales e echarpes que as protegiam do frio noturno, enquanto
os homens se aproveitavam da situação para iniciar assuntos indelicados, metidos em seus
ternos caros e, diziam, fabricados a partir dos fios mais raros. Não havia quem ousasse
discordar da magia fabulosa daquela noite, que reunia, como um feitiço, toda a beleza do
mundo dentro de um só lugar.
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Haviam também os desacreditados. Jovens marotos que tinham sido convidados somente por
serem filhos dos senhores da alta sociedade, cuja nata se encontrava reunida no local. Os
anfitriões eram exigentes, haviam convidado somente os maiores investidores, os donos do
capital. Nenhum senhor dono de empresas menores poderia adentrar a mansão naquela
ocasião especial, pois a maior venda de todas estava para ser acordada com compradores do
exterior, e assim os menores não teriam capacidades monetárias para arcar com os gastos
gerados em negociações paralelas, ou assim julgavam os organizadores do evento.
Os jovens rebentos, patrícios de seus próprios impérios, se encontravam acumulados num
canto oposto ao centro do salão nobre. Conversavam sobre barbaridades, televisão, moda e
música contemporânea, pois os negócios de seus genitores nada lhes interessavam até o
momento. No centro da roda, um deles, alto e loiro, metido em seu terno de linho egípcio,
comentava:
– Souberam o que aconteceu com Julius?
A maioria olhou com indiferença, como se realmente não soubessem.
– Foi morto na noite passada. – continuou ele. – Encontraram-no na rua às três da manhã.
– Que horror! – exclamou uma jovem rosada e roliça.
– A violência só aumenta neste país, caro Audrey. – concluiu um ruivo. – Estamos
desprotegidos em nosso próprio bairro. As ruas já não são mais as mesmas.
– Mas dizem que os piores crimes são cometidos dentro de casa. – disse outro garoto, um
típico moreno de olhos verdes. – Não acham estranho o fato de o corpo Julius ter sido
encontrado em frente à porta de sua casa, aqui em Harvey Hill?
– O que está supondo, Marcus? – perguntou Audrey, o loiro. – Que Julius foi assassinado por
alguém de sua própria família?
– Estou supondo nada. Só comentei.
Um senhor gordo, de bigodes, se aproximou do círculo de jovens, esbaforido e suando um
pouco. Não se preocupou em saber se interrompia alguma coisa, somente chegou lançando:
– Alguém viu o meu filho?
Era possível observar facilmente o olhar de julgamento estampado em cada rosto.
– Quem é seu filho, senhor...?
– Spencer. Henry Spencer é meu filho. Alguém o viu?
Os jovens negaram.
Do lado de fora da mansão, saindo do interior de uma limusine preta, se encontrava Henry
Spencer. Sem dúvida era dono do mais caro blazer da noite e, por estar, acompanhado por
Thereza, a senhora sua mãe, certamente seria reconhecido por todos os senhores como filho
do poderoso marajá do Sul, onde estava construído o império que herdaria. Era óbvio que os
filhos de tais senhores não conheciam Henry, pois este nunca havia freqüentado festa alguma
da sociedade de Harvey Hill. Não estava habituado a vaguear com a horda daquele bairro. Não
era velho, mas desconhecia os termos utilizados pela juventude e não se interessava pelos
assuntos que discutiam em tais festas. Estava ali para acompanhar a mãe, somente, que sofria
de uma doença rara e se encontrava debilitada, mas que fora obrigada a confirmar presença
no evento. Para um investidor da alçada de seu pai, era importante que a família nuclear
estivesse presente em momentos oportunos como aquele.
Ofereceu o braço à sua mãe, que aceitou e subiu com Henry os degraus da grande escadaria.
A recepcionista conferiu os nomes dos convidados na lista que levava à mão e os deixou
entrar, dando-lhes dicas inúteis de quais petiscos deveriam experimentar primeiro. Henry
reparou que muitos convidados já haviam freqüentado os eventos que seu pai organizava em
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sua casa de veraneio, mas sabia os nomes de nenhum deles. Conforme passavam, a mãe de
Henry cumprimentava-os com um aceno discreto. Um deles se aproximou e iniciou um assunto.
Era um velho conhecido da família, cujos filhos já haviam brincado com Henry durante um
período de sua infância, mas não lhe interessava a conversa. Afastou-se, se preocupando em
tomar conhecimento sobre onde seu pai estava, pois não queria encontrá-lo. Não se davam
muito bem, e para completar a situação haviam discutido no dia anterior, pois Henry não queria
comparecer ao evento e acabou sendo coagido pela mãe.
Na tentativa de fugir do ambiente hostil onde se encontrava, aproximou-se da parede mais
afastada do centro do evento, encontrando conforto nas tapeçarias que as adornavam, sem se
importar com o valor que tinham. Percebeu que a juventude se concentrava naquele extremo
do salão, diferenciando-se da grande porção senil que cobria a maior parte da festa. Muitos
conversavam animados, segurando seus coquetéis coloridos dispostos em taças de cristal
como se fossem seus mais preciosos tesouros. Alguns tinham frívola alegria estampada em
seus rostos, enquanto outros pareciam aflitos. Henry pensou em como seria sua vida se seu
pai tivesse seguido com a idéia de se mudar para Harvey Hill há cinco anos. Talvez hoje
estivesse incluído em algum desses grupos, compartilhando de assuntos infecundos com a
prole dos amigos de seu pai.
Com toda certeza, estar ali não fazia parte de seus planos para aquela noite. Porém, como
nunca desperdiçava oportunidades, começou a pensar em uma maneira de se aproveitar da
situação de alguma forma. Divertir-se não iria, mas poderia encontrar algo que o fizesse
esquecer o tempo. Foi quando um dos jovens aflitos aproximou-se de Henry com duas taças
na mão e, oferecendo-o uma delas, lançou:
– Por que ficar aí parado sozinho enquanto podemos apreciar um pinot noir?
Henry aceitou a taça com certa hesitação. Forçou um sorriso vazio de emoção, sem saber o
que dizer ao homem que chegava metido em seu terno creme. Desencostou-se da tapeçaria,
compondo uma postura apresentável àquele que certamente seria filho de um ricaço.
– Ora, você deve ser novo por aqui. Nunca o vi nos eventos de Harvey Hill. – continuou ele.
– Vejo que você deve freqüentar a todos eles. – comentou Henry, ainda sorrindo.
– Bem, somente àqueles onde posso saborear um Clos de Vougeot – disse ele, levantando a
taça levemente. – Sou Audrey Françoise, filho de Andre Françoise, da Dominique. Você é...?
– Henry. – respondeu simplesmente. Mesmo agora, sabendo os nomes, não fazia idéia de
quem era aquele homem e nem mesmo de quem era seu pai. Ao mencionar seu próprio nome,
percebeu que a expressão do outro, Audrey, se iluminou de forma curiosa.
– Seria Henry Spencer?
– Sim, esse sou eu. – disse franzindo o cenho, sem saber como o outro o reconhecera.
– Desculpe-me, é que o senhor seu pai passou por nós a sua procura.
Um espasmo gelado atravessou a espinha de Henry, que disfarçou seu abalo momentâneo
levando a taça aos lábios para sorver um gole do até então intocado líquido amargo. Piscou
duas vezes em reação ao gosto ruim do vinho que não apreciava e forçou outro sorriso.
– Meu pai me procurou? – disse, tentando transparecer normalidade.
– Sim, como eu disse. E ele me pareceu um tanto assustado. Aconteceu alguma coisa?
Henry se surpreendeu com o súbito interesse do desconhecido em sua vida.
– Você tem mais nada pra fazer aqui? – perguntou, irritado. O outro pareceu ignorar sua
indireta, pegando-o pelo braço na tentativa de conduzi-lo para o grupo de pessoas mais
próximo. – Que isso...
– Filhos de Harvey Hill, dêem boas-vindas a Henry Spencer.
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As pessoas o olharam com pouco interesse, porém era possível perceber a compreensão
estampada em suas faces quando Audrey disse seu nome. Seu pai deveria ter passado por
eles realmente, e não fazia muito tempo. Um moreno de olhos verdes, bonito e enfiado em um
terno escuro, foi o único que olhou para Henry com certo interesse. Henry retribuiu o olhar e
sorriu, desvencilhando-se da mão de Audrey, que o apertava. Desconcertado, achou que seria
melhor apresentar-se da maneira que convinha à situação.
– Sou Henry Spencer, filho de Roman Spencer, como certamente já sabem.
Um murmúrio geral de “Prazer, Henry” preencheu o pequeno círculo de pessoas que se fechou
com sua presença. Um a um eles foram se apresentando: Marcus, o moreno de olhos verdes;
Sofia, uma gorda rechonchuda que escapava de dentro do vestido; Jovi, um ruivo estranho
com sardas evidentes; e por fim Melissa, uma loira insignificante. Todos seguravam suas taças
e conversavam, aparentando conhecer-se bem. Ouvindo o pouco da conversa, Henry pôde
perceber que eram amigos de longa data e freqüentavam sempre os eventos da sociedade.
Marcus, o moreno, puxou assunto com Henry, fazendo questão de comentar como era ótima a
experiência de conhecer pessoas de fora do círculo fechado que compunham. Em questão de
segundos, Henry e Marcus já tinham estabelecido um diálogo alheio ao grupo.
– Nunca te vi por aqui. É seu primeiro evento em Harvey Hill? – perguntou Marcus. O verde de
seus olhos não se desviava do azul dos de Henry enquanto falava.
– Sim. Vim acompanhar minha mãe... – respondeu ele, com um sorriso. Marcus também sorriu,
e por um momento as palavras se findaram, dando lugar ao brilho dos olhos que se
encontraram sorrindo.
O silêncio foi quebrado por Audrey, que gritou em direção ao grupo apontando para algum
lugar atrás de si.
– E chegou Harvey Hill em pessoa... Ou pessoas.
Ele se referia aos dois anfitriões do evento, que desciam as escadarias vestidos em blazers
gêmeos idênticos, tal como também o eram. Através da explicação de Marcus, Henry tomou
conhecimento de que aqueles irmãos eram os donos da mansão onde se encontravam e
também do próprio bairro ao qual ofereciam o sobrenome. O legado era encabeçado por
Antoine Harvey, que junto de seu gêmeo Andrei, governava o império Harvey diretamente das
alturas. Eram morenos, não aparentavam ter mais de 35 anos cada um, e a barba mal feita
oferecia uma elegância vagabunda aos seus rostos moldados ao formato dos deuses gregos.
Quando chegaram mais perto do público – pois assim deveria ser chamado o povo diminuto
frente ao poder que os gêmeos emanavam – Henry percebeu que o brilho dos olhos de ambos
era divinamente diferente do habitual. Lá de cima até pareciam dois deuses, ou demônios, que
atraíam até mesmo o olhar da menor formiga do recinto. Acenaram ao público com discrição,
dando atenção a cada um dos senhores a quem cumprimentavam.
Passado o brilho etéreo proporcionado pela descida dos anfitriões, todos os convidados do
evento retomaram seus assuntos para com os indivíduos com os quais antes eles dialogavam,
tal como fez Audrey.
– Antoine e Andrei Harvey – disse com paixão no olhar –, os italianinhos herdeiros da fortuna
de Harvey Hill. Não é hilário? Todos nós aqui somos filhos de senhores tal como eles foram um
dia, e juntas nossas fortunas não somam metade da que eles dispõem com essa idade. Quem
é o mais velho entre nós? Marcus? Tenho vinte e nove anos e sou pobre perto deles.
A maioria balançava a cabeça em sinal de concordância. Henry não suportava aquela conversa
sobre dinheiro. Certamente também era herdeiro do legado de seu pai, mas não queria saber
nem de um por cento daquela fortuna. Esperou calado até que a conversa tomasse outro
assunto que não fosse aquele, enquanto alimentava os olhares que Marcus lhe lançava. A
música ambiente sufocava-o e os perfumes misturados davam-lhe náuseas. A voz de Audrey
se elevava a cada letra pronunciada e sua insensatez ultrapassava os limites estabelecidos
pelo ego de Henry, que já não o agüentava. Ele pensou que a conversa tomaria um rumo mais
suportável, mas enganou-se, quando o ruivo Jovi retomou um assunto que aparentemente
discutiam antes de sua chegada.
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– Como estava o estado do corpo de Julius?
– Deplorável. – respondeu Audrey, quem parecia saber sobre todos os assuntos da noite –
Disseram-me que estava ressequido, e seus olhos permaneciam abertos, com medo...
Enquanto falava, a gorda Sofia retorcia sua face em uma expressão de nojo e repulsa. Henry,
apesar de nauseado, interessou-se pela vítima:
– Ele era amigo de vocês? – perguntou para o grupo.
– Você o conhecia, Henry? – lançou Audrey após sorver o último gole de seu vinho.
– Não, não. Vi alguma coisa na televisão.
– Foi um crime horrível mesmo. – disse Marcus. – E dizem que não foi o primeiro.
– É o terceiro de uma série de assassinatos. Porém, dessa vez foi com um dos nossos... Eu
não conhecia os outros dois.
A náusea de Henry agravou-se. Estava irritado com a festa, com aquelas pessoas, com a
conversa. Começou a suar frio debaixo da camisa e, olhando para Marcus, para seus traços
convidativos, tocou seu braço delicadamente e pediu para que se afastassem do grupo. Sem
dizer palavra, Henry saiu pelo átrio com Marcus aos calcanhares, sem saber onde estava sua
mãe e também não se preocupando com ela. Com a visão embaçada, dirigiu-se a um corredor
ao fundo, que parecia dar nos quartos de hóspedes. Suando, Henry adentrou o corredor,
preocupado em se esconder da alegoria que havia se tornado aquela festa para ele. Apoiou-se
na parede e usou o indicador para alargar a gravata que ajudava a sufocar-lhe a vida.
Percebendo o abalo, Marcus tocou-lhe o antebraço com carinho.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou ele, preocupado.
Henry fechou os olhos e respirou fundo, tentando recuperar a visão que havia perdido. Ao abrilos, deparou-se com os de Marcus encarando-o. Aqueles traços morenos o convidavam ao
erro, e o brilho de seus olhos verdes quase o chamava pelo nome.
– Henry... Henry...
Eles chamavam. Encarou a face corada do outro, que pulsava vida e estava ali, só para ele. O
burburinho da festa sumiu, a presença das outras pessoas tornou-se nula, e naquele momento
Henry só tinha olhos para a essência de Marcus.
– Henry? Está tudo bem? O que aconteceu? – repetiu.
“Ele se preocupa! Meu deus, como ele se preocupa!” Henry pensava. Um garoto qualquer da
sociedade, que havia conhecido a menos de meia hora, já estava preocupado com o que
poderia estar se passando com ele. Uma alma inocente, um menino doce... Abriu a boca para
responder ao outro, mas seu impulso interino foi mais forte e o empurrou em sua direção. Seus
lábios se encontraram com força e desejo, e assim dançaram. Henry encontrou plenitude nos
lábios dados que saboreava sem encontrar hesitação. Seus dedos sentiam a textura dos
cachos morenos de Marcus, pressionando-o para si em um gesto de desesperada sede. O
outro retribuía o beijo com vontade, tateando locais estratégicos do corpo de Henry sem se
preocupar com a presença de outrem. Henry se aproveitava de tudo o que podia conseguir da
vontade de Marcus, antes que este cedesse ao fim da vida e permanecesse inerte.
Não demorou a acontecer. Os braços de Henry que antes agarravam Marcus com força agora
envolviam seu corpo sem vida. Deitou o cadáver no carpete vermelho e ali o deixou, fugindo
para a profundeza dos aposentos da mansão. Entrou em um quarto qualquer e fechou a porta
atrás de si. Na penumbra, sentia-se em plenitude de espírito e mais forte fisicamente, apesar
de exausto. Sabia que havia melhorado, mas precisava tocar-se e ver com os próprios olhos.
Tirou a gravata e o terno, lançando-os ao chão atapetado e desabotoou a camisa. Despiu-se
deixando o tronco nu e dirigiu-se ao centro iluminado do quarto para enxergar-se melhor.
Tirando com cuidado o curativo improvisado, notou que o grande corte que atravessava toda a
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base de seu abdômen estava quase cicatrizado. Satisfeito, tateou seus músculos a procura do
desenvolvimento prometido e ali o encontrou. Henry respirou profundamente três vezes, como
havia sido instruído a fazer, e um véu de calma o envolveu.
Sobressaltou-se ao ouvir o clique da porta atrás de si, e virou-se de súbito para ver quem
adentrava o aposento. No escuro avistou o brilho prateado dos olhos de Antoine e se
reconfortou. Andrei entrava logo atrás, calado, seguindo os passos do irmão segundos mais
velho. Fecharam a porta novamente, e com um gesto de Antoine ela se trancou. O olhar de
Henry encontrou a compaixão estampada os rostos dos gêmeos, e as lágrimas lhe saltaram,
involuntárias. Foi de encontro a Antoine e beijou seus lábios primeiramente, antes de beijar os
de Andrei. Ao se afastar, percebeu que o mais velho lançava um olhar para o mais novo,
pedindo por algo. Foi quando Andrei lançou as costas de sua mão na face direita de Henry,
que emitiu um leve gemido de dor.
– Nunca pensei que você fosse se utilizar de nossa casa. – disse Antoine. – As pessoas estão
aflitas lá fora, sabia?
– Desculpe-me, Antoine. Não sabia quem eram vocês realmente.
– Soube antes de Beijá-lo. – desafiou Andrei. – Não lhe demos o Dom para que fosse oferecido
ao desperdício.
– Eu estava fraco, nauseado... – disse, passando as mãos pelos cabelos claros – Marcus
estava lá! Lançando-se para mim, como se soubesse... Não tive culpa alguma.
– Henry, o que foi que lhe dissemos? O Dom deve ser usado para a sua cura, em locais
apropriados, utilizando-se de pessoas também apropriadas. Um evento como este, oferecido
para uma sociedade que se encontra aos olhos do mundo, não pode ser foco de um escândalo
nos envolvendo.
– Aliás, por que você resolveu pisar em Harvey Hill? – perguntou Andrei, franzindo o cenho.
– Soube do evento pelo meu pai.
– Não. Estou falando da noite de ontem, quando você Beijou Julius Powell.
Henry sentiu-se fraco novamente. Sentou-se em uma poltrona de veludo e levou as mãos à
cabeça, despenteando-se, preocupado com seu futuro.
– Conheci Julius em um bar na Avenida, bem longe daqui. Ofereci para dar uma carona depois
de nossa noite... Não sabia que ele morava em Harvey Hill. Eu não queria Beijá-lo como
beijamos, ele fora muito bom pra mim.
– Mas você estava com sede. – concluíram os irmãos, em uníssono.
– E também com dores no abdômen. Quando vi os olhos de Julius, tão verdes, tão vivos... Não
pude me controlar. Eles me chamavam! O corpo dele me chamava...
– E então você resolveu terminar o serviço ali mesmo. – Antoine balançava a cabeça,
desaprovando a atitude de Henry. – Em frente à casa de sua vítima. Quão apropriado?
– Eu não tive escolha! Isso está me controlando...
– Ah, claro. A velha desculpa.
Com o rosto escondido atrás de suas mãos, Henry ainda chorava. Com cuidado, Antoine
aproximou-se dele, segurou-lhe as mãos e levantou-lhe. Conduziu-lhe para mais perto da luz e
observou os olhos lacrimejantes de Henry, verificando seu estado. Após isso, segurou com
suas mãos a face de Henry passando os dedos por sua barba rala, apreciando o rosto de seu
aprendiz antes de beijá-lo novamente.
– Andrei, venha ver.
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Andrei tomou o lugar do irmão e executou os mesmos gestos, com um esboço de um sorriso
dançando em seus lábios. Os olhos azuis de Henry estavam sustentando um brilho diferente,
mais etéreo. Sua íris estava adquirindo uma nova coloração, mesclada ao prateado. Andrei
esparramou-se em um sofá de veludo, sorrindo e satisfeito com a noite. Tirou os sapatos e o
blazer, depositando-os delicadamente no acento ao seu lado. Seus olhos tinham uma
coloração prateada que eclipsava o azul profundo, assim como os do irmão mais velho. Tinha
nascido segundos depois que ele, e por isso sentia-se inferior. Mas nem por isso deixava de
amá-lo.
– Seus olhos estão eclipsando, Henry. – comentou Antoine. – O que acha disso?
Henry olhou de um gêmeo para o outro, focando seus olhares, antes de abaixar a cabeça
novamente.
– Vou acabar me tornando um de vocês. – concluiu.
– E você acha ruim? – perguntou Andrei. Sua expressão traduzia a pura ironia.
– Você já é um de nós, Henry – continuou Antoine. – Só está em fase de desenvolvimento.
Como eu já te disse antes, você vai se desenvolver rápido. Já está sentindo os frutos do Beijo.
Percebo que você criou músculos e que sua ferida está cicatrizando.
Ao dizer isso, ele retirou seu blazer e depositou-o junto ao do irmão, desabotoando a camisa
de seda escura e largando-a ao chão atapetado. Uma fina penugem morena cobria o peito
musculoso de Antoine e, na pouca luminosidade, seus músculos pareciam transcender a
beleza esculpida pelos deuses. Apalpou o abdômen em busca da cicatriz em sua base,
passando o indicador pela fina linha esbranquiçada que o delimitava.
– Veja. – aproximou-se de Henry e pegou-lhe a mão, fazendo-a tocar a própria ferida
cicatrizada. – Meu signo já é cicatrizado há anos. O seu ficará assim também, se você
continuar. Bom, você não tem escolha.
Henry sentiu a fina linha branca do signo que atravessava a base do abdômen do outro.
Certamente Andrei também teria uma, pois ambos eram filhos do Ritual, assim como ele
também o era agora. O corte era feito para que doesse em momentos de sede, e Henry havia
comprovado isso. Durante o Ritual, foi dito que o corte se cicatrizaria conforme ele Beijasse, e
seus músculos se fortaleceriam, definindo-se. Olhou novamente para a própria ferida.
– Está mesmo cicatrizando. Quantos beijos até se fechar? – perguntou, sem saber para qual
gêmeo se dirigia.
– Não adianta achar que sua sede vai saciar depois que se fechar. Aliás, ela só aumenta. A
diferença é que você vai saber controlar o impulso.
– Eu não devia ter pegado aquela carona com vocês.
– E de que adianta lamentar o passado? – disse Andrei, relaxado. – Você teria se tornado um
de nós mesmo se não tivesse compartilhado de nossa limusine naquele dia. Observávamos
você havia semanas, Henry. Você é lindo, seus lábios são vida. Não poderíamos deixar de te
escolher. É uma pena que Antoine tenha te Beijado primeiro. Eu teria gostado de te degustar.
Antoine sorriu, lembrando-se do dia em que tinha iniciado Henry na vida abençoada pelo Dom.
– Pare de choramingar, Henry. – pediu ele. – Depois que você sentir sua cicatriz aperfeiçoada,
você irá me agradecer por ter te Beijado. Percebe que seu corpo mudou? Você está mais
atraente do que nunca. – ele passou a mão pelo peito de Henry, acariciando-o – As mulheres
irão implorar pelo seu beijo, e você não será obrigado a dá-lo. Os homens mais atraentes da
cidade irão cair aos seus pés depois do Dom. Não viu Marcus? Filho de Mathieu Borges, sócio
majoritário da Dominique. Um dos rostos mais agradáveis de Harvey Hill, com os olhos mais
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verdes da sociedade... E não resistiu ao seu charme galanteador. Aposto que você nem
precisou se esforçar para conseguir o que queria.
Henry refletiu. Realmente não esperava que alguém naquela festa fosse se interessar por ele
tão rapidamente. O verde era a cor escolhida para ele, e Marcus, antes de morrer, foi dono do
mais belo par de esmeraldas de Harvey Hill, assim como Julius havia sido antes dele.
– Percebe que a nata dos olhos verdes está perdida? – Antoine ria. Foi até o sofá onde seu
irmão estava esparramado e tateou os bolsos do blazer a procura de alguma coisa. Quando
encontrou, protegeu-o na palma de sua mão, mas não antes de Henry reparar que o objeto
emanava um brilho difuso. Com um gesto, Antoine fez Andrei se levantar e preparar-se.
Antoine abriu a mão, deixando o objeto exposto em sua palma, mas ele emanava um brilho
prateado tão forte que Henry não pôde perceber o que era. Andrei despiu seu tronco,
deixando-o nu como o dos outros dois, antes de dirigir-se a fronte de seu irmão gêmeo. Antoine
elevou o objeto e o embocou, antes de beijar o irmão. Durante o beijo, Henry reparou que os
corpos de ambos pareciam estar envolvidos por uma bruma prateada que subia e compunha
uma espiral difusa acima de suas cabeças. Em um instante eles se separaram, e Antoine
devolveu o objeto à sua palma, brilhando ainda mais. Estendeu-o para Henry.
– Engula-o.
Ele pegou o objeto que brilhava e obedeceu a ordem recebida. Não possuía gosto algum, mas
pôde sentir sua textura instável ao degluti-lo.
– O que é isso? – perguntou incrédulo.
– Agora você é parte de nós. Somos três. Trindade. Tríade. – disse Antoine. – Você não sentirá
desconforto algum a partir de agora. O que você sente, nós sentimos. O que eu sinto você
também sente. Aquilo que te fortalece, também nos fortalece. Somos uma via de mão dupla,
Henry. Você só terá a nós.
– Entenda que aqueles com que você se deitar, serão suficientes para o seu alimento, para sua
carne. Você poderá sentir o prazer da vida, da cópula em sua plenitude, mas não sem
entregar-lhes à morte. Em vida você só terá a nós. Comigo e com Antoine você se deitará e a
morte não chegará. Seremos seus, e você, nosso. Eternamente.
– Eu sou o Escolhido. – as palavras lhe saíam sem permissão. – Pertenço a Vós.
– Agora se vista. – ordenaram.
Os três cobriram-se novamente, calçando as vias da formalidade formatadas em roupagens. A
vida agora era eterna, e Henry a sentia percorrendo por suas veias dilatadas de paixão. Já não
sentia dor ou desconforto. Percebeu que tinha sede, mas que era capaz de controlá-la.
Lembrou-se de Julius, de Marcus, de seus olhos verdes, alimento para sua tez. O preço a
pagar pelo Dom não era grande: Sentiria o prazer de Beijar a virilidade esmeralda, entregandoa para a morte logo após, mas não sentia remorsos. Aqueles dois foram seus primeiros, e
muitos outros viriam. Não se preocupava, pois agora tinha Antoine e Andrei para satisfazer
seus instintos mais profundos, para amá-lo e respeitá-lo como ser humano, oferecendo em
dobro o que Henry nunca seria capaz de desejar uma única vez. Atravessou o átrio do evento
sem se preocupar com aqueles que um dia foram seus pais, realizando que logo morreriam.
Em companhia de seus gêmeos, desceu a escadaria da mansão e adentrou a limusine branca
que os esperava, pensando em onde iria para encontrar o sortudo a quem ofereceria seu
próximo Beijo.
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