Perguntas para os participantes da audiência pública
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Perguntas para os participantes da audiência pública
Capítulo do livro Atenção em Saúde mental para crianças e adolescentes no SUS Organizadores: Edith Lauridsen-Ribeiro Oswaldo Yoshimi Tanaka São Paulo, Hucitec, 2010 Que desafios os adolescentes autores de ato infracional colocam ao SUS? Algumas notas para pensar as relações entre saúde mental, justiça e juventude. Maria Cristina G. Vicentin (Prof. Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUC-SP) Gabriela Gramkow (doutoranda Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUC-SP Nesse texto, ao invés de explorarmos uma experiência em saúde mental junto a jovens autores de ato infracional1, tomaremos os adolescentes autores de ato infracional como analisadores2 de algumas dificuldades e desafios colocados aos serviços e às políticas de saúde mental quando trabalhamos com situações de grande vulnerabilidade. Assim, apresentaremos, inicialmente, alguns elementos problemáticos da relação da adolescência em situação de vulnerabilidade com os serviços de saúde, que nos permitirão identificar a complexidade dessa relação e delinear alguns de seus desafios. Em seguida, vamos sugerir algumas possibilidades de ação nesse campo. 1. Uma relação “problemática” Já é nossa conhecida a distância entre adolescência e serviços de saúde mental, a qual tem sido reiteradamente sinalizada por pesquisadores e trabalhadores desse campo. Distância aqui entendida em muitos sentidos: 1 Uma importante experiência, realizada em Belo Horizonte, está contemplada nesse livro no capítulo escrito por Cristiane Barreto. 2 Analisador, na perspectiva da análise institucional, é um dispositivo de decomposição dos elementos participantes da totalidade de uma situação, arguindo, dessa maneira, determinadas naturalizações e 2 enquanto escassez de serviços de saúde mental para adolescentes, e como a propalada “dificuldade de adesão” dos mesmos aos tratamentos. E, ainda, distância quanto à “cara” dos serviços de saúde, percebidos como não acolhedores aos jovens, quanto ao hiato cultural e etário entre profissionais dos serviços e os adolescentes/jovens e, por fim, distância enquanto fragilidade na dinâmica inter-setorial entre saúde, educação, trabalho, esporte, justiça quando falamos de adolescentes e jovens. Uma relevante análise de algumas dessas distâncias pode ser encontrada na recente pesquisa desenvolvida por Areias (2009) em torno dos critérios de inclusão dos adolescentes nos serviços de saúde mental pelos profissionais dos serviços numa região do município de São Paulo. Nesse trabalho, um dos achados mais centrais refere-se ao conflito entre a lógica do adolescente e a lógica de funcionamento das instituições de saúde, o que, na maioria das vezes, dificulta o reconhecimento dos serviços de saúde mental por parte dos adolescentes como recurso possível para recorrer em caso de necessidade, produzindo até uma escassez da procura. Se para grande parte dos jovens essas distâncias já se apresentam como significativas, imaginemos para os segmentos juvenis em que as dimensões de vulnerabilidade são mais agudas. Estudo realizado em 2004 em torno da presença de crianças e adolescentes em situação de risco nos serviços de saúde, também no município de São Paulo, evidenciou: a falta de preparo dos profissionais da saúde para lidarem com essa demanda singular e complexa; a persistência de uma atuação individual do profissional e de uma prática de isolamento dessas crianças em programas e políticas específicas; a dificuldade de um trabalho em rede e uma lógica centrada nos encaminhamentos. (Lescher, Grajcer & Bedoian et al, 2004). Tal lógica individualizante só faz incrementar a vulnerabilidade das crianças, dos adolescentes e também dos convocando a potência de produção de realidades alternativas e/ou alterativas. (Lourau, 2004; Rodrigues, 3 profissionais. A referida pesquisa considera que é um desafio para as políticas públicas criar mecanismos facilitadores de aproximação dessa população aos serviços de saúde, valorizando o acolhimento como dispositivo fundamental, bem como a construção de procedimentos singulares para cuidar da adesão e do acompanhamento dessas crianças e adolescentes. No caso dos adolescentes autores de ato infracional, essa distância, já quase uma apartação, tem sido historicamente mais extremada por inúmeras razões, dentre elas: a persistente lógica totalitária das instituições de guarda e custódia de adolescentes “desviantes”, especialmente daquelas que executavam medidas de privação de liberdade, em geral com as ações de saúde desenvolvidas intra-muros e os efeitos de distanciamento derivados do estigma da periculosidade3. Certamente os avanços na Reforma em Saúde Mental e no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e no Adolescente em nosso país vêm trazendo mudanças significativas nesse panorama, mas, antes de evidenciá-las (o que faremos no item a seguir), gostaríamos de chamar a atenção para a grave utilização dos temas da saúde mental mais recentemente no campo do autor de ato infracional na perspectiva da defesa social e não na ética do cuidado. Ou seja, o controle social dos jovens e especialmente daqueles autores de ato infracional no Brasil tem se revestido de crescentes processos de psiquiatrização, além do já conhecido processo de criminalização (como a proposta de redução da idade penal) (Vicentin, 2005, 2006). O que estamos chamando de psiquiatrização é a predominância dos saberes e fazeres psi na Leitão e Barros, 1992) 3 Não temos como fazer aqui uma discussão mais exaustiva das razões históricas dessa sistemática exclusão, mas remeto a leitor aos seguintes trabalhos: Rizzini & F. Pilotti,. (1995) A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula.; M. Del Priore. (1991) História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto; Marcílio, M. L. (1998). História social da criança abandonada. São Paulo: HUCITEC; Santos, M. A. C. (2004). Criança e criminalidade no início do século. Em M. del Priore (Org.), Histórias das crianças no Brasil (pp. 210-230). São Paulo: Contexto. 4 gestão das problematizações e dos conflitos que setores da juventude vêm colocando ao campo social. Vejamos os sinais dessa psiquiatrização4: a) O crescimento da internação psiquiátrica de adolescentes por mandado judicial (nos maiores hospitais psiquiátricos para adolescentes do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), caracterizada: pela compulsoriedade, pela estipulação de prazos para a internação subordinada aos critérios jurídicos, por tempo médio de internação superior aos dos demais internos admitidos por outros procedimentos e pela acentuada presença de quadros relativos à distúrbios de conduta (portanto, não psicóticos). (Bentes, 1998; Joia, 2006). Em pesquisa realizada no Centro Integrado de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, Scisleski e outros (2008) verificaram que a questão da drogadição tem sido a “patologia” juvenil que mais demanda atendimento naquele serviço, sendo corriqueiramente encaminhada de um modo bastante peculiar: via determinação judicial. Os autores ponderam que, nesses casos, a ordem judicial parece desempenhar um papel dúbio: se, por um lado, é um procedimento que se oferece como uma estratégia de acesso para jovens ao serviço de saúde, por outro, por vezes é utilizado como uma espécie de punição, no sentido de o encaminhamento servir como um recurso auxiliar à disciplinarização dos jovens. A internação psiquiátrica funciona tanto como resposta que dá legitimação de uma “individualidade fracassada” quanto reafirma o lugar de marginalidade social desses jovens. Cabe destacar também que, no recente “Levantamento Nacional dos Serviços de Saúde Mental no Atendimento aos Adolescentes Privados de Liberdade e 4 Sobre essa discussão, vide também: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA E ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS CENTROS DE DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ANCED). Discursos de poder: tutela psijurídica da adolescência, 2007. Disponível em: http://www.cedecainter.org.br/portal/e107_files/downloads/ 5 sua Articulação com as Unidades Socioeducativas” (SEDH/MS, 2009), 64% das unidades socioeducativas respondentes5 afirmaram que a rede de saúde mental recebe mandado de internação compulsória emitida pela Vara da Infância ou Ministério Público. Destas, 40% acatam o mandado e internam o adolescente, independente de buscarem ou não mecanismos de diálogo com o Judiciário. b) A crescente tematização das relações entre transtorno mental e criminalidade juvenil, evidenciada: - nas propostas de alterações no ECA centradas no argumento do transtorno mental e da periculosidade; - no crescente encaminhamento de adolescentes autores de ato infracional para perícias psiquiátricas visando aferição do grau de periculosidade; na aplicação de simulacros de medidas de segurança a jovens infratores: como é o caso dos jovens internos na UES, unidade inaugurada em dezembro de 2006 no estado de São Paulo, destinada a oferecer atendimento para portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e/ou de periculosidade, durante o cumprimento de medida sócio-educativa de internação. (Vicentin, 2005, 2006; Frasseto, 2008) c) O uso dos medicamentos psicotrópicos como forma de controle de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, conforme estudo recente do Conselho Federal de Psicologia, identificado em pelo menos quatro estados do país, Minas Gerais, Paraná, Piauí e no Rio Grande do Sul.6. posicionamento_cfp_anced_tutela_psijurudica_final_site.pdf. 5 No referido estudo, do universo de 147 municípios-sede de unidades socioeducativas de internação e de internação provisória, obteve-se 85% de repostas do total. 6 Os pesquisadores detectaram que no Rio Grande do Sul cerca de 80% dos internos são medicados e que tanto os diagnósticos quanto os medicamentos receitados são idênticos, o que comprovaria o uso abusivo das substâncias por parte das instituições. (Conselho Federal de Psicologia e Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB. Direitos Humanos – um retrato das unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Inspeção Nacional às unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, 2006). 6 Vemos desenhar-se, assim, uma delicada relação entre medidas de proteção e/ou socioeducativas 7 e “demandas” em saúde mental, com os tratamentos (muitas vezes compulsórios) sendo entendidos diferentemente pelas lógicas judiciais e pelas da saúde. Essa delicada relação fica bastante evidenciada, como vimos acima, nas ocasiões em que a terapêutica tende a se confundir com a pena ou quando tratamento e castigo assumem a mesma forma, principalmente nos casos de imposição de tratamento por uso de drogas.8 Destaca-se, ainda, a presença do sistema de justiça na relação com os serviços de saúde, o que pode resultar em crescente judicialização ou ser revertida a favor de lógicas inter-setoriais e em rede, a depender de como é trabalhada, como nos sugere Cristiane Barreto nesse mesmo livro: “a porta de entrada da Saúde Mental, diferente de outrora, pode ser o campo da justiça”, mas “resta depurar a demanda endereçada, sem perder a oportunidade de receber e tratar dos adolescentes encaminhados”, de forma a “ampliar as delimitações burocráticas para escutar os caso” ( p. ). Tais “demandas” dirigidas ao campo da saúde mental acompanham uma tendência à patologização de setores da juventude pobre, isto é, uma forma de encobrir como doença mental determinados processos sociais que discriminam a pobreza e o desinvestimento da sociedade em relação a esses jovens.9 E 7 A medida de proteção é aplicada à criança e ao adolescente sempre que os direitos reconhecidos no ECA (1990) forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - e razão de sua conduta (Art 98) ; e as medidas sócioeducativas, cujas disposições gerais encontram-se previstas nos arts. 112 a 130 do Estatuto (Lei nº 8.069/90) são aplicáveis aos adolescentes que incidirem na prática de atos infracionais. 8 Na Argentina, pesquisa de Guemureman e Daroqui, (2001) na Provincia de Buenos Aires indica uma judicialização de crianças e jovens como uma das respostas do poder público às problemáticas da delinqüência, do consumo de drogas e da pobreza, reafirmadas sistematicamente na associação desvioperigosidade-droga-violência. Cresce a internação desses jovens em clínicas psiquiátricas, o que é fenômeno recente e sua multiplicação segue a mesma lógica: muitos ingressam no juizado, em primeiro lugar, por um delito, quando se reconhece o consumo habitual de drogas. Esses jovens são, portanto, encaminhados para tratamento, ambulatorial ou internação, por tempo indeterminado, delimitando-se uma situação onde o tratamento e o castigo assumem a mesma forma, e os seus limites ficam condicionados à cura, ou recuperação. 9 A ANCED (2009), no documento “Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar”, sinaliza a necessária defesa da garantia do direito à saúde para crianças e adolescentes. Mesmo com a nova política de saúde mental responsável por uma melhoria significativa dos indicadores de saúde, 7 indicam também que é necessário: problematizar as diretrizes terapêuticas sempre que estejam atreladas à lógica individualista ou quando buscam responder às exigências de defesa social e ampliar o olhar e a ação para a complexa e muitas vezes restrita trama na qual esses jovens se inserem socialmente. Nesse aspecto, nenhuma instituição isoladamente – mesmo a de saúde mental - é capaz de oferecer alternativas para que os jovens saiam desse “destino”. Somente uma articulação coletiva entre diversos atores sociais e instituições que acompanhem esses jovens poderão criar outras alternativas a esse circuito manicomializante. (Bentes, 1998; Joia, 2006; Scisleski e outros, 2008; Vicentin e Rosa, 2009) que “explicita a clausura de seus próprios percursos” (Scisleski e outros, 2008). Concluindo esse breve panorama da relação do sistema de saúde mental com o adolescente autor de ato infracional, fazemos referência ao diagnóstico feito pelo próprio Ministério da Saúde e SEDH a esse respeito: “apesar dos avanços advindos da Reforma Psiquiátrica, temos uma grande lacuna na compreensão da condição do adolescente enquanto sujeito de direito, em situação de vulnerabilidade e em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, posto que o sistema de responsabilização juvenil ainda perpetua modelos hospitalocêntricos, manicomiais, e de instituições totais. Esses modelos, inclusive, comprometem sobremaneira a qualidade do atendimento que é ofertada ao adolescente em conflito com a lei, ao forçar uma atuação correcional-repressiva, quando não mascarada de uma proposta terapêuticapsiquiátrica, inclusive com recentes propostas voltadas à manutenção identificam-se traços de psiquiatrização e medicalização das demandas sociais e políticas desses jovens que sofrem com a incapacidade de acolhimento dos seus casos. O documento sugere uma atuação integrada de operadores sociais e do direito para a implementação da garantia do direito à saúde da infância e da adolescência. Recomenda-se que a rede pública ampliada de saúde mental para crianças e adolescentes opere sob o princípio da intersetorialidade e do cuidado territorial, estabelecendo estratégias de pactuação coletiva e de verificação permanente de sua efetividade, situando o CAPSi em um papel estratégico nos dispositivos da rede integral de saúde. 8 compulsória da internação de adolescentes acima dos 21 anos de idade” (SEDH/MS, 2009, p. 33). 2.O que as políticas de saúde/saúde mental têm proposto em relação ao autor de ato infracional)? Não são muitas as indicações que encontramos quanto à singularidade da atenção à saúde e à saúde mental nas interfaces com o sistema de justiça juvenil e o socioeducativo.10 11 A Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2005) propõe diretrizes referentes à Atenção à saúde mental na adolescência que situam a inserção do adolescente autor de ato infracional no âmbito de qualquer serviço de saúde, na direção do acolhimento universal: - “todos os serviços públicos de saúde mental infanto-juvenil devem estar abertos a todo aquele que chega, ou seja, toda e qualquer demanda dirigida ao serviço de saúde do território, deve ser acolhida, isto é, recebida, ouvida e respondida. Trata-se de acabar com as barreiras burocráticas que dificultam o acesso ao serviço e romper com a lógica do encaminhamento irresponsável. (p. 12, grifos nossos)” - e também no contexto de uma lógica territorial e intersetorial: “um trabalho clínico não pode deixar de ampliar-se também no serviço, de seus portões para fora, para a rede que inclui outros serviços de natureza clínica (outros Capsis e Caps, ambulatórios, hospitais, PSFs, etc.), mas também para outras agências sociais não clínicas que atravessam a vida das crianças e jovens: escola, igreja, órgãos da justiça e da infância e adolescência, conselho tutelar, instituições de esporte, lazer, cultura, dentre outros” (p. 14). E salienta também que a noção 10 Com isso não queremos dizer que a ênfase deva ser a criação de políticas especiais. Ao contrário, como veremos no próximo item, trata-se de ampliar a transversalidade entre políticas de socioeducação e as políticas básicas. Mas cabe pensar como construir essa transversalidade. 11 Não poderemos, no escopo desse texto, fazer uma compilação do marco legal em torno do direito à saúde com foco no adolescente em conflito com a lei, mas remetemos o leitor ao importante trabalho de Eduardo Dias S. Ferreira. O direito à saúde no Estatuto da criança e do adolescente. Dissertação de Mestrado em Direito. PUC-SP, 2001. 9 de sujeito implica também a de singularidade, que impede que esse cuidado se exerça de forma homogênea, massiva e indiferenciada. Por sua vez, as indicações sugeridas pelo Sinase (Sistema Nacional de Atendimento socioeducativo) são consistentes: A(s) unidades de internação devem contar com um projeto de saúde estabelecido em parceria com as políticas municipais, estaduais e federais, de modo a compor e a articular as diferentes competências. As unidades devem assegurar de forma combinada e complementar o acesso ao serviço especializado conveniente ao caso (seja CT, enfermaria psiquiátrica ou Caps AD), quando for necessário, e deve assegurar a participação de sua equipe de saúde (clínico, psicólogo, psiquiatra, As e outros) no processo de tratamento com papéis definidos pelo projeto em questão. Os maiores avanços em relação à atenção em saúde mental dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa aconteceram em grande parte devido ao diagnóstico relativo à precariedade nas ações de saúde principalmente em unidades de internação constatada em pesquisas sobre a situação dessas unidades12. No ano de 2004, o Ministério da Saúde, por meio da Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, numa ação integrada com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, aprovou e regulamentou as diretrizes para a implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em conflito com a lei em regime de internação e internação provisória (PNAISARI), por intermédio da Portaria Interministerial n. 1426 e Portaria SAS n. 340, de julho de 2004. Essa última foi revogada e substituída pela Portaria n. 647 de 11 de novembro de 2008 que detalha mais claramente os critérios para a habilitação 12 Estudos sobre a situação das instituições que executam Medidas Socioeducativas no Brasil, realizados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA – no ano de 2002, apontaram uma frágil condição na atenção à saúde ofertada aos adolescentes privados de liberdade (Silva, E. R. A.; Gueresi, S. Adolescentes em Conflito com a Lei: situação do atendimento institucional no Brasil, (Texto para Discussão, n. 979). Brasília: Ipea, 2003). 10 dos estados interessados em aderir (e receber financiamento) para aderir ao compromisso de ofertar aos jovens que cumprem medida restritiva da liberdade uma atenção em saúde qualificada e sintonizada com o SUS. Em 2008, O Ministério da Saúde, o Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (CONANDA) e a Associação Brasileira dos Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude (ABMP) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) realizaram a evento para a construção de um modelo de fluxo operacional para o atendimento em saúde mental dos adolescentes privados de liberdade. (SEDH/MS, 2009, p 3-4) O Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil, no relatório de sua VIII Reunião Ordinária (2009) reiterou: a) a garantia de atendimento do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa na rede de saúde mental como usuários legítimos; b) o diálogo entre os gestores de saúde e o sistema de garantia de direitos para a efetivação das ações de saúde dentro dos princípios do SINASE e do SUS; c) a repulsa e a indignação diante das práticas abusivas e violadoras de direitos como a internação compulsória em unidades especializadas e/ou hospitais psiquiátricos. E, mais recentemente, o MS propôs um seminário (novembro de 2009) em torno desse tema. No Mais juventude na saúde: vamos falar disso? formulouse fluxos, orientações e recomendações de atenção à saúde mental de adolescentes em conflito com a lei13. Cabe ainda destacar que a Reforma em Saúde Mental no Brasil vem ampliando sua agenda temática e programática, tendo absorvido a questão do abuso de álcool e outras drogas na política de saúde mental com: realocação de parte da política até então lotada estritamente na área da justiça e reconceituação da atenção com ênfase nas estratégias de redução de danos 13 Até a produção desse texto o MS não havia divulgado o relatório final construído no encontro com as recomendações. Para pesquisar esse material, indica-se o site do Portal da Saúde do MS/ Secretaria de Atenção à saúde/ Saúde Mental: http://189.28.128.100/portal/saude/area.cfm?id_area=925 11 bem como com a criação dos Caps Ad (Caps álcool e drogas). 14 Como essa é uma demanda recorrente do sistema de justiça e do socioeducativo para os serviços de saúde, a ampliação dessa atenção na atenção básica e nos serviços especializados pode mudar radicalmente o circuito da internação psiquiátrica de adolescentes e jovens. Assim, são grandes os desafios que se colocam nesse âmbito e múltiplas as possibilidades de ação em saúde, conforme veremos no próximo item. 3. Desafios e eixos de ação para os profissionais de saúde e de saúde mental: 1. A atenção e a ética em saúde mental não podem desconhecer a gravidade da violência institucionalizada ou da violação de direitos que ainda persistem em contextos ditos “socioeducativos”15 e devem trabalhar a favor da desinstitucionalização da violência e da desconstrução dos processos de patologização da juventude. As políticas de saúde/saúde mental podem: - identificar e minimizar os danos decorrentes dos processos de institucionalização, isto é, os quadros mórbidos resultantes das inter-relações entre a pessoa e o meio. (Oury, 1998, apud Moura, 2003, p. 65). Nas unidades de internação, a segregação derivada da própria medida aliada às condições de violência institucional, ainda hoje presentes em muitos estados, deflagra uma experiência de mortificação que se expressa de diversas formas: exaustão, 14 Cabe lembrar que historicamente as práticas de cuidado em saúde, dirigida aos usuários de álcool e outras drogas, oscilaram entre os cuidados de caráter religioso ou de cunho psiquiátrico, com orientação para a abstinência não garantindo efetividade e resolutividade no cuidado com essas pessoas e ainda reforçando o modelo excludente e segregador. É sabido que no interior dos dispositivos em saúde mental persistem práticas distantes de noções de promoção de saúde e cidadania e que os cuidados com os usuários de substâncias psicoativas às vezes se torna complicado, quando não, excludente, devido à falta de informação e manejo, e ainda pelo preconceito erguido ao longo de décadas de criminalização de pessoas que usam algumas drogas (especialmente aquelas tornadas ilícitas) impregnado por uma cultura disciplinadora e segregadora. 15 As tentativas de suicídios, a omissão de cuidados e outras situações de risco de morte de adolescentes persistem em unidades de internação como analisadoras de um funcionamento, todo ele contrário à vida e à saúde. Segundo o Conectas, entidade de Direitos Humanos, de 2003 até 2009 morreram 32 adolescentes que cumpriam medida nas Unidades da Fundação CASA (Fonte: Dossiê Mapas do extermínio execuções extrajudiciais e mortes pela omissão do Estado de São Paulo, 2009 - disponível em: http://congressoemfoco.ig.com.br/upload/congresso/arquivo/DOSSIE_pena%20de%20morte%20final[1].pdf 12 medo, desamparo, impotência, e até depressão, sentida tanto pelos jovens confinados, quanto pelos profissionais que deles se ocupam. (Bittencourt, 2009; Vicentin, 2005). Terreno esse propício para provocar muito sofrimento psíquico, e, não raro, adoecimento em alguns, o que torna difícil, a partir daí, distinguir o que seria normalidade, e o que seria uma reação patológica. O cuidado nessa diferenciação é decisivo para se traçar estratégias e abordagens específicas. - depurar a ação em saúde, no âmbito socioeducativo, de qualquer viés criminológico ou da perspectiva diagnóstica de “disfunções” sociais ou pessoais como base para legitimar/justificar a sanção. Ou seja, no campo da saúde, é necessário trabalhar a favor de uma clínica da vulnerabilidade, como nos sugere Zaffaroni (1993), que permita desenvolver saberes que colaborem para a redução dos níveis de vulnerabilidade individual ao sistema penal. - construir e consolidar conceituações que pensam o jovem em conflito com a lei no paradigma do conflito e não no da patologia, pois os processos de subjetivação que os jovens forjam nessas situações precisam ser escutados e compreendidos tendo em vista os contextos que os produzem e não sob uma perspectiva patologizante. Mais ainda, o fato de a própria adolescência constituir-se como uma espécie de crise normativa, em que a estruturação da identidade do indivíduo está se definindo, revela que é preciso que o “mundo adulto” não precipite as experimentações adolescentes em formas patológicas. Ferrandiz (2002), por exemplo, propôs a noção de “espaço ferido”, que seria um espaço sociológico, geográfico, corpóreo, simbólico e existencial articulado na periferia socioeconômica e nas sombras da pobreza, da criminalização, do estigma e da morte para se referir às experiências juvenis na interface com a violência que não podem ser reduzidas a explicações medicalizadas. 13 2. É fundamental evitarmos e combatermos a judicialização do cuidado, em que a proteção pauta-se mais pelas necessidades de segregação do que pela atenção à saúde. - É preciso investir na formação permanente dos profissionais que trabalham com adolescentes em conflito com a lei, a fim de criar oportunidades para que eles re-signifiquem seus conceitos e suas práticas diárias. É responsabilidade dos gestores do sistema socioeducativo e da saúde oferecer através dos centros de formação, formação permanente em saúde mental, com ênfase nas peculiaridades culturais da população em questão. A qualificação da atenção no atendimento a crianças e jovens inseridos no sistema socioeducativo envolve também supervisão, produção de conhecimento e pesquisa, enquanto instrumentos de acompanhamento, construção e re-invenção da práxis profissional. (Bittencourt, 2009; Vicentin, 2005) - Nem todo uso de drogas é sinal de patologia e seu tratamento só deve ser recomendado por especialistas da área de saúde mental. Reduzir qualquer uso de substância psicoativa a uma doença responde mais aos aspectos de controle social e abre caminho para a medicalização e a internação indiscriminadas. É necessário relativizar a crença de que só há o modo de consumo problemático de drogas. É importante reconhecer diferentes modelos de consumo, definir qual dentre esses pode ser objeto de intervenção terapêutica e considerar a problemática do consumo de drogas a partir da história do próprio adolescente e da relação que ele estabelece com essa prática. A internação clínica tem uma indicação muito precisa e não pode ser concebida como um instrumento de cura que vai eliminar a dependência. Privilegiar a internação como o “padrão ouro” no tratamento das toxicomanias, parte da crença que considera a droga como o agente da dependência e a prática toxicomaníaca é reduzida às manifestações orgânicas da intoxicação. É importante trabalhar no sentido de construir uma demanda, um consentimento mínimo em relação ao tratamento, 14 pois não há tratamento a revelia do sujeito. Assim, não se trata de deslocar simplesmente da internação compulsória para o tratamento compulsório. É importante que o trabalho clínico consiga deslizar do imperativo da lei formal decretada pelo Estado, caso contrário ele é fadado ao fracasso. 16 (Bittencourt, 2009) - Pode haver, em determinadas situações, relação entre crime e sofrimento mental. Nesses casos, é possível interferir nos destinos deste sofrimento pela construção de circuitos de acolhida e intervenção terapêutica capazes de alterar a posição do sujeito. Assim, entendemos que sistema de justiça e de socioeducação e de saúde devem estar juntos na direção dos processos de socioeducação e de reabilitação psicossocial. A modificação das condições de produção de vulnerabilidade é uma operação em que vários atores devem estar envolvidos. O ato infracional, ao ser compreendido no conjunto de vínculos a que se refere, revela intersecções de situações pessoais, sociais e institucionais. Dentre esses, elementos relativos ao sofrimento mental podem jogar um papel singular na sua construção. Nesse caso, os sistemas de saúde podem ter algo a fazer na direção da construção da implicação subjetiva dos sujeitos. (Vicentin e Rosa, 2009). 3. Devemos trabalhar para assegurar a inclusão/ circulação do jovem em conflito com a lei nos serviços públicos de saúde, numa perspectiva de ruptura do distanciamento e do preconceito que fomentam a violência e a marginalização destes jovens. - É fundamental melhorar a atenção primária à saúde no sistema socioeducativo (especialmente nas unidades de internação); além de ampliar e qualificar a inclusão dos jovens no cumprimento de medida socioeducativa na rede de serviços de saúde. As equipes técnicas das unidades de internação devem buscar utilizar prioritariamente os serviços de saúde da rede, na 16 Todo esse item, em torno do uso de drogas, está referenciado no texto de Bittencourt. 15 perspectiva da incompletude institucional, isto é, da minimização do funcionamento da unidade de internação como “instituição total”, e em alinhamento com as políticas de saúde (rede/territorialização) vigentes no contexto em que estão inseridos. As dificuldades residem nos deslocamentos sistemáticos de jovens aos serviços, e, especialmente naqueles deslocamentos que são feitos com o uso de algemas. Entendemos que os procedimentos de recepção, acolhida e contratação dos serviços de saúde devem prevalecer sobre as de segurança. O risco da fuga deve e pode ser minimizado mediante outras condições de contratação prévia - com o serviço e com o adolescente - e deve ser assumido na medida em que lidamos com adolescentes numa perspectiva socioeducativa. Do mesmo modo, não é comum que a unidade de internação seja próxima da residência do jovem e, muitas vezes, ocorrem rupturas importantes por ocasião do encerramento ou mudança da medida e do encaminhamento para casa. Dado o caráter territorializado da organização da atenção à saúde, é fundamental a construção de projetos terapêuticos singulares e flexíveis e do cuidado com a continuidade dos processos. É importante conhecer a rede de serviços existentes e avançar no estabelecimento de parcerias visando um encaminhamento conseqüente e eficaz, e não apenas a transferência de problemas. Assim, é preciso identificar e articular os recursos necessários, visando garantir a inclusão do adolescente em serviços como UBS (Unidades Básicas de Saúde), CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e Caps-ad (Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas), CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). Uma das funções do profissional de saúde mental é trabalhar as suas próprias resistências, bem como a do adolescente e da família de modo a viabilizar a continuidade do tratamento, quando necessário, após o cumprimento de sua medida. (Bittencourt, 2009) 16 4. Reconhecer a singularidade das demandas em saúde da juventude; ampliar a participação e o poder contratual dos jovens e as responsabilidade e os compromissos do sistema de saúde em relação à juventude. - São necessárias políticas públicas de saúde voltadas para os jovens que respeitem suas particulares necessidades não somente na linguagem, mas também no conteúdo e na forma da atenção. A proposição de políticas públicas de saúde para jovens deve avançar no desenvolvimento de ferramentas teórico-conceituais que pensem a saúde na dimensão do desejo, da intensidade e da produção da vida dos sujeitos em seu contexto, e não exclusivamente na dimensão do cuidado da doença e da prevenção dos riscos. Tais necessidades, no caso dos adolescentes e dos jovens, ocorrem num momento do ciclo de vida particularmente “saudável” do ponto de vista de sua fragilidade biológica, e no qual grande parte dos problemas de saúde decorre dos modos de fazer “andar” a vida, dos hábitos e comportamentos dos jovens em sua busca de realização pessoal. Por sua intrínseca relação com os comportamentos juvenis, muitos deles considerados “comportamentos de risco”, os problemas identificados por meio dos indicadores de saúde têm gerado muitas vezes a interpretação social de um mau uso do potencial de vida por parte dos sujeitos jovens. Esta interpretação conduz, no âmbito da produção dos cuidados em saúde, à proposição de ações de caráter meramente preventivo na tentativa de “educar” tais sujeitos a um melhor uso de seu potencial biológico e de orientá-los na adoção de “comportamentos saudáveis”, que muitas vezes vêem revestidos de uma perspectiva disciplinadora ou moralizante. Nesse sentido, precisamos compreender os profissionais de saúde como agentes que podem contribuir significativamente com os jovens na construção da possibilidade de intensificar sua participação no mundo e de realizar os 17 seus projetos de vida; os serviços de saúde podem ampliar o seu acolhimento, compreendendo a saúde como espaço de produção da vida, tornando-se mais um canal de fortalecimento da vida dos jovens em suas comunidades, abrindo contatos com outras instituições e ampliando o diálogo também na direção das famílias, na tentativa de oferecer distintos suportes sociais à construção dos projetos de vida dos jovens. Para o acolhimento dos jovens nos serviços de saúde, impõe-se também a necessidade de reconhecimento dos jovens como sujeitos autônomos com os quais se pode e deve dialogar diretamente e não somente por meio da mediação dos pais ou responsáveis legais.17 (Instituto Cidadania, 2004, p. 40) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AREIAS, N. 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Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2005. 17 Todo esse item, em torno de alguns parâmetros éticos-políticos para os serviços de saúde no trabalho com os jovens, está referenciado no eixo temático sobre Saúde no Projeto Juventude, produzido pelo Instituto Cidadania. 18 FRASSETO, F.. A unidade experimental de saúde – mais um triste capítulo da história de paulista no tratamento de jovens infratores. São Paulo: Mimeo, 2008. GUEMUREMAN, S.; DAROQUI, A. La niñez ajusticiada. Buenos Aires: Del Puerto, 2001. JOIA, J. A interface psi-jurídica: estudo de internações de adolescentes por determinação judicial no Hospital Psiquiátrico Pinel. Relatório final de pesquisa de Iniciação Científica. São Paulo: Cepe/PUC, 2006. INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Juventude, São Paulo 2004, mimeo. LESCHER, A. D., GRAJCER, B., BEDOIAN, G et al. Crianças em situação de risco social: limites e necessidades da atuação do profissional de saúde. Equipe do Projeto Quixote (UNIFESP), 2004. LOURAU, R. 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