- Programa de Pós-Graduação em Educação
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DO PANTANAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LAYZE APARECIDA HERRERA CASSANHA HISTÓRIA DO ATENDIMENTO À INFÂNCIA: O SAMC EM CORUMBÁ-MS (1944- 1990) Corumbá-MS 2015 LAYZE APARECIDA HERRERA CASSANHA HISTÓRIA DO ATENDIMENTO À INFÂNCIA: O SAMC EM CORUMBÁ-MS (1944- 1990) Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação do Campus do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação da Profª. Drª. Edelir Salomão Garcia. Corumbá-MS 2015 Dedico aos meus pais, ao meu esposo Jailson e à memória da minha colega de Pós-Graduação Cristine Novaes Barbosa da Rocha (Cris), com todo o meu amor. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, por ter me sustentado nessa caminhada, dando-me força e saúde para prosseguir. À minha querida orientadora, por ter acreditado em mim. Obrigada por ter me conduzido na busca pelo saber, me ajudando a enxergar além do que estava diante dos meus olhos. Realmente, foi uma parceria que deu certo. Sou profundamente agradecida por ter compartilhado seu tempo e conhecimento comigo. Confesso que será difícil o momento quando o cordão umbilical for cortado – afinal, são anos de companheirismo e orientação. À Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, ao Programa de Pós Graduação em Educação (CPAN) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por ter me proporcionado a universidade gratuita e a possibilidade de realização de um sonho. Agradeço às professoras Magda C. Sarat Oliveira e Anamaria Santana da Silva, pela leitura cuidadosa e pelas valiosas contribuições no exame de qualificação. Agradeço a todos os meus queridos colegas de turma, especialmente à minha amiga de longa data, Vanessa Soares, que têm me acompanhado desde o cursinho pré-vestibular e compartilhado de momentos de alegrias e aflições da minha trajetória acadêmica. Aos meus professores da Pós-Graduação em Educação do CPAN, pelo aprendizado do convívio. Em especial dedico um abraço carinhoso às professoras Ana Lúcia Espíndola, Anamaria Santana da Silva, Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, Márcia Regina do Nascimento Sambugari e ao professor Fabiano Antonio dos Santos. Aos participantes deste estudo, por terem compartilhado comigo as suas histórias. RESUMO O estudo teve por objetivo analisar a história do atendimento à infância, institucionalizado no Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), criado em 1944. Buscou-se conhecer a organização, o processo de funcionamento da instituição e o tipo de atendimento prestado. Foram realizadas pesquisas documental e de campo. Na pesquisa documental, foram levantadas as informações referentes ao Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá a partir das Leis da Câmara Municipal de Corumbá, os Estatutos da instituição de 1947 e 1972, e Publicações em Diários Oficiais. A pesquisa de campo foi efetuada com nove participantes que, de alguma forma, vivenciaram a instituição. O instrumento para a coleta de dados foi a entrevista, com o propósito de investigar a vivência dos participantes, por meio dos relatos orais e captar a sua visão sobre o papel social da instituição. As entrevistas foram organizadas através de temas que trataram da organização e do funcionamento da instituição. A compreensão da função social da instituição Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC) deu-se a partir do olhar do sociólogo Erving Goffman, através da sua obra Manicômios, Prisões e Conventos (1974). Este estudo evidenciou que o SAMC seguiu o modelo institucional brasileiro vigente nos séculos XIX e XX, de higienia social. Como nas Colônias Agrícolas, construídas frequentemente no campo, afastadas dos centros urbanos, os menores institucionalizados, em sua maioria, eram recolhidos pelas autoridades competentes por apresentarem risco à ordem social. O atendimento estava atrelado à ideologia de caráter moralizador, autoritário, em defesa do bem-estar social. Seu papel educativo (correcional/repressivo) estava vinculado ao fortalecimento do aprendizado da moral e de ofícios para a inserção no mercado de trabalho. Palavras chave: 1. Instituição Total 2. Infância. 3. Educação/ Trabalho. ABSTRACT The study aimed at analyzing the history of childcare, institutionalized in the Childcare Assistance in Corumba (Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá SAMC), founded in 1944. The organization, the institution processes and the type of service provided were investigated. Documentary and field research were carried out. The documentary research included the information regarding the service assistance provided to minors of the municipality contained in the City Council laws, the Statutes of the Institution in 1947 and 1972, and publications in Official Gazettes. The field research was conducted with nine participants who had some kind of experience in the institution. The instrument for data collection was the interview, with the purpose of investigating the experience of the participants, through oral reports and capturing their vision about the social role of the institution. The interviews were arranged by themes that dealt with the organization and functioning of the institution. The understanding of the social function of SAMC was based on sociologist Erving Goffman‟s vision, published in Asylums, Prisons and Convents (1974). The study showed that SAMC followed the Brazilian institutional model prevailing in the 19th and 20th centuries, of social hygiene. As in the Agricultural Colonies, often built in the countryside, away from the urban centers, the institutionalized children were mainly taken to the institution by the competent authorities, as they presented some risk to the social order. The services provided were linked to the ideology of moralizing and authoritarian character, in defense of social welfare. Its educational role (corrective/repressive) was linked to the strengthening of moral and craft learning for future insertion in the labor market. Keywords: 1. Total Institution. 2. Childhood. 3. Education/Work. LISTA DE SIGLAS ACLAUD Associação de Pais e Amigos de Prevenção e Assistência aos Usuários de Drogas de Corumbá e Ladário COHAB Companhia Nacional de Habitação DNCr Departamento Nacional da Criança ECA Estatuto da Criança e do Adolescente ENERSUL Empresa Energética de Mato Grosso do Sul FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor ILA Instituto Luiz de Albuquerque LBA Legião Brasileira de Assistência MS Mato Grosso do Sul MT Mato Grosso ONU Organização das Nações Unidas PNBEM Política Nacional do Bem-Estar do Menor SAM Serviço de Assistência ao Menor SAMC Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá SANESUL Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial TCC Trabalho de Conclusão de Curso UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8 1.1 Caminhos da Pesquisa ............................................................................................................. 10 1.1.1 As lentes que guiam o olhar sobre o processo de institucionalização........................ 10 1.1.1.2 Pedaços de tecido que constituíram a colcha de retalhos: Os documentos............ 18 1.1.1.3 Os fios que entrelaçam os pedaços dos tecidos: Os participantes.......................... 21 2 HISTÓRIA DAS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO À CRIANÇA POBRE, ABANDONADA E DESVALIDA NO BRASIL .................................................................... 24 2.1 A Infância “abandonada” e “desvalida” no Brasil........................................................ 24 2.2 As legislações de atendimento à infância no Brasil .................................................... 30 3. O ATENDIMENTO À INFÂNCIA ABANDONADA E DELINQUENTE: O SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA AOS MENORES DE CORUMBÁ ............................................................. 45 3.1 O cenário da pesquisa: a cidade .................................................................................. 45 3.2 Serviço de Assistência aos menores de Corumbá (SAMC): a legalidade em pauta ............ 51 3.3 Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC): a voz dos entrevistados .......... 59 3.3.1 SAMC: a instituição............................................................................................................. 60 3.3.2 SAMC: o atendimento............................................................................................................. 62 3.3.3 SAMC: os responsáveis................................................................................................... ....... 64 3.3.4 SAMC: a manutenção.............................................................................................................. 65 3.3.5 SAMC:o processo educativo.................................................................................................... 67 3.3.6 SAMC: rotina.......................................................................................................................... 69 3.3.7 SAMC: os finais de semana.................................................................................................... 71 3.3.8 SAMC: família ...................................................................................................................... 73 3.3.9 SAMC: A sociedade Corumbaense........................................................................................ 75 3.3.10 SAMC: Sistema de Punição e Sistema de Privilégio............................................................. 76 3.3.11 Viver no SAMC...................................................................................................................... 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 82 REFERÊNCIAS.............................................................................................................................. 85 APÊNDICE...................................................................................................................................... 91 APÊNDICE A: Roteiro da entrevista........................................................................................... 92 ANEXOS.......................................................................................................................................... 93 ANEXO A: Estatuto do SAMC – 1947......................................................................................... 94 ANEXO B: Estatuto do SAMC – 1972 ........................................................................................ 98 8 1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa teve origem durante o processo de coleta de dados do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), realizado em 2011, cujo objetivo foi verificar a visão dos funcionários das Casas de Acolhimento1, em virtude da alteração da terminologia Abrigamento para Acolhimento Institucional, promulgada pela Lei Nº 12010, de 03 de agosto de 2009, chamada “Lei da Adoção”. Foram alterados 54 artigos da Lei N° 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispões sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instaurando, assim, novas orientações para o atendimento prestado às crianças e aos adolescentes institucionalizados por motivo de proteção social. Durante a pesquisa para o TCC, constatei que não havia, nas instituições pesquisadas, um acervo organizado de registros históricos ou documentações que remetessem à história do atendimento institucional ou à origem das Casas de acolhimento na cidade de Corumbá, estado de Mato Grosso do Sul (MS). No entanto, era comum ouvir entre os sujeitos da pesquisa que a cidade havia contado com uma instituição denominada como “Tromba dos Macacos” ou “SAMC”. Para compreender as mudanças estabelecidas pela legislação foi necessário, ainda de forma inicial, fazer um estudo do histórico das políticas de atendimento à infância e à adolescência no Brasil, suscitando, assim, o anseio em conhecer a história do atendimento institucional em Corumbá-MS, e principalmente recuperar a história do Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC), que havia atendido à infância desvalida e transviada2, durante os anos 1940 a 1990. Esse anseio tornou-se parte de um projeto de continuidade de estudos. Assim, na tentativa de reconhecer o campo, verificar a viabilidade do projeto e sua relevância, iniciei um levantamento sobre as produções que tratam da institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil. Através desse mapeamento, verifiquei que são poucos os estudos que tratam da institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil e tendem a abordar o processo de institucionalização (QUITÃNS, 2009; SILVA; MELLO, 2004; SILVA; AQUINO, 2005; ALBERTO, 2003; ROSSETTI, 2012; ROSA. E, 2012; ARPINI, 2003; MORÉ; 1 2 Casa de Acolhimento é a nomenclatura que substitui o termo Abrigo, definida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como “medida provisória e excepcional, utilizada como forma de transição para a colocação em uma família substituta não implicando privação da liberdade”. (SILVA, 2004, p.28). Trata-se de proteção especial a crianças em situação de risco pessoal e social, cujos direitos tenham sido desatendidos ou violados. (SILVA, 2004). O termo transviado, de acordo com Rizzini, Irene e Rizzini, Irma (2004, p. 91), é “empregado para designar os menores delinqüentes, durante todo o período da existência do SAM (1941-1964), mas raramente tratado na literatura especializada”. 9 SPERANCETTA, 2010; SALINA-BRANDÃO; WILLIAMS, 2009; BENELI, 2002; MORAES. N, 2004; SANTANA et al, 2005; RIZZINI et al, 2007). Encontrei, ainda, estudos que retratam as vivências em instituições, como Asilo, Internato, Casa-Lar ou Abrigo, a partir dos relatos das pessoas institucionalizadas (NEGRÃO, 2002; QUINTÃNS, 2009; VASCONCELLOS, 1997). Outras pesquisas evidenciaram a concepção de institucionalização da criança e do adolescente presente nos discursos da sociedade (ROSA, 2003; VASCONCELLOS, 1997; NEGRÃO, 2002). Algumas investigações abordaram o processo educativo nas instituições que atendem a crianças e adolescentes (MORAES, 2011; QUINTÃNS, 2009). Outras discorreram sobre a perspectiva histórica do atendimento institucional (RIZZINI; RIZZINI, 2004; MARCILIO, 2006; RIZZINI; PILOTTI, 2011). Esse breve mapeamento indicou que a maioria dos estudos ficou restrita às áreas da psicologia e da enfermagem. Outra questão que ficou evidente foi a pequena quantidade de pesquisas que recuperaram o processo histórico das instituições e do atendimento à criança e ao adolescente com a finalidade de evidenciar o papel social, o tipo de atendimento e o reflexo do processo de institucionalização. A pequena produção, associada à falta da organização da documentação sobre a história de uma instituição numa cidade do interior de Mato Grosso do Sul, leva à crença da validade de uma investigação com o propósito de compreender a dinâmica social, histórica, política e econômica de atendimento à criança e ao adolescente que vivenciaram o processo de marginalização. Algumas questões foram emergindo e, ao longo do processo de busca, conduziram a presente pesquisa, entre elas: Com que objetivo o SAMC foi criado? Qual a sua finalidade? Que tipo de atendimento era oferecido? Como estava estruturado o atendimento? Qual era a importância social do SAMC? Havia processo educativo? Em caso positivo, era organizado? Quem tinha direito ao processo educativo? Este estudo, por conseguinte, visa contribuir para a recuperação histórica do processo de institucionalização e da avaliação das políticas de atendimento à infância e à adolescência no Brasil. Tem por objetivo analisar a história do atendimento a meninos institucionalizados do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), evidenciando o processo de funcionamento da instituição, com a finalidade de conhecer seu papel social. 10 1.1 Caminhos da Pesquisa Nesta subseção, exponho o olhar sociológico que guiou as análises, representado pela obra Manicômios, Prisões e Conventos (1974), de Erving Goffman. Em seguida, trago o percurso percorrido para a obtenção das autorizações necessárias à pesquisa, assim como as providências para a localização dos documentos e dos sujeitos. 1.1.1 As lentes que guiam o olhar sobre o processo de institucionalização Erving Goffman é reconhecido como um dos sociólogos mais influentes da modernidade. Sua obra causa um significativo impacto nas ciências sociais no Brasil, pois está voltada para a análise das representações do eu, das interações sociais e do mundo social dos internos de instituições totais, além de evidenciar o estigma que o processo de institucionalização pode gerar nas pessoas que vivenciam algum tipo de institucionalização. Assim, para a compreensão do funcionamento da instituição e dos discursos dos sujeitos da pesquisa, mostrou-se pertinente compreender a instituição Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC), fundamentalmente, em sua obra Manicômios, Prisões e Conventos (1974), que abordou o universo dos hospitais psiquiátricos e desvelou os mecanismos de funcionamento e despersonalização do eu. Erving Goffman iniciou a obra citada com a teorização da institucionalização, representando-a como Instituições Totais, que seriam “Um lugar de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1974, p.11). Goffman (1974) explana a concepção de instituição total, que destaca seu caráter fechado e revela a ruptura da vida social das pessoas que integram esses espaços. De acordo com o mesmo autor, quando um indivíduo integra uma instituição total, passa a viver todo o seu cotidiano em função de uma autoridade, num mesmo espaço, e com um grupo de sujeitos que se encontra na mesmo situação, sem contato com o mundo exterior. No entanto, o autor faz diferenciação entre as instituições totais, caracterizando-as da seguinte maneira: (1) instituições de atendimento e prestação de cuidados a indivíduos por si só incapazes de autonomia (lares de idosos, crianças, deficientes, etc.); (2) instituições dimensionadas para o atendimento de pessoas que representam algum problema para a 11 comunidade (hospitais, asilos, etc.); (3) instituições para indivíduos perigosos para a comunidade, porque agressivos (prisões); (4) instituições educativas e de formação (quartéis, colégios internos); (5) instituições de recolhimento e religiosas (conventos). Tais categorizações são relevantes para este estudo, pois mostram as variedades de atendimentos prestados pela instituição, que variam conforme seus usuários. (GOFFMAN, 1974). Goffman (1974) aponta que, independentemente das categorizações das instituições totais, eles são representadas pela ruptura das barreiras que comumente separam três esferas da vida: a primeira, quando todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade; a segunda, quando cada fase da atividade do dia a dia do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto: e a terceira, quando as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, tendo em vista que uma atividade leva à seguinte, e toda atividade é imposta verticalmente, ou seja, de cima para baixo, por meio de um sistema de regras formais explícitas. As várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição. Goffman (1974) ressalta que a padronização no tratamento e a obrigatoriedade de participação de todos os institucionalizados garantem, em princípio, um melhor controle e vigilância sobre os internos, bem como o processo de obediência, pois a desobediência pode acarretar sanções. Segundo o autor, [...] a atividade principal não é a orientação ou inspeção periódica, [...] mas vigilância - fazer com que todos façam o que foi claramente indicado como exigido, sob condições em que a infração de uma pessoa tende a salientar-se diante da obediência visível e, constantemente. (GOFFMAN, 1974, p. 18). Tal vigilância ocorre por meio de uma equipe de supervisão, em menor quantidade que o grupo de internados. Nas relações estabelecidas entre os grupos que mandam e os que obedecem nas instituições totais, Goffman (1974, p.19) elucida: Cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis - a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas vezes vêem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. O autor expõe que, quando o internado chega à instituição, vem com uma “cultura aparente”, derivada do “mundo da família”, caracterizado por uma forma de vida e um conjunto de atividades aceitas somente até o momento da inserção na instituição. Considera o 12 autor que, para o internado, o sentido completo de estar “dentro” não existe independente do sentido específico de “sair” ou “ir para fora”. As instituições totais criam e mantêm certa tensão, certo embate, entre o mundo doméstico e o institucional, e usam essa tensão persistente como uma forma de controle de homens. O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo, que tornou possível, por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, humilhações e profanações do eu. O seu eu é, sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado (GOFFMAN, 1974, p. 24). Segundo o autor, a barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo aponta a primeira mutilação do eu. Geralmente, o processo de admissão também leva a outros processos de perdas e mortificação, como: obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instrução quanto a regras, designar um local para o internado. Quando o internado é admitido numa instituição total, é muito provável que seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais a mantém, o que provoca desfiguração pessoal. Roupas, pentes, agulha e linha, cosméticos, toalhas, sabão, aparelho de barba, recursos de banho, tudo isso pode ser tirado dele ou a ele negado. Seus objetos pessoais são guardados em armários inacessíveis, para serem devolvidos se e quando sair da instituição (GOFFMAN, 1974). Nas instituições totais existem outras formas de mortificação, a partir da admissão, quando ocorre uma espécie de exposição contaminadora, em que os direitos do internado são violados, a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invalidada e as encarnações do eu são profanadas. Esclarece o autor que: Existe, em primeiro lugar, a violação de reserva de informação quando ao eu. Na admissão, os fatos a respeito das posições sociais e do comportamento anterior do internado, principalmente os fatos desabonadores, são coligidos e registrados num dossier que fica à disposição da equipe diretora. (GOFFMAN, 1974, p. 31). No entanto, adverte que: [...] o tipo mais evidente de exposição contaminadora seja a de tipo diretamente físico - a sujeira e a mancha no corpo ou em outros objetos 13 intimamente identificados com o eu. Às vezes isso inclui uma ruptura das usuais disposições do ambiente para isolamento da fonte de contaminação [...] GOFFMAN (1974, p. 32). Ainda sobre a exposição contaminadora, o autor destaca que pode ocorrer de formas mais drásticas quando, em algumas ocasiões, o internado testemunha um ataque físico a uma pessoa de suas relações e, por nada ter feito, amplia o seu processo de mortificação. Outra forma de mortificação destacada por Goffman (1974) e mais difícil de ser compreendida no indivíduo é a perturbação na relação usual entre o ator individual e seus atos, por esses atos serem considerados menos diretos e atenderem a uma regra que não é explicita e não é de seu conhecimento. Na sociedade civil, quando uma pessoa precisa aceitar ordens que ultrajem sua concepção do eu, ela logo pode expressar em sua aparência, por meio de mau humor, de palavrões, resmungando, com ironia ou com sarcasmo, entre outras reações. No entanto, na instituição total, segundo Goffman (1974, p. 40), “[...] a obediência tende a estar associada a uma atitude manifesta que não está sujeita ao mesmo grau de pressão para obediência”, pois a equipe dirigente pode castigar diretamente os internados por atitudes de mau humor ou de insolência que, consequentemente, podem levar a outros castigos. Outro fator que o autor evidencia em seus estudos é o controle da vida do internado, expresso por regulamentos: Numa instituição total, no entanto, os menores segmentos da atividade de uma pessoa podem estar sujeitos a regulamentos e julgamentos da equipe diretora; a vida do internado é constantemente penetrada pela interação de sanção vinda de cima, sobretudo durante o período inicial de estada, antes de o internado aceitar os regulamentos sem pensar no assunto. Cada especificação tira do indivíduo uma oportunidade para equilibrar suas necessidades e seus objetivos de maneira pessoalmente eficiente, e coloca suas ações à mercê de sanções. Violentando-se a autonomia do ato. (GOFFMAN, 1974, p. 42). O controle social exercido pelas instituições totais através de um caráter extremamente organizado, regulamentado e limitador, faz com que o indivíduo necessite pedir autorização ou solicitar instrumentos para realizar atividades secundárias, que seria capaz de realizar sozinho, colocando-o no papel de submissão. (GOFFMAN, 1974). Associada a essas características ligadas ao controle, o autor destaca a conduta, que se assemelha a uma escola de boas maneiras, porém menos refinadas, e que constantemente estão em julgamento. Dessa maneira, o internado não pode fugir das regras e pressão dos julgamentos dos oficiais e de toda a rede que envolve a instituição. O autor aponta, ainda, dois 14 aspectos das regras ativamente impostas: “Em primeiro lugar, tais regras são muitas vezes ligadas a uma obrigação de executar a atividade regulada em uníssono com grupos de outros internados. É isso que às vezes se denomina arregimentação”. (GOFFMAN, 1974 p. 44) Em segundo lugar, essas regras difusas ocorrem num sistema de autoridade escalonada: qualquer pessoa da classe dirigente tem alguns direitos para impor disciplina a qualquer pessoa da classe de internados, o que aumenta nitidamente a possibilidade de sanção. (GOFFMAN, 1974, p. 45). A autoridade escalonada, juntamente com os regulamentos rigorosamente impostos, podem levar os internos, principalmente os novatos, a viverem em constante angústia, pois a desobediência a regras pode ser combatida com sansões, como maus-tratos físicos e emocionais, humilhações, remoção para espaços piores, entre outras (GOFFMAN, 1974). Esse procedimento pode, por sua vez, levar à mortificação do eu. Ao se referir ao processo de mortificação do eu do internado, Goffman (1974) destaca três maneiras que podem desencadeá-lo. A primeira relaciona-se à autonomia e à liberdade em suas ações nas instituições. A segunda, às justificativas para o ataque do eu, através de simples racionalizações que são criadas com o objetivo de controlar a vida diária de grande número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos. E a terceira decorre da relação entre o esquema simbólico de interação para a consideração do destino do eu e o esquema convencional, psicofisiológico, centralizado no conceito de tensão. Assim, o processo de mortificação do eu na instituição está associado aos sistemas de castigos e privilégios. Segundo Goffman (1974, p. 51-52), [...] os castigos e privilégios são modos de organização peculiares as instituições totais. [No entanto,] qualquer que seja a sua severidade, os castigos [...] não é muito aplicado a adultos, pois [...] o fato de não manter os padrões exigidos leva a consequências desvantajosas indiretas [...] E, deve-se acentuar os privilégios na instituição total não são favores ou valores, mas apenas a ausência de privações que comumente a pessoa não espera sofrer. As noções de castigos e privilégios não são retiradas do padrão da vida civil. Os internos criam mecanismos para a adaptação no meio institucional, buscando garantir, no seu cotidiano, o beneficiamento por esse sistema de privilégios. De acordo com Goffman (1974), o sistema de privilégios e os processos de mortificação constituem as condições a que o internado precisa se adaptar. Essas condições permitem outras maneiras individuais de adaptação. Além de qualquer esforço de ação subversiva coletiva, o internado emprega táticas de adaptação em vários momentos de sua carreira moral, e pode alternar entre diferentes táticas ao mesmo tempo. 15 São quatro os tipos de táticas de adaptação empregadas pelo internado, conforme analisa o autor. A primeira é a de “afastamento da situação”, que consiste no afastamento do interno das circunstâncias que se passam ao seu redor, exceto quando os acontecimentos cercam o seu corpo, mais evidente em hospitais para doentes mentais, que recebe o nome de “regressão”. A segunda identifica-se como a “tática de intransigência”, caracterizada pelo desafio intencional do internado na cooperação com a equipe dirigente, resultando em uma intransigência constante. A terceira tática padronizada no mundo da instituição é a “colonização”, quando o mínimo que a instituição apresenta ao internado do mundo externo representa-lhe como um todo, e esse mínimo se torna relativamente satisfatório. A experiência do mundo externo é utilizada como um ponto de referência para demonstrar o quanto a vida na instituição é desejável, o que pode causar certo conflito com os outros internos. Por fim, o quarto modo de adaptação ao ambiente da instituição total é o da “conversão”: o interno parece aceitar a organização e o funcionamento da instituição, assim como as ordens da equipe dirigente, e tenta representar o papel do interno perfeito, que segue as normas da instituição (GOFFMAN, 1974). Goffman (1974) informa, ainda, que a relação/ligação entre a equipe dirigente e os internados pode ocorrer de forma ilícita e “pessoal” ou solidária, quando existe um compromisso conjunto em relação à instituição, na execução da rotina da instituição e de certas atividades que o autor denomina como “cerimônias institucionais”. Estas por sua vez, se concretizam em festa anual, confecção de jornal ou revista, esportes internos, cerimônias religiosas e exibição institucional (teatro, música, entre outros), vistas como a possibilidade de o internado reaprender a viver em sociedade e ter a capacidade para realizar tal vivência. A equipe dirigente representa mais que um papel de supervisão; os internos apresentam um comportamento de acanhamento e respeito, chegando até a demonstrar um laço paternal. Diante das discussões apresentadas sobre o mundo do internado nas instituições totais, o processo de mortificação do eu, a justificativa de promover a disciplina e a ordem de um grande número de pessoas, assim como as estratégias de adaptação ao mundo institucional, verifica-se que o momento de saída dos internados é marcado pela dependência criada na organização da instituição e pela incerteza do que estará por vir, devido ao tempo de afastamento do universo externo, o que leva alguns ex-internos a pensarem em retornar para a instituição (GOFFMAN, 1974). As instituições totais normalmente apresentam a preocupação com o processo de reabilitação, ou seja, com o restabelecimento dos mecanismos autorreguladores do internado, 16 de forma que, quando o ex-interno estiver fora, conseguirá seguir os padrões estabelecidos pela instituição. Entretanto, o autor afirma que raramente se consegue essa mudança permanente. Após a saída da instituição o ex-interno procura se distanciar das lembranças dos sentimentos de injustiça, amargura e alienação vividos na instituição. O autor cita, ainda, a diferenciação no que diz respeito ao tipo de instituição total vivenciada e o momento de saída: o status social da instituição é determinante na relação que se estabelece entre a instituição total e o ex-internado após a sua saída. Quando o status é proativo é relativamente favorável, - tal como ocorre com os que se formam em internatos de elite, escola para formação de oficiais, conventos aristocráticos, etc. - podemos esperar reuniões oficiais de júbilo, com proclamações de “orgulho” pela escola. Quando o status proativo é desfavorável, - tal como ocorre com os que saem de prisões ou hospitais para doentes mentais - podemos empregar o termo “estigma”, e esperar que o exinternado faça um esforço para esconder seu passado e tente “disfarçar-se” (GOFFMAN, 1974, p. 68). Assim, se a instituição total for prestigiada no mundo externo, o ex-interno exibe orgulho pela sua permanência. Entretanto, quando não possui valor no mundo externo, ele tende a esconder o período em que lá esteve, para não sofrer retaliações ou estigma por essa vivência. Como se demonstrou, o estudo de Goffman contribui para o processo de compreensão do funcionamento da instituição em estudo, a partir dos conceitos centrais das instituições totais, como a padronização, o controle e a vigilância, a relação de tensão entre a equipe dirigente e o interno, e as formas de mortificação do eu. Mais ainda, as análises do autor proporcionam um entendimento sobre o sistema de castigos e privilégios, a constituição das cerimônias institucionais e o momento da saída do interno da instituição total. Quando esta pesquisa foi arquitetada, ao término da minha graduação em Pedagogia, não mensurei a dimensão do seu alcance ou as dificuldades que enfrentaria durante o percurso. Pretendo aqui mostrar que, além da vontade e das indagações do pesquisador, foi necessária uma rede de colaboração para a sua viabilização, pois sem ela não teria encontrado os documentos, as pessoas e, por consequência, as histórias que constam do estudo. Para orientar o processo investigativo, utilizei a Pesquisa Documental e a Pesquisa de Campo. O estudo documental tornou-se uma fonte determinante e incluiu uma análise cuidadosa e criteriosa, conforme apontado por Oliveira, M. (2007), pois esses documentos não haviam passado por nenhum tratamento e deveriam ser compreendidos dentro do processo social e histórico em que estavam inseridos. 17 May (2004 apud SILVA, ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p.10) assevera que os documentos não existem isoladamente; devem ser situados em uma estrutura teórica, para que o seu conteúdo seja entendido e contextualizado. Feita a seleção preliminar dos documentos, o pesquisador procede à análise dos dados, momento de reunir todas as partes, como os elementos da problemática, o quadro teórico, o contexto, os autores, os interesses, a confiabilidade, a natureza do texto e os conceitos chaves (CELLARD, 2008 apud SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p. 10-11). De acordo com os autores, o pesquisador pode fornecer uma interpretação coerente, tendo em conta a temática ou o questionamento inicial. A análise é desenvolvida através da discussão que os temas e os dados suscitam e inclui geralmente o corpus da pesquisa, as referências bibliográficas e o modelo teórico. Baseado naquilo que já obteve, o pesquisador volta a examinar o material, com o intuito de aumentar o seu conhecimento, descobrir novos ângulos e aprofundar a sua visão. Pode também explorar as ligações existentes entre os vários itens, tentando estabelecer relações e associações e passando então a combiná-los, separá-los ou reorganizá-los. Por último, o investigador procura ampliar o campo de informações, identificando os elementos emergentes que precisam ser mais aprofundados (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p.44). A pesquisa de campo buscou conhecer a percepção dos participantes que, de alguma forma, vivenciaram a instituição de atendimento ao Menor de Corumbá no período compreendido entre 1944 e 1990. De acordo com Gonsalves (2003, p. 67), a pesquisa de campo busca a informação diretamente com a população investigada. O pesquisador precisa ir ao espaço onde o fenômeno ocorre – ou ocorreu – e reunir as várias informações a serem documentadas. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista aberta, organizada através de eixos temáticos ligados diretamente ao funcionamento da instituição. Os temas se referiram à instituição, ao atendimento, aos responsáveis pelo SAMC, à manutenção, ao processo educativo, à rotina, aos finais de semana na Instituição, à família, à sociedade, à punição, ao privilégio, e à vida no SAMC. Para a apreensão dos dados, optei por ouvir a voz dos participantes da pesquisa por meio de relatos orais, ou seja, ofereci aos participantes a oportunidade de expressarem e avaliarem os acontecimentos em suas vidas ligadas ao SAMC. Essa escolha deu-se pela possibilidade de demonstrarem as formas de ver o mundo e compartilharem a realidade. Por meio de depoimentos, fiz uma análise das relações que o sujeito tem com seu grupo e analisei como foi elaborando as regras de permanência e de reestruturação, pois é no 18 processo de (re)lembrar, (re)fazer, (re)compor e (re)construir a história que se dá o entrelaçamento entre passado, presente e futuro no agora (PÉREZ, 2003). Cabe ao pesquisador, na condução da entrevista, ouvir, questionar, discutir e aprofundar nos aspectos de relevância e lacunares, pois é nas falas dos participantes que se revelam as incorporações das experiências vividas e, ao mesmo tempo, se conhece o reflexo do processo de institucionalização. Os relatos orais foram gravados em áudio-cassete. Com a gravação, o entrevistador presta mais atenção à fala do entrevistado e à interação com ele. Assim, consegui despender maior atenção à fala do entrevistado e pedir maiores esclarecimentos sobre as dúvidas que foram surgindo no momento da entrevista. Após as entrevistas, iniciei o processo de transcrição das fitas. De acordo com Kassar (2002 apud GARCIA, 2006), no momento da transcrição ocorre um contato mais lento com os diferentes dizeres; através do registro, volta-se ao discurso novamente, para entendê-lo e buscar os muitos sentidos que se propiciam. Ainda sobre a transcrição das fitas, Fontanella, Campos e Turato (2006) esclarecem que o processo de transcrição de áudio para texto facilita alguns aspectos da análise da entrevista, através de leitura e releituras, enquanto que as repetidas audições dos registros em áudio permitem uma recordação mais precisa do contexto afetivo, através do novo contato com as variações emocionais do tom de voz. Em seguida, efetuei um estudo pormenorizado das transcrições, buscando compreender o que cada participante relatou nos temas abordados, verificando em que aspectos essas respostas se igualavam e/ou divergiam da resposta do grupo. Elaborei um quadro para visualizar melhor o sentido que cada participante dava ao seu relato, bem como para compará-lo com os relatos dos demais participantes. Concluída essa etapa, procedi à análise e interpretação dos dados à luz do referencial teórico-metodológico. Para a compreensão daqueles que não vivenciaram a busca dos dados, seja ele documental, seja de pessoas aqui será apresentado, ainda que sucintamente, o percurso da pesquisa. 1.1.1.2 Pedaços de tecido que constituíram a colcha de retalhos: Os documentos Os dados coletados por meio das entrevistas, parte essencial deste trabalho, trouxeram informações fundamentais e satisfação com a sua realização. Não como mérito de desafios transpostos, mas como fonte imprescindível, pois fazer pesquisa exige muito mais do que 19 questionamentos. Requer do pesquisador persistência, ao ouvir respostas como „não‟, „volta mais tarde‟, „liga depois‟, assim como outras justificativas que recebi durante todo esse caminho. A luta contra o tempo foi um fator determinante na pesquisa, não apenas pelos prazos impostos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), mas também em decorrência do fato de que meus sujeitos da pesquisa poderiam se encontrar com idade avançada. Em 2013, assim que ingressei no Mestrado em Educação/CPAN/UFMS, minhas preocupações em relação à possibilidade de acesso aos documentos sobre o SAMC aumentaram, bem como com referência à identificação e ao encontro com as pessoas que vivenciaram a instituição. Nesse processo de incertezas, iniciei a busca por maiores informações e o levantamento dos documentos sobre a instituição e as pessoas que poderiam contribuir com o estudo. Atualmente, o espaço em que funcionava o SAMC é denominado “Fazenda Bom Jesus”, instituição de tratamento para usuário de drogas, sob a responsabilidade da Associação de Pais e Amigos de Prevenção e Assistência aos Usuários de Drogas de Corumbá e Ladário (ACLAUD). Localiza-se a 35 km da cidade, no local conhecido também como “Tromba dos Macacos”, na região do Maciço do Urucum. O primeiro contato realizado foi na ACLAUD de Corumbá, com sede no centro da cidade. Fui recebida por um dos coordenadores. Após ouvir o meu relato sobre os objetivos da pesquisa, disse que não poderia me ajudar, pois não sabia nada sobre a instituição. Mas forneceu-me o nome de uma pessoa que iria providenciar o número telefônico do pecuarista dono da fazenda vizinha do SAMC. Esse proprietário teria condições de me auxiliar na pesquisa. No entanto, o número informado não estava em funcionamento. Segui então para o Centro Cultural, onde estão os arquivos do acervo da história da cidade, chamado de Instituto Luiz de Albuquerque (ILA). Não logrei êxito. Ao comentar sobre a minha pesquisa com as bibliotecárias, sugeriram-me que procurasse as informações na prefeitura da cidade, em especial na Câmara Municipal de Corumbá. Fui à Câmara Municipal de Corumbá, para a coleta de dados. Pediram-me que voltasse posteriormente. No dia e horário marcados, retornei à Câmara. Para essa busca de informações, contei com o auxílio da funcionária responsável pelo setor de arquivos. Iniciei a investigação com a informação que eu já havia encontrado pela internet, ou seja, o ano da provável implantação do SAMC. Essa data vinculou ao mandato do então prefeito Arthur Affonso Marinho. A partir daí, dei início à pesquisa. 20 Em outra visita à Câmara, tive acesso aos arquivos que já havia sido escaneados, contendo algumas legislações desde 1947 até 2005. Entre essas leis, encontravam-se algumas que abordavam o SAMC. Com os documentos em mãos, finalmente, obtive o primeiro registro documental sobre o Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá, nos anos de 1953, e 1961 a 1969. Ainda nesse período, realizei a busca novamente na internet, a fim de obter maiores informações. Foi aí que encontrei o projeto de Lei 1270/1973, publicado no Diário Oficial do Congresso Nacional, reafirmado também em 1975, que reconheceu o Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá como Entidade de utilidade Pública. De posse das legislações, documentos oficiais e de materiais retirados dos sites oficiais referentes ao SAMC, iniciaram-se os estudos dos documentos. Após as primeiras análises, verifiquei que muitos retalhos estavam faltando, e que seria necessário continuar a busca de mais documentos que evidenciassem o desenho dessa colcha chamada de SAMC. Assim, aproximei-me de algumas pessoas que me indicassem novos caminhos. Dirigi-me ao cartório de Corumbá, para indagar se havia algum documento sobre a instituição. Disseram-me que havia documentos, mas era necessário especificar o interesse, pois não era possível levantar informações no arquivo sem dados precisos. Passei, então, a levantar quais fontes poderia encontrar aquele arquivo do cartório. Assim, cheguei ao Estatuto do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá, de 1972. Após a leitura do material, vi que tal Estatuto modificava o Estatuto anterior, aprovado na sessão de Assembleia Geral realizada em 10 de dezembro de 1947. Ao retornar ao Cartório para obter maiores informações sobre o Estatuto de 1947, solicitei uma nova busca sobre o Regimento e Estatuto da Instituição denominada como “Centro de Recuperação Maria Pedrossian” tendo em vista que o nome havia sido citado nas falas de alguns sujeitos da pesquisa, bem como apresentado na dissertação de Girelli (1994, p. 63-64): “[...] a região do sitio MS-CP-04 como próximo ao antigo SAMC [...] sendo atualmente chamado de Centro de Recuperação Maria Aparecida Pedrossian (CRMAP)”. Realizada a leitura do material, ainda permanecia a pergunta sobre o momento da extinção do SAMC. Por isso assim precisei procurar maiores informações, por meio dos documentos ou dos relatos dos participantes que vivenciaram a Instituição. 21 1.1.1.3 Os fios que entrelaçam os pedaços dos tecidos: Os participantes Os fios começaram a entrelaçar a colcha de retalhos na aula da disciplina: “Formação e Práticas Sócio-pedagógicas de Educadores Sociais”, quando soube, por uma colega de turma, que seus avôs e tios, anos atrás, haviam morado em uma fazenda vizinha ao SAMC. A surpresa não parou por aí. Disse-me outra colega de turma que tinha um parente que conheceu a instituição em estudo. Então, quis verificar rapidamente tais informações. Esse foi o início a construção dessa colcha, fio a fio, pedacinho por pedacinho: entre os papéis e as histórias vivenciadas pelos sujeitos da pesquisa, foram tomando forma. Como num jogo de encaixe, as peças foram se acomodando, permitindo pouco a pouco tecer a colcha do conhecimento, possibilitando a compreensão sobre o funcionamento e a organização do SAMC. Conforme combinado com uma de minhas colegas de turma, fui ao encontro do primeiro sujeito da entrevista. Coloquei-o a par da finalidade do estudo. Ele me disse que havia tido a vivência de um mês no SAMC, por motivo de prestação de serviço. Assim, iniciei a primeira entrevista. Após a conclusão da primeira entrevista, fui à procura da família que havia residido na fazenda ao lado da instituição. Algumas informações fornecidas foram de grande valia para a continuidade do estudo, pois foram definidos os nomes e a localização das pessoas que poderiam colaborar. De posse desses dados, entrei em contato com a filha de um dos integrantes do diretório do SAMC. A equipe diretória era composta por representantes e realizava a administração da instituição. Em contato por telefone, acertei o dia e o local para a entrevista. Durante a entrevista, a sua mãe se disponibilizou também a fazer parte da pesquisa. Assim, após a entrevista com a filha do ex-diretor, foi realizada a entrevista com a mãe, que também tinha sido parte da direção do SAMC. Ambas forneceram informações importantes e complementares. A quarta entrevista foi também intermediada pela filha da senhora que havia residido na fazenda ao lado do SAMC, que me forneceu o contato do senhor que viveu com seus pais na instituição. Eles eram responsáveis pelo funcionamento organizacional da instituição e me narraram dados preciosos à análise. Com a intenção de encontrar quem havia vivenciado como interno, voltei à pessoa que havia morado na fazenda ao lado da instituição para ver se ela havia se lembrado do nome de 22 algum. Como não conseguiu recordar, ela sugeriu que procurasse o filho da fundadora da ACLAUD. Tentei entrar em contato com esse senhor, mas soube que está vivendo em outro país. Fui informada de que um senhor de um determinado estabelecimento comercial poderia me dar informações mais precisas. Esse senhor sugeriu que falasse com o delegado de polícia dos anos 1970 da cidade de Corumbá que, por sua vez, me encaminhou a um repórter da cidade. O repórter, já citado anteriormente, me indicou o contato de uma das psicólogas do SAMC. A psicóloga confirmou que havia trabalhado no SAMC. Por isso pedi-lhe autorização para uma entrevista. Ela não somente concedeu, como também me orientou a conversar com a cozinheira e a outra psicóloga da instituição. A entrevista foi agendada para o dia seguinte, mas a outra psicóloga não demonstrou interesse. A cozinheira, após a explicação dos objetivos do estudo, prontamente aceitou participar. No decorrer da pesquisa, o apoio da família provou ser fundamental, por meio de palavras de incentivo e de encorajamento. Além desse tipo de apoio, recebi também com a colaboração do meu pai na constituição da pesquisa. Durante muito tempo ele foi fotógrafo na cidade e conhecia muitas pessoas, entre elas dois sujeitos da minha pesquisa: um profissional que encaminhava os „menores‟ ao SAMC e um interno, dois componentes dessa grande colcha de retalho. Obtive o número do telefone e o endereço do local de trabalho do primeiro sujeito. No contato inicial com esse participante, ele me entregou dois documentos aos quais ainda não havia tido acesso (Ata de fundação da cidade e Portaria que o designava como Orientador Social e de menores). O segundo sujeito pertencia a uma igreja, local em que foi feito o primeiro contato. Agendei a entrevista para o dia seguinte. Por fim, em meio a tantas buscas, a minha orientadora conseguiu o telefone da filha de um interno, que informou que ele gostaria de participar do estudo. Após contato, a entrevista foi agendada em sua casa, localizada na zona rural da cidade. Nesse movimento ir e vir, contei com nove participantes que vivenciaram o Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC): dois internos; dois filhos de funcionários; um membro do conselho consultivo; um assistente judicial de menores e três funcionários. Foram quatro mulheres e cinco homens. Para a preservação da identidade dos sujeitos, foram adotados nomes fictícios: João, Pedro, Maria, Madalena, Mateus, Tiago, Rute, Lucas, Ester. Vale enfatizar que todos os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e autorizaram sua participação, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme prevê o Código de Ética em pesquisa com seres humanos. 23 Nesse contexto, esta pesquisa foi organizada em quatro seções. Na primeira, constam: a introdução, onde apresento a origem do problema; um levantamento da produção científica referente à temática institucionalização de crianças e adolescentes; a apresentação do referencial teórico metodológico; os procedimentos metodológicos adotados; e o processo de coleta de dados. A segunda seção traz, em seu bojo, a história da política do atendimento à criança denominada “pobre”, “abandonada” e “desvalida”, desde o Brasil colônia até o final dos anos 1980, com a finalidade de compreender os reflexos dessa organização no atendimento às crianças e adolescentes que vivenciaram a instituição em estudo. Na seção três, apresento um panorama da dinâmica econômica, política e social de 1950, a divisão do estado de Mato Grosso do Sul, em 1977, a dinâmica econômica, política e social dos anos 1980, bem como o atendimento de crianças “pobres”, “abandonadas” e “delinquentes” prestado pelo Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá, por meio de documentos e de relatos orais realizados por pessoas que vivenciaram, de alguma forma, a instituição. Por fim, nas considerações finais, encerro a dissertação, retomando o objeto de estudo, as discussões desenvolvidas e o olhar do pesquisador sobre a problemática analisada. 24 2 HISTÓRIA DAS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO À CRIANÇA POBRE, ABANDONADA E DESVALIDA NO BRASIL A questão da infância e da adolescência institucionalizada tem sido, ao longo dos anos, foco de estudos e de pesquisas que descrevem, analisam e revelam as nuances da história introduzida pelas políticas de atendimento à infância e à adolescência no Brasil. Neste estudo, recupero a história do atendimento à criança e ao adolescente. Para a melhor compreensão dessa história, utilizo as fases que demonstram a evolução do atendimento assistencial da infância abandonada e desvalida brasileira, caracterizada por Marcílio (2006) como uma fase caritativa, que teve início na colônia e se estendeu até meados do século XIX; uma fase filantrópica, até os anos 1960 e, por último, uma fase do Estado do bem-estar do menor, que surgiu com a instauração do Estado protetor. Vale destacar que a implantação da Instituição Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC), na cidade de Corumbá/MT, em 1944, perpassou pelas fases indicadas acima. Este estudo levou à compreensão da constituição do atendimento assistencial da infância no Brasil, bem como da instituição em estudo. Acredito que a recuperação desse processo histórico e social do atendimento leva ao entendimento de como a visão dessa sociedade influenciou o encaminhamento do atendimento na instituição Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC). 2.1 A Infância “abandonada” e “desvalida” no Brasil No período colonial, compreendido entre os anos de 1500 e 1822, a assistência à infância no Brasil seguia as determinações de Portugal, aplicadas em meio à burocracia dos representantes da corte e da igreja católica. O cuidado das crianças indígenas estava sob a responsabilidade dos Jesuítas, que visavam a tirá-los do paganismo e a discipliná-los, embutindo normas, costumes cristãos e incorporando-os ao trabalho. Os padres da Companhia de Jesus ou Soldados de Cristo, como eram chamados, almejavam dois objetivos estratégicos: converter crianças indígenas em futuros súditos dóceis e obedientes à Colônia Portuguesa e, consequentemente, influenciar na conversão dos adultos (PILOTTI, 2011). Marcilio (2006) e Couto Melo (1998) mencionam que os padres da companhia de Jesus implantaram também os colégios-seminários de meninos índios; as Casas de 25 Muchachos, para atender aos “órphãos da terra”3 e as Confrarias do Menino Jesus, que logo começaram a receber pequenos órfãos (legítimos) enviados de Portugal. Esses e as crianças indígenas eram considerados puros e inocentes, diferentemente das crianças desvalidas e sem família. Mais tarde, por decorrência de pressões da elite colonial, essas instituições começaram a atender os filhos de luso-brasileiros. Entretanto, com o passar do tempo, as instituições se desvirtuaram do seu objetivo inicial, passando a ser responsáveis pela formação dos filhos dos proprietários e da elite da colônia. De acordo com Marcílio (2006), os jesuítas foram enviados ao Brasil com plenos poderes missionários e de civilização indígena e atendimento à orfandade4. Assim, não era atribuição da companhia o cuidado e nem a preocupação com a sorte das crianças abandonadas, das ilegítimas, das escravas e das mulheres que tinham filhos fora do casamento. Ainda para a autora, o atendimento à criança abandonada, no período, ficou a cargo das Câmaras Municipais, conforme as Ordenações do Reino, quando os pais ou parentes não assumiam a responsabilidade. As câmaras tinham que encontrar meios para criar as crianças sem família. No Brasil, segundo Pilotti (2011) e Marcilio (2006), a primeira Ordenação entrou em vigor em 1521, por ordem de D. Manuel. Foi chamada de Ordenação Manuelina. Foram criados impostos para custear os gastos com a assistência à infância abandonada, caracterizada, em sua maioria, por filhos nascido fora do casamento, que estavam fadados ao abandono. Mais tarde, essa ordenação foi renovada pela Ordenação Filipinas (1603), reconfirmando o compromisso com as crianças enjeitadas. Vale destacar que, assim como no Brasil, a assistência à criança exposta, em Portugal, ficava sob a responsabilidade das Câmaras Municipais, instituídas primeiramente pelas Ordenações Afonsinas, renovadas mais tarde pelas Ordenações Manuelinas (1521) e, finalmente, pelas Ordenações Filipinas. Ao fundar o hospital de Todos os Santos, em Lisboa, D. João II e D. Manuel estabeleceram nela a Casa de Expostos (MARCILIO, 2006). No período colonial, nem o Estado nem a Igreja assumiram de forma direta a assistência à criança abandonada. Apenas atuaram no controle legal e jurídico, com apoios 3 [...] “Órphãos da terra”, crianças oriundas das ligações entre os brancos ou negros e mulheres índias, que normalmente eram abandonadas por suas mães. Os índios acreditavam que o parentesco verdadeiro vinha pela parte dos pais; assim sendo estes não faziam parte do seu povo [...] (COUTO; MELO 1998, p. 20). 4 Faz-se necessário ressaltar a contribuição dos Jesuítas no Brasil nesse tipo de atendimento, pois essa era a única iniciativa de atendimento às crianças órfãs, naquele período. 26 financeiros esporádicos e com estímulos diversos, ficando ao encargo da sociedade civil, organizada ou não, a preocupação com a criança abandonada (MARCILIO, 2006). A ilegitimidade não era o único fator responsável pelo abandono de crianças; a pobreza também era uma grande motivadora. Assim, crianças eram deixadas em locais públicos, como nos átrios das igrejas e nas portas das casas. Em muitos casos, crianças chegavam a ser devorada por animais. A mortalidade infantil, à época, era alta, o que despertou a preocupação das autoridades e levou o vice-rei a propor duas medidas no ano de 1726: a esmola e o recolhimento dos expostos em asilos (PILOTTI, 2011). Para Marcilio (2006), a assistência e as políticas sociais em favor da infância abandonada, na fase caritativa, apresentaram-se em três formas básicas de atendimento, duas formais e uma informal. O primeiro atendimento formal era representado pelas câmaras municipais, as únicas entidades oficialmente responsáveis pela tarefa de prover a assistência aos pequenos enjeitados, conforme proposto na legislação de Portugal. As câmaras podiam delegar os serviços especiais de proteção da criança exposta a outras instituições, por meio de convênios, representados pelas confrarias das Santas Casas de Misericórdia, que estabeleceram o aval da coroa portuguesa para a criação das Rodas e Casas de Expostos, além de recolhimento em estabelecimentos para as meninas pobres e para as expostas. Tais instituições representaram a segunda forma de atendimento de proteção formal, por meios dos convênios firmados entre as Câmaras Municipais e as Santas Casas de Misericórdia. Por fim, a terceira forma de proteção ocorreu de maneira informal no atendimento à infância desvalida, considerada universal e mais abrangente, desde o século XVI até os nossos dias. Famílias ou pessoas recolhiam recém-nascidos deixados nas portas de suas casas, igrejas ou em outros locais, e, por diversas razões, tomavam a decisão de criá-los. Havia, ainda, casos de pessoas que iam às Rodas de Expostos e pediam para perfilhar ou adotar as crianças expostas (MARCILIO, 2006). De acordo com Nascimento (2005), nesse período as obras sociais estavam pautadas nas ideias caritativas e beneficentes, baseadas nos princípios religiosos de salvação de almas. Dessa maneira, a questão religiosa esteve por trás, muitas vezes, do ato de recolhimento dos bebês deixados nas casas, igrejas e locais públicos. O gesto era visto como um ato de caridade, piedade e compaixão, virtudes que levariam à futura salvação, ideia apregoada pela própria Igreja, que também exigia o batismo imediato das crianças abandonadas. Entretanto, não era uma atitude motivada somente por motivos religiosos. Havia também a questão econômica, já que uma criança abandonada poderia representar mão de obra gratuita, além da possibilidade de certas vantagens pois, em muitos casos, quem se propunha a cuidar dessas 27 crianças recebia a ajuda financeira da câmara municipal ou da Roda dos Expostos (MARCILIO, 2006). Vale destacar que o abandono de crianças foi uma prática que não se concretizou somente no Brasil. Segundo Marcilio (2006), a prática de abandono foi trazida de Portugal. A assistência caritativa, em Portugal, se verificou por meio de pequenos hospitais (albergarias, hospícios, gafarias, asilos, mercearias) 5, mantidos por doações, legados ou com apoio de instituições religiosas ou corporações de ofícios. No Brasil, a prática de abandonar crianças esteve vinculada ao nascimento de filhas de mães negras escravas ou/e de pais brancos colonizadores, tidas fora do casamento (ilegítimas). As relações sexuais entre senhores e escravas ou índias eram uma prática comum, mas consideradas imorais e ilegítimas (BERGER; GRACINO, 2005). A ilegitimidade não era apenas um problema de ordem moral, pois feria os valores morais cristãos tanto defendidos pela Igreja Católica. O nascimento de crianças negras e mulatas passou também a ser um problema de natureza econômica para os proprietários de terras e de escravos. Ainda segundo as autoras, o custeio com a criação de uma criança escrava era maior do que a importação de um escravo adulto. Em apenas um ano de trabalho, o escravo adulto já restituía o valor gasto com a sua compra. Por outro lado, para a criação de uma criança até os sete anos, idade em que era considerada capaz de trabalhar, os custos eram altos. Assim, tornava-se mais lucrativo para os senhores o abandono dos filhos de suas escravas. A Roda de Expostos foi a instituição que levou à compreensão dos princípios que regeram o atendimento à criança pobre, abandonada e desvalida no período colonial, modelo institucional vindo da Europa colonialista que melhor ilustra essa fase. No Brasil a primeira Roda foi criada na Bahia, em 1726, e posteriormente no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, entre outras cidades. As Rodas só foram extintas, segundo Berger e Gracino (2005), nos anos 1950. De acordo com Marcílio (2006), a fundação das Rodas de Expostos no Brasil foi justificada pela ideia de que a instituição funcionaria como meio para combater o aborto e o 5 As albergarias, criadas originalmente para assistência dos peregrinos que percorriam o Caminho de Santiago, em particular ao norte do Mondego, serviram também a viajantes, doentes e mendigos. Os hospícios foram estabelecimentos que primeiramente eram destinados ao assistencialismo de crianças abandonadas. As gafarias eram destinadas aos internamentos dos gafos ou leprosos. Eram também designadas por leprosarias e, mais tarde, lazarentos. Os asilos tiveram origem nos hospícios da Idade Média e estavam indissociavelmente ligados à rainha D. Maria I, que decretou, a 6 de julho de 1853, a criação do Conselho Geral de Beneficência para a criação de medidas relativas à mendicidade. As mercearias foram destinadas originalmente às pessoas da nobreza empobrecida e, em geral, funcionavam junto às capelas (HOSPITAL PORTUGUES, 200-?). 28 infanticídio, ações duramente criticadas pela Igreja Católica. Um aspecto que chama a atenção na implantação das Rodas foi que elas surgiram no Brasil na mesma época em que, na Europa, estavam sendo combatidas pelos higienistas e reformadores, pela alta mortalidade e pela suspeita de fomentar a prática de abandono de crianças, conforme destaca Irma Rizzini (1993 apud RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma, 2004). De acordo com Marcilio (2006) e Pilotti (2011), as Rodas de Expostos, no Brasil, eram destinadas à proteção dos bebês abandonados6. Até os três anos de idade, conhecido como período de “criação”, os cuidados ficavam quase em sua totalidade nas casas de amasde-leite. Depois, retornavam às casas dos expostos, onde podiam permanecer até os sete anos, período considerado de “educação”. Essas crianças eram conhecidas, segundo Arante (2011, p. 176), como: “expostos”, “enjeitados” “desertados da sorte ou da fortuna”, “infância desditosa” ou “infeliz”. Para Marcílio (2006), os expostos que eram deixados na Roda, ao chegar encontravam amas-de-leite em número suficiente para alimentá-los. As amas eram governadas por um regente, que morava na instituição. A criança recém-chegada era examinada. Abria-se um registro sobre a hora em que havia sido deixada, com dados referentes ao sexo, cor, sinais de fato, células ou bilhete, que a acompanhavam para a prestação de contas junto ao tesoureiro. Este, por sua vez, abria os assentos, com toda a miudeza, colando um número, um nome, e encaminhava a criança para o batismo na igreja de misericórdia. As crianças que chegavam doentes eram criadas na instituição, enquanto que as crianças que chegavam “em boas condições físicas” eram criadas pelas amas que não tinham moléstia. Elas recebiam o “feto” de cueiros e camisas e mais enxovais. Faleiros (2011) e Marcílio (2006) explicam que as rodas de expostos das Casas de Misericórdias sempre buscaram encaminhar meninos e meninas às casas de família, ou encaminhá-los para o meio profissional, preparando-os para assumirem as suas vidas, antes de atingirem a idade de sete anos. Após essa idade, a criança ficava como qualquer outro órfão, à mercê da determinação do Juiz, responsável pelo seu destino. Marcílio (2006) narra que, se aos sete anos de idade não era encontrada nenhuma família para acolher as meninas, elas eram encaminhadas aos Recolhimentos, onde permaneciam à espera de alguma família ou de casamento. Muitas meninas, contudo, não se casavam e nem eram recolocadas em alguma família, e nos Recolhimentos permaneciam por 6 No entanto, é importante constatar: “As mães que enfrentavam dificuldades para manter seus filhos viam muitas vezes a roda como única saída. As mães escravas, por sua vez, encontravam na roda uma possibilidade de livrar seus filhos da escravidão”, conforme enfatiza Civiletti (1991 apud TRINDADE 1999, s.p). 29 anos, responsáveis por algum ofício. Anteriormente à fundação dos Recolhimentos, as meninas não tinham para onde ir, visto que a Roda não dispunha de quartos para acomodação de pessoas. Elas ficavam nas ruas, à mercê da piedade alheia. Pilotti (2011) e Marcílio (2006) apontam a fundação, em 1700, na Bahia, do primeiro Recolhimento destinado ao amparo das meninas pobres e órfãs, com a intenção de proteger a honra das meninas, evitando a prostituição e a mendicância por estarem expostas à própria sorte nas ruas. A instituição lhes proporcionava proteção, instrução e treinamento funcional, além de oferecer dotes para que logo se casassem. Em relação ao cuidado dos meninos, foram criados, no século XVIII, seminários para receber meninos pobres, abandonados e sem família, que funcionavam como colégios internos e tinham como finalidade o amparo de crianças, o ensino das primeiras letras, a educação religiosa e a formação profissional. Alguns destes seminários foram: a Casa Pia e Colégio de Órfãos de São Joaquim, criado em Salvador no ano de 1825, o Seminário de Santo Antônio do Rio de Janeiro, que entre os anos de 1751 e 1850 acolheu 117 educandos. Ainda no Rio de Janeiro, houve a criação do Seminário de São Joaquim. Em 1824, foram criados, em São Paulo, dois seminários: o da Glória, internato para meninas e o de Santana, para meninos. (MARCÍLIO, 2006). Marcilio (2006) expõe ainda que os meninos, a partir dos oito anos, podiam ser encaminhados para a aprendizagem de um oficio na casa de algum mestre artesão, que usufruía dos serviços da criança, já as meninas, conforme citado anteriormente, eram ser enviadas para o Recolhimento ou prestavam serviços gratuitos em casas de família, nas fábricas ou oficinas, sempre a título de aprendizagem. Havia também a Companhia de Aprendizes Marinheiros, para onde geralmente eram encaminhados os meninos rebeldes. Ainda para a autora, nessa Companhia, o uso de métodos violentos para “corrigir” os menores “difíceis” era frequente, daí o pavor das crianças da Roda de serem encaminhadas a essa companhia. Poderiam ser admitidos na instituição órfãos desvalidos, expostos, meninos enviados pela polícia e menores pobres. Os pré-requisitos para entrar na instituição seguiam os critérios do Exército e de outras instituições da época: era preciso estar em condições físicas e psicológicas perfeitas. Durante o Período Imperial, não houve grandes mudanças no atendimento institucional. Entretanto, já se encontravam indícios do processo de escolarização, por meio da inserção das primeiras Letras, em 1829, na Bahia, como apontado por Marcílio (2006). Até as primeiras décadas do século XIX, as crianças, tanto da Roda quanto do Recolhimento, não recebiam nenhuma instrução sistemática. 30 Em relação à legislação do período, Silva, Gustavo (2010) e Rizzini, Irene (2011) afirmam que o primeiro Código Penal do Brasil foi regulamentado no ano de 1830. Anteriormente a esse Código, vigoravam as Ordenações do Reino de Portugal, fortemente severas e punitivas. Sua alteração foi necessária, pois crianças e jovens eram duramente punidos. Não havia muita diferenciação das punições dos adultos, a despeito do fato de que a menor idade constituísse um atenuante à pena. A juventude confundia-se com a infância, que terminava por volta dos sete anos de idade, sem transição para a idade adulta. Dessa maneira, o Código Criminal de 1830 pode ser considerado um grande avanço. Rizzini, Irene (2011) comenta que o Código Criminal de 1830 estabeleceu a responsabilidade penal para menores a partir de 14 anos e previa, no parágrafo primeiro do artigo 10: [...] se, se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos as Casas de Correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda a idade de dezasete annos. (RIZZINI, Irene, 2011, p.144) Rizzini, Irene (2011) e Silva, Gustavo (2010) explicitam que, nas primeiras décadas do período imperial no Brasil, a legislação relativa à infância referia-se, de um modo geral, à preocupação com o recolhimento de menores em estabelecimento que visassem à sua correção. Ainda não estavam em pauta as discussões sobre a prevalência da educação sobre a punição. Essa questão, segundo a autora, só viria à tona no final do século XIX. Depreende-se que tal preocupação com o recolhimento de crianças órfãs e expostas fundava-se no cristianismo de amparar os órfãos e abandonados. Essas ações eram de caráter assistencialista, lideradas pela iniciativa privada e também de cunho religioso, e contavam com subsídios do Estado. Eram realizadas por meio das Santas Casas de Misericórdia, através da Rodas de Expostos. 2.2 As legislações de atendimento à infância no Brasil Na segunda metade do Império, foi instituída uma importante legislação, referente à preocupação com a formação educacional das crianças, como consta na regulamentação do ensino primário e secundário no Município da Corte-Decreto nº. 630, de 17 de setembro de 1851 e 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854 e o Decreto que criou dez escolas públicas de instrução primária, do primeiro grau, no município da Corte – Decreto nº. 5.532, de 24 de janeiro de 1874. Tal preocupação se expressou nos primeiros anos do Império, quando a imprensa retratou a movimentação nas ruas do Rio de Janeiro, surgiram as primeiras medidas 31 de controle da educação, em relação às crianças pobres. Os artigos 57 a 64 do Decreto 1.331A de 1854 conferiram as primeiras iniciativas educacionais, de acordo com Rizzini, Irene (2011, p. 102): [...] quando em huma parochia, por sua pequena população, falta de recurso, ou qualquer outra circumstância, não se reunir numero suffuciente de alumnos que justifique a creação de escolas ou a sua continuação, e houver no lugar escola particular bem conceituada poderá o Inspetor Geral, ouvido o Delegado do districto, e com approvação do Governo, contractar com o professor dessa escola a admissão de alumnos pobre, mediante huma gratificação razoável (art. 57). O art. 58 menciona que, na falta de escola privada, o pároco ou seu coadjutor podem se responsabilizar pelo ensino e, por solicitação do inspetor geral ao governo, podem receber a gratificação expressa no artigo anterior. O art. 59 trata dos vencimentos dos professores na situação de ausência de alunos na escola pública. O art. 60 regula que o expediente interno das escolas deve ocorrer por conta dos cofres públicos, bem como o oferecimento de livros e outros objetos necessários ao ensino. Consta, ainda, que: Aos meninos indigentes se fornecerá igualmente vestuário decente e simples, quando seus Paes, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar, justificando previamente sua indigência perante o Inspetor Geral, por intermédio dos Delegados dos respectivos distritos. (BRASIL, Decreto n. 1.331 A, de 17 de fevereiro de 1854, p. 57). E acrescenta: [...] Se em qualquer dos distritos vagarem menores de 12 anos em tal estado de pobreza que, além da falta de roupa decente para frequentarem as escolas, vivam em mendicidade, o Governo os fará recolher a uma das casas de asilo que devem ser criadas para este fim com um Regulamento especial. (art. 62) [...] Os meninos que estiverem nas circunstâncias dos Artigos antecedentes, depois de receberem a instrução de primeiro grau, serão enviados para as companhias de aprendizes dos arsenais, ou de Imperiais Marinheiros, ou para as oficinas públicas ou particulares, mediante um contrato, neste ultimo caso, com os respectivos proprietários, e sempre debaixo da fiscalização do Juiz dos Órfãos. Aqueles, porém, que se distinguirem mostrando capacidade para estudos superiores, dar-se-á o destino que parecer mais apropriado à sua inteligência. (art. 63) (BRASIL, Decreto n. 1.331 A, de 17 de fevereiro de 1854, p. 57) Apesar das primeiras iniciativas na organização do sistema educacional público, Rizzini, Irene (2011) esclarece que as políticas de atendimento às crianças eram políticas discriminatórias de acordo com sua origem social, conforme estabelecia o art. 69 do Decreto 32 n. 1.331 A de 1854: “Não serão admitidos a matrícula, nem poderão frequentar as escolas: os meninos que padecerem moléstias contagiosas; os que não tiverem sido vaccinados, e os escravos”. (RIZZINI, Irene, 2011, p.102). Então, apesar da iniciativa da “escola para todos”, ela estava realmente voltada à educação das crianças da elite, dos filhos dos pequenos comerciantes e daqueles que tivessem posse para manter os seus filhos na escola. No entanto, àqueles denominados de “indigentes” ou em total estado de pobreza, era oferecida, pelo governo, educação limitada ao ensino primário em 1º grau. Após essa fase de ensino, eles seriam encaminhados aos serviços militares ou às oficinas de aprendizagem de ofício. Nos anos 1850 em diante, começaram a tomar corpo as regulamentações relativas aos escravos e seus filhos, iniciadas em decorrência das graves pandemias que chegavam ao Brasil com o tráfico negreiro, devastando as cidades da região do litoral e produzindo um grande número de órfãos e abandonados. Daí a criação da Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que extinguiu o tráfico de escravos, dando início à preocupação da sociedade escravocrata em perder a mão de obra doméstica. Em 1855, de acordo com Marcílio (2006), ocorreu a primeira mudança na política social de assistência, com o primeiro Programa Nacional de Política Pública voltado à criança desvalida. O Programa incluía o ensino elementar e o ensino profissionalizante nas instituições de atendimento a meninos e meninas desvalidas, ofertando oficinas para o aprendizado de ofícios e o aprendizado das primeiras letras. Foi a primeira etapa da construção de uma assistência filantrópico-científica no Brasil. O ano de 1871 marcou a segunda fase da institucionalização e da criação da assistência filantrópica higienista no país, com a instituição da Lei do Ventre Livre, Lei n° 2.040 de 28 de setembro de 1871, gerando uma profunda repercussão nas atitudes diante da criança exposta e nas políticas voltadas à proteção e à preparação para o mundo do trabalho (MARCÍLIO, 2006). Essa lei, de acordo com Rizzini, Irene (2011, p. 103) determinava as “[...] condições livres os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamentos daqueles filhos menores e sobre a libertação annual de escravos”. Ainda segundo a lei, os senhores dos escravos e os governadores que realizavam a criação dos filhos menores eram proibidos de separar os filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe, prevendo formas de recolhimento para aqueles que fossem abandonados. Todavia, tal liberdade permanecia sob a vontade do Senhor. 33 Azevedo (2008) destaca que a Lei do Ventre Livre foi a primeira lei brasileira que trouxe o dispositivo legal protetivo expresso às crianças. A mãe escrava tinha o direito de criar seu filho até os sete anos. Ao completar sete anos, surgiam duas alternativas: na primeira, o Estado brasileiro indenizava o dono da escrava com o valor de alguns mil réis e a criança era retirada da mãe e colocada num orfanato, ou seja, a criança deixava de ser escrava para ser abandonada; na segunda, continuava na companhia da mãe e trabalhava como escrava até os 21 anos, quando então era alforriada. Para Moraes (2011), com a Lei do Ventre Livre, houve a preocupação da elite agrária em ficar sem trabalhadores, o que reforçou a ideia de preparar as crianças pobres, abandonadas e sem família para os serviços braçais, trabalhos que antes eram desempenhados apenas por escravos. Marcílio (2006) revela que, nesse momento, começou a ser pensada a criação de grandes estabelecimentos totais de internamento e de separação de crianças e adolescentes sem família da sociedade, que passaram a se multiplicar após a abolição da escravatura e a instalação da República, em 1889. Em 1890, ano posterior à Proclamação da República, foi instituído o Código Penal Brasileiro, também conhecido como Código Zanardelli, que inclui a premência de se criarem instituições voltadas à prevenção e à correção. Esse Código foi o primeiro da República a estabelecer a inimputabilidade absoluta apenas para os menores de nove anos. Para os infratores entre nove e 14 anos, desde que houvessem agido com discernimento, indicava-se o recolhimento a estabelecimento disciplinar industrial, até quando o juiz julgasse necessário, não podendo exceder o limite de 17 anos de idade. De acordo com Azevedo (2008), apesar de a Lei propor o tratamento diferenciado, as "casas de correção" e as unidades de "estabelecimento disciplinar industrial" jamais ocorreram. Moraes (2011) considera que, nas primeiras décadas da Primeira República, médicos e juristas tiveram uma influência muito forte na sociedade brasileira. Unidos às questões econômicas e políticas do país, a medicina social e a justiça foram responsáveis por realizar as transformações no homem, no espaço urbano, nas instituições sociais, além da forma de olhar para as crianças pobres, abandonadas e sem família. No final do século XIX e início do século XX, ocorreram profundas mudanças no caráter da Roda de Expostos, preponderantemente por decorrência de dois sistemas da Roda: em primeiro lugar, o sistema de amas mercenárias, acusado de ser a principal causa de mortalidade infantil dos expostos, foi sendo abolido; em segundo lugar, adotou-se nas Casas de Expostos o sistema de escritórios de admissão aberta, responsável por permitir que se 34 conhecessem os pais ou pelo menos a mãe. Então, a partir dessas mudanças, embora ainda existissem, as Rodas perderam a sua razão de ser (MARCILIO, 2006), pois acabaram perdendo a sua característica principal, a proteção da honra privada, tornando-se cada vez mais difícil esconder a ilegitimidade. Porém, o fator decisivo para a formulação de uma nova instituição de atendimento à criança desvalida foi a ocorrência das altas taxas de mortalidade infantil nas Casas dos expostos. Então, em meados do século XIX, os médicos especialistas responsáveis pelo cuidado da infância, promoveram várias discussões sobre o cuidado dos expostos, com o intuito de melhoria nas condições de higiene das instituições que realizavam esse atendimento. (PILOTTI, 2011). Sobre as situações verificadas nas instituições de atendimento à criança desvalida, Marcilio (2006) descreve um cotidiano de ócio, ambientes mal ventilados, com pouca limpeza, malcheirosos. As mortes por sarnas, diarreias, verminoses, epidemias, entre outros motivos, eram tão frequentes nesses estabelecimentos que as crianças que conseguiam sobreviver, ao chegar à idade adulta eram anêmicas, raquíticas, franzinas, de frágil constituição e saúde, com reduzida disposição e capacidade para o aprendizado e para o trabalho. Nascimento (2005) também admite a importância do discurso dos médicos higienistas7, dando ênfase ao zelo pelos corpos para proteção, garantia da saúde e a denúncia das condições precárias das instituições asilares, acabando por exercer uma forte pressão sobre o Estado, para que se estabelecessem políticas públicas de atendimento aos desvalidos, pois “as condições insalubres ameaçariam a população frente às inúmeras epidemias” (NASCIMENTO, 2005, p.28-29). Moraes (2011) avalia que a filantropia foi um meio utilizado para a preservação da ordem social, pois funcionou como instrumento de controle aos pobres, vistos pela sociedade como prováveis criminosos. A concepção de criança pobre, futuro da nação, estava encoberta por ideias com duplos significados: [...] crianças nascidas e criadas em meio à pobreza, concebida como lócus do vício e da desordem, tornar-se-iam adultos reprodutores do vício e da desordem, e a idéia de que se algo fosse feito por estas crianças, por exemplo, se elas fossem retiradas do meio social pobre, e, portanto, deletério, e assistidas adequadamente elas poderiam vir a desenvolver virtudes, como a virtude do trabalho, transformando-se em cidadãos sadios e trabalhadores. A visão sobre a criança pobre, abandonada e sem-família que 7 “Médicos que lutavam pela melhoria da raça humana, no combate à alta mortalidade e por uma infância sadia, base para o progresso das nações” (MARCÍLIO, 2006, p. 196). 35 predominou nessa época foi um tanto quanto ambivalente, pois se de um lado a criança representava a esperança em um futuro melhor, desde que fosse retirada de seu meio social, tido como enfermiço, e devidamente reeducada, de outro lado ela representava uma perigosa ameaça, que até então nunca havia sido descrita com tamanha clareza; a criança passava a ser concebida não como naturalmente inocente, mas como portadora de elementos de perversão e vício. A criança proveniente das camadas mais pobres da população era, portanto, ao mesmo tempo um ser em perigo e perigoso, e intervir sobre ela tornava-se, aos olhos dos governantes, questão de ordem pública. (MORAES, 2011, p.53). Dessa maneira, ouviu-se, por meio do movimento higienista, o discurso preconceituoso e discriminatório, culpabilizando as pessoas das camadas pobres pela sua condição social, vendo-os como prováveis criminosos. Rizzini, Irene (2011) analisa que, nas duas primeiras décadas do século XX, a tônica dos discursos pareceu, em primeiro momento, em defesa incondicional da criança, “gênese da sociedade”, como dito pelo senador Lopes Trovão em 1902. No entanto, uma leitura cuidadosa demonstra a oscilação constante entre a defesa da criança e a defesa da sociedade contra essa criança que se tornava uma ameaça social à ordem pública. O círculo vicioso da exclusão das crianças sem família fechava-se, assim, com a fragilidade de sua saúde e a precariedade da formação socioeducativa que as instituições lhes proporcionavam. As reformas introduzidas na arquitetura especializada dos grandes estabelecimentos de abrigo, em fins do século XIX e no início do século XX, resolveram apenas parte dos problemas. Instituíram-se a disciplina, os horários, os regulamentos dos grandes internatos, os exercícios físicos, os jogos. Buscava-se transmitir aos expostos não somente um ensino elementar mais sistemático e abrangente e um ensino profissional mais diversificado, como também valores caros à filantropia científico-burguesa, ou seja, o gosto e o hábito pelo trabalho, o amor à ordem e a crença no progresso (MARCILIO, 2006). Nessa situação, a defesa em favor da sociedade prevaleceu expressa por meio da criação e expansão de instituições de atendimento a crianças e adolescentes sem família, tendo que viver sob rígido controle, recebendo uma formação socieducativa, por meio do trabalho, a fim de evitar que se tornassem um problema social e entrave para o progresso do país. O discurso, que a princípio poderia ser em favor da criança e do adolescente, mostrou-se um discurso de ordem social. A intervenção do Estado se fez mais atuante nas questões da infância nos primeiros anos da República, impregnada de conceitos de ordem, moral, repressiva e de preparação para o trabalho, como enfatizam Pilotti (2011); Arantes (2011); Marcílio (2006); Rizzini, Irene (2011); e Moraes (2011). 36 Para Pilotti (2011), a constituição da cultura institucional, como a prática de recolher crianças em asilos enraizados nas formas de “assistência ao menor”, perdura até os dias de hoje. Entretanto, ao longo dos anos, a tônica foi sendo modificada. Assim, as instituições adotaram novas denominações, substituindo o termo asilo, que representava práticas arcaicas, para escolas de preservação, premonitórias, industriais ou de reforma, educandários, institutos, entre outras. Os asilos de órfãos, abandonados ou desviantes, isto é, daqueles que estivessem “soltos”, fugindo ao controle da família e ameaçando a “ordem pública”, tornaram-se uma prática frequente no século XIX, quando a ideia de propiciar a educação industrial aos meninos ganhou força. Também ganhou força a educação doméstica para as meninas, cuja finalidade era prepará-las para serem úteis à sociedade. Tais “[...] instituições eram, em sua maioria, mantidas por ordens religiosas, auxiliadas por donativos e, às vezes, pelos poderes públicos. Esta tendência manteve-se no século XX [...]” (PILOTTI, 2011, p. 20). As instituições filantrópicas solicitavam a participação do Estado na assistência e proteção à infância abandonada e transgressora, por meio da ajuda financeira, mas deveriam deixar a ação maior por parte da instituição particular (MARCILIO, 2006). As instituições para recolhimento dos indesejados das cidades foram criadas poucos anos após a implantação da República e atendiam às políticas repressivas. De acordo com Rizzini, Irma (2011), em 1893, o governo instaurou a primeira medida para isolar os “vadios, vagabundos e capoeiras”2, promulgando o Decreto n. 145, de 11 de julho de 1893, que autorizou o governo a implantar uma colônia correcional “para correção pelo trabalho” daqueles isolados que, independentemente de sexo e idade, poderiam ser recolhidos: ausentes do poder paterno; sem meios para subsistência; e os que vagavam pela cidade na ociosidade. Marcílio (2006) descreve que as “colônias agrícolas para ingênuos”3 ou “colônias orfanológicas”4, como eram denominadas, mantinham uma forma de funcionamento, de espaço e atendimento pedagógico, submetendo os menores ao regime total de controle, de internato. Ainda conforme a autora, as colônias seguiam o modelo adotado na França e de Red Hill, na Inglaterra (chamadas de colônias de Mettray). 2 No início da República, a repressão era sistemática, e muitos negros que praticavam a capoeira foram presos sob a acusação de vadiagem e prática de “capoeiragem”. A repressão a essa manifestação cultural foi tão intensa que os termos “capoeira”, “capoeirista” ou “capoeiragem” eram sinônimos de vagabundagem ou vadiagem, em outras palavras, sinônimos de crime. Assim, as palavras vadio, vagabundos e capoeiras, representavam termos pejorativos. A criminalização da capoeira foi assegurada no primeiro Código Penal da República, de 1890 (MARÍLIA, 2012, p. 198). 3 Instituição que realizava o atendimento de ingênuos, que significavam a criança livre de mãe escrava, nascida a partir de 1871, “Lei do Ventre Livre”. 4 Instituição que realizava o atendimento de meninos e meninas órfãos e abandonados. 37 De acordo com Rizzini, Irma (2011), as colônias agrícolas eram instituições para o Recolhimento dos indesejados das cidades, criadas logo após a implantação da República, atendendo a uma política de correção/ repressão aos menores. A autora (2011, p. 227-228) aponta a disposição do governo em criar colônias correcionais para a resolução dos problemas de vadiagem no Distrito Federal. Em 1902, foi reforçada pela aprovação da Lei n° 947, de 29 de dezembro de 1902, que realizou a “reformulação do serviço policial no Distrito Federal”, que empregou a categoria dos “menores viciosos” que, julgados, como tais, deveriam ser internados nas colônias correcionais. Essa categoria poderia ser ampliada pelos menores inculpados criminalmente, que tivessem agido “sem discernimento”, “órfãos” e “encontrados sós na via pública”. Quando internado, o menor só poderia permanecer até que completasse 17 anos, cabendo somente o juizado de Órfãos o poder de sustar a internação. Marcílio (2011) ressalta que as medidas sobre a criação das colônias agrícolas afastadas da sociedade mostram conotação arbitrária em relação ao atendimento aos menores, como pode ser visto em relação ao instituto João Pinheiro, em Belo Horizonte, em 1909: O tratamento educativo do menino desvalido só é realizado com sucesso em internato, e este deve ser instalado no campo, porque: a) o regime higiênico é aí muito melhor assegurado do que na cidade;b) a solicitação da rua, do meio deletério em que crescia ao abandonado é muito menos intensa; c) a ação educativa do trabalho agrícola é reconhecido como a mais eficaz; d) o sistema de internato em pequenos grupos de regime familiar (cottage system), preconizado pelos educadores modernos, só é viável no campo.(MARCÍLIO, 2011, p. 212) Percebe-se que as instituições foram construídas atendendo às normas das instituições filantrópica e orientações ideológicas da sociedade. Assim, o isolamento dos menores nas instituições e as edificações construídas afastadas dos centros urbanos evidenciaram a prática da limpeza social. A autora (op cit) destaca, entre esses projetos, a fundação de algumas instituições, como o Instituto G. Bittencourt, para meninas, criado no ano de 1890, em Belém; a Casa São José, Asilo de Meninos Desvalido, implantado no Rio de Janeiro, bem como a Escola Premonitória 15 de Novembro, criada no final do século XIX, escola modelo do governo, destinado a menores abandonados. Assim, quando os menores eram encontrados nas ruas, eram logo recolhidos pelo juiz de órfãos ou pela polícia. Não sendo reclamados pelos seus responsáveis após 15 dias, eram encaminhados para essas instituições. As instituições, segundo Faleiros (2011, p. 43), incluíam em seu discurso um posicionamento educativo e de encaminhamento à integração do menor ao trabalho e 38 instituíam o objetivo de “dar educação física e moral aos menores abandonados e recolhidos por ordem das autoridades competentes”, estratégias adotadas também por asilos e orfanatos, dando ênfase ao trabalho doméstico e aos ofícios. Os menores considerados viciosos, vagabundos e ébrios habituais eram tratados segundo as estratégias de repressão e levados pela polícia às prisões comuns. O trabalho ou a repressão eram as estratégias adotadas pelo Estado. Em 1901, no estado do Rio de Janeiro, foi estabelecida a colônia penal agrícola, Fazenda de Santa Mônica, a cargo da Sociedade Nacional de Agricultura. No ano seguinte, em São Paulo, foi fundada a Colônia premonitória e disciplinar, para a recuperação do menor abandonado e infrator. Assim, o problema do menor constituía um problema filantrópico correcional e corretivo, considerado assunto de polícia. Ao Estado caberiam apenas a fiscalização e o auxílio, enquanto que a atuação maior ficava ao encargo de particulares ou associações responsáveis. em grande parte, pela internação dos menores. De acordo com Marcílio (2011, p.212), a colônia Agrícola Orfanológica e Industrial Isabel do Recife, aberta em 1873, representou o primeiro ensaio de escola agrícola e industrial no país, com a finalidade de “produzir cidadãos ordeiros e moralizados através do trabalho”. A instituição oferecia a instrução primária, artística e agrícola, além de cursos de ofícios de pedreiro, carapina, marceneiro, serrador e cozinheiro. A expansão dessas colônias, segundo a autora, ocorreu por todo o país: em Fortaleza, a Colônia Agrícola Orfanológica Cristina (1881); na Bahia, a Colônia Orfanológica Isabel (1886); no Rio de Janeiro, a Colônia Correcional de Dois Rios (1902); no Pará, a Colônia Orfanológica, Artística, Industrial e Agrícola Providência (1899); a Colônia Lauro Sodré (1921), entre outras. Paralelamente às experiências de educação e reabilitação em colônias agrícolas, surgiram projetos de grandes institutos de internamento para a recuperação de jovens infratores e para a proteção de menores desamparados. No entanto, segundo Marcilio (2011), o que se evidenciou nesses projetos foi o caráter educativo voltado ao trabalho. A partir desses estudos, depreendi que a política de atendimento aos menores “indesejados” pela sociedade, à época, estava balizada na institucionalização. Essa, por sua vez, pautava-se na retirada da sociedade aqueles que destituíssem a “ordem social, moral e econômica”. Dessa forma, os estabelecimentos deveriam propor ações que divulgassem normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde coletiva e individual, bem como fortalecer o aprendizado da moral e de ofícios para a inserção no mercado de trabalho, ou seja, para serem pessoas de “utilidade social”, e não mais um “problema social”. 39 Londonõ (1996) narra que, no final do século XIX, os juristas brasileiros descobriram o “menor” nas crianças e adolescentes pobres das cidades que, por não estarem sob o poder de seus pais e tutores, eram chamados de menores abandonados. Já o que estavam nas ruas dos grandes centros das cidades, mercados, praças e eram presos ao praticarem delitos, passaram a ser chamados de menores criminosos. Ainda segundo o autor, para os Juristas Cândido Nogueira da Motta e Evaristo de Moraes os menores eram, principalmente, abandonados pelo Estado, que os ignorava e os tratava como simples caso de polícia. O menor não era filho “de famílias”, sujeito à autoridade do seus pais, ou mesmo um órfão devidamente tutelado, mas o menor material e moralmente abandonado. De acordo com Londonõ (1996), o termo „menor‟ aparecia frequentemente no vocabulário jurídico brasileiro. Antes dessa época, o uso do termo não era tão comum e seu significado era restrito. Apenas a partir de 1920 o termo passou a referir e indicar a criança em relação à situação de abandono e marginalizada e delinquente, além de definir a sua situação civil e jurídica e os seus direitos. Assim, o final do século XIX e início do século XX foram marcados por intensas discussões e transformações no cenário político social e econômico. O problema da infância e da adolescência que vivenciava os processos de exclusão também passou a fazer parte desses embates, pois tais pessoas eram vistas como uma ameaça à ordem, aos bons costumes da sociedade brasileira e um entrave para o desenvolvimento do país. O período de 1923 a 1927 foi profícuo em termos de leis sobre a assistência e a proteção à infância desvalida e delinquente. Em 1923, foi instituído o Decreto n° 16.273, que tratou de reorganizar a Justiça do Distrito Federal, colocando em cena a figura do Juiz de Menores. José Cândido de Albuquerque Mello Mattos foi o primeiro Juiz de Menores do Brasil. O Decreto N° 17.943-A, de 12 outubro de 1927, denominado de Código Mello Mattos, também conhecido como Código de Menores, apresentou 231 artigos. É considerado o primeiro dispositivo legal a dar um tratamento mais sistemático e humanizador à criança e ao adolescente, embora elaborado exclusivamente para o controle da infância abandonada e delinquentes de ambos os sexos, menores de 18 anos (AZEVEDO, 2008). O Código de Menores, segundo Berger e Gracino (2005), tratou da assistência e da proteção ao menor. É considerado o primeiro conjunto de leis estabelecido no Brasil para crianças e adolescentes, passando para o poder do Estado a tutela legal dos menores abandonados até os 18 anos. 40 O Estado teve que assumir legalmente a tutela dessa população, ou seja, cuidar tanto das questões de higiene quanto da delinquência da infância, estabelecendo vigilância pública aos menores, sejam eles classificados como “abandonados” ou “delinquentes”, conforme destacam Berger e Gracino (2005). De acordo com Nascimento (2005), essa regulamentação trouxe a concepção de controle incorporado ao aparato jurídico-assistencial, com a finalidade de educação (preparação para o trabalho) e correção dos denominados menores (doutrina). Oliveira, W (2007) explica que esse Código estava fundamentado na ideia da incompetência das famílias, culpando-as pelo não provimento da subsistência e do desenvolvimento de seus filhos. Propunha a medida de institucionalização dos menores órfãos ou filhos de “pais irresponsáveis”, tendo como objetivo educá-los e discipliná-los sob o ponto de vista físico, moral e civil. Novamente percebe-se que as crianças pobres e sua família são culpadas pela pobreza. Aquele era um período de grande turbulência na economia mundial, que culminou, em 1929, com a queda da bolsa de Nova Iorque. Tal convulsão também foi sentida no Brasil, pois os Estados Unidos eram o principal comprador do café brasileiro. Houve a diminuição da importação e a queda dos preços do café (MUZZETI, 1997). A queda da bolsa de Nova Iorque afetou diretamente a economia brasileira, totalmente dependente do modelo agrário-exportador. Gerou desemprego, pressões no mundo do trabalho, sucessão de revoltadas de jovens tenentes do Exército iniciadas ao longo nos anos 1920 e intensas nesse período, crescente insatisfação dos setores oligárquicos pelo afastamento das decisões políticas, surgimento do proletariado urbano e consecutivo recurso ao estado de sitio durante a República Velha. Tais fatores contribuíram para a Revolução de 1930 (PAIXÃO, 2011). Paixão (2011) relata que a figura principal nesse processo foi Getúlio Dornelles Vargas, ex-ministro da Fazenda do último governo da República Velha e também expresidente da Província do Rio Grande do Sul. Seu desempenho na revolução de 1930 e o novo direcionamento político e econômico resultaram em seu governo, que durou de 1930 a 1945, período que corresponde ao Estado Novo. Ferreira (2015) aponta que o Estado Novo foi um período caracterizado por uma política intervencionista e centralizadora, principalmente quando se trata da questão do Menor. Nesse período buscou-se a articulação do governo com o setor privado, que passou a ter um caráter “semioficial”, recebendo verbas e orientações do Estado, privilegiando o trabalho e o bem-estar coletivo. 41 Ainda para a autora, a educação nesse período estava aliada ao trabalho. Assim, o governo de Getúlio Vargas criou a Casa do Pequeno Jornaleiro, a Casa do Pequeno Lavrador e a Casa do Pequeno Trabalhador. Todas essas instituições visavam ao apoio assistencial e, principalmente, ao caráter socioeducativo de menores de baixa renda ou em situação de risco. A infância, no Estado Novo, era uma questão de defesa nacional, sendo visto por alguns membros do governo como uma ligação com o comunismo e o desamparo social das crianças. O Juiz de Menores, Sabóia Lima, defendia que cuidar da criança fazia parte da “defesa da pátria e da sociedade”, uma vez que “a criança é um dos elementos mais disputados pelo comunismo”. Era necessário assistir a criança necessitada, por meio de métodos científicos, como um instrumento na defesa da nação e da dignidade do país. (RIZZINI, Irma, 2011, p. 248). Para Ferreira (2015), no período de 1940 a 1943, o governo de Getúlio Vargas instaurou uma série de ações voltadas à proteção de crianças pobres e suas famílias, como: A Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Social do Comércio (SENAC) e a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos e o Decreto-Lei nº 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, que determinava o modelo de proteção à infância através da criação do Departamento Nacional da Criança (DNCr). Rizzini, Irma (2011) e Ferreira (2015) expõem que o DNCr estava vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, responsável pela coordenação da nova política menorista estabelecida pelo Estado Novo. A prioridade era “manter a estabilidade da família” e o “papel da mãe é privilegiado: pois ela é responsável pelos cuidados físicos e pela educação moral da criança”. Mas, com o passar dos anos, o DNCr sofreu pela falta de recursos, o que levou a associar-se à LBA, que possuía receita própria, advinda de contribuições compulsórias dos trabalhadores sindicalizados, além de estar vinculada à autoridade da primeira dama. Assim, o DNCr conseguiu financiar os programas de atendimento à Infância, principalmente os postos de puericultura. Ferreira (2015) cita que os postos de puericultura eram responsáveis pelo atendimento de todas as gestantes, mães e crianças, que recebiam orientações de saúde. Ao tratar das crianças desvalidas, o tom dado pelo decreto Lei nº 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, foi alterado. A nomenclatura criança foi modificada pelo termo menor, evidenciando uma diferenciação entre aqueles que seriam atendidos e os que deveriam ser reprimidos. Segundo a autora, era visível a inadequação do DNCr para a assistência de menores desamparados, tratando da prevenção e não do controle do desvalido. 42 A assistência pública aos menores, nesse período, foi tratada pela esfera jurídica, através dos Juízes de Menores e pela atuação isolada de alguns estabelecimentos para menores. Porém, em 1941, “[...] o governo federal criou um órgão que deveria centralizar a assistência ao menor, inicialmente no Distrito Federal” (RIZZINI, Irma, 2011, p. 262). Tal órgão foi instituído pelo Decreto presidencial Lei nº 3.799, de 5 de novembro de 1941, que transformou o Instituto Sete de Setembro em Serviço de Assistência a Menores (SAM), diretamente subordinado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores e articulado com o Juízo de Menores do Distrito Federal (BRASIL, 1941). O Serviço de Assistência ao Menor (SAM) orientou as políticas públicas para a infância, investigando os menores com a finalidade de internação e ajustamento social. Realizava o procedimento de exame médico-psicopedagógico, abrigava e distribuía os menores para estabelecimentos como o Instituto Sete de Setembro, agora denominado como SAM. “Incorpora a Escola Quinze de Novembro, a Escola João Luís Alves, o Patronato Agrícola Arthur Bernardes, o Patronato Agrícola Wenceslau Braz, e também controla e supervisiona as instituições particulares [...]” (FALEIROS, 2011, p. 54). Nesse mesmo período, em 1944, foi criado, no então estado de Mato Grosso, o Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), na cidade de Corumbá. Era destinado ao atendimento de menores “abandonados” e “delinquentes” que estavam perambulando pelas ruas. Eles eram encaminhados à instituição, que se assemelhava ao tipo de atendimento prestado pelo SAM, pois realizava a internação dos menores, com a finalidade de ajustamento social. Por meio do Juizado de Menores, o SAM passou a receber crianças e adolescentes das classes populares que, pela falta de recurso financeiro ou pelo risco de virem a realizar atos de delinquência, eram encaminhados pelas autoridades judiciárias para a medida de internação. Havia também os casos em que os pais pediam a internação dos seus filhos para que recebessem a devida educação escolar, pois acreditava-se que a “boa educação” era oferecida pelo Colégio Interno. Tal noção era reafirmada pelo Estado, que incutia nas classes populares a ideia de que a criança bem-educada deveria estar afastada de suas famílias (COUTO; MELO 1998). Segundo Perez e Passone (2010), em 1953 foi criado o Ministério da Saúde, que deu continuidade à assistência à infância, no modelo do Departamento Nacional da Criança. O cenário de atendimento à infância passou a se caracterizar pela prática política que aliava ações assistencialistas, higienistas e repressivas, com a iniciação de ações com caráter mais participativo e comunitário. 43 Nesse momento, também se verificou um novo enfoque dado aos “Menores”, principalmente pelas “agências multilaterais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)”, e com a discussão do 9º Congresso Pan-americano da Criança, realizado em Caracas, em 1948, sobre os direitos do “menor”, aprofundado em 1959 (PEREZ; PASSONE, 2010). O ano de 1959 representou um dos momentos simbólicos para o avanço das conquistas da infância. Nesse ano, as Organizações das Nações Unidas (ONU) proclamaram a Declaração Universal dos Direitos da Criança, reafirmando a importância de se garantir a universalidade, a objetividade e a igualdade na consideração de questões relativas aos direitos da criança. A criança passou a ser considerada como sujeito de Direito, o que representa uma profunda revolução. A Declaração ressalta a importância de se intensificarem esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participação (MARCILIO, 1998). O hiato entre as documentações que tratavam do direito universal da criança e a realidade do atendimento que estava acorrendo no Brasil levou ao questionamento do atendimento oferecido pelo SAM e mesmo do Código de Menores de 1927. Vale enfatizar que, nesse período, o SAM já estava sofrendo críticas, pelo número alto de crianças e adolescentes encaminhados para esse serviço, que crescia assustadoramente. As instituições não estavam dando conta da demanda. Eram comuns as fugas e as revoltas dos internos, causadas pelas condições péssimas de moradias, castigos corporais, prostituição e desvio de verbas. Passaram a ser chamadas popularmente de “Escola do Crime, Fábrica de Criminosos, Sucursal do Inferno, Fábrica de Monstros Morais e SAM - Sem Amor ao Menor” conforme destaca Rizzini, Irene (1995 apud COUTO; MELO 2011, p. 32). Segundo Oliveira, W. (2004) e Marcílio (2006), no contexto do Golpe Militar, em 1964, foi implementado um sistema público „ modernizado‟ e moralizador, comprometendose com a sociedade a realizar uma „limpeza‟ no setor público, em especial devido às denúncias do mau funcionamento no SAM. Assim, foi promulgada a Lei 4.513, de 1° de dezembro de 1964, que criou a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), extinguindo o SAM. O ponto de partida dessa política foi a implementação de uma instituição normativa em nível central, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que tinha como objetivo elaborar e implementar Políticas Públicas de Bem-Estar dos menores e redistribuir recursos e apoio financeiro às instituições comissionadas, em nível estadual, representadas pelas Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs). 44 Earp (1998) menciona que a FUNABEM propôs internação nos Centros de Reeducação, criando e desenvolvendo toda uma linguagem e um sistema de seleção de internos coerentes com a postura funcionalista e científica. Os menores classificados em „carentes‟ ou que estivessem no início do processo de marginalização ficavam em casas de permanências abertas. Os menores que tivessem algum comprometimento eram encaminhados a internatos semiabertos. Já os menores que apresentassem maior grau de periculosidade deveriam ir para estabelecimentos fechados, „estabelecimento educacional que permite saída de menores somente com autorização especial do Juiz de Menores‟. Perez e Passone (2010) elucidam que, nos anos 1970, novamente entraram em debate os “direitos dos menores”. Retornaram ao centro das discussões devido à influência dos Documentos Internacionais, que propunham que a magistratura favorecesse a promoção da família e da comunidade no cuidado da criança e do adolescente e a salvaguarda dos seus direitos. Consideravam crianças e adolescentes como sujeitos de direito, o que reiterava os princípios enunciados pela Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. A proposta de reformulação da legislação que tratava da questão da Infância explicitou a divergência entre duas concepções. A primeira, representada pelos legisladores e juristas que mantinham a concepção de “menor como objeto do direito penal”, e a segunda representada pelos setores do executivo, que defendiam o “menor enquanto sujeito de direitos”. Porém, não houve mudanças legais sobre a situação da Infância. Perez; Passone (2010 apud RIZZINI, 1995, p. 146). De acordo com Perez e Passone (2010), a proposta de uma Declaração dos Direitos da Criança não encontrou repercussão política na férrea doutrina militar. O resultado disso foi a aprovação do Código de Menores, que seguia os moldes do antigo Código de Menores da primeira República, concretizado na doutrina de situação irregular do menor. Dessa maneira, verificou-se a ausência da participação política, e a autonomia da burocracia estatal se fortaleceu pela atuação da tecnocracia e dos militares dentro do estado. Os anos 1980 foram marcados pelo início da abertura democrática. No período também se ampliaram as discussões sobre os direitos humanos e sociais, entre elas sobre a questão da infância e adolescência no Brasil. O Código do Menor de 1979, como exposto por Vieira (2011), foi duramente criticado e questionado pelo seu caráter estigmatizante e parcial. Em 1985, com o fim da ditadura militar, assumiu um governo civil, que por sua vez foi fruto de um processo de mobilização, que culminou no movimento das „Diretas Já‟, de base comunitária e com participação de amplos segmentos da sociedade, entre eles os intelectuais e profissionais da área social. Eles, por sua vez, buscaram uma articulação cada 45 vez mais forte entre os diferentes movimentos sociais e a participação da sociedade civil na construção das novas instituições. Esses movimentos repercutiram internacionalmente e abriram caminho para a defesa da Doutrina Jurídica de Proteção Integral (OLIVEIRA, 2004). Segundo Silva e Mello (2004), a edição das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas por Regras de BeijingPequim, em 1985, acabaram por estabelecer exigências procedimentais, com o intuito de diminuir a arbitrariedade na aplicação de medidas aos infratores juvenis. As discussões no âmbito nacional culminaram na criação da Comissão Nacional Criança e Constituinte, em 1986. Vale ressaltar que, meses antes da promulgação da Carta Constitucional, segundo Rizzini, Irene (2000), vários grupos se organizaram na luta em defesa das mais variadas causas de cunho social, de acordo com o interesse de cada grupo. Esse cenário fez com que muitas lutas da sociedade passassem a ser incorporadas no texto da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Dessa forma, ela passou ser reconhecida como "Constituição Cidadã", pois incluiu, entre outros direitos sociais, a proteção integral às crianças e aos adolescentes. Também introduziu, em relação ao aparato legal brasileiro, o conceito de seguridade social, agrupando as políticas de assistência, previdência social e saúde, representando um marco histórico na garantia dos direitos básicos da sociedade brasileira (BERGER; GRACINO, 2005). De acordo com Couto e Melo (1998), o modelo FUNABEM acabou por perpetuar os mesmos erros do antigo estabelecimento, inchando a instituição de crianças, além de desvios de verba, denúncias de corrupção, prostituição e maus tratos. Foi assim que, com o processo de redemocratização do país, com os movimentos sociais que solicitavam mudanças e, especificamente, com as pressões de várias organizações não governamentais, como a Pastoral do Menor, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e de estudiosos da questão da Infância, a Constituição de 1988 estabeleceu, no artigo de 227, a proposta da elaboração de uma nova legislação para a Infância. Em meio às mudanças, a FUNABEM foi extinta em 12 de abril de 1990, com a criação do ministério da Ação Social. Em atenção à proposição da constituinte, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069 de 13 de julho de 1990, foi aprovado, trazendo a garantia de direitos às crianças e aos adolescentes, entendendo-os como sujeitos de direitos. Após a recuperação da história do Atendimento à Infância e Adolescência no Brasil, verifica-se que, ao longo dos anos, houve várias mudanças na política de atendimento, desde uma perspectiva de assistência caritativa e filantrópica, passando por uma perspectiva correcional e repressiva, até finalmente chegar à perspectiva atual de garantia de Direitos, cuja 46 finalidade é oferecer a proteção integral às crianças e adolescentes, conforme previsto na Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990. Na próxima seção, discorro sobre a dinâmica econômica, política e social da cidade de Corumbá de 1940 a 1980, período marcado por várias mudanças na área social, política, e econômica. No setor econômico, ocorreram momentos de auge, como também de crise, mudanças sentidas pela população corumbaense e na instituição do atendimento institucional realizado pelo Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC). Disserto, também, sobre o aporte teórico utilizado na análise dos dados e, para finalizar, sobre os dados referentes ao funcionamento do SAMC na cidade. 45 3. O ATENDIMENTO À INFÂNCIA ABANDONADA E DELINQUENTE: O SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA AOS MENORES DE CORUMBÁ O objetivo desta seção é apresentar a dinâmica social, econômica e política da cidade de Corumbá-MT, no período de 1940 até a divisão do estado5, assim como a dinâmica social, econômica e política da cidade nos anos 1980. Esse período inclui o momento em que a instituição em estudo esteve em atividade. Dessa forma, se fez necessário compreender o contexto da criação, da organização e do funcionamento do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), com a finalidade de analisar o papel social da instituição. 3.1 O cenário da pesquisa: a cidade Apresento, nos subitens abaixo, a contextualização da cidade de Corumbá, organizados da seguinte maneira; no primeiro momento, a dinâmica econômica, política e social de Corumbá de 1940; depois, a divisão do estado de Mato Grosso e a criação do estado de Mato Grosso do Sul e, por último, a dinâmica econômica, política e social de Corumbá nos anos 1980. Corumbá é um município da região Centro-Oeste do Brasil, situado às margens do Rio Paraguai, a meio caminho dos centros urbanos de maior destaque em âmbito regional Cáceres e Cuiabá, em Mato Grosso (MT), e Campo Grande, em Mato Grosso do Sul (MS) - é cidade fronteiriça da Bolívia. Esses dois fatores (sua localização privilegiada na bacia do Alto Paraguai e a proximidade com a Bolívia) marcaram o desenvolvimento da cidade desde os seus primórdios, no século XVIII, conforme destacado por Ito (1992). A autora relata que, através do crescimento da navegação no Rio Paraguai, Corumbá projetou-se, no final do século XIX, como a principal cidade dentro da hierarquia urbana, pois, conforme narra Corrêa (1997 apud MORAES, 2011, p.08), diversas companhias de navegação nacional e internacional se instalaram em Corumbá após a guerra do Brasil com o Paraguai. Os criadores de gado que haviam se retirado da região no período da guerra retornaram com suas famílias e desenvolveram a pecuária na região. O comércio local portuário, favorecido pelo fato de Corumbá se constituir na principal porta de entrada e saída 5 Lei Complementar n. 31, de 11 de outubro de 1977, que criou o estado de Mato Grosso do Sul pelo desmembramento de área do estado de Mato Grosso. 46 de mercadorias de Mato Grosso, tornou-se o principal centro distribuidor de mercadorias de Mato Grosso para o resto do mundo. Brito e Arruda (2007) expõem algumas das atividades comercias e industriais instaladas na cidade de Corumbá no final dos anos 1940 e início dos anos 1950: [...] condições favoráveis, como a seca prolongada no Pantanal, facilitando o criatório bovino, e os incentivos gerados para a atividade comercial e industrial, no pós-guerra imediato, ainda como conseqüência da política federal de „Marcha para o Oeste‟ (CORRÊA, 1994), fizeram com que a cidade de Corumbá se desenvolvesse nas áreas do comércio e indústria. Esse surto industrial, combinando capitais locais e de outras procedências, trouxe ao município investimentos que geraram a abertura de indústrias siderúrgicas (SOBRAMIL, grupo Chamma), fábrica de cimento (Cia. de Cimento Portland Corumbá), moinho de trigo (Moinho Matogrossense), caieiras (Caieiras A. Giordano, Freire e São João), curtumes (Curtume Corumbá, Kassar & Cia.), marmoraria (Santa Blanca), cervejaria e fábrica de refrigerantes (Cervejaria Corumbaense), entre outras (BRASIL, 1966b). Corumbá se torna, então, centro de abastecimento destes produtos – cimento, cal, couro, trigo, entre outros – para as regiões de Coxim, Cáceres e Cuiabá, ao Norte, além de Porto Murtinho, Miranda e Aquidauana, ao Sul e a Leste (MICHELS; OLIVEIRA, 1995). Simultaneamente, isso provocou também um processo migratório diversificado para a região, com populações oriundas do Nordeste do estado de Minas Gerais e também de outras cidades mato-grossenses, como Cuiabá e Cáceres, além de bolivianos e paraguaios, atraídos, pelas oportunidades de emprego surgidas com a instalação desses empreendimentos. Devido a esse desenvolvimento, em 1950 o governo estadual publicou o edital de concorrência para a instalação dos serviços de água e energia elétrica e respectivo aparelhamento em Corumbá. Já a prefeitura municipal da cidade deu início à implantação da infraestrutura e de equipamentos em Corumbá e assinou contratos para o calçamento e arborização do centro da cidade. Também inaugurou o primeiro serviço de transporte público, denominado “Expresso Cinderela” (ITO, 1992). Brito e Arruda (2007) comentam que não houve, antes dos anos 1950, preocupação com a infraestrutura da zona periférica. Mas essa preocupação veio à tona com as mudanças econômicas e sociais ocorridas no período. Em fins de 1952, chegaram a Corumbá os trilhos da Noroeste, numa extensão total de 1.330,5 quilômetros. Seu ponto de partida localizava-se em Bauru. Passavam por 150 estações e paradas, incluindo Porto Esperança8, até finalmente chegar à cidade de Corumbá, o ponto 8 A Estação Ferroviária de Porto Esperança, antes da construção da Ponte Eurico Gaspar (inicialmente chamada Rio Branco), teve grande importância na região, pois era o fim da linha dos trilhos da NOB. Era um importante ponto de transbordo de cargas e passageiros que tinham como destino Corumbá, a sede do município e adjacências, sendo assim um grande ponto de integração do transporte ferroviário com o transporte fluvial. 47 final (GERODETTI; CORNEJO, 2005 apud MORAES, 2011). Brito e Arruda (2007) apontam que o auge econômico da cidade foi abalado com a construção da Estrada de Ferro. De acordo com Corrêa (2006 apud MORAES, 2011, p.92), a linha férrea favoreceu o florescimento e o desenvolvimento de povoados localizados às margens de seus trilhos, como também Campo Grande, e remeteu Corumbá à posição de mero vilarejo ao final da linha. Consequentemente, as casas de comércio, antes abastecidas diariamente pelas várias embarcações, passaram a depender dos trens de carga para o transporte das mercadorias que, por sua vez, não circulavam com tanta regularidade, além de atrasarem por semanas e até meses. Os comerciantes começaram a sofrer sérios prejuízos econômicos com a falta de mercadorias. Moraes (2011) enfatiza que a chegada da estrada de ferro a Corumbá, nos anos 1950, não interrompeu o desenvolvimento da cidade. Porém, ela atravessou um processo de reordenamento, pois perdeu a posição de principal centro comercial de Mato Grosso e buscou novas alternativas, como a pecuária e atividades ligadas à agroindústria. Dessa maneira, nos anos 1950, a cidade de Corumbá passou por profundas modificações, na tentativa de evitar maiores agravos na economia local. Foi necessário criar novas alternativas, conforme os estudos de Ito (1992), Moraes (2011) e Perez (2012). Para Ito (1992), o revigoramento da economia local se deu por meio da implementação da atividade industrial, melhoria da pecuária de corte e instalação da pecuária leiteira. Simultaneamente a esses acontecimentos foram assinados diversos acordos entre o Brasil e a Bolívia, de compra e exportação de gás natural e petróleo boliviano. Também foram negociadas construções de portos, rodovias, ferrovias e áreas de zonas francas. Tais acordos bilaterais isentaram de taxação diversos produtos brasileiros exportados e consumidos na Bolívia. Nos anos 1960, a cidade de Corumbá ainda era considerada local de difícil acesso. Possuía várias deficiências em sua infraestrutura, como escolas, serviços de saúde, saneamento básico (água encanada e esgoto), iluminação pública, entre outros, se assemelhando à zona rural. Contudo, a cidade alavancara seu desenvolvimento econômico como entreposto comercial, e tivera toda a sua infraestrutura localizada nos arredores da região portuária, na qual se dera e crescera o fluxo comercial. Ito (1992) assinala que a extensão ao sul da cidade não apresentou obstáculos para o crescimento da malha urbana até o início dos anos 1960, quando a expansão da cidade atingiu a área da morraria. Portanto, ao longo dos anos 1960 e 1970, a população corumbaense se distribuía em meio aos vales e sopés dos morros. 48 Assim, os anos 1960 foram marcados por um crescimento relativamente menor do que nos anos 1950. A economia sofreu com a interligação rodoviária entre Campo Grande e Cuiabá. Como as mercadorias não mais precisavam passar pelo porto de Corumbá, o porto entrou em um processo de declínio. Ainda nessa década houve a crise da pecuária de corte, levando os pecuaristas a implantarem a pecuária de leite. Foi inaugurada uma usina de pasteurização do leite que, ao final de um ano, entrou em falência. Nos anos 1960 ocorreram muitas dificuldades no setor da pecuária. Apesar de várias tentativas de superação, a crise se estendeu até os anos 1970. Ito (1992) ressalta que, apesar da crise no setor regional, a cidade de Corumbá recebeu muitas melhorias no setor da infraestrutura, como asfaltamento das ruas do centro da cidade, instalação do sistema de telefonia automática, linha de transporte público, e entrega de 176 casas da Companhia Nacional de Habitação (COHAB), dando seguimento ao crescimento econômico iniciado em 1950. Nos anos 1970 houve uma grande euforia com a construção de rodovias. Mesmo sem asfalto, a estrada Corumbá – Campo Grande representou a autonomia econômica de Corumbá e a independência da linha férrea Noroeste do Brasil. No entanto, no final de 1972, ocorreu uma grande enchente, levando os fazendeiros a destruírem trechos da estrada, a fim de amenizar as perdas na pecuária (a estrada havia sido construída através da elevação do terreno, que passou a funcionar, em alguns lugares, como um dique. Impedia o escoamento das águas e deixava as fazendas submersas). A enchente e a interrupção de trechos da estrada levaram a cidade ao isolamento (ITO, 1992). Corumbá entrou em um processo de decadência econômica como estampado nos noticiários da época, que apontaram também a crise gerada em decorrência da grande enchente, sendo a pecuária a atividade econômica que mais sofreu perdas com o período de cheia no Pantanal. Outro setor atingido pela enchente foi o comércio, que registrou queda de 40% do movimento, em decorrência do isolamento (ITO, 1992). Nesse período, houve a reivindicação da instalação do gasoduto, ligando os poços do oriente boliviano ao estado de São Paulo, passando por Corumbá, motivando os corumbaenses na luta pela implantação de uma termoelétrica, o que poderia solucionar o problema da falta de energia elétrica. Ito (1992) explica que a termoelétrica, sob a ótica dos empresários locais, proporcionaria o desenvolvimento da cidade. Dessa maneira, a cidade de Corumbá vivenciou, desde a época áurea do pleno funcionamento do porto, a importação e a exportação de produtos. Passou depois por grandes mudanças, iniciadas com a construção da estrada de ferro. Reestruturou-se, ainda nos anos 49 1950, com as atividades ligadas ao comércio e à indústria. Nos anos 1960, as atividades econômicas permaneceram as mesmas da década anterior, porém com o crescimento em ritmo mais lento. A década seguinte trouxe a construção de estradas ligando Corumbá a outras regiões. Novas expectativas se abriram, entre elas, a pecuária. No entanto, essa década foi considerada difícil, principalmente pela enchente que afetou o setor pecuário e o comércio da cidade. Em meio à crise que se verificava por todo estado de Mato Grosso do Sul, ocorreu o projeto de disputa por investimentos, trazendo à tona o debate, que se estendia por quase um século, sobre a divisão do estado. De acordo com Murtinho (2009), esta luta foi travada por dois movimentos, representados, de um lado, pelos sulistas favoráveis à divisão do estado e, do outro, pelos nortistas, que se esforçavam em impedir a consumação desse ato. Assim, a luta pela divisão esteve inserida na discussão de prós e contras. Os argumentos pró-divisão, enfatizados pelos sulistas, eram baseados na afirmação de que o estado de Mato Grosso era sustentado pela arrecadação das cidades do Sul, desprezadas politicamente pelos administradores do governo que residiam na cidade de Cuiabá (Norte). Nesse contexto, o movimento sulista argumentava que o estado dividido estaria em melhores condições de se desenvolver. O movimento representado pelos nortistas manifestava posição contrária à divisão e enfatizava que o estado de Mato Grosso cresceria mesmo com a divisão, conforme destaca Murtinho (2009). Silva, A. (1997) enfatiza também esse desejo do grupo político do Sul, da criação de uma nova unidade federativa, além das diferenciações econômicas e sociais do Norte em relação ao Sul. A instauração da soja no sul do estado de Mato Grosso, a partir de 1960, provocou mudanças significativas na economia da região, passando a assumir progressivamente um caráter nitidamente comercial, dando início à industrialização no campo. No ano de 1977, ocorreu a divisão do estado de Mato Grosso e foi criado o estado de Mato Grosso do Sul, a partir da assinatura do General Ernesto Geisel da Lei complementar n° 31, de outubro de 1977. Porém, o novo estado só foi instalado em 1979, com a indicação do governo e as eleições dos deputados estaduais e federais. (SILVA, A. 1997). Com a criação de Mato Grosso do Sul, seus governantes teriam um papel importante a cumprir: colocar a sua economia, voltada ao setor da agropecuária, em condições de contribuir com a estratégia nacional de desenvolvimento, ajudando a reduzir o déficit na balança comercial e a abrir caminhos para os mercados externos. Assim, o novo estado nasceu em condições privilegiadas, por estar localizado próximo dos grandes centros econômicos do 50 pais, como São Paulo, Minas Gerais e Paraná e fazer fronteiras internacionais com o Paraguai e a Bolívia (SILVA, A., 1997). Com a divisão do estado, em 1977, Mato Grosso do Sul passou a exercer importante função econômica no cenário nacional, assim como também a cidade de Corumbá, principalmente por sua localização fronteiriça e pela atividade pecuária (CORUMBÁ, 2010, p.10). Em 1980, Corumbá acelerou mais intensamente seu desenvolvimento no plano social. A construção e a pavimentação das rodovias representaram um aumento da população nos arredores da cidade, tornando-se necessário criar condições para atender a essa demanda de migrantes e imigrantes. Assim, diversos segmentos tiveram de ser ampliados: saúde, educação, transporte, iluminação pública etc., ou seja, com a expansão comercial e industrial, surgiu a necessidade de urbanização da cidade (ARRUDA; BRITO, 2007). Em 1980, verificou-se o crescimento populacional na área sul da cidade, principalmente com a ocupação dos morros pela população de menor poder aquisitivo, como demonstra Ito (1992, p. 25): [...] e este avanço ocorreu através de invasão desordenada em que cada família escolhia um espaço livre e, usando da auto-construção, erguia sua casa ou barraco. Nestas áreas, os moradores enfrentam muitos problemas advindos da falta de infra-estrutura urbana. Não há água encanada, energia elétrica, arruamento, coleta de lixo. A falta de água encanada não pode ser sanada por poços, pois a constituição geológica (calcária) dos terrenos não permite a perfuração, exceto usando tecnologia avançada para romper a rocha, e ainda não há estudos sobre a existência de água e a qualidade desta para consumo. [...] Apesar do direcionamento do crescimento da cidade estar ocorrendo para o sul, para a área da morraria, a população usa como termo depreciativo e muitas vezes pejorativos „morador do morro‟, ou tudo que implicitamente informe que alguém „mora no morro‟. Na concepção da população local, isto implica numa imediata associação com a condição sócio-econômica do cidadão, numa generalização dos moradores como componentes de um quadro de pobreza e falta de infra-estrutura urbana, e, sobretudo associando à criminalidade. Essa peculiaridade acontece pelo fato de Corumbá ser uma das principais rotas de entrada de entorpecentes no Brasil [...]. Para Ito (1992), o centro da cidade de Corumbá era considerado o “coração‟‟ econômico, pois concentrava o capital comercial e financeiro e era responsável pela localização, em sua maioria, do comércio varejista, junto às agências bancárias e à prefeitura, bem como a proximidade e a ligação com o porto, imprescindíveis para sua dinamização. Apesar da perda da importância do porto nos anos 1950, o setor varejista não apresentou problemas em adaptar-se à nova modalidade de transporte. Vale destacar que a mão de obra 51 familiar era utilizada na maioria das lojas de propriedade de imigrantes palestinos e seus descendentes. Nessa década, as novidades se apresentaram e, gradualmente, modificaram o cotidiano regional, pelo fortalecimento econômico dos comerciantes palestinos e aumento populacional do lado boliviano da fronteira, assim como na esfera político-administrativa. Ainda para Ito (1992), os serviços prestados por empresas brasileiras como a Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (SANESUL), responsável pelo abastecimento de água e a Empresa Energética de Mato Grosso do Sul (ENERSUL), responsável pela distribuição de energia elétrica, contribuíram também para a integração regional, ao suprir parte das necessidades da população da fronteira com a Bolívia (MANETTA, 2009). Os anos 1980 foram marcados pelo crescimento populacional na região sul da cidade, constituída, em sua maioria, por moradores com menor poder aquisitivo, vivendo em precárias condições de vidas, em decorrência da falta dos serviços básicos, como serviço de água, energia elétrica e saneamento básico. Em contrapartida, no centro da cidade ocorreu uma melhoria na infraestrutura, através do asfaltamento das ruas e fornecimento de energia elétrica e serviço de água encanada. 3.2 Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC) – a legalidade em pauta Durante a seção anterior, foi resgatada a história das políticas de atendimento à criança pobre, abandonada e desvalida no Brasil, desde o período Colonial, perpassando pelo Império, República até meados do século XX, levando-nos à compreensão de como foram se constituindo as Políticas de Atendimento à Infância institucionaliza no Brasil, e gerando o desejo de conhecer a Política de Atendimento à Infância Abandonada e Delinquente na cidade de Corumbá, em especial, da Instituição Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC). Na tentativa de obter informações que remetessem à implantação e ao funcionamento do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), obtive os dados em duas instituições. A primeira, na Câmara Municipal de Corumbá e a segunda, no Cartório do 4° Oficio da cidade, onde foram encontrados dois Estatutos da instituição, o primeiro registrado em janeiro do ano de 1947 e o outro, publicado no Diário Oficial do Estado, em outubro de 1972, explicitando os serviços prestados e as finalidades do SAMC. O quadro 1 foi elaborado com a finalidade de compreender o funcionamento da instituição, além de verificar as mudanças ocorridas entre os dois estatutos. 52 Quadro 1: Da organização e das finalidades expressas no Estatuto do SAMC Características ESTATUTOS 1947 1972 Amparando a Infância abandonada e Amparando a Infância desvalida e Da função delinquente de Corumbá. transviada. Manter estabelecimentos destinados à Da infraestrutura Construir um edifício destinado à internação provisória dos menores internação e educação de menores. abandonados, mantendo uma escola para a sua educação. Vigiar, proteger e colocar os menores Vigiar, proteger e colocar os menores Dos objetivos egressos do serviço. egressos do serviço. Patrocinar e promover festas de caridade Patrocinar e promover, por todos os Do patrocínio em benefício dos menores internados. meios, coletas de fundos em benefício dos menores internados. Promover, sempre que possível, a -Dos encaminhamentos colocação de menores em casas de famílias e no comércio, mesmo em se tratando de menores que não tenham recebido ensinamentos no Instituto. Estabelecer estágio profissional de -Da formação dos educadores médicos e juristas matoprofissionais grossenses em serviços paulistas especializados. Obter do estado recursos para custeio de Obter recursos oficiais para custeio de bolsas para o curso especializados em São estudo, em cursos especializados visando Paulo, de assistentes sociais matoa criar assistentes sociais (matogrossenses. grossenses). Formação do pessoal técnico. -Da relação com a Organizar Centros de Orientação Familiar Organizar Centro de Orientação Familiar e Granjas Lares família Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir dos Estatutos de 1947 e 1972. (Anexos A e B). O quadro mostra as várias alterações de um documento para outro. A primeira modificação está na terminologia sobre quem seriam os atendidos: o documento de 1947 reporta-se à infância abandonada e delinquente, conforme previa o código de 1927; já o Estatuto de 1972 traz a infância desvalida e transviada. Essa alteração parece retroceder aos termos utilizados antes da aprovação do Código de Menores ou reportar-se, ainda, aos menores desvalidos, termo utilizado pelo Decreto Lei n° 3.799 de 5 de novembro de 1941, que regulamentava o SAM (BRASIL, 1941), incorporado pela FUNABEM, através da Lei n º 4.513, de 1º de dezembro de 1964, que visa, de acordo com o inciso I do Art. 6º, “à integração do menor na comunidade, através de assistência na própria família e da colocação familiar em lares substitutos” (BRASIL, 1964). O fato de contrariedade também pode ser observado em relação aos encaminhamentos dos menores, pois o estatuto de 1972 não faz referência aos encaminhamentos dos institucionalizados, o que parece descaracterizar a legislação vigente de atendimento ao menor. 53 Em relação à infraestrutura, a alteração está vinculada à previsão de construção dos edifícios de internação para manutenção do estabelecimento destinado à internação. Em relação aos objetivos, não houve alteração. No que tange ao patrocínio, a alteração se deu na busca da ampliação de coletas de fundos em benefício dos menores internados. Em ambos os estatutos, o viés caritativo se manteve. Sobre a formação dos profissionais, o estatuto de 1947 parece se preocupar com a formação dos profissionais que atuavam junto aos menores institucionalizados, prevendo formação desde juristas, médicos, assistentes sociais, até o pessoal técnico. O estatuto de 1972, por outro lado, somente destaca a necessidade de formação do Assistente Social, profissional necessário para o funcionamento. Sobre o item que trata da relação com a família, houve a ampliação do serviço no estatuto de 1972, com a adoção das granjas lares. O estatuto do SAMC de 1947 traz uma proposta de reencaminhar os meninos o mais rápido possível para famílias substitutas, bem como uma profissionalização de seu quadro técnico. O Estatuto de 1972, por sua vez, não reflete a intencionalidade de encaminhamentos dos internos à comunidade, tampouco com a formação mais ampla de seus quadros. No entanto, tem uma reorganização administrativa, que indica um “inchaço‟‟ de funções no Estatuto de 1972, conforme quadro a seguir: Quadro 2: Organização e Competência administrativa nos Estatutos do SAMC Função Presidência 1947 convocar as reuniões da diretoria e das Assembleias Gerais e Extraordinárias; presidir as reuniões da Associação; 1972 convocar e presidir reuniões da Diretoria e da Assembleia Geral; representar a Associação ou fazer-se representar, em juízo e fora dele, podendo outorgar procuração; representar a Associação, ou fazer-se representar em juízo ou fora dele, podendo outorgar procuração; autorizar as despesas extraordinárias; autorizar despesas, desde que as permitam as condições financeiras do serviço; organizar um orçamento para funcionamento do serviço, submetendo-o à aprovação da Diretoria; tomar as contas dos responsáveis pelo dinheiro e bens da sociedade; visar os cheques emitidos pelo tesoureiro. apresentar anualmente minucioso relatório das atividades do SAMC. elaborar um detalhado atividades da Associação; relatório das Vice-presidente substituir o presidente em seus impedimentos 1º secretário ter a relação das Atas de reuniões da Associação; substituir o Presidente em seus impedimentos; e assessorar o Presidente em todas as suas atribuições. redigir e lavrar as reuniões da Diretoria; 54 incumbir-se de toda correspondência da Associação; cuidar das correspondências do SAMC; Fazer a publicidade de avisos ou noticiários de interesses da Associação; A organização e manutenção do arquivo de associados. tratar da publicação de editais e avisos; e 2º secretário Auxiliar e substituir o 1° secretário em seus impedimentos. assessorar o 1° secretário nos seus impedimentos; e manter em dia e em ordem o fichário dos associados. 1º Tesoureiro fazer a escrituração de receitas e despesas. guardar o arquivo da tesouraria, escrituração do livro de receita e despesas e emissões de cheque que terá obrigatoriamente o visto do Presidente. pagar as despesas da Associação, ordinárias e extraordinárias autorizada pelo presidente; e efetuar os pagamentos das despesas devidamente legalizadas e autorizadas pelo Presidente; e cuidar da organização e manutenção dos arquivos e registros da associação. arrecadar as contribuições sociais e as demais rendas da Associação. 2º Tesoureiro auxiliar e substituir o 1° tesoureiro. Encarregado de Relações Públicas -- 1 chefe do Departamento Jurídico -- 1 chefe do Departamento de Saúde -- 1 chefe do Departamento de Educação e Cultura -- guardar as importâncias pertencentes à Organização (o Tesoureiro não poderá ter em caixa importância superior a Cr$ 100,00 (cem cruzeiros). A importância que exceder deverá ser depositada em um dos bancos locais, na conta do SAMC). substituir o 1° Tesoureiro nos seus impedimentos; e arrecadar as contribuições e mensalidades, entregando-as ao 1° Tesoureiro. fornecer à imprensa e radio as atividades do SAMC; e tratar dos interesses públicos em relação ao SAMC. dar assistência ao Presidente em assunto de caráter jurídico; e ter a seu cargo a defesa dos interesses da Organização nas questões de justiças. assessorar o presidente em assuntos técnicos e sanitários; dirigir o serviço de saúde da organização; visitar frequentemente as dependências da Organização, apresentando ao Presidente as sugestões que julgar necessárias para a melhoria das condições higiênicas; e ministrar aos menores e empregados do SAMC, assistência médico-hospitalar. assessorar o Presidente nos assuntos de instauração e educação dos menores, dirigir os cursos escolares no SAMC; ter a seu cargo a seleção e orientação dos professores a serem contratados para a Organização; e desenvolver e aprimorar, dentro do possível, as condições técnicas de ensino e 55 1 chefe do Departamento Agro-Pecuário -- 1 chefe do Departamento industrial e de construção -- 1 chefe do Departamento Econômico e Financeiro -- 1 Almoxarifeaprovisionador -- 1 chefe do Departamento Feminino -- 5 Diretores Auxiliares -- Mandato 3 anos meios auxiliares para a transmissão de conhecimento aos menores. assessorar o Presidente em assuntos ligado ao seu departamento; dirigir os serviços de natureza agrícola e de criação; e manter estreita ligação com os órgão federais, estaduais e municipais que possam cooperar nos assuntos do seu Departamento. assessorar o Presidente em assuntos de construção, equipamentos industriais e máquinas de trabalho agrícola; realizar inspeção para determinar as condições de material; e assegurar a manutenção preventiva do seu departamento. assessorar o Presidente nos assuntos de economia e finanças da Organização; subscrever com o tesoureiro documentos de aquisição e transmissão de bens, autorizados pelo Presidente; ter sob sua guarda e orientação os trabalhos da tesouraria, almoxarifado e aprovisionamento; coordenar e fiscalizar tudo que se refira à vida administrativa do SAMC, de acordo com as Leis em vigor; receber todos os documentos referentes à sua atribuição, estudá-los e fazer o respectivo expediente, submetendo-o diretamente à consideração do Presidente; e conferir e autenticar com o seu “conferido”, antes de ser submetido à consideração do Presidente, todos os papéis que importarem em receita ou despesa para o SAMC. ter a relação de todos os artigos pertencentes ao SAMC; fazer anualmente levantamento de todo o patrimônio da Organização; e providenciar no sentido de suprir o SAMC em meios materiais e alimentação. providenciar e organizar festividades com o fim de arrecadar meios para vestir e calçar os menores do SAMC; dar assistência moral as internos do SAMC; assegurar as condições de higiene individual e boa vontade. colaborar com administração em geral e substituição dos Diretores em seus impedimentos temporários ou definitivos, mediante indicação dos membros remanescentes. -- Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir dos Estatutos de 1947 e 1972. (Anexos A e B). 56 O quadro registra a competência de cada função na organização da administração do SAMC, nos Estatutos de 1947 e 1972. Ao fazer um paralelo entre os dois estatutos, o que chama atenção é a enorme quantidade de funções no Estatuto de 1972, o que parece caracterizar, de um lado, uma especialização no atendimento e, por outro, uma fragmentação através de departamentalização. Nesse contexto, as questões que surgem diante dessas informações estão vinculadas à criação de tantos cargos, ou seja: Os departamentos atuaram efetivamente no SAMC ou apenas estava compondo um organograma? Esse processo de departamentalização cumpriu as funções estabelecidas em benefício dos menores institucionalizados, ou só foi um engodo? Essas questões aqui apontadas precisarão de novos estudos, pois a falta do tempo e a dificuldade de acesso aos documentos impedem que sejam respondidas neste momento. Outra informação relevante do Estatuto é o fato de a instituição ser filantrópica, característica marcante das instituições de atendimento à infância abandonada advindas da Colônia, marcadas pela ideia de que os recursos públicos é que deviam sustentar as diferentes iniciativas de ações particulares. Como demonstra Bazilio (1998), o setor privado se aliava a grupos dentro da administração pública, com o intuito de adquirir verbas e privilégios. No período da implantação e funcionamento do SAMC em Corumbá, constatou-se certa semelhança com o atendimento em nível nacional, no SAM, destinado ao atendimento de menores “abandonados” e “delinquentes” e menores “pobres”, que eram encaminhados à instituição para internação, com o objetivo de ajustamento social. De meados do século XIX a meados do século XX, o atendimento às crianças e adolescentes esteve, em sua maioria, nas mãos do setor privado, de instituições sem fins lucrativos (filantrópicas). No entanto, elas eram subvencionadas pelo poder público. Essa fase foi denominada por Marcílio (2006) de fase filantrópica. Essa forma de atendimento se deu devido às transformações sociais no Brasil, principalmente no que diz respeito à infância abandonada. O SAMC, instituição de atendimento aos menores em Corumbá, realizou a filantropia, como ocorreu em outras instituições em outras regiões do Brasil, que prestavam o atendimento à infância “abandonada” e “delinquente”. A filantropia, segundo Pilotti (2011), distinguia-se da caridade pelos seus métodos considerados científicos, por esperar resultados concretos e imediatos, buscando o bom encaminhamento dos desviantes à vida em sociedade, de modo que fossem cidadãos úteis e independentes, por meio do trabalho e aprendizado de ofícios como carpinteiro, ferreiro, marceneiro, pedreiro, entre outros. 57 Marcilio (2006) ressalta que a filantropia buscava preparar a criança pobre e abandonada para o mundo do trabalho, bem como instruir a família para prevenir a ociosidade, a prostituição, a mendicância, o crime, o abandono do menor, a criança na rua. Dessa maneira, estaria controlando e domesticando as “classes perigosas”, por meio da prevenção e atenção. Quando não era possível, entrava a correção, exercida rigorosamente, auxiliada também pela polícia, prática que parece que esteve presente na instituição em estudo. Além dos Estatutos do Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC) de 1947 e 1972, tive acesso a um documento da Câmara Municipal de Corumbá, que reconhece a instituição como de utilidade pública, através da Lei n° 89, em 08 de junho de 1953 e outros documentos que demonstram que o poder público também subvencionava o SAMC através de recursos financeiros, materiais e humanos, conforme se segue. A lei n° 105 de 16 de Novembro de 1953 faz o demonstrativo da contribuição e do apoio financeiro da Prefeitura Municipal para a manutenção da instituição, por meio da montagem de uma oficina para ministrar o ensino profissional e atender às despesas com o Ensino Agrícola dos menores internados. O valor inicial da ajuda foi a quantia de CR$ 100.000,00 (cem mil cruzeiros), que passou a ser anual, a fim de atender o Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC). No ano seguinte, em 1962, foi aberto pela Prefeitura Municipal um crédito especial no valor de Cr$ 20.000,00 (vinte mil cruzeiros) disponibilizados para a instituição, incluindo outras 12 entidades sociais. Já em 1963, a Prefeitura concedeu uma subvenção anual de Cr$ 180.000,00 (cento e oitenta mil cruzeiros) ao SAMC, proposto pela Lei n°433 de 25 de Outubro de 1963 Após essa data, durante sete anos não houve registros na prefeitura que fizessem referência ao SAMC, tampouco ajuda de custo à instituição. Apenas em 1969, a Lei n° 579 de 27 de Novembro de 1969 fixou o auxílio anual a cinco entidades, entre elas o SAMC, no valor de NCr$ 1.000,00 (hum mil cruzeiros novos)9. Nos Estatutos vê-se que, no período de implantação e de funcionamento do SAMC, o Brasil passou por duas políticas de atendimento à infância abandonada e delinquente. Em 1941, a primeira instituição nacional de assistência pública à criança e adolescente, Serviço de Assistência aos Menores (SAM) e, em 1964, a Política de Bem-Estar, por meio da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), em níveis estaduais representada pelas Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs), instauradas em 1964. 9 Com base na conversão, as doações repassadas à instituição, nesse período, giravam em torno de cinco a quase nove salários mínimos anuais (http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/salario_minimo_1940a1999.htm). 58 Em Corumbá, os serviços do SAMC não foram alterados, nem mesmo diante do novo estatuto aprovado em 1972. Somente em 1984, Corumbá instaurou a Política de Bem-Estar do Menor, conforme consta nos documentos da Câmara Municipal. A finalidade era planejar, orientar, coordenar e fiscalizar o desenvolvimento das políticas voltadas aos menores, junto às entidades públicas e privadas do município. Com relação à institucionalização da FEBEM, encontrei no estado de Mato Grosso a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor de Mato Grosso (FEBEMAT), na cidade de Cuiabá, criada por meio da Lei 3.132, de 13 de dezembro de 1971, seguindo a diretriz nacional, estabelecendo a responsabilidade pela política de assistência social ao menor, conforme por Miranda (2014). Nesse período, não havia ocorrido ainda a divisão do estado em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Assim, a hipótese que defendo é que a FEBEMAT orientou ambos os estados, mesmo após a divisão, até que fosse estabelecida, em Mato Grosso do Sul, uma nova política de orientação ao atendimento à infância, anos depois. Na busca pelas documentações escritas sobre o SAMC, desde a sua implantação até a sua extinção, foram levantados: as Leis da Câmara Municipal de Corumbá, os Estatutos da Instituição de 1947 e 1972 e Publicações no Diário Oficial. Não foi localizada documentação escrita com referência ao fim do SAMC. Porém, na documentação produzida pela história oral, ou seja, a partir dos relatos das entrevistas, o encerramento se deu no final dos anos 1980, bem como a mudança do nome da instituição de SAMC para Centro de Recuperação Maria Pedrossian. Essa mudança de nomenclatura também foi mencionada na dissertação de Girelli (1994), ao falar sobre a situação geográfica da instituição. Os participantes também narraram que, nos anos 1980, a instituição passou a ser administrada pelo governo do estado de Mato Grosso do Sul. Há também um documento escrito, que cita essa nova administração e que ratifica, em 1988, os termos do convênio celebrado entre a Prefeitura Municipal de Corumbá e o estado de Mato Grosso do Sul. O fato provavelmente tem alguma relação com o fechamento do SAMC, pois a “Associação de Amigos de Prevenção e Assistência aos Usuários de Drogas de Corumbá e Ladário” (ACLAUD) tem o mesmo endereço do antigo SAMC. A Lei nº 1.095 de 1990, que trata do convênio entre a Prefeitura Municipal de Corumbá e o estado de Mato Grosso do Sul, declara a ACLAUD como Utilidade Pública. Esses registros parecem evidenciar o período de desativação do SAMC. Com a finalidade de compreender melhor o SAMC, optei por ouvir a voz de alguns sujeitos que vivenciaram de alguma forma a instituição e analisar a história do atendimento a meninos institucionalizados no SAMC. 59 3.3 Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC): a voz dos entrevistados Conforme relatado anteriormente, este estudo contou com nove participantes que vivenciaram o Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC): dois internos; dois filhos de funcionários; um membro do conselho consultivo; um assistente judicial de menores; três funcionários, sendo quatro do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Para a preservação da identidade dos sujeitos, foram adotados nomes fictícios: João, Pedro, Mateus, Tiago, Lucas, Maria, Madalena, Rute, Ester. Ao realizar a organização dos relatos sobre a instituição nos anos de 1948 a 1990, levantei os temas que conduzem a um melhor conhecimento do funcionamento da instituição, e verifiquei quais as alterações ocorridas durante o seu período de funcionamento. Os participantes foram escolhidos, primeiramente, porque vivenciaram o SAMC de alguma maneira. Em segundo lugar, foram selecionadas pessoas que vivenciaram diferentes épocas, o que favorece a compreensão das nuances da instituição durante o seu funcionamento. O quadro a seguir mostra o codinome do participante; de que lugar ele tem o olhar sobre a instituição; o período vivenciado por ele na instituição; e a idade dos participantes no momento da entrevista. Quadro 3: Caracterização dos participantes Nome fictício do participante João Pedro Maria Madalena O olhar sobre a Instituição sob o ponto de vista do: Interno Filho de funcionário - morou no SAMC Membro do conselho consultivo do SAMC Filha de Membro do conselho consultivo– fazia visitas esporádicas. Mateus Assistente Judicial de Menores Tiago Funcionário Rute Funcionária Lucas Interno Ester Funcionária Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir das entrevistas. Ano/Período em que vivenciou a Instituição 1948 1958-1965 1962 1962 Idade 60 anos 66 anos 86 anos 47 anos 1966 1968 1980-1984 1988 1989 – 1990 72 anos 76 anos 65anos 43 anos 48 anos Diante dos relatos, os dados foram organizados e analisados através dos seguintes tópicos: A instituição; O atendimento no SAMC; Responsáveis pelo SAMC; A manutenção; O Processo Educativo; Rotina; Os Finais de Semana; Família; Sociedade Corumbaense; Sistema de Punição e Sistema de Privilégio; Viver no SAMC. 60 3.3.1 SAMC: a instituição Os relatos das histórias de vida dos participantes, apesar de se cruzarem na instituição, se diferenciam na sua vivência dela. Mas o que os torna tão diferentes, a ponto de falarmos da mesma instituição, e obtermos informações tão divergentes entre si? Qual seria o motivo dessa visão tão diferenciada sobre a mesma Instituição? Em relação à função da instituição, foi registrada a primeira discordância nas falas dos participantes, que apresentaram formas diferentes de entender o SAMC. A instituição foi caracterizada como internato, orfanato e centro de recuperação. Sob o ponto de vista de Pedro, filho do funcionário que viveu na instituição, o SAMC era um internato. Para Madalena, também filha de funcionário, mas que não morou na instituição, o SAMC era um orfanato. Já para a funcionária Ester, a instituição era um Centro de recuperação. Cada um dos participantes entendia a instituição de maneira diferente, bem como a relação com o seu tempo, ou ainda como gostaria de ser identificado socialmente fora dela, dando o valor à instituição, como percebido na fala de Pedro: Pedro - [...] então lá era um internato, as crianças estudavam lá, tinha professor, tinha lavanderia, tinha refeitório tudo organizado, alojamento tudo, então, tudo era feito lá mesmo, a plantação, [nome] coordenava tudo lá dentro, tinha horário para tudo, pra trabalho. Goffman (1974) assegura que, quando o status proativo é relativamente favorável, o ex-interno tem orgulho em falar sobre a instituição, como por exemplo, os internatos de elite, as escolas para a formação de oficiais, entre outros. Quando o status proativo é desfavorável, o ex-internado realiza um esforço para esconder o seu passado, chegando até a disfarçar, tal como ocorre com os que saem de prisões ou hospitais para doentes mentais. Os participantes João, Maria, Mateus, Tiago, Rute, Lucas não relataram sobre o tipo de serviço prestado pelo SAMC. Mesmo não obtendo uma resposta em comum, o estudo de Goffman (1974) sobre o caráter da instituição trata da teorização da institucionalização, em que o SAMC pode ser incluído, pelo tipo de atendimento destinado à infância desvalida e delinquente, conforme exposto nos seus Estatutos de 1947 e 1972. Assim, o SAMC pode ser enquadrado no perfil das instituições totais, pois apresenta um caráter fechado, uma vida regrada sob a autoridade de dirigentes, assim como os demais sujeitos que se encontram na mesma situação, sem contato com o mundo exterior, a não ser nos momentos de festividades e visitas. 61 O estudo demonstrou que havia diferenciação entre os atendidos, pois eram separados em dois pavilhões, dos abandonados e dos delinquentes, conforme consta no Estatuto de 1947. Segundo esse Estatuto, os menores receberiam educação adequada às suas circunstâncias e, quando melhoradas as circunstâncias, ou seja, o comportamento, o menor passaria a viver com os demais internos do patronato, ou poderia ser encaminhado para institutos especializados, a critério do Juizado de Menores. Em relação à idade dos meninos que estavam no SAMC, havia dados sobre crianças e adolescentes de 6 aos 18 anos, quando então ingressavam no Serviço Militar Obrigatório. Essa situação reporta aos estudos de Marcílio (2006), que evidencia que essa faixa etária também era encontrada nas instituições de atendimento de meninos e meninas, como o asilo de São Cornélio em Fortaleza, para meninas maiores de 12 anos, a Casa de Assistência à infância desvalida no Rio de Janeiro, destinada ao sexo masculino entre 6 a 21 anos, e a Escola Premonitória 15 de Novembro, também no Rio de Janeiro, para os menores a partir dos 9 anos de idade. Earp (1998) expõe que, ao atingir a maioridade, completando os 18 anos, os internos eram desligados da instituição e deveriam prover a sua própria subsistência. Conforme relato nas entrevistas, logo que completavam os 18 anos, os internos do SAMC ingressavam no Serviço Militar Obrigatório. Entretanto, houve um caso de um interno que, após ter concluído o Serviço Militar Obrigatório, retornou para a Instituição, não mais como interno, mas como ajudante, sem receber qualquer salário, de acordo com as palavras de Madalena: Madalena - Então quando nós, o SAMC, tava assim numa situação, quem tomava conta realmente era um casal e mais um moço. Esse moço tinha sido criado lá no SAMC, tava mocinho e saiu pra fazer o serviço militar depois ele voltou, e era o casal, ela era cozinheira e ele tomava conta de tudo [...] pusemos mais um empregado, que era um menino que tinha sido criado lá, ele ficou trabalhando lá mais ele não recebia nada. Ele [ex-interno] não queria receber, dizia que pelo que ele tanto tinha recebido, que ele queria dar uma cota de trabalho. Aí ficou lá mais uns três ou quatro anos, aí foi embora para Cuiabá. O que nos chama a atenção foi o retorno à instituição. Mais ainda, sem receber qualquer pró-labore, apenas pela gratidão. Essa situação provoca questionamentos sobre a relação do interno com a instituição: será que a instituição preparou para viver em sociedade? Qual o nível de dependência criada nos internos em relação à instituição? Ou, ainda: será que seu retorno para o SAMC representou a única alternativa para não voltar para as ruas, pois o 62 tempo que vivenciou foi caracterizado pelo abandono e a perda dos vínculos familiares e comunitários e a sua única referência se constituiu na instituição? Essas questões remetem à reflexão, a partir do estudo de Goffman (1974), que enfatiza que a saída dos internos de uma instituição é marcada por vários conflitos, entre eles a dúvida se conseguirão viver fora da instituição. Como permaneceram por muito tempo afastados do universo externo, podem não ter a clareza do que vivenciarão ao deixarem esse espaço. Assim, as preocupações e a dependência criada acabam sendo a razão para que os ex-internos pensem na possibilidade de não saírem, ou de retornarem à instituição. 3.3.2 SAMC: o atendimento Em relação a quem eram as pessoas atendidas pelo SAMC, as respostas foram diversas, desde possibilidade de escolarização, motivos de pobreza, e até mesmo por decorrência de ordens judiciais, por estarem em situação de rua e/ou por motivos de delinquência. Os motivos de ordem social aparecem nos relatos dos sujeitos como a grande motivadora para o atendimento institucional dos meninos, mesmas características apontadas em estudos de outras regiões do Brasil. Como exemplo dessa situação, Santos (2000) explica que uns dos motivos da institucionalização de menores na cidade de São Paulo era a criminalidade infantil, associada ao chamado crime de “vadiagem‟‟ previsto nos artigos 339 e 400 do Código Penal. As ruas da cidade, ocupadas com atividades informais, eram palco de várias prisões motivadas pelo fato de meninos e meninas não conseguirem comprovar, perante as autoridades policiais, sua ocupação. Dessa maneira, grande parte dessas prisões tinha como alvos os menores que perambulavam pelas ruas e eram capturados pela polícia. Outro estudo que mostra a situação da infância abandonada revela que a criança e o adolescente que viviam entre a vadiagem e a gatunice (furto) eram tratados, na opinião dos juristas, como um caso de polícia e de repressão urbana. A atividade de melhorar as condições do espaço público era confiada aos delegados, que recolhiam as crianças que vagavam nas ruas, “limpando” as praias, parques e praças. Elas representavam um perigo para os comerciantes, conforme a pesquisa de Londonõ (1991). Situação semelhante era verificada também em Corumbá, conforme expôs Lucas: Lucas - Aí comecei a roubá, e com oito a nove anos eu já era o terror de Corumbá, já tava dando muito trabalho pra minha família, pras autoridades, pra sociedade e, foi com 12 anos que eu comecei a conhecer a droga, que foi 63 a pior desgraça e, foi aí que, com 13 anos comecei a ir pra cadeia [...] A minha turma era muito terrível, então o juiz mandava recolher antes do Natal, pro presídio, e soltava depois do carnaval, porque esses quatro a cinco meses era ... nós era o terror, então pelo menos pra dá uma boa segurança pra população o juiz resolveu juntamente com não sei quem, as autoridades certamente resolveram, fizeram essa, esse planejamento e começaram a recolher nós no Natal e soltavam só depois do carnaval. Pedro - lá tinha criança, lá era tudo, por exemplo, esses caras que trabalhava na fazenda deixava os filhos tudo lá, que não tinha escola nas fazendas, naquela época [...] então esses guri que tava solto por ai na rua, ai eles pegavam e levavam pra lá, por que ficavam ai sem pai largado na ai na rua, como tem esses ai agora, só que tudo envolvido com droga né, então eles levavam pra lá, levavam pra lá, já que não tinham família nem nada por ai lá eles ficavam, até, o tempo, uns tentavam fugir né mas... João- Eu fui pra lá tava com 12 anos, fui final de novembro assim, mês de novembro, que eu tava com um pessoal e eles tinham que viajar tudo e eu não tinha onde ficar então tinha que fazer essas coisas de exame né, e ai prova de colégio, ai eu fui fiquei três meses com eles lá, lá no SAMC, [...] bom, teve alguns lá que esse daí já são pessoas desobedientes né, que não queria obedecer lá na cidade, não quer obedecer mãe e pai. Pelo depoimento de Lucas, os internos só permaneciam na instituição entre o Natal e o Carnaval. Corumbá, por ser uma zona de fronteira recebe, no final do ano, uma grande quantidade de turistas que vêm fazer as compras do Natal. Também há a tradição de ser o melhor carnaval do estado. Em tais situações, era preciso manter a “cidade limpa”, protegendo as ruas dos “menores” considerados um mal para a sociedade. Esse processo de “limpeza” das ruas das cidades reporta aos estudos de Santos (2000), que retrata o processo de encaminhamento dos menores encontrados nas ruas, vagando, ao regime de colônias agrícolas. Segundo Marcílio (2006), as colônias agrícolas mantinham uma forma de organização, de espaço e pedagógicas, submetendo os menores ao controle, sob o regime de internato. O ensino agrícola e a vida separada em fazendas eram vistos pela sociedade como a fórmula ideal para retirar o jovem abandonado ou delinquente das ruas, com a finalidade de instruí-lo e capacitá-lo para o mundo do trabalho, assim como uma forma de prevenção ou regeneração da delinquência juvenil. Tal modelo era considerado o caminho ideal para o desenvolvimento do hábito e do amor ao trabalho, uma forma de preparar meninos e meninas para serem úteis à sociedade (MARCÍLIO, 2006). 64 3.3.3 SAMC: os responsáveis Em relação aos responsáveis pela instituição, predominaram as informações de que o cuidado ou a administração do SAMC era realizada por um casal ou por uma família. Essa situação foi modificada apenas nos relatos referentes aos anos 1980, em que os funcionários assumiam escalas de rodízio nos serviços. Porém, mencionaram ainda que havia uma família cuidadora na instituição. Os participantes João, Pedro, Mateus e Tiago disseram que o SAMC era administrado por um casal ou por uma família, constituída frequentemente por um homem e uma mulher. Ele assumia a função de responsável pela organização e ela cuidava da refeição e dos serviços domésticos. João – [Refere-se ao nome do responsável] e a família dele, e tinha o senhor [nome], que era professor. Pedro - Eu sei que nós chegamos lá em 1958, e lá naquela época não tinha nada, era mato só, e, tudo era mato. Então, quando nós chegamos, levaram um ...gado, levaram cavalo, só que o tempo que tivemos lá assim tinha muita cobra, né, a cobra matou quase tudo, ficou só dois cavalos que servia pro arado né. Então lá era assim, era um internato na verdade né, [nome] mulher cozinhava, o [nome] tomava conta. [...] coordenava tudo lá dentro, tinha horário para tudo, pra trabalho, [...] a mulher cozinhava, e [refere-se ao nome do responsável] administrava tudo. Mateus - Tinha gente que era responsável, tinha cozinha, tudo, tudo bem organizado. Tiago - O casal de americanos, eles moravam lá no SAMC. [...] Falava o português, mas meio arrastado sabe. Tiago relata, ainda, que o casal de americanos era responsável pela instituição e que ambos falavam português, linguagem que os meninos compreendiam. Em relação aos funcionários, os testemunhos parecem caracterizar que, até a divisão do estado de Mato Grosso, o SAMC era administrado pela família que morava na instituição. Com a criação do estado de Mato Grosso do Sul, a instituição foi assumida pela primeira dama do estado. Houve um acréscimo de pessoal para trabalhar, conforme depoimentos de Rute e Lucas. Rute - Fui contratada pela Maria Pedrossian, esposa dele [referindo-se à 1ª dama do estado, esposa do governador Pedro Pedrossian] que coordenava lá tudo. Lucas - O agente que era responsável lá, que era um dos que cuidava lá, era agente oficial [nome]. [...] Era plantão, né, era três rodízio de plantão, era 65 dois agentes, dois homens que ficavam lá, e tinha uma pessoa, tinha o Diretor, é...tinha a psicóloga, tinha a família do cozinheiro. Refletindo com os estudos de Goffman (1974), as instituições totais fazem com que a organização e o controle sejam precisos. Assim, a equipe de supervisão atende às ordens da equipe dirigente (pessoas renomadas que não vivenciam o dia a dia da instituição). Nesse contexto, os supervisores acabam criando mecanismos de administração e domínio para que a ordem seja mantida, pois esses profissionais se encontram em quantidade inferior ao grupo de internados. 3.3.4 SAMC: a manutenção Em relação aos subsídios à instituição, dois momentos na administração do SAMC foram citados. O primeiro, quando foi fundada a instituição, por meio de uma organização filantrópica, administrada por um Diretório, composto por presidentes e demais membros, que mantinham a entidade com o apoio também da sociedade, através de doações. Outro momento da administração do SAMC foi quando o governo do estado se responsabilizou pela entidade, segundo a fala dos participantes e um artigo de jornal. No primeiro momento, os documentos referentes ao SAMC o classificavam como uma instituição filantrópica, administrada por um Diretório da sociedade e da esfera de ação pública. Todavia, o que chama a atenção, nesse tópico, foram as divergências encontradas nos relatos dos participantes. Alguns mencionavam desconhecer a situação econômica da instituição, outros apontavam para a fartura dos alimentos e a ajuda material e financeira da sociedade, como mencionado pelo participante Pedro. Houve até situações de extrema dificuldade e miséria vividas pelos internos da instituição, como relatou o participante Tiago: Pedro [...] quem tomava conta de lá assim,.. Um homem cuidava apenas e quem movimentava aquilo lá era a diretoria que existia aqui em Corumbá, que era só de fazendeiros, era Doutor [nome], é [nome], [nome], essa turma toda ajudava. Na época, tinha um engenheiro na Itaú chamado, [nome], [...] ele ajudava muito lá, porque lá tinha criança. [...] e assim nós vivemos todo esse tempo todinho lá assim, só que o começo foi difícil, né? Difícil, né? Porque tinha apoio, logicamente que tinha apoio da cidade, porque era serviço de SAMC, Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá. - [...] ninguém passava dificuldade, e à tarde ela fazia aquele, aquela sopa, passava aquele feijão no escorredor, tirava até aquela casquinha, aí engrossava no macarrão, a criançada comia de lamber os beiços, [...] quando vinha pra cidade, ele doava três, quatro saco de pão, pra levar lá pra turma lá, salsicha, naquela época em que os americanos traziam aquele 66 leite, naquela época de 60, 61, que eles traziam aquele leite de saco, que era em pó né, trazia chocolate, e doava tudo pra lá, nunca faltou nada, na verdade a gente tinha uma vida [...] biotônico Fontoura ia com caixas e caixas. Tiago [...] Eu só lembro que eles passavam necessidade. Eu saí um dia, domingo, e fui num churrasco numa fazenda perto de lá, além do SAMC, e de lá eu consegui trazer pra eles a miudeza do boi, consegui com o fazendeiro de lá, falei que trabalhava no SAMC e tal e as crianças estavam passando necessidade, e ele mandou dá tudo. Eu lembro que quando eu cheguei lá eles viram sabe, ficavam tudo assim, ficavam tudo assim sentados é... e eles me viram chegar com aquilo foram tudo correndo na porteira, onde era o curral sabe, alegre que eles ficaram de tarem levando, sabe. Na mesma hora os mais antigos que entendiam de cozinha alguma coisa pegaram e foram limpar. Mas qual será o motivo que leva a olhares tão diferentes sobre o mesmo fato? Será a administração ou o período? Pedro é filho do funcionário que foi responsável pela organização e manutenção da instituição de 1958 a 1965. Enxerga-a como um lugar lindo e maravilhoso, com alimentos fartos para todos. Já o participante Tiago trabalhou por um período curto na instituição, no ano de 1968. Chegou a presenciar fatos de miséria e dificuldades, o que indica que, possivelmente, com a mudança de administração, deve ter ocorrido uma mudança da sociedade em relação ao SAMC, mudança que teria afetado, principalmente, os donativos. Essa questão também pode estar vinculada à crise econômica em que Corumbá se encontrava no período, principalmente na pecuária. Outro momento relatado pelos participantes foi quando o governo do estado se responsabilizou pela entidade, quando, segundo alguns participantes, não havia dificuldades. Todavia, Rute apresentou certa discordância em sua narrativa, pois ora destacou não haver falta de nada na instituição, ora enfatizou a necessidade de pedir agasalhos para as crianças. Rute- Eu fui contratada pela Maria Pedrossian, esposa dele, que coordenava lá tudo. -[...] dona Maria Pedrossian nunca deixou faltar nada. Quando eu trabalhava lá, eu não tinha (pausa), quando tava frio assim, eu pedia agasalho porque era pouco e tinha muita criança[...]. A instituição recebeu, por décadas, recursos dos cofres públicos, por ser uma instituição de utilidade pública. Recebeu também donativos da sociedade. Posteriormente, passou a ser gestada pelo estado de Mato Grosso do Sul, através da primeira dama. Pelo depoimento dos participantes, os donativos para a instituição permaneceram. Assim, depreende-se que o SAMC, ao longo de sua história, assumiu um caráter filantrópicoassistencialista ligado à caridade social. 67 3.3.5 SAMC: Processo Educativo A educação dos internos era efetuada na instituição, mas esse aspecto não foi amplamente discutido. Os relatos mostram que ela se limitava ao ensino primário, hoje, primeira etapa do ensino fundamental, em classe multisseriada, conforme informaram Pedro e João. João (1948)- Tinha escola. [...] tinha sim, primeiro, segundo, terceiro ano até quarto. Pedro (1958-1965) – Então, lá era um internato, as crianças estudavam lá, tinha um professor, [...] porque naquele tempo só ia até a 4ª série. Em relação a essa questão, Londonõ (1998) enfatiza que, nesse período, havia a ideia de que as instituições deveriam formar e educar, com o objetivo de prevenir a criminalidade do menor. A prevenção supunha que a criança deveria ser retirada da rua e encaminhada para a escola. Rizzini, Irma (2011) explicita que a educação nos Patronatos agrícolas era regulamentada pelo Decreto n.13.706 de 25/2/1919: “exclusivamente destinados às classes pobres e visavam à educação”. Santos (2000) aborda a deficiência nos projetos de educação dos institutos disciplinares criados em 1902 pelo governo do estado de São Paulo, que recebiam menores considerados delinquentes, vadios e viciosos. Os projetos deixavam a desejar, já que eram frequentes os casos em que os jovens, após longa permanência na instituição, de lá saiam sem nada aprender, ou seja, analfabetos ou semianalfabetos. O programa educacional dessas instituições compreendia leitura, princípios da gramática, escrita e caligrafia, cálculo aritmético, frações e métrico, rudimentos de ciência física, química e natural (aplicada na agricultura), moral e prática e cívica. Ainda sobre a escolarização Pedro e Rute relataram que o ensino oferecido no SAMC ocorria em um espaço específico para o estudo, frequentemente uma sala de aula ou um refeitório que acomodasse todos os meninos. A participante Rute tende a generalizar os aspectos “positivos” da atuação da instituição. Pedro -Tinha sala de aula, era a mesma coisa que existia no alojamento, porque lá, [...] era tipo um H. Lá na ponta tinha dois alojamentos, aí vem o corredor no meio, e até lá na ponta (faz o gesto com as mãos) lá, desse lado era mesma coisa igual no alojamento. Só que era uma sala de aula, tinha duas salas de aula, [...] uma de um lado e outra do outro, porque tinha bastante criança, né? 68 Rute - [...] era em um refeitório, tinha mesa e tinha cadeira, ele (professor) dava aula para todo mundo, pra todo mundo por igual, não tinha nenhum melhor do que o outro. Sobre o processo escolar, dois participantes mencionaram o uso da palmatória, para manter a disciplina das aulas, com a intenção de punir e coibir os “maus” comportamentos na escola, seja pela indisciplina, desobediência ou erro na lição, para forçar os internos a estudarem. João - [...] Ahm, ele não era de castigo, chamava atenção dele né, [...] aí o guri chegava até de chorar, dele fala, [...] Só na palmatória, isso eu vi, [...] só na palmatória. Pedro - Tinha disciplina, tudo no seu horário certo, não tinha esse negócio de... Porque você sabe que antigamente existia a palmatória, isso sempre existiu, agora que hoje não existe. Graças a Deus! Às vezes é preciso, porque, eu tomei muito bolo [apanhei], na sala de aula mesmo naquela, eu tomei muito bolo. O professor reunia a gente e tal, pegava a tabuada, mandava estudar, você: tanto mais tanto, tanto vezes tanto. Não sabia, se aquele respondesse, aí dava um bolo na mão daquele outro que não respondeu, mas isso tudo não era malvadeza. Na verdade, é o seguinte, que todos que saíram de lá, ninguém nunca reclamou [...]. Vale esclarecer que, no período de 1948 a 1965, em que os participantes relataram o uso desse instrumento, a palmatória ainda era permitida por lei. Foi introduzida no Brasil pelos jesuítas, e seu uso só foi abolido definitivamente com a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. As falas de João e Pedro mostram que eles introjetaram a agressão como algo natural e compreendiam que a obediência e o estudo levavam ao privilégio de não receberem castigos, o que os colocava em constante conflito, pois, caso não correspondessem à conduta imposta pelo professor, era aplicada a palmatória, instrumento utilizado como castigo. O professor, assim com os responsáveis pela organização e funcionamento da instituição, tinha autoridade, pois também fazia parte da classe dirigente. O fato é denominado por Goffman (1974) como arregimentação, representada por um sistema de autoridade escalonada, quando qualquer pessoa da classe dirigente tem alguns direitos para impor disciplina a qualquer interno, aumentando a possibilidade de sanções, levando os internos a viverem em constante angústia. A desobediência pode ser combatida por meio de maus-tratos físicos e psicológicos, humilhação, remoção para lugares piores, entre outras medidas. 69 A vida na instituição, para os internos para lá encaminhados, era regrada, marcada por tensão e angústia. Eles eram sujeitos a receber punição de todas as pessoas que detinham autoridade. 3.3.6 SAMC: Rotina O funcionamento da instituição pôde ser verificado de forma detalhada. Os depoimentos deram visibilidade à rotina na instituição, que era organizada para que todos realizassem as atividades estipuladas nos horários estabelecidos, seguindo as ordens de uma autoridade. As atividades dessa instituição estavam organizadas entre a horta e as atividades escolares, conforme expuseram Pedro, Tiago e Lucas. De acordo com Pedro, filho de funcionário, que viveu na instituição de 1958 a 1965, tinha horário para tudo. Logo que clareava o dia, os meninos seguiam para a horta, para molhar e cuidar, em seguida, tomavam banho e iam para o refeitório tomar o café da manhã, depois voltavam para a lida na horta. No período da tarde, os meninos estudavam. À noite, após o jantar, ficavam algumas horas na frente do prédio, brincando, até às 21h, quando seguiam para os dormitórios. Os meninos eram separados por alojamento segundo a idade. Os mais velhos, de 10 a 17 anos de idade, ficavam em um alojamento separado dos menores de 6 a 9 anos. Segundo o depoimento de Tiago, funcionário do SAMC, que vivenciou a instituição em 1968, às cinco horas da manhã os meninos eram acordados pelo administrador da instituição e iam correndo pelo mato para caçar. Ele enfatizou que os meninos iam descalços e que comumente cortavam os pés, enquanto que o administrador ia preparado e usava botas. Em relação ao período da tarde e da noite, a rotina estava vinculada a serviços também. O alojamento era composto por beliches e redes. Tiago - Cinco horas da manhã mandavam todos eles acorda e saia correndo pelo mato com eles, e ele com bota tudo preparado e as crianças era tudo descalço, cortava tudo o pé, tinha que ir, ele era ruim, sabe. Eu só sei que a vida ali era assim, aquele trabalho que eles faziam o serviço de dia e à noite era tristeza. [...] tudo era tipo alojamento, tinha beliche, rede, não lembro muito bem, isso é muito vago isso aí pra mim. O depoimento de Tiago desvela como eram cruéis as atitudes vivenciadas pelos internados. Enquanto a equipe dirigente estava protegida de cortes, arranhões, e outros perigos, os internos vivenciavam riscos de contusões, ferimentos, picadas de animais 70 peçonhentos, ou seja, riscos de morte. Esse cenário parece evidenciar o quanto a situação da criança ou adolescente considerado “menor” era negligenciada pela instituição e, consequentemente, pela sociedade e pelas políticas de atendimento a essa população. Lucas, interno da instituição, narrou que, em 1988, logo que acordava ia direto para a cozinha, assumindo o papel de subchefe. Quando o cozinheiro estava de férias, ele assumia o seu lugar. Quanto à rotina da instituição, durante o período da manhã havia faxina, atividades na horta e atividades físicas. No período da tarde, eles estudavam, e à noite, sempre havia alguma atividade como brincadeiras. Lucas- mas acho que fui direto pra cozinha, e acabei me tornando subchefe da cozinha né, eu quando a cozinheira ficou de férias, quando seu finado era meu tio nome ficou de férias eu que fiquei tomando conta,eu que fiquei na responsabilidade da cozinha, cheguei de ficar sozinho na cozinha, - faxina, faxina, é...cada um tinha uma área na horta, na chácara lá, e depois tinha a atividade física . Eu não me lembro, eu não tô conseguindo me lembrar se tinha escola, se tinha estudo, mas acho que tinha estudo lá, as professora que iam e voltavam parece. e a noite, tinha sempre as atividades,a brincadeiras nossa esconde-esconde, pegador, assim, a gente tentamos viver daquilo que a rua a droga não deixou nóis viver, mas na verdade é não foi fácil não. As falas dos participantes caracterizam semelhanças na forma de organização das instituições totais, principalmente por terem que cumprir com um calendário e cronograma estabelecido a todos, sem possibilidade de alterações. Ou seja, todos acordavam no mesmo horário, faziam as atividades programadas, como trabalho (horta, caçada, entre outros); escola e momentos de brincadeiras. Estas atividades eram sempre desenvolvidas sob a responsabilidade de alguém da equipe supervisora. Sobre essa questão, Goffman (1974) fala da padronização no tratamento e a obrigatoriedade de participação de todos os institucionalizados para garantir, em princípio, um melhor controle e vigilância sobre os internos. As atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois levam às atividades seguintes. As várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição. Esses dados remetem ao que Santos (2000) mostra em seu estudo referente à regeneração pelo combate ao ócio e a pedagogia do trabalho, moedas correntes no cotidiano do instituto. Tentava-se, a todo custo, incutir, nas mentes dos menores, hábitos de produção e convívio aceitáveis pela sociedade que os rejeitava. Por meio de contínuas seções de exercícios físicos, tentava-se doutrinar os menores para uma vida regrada e condizente com os desejos de uma cidade pautada pela lógica da produção. Dessa forma, o trabalho agrícola 71 Além de ser mais higiênico, porque é ao ar livre, e desenvolver pelo exercício as forças físicas, é o que mais absorve, sem fustigar, a atenção do menor. Enquanto cultiva a terra, enquanto contempla a natureza que o cerca e encanta, o seu espírito paira muito longe das idéias do mal, para concentrar-se naquelas outras, que elevem e nobilitam o homem. (MOTA, 1909, p. 31 apud SANTOS, 2000, p. 225). A partir dos depoimentos, vê-se que a rotina se transformou em um processo de mortificação, conforme destacado por Goffman (1974), pois ela enfraqueceu, de forma dissimulada, a autonomia e a liberdade de escolha dos internos. Pelas falas dos participantes, as obrigações diárias no SAMC tinham a finalidade de manter a ordem, segundo a ideia de que todos são iguais e, principalmente, para controlar a vida cotidiana dos menores. Ficou evidente que as atividades diárias da instituição pouco respeitavam a individualidade e a peculiaridade de menor institucionalizado, pois buscavam padronizar um determinado tipo de comportamento, a fim de manter a ordem na instituição e instruí-los e moldá-los de acordo com os padrões sociais estabelecidos à época. O trabalho na horta era apresentado como um instrumento de capacitação dos internos para o trabalho, com vistas ao seu retorno para a sociedade. No entanto, essa horta, por vezes, teve o papel de suprimento das necessidades da instituição na manutenção dos internados. 3.3.7 SAMC: os finais de semana De acordo com os depoimentos, a rotina nos finais de semana na instituição era diferenciada, pois nesse período havia visitas de familiares, a presença dos diretores na instituição, além de visitas da sociedade em geral e das entidades religiosas. Esses momentos foram descritos como ocasiões de confraternização com a sociedade e de cordialidade entre os dirigentes e os internos, sem muito controle. Também como um momento de diversão e resgate dos vínculos familiares, sendo recompensado em forma de verbas, investimentos, e permanência da instituição. Houve, ainda, manifestação sobre o fato de que a instituição buscava, nessas ocasiões, transparecer que desenvolvia um bom atendimento, estava preocupada com o cuidado e se dedicava à educação dos internos, para que eles não voltassem a ser um problema social. João - tinha tudo lá pra atendê final de semana. A gente tinha lá o pessoal que vinha lá visita né [...] era só final de semana. [...] Sim porque vinha bastante gente passar com a gente, [...] pessoas da cidade, e fazia um churrasquinho por lá, e passava o dia, levava alguma 72 coisa pra nós, um refrigerante, essas coisas todas, e passava um dia com a gente [...] brincavam, eram normal, ali era tudo tranquilo, [...] brincava bastante, final de semana de sábado pra domingo, brincava direto. [...]Não, não, era só o jogo de bola tal, o pessoal ia lá, e o final tarde o pessoal ia embora, e continuava tudo novamente. Pedro - [...] a missa sempre era aos domingos. O padre ia lá, fazia a missa lá, na capelinha lá, aí a turma ficava tudo fora porque a capela era minúscula. Aí rezava a missa lá, aí depois terminava a missa, aí era só correr pro abraço, jogar bola, brincar jogar bolita, [...] era para todo mundo da região, todo mundo da região dos sítio. O padre [nome] ia sempre lá, levava time de futebol pra disputar com os times das Trombas, os Trombas que eram mais conhecido, Trombas do macaco. [...] Assim a gente foi vivendo lá, acordava cedo, molhava as plantas aí era essa situação era uma rotina né, diariamente. Aquela rotina só mudava no domingo, [...] que, aí ia o pessoal fazer piquenique, naquele tempo tinha muito piquenique lá nas Tromba, que a piscina era grande e a água era corrente. [...] De tudo, era a sociedade, todo mundo ia pra lá, levavam bala, levavam a bolita, coisas pra as crianças lá, bolachinha, tudo pra criança. Madalena - Eu brincava porque era tudo do mesmo tamanho, tinha nome os meninos, que lá só era guri, e nós tomávamos banho, tinha as brincadeira, era um tal de falar chuléeee, rsrsr, Mas lá era bom, lá tinha a casa, os meninos ficavam num antigos dormitório grande, tinha beliche né [...]. Tiago - No dia de domingo, por exemplo, eles faziam umas apresentaçãozinhas lá, vinham pessoas de fora pra visitante, naturalmente parente ou alguma pessoa que sabia que existia essa festa lá né, comemoração, e o casal de americanos 10 ficava perto de uma piscina que tinha. A mulher ficava cortando cabelo das crianças pra dizer que era boa, mas na realidade não era nada disso, porque eu presenciava. Lucas - No domingo, um lazer com as famílias né. Chegavam lá 8 horas. Parece que ficava até 4 hora, 5 hora da tarde. [...] tinha, tinha, tinha, é tinha sim a (pausa) o alimento era um alimento com a família ahm..era um dia de lazer com a família, era somente cada um com a sua família, a integridade tudo, tipo uma união, tudo, todo mundo ali. Goffman (1974) esclarece que, para o interno poder vivenciar as “cerimônias institucionais”, devia comportar-se da maneira esperada pela equipe dirigente que, por sua vez, representava mais que um papel de supervisão. Já os internos apresentavam um comportamento de acanhamento e respeito, chegando a demonstrar um laço paternal entre os internos e a equipe dirigente. Assim, o final de semana no SAMC exibia as mesmas características das cerimônias institucionais mencionadas pelo autor. 10 Casal responsável pela organização e funcionamento da instituição SAMC, segundo o relato do participante Tiago. 73 3.3.8 SAMC: família Em relação à família, três temas apareceram como motivadores da inserção dos meninos no SAMC: o abandono, a delinquência e a falta de condições materiais para cuidar dos filhos. Pedro - Naquele tempo, tinha policia mirin, então esses guri que tava solto por ai na rua, ai eles pegavam e levavam pra lá, por que ficavam ai sem pai largado na ai na rua, como tem esses ai agora, só que tudo envolvido com droga né, então eles levavam pra lá, levavam pra lá, já que não tinham família nem nada por ai lá eles ficavam, até,o tempo, uns tentavam fugir né mas. Maria - teve menino que saiu depois voltou porque não tinha família, não tinha nada. Uns não tinha pai, não tinha mãe, outros não tinha condições de criar, outros eram dois que eram muito rebelde fugia de casa, ficava na rua ai depois voltava pra lá, só sei que quando eu sai de lá era 26 crianças,e quando eu entrei era menos, e essas 26 crianças agente cuidou, ai depois também não sei mais. Mateus- Era (pausa) naquela época eu tô falando delinquente porque [...]. é o termo que usava né, então eu não gosto de usar esse delinquência, porque a criança às vezes não é delinquente, quem é delinquente às vezes é o pai, que não soube levar, o pai às vezes é...usa bebida, usa droga, então ele não dá um amparo pro filho, não dá respeito pro filho, então o menino começa a pegar um caminho errado, entendeu? Então, quando a mãe quer fazer as coisas ela não faz, porque perdeu a força, o poder sobre aquele menor. Então, aí que acontece já o abandono, mas de não de pai morto, mas pai vivo, né, que fica perambulado na droga, na bebida, então destrói tudo o alicerce da família. [...] quando a família dizia, na época, que não tinha poder sobre o filho, aí a gente pegava ele e encaminhava lá pro SAMC, hoje Tromba dos Macacos, e esse trabalho foi feito continuamente, tá. [...] No SAMC, eles fazia o seguinte. A mãe autorizava a ida do menor pro SAMC - Tromba dos Macacos - e lá eles ficavam e as mães então iam de 15 em 15 dias, mês em mês, visitar os filhos né, aqueles que gostavam de ficar lá tudo bem, tinham alguns que não queriam mais, e queriam voltar, aí eles tinham que ir lá no fórum assinar um termo de responsabilidade, perante a justiça. Então o pai ou a mãe iam no fórum assinavam o termo de responsabilidade pra ele poder pegar o menor, né? E levar pra casa, sob já (pausa) já sob o cuidado dos familiares, né? É assim que funcionava a criação do SAMC [...] As crianças, a gente recolhia na Kombi, que era levado lá na Tromba dos Macacos, hoje é SAMC, né? Então daí a gente comunicava pra mãe e pai que essas crianças estavam lá. Se a mãe não quisesse, ela procurava na época o juizado especial de menores, assinava um termo de responsabilidade e a gente trazia o menor e entregava pra ela [...]. [...] tínhamos uma Kombi né, uma Kombi, e essa Kombi era encarregada de sair na rua onde tivesse um menor abandonado [...] Só o comissário, ou o pai ou mãe do menor, entendeu, que iam atrás deles, nunca envolvemos polícia no meio. Nem lá no SAMC, nunca envolvemos policial no meio, a não ser que era um caso muito, mas nunca usamos policial, usamos só o delegado de polícia [...]. 74 Ester- tinham família, mas eram na maioria meninos que cometiam furtos, que assim, daquela época eu não lembro de muitos, lembro de alguns,e, desses alguns vários já faleceram, outros estão presos, outros tem família,eles tinham família, mas assim, eles não tinham o vinculo familiar eles perderam então eles preferem acho que pelo uso de droga então eles perdem o vinculo familiar, e ai eles vivem na rua. Esses dados remetem ao que Londonõ (1991) mostra em seu estudo sobre a visão dos juristas em relação à família dos menores delinquentes, apontada como responsável pela desordem social provocada por seus filhos. Na opinião dos juristas a família que, cedendo aos vícios (álcool, jogo, vadiagem), não exerce sua autoridade e acaba corrompendo os filhos. Ainda segundo o autor, as mulheres que, aceitando as propostas obscenas dos homens, trazem ao mundo filhos sem pai, também promovem a desordem da moral social. No estudo de Marcilio (2006) sobre a criação de instituições totais de reclusão para a infância em situação de risco, sendo as famílias incapacitadas, despreparadas (ou inexistentes) para criar os filhos, o estabelecimento de internamento seria ideal para tirar a criança dos perigos da rua, do botequim, da malandragem e da vadiagem. Retirada da família e da sociedade, nas instituições as crianças encontrariam a educação, a formação, a disciplina e a vigilância que os preparariam para a vida social e para construírem as suas próprias famílias, segundo as concepções de amor e de preparação para o trabalho. O relato de Mateus evidenciou que a criança ou o adolescente que fosse detectado perambulando na rua sem o acompanhamento de seus pais ou responsáveis, em situação suspeita de atividade ilícita, era recolhido para o SAMC pelos Comissários de Menores, sem a participação de policiais. Mesmo não havendo a participação de policiais, verificou-se que a situação dos menores em Corumbá era também um caso de policia. A fala de Mateus trouxe o mesmo discurso utilizado pelos juristas para justificar a implantação das instituições de recolhimento no começo da República. Esse discurso, perpetuado por muitos anos, continha a visão de que a culpa dos problemas relacionados aos menores era principalmente vinculada à família, que não dava um bom exemplo, tampouco era capaz de educar seus filhos a partir dos princípios morais e dos bons costumes de uma sociedade de bem. 75 3.3.9 A sociedade Corumbaense Duas características foram notadas em relação à sociedade: a primeira, quanto à caridade que se efetivava através da contribuição para a manutenção e o funcionamento do SAMC, manifestada por meio de doações de alimentos, roupas, presentes e/ou dinheiro. A segunda, caracterizada pela lógica da ordem pública, quando a sociedade reclamava para as autoridades públicas sobre a presença dos menores abandonados e delinquentes perambulando pelas ruas, gerando transtorno e riscos à sociedade corumbaense. Mateus - [...] Olha, pelo que eu lembro, a sociedade reclamava muito dos menores abandonados, então por essa razão que foi criado esse modelo de de...dessa instituição SAMC, para poder tirar esses meninos da rua. [...]. Naquela época foi da... do juizado dos menores, então foi criado, foi um conjunto, né? Aí envolveu toda a instituição da nossa sociedade. Entendeu, né? Aí eles colaboravam com esse povo, né? [...] a sociedade daqui, né? Mantimentos, aquela coisa toda, até uma mais ou menos uns 20, 22 anos, o SAMC funcionou bem. Maria – Então, tinha vinte e pouca crianças. Acho que 22 e aí então, é que a gente viu que a despensa era praticamente vazia, aí a gente começou a pedir pra um, pedir pra outro, e assim a gente conseguir normalizar, normalizar essa parte, né? - [...] que quase não tinha doador nenhum. Aí fizemos uma horta boa, e aí, e aí como tínhamos a caminhonete, trazíamos no dia de feira e aí trazíamos, né? As coisas de lá e vendíamos na feira e era uma ajuda boa. Mateus recordou que a sociedade reclamava muito dos menores e, por essa razão, foi criada a instituição do SAMC, a fim de tirar os meninos da rua. A sociedade ajudava com mantimentos até mais ou menos 22 anos do SAMC, que funcionou de 1944 a 1966. A participante Maria, que vivenciou a instituição em 1962, relembrou que chegou a presenciar a despensa praticamente vazia, sendo necessário pedir ajuda da sociedade para normalizar a situação. Nesse sentido, Lucas já havia relatado anteriormente que as pessoas reclamavam e as autoridades recolhiam as crianças e os adolescentes considerados uma ameaça à sociedade. Novamente ficou claro que a instituição enfrentou dificuldades para sua manutenção, especialmente nos anos 1960. Como sugerido anteriormente, o fato deve estar ligado à crise econômica por que Corumbá passava. Na mesma linha da fala anterior de Lucas, na temática do atendimento e a junção da sociedade com as autoridades para recolher os “menores”, Santos (2000) narra sobre os menores que perambulavam pelas ruas, integrando as estatísticas da criminalidade e da delinquência nas ruas da cidade de São Paulo, causando problemas e transtornos à sociedade, 76 fatos comprovados nas matérias publicadas no jornal. Esse episódio remete à mesma situação apontada por Mateus, quando a sociedade reclamava da situação dos menores na rua, pressionando as autoridades a criarem a instituição SAMC. A preocupação da sociedade com crianças e adolescentes nas ruas estava relacionada aos perigos que representavam. A retirada dos menores das ruas efetivou assim, nas entrelinhas, uma “limpeza social”. Foram tirados do centro, onde havia uma maior movimentação populacional e econômica. Não era interessante que aqueles garotos fizessem parte da paisagem da cidade, pois desnudavam uma realidade que não desejavam que viesse à tona. 3.3.10 SAMC: Sistema de Punição e Sistema de Privilégio Sobre o comportamento dos internos, duas atitudes exercidas pela administração do SAMC ficaram visíveis, para manter a ordem e o bom funcionamento da instituição: a punição e o privilégio. João, que era interno da instituição, comentou que não havia castigo, apenas chamavam a atenção, levando o menino até a chorar, e que havia a palmatória. Segundo ele, dentro da instituição havia a separação dos meninos, uma turma que trabalhava na granja (trabalho leve) e a outra turma dos rebeldes, que trabalhavam com a ferramenta (trabalho pesado). João era da turma da granja e não soube informar ao certo o que ocorria com os meninos que trabalhavam com as ferramentas. João- Ahm ele não era de castigo, chamava atenção dele né, pra ele quando tava tudo ali, ai o guri chegava até de chorar, dele fala [...] Só na palmatória, isso eu vi. [...] Isso, Eu tinha que ficar com a outra turma que eram da granja que eram separados deles, que eles trabalhavam na ferramenta né, eu não trabalhava na ferramenta não lá, [...] Estudavam, estudavam, como eu falei, tinha a parte de de manhã, e a parte da tarde né, quem era da parte da manhã tudo bem, quem era a parte da tarde era a parte da tarde [...] Faziam a mesma coisa, [...] É separados, por qual motivo pra não ajuntar pra brigar com outro O Estatuto do SAMC, de 1947, esclarece a situação da separação. Os menores eram acomodados em dois pavilhões, conforme proposto no Art.14°, que determinava a separação dos menores considerados delinquentes daqueles considerados abandonados. Eles recebiam uma educação adequada às suas circunstâncias. Quando melhoradas as circunstâncias, passavam a viver com os demais internos do patronato. 77 Pedro, filho de funcionário, relatou que a instituição tinha uma disciplina rígida – lembrou-se do uso da palmatória. Lucas narrou que a instituição tinha um sistema de castigos e privilégios, vinculados ao tipo de comportamento assumido. Para aqueles que tivessem mau comportamento, havia um quarto no porão, em que o garoto ficava no escuro. Mas essa recordação, para Lucas, era um pouco confusa. Ele recordou também que, dependendo do comportamento, o menino ficava fora de alguma atividade como piscina, futebol, passeio na cachoeira. Sobre os privilégios, Lucas relembrou que, às vezes, os garotos que tinham bom comportamento podiam ir para a casa na sexta-feira, retornando à instituição na segunda-feira. Pedro - Tinha disciplina, tudo no seu horário certo, não tinha esse negócio de, por que você sabe que antigamente existia a palmatória, isso sempre existiu, agora que hoje não existe graças a Deus, as vezes é preciso, porque, eu tomei muito bolo (bater), na sala de aula mesmo naquela, eu tomei muito bolo, o professor reunia a gente, e tal, pegava a tabuada, mandava estudar, você tanto mais tanto, tanto vez tanto, não sabia, se aquele respondesse ai dava um bolo na mão daquele outro que não respondeu, mas isso tudo não era malvadeza, na verdade é o seguinte que todos que saíram de lá, ninguém nunca reclamou Pedro Rebelde sempre teve, mesmo porque aqueles que não queriam ficar lá, esses que pegavam na cidade, fugiam, ai viam atrás pegava na estrada e levava de volta, ai não fugia mais, porque sabe que iam atrás deles mesmo, então saiam os mais velhos, ai buscavam eles, ai faziam entender que aquele ali era melhor para eles, ai tinha tudo, no horário tudo certo. - uns tentavam fugir né mas... Lucas- De manhã tinha os afazeres a tarde tinha outra atividade né e assim, conforme o comportamento de alguns tinha algum privilégio é isso têm em todo lugar quem tem comportamento bom tem alguns privilégios, quem tem um comportamento mal tem algumas punição, isso nunca vai mudar, [...] Ahm era... Castigo lá, tinha um negócio..tipo um quarto lá lá num porão, e essa pessoa ficava lá, eu não me lembro muito bem mesmo, ou ficava fora de alguma atividade, parece que relembrando na minha memória é algo que ficava fora de uma atividade, fica fora de alguma piscina, futebol, essas coisa, passeio no.. na cachoeira lá, [...] Não, não, é..ouve eu não sei não me lembro bem, um, quando assim..passou do limite, passou do limite,assim, ouve umas duas vezes a três vezes, mas nada que pudesse resolver ali mesmo né, Graças a Deus não teve danos nenhum né. Lucas- porque as vezes as pessoas que chegavam ficavam três a quatro dias, depois fugiam de novo, [...] Fugia, porque a gente que vem do vicio, é muito difícil [...] . Lucas- Eu lembrando também acho que as vezes nos podia ir quem tinha um bom comportamento podia ir pra casa na sexta, é só voltava na segunda, eu acho que era assim é... todo mês é... toda semana ia dois passava um final de semana e depois voltava. 78 Tiago não presenciou nenhuma punição, mas ouviu dos meninos alguns casos de castigos. Um deles foi quando o diretor do SAMC levou a compra para a instituição e pediu para os garotos formarem uma fila, porém um garoto não obedeceu. O diretor pediu mais uma vez e o garoto o xingou. O diretor, então, pediu para o garoto ficar próximo do jipe e começou a chicoteá-lo para que aprendesse a respeitá-lo. Tiago repetiu que não havia presenciado a cena; apenas soube por um interno. Tiago- me contaram que o diretor do SAMC, era o diretor,é que levava acho que ele que levava compra,aqueles negocio, então ele era muito bom na época,não era ele que estava lá quando eu estava lá, e um dia ele chegou e pediu pro cara mandar formar os guri e tinha um rebelde lá,dizia eu não for formar nada, ai ele falou com o guri e o guri xigou ele sabe, xingou ele,e ele era tão bom,ai nesse dia mandou pega ele,ai pegaram ele, põe ele aqui,pois ele no jipe dele,isso ai eu não vi,isso me contaram o que aconteceu lá, pegou um chicote, ai disse larga ele, ai largou e ai começou chicoteou o guri no chicote ai depois disse isso ai é pra quando eu falar com você é pra aprender a respeitar. Uma questão comum entre os participantes referente a essa temática (castigos e privilégios) foi o processo de fuga. Cada um expôs alguma situação, que às vezes se entrecruzava com outra narrativa. João e Pedro disseram que, quando os menores fugiam, eram capturados e não havia punição, somente conversa, para que entendessem que não era permitida a fuga. No entanto, João disse que os meninos, no meio da conversa, se punham a chorar. Apesar de os participantes não relatarem o motivo pelo qual choravam os meninos, a hipótese é de que havia algum tipo de punição. Mesmo que não estivesse evidente a violência física como forma de punição, poderia haver a violência psicológica, num processo de mortificação do eu, conforme explicitado por Goffman (1974). João- [...] fugiu por dentro da maninha( risos) , entrou por dentro do maninhão saiu não sei da onde e foi embora, [...] ahm por que era um muleque safado mesmo, não queria ficar lá e não tinha como sair ,então na hora do banho, esse ai era da parte da tarde cinco hora ia tomar banho,ai essa era a hora,[...] ahm, eles iam atrás, seu nome ia atrás ia atrás , no lugar onde morava, [...] não fazia nada, chegavam conversava com eles lá, conversava com eles, pra poder voltar com ele, ai voltava, e ficava numa boa. João- Ahm ele não era de castigo, chamava atenção dele né, pra ele quando tava tudo ali, ai o guri chegava até de chorar, dele fala [...] Só na palmatória, isso eu vi. 79 Tanto Maria, que era membro do conselho consultivo do SAMC, quanto Madalena, filha de funcionário, testemunharam que havia uma marca que representava um castigo para aqueles que fugiam da instituição, que era raspar o cabelo dos considerados “fujões”. Madalena – Fugia, raspava a cabeça. Maria- Eu sei que teve menino que fugiu. Ester e Rute, que vivenciaram a instituição como funcionárias no período de 1980 a 1990, depuseram que os garotos fugiam da instituição para fazer uso da droga. Porém, eles eram capturados e obrigados a retornar para a instituição. Ambas garantiram que os agentes policiais estavam lá apenas para a segurança dos funcionários, dos menores, e não para a punição. Rute- tinha cobertor, tinha calça, casaco, tudo. Mas só que eles pegavam e vendiam trazia pra cá por causa da porcaria (se refere ao uso de droga) fugiam da gente, e dona Maria Pedrossian não autorizava a gente e os policiais judiarem deles né, pesquisadora; Lá trabalhava policial? Não, era só pra segurança nossa, nossa segurança, não pra segurar eles. Ester- eu não sei se a horta chegou de dar alguma coisa, mas tinha sim, era até uma horta grande, pra eles, mas pra eles era mais difícil despertar neles o gosto pelas coisas, [...] Eles não fugiam muito de lá não, eram poucos que tentavam fugir, eles não ficavam num lugar fechado eles tinham liberdade lá dentro, eles tinham pelo menos no período que eu estive lá eles saiam por 15 dias 20 dias voltava, ficava lá por um tempo e depois voltava, então era essa a rotina, [...] Tinha um rapaz eu não recordo o nome dele que era como se fosse..uma pessoa responsável pra ficar ali cuidando deles, no sentido de não deixar fugir, se ferir, porque eles tentavam né, como eles usavam droga né, mas não pra punição. Goffman (1974) define a relação de castigos e privilégios nas instituições totais. O privilégio pode também representar a ausência de privações que comumente a pessoa não espera sofrer. Os internos criam mecanismos para a adaptação no meio institucional, buscando garantir, no seu cotidiano, o beneficiamento por esse sistema de privilégio, bem como não sofrer castigos e mutilações em seu eu, nesse caso, “ficar careca”. Uma estratégia utilizada por Lucas na busca de um sistema de privilégios foi aliar-se à equipe dirigente. Lucas: Uma vez fugiu todo mundo. E eu saí com o segurança, o agente que era responsável lá, que era um dos que cuidava lá, era agente oficial [nome 80 do agente]. Cheguei de sair com ele pra poder recuperar um daqueles jovens lá, conseguimos recuperar uns três, e levar de volta, mas já viemos recuperar lá no Urucum. Já, uns quatro ou cinco quilômetros de distância já. Aí, foi, foi muito bom, Graças a Deus. Segundo Goffman (1974), essa situação está ligada à tática de intransigência, pois o interno coopera com a equipe dirigente como mecanismo utilizado para adaptação ao meio institucional, a fim de garantir benefícios no cotidiano, ou mesmo para não sofrer castigos. 3.3.11 Viver no SAMC. Sobre o tema “O que foi viver no SAMC”, as respostas obtidas foram de que a vida na instituição era muito boa, demonstrando um sentimento de aparente gratidão ao SAMC, aos serviços oferecidos na entidade, desde a educação até o aprendizado de um ofício. João - Ah, pra mim eu gostei, por causa do velho lá. Ele ensinou bastante coisa pra gente, explicava, eu gostei daquele lugar, do ensino e sobre o ensino que deu pra [...]. O estudo, é verdade [...]. Foi bom, bom mesmo. Pedro - Eu às vezes converso com a minha esposa, dizendo, poxa vida, se eu pudesse voltar atrás né, o lugar que eu gostaria de estar é o SAMC. [...] Lá todo mundo era igual, né? [...] A regra era pra todo mundo, pra escola, pro trabalho, e de lá você vê, não saiu um cara que não prestasse, um ladrão, ou coisa assim, saiu todo mundo direitinho [...]. Lucas - [...] Uhum, (vibrou) senti alegria, porque nunca tinha morado nem vivido no mato, nunca tinha morado fora da cidade, a primeira vez que tinha acontecido isso [...] Uhm...[pausa] foi um bom projeto do governo, de todos que tiveram envolvido no projeto foi um bom projeto.[...] Como todo investimento, tipo uma Fundação Bradesco, o SAMC por si, da maneira que estavam, tem que ter mais...mais oportunidade de profissões para os que vão ser internado lá ou passar por lá [...]. Essas falas remetem à mesma questão de apropriação do discurso da instituição, como exposto nos estudos de Negrão (2002), Vasconcellos (1997) Rosa (2003), Quintãns (2009) e Silva e Mello (2004), que incluem narrativas sobre vivências nas instituições denominadas como Asilo, Internato, Casa-Lar ou Abrigo. Sobressai o caráter de gratidão dos internos, repetido através de um discurso assistencialista-caritativo apregoado, principalmente, pela instituição como uma mãe que os acolheu, quando mais precisaram, tirando-os dos perigos e moléstias da rua. Tais instituições seriam um lugar de proteção, para que se estivesse a salvo de perigos ou que contribuísse para a geração de homens de bem, discurso também 81 apresentado por João, Pedro e Lucas, que acreditam que o SAMC foi uma instituição muito boa. Esses discursos referendam o que Goffman (1974) caracteriza como a tática de adaptação, representada pela tática de colonização. Concretiza-se quando a instituição representa ao interno como um todo e esse mínimo apresenta-se satisfatório; é a referência do mundo externo, utilizada para demonstrar o quanto a vida na instituição era desejável. 82 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo teve por objetivo analisar a história do atendimento a meninos institucionalizados do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), evidenciando o processo de funcionamento da instituição, com a finalidade de conhecer o seu papel social. Para a análise, utilizamos o olhar do sociológico Erving Goffman, que contribuiu para compreender o processo do funcionamento da instituição em estudo, a partir dos conceitos centrais das instituições totais como a padronização, o controle e a vigilância, a relação de tensão entre a equipe dirigente e o internado e as formas de mortificação do eu. Mais ainda, as considerações do autor favoreceram um entendimento sobre o sistema de castigos e privilégios, a constituição das cerimônias institucionais e o momento da saída do interno da instituição total. A partir de 1944, a cidade contou com uma instituição que visava a prevenir os males sociais, amparando a infância desvalida e transviada, instaurando um estabelecimento destinado à internação e à educação de menores, assim como aconteceu também na história do atendimento institucional no Brasil. Em especial, de meados do século XIX ao século XX, era forte o discurso em defesa incondicional da criança, “gênese da sociedade”. Porém, uma leitura minuciosa patenteou que a defesa era, na realidade, em favor da sociedade contra essa criança, que se tornava uma ameaça social à ordem pública. Tal defesa era expressa por meio da criação e expansão de instituições de atendimento a crianças e adolescentes sem família, que passavam a viver sob o rígido controle de uma formação socioeducativa, em um modelo de educação voltada para o trabalho. A intervenção do Estado se fez mais atuante, impregnada de conceitos de ordem, moral, repressão e preparação para o trabalho, como discutem Pilotti (2011); Arantes (2011); Marcílio (2006); Rizzini, Irene (2011); e Moraes (2011). O SAMC portava características das colônias agrícolas, pois ficava afastada dos centros urbanos, na zona rural. Os menores que perambulavam sozinhos pelas ruas, sem acompanhamento de seus genitores e desprovidos de documentação, além dos menores que cometiam furtos, envolvidos com o mundo do crime, considerados “delinquentes”, “vadios” e “vagabundos”, eram recolhidos e ficavam internados na instituição. O modelo institucional estava baseado na ação educativa (vinculada à aprendizagem das primeiras letras e à formação moral) e na preparação para o trabalho (desenvolvimento de atividades agrícolas). Tal modelo 83 era considerado mais eficaz na formação dos internos, pois os retirava da rua, meio considerado deletério, bem como suprimia o ócio, através de atividades laborais. A instituição, por muito tempo, foi impulsionada e financiada pela sociedade, que entendia que essa era a solução para a minimização dos males que assolavam a sociedade e a cidade, que vivenciava um momento de auge econômico. Para atender às solicitações da sociedade, a instituição propunha-se a formar hábitos para conservar e aprimorar a saúde social, bem como para fortalecer o aprendizado da moral e de ofícios, com o propósito de inserção no mercado de trabalho, ou seja, para que os internos se tornassem pessoas de “utilidade social”, e não mais um “problema social”. A instituição era gestada por uma equipe dirigente que não vivenciava cotidianamente a instituição. No entanto, durante seu funcionamento, mantinha uma família responsável pelo cuidado e pela ordem da instituição e dos menores. A dinâmica do SAMC sofria mudança somente durante os finais de semana e/ou em momentos de festividade, quando era aberto para a sociedade, familiares e entidades religiosas. Nessas oportunidades, as atividades da instituição eram preenchidas com lazer, piquenique e apresentações, diferentemente da vida diária, marcada pelo estudo e pelo trabalho. A abertura do SAMC para as festividades e nos finais de semana parece caracterizar uma demonstração de que a instituição mantinha um funcionamento perfeito, harmonioso e preocupado com a educação dos internos, para que fossem devolvidos à sociedade livres dos males que os tornaram institucionalizados. Reforçava-se a ideia de que as doações eram necessárias para que a instituição conseguisse se manter e cumprir o seu papel educador. Era essencial o processo de ajuda mútua, ou seja, a sociedade pagava, através de donativos, a “limpeza da cidade”, enquanto que a instituição mantinha os internos sob controle. Notou-se esse controle nos depoimentos em relação à vida diária. A instituição mantinha uma regra que era cumprida por todos, sob a vigilância de funcionários. O número de funcionários era escasso, em relação ao número de internos. A consequência dessa discrepância era que todos deveriam cumprir as atividades programadas no tempo exigido, pois logo viriam as atividades seguintes, que também deveriam ser cumpridas por todos no lugar e na hora marcados. A relação entre internos e equipe de dirigentes foi expressa, pela maioria, como uma relação de cordialidade. Porém, lendo nas entrelinhas, ela era realmente marcada por tensões no processo de mortificação do eu, seja pelo controle através de violência física e/ou psicológica, denunciada pelas punições, humilhação, maus-tratos físicos e emocionais, seja 84 pela construção de mecanismos de adaptação do interno ao meio institucional, na tentativa de não sofrer punição e garantir, no cotidiano, benefícios por meio dos privilégios. Outra forma de mortificação do eu constatada no SAMC esteve relacionada à ausência de autonomia e liberdade dos internos, sempre enfraquecidas nas e pelas atividades diárias no processo de arregimentação. O discurso de alguns de nossos participantes estava embebido das ideias de seu tempo, seja pelo caráter moralizador, seja pela culpabilização da família, ou pela educação através do trabalho, numa perspectiva saudosista. Outro fato que merece destaque é a aparente gratidão pela instituição, o que parece caracterizar um processo de colonização, ou seja, a instituição, apesar do tempo, é referência, principalmente em relação aos dias agradáveis de festa. Assim infere-se que a criação da instituição teve o papel social de higiene social, pois efetuou a “limpeza da cidade”, retirando de circulação os menores que perambulavam pelas ruas, assim como ocorreu em outras cidades do Brasil. Dessa maneira, o objetivo da presente pesquisa, de analisar a história do atendimento a meninos institucionalizados do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), com a finalidade de conhecer o papel social da instituição e o tipo de atendimento prestado por ela, foi atingido. No processo de garimpagem e montagem deste estudo, novas questões foram evidenciadas, que poderão fazer parte de uma nova colcha, entre elas: Como se deu o processo de entrada na instituição? Quais foram as histórias dos internos durante o processo de institucionalização? Como ocorreu o processo de desinstitucionalização dos internos? Esses temas trariam novos complementos à dissertação, ampliando o seu alcance, atingindo novas extensões. 85 REFERÊNCIAS ALBERTO, Isabel. Como pássaros em gaiolas? Reflexões em torno da institucionalização de menores em risco. In: MACHADO, Carla; Rui. Abrunhosa. Gonçalves (Coords.), Violência e Vítimas de crime, v. 2: Crianças. Coimbra: Quarteto, 2003, p. 223-244. ANDRÉ, Marli Elisa; LUDKE, Menga. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. ARANTES, Esther Maria Magalhães. Rostos de crianças no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. (Orgs). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3. ed. São Paulo, 2011.p.153-202. ARPINI, Dorian Mônica. Repensando a perspectiva institucional e a intervenção em abrigos para crianças e adolescentes. 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