AJUDA UM POUCO - Médicos do Mundo

Transcrição

AJUDA UM POUCO - Médicos do Mundo
QUEM CONTA UM CON TO,
AJUDA UM POUCO
VOLUME 1
Este livro de contos é-vos destinado para um dia saberem que serão
mais e melhores pessoas se souberem dar muito mais do que o que
recebem. Estes contos foram feitos por um grupo de autores e por um
ilustrador a quem Médicos do Mundo agradece profundamente. Estes
autores e ilustrador também foram meninos e meninas como vós e
hoje estão a oferecer-vos um pouco de si.
Um dia um menino nasceu e viveu em várias cidades e vilas de
Portugal. Esse menino cresceu e acompanhou a sua mãe, que era
Assistente Social, em muitas visitas a famílias que viviam em extrema
pobreza. Esse menino brincou com muitos outros meninos que viviam
nesses bairros e fez aí muitos amigos. Um dia, o menino estava a ser
atacado pelos seus colegas de escola, de quem era amigo e com quem
vivia no mesmo bairro. Ao ser atacado pelos seus colegas, aproximou-se
um menino seu amigo e do bairro que sua mãe visitava e defendeu-o
dos seus próprios amigos. Digam lá quem foi o verdadeiro amigo? Se
tiverem dúvidas procurem conhecer os meninos de outros bairros.
Sejam felizes e façam muitos amigos.
Rui Portugal - Médico
Presidente de Médicos do Mundo - Portugal
FI CHA T É CNIC A
título
Quem conta um conto, ajuda um pouco
edição
Médicos do Mundo - Portugal
autores dos contos
António Torrado
Clara de Sousa
Miguel Vale de Almeida
Rosa Lobato de Faria
Rui Zink
ilustrações
João Alves Baptista
design
Patrícia Flôr
Sónia Henriques
ideia original
Enrique Mazzarelli
coordenação editorial
Florbela Cordeiro
Sandra Costa
angariação de patrocínios/apoios
Rosa Pereira
Sara Peres
impressão
Sersilito - Empresa Gráfica, SA
exemplares
5000
ISBN
972-95606-3-3
NOTA D O EDITOR
A edição deste livro de
contos infantis resulta do
trabalho voluntário de um conjunto
de profissionais que contribuíram com o seu
talento e experiência para tornar este projecto uma
realidade. Os autores ofereceram a Médicos do Mundo
um conto original, excepção feita no caso do conto “O cão e o gato”,
de António Torrado, anteriormente publicado no site
www.historiadodia.pt. O ilustrador concebeu a totalidade dos
desenhos deste projecto. O design é de duas voluntárias que já
participaram em edições anteriores de Médicos do Mundo –
Portugal. Nos contactos com os escritores contámos com o apoio
de Ivone Dias Ferreira e Marta Curto.
A todos os que contribuíram para esta edição e às entidades que
apoiaram a sua produção o nosso muito obrigado.
ISBN-13
978-972-95606-3-7
depósito legal
978-972-95606-3-7
Médicos do Mundo - Portugal 2006
Os fundos angariados com a venda deste livro serão canalizados para
o projecto de saúde materno-infantil "Casa das Mães", que Médicos
do Mundo desenvolve em Timor-Leste.
Contamos com o seu apoio.
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O
pardal que queria ser anjo
ROSA LOBATO DE FARIA
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O cão e o gato
ANTÓNIO TORRADO
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A escola do ar
MIGUEL VALE DE ALMEIDA
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co-íris
O mais melhor bom reino da bola
RUI ZINK
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rco e o Marco
a
O
CLARA DE SOUSA
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Sobre Médicos do
60
Sobre os autores
Mundo
RO
O
SA
LO
6
BA
TO
DE FA IA
R
pardal que queria
ser anjo
Há dois dias que a Joana não aparecia na escola. As amiguinhas dela,
a Vera e a Madalena, começaram a ficar preocupadas, pensando que
poderia estar doente. Sabiam onde ela morava porque às vezes o pai
da Vera dava-lhe boleia até casa. A Joana não tinha pai nem ninguém
que a fosse buscar à escola: a mãe tinha dois empregos e não conseguia despachar-se a tempo.
Foram então as duas lá a casa, ao último tempo, quando a professora
faltou. Pelo caminho entretiveram-se num banco a comer o lanche.
Nesse instante, nas costas do banco, pousou um pardal.
Elas admiraram-se porque os pardais são muito assustadiços e nunca
pousam tão perto das pessoas. Mas ficaram quietinhas na esperança
que ele não fugisse.
Mas o pardal não queria fugir, queria conversar, o que era ainda mais
estranho.
- Olá, disse ele.
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- Olá. Queres uma migalhinha de pão?
- Não. Quero ser anjo.
As duas amigas iam caindo do banco de tanto espanto.
- Tu falas e ainda por cima queres ser anjo?
- Todos falamos, mas são raras as pessoas que nos entendem.
- E para que é que queres ser anjo?
- Para fazer bem aos outros. Afinal eu também tenho asas e bom
coração, que é basicamente o que têm os anjos. Se as minhas asas crescessem e ficassem mais branquinhas eu bem podia ser anjo.
- E o que tencionas fazer?
- Entrei a voar na igreja e perguntei ao Santo António se havia uma
receita especial, e ele disse-me: faz boas acções. Mas que
boas acções posso eu fazer?
- Vem connosco, disse a Madalena. Vamos agora mesmo visitar a
nossa amiga Joana que deve estar com um problema qualquer, pois
há dois dias que não vai à escola. Quem sabe, talvez possas ajudar...
Foram os três.
O pombo, que empoleirado numa árvore ouviu toda a conversa,
ficou cheio de raiva.
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- Que pretensioso, aquele pardal idiota. Vou chamar o meu "gang" e
fazer tudo para impedir "as boas acções" daquele palerma. Ele vai ver.
Quando chegaram a casa da Joana perceberam qual era o problema dela.
A mãe estava de cama e como trabalhava a dias não ganhava nada há
quase uma semana e elas não tinham o que comer.
A casa era muito pobre. Entrava frio por todos os lados e por um
vidro partido e a mãe da Joana tinha apanhado uma pneumonia. Não
queria ir para o hospital porque as crianças não podiam ficar sozinhas:
além da Joana havia um pequenino e um bebé que tinha de mamar.
O pai tinha ido procurar trabalho para Espanha e há que tempos que
não dava notícias.
As meninas repararam que já não estava frio. O pardal
tinha tapado o buraco do vidro com palhinhas e pauzinhos
como quem faz um ninho. Depois saiu e trouxe uma maçã no bico. E
depois outra e depois outra. Foi buscá-las a uma quinta ali perto onde
não morava ninguém. Porque as coisas que se vêem do ar são uma
grande ajuda para quem se encontra no meio de uma aflição.
Chegou a vizinha, que era uma curandeira, e disse:
- Se eu tivesse a erva "salsiprata" fazia-lhe um chá que a curava
num instante. Mas essa erva só há na montanha fora da cidade:
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é verde e prateada e tem uns bagos
cor de mel.
Mal ela disse isto o pardal saiu a voar
pela porta fora e as meninas disseram à
amiga:
- Este pardal é mágico. Não viste como
ele consertou a janela? Como trouxe as
maçãs para a tua mãe? Ele agora foi
buscar a erva que a há-de curar. É só
esperar que ele não se demora.
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o
Com o que o pardal não contava era com a maldade do pombo e
do seu grupo. Seguiram-no até ao alto da montanha e quando o pardal
já estava a vislumbrar a erva lá em baixo, começaram a atacá-lo até que
pardal caiu, muito ferido e sem forças nenhumas.
- Ai querias ser anjo, não querias? Pois agora és o anjo caído! E a rir
às gargalhadas foram-se embora e deixaram-no num buraco da
montanha.
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Entretanto a Vera e a Madalena juntaram uns dinheirinhos que ainda
tinham da semanada e foram à farmácia comprar aspirina
e à mercearia buscar leite e cereais. Não chegou para mais nada, mas
pelo menos a Joana, o irmão e a mãe não iriam dormir sem comer.
Depois conseguiram finalmente telefonar aos pais para avisar que as
fossem buscar ali e não à escola.
Veio o pai da Vera. Chegou com dois sacos de supermercado e a
promessa de voltar no dia seguinte com um médico.
- O que será feito do pardal? perguntavam elas. De certeza
que ele traz a erva, a menos que lhe tenha acontecido alguma coisa...
O pobrezinho estava muito mal porque lhe tinham partido as asas
e não podia voar. Mesmo assim foi a pé, com os seus passinhos pequeninos até junto da erva, que já tinha avistado do ar e, como pôde,
colheu um grande ramo com o bico. Depois ficou exausto e deitou-se
a pensar como é que o havia de transportar para casa da Joana.
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- Se eu fosse anjo, pensava ele, se em vez de ter asas pequenas e castanhas tivesse asas brancas e grandes, punha-me lá em duas ou três
esvoaçadelas. Mas assim, tão pequenino e com as asas partidas,
não posso fazer boas acções nem que o meu coração esteja a transbordar de amor. Talvez eu tenha sido demasiado ambicioso. Talvez eu
tenha pensado que tinha forças para tarefas que afinal não tenho. Fui
pretensioso e agora recebi o castigo. O pior é que a mãe da Joana
também está a ser castigada por minha culpa. Sou um pardal muito
estúpido, que não devia querer ser mais do que um simples pardal.
O pombo é mau, mas tem razão.
E nisto alguma coisa tapou o sol e eram as asas abertas de um Anjo
que pousou junto dele e o segurou com muito cuidado nas mãos
quentes.
- Pardalito, disse o Anjo. Ganhaste as tuas asas de "anjo - enfermeiro" por teres tanto amor no coração e tanta vontade de ajudar os
outros. Vou curar-te e levar-te, a ti e às tuas ervas, a casa da Joana. E
amanhã, quando nascer o sol, verás como as tuas asas são brancas e
o teu coração terá o dom de curar.
Disse-lhe ainda que ia castigar os pombos: ia tirar-lhes as asas e transformá-los em ratos. Mas o pardal pediu por tudo ao Anjo que não o
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fizesse, porque ele agora sabia por experiência própria o horrível que é
ter asas e perdê-las, trocar a liberdade do céu pela sujidade do esgoto.
Que ninguém merece tal castigo e há sempre
esperança de que um malvado se possa emendar.
O Anjo sorriu de tanta generosidade e pensou que o pardal merecia bem ganhar as suas asas brancas.
Deixou-o na beira da cama da doente com o seu molho de ervas e
a vizinha apressou-se a preparar o chá que não tardou a fazer efeito.
De manhã muito cedo a Vera e a Madalena, antes de irem para a escola,
foram a casa da Joana para saber notícias e ver se era preciso alguma coisa.
A situação tinha melhorado muito.
Mas o que mais as encantou foi ver uma silhueta, toda
branca junto à cama, a tomar a temperatura à testa da doente.
Pensaram que era um médico com a sua bata branca, mas então ele
abriu as grandes asas que encheram todo o quarto e disse:
- Não se assustem, sou apenas o pardal.
Qualquer pardalito medroso se pode transformar em anjo. É somente
uma questão de amor. Amem, ajudem, sejam solidários
e verão como as vossas asas brancas podem transformar o mundo.
Os maiores voos estão no coração.
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Ó
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ão e o gato
c
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A
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O cão e o gato não eram amigos, mas faziam de conta. Viviam
ambos abrigados no casebre de uma pobre velha, que com eles repartia o pouco que tinha.
- Sejam amiguinhos. Sejam
amiguinhos
- estava sempre ela a dizer-lhes.
Pela comida e dormida os dois incorrigíveis inimigos aturavam-se.
Que remédio.
Um dia, a velhota morreu. Vieram os filhos, vieram os netos e enxotaram-nos do casebre.
Cão e gato, tristes por terem perdido a sua protectora e o mínimo
de conforto que ela lhes proporcionava, ficaram a rondar a casa, mas
cada um para seu lado. "Sejam amiguinhos. Sejam amiguinhos", ainda
lhes soava nos ouvidos.
Choveu. Fazia frio. Tiritantes e cheios de fome,
acolheram-se a uma gruta. Era uma gruta muito comprida, tão comprida
que eles se internaram por ela adentro, à procura nem sabiam de quê.
TO
RR
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O
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Cada vez mais fundo,
cada vez mais longe do mundo que conheciam, foram ter a
uma clareira iluminada. No meio, sentado nas pernas cruzadas,
estava o Génio das Cavernas.
- O que querem de mim? - perguntou-lhes o Génio.
A bem dizer, eles não queriam nada a não ser um dono, comida,
calor, carinho. Foi o que pediram.
- Concedido - disse-lhes o Génio - Com uma única condição: cada
um transforma-se no outro.
Eles, a princípio, nem entendiam a proposta, mas quando perceberam que o gato tinha de passar a cão e o cão, a gato, protestaram com
toda a gana.
- Eu não quero ser cão - bufou o gato.
- Eu não quero ser gato - rosnou o cão.
Nada feito. Ou aceitavam a troca ou acabariam por morrer, à fome
e ao frio.
Lá se resignaram à mudança, já que a alternativa também não era
muito apetecível.
O Génio executou a magia e o gato passou para a pele de cão e o
cão para a pele de gato. Esquisito.
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Correram ambos na direcção da entrada da gruta, ainda assarapantados.
- Que
cãozinho e que gatinho tão bonitos.
Posso levá-los para casa? - perguntou uma menina ao pai.
- Os cães e os gatos não se dão bem uns com os outros - apressouse a explicar o pai.
- Mas estes dão-se. Tão juntinhos. Tão amigos disse a menina.
Era verdade. Cada um olhava para o outro como se fosse ele próprio.
Ora, como é que uma pessoa ou um bicho pode dar-se mal com ele
mesmo?
E assim o gato-cão e o cão-gato arranjaram uma
nova dona. À noite, enroscados um no outro,
não se sabe onde começa o cão e acaba o gato.
Fizeram-se, realmente, amigos.
Até pode acontecer que, um dia, o Génio das
Cavernas lhes devolva as respectivas identidades
e o cão volte a ser cão e o gato volte a ser gato.
Mas valerá a pena?
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o arco-íris
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Como é costume dizer-se, "era uma vez"... Era uma vez uma escola
chamada Escola do Arco-Íris. A professora Ana gostava muito das
crianças e estas davam-se muito bem entre si. Quer dizer, às vezes
zangavam-se - ui, se se zangavam! - como todas as
criaturas grandes e pequenas, mas no fim lá faziam as pazes e iam fazer
coisas bem mais interessantes, como
correr,
saltar
e pregar partidas.
As crianças também gostavam muito da professora e poucas vezes
se portavam mal. Quer dizer: portavam-se mal às escondidas, que é
uma coisa que as crianças sabem fazer muito bem... Mas a verdade é
que não queriam perder pitada das histórias que ela contava. Sim,
porque a professora Ana passava a vida a contar histórias:
ensinava as contas de dividir com uma história sobre um grande bolo
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de aniversário e o número de crianças que o iam comer; ensinava a
gramática com uma história sobre um menino que ninguém entendia até que lhe ensinaram a dizer as coisas como deve ser; até ensinava as ciências da natureza com uma história muito
engraçada sobre uns pinguins que se tinham perdido no
mar e tinham ido parar a um sítio muito quente que não era nada
bom para eles e que ficavam muito contentes ao voltarem para a sua
terra muito fria.
A vida na escola do Arco-Íris era muito divertida
porque a professora Ana, além de contar histórias, também pedia às
crianças para contarem as suas. Todos os dias cada uma das crianças
tinha que trazer uma história preparada para contar. Às vezes as crianças traziam histórias sobre o que quisessem: sobre uma ida à praia,
sobre uma visita ao jardim zoológico, sobre um sonho que tivessem
tido... e às vezes até sobre algum pesadelo, que a melhor maneira de
o esquecer era contá-lo para toda a gente se rir daquelas histórias de
monstros e fantasmas.
Certo dia, a professora Ana disse: "Meninos, este fimde-semana quero que escrevam uma história sobre as vossas famílias.
Escrevam sobre o vosso pai e a vossa mãe. Assim quando chegar o
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Dia da Mãe e o Dia do Pai já têm uma história bonita para lhes dar de
presente". A criançada ficou toda satisfeita. Afinal, haverá coisa melhor
do que escrever sobre as pessoas de quem mais se gosta? Claro que
não - e ainda por cima era fácil! E não era preciso inventar nada!
Quando, na segunda-feira, as crianças voltaram à escola, traziam
todas as suas histórias muito bem escritas. Quer dizer: escritas com
uma letra ainda um bocadinho esquisita mas, que diabo!, ainda estavam a aprender. "Escreveram as histórias sobre o Pai e a Mãe?", perguntou a professora Ana. As crianças gritaram entusiasmadas
que sim e puseram o dedo lá bem no ar.
A Sandra, que levantou o dedo e o braço e o corpo todo
mais alto que os outros, levantou-se logo, pegou na folha
de papel que trazia consigo e começou a ler em voz bem
alta: "O meu pai chama-se Rodrigo e a minha mãe
chama-se Rita. O meu pai trabalha todo o dia no escritório e quando chega a casa eu já tomei banho e ele
ajuda-me a pôr a mesa para o
jantar. O meu pai é muito divertido e gosto
muito de andar de bicicleta com ele. A minha mãe
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é muito, muito bonita. Gosto quando ela conta a história de como
eu nasci da barriga dela depois de o meu pai ter lá
posto uma semente. A minha mãe também trabalha num escritório
e quando chega a casa dá-me banho e faz o jantar e à noite conta-me
uma história".
Depois foi a vez do Sérgio:
"A minha mãe é a Cristina. Eu gosto muito dela.
A minha mãe trabalha muito. Ela trabalha
num banco e vem sempre buscar-me à escola.
No caminho para casa vamos ao café. Ela
bebe uma bica e a mim compra-me um gelado.
Ficamos a conversar sobre o que eu fiz na
escola. Em casa fazemos o jantar e depois ela
ajuda-me com os trabalhos de casa. Ela é
muito bonita e muito simpática e eu
gosto muito dela. Ela diz que eu
não tenho pai porque quis ter um filho sozinha. O meu tio Jorge e o meu tio Alberto
gostam muito de mim e é como se fossem
os meus pais".
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Depois foi a vez da Sara:
"O meu pai chama-se Luís e eu chamo-lhe Pai. O meu outro
pai chama-se Manuel e eu chamo-lhe Papá. O Pai e o Papá
são muito simpáticos e eu gosto muito
deles. Eu nasci em África e a minha mãe bio... ai!" hesitou a Sara com aquela palavra complicada - "...biológica não podia ficar comigo. Os meus pais adoptaram-me
para eu ter uma vida boa. Os meus pais são as pessoas mais
queridas do mundo e aos fins-de-semana vamos a casa da avó
Maria e lá estão as minhas tias e os meus primos e
primas".
E a seguir foi a Salomé:
"Eu não tenho pai e não tenho mãe. A minha avó
Clotilde é que é o meu pai e a minha mãe. Ela é uma
avó muito linda e é professora. Ela diz que o meu pai e a
minha mãe morreram porque as pessoas não têm
cuidado a guiar os carros e fazem coisas perigosas. A
minha avó é a minha pessoa favorita neste mundo e foi ela
que fez esta camisola que eu vesti hoje".
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Depois calhou a vez à Sílvia:
"A minha mãe é condutora de autocarros
e às vezes deixa-me ir com ela. Eu gosto muito de vê-la com a sua farda
porque fica ainda mais bonita. Aos fins-de-semana vou para casa do
meu pai e dos meus irmãos. Os meus irmãos são filhos da mulher do
meu pai, que é a Susana. Aos fins-de-semana divertimo-nos muito
e depois volto para a minha mãe e fico também muito contente
porque tenho um quarto só para mim."
Por fim, foi o Sebastião a contar a sua história:
"A minha mãe é a Luísa e eu nasci da barriga dela. E tenho mais uma
mãe que é a Manuela e não nasci da barriga dela. A minha mãe
Luísa e a minha mãe Manuela têm uma loja de roupa
para crianças. Elas são muito divertidas e gostam muito de me
levar de férias para a praia. Acampamos numa tenda. Quando elas têm
que ficar na loja até tarde eu vou para casa do tio Zé. O tio Zé é que
me ajuda com os trabalhos de casa e gosto muito de jogar futebol
com ele. As minhas mães dizem que vou ter um mano ou uma mana
e que desta vez é a mãe Manuela que vai ter o bebé".
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Quando as crianças acabaram de contar as suas histórias, a professora Ana perguntou-lhes: "Já viram porque é que a escola se
chama Arco-Íris? Porque temos todos famílias muito diferentes mas, afinal, muito iguais". Ouviram-se muitos
"vivas!" e a criançada saiu para o recreio. Quer dizer: desataram
a correr, no meio duma grande algazarra, que a escola do Arco-Íris é
uma escola igual às outras e não se aguenta uma criança quieta por
muito tempo. Nem com uma bela história.
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RUI ZI
O mais melhor bom reino da bola
Esta história passou-se há muito, muito tempo, num tempo em que
todos os meninos eram príncipes e todos os príncipes eram meninos.
Sim, esta história passou-se há muito, muito tempo: mais ou menos
há quinze dias. Não se espantem. Quinze dias é muito quando se é um
príncipe. Eu ainda me lembro da história, mas isso é porque? ai ai? já
não sou nem príncipe nem menino.
Esta história passou-se há muito tempo e não foi num só, mas em
quatro reinos diferentes. Era pois não uma vez um reino, mas uma vez
quatro reinos que...
No reino da Pimpinela, um príncipe jogava à bola. E que bela bola esta
bola era! Uma bola de borracha, saltitona, daquelas de praia. Até parecia que ainda tinha areia dentro. E de cada vez que a chutávamos,
ouvíamos o marulho do mar.
No reino do Arco-íris, um outro príncipe
jogava à bola. E que bela bola ela era! Uma bola de cabedal, cheia, com
desenho de marca, exactamente como as dos jogadores a sério. Uma
verdadeira bola profissional.
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No reino do Bêabá, um terceiro príncipe jogava à bola. E que estranha bola essa bola era! Umas folhas de jornal amarrotadas dentro de
uma meia velha. Podia não saltitar tanto como as outras, mas servia
para o mesmo que as outras: passes, toques e, claro, marcar golos.
No reino do Salta-enfim, um outro príncipe jogava à bola.
E que linda bola essa bola era! Uma de encher, daquelas com pipo. Uma
pessoa tinha de soprar, soprar e, verdade seja dita, isso dava algum
trabalho. Mas as coisas boas da vida dão sempre algum trabalho - isto
digo eu, claro, que já não sou nem príncipe nem menino. E quando a
bola estava cheia, ficava do tamanho do mundo. O que não era para
admirar: era uma bola com o mundo desenhado. Nela podíamos ver
os continentes, os países, os oceanos. Os oceanos eram azuis, até
mesmo o Oceano Pacífico, que toda a gente sabe ser verde, quando
lhe bate certa luz, e não azul. (Azul só fica quando lhe bate outra luz.)
Os países, esses, eram às cores.
Ora aconteceu que, um dia, o Presidente da Junta de Freguesia
mandou anunciar um estranho concurso: ver qual era a melhor bola
de todos os reinos do bairro. Cada príncipe podia trazer a
sua. Mas só o grande vencedor ganhava o apetitoso prémio: uma bola
autografada por todos os jogadores da Selecção.
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Os príncipes ficaram todos encantados: uma bola autografada pelos
jogadores da Selecção? Que fantástico! E cada príncipe pensou: que
bom seria se eu ganhasse aquela maravilhosa bola.
Qual dos príncipes ganharia
À partida, talvez se pudesse pensar que uma bola saltitona teria
vantagem sobre uma bola feita com pedaços de jornal dentro de uma
meia velha. E que uma bola profissional bateria uma boa saltitona. Ou
que uma bola com desenhos dos continentes e dos mares fosse mais
valorizada do que uma bola saltitona. Por outro lado, uma bola de
trapos tinha dentro dela pedaços de jornal que traziam notícias do
mundo - não apenas os desenhos dos países - pelo que alguns lhe reconheceriam uma inaudita superioridade.
suma: o concurso estava mais renhido do que pareceria ser à
primeira vista. E como cada príncipe achava que a sua bola era a
melhor... a votação ia ser muito difícil. Mesmo muito difícil, porque...
Porque o concurso tinha uma regra muito estranha: o júri era
composto pelos próprios concorrentes. É verdade. Eles é que tinham
de decidir (entre eles) qual a bola cujo príncipe era merecedor do
título de Dono da Melhor Bola de Todos os Reinos.
?
Em
E se, como o Presidente da Junta receava, cada um votasse em si?
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Como se desempataria um tal empate entre as bolas dos quatro príncipes?
Bom, no dia aprazado os príncipes lá desceram dos seus reinos
(enfim, cada um do seu reino) a fim de participarem no concurso.
Como os reinos ficavam todos na mesma rua, até não tiveram de
viajar muito.
Veio o príncipe do Arco-íris, com a sua bela bola, profissional, de
cabedal. Mas a mãe bem o avisou: Se perdes a bola não te compro
outra.
Veio o príncipe do Bêabá, com a sua magnífica bola
feita de uma meia velha à volta de uns pedaços de jornal. E lá teve de
ouvir: Não venhas tarde para casa.
Veio o príncipe da Pimpinela, com a sua bola de borracha. Cuidado
não partas nenhum vidro, senão depois nós é que temos de pagar!
Veio o príncipe do Salta-enfim, com a sua bola-mundo.
Eu podia contar o resto da história, mas para quê? Eu já sei quem é o vencedor.
E vocês? Vá lá, pensem um bocadinho. Aposto que conseguem acertar.
Não, não foi a bola do príncipe do Arco-íris que ganhou. Era uma
bela bola, de facto, mas era tão profissional que se recusou a sair do
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sítio, por não querer concorrer contra bolas amadoras. Foi a primeira
vez, em toda a rua, que se viu uma bola de nariz empinado. Mas conta
quem sabe que, por esse mundo fora, há mais bolas assim, com a
mania de que são... Enfim, com a mania.
A saltitona? Não, também não foi a saltitona a vencedora. Ao
primeiro toque, foi logo contra a janela de uma vizinha e nunca mais
vê-la. O príncipe da Pimpinela até correu a esconder-se.
Tampouco foi a que tinha o mapa do mundo. O vento levou-a
contra o bico de um gradeamento e logo a bola murchou, o que não
fica bem a um mundo, pois não? Pobre príncipe do Salta-enfim.
Então qual foi, qual foi então, a bola que ganhou o concurso
da Mais Bela Bola de Todos os Reinos?
Sim, eu sei o que estão a pensar. E vejo já alguns dedos no ar. A de
trapos, pois então! Até porque é a única a sobrar, não é? Certo, não é?
Errado. Ou as notícias que estavam lá dentro eram más, ou a meia já
estava muito gasta, o certo é que a pobre da bola se desfez logo ali. O
príncipe do Beabá ficou desolado. Mas não mais desolado que o príncipe da Pimpinela, o príncipe do Salta-enfim e o príncipe do Arco-íris.
O Presidente da Junta de Freguesia coçou a cabeça: e agora? Todas
as bolas tinham perdido e nenhuma tinha ganho. Era um caso bicudo.
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Por muito que lhe desse pena, o prémio não poderia ser atribuído.
Foi então que o príncipe da Pimpinela teve uma ideia. Ou não, talvez
tenha sido o príncipe do Salta-enfim. A menos que... Bom, não importa.
Quem teve a ideia não sei, mas sei quem ganhou com a ideia. Os
príncipes cochicharam entre si e, passados uns momentos, anunciaram ao Presidente da Junta de Freguesia que já tinham deliberado e,
por conseguinte, chegado a um veredicto.
Um veredicto é uma coisa a que se chega depois de muito se ter deliberado.
Apontaram todos, então, para o príncipe de Beabá (ou terá sido o
do Arco-íris?) e disseram em uníssono: foi ele o vencedor.
É dele a mais melhor boa bola de todas as bolas.
Têm a certeza?, perguntou o Presidente da Junta de Freguesia, que
estava muito preocupado em seguir as regras todas. Mas olhem que
a bola dele também...
Não, responderam os príncipes, sempre em uníssono e, eu iria jurar,
entre risinhos abafados. É ele o vencedor. A ele deve ser entregue o
prémio de Dono da Mais Bonita Bola de Todos os Reinos.
Bem, suspirou o Presidente da Junta de Freguesia, se depois
de muito terem deliberado chegaram mesmo a um veredicto....
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E foi assim, assim foi. Entre vivas e palmas, entre palmas e vivas
(lançados pelos povos de todos os reinos e até pelos pais e mães e tios
e avós dos príncipes), o vencedor lá saiu com o prémio entre os braços:
uma bola assinada por todos os jogadores da Selecção!
É claro que, minutos depois, os principescos pés dos quatro príncipes já tinham apagado por completo as assinaturas. Essa é que é essa.
Fim.
S OUSA
RA DE
CLA
rco e o Marco
a
O
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Era uma vez...
um menino muito curioso e traquinas.
Marco Íris tinha nascido numa tarde de Novembro, daquelas tardes
em que as nuvens e o sol gostam de brincar à apanhada.
"Vê se me apanhas, Sol..." gritam elas entusiasmadas enquanto borrifam a terra ao de leve com uma chuva miudinha.
E o Sol, sempre a querer brilhar com mais força, lança os seus raios de luz
através das gotinhas que, dançando no céu, se deixam embalar pelo
calor reconfortante do Astro Rei.
Pois o menino da nossa história nasceu numa dessas tardes.
Os pais decidiram chamar-lhe Marco Íris porque nessa tarde as
nuvens e o sol, enquanto brincavam à apanhada, tinham criado um
impressionante arco, bem definido, de sete cores brilhantes,
que se formou no exacto minuto em que o Marco nasceu.
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O Marco foi crescendo e certo dia a mãe e o pai contaram-lhe esta
história.
Ele ficou muito curioso.
Tinha de ir conhecer um Arco-Íris! Afinal tinham o mesmo nome e
até dava para brincar com as palavras e fazer rimas:
Numa bela tarde de Novembro
Nasceu o menino
Marco Íris
Foi baptizado se bem me lembro
Em homenagem ao
arco-íris.
O Marco estava muito impaciente.
Nos dias de Sol dizia bem alto: "Sol, chama as nuvens e brinquem
para que eu possa ver um arco-íris." Mas nada. O Sol parece que não
o ouvia.
Quando chovia, o Marco dizia: "Então nuvens, deixem o Sol aparecer!"
E as nuvens continuavam carregadas e carrancudas a pensar: "Que
menino tão refilão. Agora não podemos dar-te atenção. Temos muita
água nas costas e temos que lançá-la sobre os campos para que a erva
possa crescer."
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Mas tantas vezes o Marco falou ao Sol e às nuvens que no dia do
seu 6º aniversário, eles decidiram fazer-lhe uma surpresa.
Quando o Marco acordou e se espreguiçou junto à janela do seu
quarto, olhou para o céu e viu um arco-íris magnífico e foi logo a
correr chamar os pais.
"Temos de ir ter com ele" disse entusiasmado.
Vestiram-se à pressa e saíram a correr em direcção ao belo arco, para
que o Marco o pudesse ver de perto.
"Quero agarrá-lo" disse o menino. Os pais bem lhe diziam que não
era possível, mas o Marco, teimoso e sonhador, pensava que podia
tocar e falar com o arco-íris. Quem sabe, darem umas boas gargalhadas por terem um nome tão parecido.
Mas quanto mais corriam, mais o arco-íris se afastava.
Por momentos, uma perna do arco parecia que poisava numa casa
majestosa de belo telhado negro e rodeada de árvores. "Está ali" gritava o Marco.
Mas o arco-íris continuava a fugir.
Até que, de repente, 'puf', o arco desapareceu sem deixar rasto.
O Sol já brilhava com toda a sua intensidade e as nuvens brincalhonas tinham-se afastado para o mar.
Que triste ficou o Marco.
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Afinal o arco-íris,
por quem tanto tinha esperado, fugira
sem o cumprimentar.
O que o menino ainda não sabia, porque era muito pequeno para
perceber, é que o arco-íris é daquelas coisas que a Natureza cria, mas
que não se podem agarrar. Existe para ser admirado, para nos fazer
felizes por ser tão belo. Existe para fazer as crianças e os adultos sorrir.
O arco-íris está na fronteira da magia, a meio caminho entre a realidade e a ilusão.
Só o podemos tocar no mundo dos sonhos.
Ou em contos como este.
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Donativos para Médicos do Mundo:
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Todas as pessoas devem poder receber tratamento quando estão doentes.
Mas muitas pessoas, em Portugal e no resto do mundo, estão doentes e
não têm quem cuide delas.
Os Médicos do Mundo são um grupo de pessoas que levam apoio
médico às pessoas que dele têm falta. Trabalhamos em Portugal e em países
como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Timor-Leste e Sri
Lanka.
Além dos cuidados de saúde, fazemos outras coisas, como livros como
este. Para que as crianças como tu (e também os adultos…) saibam que
melhorar o mundo e fazer os outros felizes está nas mãos de cada um de
nós. Quando olhamos em volta e vemos alguém que precisa de ajuda,
podemos continuar o nosso caminho, por acreditarmos que aquele não é
um problema nosso, ou que não temos tempo, ou que… É o que fazemos
muitas vezes, não é? Mas também podemos parar, dar um pouco da nossa
atenção, um pedacinho do que é nosso aos outros.
Somos ajudados por pessoas que, sem receberem qualquer salário, trabalham nos nossos projectos. São os chamados voluntários. E por muitas
outras que nos oferecem donativos para podermos continuar a apoiar
aqueles que mais precisam. Com todos eles e, quem sabe, daqui a algum
tempo, contigo, podemos continuar!
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ANTÓNIO TORRADO
Poeta, ficcionista e dramaturgo, é particularmente conhecido como escritor de
livros para crianças
CLARA DE SOUSA
Jornalista na SIC, mãe de dois filhos e contadora de histórias nas horas vagas
JOÃO ALVES BAPTISTA
Arquitecto, participou com Médicos do Mundo numa missão em Timor-Leste
como coordenador logístico
MIGUEL VALE DE ALMEIDA
Antropólogo, professor no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa, escritor e cronista
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Designer free-lancer, colabora desde 2004 em edições e exposições dos Médicos
do Mundo, sendo este o terceiro livro cujo grafismo assina em parceria com
Sónia Henriques
ROSA LOBATO DE FARIA
Poeta e romancista, é hoje uma referência obrigatória na nova ficção portuguesa
RUI ZINK
Escritor e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
SÓNIA HENRIQUES
Designer na Câmara Municipal de Lisboa, esta é a terceira colaboração editorial
com os Médicos do Mundo, em co-autoria com Patrícia Flor, a par da concepção de algumas exposições

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