Questões da representação na música - Sussurro

Transcrição

Questões da representação na música - Sussurro
Alexandre Sperandéo Fenerich
QUESTÕES DA REPRESENTAÇÃO NA MÚSICA
ELETROACÚSTICA
Dissertação apr esentada a Banca E xaminadora da
Escola de Música da Universidade Federal do Rio
de
Janeir o,
com o
exigência
parcial
para
a
obt enção do tít ulo de Mestr e em Música, sob
ori entação do prof. Dr. Rodolfo Caesar.
Mestrado em Música
Escola de Música da UFRJ
Rio de Janeiro, 2005.
ii
RES UMO
FENERICH, Alexandre S perand éo. Questões da represent ação na músi ca
eletroacústica.
Ori entador: Rod olfo Caesar. Rio d e Janeiro: UFRJ/EM, 2005. Diss.
A m úsica eletroacústi ca trouxe para o d omínio musical todos os
son s possíveis de ser em capturados por microf ones, possib ilitando uma
rel ação com o r eal si milar à fotografia, uma representação acústica direta
do real, ou ao menos a mais próxi ma disso. Essa possibili dade t rouxe
questões
e
dicotomias,
musical/extra-musical ,
gerando
musical
e
um a
séri e
sonoro,
de
campos
aut onomia
da
polares:
música
e
ref erenci alidade. O métod o usado para exami nar estes termos f oi a análise
de obras cuja f orte l igação com este real é notória.
Obr as
eletroacú sticas
não
possuem
notação,
sendo
fi xadas
dir etamente no suport e. Obr as acusmáticas não most ram a origem dos
son s apresentad os, sendo realizadas som ente por via de al to-fal antes. Por
con ta destas caracter ísticas a aproximação co m as obras escolhi das, t odas
eletroacú sticas e acusmáticas, se dá somente por vi a da escuta, em um
pro cesso analít ico que não garant e objetividade. O método analí tico é
ent ão baseado n as idéias de Bachelard acerca do d evanei o poét ico, t ratado
aqu i como um mo delo para a escuta musical.
iii
ABSTRACT
Eletroacoustic has brought to music all sounds that microphone can capture, thus
establishing a relationship with reality comparable to photography - direct representation
of reality, or at least close to it. That possibility revealed questions and dichotomies, thus
generating polar fields: musical/extra-musical, music and sound, musical autonomy and
refenciality. The method used is the analysis of works which have strong links with this
‘reality’.
Eletroacoustic pieces are not notated, being directly fixed on tape or other media.
Acousmatic pieces do not present the origin of sound, being performed by means of
loudspeakers. Because of both characteristics, the approach to these works can only
happen through listening, in an analytical process that cannot guarantee objectivity. The
analytical method is therefore based on Bachelard’s ideas on poetic daydream, treated
here as a model for musical listening.
iv
Fenerich, Alexandre Sperandéo
Questões da Representação na Música Eletroacústica/ Alexandre
Sperandéo Fenerich – Rio de Janeiro: UFRJ/E scola de Música, 2005.
ix, 140 p.
Or ientador : Rodolf o Caesar .
Disser tação (mestr ado) – Universidade Federal do Rio de Janeir o,
Escola de Música. Mestrado em música.
Bibliograf ia: 125- 131.
Anexos: CD, Análise, transcrição, lista de exemplos musicais.
1. Música Eletroacústica. 2. E scuta. 3. Representação em música. I .
Rodolf o Caesar . II . Univer sidade Feder al do Rio de Janeiro (2005).
Pr ograma de Pós-Gr aduação em Música.
v
AGRADECIMENTOS
A meus pai s, Maria Lui za e Geraldo , e a Ci dinh a, p elo apoi o sereno e
pela confiaça que depositaram em meu projeto de linhas tortas.
A Rodolfo Caesar, pela enorme paciência, pela generosidade e pela
orientação minuciosa. Sobretudo pela amizade.
A Lariss a Ps chet z, p ela suav e co nviv ênci a.
A Virg ínia Flo res, companh eira de devaneio s.
A minha tia Stela, pelo imenso amor.
Ao s profes sores qu e me gui aram para es te (e não ou tro) caminho : Ig naci o
de Campos, Den ise Garcia, José Aug usto Mannis .
A Li liza e Lau, p elo cari nho.
A Deni se Mi lfon t, p elas boas lo ucuras q ue me meteu.
Ao s no vos e velhos ami gos pra vida int eira: Débora, An anay , Li lian ,
Bruno, Dud u, Valério, Tâni a, Carin a, Bernardo, Dario, Tiag o, Thomas,
Po rres , Ni cole.
Ao s primos Mariâng ela, Jo aman e Ricardo, que me acolh eram no Rio.
A todos os ramos da minha família, com muita saudade.
A CAPES, a Escola de Música da UFRJ, ao CDMC-Unicamp e ao INAGRM, i nsti tuições que deram su port e ao trabalh o.
vi
Para minha irmã Taynah,
com muito amor.
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- -
1
CAPÍTULO 1: INVEST IGAÇÃO DA ESCUTA --- ---- ---- ---- ---- --- 10
1.1. ANÁLISE DA MÚSICA ELETROACÚSTICA: UMA
CONTRADIÇÃO EM TERMOS? ---------------------------------- 11
1.2. A MEDIDA DA ESCUTA ONÍRICA EM BACHELARD ----- 13
1.3. REPRESENTAÇÕES DO REAL ------------------------------ 17
1.4. UM ENCONTRO DE SUBJETIVIDADES -------------------- 21
CAPÍTULO 2: A CENA ACÚSTICA EM LA TENTATI ON DE SA INT
ANTOINE--------------------------------------------------------------
24
2.1. APRESENTAÇÃO --------------------------------------------
25
2.2. ANÁLISE DA OBRA -----------------------------------------
28
2.3. UMA TEORIA DO SOM E SUA ‘ORIGEM’ ---------------
34
2.4.1. ESTRUTURA DA NARRATIVA --------------------------- 37
2.4.2. A ESTRUTURA DA NARRATIVA EM LA TENTATION
DE SAINT ANTOINE-----------------------------------------------
40
2.5. CONCLUSÃO ------------------------------------------------
49
viii
CAPÍTULO 3: UMA MÚSICA -CENA ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- --- 51
3.1.1. APRESENTAÇÃO: AUDIO-CENA-------------------------- 52
3.1.2. EXISTE UMA PURA ‘MÚSICA ANEDÓTICA’? --- 56
3.1.3. SONORO E MUSICAL: SERÃO ESTES TERMOS
EXCLUDENTES? ----------------------------- -------------
64
3.1.4. A ESCUTA REDUZIDA -----------------------------
69
3.1.5. A “MÚSICA PURA”: EXISTE UM SOM EM SI? --- 72
3.2. PAISAGENS SONORAS? ANÁLISES: C’ERA UMA VOLTA
IL WEST, PRESQUE RIEN, DES MAINS INSOMNIAQUES
CONDUIRONT LE COUPÉ ROUGE – ESTUDOS DA ESCUTA -- 78
3. 2.1. C’ERA UNA VOLTA IL WES T ----------------- ---- 79
3.2.2. PRESQUE RIEN -------------------------------------- 83
3. 2.3. DES MAINS INSOMNIAQUES CONDUIRONT LE
COUPÉ ROUGE ----------------------------------------------- 96
3.3. CONCLUSÃO ------------------------------------------------- 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- 115
GL OSSÁRIO --- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- -- 121
BI BLIOGRAFIA ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- - 126
ix
DI SCOGRAFI A - ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- 132
FI LMOGRAFI A - ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- 132
SOFTWARE - ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- - 132
ANEXO 1: ANÁLI SE E AUDIOGRAMA DO PRIME IRO SOM
DE LA TENTATI ON DE SA INT ANTOINE - ---- ---- ---- ---- ---- ---- 133
ANEXO 2: T RANSCRIÇÃO E TRADUÇÃO DE LE DÉ SERT ,
PRIMEI RO QUADRO DE LA TENTATI ON DE SA INT ANTOINE –136
ANEXO 3: FAIXAS DO DISCO DE ÁUDIO EM ANEXO
CONTENDO E XEMPLOS MUSI CAIS --- ---- ---- ---- ---- ---- ---- --- 141
1
INTRODUÇÃO
O caso da música concreta encerra,
portanto, um curioso paradoxo. Se ela
conservasse o valor representativo dos
ruídos, disporia de uma primeira
articulação que lhe permitiria instaurar
um sistema de signos através da
intervenção de uma segunda. Mas, com
esse sistema, não se diria quase
nada.Para se certi ficar di sso, bas ta
imaginar o tipo de histórias que se
poderiam contar com ruídos, mantendose suficientemente convicto de que
seriam ao mesmo tempo compreendidas
e emocionantes . Daí a solu ção adot ada
de desnaturar os ruídos para fazer deles
pseudo-sons, mas entre os quais é
impossível definir relações simples,
formando um sistema significativo já
num outro plano, e capazes de formar a
base de uma segunda articulação. Por
mais que a música concreta se
embriague com a ilusão de falar, ela
apenas chafurda em torno do sentido.
(Claud e Lévi-Strau ss, O Cru e o
Cozido, p. 43)
2
A part ir da música concret a
Em 05 de outubro de 1948 a Radio Télévision Française ( RTF)
tr ansmitia um insólito Concert de Bruits ( concerto de ruídos), que
teve
como
responsável
o
respeitado
Schaef fer. Neste Concerto
homem
de
rádio
Pierre
foram apresentados cinco Estudos de
Ruído (Études des bruits), de sua autoria: Étude Déconcertante (ou
aux Torniquets), Étude Imposée (ou aux Chemins de Fer), Étude
Concertante (ou pour Orchestre), Étude Composée (ou aux Piano), e
Étude Pathétique (ou aux Casseroles).
Foi o gesto inaugural da música concreta. Apesar de terem
sido compostas no rádio e por ele terem vindo ao mundo, todas as
obras foram englobadas dentro de um Concerto contendo em seu
título o termo Estudo – uma referência ao gênero, típico da música
instrumental
radiofônica,
–
e
por
isso
ligando- se
se
ao
diferenciavam
domínio
da
de
música.
uma
Mas
criação
foram
realizadas inteiramente com “técnicas de rádio”: utilizavam como
material apenas a gravação do som em supor te ( no caso, discos de
acetato) e sua composição era feita exclusivamente a partir do e no
som gr avado, assim como as obr as r adiofônicas gravadas - f ato
totalmente inusitado no domínio da música e até então inédito.
Depois
de
recolhidos
os
materiais
e
fixada
a
composição,
dispensavam a interpretação de signos musicais por um músico que
seria o responsável por intermediar as idéias musicais escritas pelo
c o m p o s i t o r a o p ú b l i c o , t o r n á - l a s r e a i s e i n t e l i g í v e i s 1. E s t a s m ú s i c a s
nascentes eram então f eitas diretamente no suporte, concretamente,
dispensando também a utilização de uma notação e trabalhando
diretamente
1
nos
sons.
Naturalmente
a c u s m á t i c a s 2,
pois
eram
A afirmação de que as músicas concreta e eletroacústica dispensam a interpretação é falsa se se considerar que o
intérprete está presente na produção dos sons gravados (Pierre Henry, por exemplo, é um grande percussionista e sua
interpretação está fixada em sua música). A afirmação só é válida se se considerar a interpretação como aquilo que traz
uma nova e constante renovação ao material musical fixado pela composição.
2
Ou seja, que escondem da visão as origens do som escutado (cf. Glossário).
3
compostas com material gravado em tempo diferido, ou seja, fixado
e posteriormente usado e manipulado, e por isso não mostravam a
or igem de seus sons. O rádio, este meio acusmático, parecia ser seu
habitat natural.
No entanto, em 18 de março de 1950 a música concreta
“nasceria novamente”, agor a em um outr o ambiente socio- cultural a sala de concertos. Pois esta foi a data do “Primeiro Concerto de
Música Concreta” que, como diz o nome, inaugur ou a nova pr ática
nascida no rádio em um domínio próprio da música. Com este gesto
Pierre Schaeffer e dois colaboradores - o engenheiro de som e
inventor Jacques Poullin e o jovem compositor Pierr e Henry –
iniciaram uma “celeuma musical”, pois trouxeram ao público da sala
de concertos da Ecole Normale de Musique de Paris um espetáculo
musical
totalmente
inusitado.
Primeiramente
não
havia
músico
algum tocando no palco, nem nada para ser visto. E m segundo lugar,
er a uma música que continha sons das mais diversas origens em
contextos impr ováveis: um trem que realiza diversas combinações
rítmicas, um brinquedo inf antil que emite uma sinuosa melodia em
diversas velocidades, um estranho piano que combina o som de seu
ataque em direto com o revés, vozes repetidas alucinadamente ( em
loops, diríamos – cf. Glossário)
Nunca
a
dimensão
mecânica
formando ritmos entre si, etc.
havia
sido
colocada
com
tanta
contundência em um contexto musical – pois entrava não como
sonoridade ou referência, mas como procedimento - e pela primeira
vez acontecia um concerto com sons completamente extraídos da
realidade – antes recusada como negativo do musical. Por terem
tr azido esses elementos seriam músicas? Mas por que não o seriam?
Foram feitas para o deleite da escuta, for am apresentadas em uma
sala de concer tos. .. paraf raseando Schaef fer, “se não eram músicas,
que outra coisa seriam?”
4
Mas a questão não se r esolve de maneir a assim tão simples:
por tr azer em para o domínio do musical todo o sonoro estas obr as
estariam pondo em evidência o próprio intr ínseco da música - pois
esta
não
seria
afinal
uma
seleção
dos
‘sons
or ganizados’
em
oposição a sons “não-musicais”? Mas o que havia naquelas obras de
‘musical’? Justamente a intenção de or ganizar o sonoro trazido de
f o r a p o r m e i o d a q u i l o q u e m ai s t a r d e S c h ae f f e r c h a m a r i a d e c r i t é r i o s
perceptivos; de cr iar, por via desses critérios, estruturas mais
pr opriamente abstr atas que fugissem da ref erencia à or igem dos sons
empregados. A música concr eta fez portanto um caminho circular
paradoxal,
pois
tinha
como
projeto
partir
de
sons
vindos
da
‘realidade’ para manipulá-los e reorganizá-los de modo que não
remetessem a esse real. No entanto nem sempre este “mecanismo de
defesa” foi acionado: nestas obras e na maioria das da primeir a fase
da música concreta (que vai até 1958, quando Schaeffer compõe os
Études aux objets) a maior parte dos sons permanece ref erencial:
tr azem a presença explícita de suas fontes, do espaço em que f oram
fixados ou do gesto que os ger ou.
Mas, se há essa pr esença do ‘anedótico’ – ou seja, do indício
referencial
no
som
gravado
(o
termo
‘anedótico’
é
de
Pierre
3
Schaef fer ) há também a constante pr eocupação em transcendê- lo,
em organizar a música por via da materialidade do som e com isso
distanciá- la
3
mais
e
mais
do
domínio
do
radiofônico.
Por
Cf. por exemplo a seguinte passagem: “Advertidos da disparidade dos objetos sonoros, tanto em função de suas
inumeráveis fontes quanto de suas modulações caprichosas, nos damos conta que será melhor nos limitarmos aos
objetos mais simples, menos indicativos, menos anedóticos [grifo meu], portadores de uma musicalidade mais
espontânea embora mais simples” (Schaeffer, 1966, pp. 337-338). [“Avertis maintenant du disparate des objets sonores,
aussi bien en fonction de leurs innomblables sources que de leurs modulations capricieuses, nous sentons qu’il sera bon
de nous limiter aux objets les plus simples, les moins indicatifs, les moins anecdotiques, porteurs d’une musicalité plus
spontanée encore que plus dépouilée.”]
A passagem trata dos critérios para a seleção dos objets convenables (cf. Glossário) em que o termo
anedótico aparece em oposição aos objetos mais simples e refere-se à referencialidade trazida pelos sons. Anedota, que
em português pode ter um outro significado (refere a uma narrativa cômica – uma piada) aqui tem outro sentido e
refere-se a uma narrativa menor, que acontece à margem dos eventos principais – acepção que aparece tanto no
dicionário de português (Houaiss, 2001) quanto no de francês (Le Robert, 1998).
5
materialidade4
quero
indicar
aqui
as
particularidades
do
som
extraídas de uma escuta atenta somente ao que ele tem de sonoro,
que refere a si mesmo e pr ocur a isolá- lo de tudo aquilo que ele
indica:
fenômenos
tradicional
–
do
escuta
mundo,
que
seria
linguagem,
chamada
estruturas
da música
mais
tarde,
na
lidavam
assim
com
teoria
schaef feriana, de reduzida.
As
primeiras
músicas
concretas
uma
ambigüidade: tinham ao mesmo tempo um compromisso com a
utilização musical “de todos os sons” e com a busca de uma poética
musical para a composição com este material. Trata-se de uma
situação
dramática
que,
como
descr evemos
acima,
beira
ao
paradoxo, e que levou às reflexões de Pierre Schaeffer acerca da
escuta reduzida e da busca de uma poética musical que lidasse
somente com a materialidade deste vasto campo sonoro.
Esta busca não se finalizou de imediato, e enquanto isso não
ocorria a produção concreta continuou buscando o musical sem
excluir o ‘anedótico’. Foi a depuração desta poética que acabou por
criar
uma seleção:
a busca
de “sons convenientes”,
os objets
convenables (cf. também Glossário), ou seja, “os objetos sonoros
mais aptos que outros a um emprego como objetos musicais”5
(Chion, 1983, p. 97) – sendo que um dos critérios para uma tal
categorização é o de que os sons devem ser facilmente redutíveis,
aptos a uma escuta reduzida – e para tal não devem ser anedóticos,
ca rreg ados de sent ido ou d e af etiv idad e (i dem, ibi dem) . Esta e scol ha
acabou por limitar a poética do próprio Schaeffer e de alguns de
seus seguidores na dir eção de uma supr essão de elementos “extr amusicais” – termo que é usado aqui em seu sentido mais estrito, ou
seja, os sons referenciais. Tal limitação na obra de Schaef fer se deu
4
Termo que aqui não se refere a um dos lados do binômio fundamental da morfo-tipologia schaefferiana
forma/matéria, mas sim segundo a acepção a seguir.
5
“Sont dits convenables les objets sonores qui sembent être plus aptes que les autres a un emploi comme objet
musical.” ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 9 7 )
6
na produção dos anos 60, concomitante à sua sistematização teórica,
que suprimiu a ambigüidade polissêmica das obr as de sua pr imeira
fase em favor dos Études aux objets, de 1958, que consistem em
obras compostas exclusivamente a partir da escuta reduzida.6
A
teoria
schaef feriana,
portanto,
esquiva-se
de
tratar
poeticamente a escuta a partir de elementos ‘anedóticos’, e quando o
faz busca isolá-los em favor da escuta reduzida. O ref erencial não
entra em suas categorias musicais, aptas para o fazer musical: se
aparecem
na
música
o
fazem
como
elementos
extra- musicais,
parasitas impr evistos, indesejáveis ou casuais. O foco da criação
musical para o Schaef fer do Traité des Objets Musicaux deve estar,
assim, neste intrínseco musical.
Porém, a criação de imagens persiste no espírito do ouvinte da
música acusmática. A
própria condição de escuta acusmática pode
levar a uma recriação imagética, e aqui estamos nos referindo a um
conceito amplo de imagem, além da mera visualidade: tr ata- se
de
todo um corpo de sensações que podem ser despertadas pela escuta.
Acusmático é o som que tem uma fonte imaginada para além de sua
fonte real, o alto-falante. Por exemplo: o som de clar inete tocado
por um alto-falante terá como fonte imaginada o clarinete, apesar de
provir
do
alto-falante.
Mas
mesmo
sons
cuja
fonte
não
é
identificável também despertam a imaginação do ouvinte, que recria
ou
imagina
esta
fonte.
Denis
Smalley
formula,
para
esta
característica do som acusmático, o conceito de source-bounding,
ligação à fonte: “As ligações tocam todo o tipo de matéria e de
fontes sonoras naturais ou culturais, que são provenientes da ação
humana ou não. As ligações às fontes podem ser reais ou fictícias;
6
P ar a u m a an ál i s e p o rm en o ri z ad a d e st e as p ect o n a o b r a sch a efferi an a, cf . C A E S A R ,
R o d o l fo : A E scu t a co m o o b j et o d e p es q u i sa . S i t e n a
i n t ern et : http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcpesqs/escupes.htm, acessado em 3-9-2003.
7
e m o u t r o s t e r m o s , e l a s p o d e m s e r e l a b o r a d a s p e l o o u v i n t e . ” 7 (Smalley,
1999, p.73). A e s c u t a p o r t a n t o f o r m u l a i m a g e n s , r e p r e s e n t a ç õ e s , n ã o
importando se estas se ref erem ao mundo ou se são compostas por
formas menos imediatamente associadas ao r eal.
O tema da investigação; o método
A questão trazida pela música concreta, a da união entr e o som
musical, abordado pela via de sua materialidade, e o som r efer encial
– mesmo quando este é transfor mado ou recr iado -
é o que
abordaremos neste trabalho. Daremos ênfase à r epresentação do real,
ou seja, às maneir as como esta música remete ao real. Partiremos de
duas questões: como se efetua, no imaginár io do ouvinte, a criação
de imagens remetentes a uma realidade acústica, a um espaço físico
real em que se possa ‘ estar’? E de que formas tal música lida com a
tensão entre seu aspecto r epresentativo e seu aspecto ‘musical’ –
este tomado no sentido schaef feriano, ou seja, naquilo que constitui
a organização interna entr e seus elementos sonoros constituídos?
Para uma investigação desses temas analisarei obras que, na
minha opinião, melhor traduzem a tensão musical/extra- musical, ao
mesmo
tempo
em
que trazem
para
o
tecido sonoro
diferentes
pr opostas de manuseio de r efer ência ao real. Nossa investigação vai
se guiar portanto a partir do sensível, da apr eensão que tenho dessas
obras,
mas
sua
análise
ser á
balizada
pelos
temas
apontados.
Tentar emos extrair da audição das obras a maneira como estas criam
um espaço acústico na imaginação.
Como se dá o jogo repr esentativo nestas músicas? Quais são
seus objetos r etór icos, seus limites de representação? Estas são as
7
“Les liaisons à des sources peuvent touchent tous les types de matière et de source sonores naturels ou culturels, qui’il
proviennent de l’action humaine ou non. Les liaisons à des sources peuvent être réelles ou fictives; en d’autres termes,
elles peuvent être élaborées par l’auditeur” (Smalley, 1999, p.73).
8
pr eocupações iniciais da investigação. Outro viés da análise vai se
ater em como articulam o dualismo musical/extra- musical da teoria
schaef feriana; como esse ‘ campo musical’ se manifesta em meio aos
sons r efer enciais. Ocioso dizer, portanto, que as obras musicais aqui
estudadas possuem vínculo direto com a tradição iniciada em 05 de
outubro de 1948.
O
primeiro
capítulo
vai
cuidar
então
de
uma
questão
metodológica: como realizar a análise de obras que não são fixadas
por via da escrita musical, que nos chegam exclusivamente pela
escuta? No domínio investigativo que estamos propondo – o da
imaginação a partir do som – uma análise objetiva se mostr a
infrutífer a. É preciso antes desvendar de que maneira
os sons
atingem o imaginár io, que imagens despertam, e par a tal é preciso
fazer uma investigação deste imaginário - pois tais músicas remetem
antes a uma “realidade de ficção” por via da memória que o ouvinte
tem dos sons da obra em contextos reais, uma imagem que pr ovém
do real mas que dele se distingue. Par a tr açar um percurso desta
pesquisa r ecor remos ao pensamento de Gaston Bachelard na sua
investigação do devaneio e na sua descrição da imagem poética
como um ponto inicial do devaneio. Efetuamos uma “comparação
ar riscada” entre a imagem poética e a imagem sonor a em obr as
acusmáticas e com isso nos apr opriamos de seu método.
O
segundo
capítulo
vai
finalmente
se
ater
à análise
do
pr imeiro movimento de La Tentation de Saint Antoine, Le désert, de
Michel
Chion.
Obra
que,
por
r epresentar
tão
nitidamente
personagens vindos do romance homônimo de Flaubert, pode ser
vista como oposta à música concreta, mas que compartilha com ela a
mesma ambigüidade com relação à representação do r eal versus
musical. E la também se associa dir etamente aos grupos de pesquisa
schaef ferianos: seu autor é um importante conhecedor da obra de
Pierre
Schaeffer
e
é
um
continuador
de
sua
linha
teórica.
9
Curiosamente, o pr óprio Schaef fer nela atua emprestando sua voz ao
personagem principal, Santo Antonio.
Esta
obra
distingue-se
das
demais
estudadas
no
capítulo
seguinte por r epresentar uma cena teatral em que personagens
atuam. Como estes apar ecem ao ouvinte? Esta é a questão central da
análise.
O terceiro capítulo, por sua vez, trata de obras cujo foco é a
representação do r eal, mas que não apr esentam personagens atuando
em um cenário: deslocam a audição par a dentro de uma cena
acústica. A representação não está ausente do cenário, como na
música de Michel Chion. Par tiremos de uma breve análise do Étude
aux chemins de fer, de Schaef fer, par a salientar a escuta bif urcada
entre musical e extra- musical na música concreta. Em seguida, duas
obras musicais centrais serão abor dadas: Presque Rien, de Luc
Ferrar i, e o primeiro movimento de Douze melodies acousmatiques,
Des mains insomniaques conduiront
le
coupé rouge,
de Denis
Dufour – obras que representam uma cena acústica r ealista ao
mesmo tempo em que tecem um caminho pela mater ialidade do som.
Também analisaremos uma cena do filme Era uma vez no oeste, de
Sergio Leone, pois sua constr ução assemelha-se com a das músicas
estudadas e contribui para uma elucidação dos nossos temas.
10
Ca pítulo 1
INVESTIGAÇÃO DA ESCUTA
Em A Tard e de um Faun o, de Mallarmé,
o “personagem” que monologa
pergunta-se se existe na natureza, na
paisagem sensível, um vestígio
possível de seu sonho sensual. A água
não testemunharia a frieza de uma das
mulheres desejadas? O vento não se
lembra dos suspiros voluptuosos da
outra? Se é preciso afastar essa
hipótese, é porque a água e o vento
nada são em relação ao poder de
suscitação pela arte da idéia da água,
da idéia d o vento (...) Po r meio d a
visibilidade do artifício, que é também
o pensamento do pensamento poético, o
poema ultrapassa em poder aquilo de
que o sensível é capaz.
(Alain Badiou , Pequen o Ma nual de
Inestética, p. 35)
11
1. 1. Análise da Música Eletroacúst ica: uma contradição em
termos?
O trabalho
de composição de todos
os autores que aqui
estudaremos - todos ligados, em pensamento e obra, à tradição
schaef feriana - é totalmente exper imental, ‘feito concretamente’, no
e a partir do som fixado em suporte [ver Glossário], baseado
inteiramente
compositor
na
da
escuta
música
e
sem
mediação
eletr oacústica
de
ligada
uma
a
notação.
esta
O
tradição
é
responsável pelos sons de sua obra, e pode controlar desde a
microf onação até a montagem: o som é considerado em todas as suas
propriedades
sensíveis
–
num
gesto
composicional
que
não
pr ivilegia o f azer , mas o escutar. Não importa aqui como se chegou
ao resultado, mas o que lá está, e que nos toca, antes de tudo, pelos
sentidos. No livro L’ art des sons fixés ou La Musique Concrètement
Michel Chion descreve este fazer experimental:
Par a ten t armos ex empl ificar aq uil o q ue rep res enta a ‘ou tr a co is a’
q ue so men te a s on o-fi x ação p ermit e atin g ir, p ermita -no s e v ocar u ma
p as sagem d e no s so mel o drama eletr oacúst ico A T entaçã o d e S a n to
An t ôn io : t rata-s e d e u m cu rt o mo me n to do q u ad r o in ti tulado O N ilo ,
o nd e Antô nio, e sgo tad o p or cau sa d e su a s alu c in açõ e s, d ei ta-se e
ado rmece.
No
in ício
de
seu
so nh o
escu ta -se
um
ama rrotar /desam arrota r do s om, n u m p roc esso d e toma d a em massa,
u m estali d o de fru -fru 8 mu ito p a rticul ar qu e uma p artitu ra ser á
inc apaz d e n ota r e u m a in te rp reta ção , s eja lá p o r q u al fo rma de
rea lizaçã o, ser á inca p az d e resti tu ir s enão p o r ecl ip ses. Trata -se de
u m moment o d e m etamor fo se o n de o crepit ar d is creto d o fog o
sim bo liza n do o acampa men to ru dime n tar d e An tô nio se tran s fo rma em
u ma espéc ie de on da r ítmica meio líq uid a, mei o só li d a. At é mesm o
n ós sería mo s in cap aze s de r efazer esta metamo rfose h oje e m dia, mas
o q ue imp orta é que j á está feita , e q u e está na ob ra (.. .). (Ch i on ,
1 99 1 , p. 9 ) 9
8
“ru m o r p r o d u zi d o p el o ro çar d e fo l h as o u d e t eci d o , esp ec i al m en t e d e sed a. ” D i ci o n ári o
H o u ai ss, v ersão el et r ô n i ca; v erb e t e f ru -f ru ; 2 0 0 1 .
9
“Pour tenter de faire sentir ce que represente cet ‘autre chose’ que la fixation des sons seule permet d’atteindre, nous
nous permettrons d’évouquer un passage de notre mélodrame électroacoustique La Tentation de Saint-Antoine: il s’agit
d’un court moment du tableau intitule Le Nil, ou Antoine, épuisé par ses hallucinations, s’allonge et s’endort. Au début
de son rêve, on entend un froissement/défroissement du son, un processus de prise en masse, un grésillement froufroutant très particulier qu’une partition serait toute à fait incapable de noter et une interprétation, par on ne sait quel
moyen d’ailleurs, inapte à restituer autrement que par éclipses. Il s’agit d’un moment de métamorphose où le
crépitement discret du feu symbolisant le campement rudimentaire d’Antoine devient une sorte d’onde rythmique mi-
12
O fazer do som por tanto se per deu na seqüência de tentativas:
só resta a escolha final do compositor , aquilo que ficou gravado em
suporte – o som que nos chega é a própria obra, sem a intermediação
de intérpr etes ou de uma possível notação, da qual se possa deduzir
uma
estrutura.
E,
portanto,
a
análise
de
uma
tal
obra
deve
necessariamente acontecer a partir da escuta, no tempo da escuta,
sem a mediação de qualquer tipo de escrita que não a f ixada em
suporte - para uma posterior r eorganização dos mecanismos de sua
constr ução, feita fora deste continuum. Este não é, aliás, o caminho
i n v e r s o d o c o m p o s i t o r ao r e a l i z a r s e u t r a b a l h o : n ã o s a b e m o s q u a l f o i
o seu percurso, pois esse processo se perdeu. É antes a expressão
desta vontade de “olhar para o interior das coisas”; de “olhar o que
não se vê, o que não se deve ver” (Bachelard, 1990, p.7), a qual
tr ansf orma a visão “numa violência (.. .) [ que] detecta a f alha, a
fenda, a f issura pela qual se pode violar o segredo das coisas
ocultas” ( idem, ibid.) . E esta arte experimental, a qual deixa poucos
vestígios sobr e seus mecanismos, guarda um segredo fascinante que
aguça uma curiosidade da “criança que destrói seu brinquedo para
ver o que há dentro” (idem, ibid., p.8).
Pois é esta a violência: f ragmentar, escutar r epetidamente,
escutar de per to, esmiuçar seu funcionamento expressivo. Pois para
se reter sua mecânica é pr eciso estilhaçar sua unidade e hierarquizar
valores. Mas uma análise puramente pragmática, atenta somente às
descrições de funcionamento, corre o r isco de se tornar expressão de
uma mera “necessidade de destr uir e de quebrar ” (idem, ibid., p.8) .
Aqui
se
pretende
buscar
algo
além
daquilo
que
se
oferece
imediatamente à visão, fato psíquico que supre uma vontade ávida
de realidade, mas que é estéril e de vida curta. Busca-se, além disto,
liquide, mi-solide. Nous-même serions incapable de refaire cette métamorphose aujourd’hui, mais qu’importe puisque
c’est déjà fait et que c’est dans l’oeuvre (...).” (C h i o n , 1 9 9 1 , p . 9 )
13
suas f ormas de evocação de uma realidade, de condução, a partir do
ir real, a um r eal: de como ela for mula suas imagens.
1. 2. A Medida da Escuta Onírica em Bachelard
A partir deste ponto irei recorrer mais sistematicamente à obr a
de Gaston Bachelard para descrever esta condição de escuta, a de
uma escuta onírica, a partir de sua série de obr as dedicadas ao
estudo do imaginário poético. Em A Poética do Devaneio, por
exemplo, o autor traça um percurso a partir da leitura de textos
poéticos a fim de estabelecer os limites do devaneio através da
manifestação poética. E se a imagem poética, conforme mostra
Bachelard, ressoa em um vasto universo sensorial, acreditamos que
também a música acusmática, por tocar em objetos sensíveis à
percepção, pode fazê-lo. E sta é uma compar ação arr iscada que
espero poder por agora traçar. Par a tal ir emos esmiuçar o trajeto
analítico de Bachelard pelo devaneio, substância da escuta onír ica.
A música acusmática [ver Glossário], então, lida com objetos
cuja natur eza se assemelha à da imagem poética, pois se baseia,
sobretudo, na escuta do som fixado em suporte, o qual é admitido
em todas as suas propr iedades sensíveis. E sta caracter ística leva a
uma total aber tura semântica, pois o sentido do som não é mediado
por uma notação. O compositor de música eletroacústica, pr imeiro
ouvinte dos materiais
que
escolheu,
volta- se para
sua
própria
percepção e dá aos sons um sentido par ticular. Ele abandona,
portanto, o auxílio de abstrações, distantes que são da escuta, para
fiar-se somente em seus ouvidos. Uma tal música cujo “inventár io
sensor ial
é
inesgotável
e
i n f i n i t o ” 10 ( C h i o n ,
1991,
p.9)
torna
ineficaz uma análise que se baseie em critérios objetivos, criando no
10
“(...) le propre de la musique des sons fixés est justement d´offrir au compositeur, par l´enregistrement, la disposition
et la maîtrise d´un espace interne à l´oeuvre.” ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 9 ) .
14
observador a mesma per plexidade com a qual se deparou Bachelard
ao analisar a imagem poética:
Fiel aos nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado considerar as
imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal. Pouco a pouco, esse
método, que tem a seu favor a prudência científica, pareceu-me insuficiente para
fundar uma metafísica da imaginação. Por si só, a atitude ‘prudente’ não será
uma recusa à dinâmica imediata da imagem? (Bachelard, 2000, p.3)
O devaneio poético em Bachelard é então uma atividade de uma
consciência que se “distende, se dispersa e, por conseguinte, se
obscur ece” (Bachelard, 2001, p.5) – e que portanto não é mais uma
“consciência”. Analisar um devaneio é uma atividade paradoxal,
pois a análise poética per tence ao signo de animus: a alma humana
bifurca-se
em
um
feminino
e
um
masculino,
anima
e
animus
(Bachelard, 2001, p.58) , e nessa bifurcação o devaneio poético
ressoa em anima, mas o fazer poético é atividade de animus: “o
poeta conserva muito distintamente a consciência de sonhar par a
dominar a tarefa de escrever seu devaneio” (Bachelard, 2001, p.6).
Não é possível efetuar mos a separação entr e sujeito e objeto numa
análise de uma imagem poética: “ao nível da imagem poética, a
dualidade
do
sujeito
e
do
objeto
é
irisada,
reverberante,
incessantemente ativa em suas inversões” ( Bachelard, 2000, p.4).
Pois em devaneios do cosmos o sonhador entra no terreno da fusão
pr ofunda entre a consciência de si e do mundo; num devaneio do
cosmos o mundo tor na-se o sonhador . Em imagens que remetem a
uma lembrança prof unda dos elementos natur ais, como do fogo, da
água, do ar e da terra, pode-se tocar nesta unidade pr imor dial da
consciência, pode- se atingir o complexo imaginação/lembrança dos
pr imeiros devaneios da inf ância. “Os primeiros interesses psíquicos
que deixam
traços indeléveis em nossos sonhos são
interesses
or gânicos. (.. .) É na carne, nos órgãos, que nascem as imagens
materiais primordiais. ” (Bachelard, 1998, p.9). É no corpo que
ressoam as lembranças primordiais.
15
Na inf ância os devaneios são super lativos, atestam a f orça da
novidade. Vão ser
mais tar de pontos essenciais do
círculo de
imagens que o sonhador possui. Nesse sentido, a poesia toca esses
pontos escondidos da imaginação, evoca uma vida já vivida e tr az de
volta impr essões profundas, memórias essenciais das formas do
mundo, registr o das sensações primeiras da água, do calor, da casa,
do lago; das imagens essenciais. Pois
Em sua primitividade psíquica, Imaginação e Memória aparecem em um
complexo indissolúvel. Analisamo-las mal quando as ligamos à percepção. O
passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção. Já num
devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado como valor de
imagem. A imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever.
Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos,
valores. (Bachelard, 2001, p. 99)
O sonhador que se abre par a as imagens da poesia é, então,
tocado por imagens do mundo, e afinal, pelas suas imagens de um
mundo já vivenciado. A per cepção de si mistura-se e conflui com a
percepção que tem do mundo. Não há a dúvida metódica, terreno de
animus, no campo do devaneio:
Para duvidar dos mundos do devaneio, seria preciso não sonhar, seria preciso sair
do devaneio. O homem do devaneio e o mundo de seu devaneio estão muito
próximos, tocam-se, compenetram-se. Estão no mesmo plano de ser; se for
necessário ligar o ser do homem ao ser do mundo, o cogito do devaneio há de
enunciar-se assim: eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu o sonho.
(Bachelard, 2001, p. 152)
Por vezes basta um só estímulo da percepção para despertar
todo um corpo de afetos:
O odor musgoso e sonolento das velhas moradas é o mesmo em todo lugar, e
muitas vezes, (...) bastava-me fechar os olhos em alguma casa antiga para logo
me reportar à sombria vivenda dos meus ancestrais dinamarqueses e reviver
assim, no espaço de um instante, todas as alegrias e todas as tristezas de uma
infância habituada ao suave odor, tão cheio de chuva e de crepúsculo das antigas
moradas” (Milosz apud Bachelard, 2001, p. 132)
Mas aqui o autor toca em um ponto central para a nossa
investigação
em direção à música acusmática: “O odor permanece
16
na palavra” (idem, ibidem, p.133) – a palavra restitui ao sonhador o
devaneio particular: mas ela não é singular; sendo signo, permanece
aberta
ao
sonhador
para
este
apropriar -se
dela
conforme
sua
individualização particular. Apesar de uma tal distinção com r elação
à palavra a associação com o “mundo já vivido” ainda se estabelece,
pois embor a Bachelard ocupe-se essencialmente de textos poéticos,
fato que se observa em suas terminologias, seu conceito de devaneio
poético parece abranger todas as áreas:
É nessa linha que Novalis pôde dizer claramente que a liberação do sensível em
uma estética filosófica se fazia conforme a escala: música, pintura, poesia. Não
tomaremos à nossa conta essa hierarquia das artes. Para nós, todos os píncaros
humanos são píncaros. Os píncaros nos revelam prestígios de novidades
psíquicas. (Bachelard, 2001, p. 179)
Como atuar iam então formas de arte que utilizam objetos para a
percepção, como o são as artes plásticas, o cinema ou a música? “A
ar te do pintor é a arte de ver belo” ( Bachelard, 2001, p.175). E ste
belo é justamente o ‘olhar de devaneio’, olhar de anima capaz de
desper tar onirismos arcaicos, em que “o sonhador acr edita que entre
si e o mundo há uma tr oca de olhar es, como no duplo olhar do
amado e da amada” (Bachelard, 2001, p.175). Mas “se o pintor deve
pintar nessa visão mais elevada, o poeta se limita a proclamá- la”
(Bachelard, 2001, p. 178). E então o quê difere o olhar de sonho
sobre, por exemplo, uma paisagem e sobre uma paisagem pintada?
Simplesmente esta seleção, este substr ato que o pintor recolheu de
seu olhar liso sobre o mundo, ou seja, do recorte que foi executado
com a destreza de animus, mas que foi investigado em um devaneio,
sob anima. Portanto, ao nos deparar mos com uma obra que remete a
objetos do mundo, ou seja, que representa o real,
adentramos em
um devaneio or ganizado por alguém, que por sua vez conduz a
outros devaneios: uma realidade onírica dentro de outr a, sendo a
obra mais um f enômeno a ser vivido.
17
1. 3. Represent ações do real
Assim é que neste trabalho minhas análises vão seguir uma
tr ilha bipartida: por um lado, há o ato de desconstrução violenta
para esmiuçar os mecanismos expressivos das obras escolhidas - e a
pr ópria seleção destas obr as já indica uma busca pragmática: todas
representam a realidade acústica ‘ externa’ à música, o ‘mundo’ . Os
mecanismos
retóricos’ ,
destas
as
formas
técnicas
de
representação,
empregadas
em
seus
associação
‘objetos
com
a
expressividade buscada e alcançada – este é o estudo pragmático,
uma tentativa de teorização de um procedimento musical que vai
contra o pensamento schaef feriano no que diz r espeito a uma escuta
reduzida – conceito ao qual iremos permanentemente nos referir
neste
trabalho,
como
um
negativo
da
escuta
que
estamos
pesquisando. Pois, segundo ainda Michel Chion em uma obra ‘par a
s e l e r ’ o T r a i t è d e s O b j e c t s M u s i c a u x d e S c h a e f f e r 11, o b j e t o s o n o r o é
“todo o fenômeno e evento sonoro percebido como um cor po, um
todo coerente, e compr eendido a partir de uma escuta reduzida que
visa a si mesmo, independentemente de sua proveniência ou de sua
s i g n i f i c a ç ã o ” 12 ( C h i o n ,
1983,
p.34)
– sendo
escuta
reduzida a
“atitude de escuta que consiste em escutar o som por ele mesmo,
como objeto sonoro, abstraindo de sua pr oveniência r eal ou suposta,
e d o s e n t i d o q u e e l e p o s s a p o r t a r ” 13 ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 3 3 ) . P o r t a n t o ,
objeto sonoro decorre de um método de escuta ( a escuta reduzida), o
qual busca excluir do sentido do som as referências externas à sua
materialidade (cf. glossário). Iremos freqüentemente abordar este
método, mas ele é alheio à compreensão das obr as que selecionamos,
11
Trata-se do Guide des objects sonores – Pierre Schaeffer et la recherche musicale.
“On appelle object sonore tout phénomène et événement sonore perçu comme un ensemble, comme un tout cohérent,
et entendu dans une écoute réduite qui se vise pour lui-même, indépendentemment de sa provenance ou de sa
signification.” ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 3 4 )
13
L’ecoute réduite est l’attitude d’ecoute qui consiste à écouter le son pour lui-même, comme object sonore em faisant
abstraction de sa provenance réele ou supposée, et du sens dont il pout être porteur”. ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 3 4 )
12
18
centradas que são em uma “repr esentação do real” por via do som.
Ele se aplica bem a uma análise desta materialidade, e vamos
utilizá-lo
(como
se
utiliza
uma
ferramenta)
para
explicitar
constr uções musicais que não sejam aquelas de referência ao mundo
exterior, mas que se atenham à materialidade do som.
Como
veremos,
esta
oposição
entre
a utilização
de
sons
“musicais” e “anedóticos” é muito comum desde as primeiras obr as
da música concreta (Étude aux chemins de fer, Étude aux casseroles,
etc – obras de P. Schaef fer realizadas ainda em sulco fechado (cf.
glossário) em 1948 – sendo que o pr imeiro Étude parte de sons que
se ref erem a um tr em em movimento, fazendo-os escutar como
ritmos abstratos): a abertura para a utilização de todos os sons
possíveis de serem capturados por um microfone possibilita este
duplo viés de composição. Pois a gravação, apesar de não ser o real,
é, conforme descreve Barthes com r elação à fotografia, um análogo
perfeito
da
tr ansmite
realidade
aquilo
acústica
que
(Barthes,
captou,
e
1990,
portanto
p.12).
A rigor,
proporciona
uma
representação direta do real. Porém, não se trata, neste trabalho, de
analisar o “gr au de realismo” que um som possa ter , por ter sido
fixado do ambiente. Não se trata aqui de irmos à direção das f ontes
reais,
mas
de
um
real
imaginário
ou
imaginado,
de
uma
reconstrução.
Por outro lado, vale dizer de qualquer for ma que o som
gr avado de uma fonte não é o som r eal desta fonte, tal como
escutamos in loco com nossos ouvidos. Para F. Bayle, trata-se de
uma imagem de som, ou i- son – “uma r epresentação fixada em
suporte”
(Garcia,
1998,
p.46).
Pois
mesmo
o
som
dito
“documental”, fixado aparentemente com um mínimo de intervenção,
possui uma sintaxe, é feito sob uma técnica – é uma constr ução
realista, pois, como analisa P. Schaef fer, a gravação do som em
suporte resulta em um objeto muito distinto da escuta do mesmo
19
pelos ouvidos: o espaço tr idimensional se perde, sendo planificado
em um espaço monodimensional ou bidimensional; o som direto e o
som reverberado, em uma sala, são fundidos em um mesmo plano –
dificultando a localização da fonte; e a seletividade da escuta é
destruída, pois o micr ofone capta todos os sons, e estes estar ão mais
ou menos presentes conforme sua amplitude, no momento em que
sensibilizam sua membr ana. (Schaef fer, 1966, pp. 74-79) A escuta
seleciona os sons que quer ouvir, enquanto que o microfone os
amálgama indistintamente, conf orme suas pr opriedades acústicas.
Para r estituir , portanto, as condições de uma escuta r ealista, o
técnico de gravação e de mixagem utiliza-se de uma sér ie de
pr ocedimentos estabelecidos com a prática e que constituem uma
técnica.
Por
exemplo:
não
se
aceita,
numa
gravação
de
uma
or questra, e por conta da tradição de escuta da mesma, que um dos
seus instr umentos seja mixado a partir de uma fixação em close,
com o micr ofone pr óximo à fonte – a imagem acústica neste caso
não seria realista.
Mas é impossível recuperar completamente, na gravação, o
ambiente sonor o captado pelos ouvidos. O que ocorr e é que, após
uma tr adição de registro para uma repr odução posterior a f im de
restituir uma perf ormance instrumental/vocal, ou seja, a gravação
comercial e sua massiva distribuição, criou-se um acor do tácito
entre gravador as e ouvintes, os quais aceitam o som desta gravação
como r eprodução fiel de uma realidade acústica, assim como se
aceita a fotografia ou o cinema como reproduções da realidade
visual. Mas para que esta identidade se estabeleça na percepção
algumas regras for am f ixadas, e a utilização do aparato de gravação
é
feito
de
uma
determinada
forma,
em
detrimento
de
outras
possíveis.
A música concr eta fez uma investigação da fixação sonora
contrária à que acabamos de descrever, e aqui retomamos a idéia de
20
que o compositor desta música tem uma atitude experimental frente
aos aparatos de fixação, r eprodução e transfor mação do som. Ocorre
que, na composição feita em estúdio, a relação do compositor com
os aparelhos que manipula - pelo menos dos compositores ligados à
tr adição que estamos estudando - nem sempr e é de previsibilidade
entre o gesto de manipulação e o r esultado que a máquina lhe
of erece aos sentidos. Pois “apenas uma e a mesma operação no
equipamento de estúdio pode determinar transformações tanto na
base do ‘mater ial’ quanto em eventos mais estr utur ais. Alterações
em apenas um dos parâmetros acústicos pode abr ir possibilidades
p a r a a m b o s o s n í v e i s ” 14 ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 ) : a i n t e r f a c e d e s t e s
aparelhos não tem relação com a percepção, mas com parâmetros
acústicos, os quais não são univer sos corr elatos. Assim, Rodolfo
Caesar , em sua tese de doutorado, discute a figura do ‘compositor
inventor’, atado a um compromisso pela écriture – “em que todos os
eventos
sonoros
são
supostamente
c o m p o s i t o r ” 15 ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 ) ,
pré-determinados
pelo
distinguindo-o do ‘ compositor
descobridor’ – o qual não espera uma r elação linear entre seu gesto
e a resposta dos aparelhos. Seguindo esta trilha, o ‘compositor
descobridor’ tem uma atitude exper imental frente a toda a rede de
aparatos de manipulação sonora, desde o microf one ao computador,
e neste sentido, segundo as palavr as de M. Chion, “cada som
nascido de outro, no curso das operações de estúdio, é um som
n o v o ” 16 ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 2 3 ) : c a d a s o m n a s c i d o d e s t e f a z e r i m p r e c i s o
e entr emeado de descobertas surgidas ao acaso é possível de ser
utilizado; por vezes, um r esultado inesper ado pode se tornar a
própria obra.
14
“(...) only one and the same operation with studio equipment can determine transformations both in raw ‘materials’
and in more structured events. Alternations in just one of the acoustic parameters can open up possibilities at either
level.” ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 )
15
“(...) where all sounding events are supposedly pre-determined by the composer.” ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 )
16
“(...) chaque son né d’un autre, au cours des opérations du studio, est un son nouveau.” ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 2 3 )
21
1. 4. Um encont ro de subjet ividades
Para uma inter pretação de uma realidade acústica, portanto, o
compositor não precisa necessariamente recorrer a sons oriundos
diretamente desta realidade: todos os sons que produz podem ser
contextualizados, conf orme o sentido que adquiram na obra. Não se
tr ata, desta f orma, de uma procura por um som “natural” – não nos
interessa uma busca das fontes reais dos sons, mas de suas fontes
imaginadas. Minha análise vai tentar descr ever as representações do
real em obras que, de alguma f orma, se propõem a isso; as formas e
a diversidade desta representação. Como se dá esta construção no
imaginário do ouvinte? Que mecanismos da imaginação a escuta
acusmática aciona? Mas esta investigação não está isenta do risco:
música e ouvinte aqui são como cúmplices, um construindo o outro,
um formando o outro. Uma objetividade aqui é um engodo, pois se
trata de uma relação de cumplicidade entre o imaginário do ouvinte
e as imagens da música; é como um encontro de subjetividades; é
como se fosse a escuta do psicanalista frente ao paciente: “não
pode, como Ulisses amarrado ao mastro, ‘gozar do espetáculo das
sereias
sem
riscos
e
sem
arcar
com
as
conseqüências’
[...]”
(Barthes, 1990, p. 226) . Mas como inter pretar a escuta, estando
mergulhado nela? “O quê é assim revelado é uma escuta não mais
imediata, mas defasada, tr ansplantada ao espaço de uma outra
navegação ‘feliz, infeliz, que é a narrativa, o canto não mais
imediato, mas narr ado’ . A narr ativa, construção mediata, r etar dada:
é o que pr atica Fr eud ao descr ever seus casos. ” [Neste sentido é
que] “(... )o texto freudiano está carr egado de imagens” (idem,
ibidem). Nosso trabalho é, por tanto, além de uma descr ição, uma
constr ução nar rativa a posteriori que se fia na memória e que é
22
eivada de imagens as quais falam, como os sons, diretamente aos
sentidos.
Pois o som considerado em suas pr opriedades sensíveis jamais
será entendido, em uma escuta onírica, de f orma impessoal, através
de uma ‘atitude pr udente’, como seria próprio em uma análise
científica. O som acusmático, da mesma f orma que a imagem
poética, leva a devaneios diversos que, embora num primeir o estágio
sejam reais e constituam um campo inter-subjetivo comum, são em
última análise par ticulares a cada ouvinte. Tais devaneios são
impulsionados por caracter ísticas próprias ao som, impressas no
suporte e, por tanto, imutáveis; ocorrem no imaginar sua suposta
fonte, de sua trajetór ia ou do espaço em que acontece.
Tomemos
então
uma
das
caracter ísticas
da
música
eletroacústica, a de “ofer ecer ao compositor, pela gravação, o
a r r a n j o e o d o m í n i o d e u m e s p a ç o i n t e r n o à o b r a ” 17 ( C h i o n , 1 9 9 1 ,
p.50). Ora, espaço interno de um som gravado é aquele que fica
impresso no suporte – em oposição a um espaço externo, que leva
em conta as condições de sua difusão. São exemplos de parâmetros
de um espaço inter no os diferentes planos de presença ou ausência,
os graus de reverberação e a r epar tição do som entre os canais
(panor âmica). Porém, estes não passam por uma percepção objetiva,
mas subjetiva ou inter subjetiva, evocando conceitos de significado
pouco
preciso.
Critérios acústicos cor relatos,
como intimidade,
definição (ou clar eza) e presença (ou textura) , usados par a definir a
qualidade
acústica
de
uma
sala
de
concertos,
são
de
difícil
mensur ação, pois dependem de uma apreciação subjetiva que é
geralmente aferida atr avés de questionários estatísticos r ealizados
em ouvintes, em uma metodologia que nem sempre exclui o gosto
e s t é t i c o d o s c i e n t i s t a s e m s e u s r e s u l t a d o s 18.
17
“(...) le propre de la musique de sons fixés est justement d´offrir au compositeur, par l´enregistrement, la disposition
et la maîtrise d´un espace interne à l´oeuvre.” ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 5 0 )
18
cf. Beranek, 1996, p. 478.
23
Uma escuta que transite por estes parâmetr os r emete a lugares
precisos no imaginário do ouvinte, conduzindo a devaneios de sua
relação com o mundo. Assim é que um som sem reverberação,
médio- agudo, intenso pouco a pouco e de pouca densidade de massa
pode soar para mim ameaçador e hostil; um tal som não existe nem
na natureza nem no cotidiano: a ausência de reverberação traz a ele
uma ar tificialidade estranha à vivência acústica; sua progressiva
aparição pelo acréscimo de intensidade em uma região de fr eqüência
que pode f erir dir etamente os ouvidos pode ser descrita como
perfur ante, lesiva; em ger al, tal som me traz uma carga semântica de
repressão.
Este simples exemplo atesta o poder de imagem que tal música
suscita. Para salientá-la precisei realizar uma br eve análise poética,
tendo a liberdade e a abertura para esmiuçar o devaneio que um tal
som me proporcionou. Portanto, a partir da escuta podemos sair do
terreno de anima para entrarmos no de animus, a fim de realizarmos
um texto, narrativo ou poético, que organize as imagens vivenciadas
no campo do devaneio.
24
Capítulo 2
A CENA ACÚSTICA EM LA TENTATION DE SAINT ANTOINE
Vi sual izo e perceb o o mund o. Se eu
dissesse com o sensualismo que são
ex istentes "es tado s de con sciência", e
se eu procurasse distinguir minhas
percepções de meus sonhos por meio de
"critérios ", eu faltaria q uant o ao
fenômeno do mundo. Pois se posso
falar de "sonh os" e de "realid ade",
interrogar-me sobre a distinção do
imagin ário e d o "real", é porq ue esta
distinção já foi feita por mim antes da
análise, é porque tenho uma
experiência tanto do real como do
imaginário, e o problema é então não o
de procurar como o pensamento crítico
pode ter equivalentes secundários dessa
distinção, mas de explicar nosso saber
primordial do "real", de d escrever a
percepção do mundo, como o que
fundamenta para sempre nossa idéia da
verdade.
(M. Merleau-Po nty, A Feno meno logi a
da Per cepção. P. 11 -12)
25
2.1. Apresentação
La Tentation de Saint Antoine (1984) , de Michel Chion, é uma
obra
eletr oacústica
acusmática
baseada
no
texto
homônimo
de
Gustave Flaubert ( da versão definitiva de 1874), música esta que
recria sonoramente a r ealidade deste texto – sendo que o trecho que
ir ei trabalhar o f az a par tir da percepção de mundo do per sonagem
central, Santo Antonio. Dentre as obras que escolhi representa,
portanto, uma situação bem par ticular da escuta acusmática – na
qual um texto narr ativo está presente e direciona o sentido das
imagens de som, cr iando para estas como que um ponto de fuga, um
campo comum de significações.
A obra apr esenta uma cena teatral em que não aparecem “um
narrador ou um leitor, mas um personagem que fala e vive no
p r e s e n t e ” 19. T r a ç a a s s i m u m c e n á r i o e m q u e t a l p e r s o n a g e m a t u a , u m
espaço
imaginário
determinado
pelo
texto
e
em
certa
medida
‘mater ializado’ pelo som. Recr ia o mundo através do sonoro (com as
imagens que este campo pode trazer) e também através das imagens
que o texto evoca – sendo esta relação texto-som absolutamente
complementar.
Trata-se
assim,
conforme
seu
autor,
de
um
‘melodrama acusmático’, em que a cena visual não existe mas que
ressoa no imaginár io do ouvinte. Cabe ressaltar que o romance de
Flaubert tem a estrutura de uma peça teatr al ( é concebido como uma
“ p e ç a d e t e a t r o i m a g i n á r i a ” 20 ) . N ã o e x i s t e a f i g u r a d e u m n a r r a d o r
típico: ele se limita a situar o enredo no espaço e no tempo e a
narrar alguns fatos que localizam a ação e o cenár io – assim como
as rubricas numa peça teatral – sendo a expressão dos personagens
realizada pelas suas f alas. A voz participa, assim, do quadro de
representações daquela realidade, pois as mínimas inflexões são
19
“(...) le mélodrame électroacoustique tel que je le conçois met em scène non un narrateur ou un lecteur, mais un
personnage parlant et vivant au présent.” (CHION, Michel. La tentation de saint-antoine. Libreto do CD, p. 6)
20
“(...)l’auteur a conçu celui-ci comme une pièce de théâtre imaginaire.” (idem, ibidem)
26
signif icantes
neste
univer so
dramático
acusmático,
trazem
a
expressão corporal e emocional dos per sonagens. Estas mínimas
inflexões são aquilo que Roland Barthes identificou como o grão da
voz (Barthes, 1990), uma expressão daquilo que está aquém e além
da
representação
de
signif icados ‘ comunicantes’
da
linguagem.
Tr ata- se do “corpo da voz que canta” ( p. 244), em que se estabelece
uma dupla relação, cuja voz é instrumento, entre o meu cor po e o
daquele que canta: uma ligação anterior à linguagem, uma expressão
signif icante do corpo na voz. Tal expr essão não conduz a conceitos
mas a devaneios, a imagens.
O uso da voz é preservado pela própria postura do compositor,
o qual busca manter sua expressividade teatral, sem poster iores
manipulações após a gravação e a mixagem:
As
vozes
não
são
consideradas
como
suporte
para
transformações sonoras, mas como seres de carne e sangue, e
po rtan to n ão s ão ‘mani puladas’ no sent ido habi tual . Eu realizei
portanto um substancial trabalho nesta direção – começando pelos
lugares de gravação e terminando pela incrustação das vozes na
mixagem final, passando pela direção dos intérpretes na gravação e
pela montagem – que reconstitui o fraseado de sua dicção – mas este
trabal ho n ão v isa chamar p ara si a atenção na escu ta. Ao contrário ,
v i s a p r o p o r c i o n a r u m a t r a n s p a r ê n c i a d r a m á t i c a . 21 ( i d e m , i b i d e m )
Por conta da especificidade da obra dedicaremos uma atenção
especial ao grão da voz nesta análise: ver emos mais adiante que
detalhes
de
sua
emissão
podem
significar,
em
um
contexto
específico, uma alucinação, ou simplesmente um sentimento de
desespero ou de tr anqüilidade; e o tipo de gravação - se próxima ou
distante do microf one, se reverber ada ou seca – também pode
adquir ir sentidos específicos.
21
“Les voix n’y sont pas considérées comme des supports à transformations sonores, mais comme des êtres de chair et
de sang, et donc ne sont pas ‘manipulées’ au sens habituel. Un travail important n’en a pas moins été effectué sur
celles-ci – commençant par le choix des lieux d’enregistrement et finissant par l’incrustration des voix dans le mixage
d’ensemble, en passant par la direction des interprètes au ‘tournage’ et par le montage, qui reconstruit le phrasé de leur
diction – mais ce travail ne vise pas à sauter aux oreilles de l’auditeur. Il doit s’effacer dans la transparence
dramatique.” (idem, ibidem)
27
Cabe notar , neste plano geral e a partir deste aspecto em
particular , a possível inf luência de Pierr e Henry na composição
desta obra, a qual par ece ser uma homenagem ao compositor por
empregar alguns dos mesmos procedimentos de Apocalypse de Jean.
Um destes é justamente, e conf orme as próprias palavras de Michel
Chion ao descr evê- lo na obra de Henry, em um livro biográf ico em
tom de homenagem ( Pierre Henry, 1980), o uso pur o da voz, sem
poster iores
manipulações
( Chion,
1980,
p.
135).
Em
muitos
momentos, aliás, há uma citação do Apocalypse de Henry: o narrador
inicial no primeir o movimento, que diz o nome e a seção da obr a. O
mesmo ocor re no Apocalypse, ainda confor me Michel Chion:
No início d a o b ra, o títu lo ‘Ap o calyp s e d e J ean ’ é d ito ‘em
b ra nco ’ ( o u sej a, a ca p ella , s em so n s de a comp an hamen t o ), po r
u ma voz n eu tra e o bje tiv a, e é re p etid o tal e q ual, no fi n al. O s
su b título s e os in ter -títu l o s são inter calad o s ao l o n go d a leit u ra.
‘Séq u en ce 7 , les p re miers cat aclysm es’, a n u ncia friam ente J ean
Neg ro ni n o in íc io d e u m d o s Cat a clysm es ma is esp etacu l ares.
(Ch i on , 1 9 80, p. 1 3 7). 22
Est e procedimento, em La Ten tation, i rá repetir-se na sexta seção,
aqu i
com
um
ar
cômico .
Mas
analisaremos
apenas
o
primeiro
movimento da obra, Le désert, em que o Deserto é repr esentado a
partir da percepção do per sonagem central, Santo Antonio, um
e r e m i t a c r i s t ã o q u e s e i s o l o u d o m un d o p a r a p u r i f i c ar s u a a l m a e q u e
é tentado pelo diabo, o qual o faz sof rer alucinações. A semelhança
com o narr ador de Apocalypse é grande: assim como Santo Antonio,
João é um eremita cristão isolado na ilha de Patmos, e tem as visões
descritas no livro do Apocalipse. No entanto, João é convicto de que
aquilo que vê são iluminações, enquanto que Santo Antonio é
tentado,
tem
alucinações.
O
tema
de
suas
tentações,
aliás,
é
tr adicional em uma iconogr afia tar do-medieval: Bosch e Gr ünewald
22
Au début de l’oeuvre, le titre ‘Apocalypse de Jean’, est dit ‘à blanc’ (c’est-a-dire a capella, sans sons
d’accompagnement), d’une voix neutre et objective, et il est répété tel quel à la fin. Des sous-titres et des inter-titres
sont intercalés dans le cours de la lecture. ‘Séquence 7, les premiers cataclysmes’, annonce froidement Jean Negroni ao
début d’un des Cataclysmes les plus spectacularies”. (Chion, 1980, p.137).
28
possuem
obras
importantes
sobr e
ele,
que
não
podem
ser
dispensadas como modelo para a construção da música de M. Chion
–
obras
estas
que
alternam
seja
entre
uma
repr esentação
das
tentações como algo real, sofr ido fisicamente pelo per sonagem, seja
como alucinações.
Mas minha preocupação central nesta análise vai ser a de
mostrar como a música constrói, no meu imaginário, o deserto de
s e u t í t u l o , l u g a r o n d e s e u p e r s o n a ge m a t u a ; e p a r a i s s o m e u p o n t o d e
partida vai ser o de que o espaço é representado a par tir da
percepção de mundo deste personagem. E sta não ocor re a par tir de
uma única perspectiva: pode ser uma mera exposição mimética dos
objetos percebidos por Santo Antonio, ou ainda uma representação
simbólica de um possível estado de sua consciência, representação
esta implausível dentr o do quadro de possíveis da “realidade r eal” e
que se dir ige, como informação, ao ouvinte. Imagem realista ou
simbólica, são construídas a partir do mundo do personagem, ou de
seus diver sos “estados de consciência”. Mas este pressuposto é um
dado de minha escuta particular: não é nem pode ser um fato; f oime, antes, sugerido pela escuta da obr a, e vai se sustentar ou não
confor me o decorrer da análise. E, como o exer cício de uma ficção,
esta r ealidade (a música nos mostr a o mundo a partir do personagem
central) me parece plausível, me parece ser uma estratégia de
teorização coerente com minha compreensão primeira e anter ior a
qualquer f ormulação poster ior. Vamos iniciar por ela.
2 . 2 . A n á l i s e d a o b r a 23
Minha
direcionada
23
primeira
pelo
seu
escuta
do
movimento
título:
trata-se
de
foi
completamente
uma r epresentação
do
Todas as marcações de tempo desta música referem-se à faixa 1 do CD em anexo. Para uma lista de todas as faixas,
ver anexo 3.
29
deserto, e isto é corr obor ado pela sonoridade dos primeiros minutos
d a o b r a : o n í v e l g e r a l de a m p l i t u d e , e x c e t u a n d o a i n t e r v e n ç ã o i n i c i a l
(désert 1 – faixa 2) e os pequenos ‘insetos’ que aparecem em
seguida (tarântulas
– faixa 3) é extremamente baixo; um som
contínuo, de massa complexa, granular, agudo e de pouca amplitude
(em 40”) r epresenta certamente uma fogueir a – único indício de
pr esença humana: é a de nosso personagem, no deser to e sob a luz
do fogo, pois em seguida a entrada de sua voz o confir ma. Além
disso
há
uma
constante
onda
grave
em
forma
de
delta
(ver
Glossário) (14”) que talvez sugira uma respiração. De que se tr ata,
do som do alento produzido por Santo Antonio ( portanto exterior a
ele) ou de uma respiração imaginár ia e implacável, sempre presente
em sua consciência? Não se pode dizer de f orma precisa, mas a
segunda hipótese parece ser a mais per tinente: em 3’06” o alento
está lá e soa ao mesmo tempo que a voz de Santo Antonio, portanto
ou o som da voz ou o da respir ação não são representações realistas.
Assim, e excetuando também as intervenções pontuais de
‘insetos’, até 3’56’’ temos a imagem de um homem na imensidão do
espaço do deserto. A f ogueira e o prof undo silêncio, além de
algumas rajadas de vento ( em 2’39’ ’ e 3’50’’, sendo que a primeira
delas pontua dramaticamente a fala de Santo Antonio, pois aparece
l o g o a p ó s e s t e d i z e r q u e “ a c r e d i t a v a p o d e r c h e g a r a D e u s ” 24) d ã o - n o s
a imagem de uma cena noturna
– pois sentimos frio no deserto
noturno, f ato que justificaria a presença de uma f ogueira. Eis que
minha
primeira impressão
é de um
espaço quase
realista: um
personagem no deserto à espera da aurora ( “E é a claridade da
aurora, vinda como uma oferenda da lua” – primeira fala do
p e r s o n a g e m 25) . E q u a s e - r e a l i s t a p o i s , d e n t r o d a p a i s a g e m r e a l i s t a ,
alguns elementos não condizem com esta representação. Um deles é
24
25
“E t , j ’av a i s cru , p o u v o i r v e n i r à D i e u ” (t r an scri ção ; v er A n e x o 2 )
“Et c’est la clarté de l’aube, vient, offre de la lune” (t r an scri ção - A n ex o 2 )
30
o som inicial, imediatamente posterior à apresentação da primeira
parte, o qual vai se r epetir ao longo desse momento inicial (até
3’ 56”) , seja inteiro, seja em fragmentos ( désert
função
de
apresentar
o
deserto
(assim
o
– faixa 1); tem a
percebo,
pois
soa
imediatamente após as palavras do “nar rador” inicial, que apresenta
o movimento), e o simboliza. Assim, não é uma repr esentação
daquela paisagem, nem da paisagem a partir do personagem. É,
antes, uma epígraf e sonora, ou, como suger e a forma como é
apresentado, uma vinheta. Não possui vinculação clara com uma
fonte sonora e tem uma estruturação musical muito nítida ( ver
análise no Anexo 1) – fatos que, combinados, enf atizam a função
deste objeto dentr o da estrutura da obra: é como se, por destacar
este som de outros claramente referenciais e delimitasse sua f orma
(caracterizando-o, tipicamente, como um object convenable (ver
Glossário) shaeff eriano, pois além disso é de cur ta duração), com
isso se enfatizasse sua função e se pudesse tr atá- lo como um “objeto
musical” – de fato este som sofrer á variações pois, e contradizendo
a idéia de uma vinheta, ressoa mais duas vezes ao longo do trecho
inicial (em 1’ 07” e 1’ 41”) , e mais tar de aparecerá muitas vezes. Na
segunda vez em que aparece (em 1’07”) ouve-se somente seus
pr imeiro e segundo fragmentos (sem o glissando descendente e a
ressonância final) em amplitude mais baixa (désert a e désert b,
faixas 4 e 5 – ver análise e audiograma no Anexo 1) , e a terceira
aparição é quase idêntica à pr imeira: o som se encontr a completo
(na verdade, está apenas com a panorâmica invertida) e é seguido
por “som-r espiração”, fato que me dá a impressão de um ‘segundo
começo’ da obr a, um jogo que consiste num paralelismo entr e a
consciência do ouvinte e a do per sonagem, o qual mistura o de fato
percebido com delírios e lembr anças. Como ele, posso confundir -me
e questionar se a obra iniciou-se novamente ou se estou a imaginar
que o fez. Pois até a entr ada da voz do personagem (em 1’52”) a
31
imagem
do
deserto
não
está assim
tão
delineada:
as
entradas
pontuais do som inicial (désert – faixa 2) e de outros sons, como
‘insetos’ (tarântulas – faixa 3), desconcer tam esta imagem, que
afinal não teve tempo de ser formada por completo. Temos somente
um silêncio pontuado por uma construção musical estática, a qual é
dada por um objeto de rítmica aleatória mas constante (‘fogueira’) ,
de outro de rítmica quase periódica (‘ respiração’) e das entradas
pontuais dos outros sons. É a voz que situa minha escuta como a de
um espaço real, não-musical: a entonação neste momento é a de um
lamento e integra- se com este espaço, ao mesmo tempo em que lhe
cr ia o sentido do lugar onde está o personagem, o deserto, pois
imediatamente associa- se aos sons anterior es.
O quase-silêncio do tr echo inicial (ou seja, de textur a estática,
rarefeita e de pouca amplitude) é de sugestão do próprio Flaubert,
na voz do narr ador ao descrever a cena, a qual abr e o livr o, e que
não está presente no texto selecionado por Chion:
A n oite é calma ; nu me rosas estrel as p al p itam; o uv e- se
ape n as o ru íd o das ta rân tu l as. (F lau b er t, tra d . Car lo s Ch aves, s.d.,
p .1 4)
Portanto, um silêncio em que se pode ouvir o andar áspero dos
insetos, imper ceptível aos ouvidos em um outro ambiente que não o
deserto noturno, ou, mesmo, imperceptível de f ato. Ser ão estes os
‘insetos’ a que me ref eri acima (tarântulas – faixa 3)? T al som só
pode ser inter pretado assim ao ler mos este trecho de Flaubert, mas
me par eceu conveniente situá-lo aqui desta for ma: vai ser um objeto
sonoro
importante
atormentado
por
mais
insetos,
tarde,
aves
quando
e
Santo
demônios
Antonio
imaginários.
for
Neste
contexto há algo de gr otesco nestes sons que me fez associá-los ao
andar
de
tarântulas;
principalmente
também
pela
iconografia
associada ao tema. E também o som inicial (désert - f aixa 2) vai
mais tarde aparecer num contexto em que os gestos de criaturas
32
oníricas
vão
atormentar
Santo
Antonio,
adquirindo
outra
signif icação.
Antecipei a hipótese de uma forma para este movimento - a de
três
estágios
de
consciência
do
personagem,
representados
em
momentos distintos (mas não em seqüência), e agora os exponho.
Tais estados podem ocorrer mesmo simultaneamente. São eles um
plano da r ealidade (pr esente), plano da memória, no qual devaneios
se
misturam
a
lembranças,
e
plano
da
alucinação,
no
qual,
claramente par a nós, disto se trata, não o sendo para o personagem.
Tais passagens de um plano par a outro são marcadas pela relação
entre texto (ou falas) e som. O início (até 3’ 56”) , por exemplo, está
em um plano da realidade, pois além da paisagem claramente
naturalista as falas do personagem ‘estão no presente’ , ou seja,
falam no presente ou nele se situam: “Me sinto cansado, como se
tivesse todos os ossos quebrados”
(2’10”) –
em oposição, trata de
sua infância, mas de uma maneira geral, e não de um fato em
específico: “Quando eu era um garoto, me diver tia com pedr inhas, a
constr uir er emitérios”, etc (3’05”). Mas em uma outr a passagem
para um plano da memór ia, ao contr ário de mostrar- nos o mundo
sonoro per cebido por Santo Antonio, tal qual em uma câmara
subjetiva no cinema (ver Glossário), nos mostra um ícone sonoro
que dá a medida de seu estado de consciência, não necessar iamente
se ref erindo a uma realidade acústica mas simbolizando um objeto
ou uma lembrança. É assim que, quando Santo Antonio passa a
lembrar de tempos em que não questionava sua condição de eremita
miserável (em 6’16”, e o f az contando lembranças espar sas que vêm
à
sua
memória),
escuta-se
uma
canção
com
voz
feminina
evidentemente emitida a partir de um velho fonógrafo ou de um
toca-discos
(pois
a
espessura
do
som
é
muito
estreita
–
predominantemente de freqüências médias – e vem acompanhado de
um ruído granular agudo, o chiado caracter ístico da fr icção de
33
sistemas de emissão com contato mecânico). O sentido deste som
pode
ampliar-se
conforme
o
ouvinte:
provavelmente
para
o
compositor a escolha daquela canção tenha um significado ao qual
não tenho acesso; os ouvintes que a conhecem por sua vez possuem
um outro campo de significação, diferente do meu. Mas para mim e
de
modo
geral
o
som
remete-nos
algo
antigo,
pois
estamos
acostumados a ouvir gr avações recentes a partir de uma fita cassete
ou
de
um
CD,
os
quais
possuem
um
outro
tipo
de
ruído.
Evidentemente este som não poderia estar presente no cenár io de
Santo Antonio, mas escutamos, junto a ele, os sons que car acterizam
este cenário: o vento e a fogueira, e, a partir da nostalgia do texto
naquele momento (“Mais um dia que passou! Outr ora, todavia, eu
não
er a assim
tão
m i s e r á v e l ! ” 26,
etc),
e embora esta
aparição
ocasione uma estranheza (por ser totalmente alheia ao ambiente
sonoro do personagem), entendemos o pathos da cena.
Apesar da alucinação permear todos os sons da percepção de
Santo Antonio, há momentos em que é enfatizada, como em 10’13”,
em que se escuta, após o lamento do solitário personagem ( “Que
solidão, que tédio!” – 10’ 10”) , sons vocálicos de pequenos animais
e de f ricção, em loop (ver Glossário), que são, portanto, de f orma
absolutamente não- realista (bichos - faixa 7) – por conta das
repetições idênticas e mecânicas, de todo incompatíveis com aquelas
formas
sonoras
vocálicas,
pois,
como
salienta
H.
Bergson,
o
mecânico é a oposição ao que seria o natur al de um cor po vivo, o
qual está em permanente mudança: “Os gestos de um orador, que não
pr ovocam r iso separadamente, f azem rir devido à sua repetição. É
que a vida bem viva não deveria repetir-se. Quando há repetição,
similitude completa, suspeitamos de um mecanismo a funcionar por
tr ás do que está vivo. ” (Bergson, 2001, p.25).
26
Ver texto e tradução, Anexo 2.
34
Voltaremos a este momento, mas por agora importa analisar
como a nar rativa vai se constr uindo entre o texto falado, que dá aos
sons um sentido específico, e os sons,
os quais por sua vez
constr oem
ao
imagens
acústicas
específicas
texto,
fechando
o
sentido das palavr as. A partir deste jogo a música alterna entre os
tr ês estágios de consciência do personagem.
2. 3. Uma teoria do som e sua ‘origem’
Mas antes de prosseguir a investigação por um sentido geral
da obr a é preciso notar que estes “som de fogueira”, “som de
vento”, “som de inseto”, “som de bicho” mencionados acima são,
evidentemente, esquemáticos, não são realmente gravações de uma
fogueira e de uma ventania (e isso é perceptível para mim, pois, no
caso da fogueira, por vezes é possível notaro gesto de fr icção de
pequenos objetos, provavelmente de folhas ou gravetos secos, e
mais tarde (em 4’05”) este som vai se metamorf osear e remeter
também, paradoxalmente, ao ruído de um disco de vinil – muito
semelhante ao anterior ), e evidentemente não são sons gravados pelo
andar das tarântulas, posto que isso nem se escuta; mas adquir iram
tais significações por conta do contexto em que se encontr am, ou
por conta também de uma semelhança tipo-morfológica com os sons
habituais desses objetos, os quais estão em minha memória e são
‘r esgatados’ no momento da audição desses sons-esquema. Mas um
som de uma gravação antiga tem outro r egistro em minha per cepção,
pois
sei
material.
sua
proveniência,
A partir
reconheço
imediatamente
sua
fonte
daqui é importante demarcarmos então uma
mudança de registr o na linguagem destas descrições, de for ma a
destacar um tipo de outro - confor me aponta Michel Chion:
Daí essa nossa pro p os ta (.. .) de distin g u ir b em, me diante
u ma formu lação claram en te d iferen te, o caso e m q ue u m so m
35
p ro ven ha rea lmen te , n a med i d a em q ue p o d emo s sab ê-l o , d e u ma
cer ta cau sa, e que tr ad uzir emos p o r u m g en iti v o (d i remos en tão
so m de pi ano , s o m d e cac ho rro , ru íd o d e máq u in a), d o ca so , q u e
n ão é for çosame n te o mesmo, em q u e o so m en ca rn a o tip o d e sua
cau sa e c orresp o nd e à imag e m so n o ra típ ica d a q uela: os
exp ressar emo s e n tão m ed ian t e um h ífen e direm o s so m -cach o rro ,
so m -pian o , ru í do -máq uina, etc. A su bst ituiçã o do ‘ d e’ p o r u m
h íf en per mite n ão co n fu n dir co m o s caso s q u e co rres p o n dem a
n ív eis mu ito in d epen d entes, aind a q u e c o m fre q üênci a se
enc o ntrem reu ni d o s. U m so m de pia no (q u e sai de um p ian o ) p o de
ser u m so m-pian o (q u e corre spo n de ao ti po d e so m as so ciad o ao
p ia n o), m as nem sempr e o é; po r e x emplo , q u an do se trata de u m
so m de pi ano qu e arra stamo s , o u d as cor d as qu e são arran h adas.
In v ersame nte, u m so m- p iano (no se n tid o de q u e se d á a
rec onh ece r) pod e n ão ser u m so m d e p ian o (n o sen tid o d e q u e se
faz com u m pian o); p o r ex em p lo , s e é cr iad o p o r u m sin tet izad o r . 27
” ( Chi o n, 19 99 , p. 15 7).
A
distinção
é
importante
por
enfatizar
que
alguns
sons
representam, por analogia, objetos do mundo, enquanto que outros
são associados a uma f onte, mas nem sempre possuem os valores de
imagem daquela f onte. Assim é que um som de cordas arranhadas de
um piano com pedal acionado pode não ser reconhecível a muitos
ouvintes
como
provavelmente
proveniente
por
músicos,
contemporânea erudita’ e
de
um
alguns
piano
(ser á
melômanos
reconhecido
de
‘ música
afinadores de piano), mas pode adquirir
os mais diversos valor es conforme o contexto. Mas o som emitido
por um fonógrafo, como aquele o qual já mencionei, possui, par a
uma multidão
de ouvintes que conhecem
o
som
de
fonógrafo
(afirmado, por exemplo, em filmes de época, para aqueles que nunca
acionaram um, como é o meu caso), uma imagem distinta, única, de
27
“De ahí nuestra propuesta (...) de distinguir bien, mediante uma formulación claramente diferente, el caso em que el
sonido proviene realmente, em la medida que podemos saberlo, de uma cierta causa, y que traduciremos por el genitivo
(diremos entonces sonido de piano, sonido de perro, ruido de máquina), del caso, que no es forzosamente el mismo, em
que el sonido encarna el tipo de su causa y corresponde a la imagen sonora tipo de aquélla: lo expressaremos entonces
mediante um guión, y diremos sonido-perro, sonido-piano, ruido-máquina, etc. La sustitución del ‘de’ por um guión
permite no confundir dos casos que corresponden a niveles muy independientes, aun cuando com frequencia se
encuentren reunidos. Um sonido de piano (que sale de um piano) puede ser um sonido-piano (que corresponde al tipo
de sonido asociado a um piano), pero no siempre lo es; por ejemplo, cuando se trata del ruido de um piano que
desplazamos, o del de las cuerdas que rascamos. Inversamente, um sonido-piano (em el sentido de lo que da a
reconocer) puede no ser um sonido de piano (em el sentido de que se hace com um piano); por ejemplo, si se crea com
um sintetizador.” (Chion, 1999, p. 157)
36
sua fonte. Esta teoria, mais tarde bem desenvolvida em outras obras,
é esboçada por M. Chion no livro sobre Pierr e Henry, ao descrever a
composição de imagens de Apocalypse de Jean. Neste caso, Chion
c o n s t a t a o u s o d e m e t á f o r a s s o n o r a s . 28 A s s i m d i s c o r r e s o b r e o g e s t o
composicional de Henry:
(.. .) se h á u ma imag é tica n o Ap o ca lyp s e (c av alo s , p áss aro s,
mar de fo g o, ve n to , cat aclism as), e la é t ratad a de fo rma pl ana, d e
man eira e stiliz ad a, s em p er sp ecti va. Pa ra sig nifica r um s ímbo lo
so n oro, é freqü en te o uso d e u m s ó cara ctere [so n or o ]: po r
exe mplo u m ritm o d e c avalg a da par a evo c ar os Ca v a leiro s do
Ap o ca lips e. T od os e stes s o ns-sí mb olo de tro mbetas e d e an imai s
fo r am fei tos em estúd io , a partir d e so n s ele trô nic os o s mais
d iv ersos. Não h á u m s ó so m (co m a p en as uma ex ceção : o s lo o ps
d a seq üên cia 6, qu e j ustame n te si gn ific am o u t ra coi sa) q u e ten h a
sid o g rav ad o da natu r eza. ( ...) A ob ra d e Pie rre He nry n ã o é ma is
imi tativa , assi m, q u e a Tet ra lo g i a d e Wag n e r o u o s Pre lúd io s de
Deb u ssy. (Ch i on , 1 9 80 , p . 1 37 -1 38 ) 29.
Mas seria então ‘sons- símbolo’ o de fogueira, de vento ou das
tarântulas? O som da voz emitida por um antigo aparelho poderia ser
assim descrito, mas os sons que se ref erem dir etamente a objetos do
mundo talvez sejam por demais plásticos, por demais modelados
para um realismo para ader irem a este sentido de metáf ora, de
substituição,
que os sons apontados por Chion
em Apocalypse
adquir iram. Os sons de objetos do mundo, neste cenário acusmático,
são a presença destes objetos: não são apenas imagens de uma f onte,
mas também sua presença concreta na imaginação (ou no imaginár io)
do
28
ouvinte,
pois
r epresentam
um
aspecto
físico
real
de
uma
S e é q u e p o d em o s n o s u t i l i z ar d es t e t er m o , q u e se r efere an t es à rel a ção en t re p a l av ras e
o b j et o s, e n ão en t re so n s e o b j et o s: as si m d e screv e m et á f o ra o D i ci o n ári o E l et rô n i co
H o u ai ss d a L í n g u a P o r t u g u es a:
m et á fo ra : d esi g n a ção d e u m o b j et o o u q u al i d ad e m ed i an t e u m a p al av ra q u e d esi g n a
o u t ro o b j et o o u q u al i d ad e q u e t em co m o p ri m e i ro u m a rel a ção d e sem el h an ça (p . ex . , el e t em
u m a vo n t a d e d e f err o , p ara d e si g n ar u m a vo n t a d e f o rt e, c o m o o ferro ). ( H o u ai s s, 2 0 0 1 )
29
(...) s’il y a une imagerie dans L’Apocalypse (chevaux, oiseau, mer de feu, vent, cataclysmes), elle est traitée à plat,
de façon stylisée, sans perspective. Pour signifier un symbole sonore, un seul caractère est souvent retenu: un rythme de
cavalgade, par example, pour évoquer les Cavaliers de L’Apocalypse. Tous ces sons-symboles de trompes et d’animaux
ont été faits en studio, à partir de sources électroniques le plus souvent. Pas un seul son de L’Apocalypse (à une
exception près: les loups de la séquence 6, qui justement signifient autre chose) n’est pris dans la nature. (…) L’oeuvre
de Pierre Henry n’est pas plus imitative, en fait, que la Tétralogie de Wagner ou les Préludes pour piano de Debussy.
(Chion, 1980, p.137-138)
37
percepção deste objeto, como o é por exemplo o som-fogo. Mas esta
distinção, que cor re o risco de se tor nar estéril por entr ar em
minúcias quase improváveis, é no entanto válida para deixar à
mostra esta separação: há objetos sonoros que, mesmo se expostos a
contextos diversos, vão remeter sempre a um conjunto específico de
sensações, e vão possuir uma r elação inequívoca com sua fonte para
um número muito gr ande de ouvintes. O análogo do real que a
gr avação proporciona ( cf. cap. 1) funciona par a alguns sons, como
os de água, de fogo, de passos, de voz, etc (se o técnico de gravação
restitui,
mediante
uma
certa
microfonação
e
uma
equalização
pertinente, aquilo que se espera destes sons, conf orme discutimos no
capítulo 1). No caso da obra de Henry, no entanto, há sons que
remetem a objetos do mundo, sem se relacionarem diretamente com
sua fonte. Trata-se de uma composição de sons que busca, pela
escuta reduzida dos sons natur ais, capturar alguns de suas imagens
referenciais e reproduzi-las em outros sons: assim o é o som que
imita, pela rítmica, uma cavalgada, sem no entanto se aproximar de
uma associação com o que seria a gravação de uma. Seu sentido
específico é dado, no entanto, pelo texto que o acompanha. (ouvir
trecho da Séquence 5 de Apocalypse – f aixa 8)
2. 4.1 Estrutura da narrativa
Aqui r etomo a descrição a partir de um outro viés, o de uma
estrutura narr ativa. Para efetuar a leitur a de uma obr a baseada em
um romance que se apresenta como uma peça teatral, recorro ao
pensamento de Anatol Rosenfeld que, em O Teatro É pico ( 2002),
retoma a teoria de Platão e Ar istotéles dos tr ês gêner os liter ários
(Lírico, Épico e Dramático) para enriquecer uma análise do texto
teatral. Rosenfeld amplia o conceito br echtiniano de Teatro Épico:
para ele, os três gêneros possuem tanto um significado substantivo
38
quanto adjetivo. Substantivo por designar um conjunto de obras
cujas caracter ísticas predominantes se adaptam a este ou aquele
gênero:
Per tencer á à Lí rica t od o p o ema d e ex ten são me no r, n a
med ida em qu e n ele n ã o se c ristal izarem p erso n ag en s n ítid o s e e m
q ue , ao c o ntrár io, um a v oz centra l – qu ase se mp re u m ‘Eu ’ – nel e
exp rimir seu pr óprio estad o de al ma. Fa rá p ar te d a Épica to d a o b ra
– p oema o u n ão – d e e xten sã o maio r, em q ue u m narra d o r
apr esen ta r pers on ag en s env o lvido s em si tuaçõe s e ev en to s.
Per tencer á à Dr amátic a tod a ob ra dialo g ada em qu e a tu arem os
p ró prios person ag en s sem se rem, e m gera l, apr esen ta d os p o r u m
n ar rado r. (Rose n feld , 2 00 2 , p.1 7)
Mas os três termos podem também designar uma qualidade
especial da obra, seja ela lír ica, épica ou dr amática. É, assim, um
tr aço estilístico que se acentua: neste sentido pode-se falar em um
teatro épico ( ou seja, uma obr a dr amática com fortes características
épicas), ou em um romance lírico. A partir daqui cabe- nos entender
melhor cada um dos três gêneros, sempr e considerando que, para
Rosenf eld, são modelos, coordenadas opostas, tipos teóricos. Não há
uma obra ‘ pura’ em cada um dos gêneros, não é uma total sintonia
com os modelos do gênero que vai garantir a qualidade de uma obra,
talvez, muito pelo contrário.
O gênero L írico, então, caracteriza-se por ser a expressão
subjetiva
de
um
“Eu”,
organização
poética
de
suas
vivências
imediatas. Mesmo quando recorda, o ‘eu-lír ico’ congela as emoções
de sua lembrança em um fluxo inalterável, atemporal: “A Lírica
tende a ser a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no
encontro com o mundo, sem que se inter ponham eventos distendidos
no tempo ( como a É pica e a Dramática)”.(Rosenf eld, 2002, p. 22). O
gênero lír ico também tende a uma pura conotação quando se refere a
objetos do mundo. Estes adquir em uma significação própria para o
‘eu-lírico’ que os evocou, pois a lírica pura tende a uma total fusão
39
entre sujeito e objeto, a natureza inteira sendo incor porada na
subjetividade deste ‘eu-lír ico’ ideal.
O gênero É pico, por sua vez, aproxima- se da narrativa e está
em outro tempo com relação ao lírico. No épico os fatos possuem
uma temporalidade; em geral, já aconteceram, e agora são contados
por um narrador. Enquanto que, na lírica, a função primordial é
expressiva (a subjetividade do ‘eu-lír ico’ que se expr essa pelo
poema) aqui a função é comunicativa: o narrador quer contar uma
estória que já aconteceu; há um distanciamento entre ele e aquilo
que conta.
O narrador,
de
fato,
conhece tanto
o
destino
dos
personagens quanto seu íntimo, como se fosse “um pequeno deus
o n i s c i e n t e ” . 30 H á t a m b é m u m a s e p a r a ç ã o e n t r e s u j e i t o ( n a r r a d o r ) e
objeto (mundo narr ado) de forma que a subjetividade do nar rador
permanece intacta, sem se misturar com o objeto narrado.
Por ser mais comunicativa que expr essiva, a linguagem épica
se desenvolve de maneira lógica, descr itiva, ao contrário da lírica, a
qual é sintética e metafór ica. Por estar distante do mundo que
apresenta o narrador pode comentá- lo, analisá- lo ou ‘montá-lo’
confor me suas necessidades nar rativas. Há, entre o mundo que
mostra e os seus ouvintes, a sua individualidade.
O gênero Dramático opõe-se aos demais na medida em que não
há vínculo algum com um sujeito, seja narr ativo, seja lírico. Aquilo
que nos é mostrado é como se f osse um substrato do real. A peça
teatral deve ter, assim, uma estrutura orgânica, na qual os fatos se
sucedem como causa e efeito. Sua temporalidade é a da vivência do
pr esente; a sucessão temporal é linear e sucessiva “como o tempo
e m p í r i c o d a r e a l i d a d e ” 31. N ã o h á o i n t e r m é d i o d e u m n a r r a d o r : “ o
mecanismo
dramático move-se sozinho, sem a presença de um
mediador que o possa manter funcionando. Já na obr a épica o
30
31
Id., ibid, p. 25.
Id., ibid., p. 29.
40
narrador, dono do assunto, tem o direito de intervir, expandindo a
narrativa em espaço e tempo, voltando a épocas anteriores ou
antecipando-se aos acontecimentos, visto conhecer o futuro (dos
e v e n t o s p a s s a d o s ) e o f i m d a e s t ó r i a . ” 32
2. 4.2. A estrutura da narrativa em La Tentation de Saint Antoine
A
diferença
entre
épico
e
dramático
é
central
para
entendermos as nuanças de significação de La Tentation. Pois,
apesar
de
se
estruturar
como
uma
peça
teatral
de
cunho
eminentemente dramático (o que ouvimos é a representação de um
homem no deser to, que fala e se movimenta, e temos a impressão de
pr esenciar o seu mundo) é cheia também de comentár ios épicos, em
que um nar rador, seja imaginár io, seja na figura de um per sonagem
(aqui, na voz de uma mulher), se coloca. E stes comentários se dão,
por vezes, não como expressão verbal, mas como objetos alheios a
qualquer r epresentação da realidade de Santo Antonio, seja esta de
seu mundo físico, seja de seu imaginár io.
Voltamos então par a uma descrição da obra. Aqui se nota que
a passagem da situação inicial, de apr esentação de um ermitão na
aurora do deserto – da qual as imagens seguintes vão diver gir - para
adiante, é marcada por uma intervenção narrativa forte: a entrada de
um tema melódico tocado por um instrumento cujo timbre é de um
conteúdo
harmônico
muito
homogêneo
(provavelmente
um
sintetizador em FM). T al tema, que dur a de 3’57”a 6’15”, tem a
função de um comentário lírico-épico: é como se um nar rador se
mostrasse através do som, e nos apontasse, após a exposição do
cenário do melodrama e do mundo de seu per sonagem, o início do
32
Id., ibid., p. 28.
41
jogo dramático. Este tema, de caráter lírico, é de todo estranho aos
demais objetos que pontuam a realidade da cena. Aparece após
termos entendido a contradição do espírito de Santo Antonio, que ao
mesmo tempo em que repele ou lamenta sua vida de ermitão esper a
pela salvação eter na, e portanto não desiste de suas provações;
contradição
que se
expressa
em
duas
falas:
a
de 2’33”,
“Eu
a c r e d i t a v a p o d e r c h e g a r a D e u s . ” 33, e m c o m p a r a ç ã o à ú l t i m a a n t e s d a
entrada do tema, em 3’ 48”: “Oh, encanto das or ações, f elicidade do
ê x t a s e , p r e s e n ç a d o s c é u s , q u e d e V ó s v i r á . ” 34 –
uma referindo- se a
uma cr ença do passado, talvez já perdida, e outra que justamente
reitera esta crença - ou seja, contradição que encontra a causa e o
corpo da “tentação”.
Assim
como
o som inicial da peça,
este tema tampouco
apresenta qualquer referencialidade além da mais evidente: a de que
se trata de um som ‘musical’, proveniente de um instrumento. Deste
modo podemos associar que os sons sem uma referencialidade ligada
à realidade da cena possuem, nesta música, uma função épica, são
pontos de apoio para a narrativa, ou seja, como aponta Anatol
Rosenf eld, são como o coro no teatro grego:
No coro, po r ma is qu e se at rib uam fu n çõ es d ra mática s,
p re pon der a cert o cu n h o fo rt emen te ex pre ssivo (líric o ) e é p ico
(n a rrativ o ). At ravés d o co r o pare ce man ifesta r-se, de alg u m mo d o ,
o ‘ auto r’ , inte rromp e n do o d iálo g o d o s p erso n agens e a aç ão
d ra mática , já q u e em geral n ão lh e cab e m fu nç õ es at iv as, mas
ape n as co n temp l ativ as d e co men tár io e r eflex ã o . (Ro sen fel d ,
2 00 2 , p. 4 0).
A já referida canção emitida por um aparelho antigo (em
6’ 16”) não tem esta mesma função, pois é um signo da consciência
33
34
“E t , j ’av ai s cr u , p o u v o i r v en i r à D i e u . ” C f . e m an ex o , t ex t o e t rad u çã o , A n e x o 2 .
“O h , ch a rm é d es o ra i so n s, fel i ci t é d e l ’ex t ase, p ré sen ce d u ci e l , q u ’ est d e V o u s d ev en u . ”
Id e m , i b i d .
42
do per sonagem naquele momento; mas a voz da narradora, a qual
não pode ser descr ita como um som sem referencialidade real,
constitui também um univer so particular – ao qual irei me reportar
em breve. Tanto o som da narradora quanto o tema e a vinheta
(désert – faixa 2) possuem portanto uma f unção épica, ou seja,
narrativa, e não dramática, ou seja, r epresentativa.
Mas
no
trecho
em
que
se
desenvolve
o
tema
há
uma
sobreposição de uma outra realidade sonora. Tr ata- se de uma voz ao
fundo
que
se aproxima
pouco
a
pouco
e
parece chamar
pelo
personagem. Entre uma chamada e outra se escuta uma risada aguda
e estr idente ( em 5’02”), e
logo depois o som
de respir ações
of egantes e o gemido de uma cr iança. E stas vozes estão ao longe,
em um espaço indistinto e distante, como se fossem provenientes de
uma cena ao fundo do campo visual. De onde provêem e quem as
pr oduz? Isto não f ica clar o, e é a par tir deste momento que
começamos a perceber as alucinações de Santo Antonio: serão
aparições reais ou produto de sua fantasia? Pois está no meio de um
deserto, e ser ia improvável qualquer outra presença humana. Por
outro lado, por serem vozes humanas e se ligar em, pelo grotesco, a
outros sons que povoam a imaginação de Santo Antonio, como
veremos adiante, se dirigem a ele, são possíveis em sua realidade,
estão num plan o dr amático. E p or soarem ao fun do d o tema m elód ico
acentuam ainda mais o caráter épico deste, e por conseguinte o
contraste entr e ambos os gêner os.
Mais à frente (em 8’14”) inicia-se uma construção a partir da
narradora, voz feminina que cumpre a f unção (épica) das rubricas,
como acontece tradicionalmente nas peças de teatro – ou seja, ela
nos informa das ações do personagem as quais não podem ser
tr azidas apenas pelo som, bem como descreve acontecimentos seja
do
ambiente,
seja relativos às
visões de Santo
Antonio. Uma
pr imeira inter venção épica tão explícita propicia ao compositor a
43
cr iação de um momento mais livre com r elação à representação do
real. Assim é que em 8’14” inicia- se, ao f undo da narr ação, que fala
sobre uma ação de Santo Antonio e sobr e o ambiente que o cerca
naquele momento (cf. tr anscrição no Anexo2), uma valsa em tom
menor tocada por um piano desafinado, que tem ao f undo alguns
sons vocálicos animalescos que se encaixam com a base rítmica da
valsa (valsa – faixa 9). E stes sons vocálicos são importantes na
representação dos animais fantásticos que permeiam as alucinações
de Santo Antonio, os quais aparecerão mais explicitamente adiante.
Alguns deles f azem alusão explícita a um animal, como o morcego
(f aixa 10) (8’ 08.176”) , que se assemelha a um morcego; outros
remetem a formas vocálicas, sem no entanto ser em muito explícitos.
Cr iam as imagem dos animais fantásticos pr esentes na iconograf ia
do tema, (pág. 43). Os pequenos animais com braços de homem, bico
de pássaro ou cara de peixe, metidos em carapaças metálicas e com
uma expressão
cômica parecem
ter
a
tradução
acústica
nestes
pequenos sons desta valsa. A qual, por sua vez, silencia assim que
Santo Antonio retoma sua f ala – sem calar, no entanto, o som dos
animais, f ato que sugere uma aparição em sua imaginação. De
acordo
com
aquilo
que
apontamos
anteriormente,
ganham
esta
signif icação a par tir do contexto, pois não temos idéia exata da
fonte real destes sons, mas estes remetem, ao menos, a for mas
vocálicas distorcidas e portanto r epresentam os animais das telas de
Bosch e Gr ünewald. São, neste sentido, como os ‘sons-símbolo’ de
Henry
(aliás,
fazem
referência
explícita
aos
sons
ouvidos
na
Séquence 5 ou da Séquence 13 do Apocalypse de Jean – a f aixa 11,
bichos_apo, é um extrato da seqüência 13), pois se tenho a idéia de
uma fonte vocálica é por identificar similitudes ou derivações tipomorfológicas de sons vocálicos naturais –ao mesmo tempo em que
tenho diante de mim a distorção que me faz imaginar os sons destes
animais.
44
La s tentationes de san San to Anton io, óleo sob re tela (70x 51cm) Jerônimo
Bo sch, ca . 1 510. Museu d o Pr ado.
45
Mais adiante, em 11’05”, a nar radora parece falar com o
ouvinte numa atitude de cumplicidade, como quem assiste de longe,
junto a nós, a confusão do per sonagem – numa expressão típica de
um distanciamento épico. Pois ela cochicha em nosso ouvido, (ela
de fato sussur ra, mas a captação de sua voz é feita muito próxima ao
microf one: não há reverber ação alguma e há muita presença (ver
Glossário), que sugere uma proximidade do ouvido). Este cochicho
narra as ações e as alucinações de Santo Antonio ao mesmo tempo
em que acontecem, neste longo momento (de 10’10” a 12’ 20”) em
que,
finalmente,
ele
parece
estar
tomado
por
visões
que
o
atormentam. Aqui estabelecem-se os animais em loop aos quais já
me ref eri em blocos entremeados por silêncios – numa estrutura que
parece ser não a de uma pr esença r eal, mas a de uma aparição
intermitente na consciência de Santo Antonio – pois as falas do
personagem também sugerem esta aparição incômoda: Em 10’54”,
“ E u n ã o p o s s o m a i s , b a s t a , b a s t a ! ” 35 – n u m a e x p r e s s ã o d e q u e m
espanta de si um inseto que o ronda, e mais tarde, em 12’03”, “Par a
t r á s , p a r a t r á s , v o c ê s s ã o t o d o s m e n t i r a ! ” 36.
O trecho precisa de um olhar pormenorizado. Ele sintetiza o
tipo de estrutura que, ao ligar-se for temente a uma representação da
realidade, cria, neste elo, como que um ponto de f uga para a
constr ução
musical,
mais
livre
e
abstr ata,
e
o
duplo
espaço
(musical/sonoro) leva a situações de paradoxo. Tome-se este trecho
de
10’09”
a
11’06”
(loops,
faixa
12)
como
exemplo:
nele
estabelecem-se os loops dos sons animalescos, procedimento que em
si
possui
um
paradoxo
cômico,
como
já
apontamos
(um
procedimento mecânico, o loop, em um material cuja imagem é a de
um ser vivo). A partir do momento em que os sons em loop se
instauram, ser ão inter rompidos por três silêncios, e esta interrupção
35
36
“J e n ’ e n p e u x p l u s ! A s s e z ! A s s e z ! ” – t r a n s c r i ç ã o – A n e x o 2 .
“A r r i è r e ! A r r i è r e ! V o u s è t e s t o u s d e s m e n s o n g e s ! ” – t r a n s c r i ç ã o - A n e x o 2 .
46
é também r ealizada de maneira mecânica: o gesto composicional é
como se desligasse uma “máquina-loop” e a religasse do ponto em
que havia sido desligada; como se houvesse uma fita em que o loop
estivesse gravado, o compositor ligasse este toca- fitas, o desligasse,
e gravasse este gesto. E entre uma interrupção e outra, após a
retomada do ponto em que se parou, muda-se de loop, mantendo-se
porém o mesmo andamento.
Por cima desta textura estão a voz do personagem e ecos do
som
inicial
da
peça
(désert
–
faixa
2):
o
impulso
inicial
(10’21,180”), desert_a e desert_b sem o glissando (10’ 34,236”) , o
objeto
ssic
ssic
ssic
seguido
de
um
breve
impulso,
cortado
(10’56,683”). Estes fr agmentos, pr esentes em muitos momentos da
obra, são como que per sonagens autônomos, alheios à cena, e podem
ser interpretados como comentários irônicos, eminentemente épicos.
Possuem, porém, uma relação musical com os demais sons: na
pr imeira aparição neste tr echo, por exemplo, o pequeno impulso,
com relação à métrica criada pela repetição do loop, aparece em
contratempo, negando ( ou se destacando sobre) aquela métrica. Na
segunda aparição, a relação rítmica é de complementaridade, e na
terceira integra um curto mosaico de sons, ali montados.
Neste trecho ao mesmo tempo soa, ao fundo dos loops de
animais, os sons-r espiração (em 10’42, 821”) e o som de tar ântulas,
(em 10’50”), sendo que aparecem durante um dos silêncios. Estes
sons, ligados que estão ao trecho inicial da peça, ou à representação
da “realidade real”, percebida pelos sentidos, evocam o espaço real
em que se situa o personagem, em contr aposição aos loops, que na
minha interpretação representam o outr o estágio de sua consciência,
o
das
alucinações.
Segundos
depois
(11’05”)
entra
a
voz
da
narradora, complementando as f alas de Santo Antonio, justamente
sussur rando para nós suas ações: em 11’05’ ’, “Volta-se em direção
47
d a t r i l h a , e n t r e a s r o c h a s ” 37, a o q u e s e g u e a f a l a d e S a n t o A n t o n i o :
“Sim! Lá embaixo, bem no f undo, uma massa se movimenta, como
p e s s o a s q u e p r o c u r a m o c a m i n h o . E s t á l á ! E l e s s e e n g a n a r a m ! ” 38 ; e
segue a narração das visões e das ações do per sonagem. A partir daí
o material dos loops passa a ser mais diverso: é f eito de pequenos
ataques instrumentais, de fragmentos de vozes, de som de pássaros
ao longe, além dos sons-animais; além dos loops, passa-se a pontuar
ataques de instrumentos e vozes.
Em resumo, no trecho todo se sobrepõem três camadas de
signif icação: a da nar radora, exterior à cena, a dos silêncios, sinal
da “realidade real”, e a dos loops e demais sons, das alucinações.
Esta sobreposição dura até 12’ 28”, com a f ala de Santo Antonio:
“ A h ! E r a u m a i l u s ã o ! N a d a m a i s ! ” 39 – e m q u e f i c a c l a r o p a r a o
personagem que aquilo que viu e ouviu foram alucinações: a par tir
deste ponto retomamos o ambiente sonor o inicial, calmo e r ealista, e
a
voz
da
narradora
desaparece.
Este
é
um
momento
muito
importante: o personagem até este ponto sabe distinguir suas visões
imaginárias de sua per cepção do mundo. O ouvinte, que a tudo
assiste, parece cr er que de fato estávamos no terr eno da alucinação,
de que para o personagem as aparições não eram reais ( o trecho
todo está na f aixa 13, ilusion).
Mas
em
seguida esta
convicção
é
abalada
pela
própria
pr esença do diabo, por uma ação do diabo. A fala de Santo Antonio
acentua
esta
presença:
“Entretanto...
tinha
acreditado
sentir
a
aproximação... Mas por que vir ia ele? Aliás, não conhecerei seus
a r t i f í c i o s ? ( . . . ) ” 40- e a q u i n ã o s a b e m o s m a i s s e a s a l u c i n a ç õ e s q u e
37
“Il se t o u rn e v er s l e p et i t ch e m i n en t re l es ro c h es” ( t ran sc ri ção - A n ex o 2 )
38
“O u i ! L a b a s , t o u t a u f o n d , u n e m a s s e r e m u e , c o m m e d e g e n s q u e c h e r c h e n t l e s
c h e m i n s . E l l e e s t l à ! I l s s e t r o m p e n t ! ” (t r an scri ção - A n ex o 2 )
39
“A h ! C ’ e t a i t u n e i l l u s i o n ! P a s a u t r e c h o s e ! ” (t r an scri ção - A n ex o 2 )
40
“C e p e n d a n t . . . j ’ a v a i s c r u s e n t i r l ’ a p p r o c h e . . .
48
seguem são, para ele, visões ou elementos reais. Um objeto ter rível,
símbolo e causa do ter ror (em 13’11”), pontua a narração: trata-se
de um som de cordas gr aves arr anhadas de um piano com pedal
acionado, mas aqui não se elucida sua causa, por conta do contexto
dr amático. Trata-se de um som muito gr ave, de massa muito ampla,
ataque pouco definido e pouca definição de detalhes, e, se associado
à fala de Santo Antonio, a qual descreve uma a uma de suas “visões
de tentação” ( “Eu repeli o monstruoso anacoreta que me oferecia,
rindo, pãezinhos quentes, o centauro que tentava carregar- me na sua
garupa, - e esta criança negra aparecida no meio das areias, tão
b e l a , e q u e m e d i s s e c h a m a r - s e o e s p í r i t o d a f o r n i c a ç ã o ” 41) , c r i a
sentido a partir de um estereótipo de trilha sonor a.
Em seguida reinicia-se (em 13’ 36”) , como numa explosão, os
sons de animais, a atormentar Santo Antonio. Um tema ao fundo,
tocado por um instrumento não identificável, de ataque pronunciado
e timbre provavelmente sintetizado (de cor cujo pr edomínio está em
uma região média de fr eqüências) parece condensar o momento: de
pulso marcado e indefinição tonal, cria movimento e “tensiona o
ambiente”. Por ém, segue uma montagem com muitos elementos e
como que uma reexposição de todos os pequenos sons ligados à
alucinação (ou à tentação, não sabemos mais ao cer to), além de
fr agmentos da valsa, do som inicial, do som-tarântula, e de um cur to
tema tocado por uma flauta, sinuoso, com pequenos portamentos, de
expressão lânguida. Em seguida o movimento se extingue com mais
uma fala ambígua, a respeito de uma personagem já mencionada,
mas que não sabemos ao cer to que valor tem par a o protagonista:
Ammonaria, que, ao que parece, e por conta da proximidade com o
Mais po rquo i viendrait-Il? D’ailleu rs, est-ce que je ne co nnais pas ses artifices?”
(t r an scri ção - A n ex o 2 )
41
“J ’ a i r e p o u s s é l e m o n s t r u e u x a n a c h o r è t e q u i m ’ o f f r a i t , e n r i a n t , d e s p e t i t s p a i n s
ch auds, le centau re qu i tâchait de me prendre sa croupe, - et cet en fant no ir ap paru
au milieu des sables, qu i était très beau, et qu i m’a dit s’ap peler l’esprit de
f o r n i c a t i o n ” . (t r an scri ção - A n ex o 2 )
49
tema lânguido, é a causa destas recentes tentações/alucinações. A
música se encerra então como num lamento.
2. 5. Conclusão
Se observarmos novamente a tela de Bosch salta à f rente a
naturalidade
de
Santo
Antonio,
mediante
as
aparições
completamente impr ováveis que o rodeiam. O homem encontra- se
tão absorto em sua contemplação, com olhar ao longe e posição de
descanso que, ou não se dá conta das aparições, ou estas não são,
para ele, fatos a se estranhar . Nesta tela os animais que o rodeiam
não parecem o quer er impor tunar. Mas, se sabemos que está em um
deserto, o que ser ia a paisagem ao fundo - de uma vila de seres
improváveis,
e,
mais
longe
ainda,
de
uma
fortaleza?
Seriam
aparições reais ou enigmas de sua imaginação?
A tela instaur a a mesma ambigüidade da música que estudamos
aqui: não é possível definir o que é ou não real nesta paisagem, mas
nenhum, ou quase, dos sons que escutamos estão alheios a uma
relação com o mundo de Santo Antonio. Eles estão dentr o desta
ambigüidade, e ref orçam ou uma síntese da realidade (através dos
sons r ealistas) ou um escape desta (com os sons-animais em loop,
por exemplo). Mas não é possível delimitar aquilo que é de fato
percebido por Santo Antonio daquilo que é sua imaginação ou
delírio. Por conta de um tratamento entre realista e f antasioso do
sentido dos sons, La Tentation transita entr e o simbólico e o
representativo, entre o épico e o dramático. Se a compararmos com
uma
obra
que
lhe
é
muito
próxima,
o
Apocalypse
de
Jean,
percebemos a difer ença: a obra de Henr y é quase sempre icônica,
tr abalha com símbolos de objetos que quer repr esentar; é sintética e
constr ói sua narrativa atr avés de caracter es sonor os, construídos
50
pela e na escuta r eduzida seja do som imaginado (como uma
cavalgada) seja no som ger ado, no efeito que produz (o ritmo de
cavalgada em sons sintéticos, no momento em que se menciona uma
cavalgada) . A obra de Chion, por outro lado, lida também com sons
imediatamente alegóricos, mas usa, par a uma constr ução realista,
sons r elacionamos diretamente a uma fonte. Quase sempr e, porém,
estes sons “puros” com relação à sua f onte são embaralhados,
mascar ados, fato que contr ibui par a uma ambigüidade. É sobre esta
gangor ra de sentidos que, espelhado na confusão entre o percebido e
o
imaginado
na
consciência
constr ói sua música.
do
personagem
central,
M.
Chion
51
Capítulo 3
UMA MÚSICA-CENA
De que man eira a música po de d ar-n os
belas formas sem o conteúdo de uma
determinada emoção é o que já nos
mostra à distância um ramo do
ornamento das belas artes: o arabesco.
Di visamos linh as curvas, o ra s e
inclinando suavemente, ora se elevando
com ousadia, que se encontram e se
afastam, correspondentes a arcos
pequenos e grandes, aparentemente
incomensuráveis, mas sempre bem
proporcionadas, que se contrapõem e se
encontram, um conjunto de pequenas
unidades e que, no entanto, constitui
um todo. Imaginemos, então, um
arabesco não morto e imóvel, mas sim
um que nasça diante de nossos olhos,
numa permanente autoformação. Como
as linhas fortes e sutis vão ao encalço
umas das outras, como se elevam de
uma pequena curva a uma altura
suntuosa, depois voltam a descer,
alargamse e se encolhem, e
surpreendem continuamente o olhar
num engenho alternar-se de repouso e
tensão ! (...)Imag inemos, por comp leto ,
esse arabesco vivo como emanação
ativa de um espírito artístico, que verte
sem cessar a plenitude completa de sua
fantasia nas veias desse movimento –
em certa medida, não estará esta
impressão bem próxima daquela
musical?
(Eduard Hansli ck, O Belo Mus ical )
52
3. 1.1. Apresentação: audio- cena
No capítulo anterior estudamos como o compositor r ecriou,
exclusivamente pelo som, a cena do texto de Flaubert, A Tentação
de Santo A ntônio. Vimos que na música de Michel Chion as imagens
de som são for madas a partir da voz e das ações do per sonagem; que
todos os sentidos do som acusmático são criados a partir dessa
perspectiva. A relação texto/música ou texto/som é, portanto, de
complementaridade, mas é o texto liter ário, sempre presente na voz
dos personagens ou dos nar radores, que conduz a narrativa.
Neste
capítulo
ser ão
abordadas
obras
em
que
não
estão
pr esentes nem o texto nem a apresentação de personagens. E stas
obras,
todavia,
também
criam
imagens
de
um
cenário,
ou
representam um espaço tirado da realidade; podem mesmo per mitir –
embora não necessariamente - que neste espaço uma narr ativa mais
ou menos explícita se realize. Por tanto são obras que repr esentam
uma
realidade
acústica,
mas
não
o
fazem
a
partir
de
um
distanciamento dramático que mostr a personagens que se dão ao
olhar do espectador. O que é r epresentado nessas obras é, talvez,
uma suposta escuta da realidade. É como uma câmera subjetiva no
cinema: o que se tem é a visão da cena vislumbrada por um
observador .
Se
(detalhado
no
voltarmos
cap.
2),
ao
esquema
podemos
dramático
de
descrevê-las
Rosenfeld
como
uma
representação totalmente dramática. É como se da música de Michel
Chion o pr edominante f oco narr ativo em ter ceir a pessoa fosse
deslocado completamente para uma primeira pessoa, para aquilo que
se per cebe no cenário. Na primeira situação olha-se, de fora, a ação
de per sonagens alheios a uma obser vação; na segunda, há um olhar
participante da cena, que escolhe aquilo que r epresenta.
Mas tanto nas músicas que estudaremos aqui quanto na de
Michel Chion tem- se a presença do ilusionismo teatral clássico, a
53
chamada ‘quarta parede’ - dispositivo teór ico que encerra a cena, do
ponto de vista dos per sonagens, em três paredes reais e uma
imaginária, onde se encontra o público, que a tudo assiste. Tr ata- se
de um espaço de representação – como o é na pintur a clássica –
fechado em si mesmo: “Como queria Diderot, a ‘ quar ta parede’
signif ica uma cena autobastante, absorvida em si mesma, contida em
seu pr óprio mundo, ignorando o olhar exter no a ela dir igido,
evitando qualquer sinal de interferência do espectador , pois os
atores estão ‘ em outro mundo’” (Xavier , 2003, p. 17). Porém, em
Presque Rien, de Luc Ferrar i -
a obra central estudada neste
capítulo - parece haver uma identificação do ouvinte com a cena; é
como se a música f osse a r epresentação de sua escuta. Mas, escuta
emoldurada, selecionada temporal e espacialmente, representada em
uma
obra
com
uma
duração
finita
e
um
número
limitado
de
focalizações do campo acústico representado.
Mas esta música emoldurada ou feita em enquadr amento não
estaria fugindo da própria especif icidade do f enômeno musical? Este
é um questionamento que alguns teóricos e compositores ligados à
corrente estética que apregoa uma autonomia da música poderiam me
fazer. Tal noção de que a música não deve remeter a nada além dela
mesma
foi
formulada
em
meados
do
século
XIX
por
Eduard
Hanslick, que afir ma que o belo da música, aquilo que através dela
chega ao sensível é algo que, “sem depender e sem necessitar de um
conteúdo exter ior, consiste unicamente nos sons e em sua ligação
ar tística. ”
(Hanslick,
[1891]
1989,
p.
61).
A
música,
neste
pensamento, é uma arte cujo “conteúdo são as suas formas”:
O belo de um tema [musical] independente e simples se
anuncia ao sentimento estético com aquela imediatez que não
admite outra explicação a não ser, no máximo, a conveniência
íntima do fenômeno, a harmonia de suas partes, sem relação
com nada de estranho. Isso nos provoca prazer em si mesmo,
como os arabescos, as colunas, ou como produtos do belo na
natureza, tais como folhas e flores. (idem, p. 68-69)
54
Assim, a noção de que a música represente algo exterior à sua
or ganização ou às suas “formas har moniosas” é inconcebível em tal
teoria. A música aqui é algo desterritorializado, ou, como se refere
Hanslick,
“não é deste mundo” (idem, p. 65). A idéia da música
pura ou autônoma remete por tanto a uma fluidez de imagens de
forma a individualizar completamente a experiência da escuta no
campo das imagens; torná-la tão única a cada ouvinte que seríamos
incapazes de apontar elementos comuns na imaginação deste ou
daquele sujeito.
Por não representar nada além dela mesma a música, ainda sob
o prisma desta teoria, não remete a espaços ou objetos ‘do mundo’
ou do ‘real’. Barthes a opõe mesmo ao que chama das artes
dióptricas (1990, p. 86), como chamou todas as ar tes repr esentativas
(a pintura, o teatro, o cinema, a fotografia e a literatura). Ao
contrário destas a música não remete a um espaço de representação
recortável, como a cena de Diderot, em que este ocorre “enquanto
alguém
(autor,
leitor,
espectador)
dirigir
seu
olhar
para
um
horizonte e nele r ecor tar a base de um triângulo de que seu olho ( ou
sua mente) ser á vértice” ( Barthes, 1990, p. 96). E la r emete antes a
um espaço amplo que não pode ser r estr ito, e esta aber tura talvez
decorr a da própria natureza do som que, ao contrár io de outros
objetos para a per cepção, não é circunscrito nem espacial nem
tempor almente; é um objeto absolutamente f luido e em constante
devir.
Mas existe uma tal autonomia da música? As próprias obras
que selecionamos aqui negam que este seja o único viés da fruição
musical. E las focalizam-se na repr esentação de objetos do mundo,
remetem às causas dos sons postos em cena e por isso aproximam-se
das artes dióptricas de Barthes. Portanto a fr uição destas obr as
depende,
ao
menos
em
parte,
do
entendimento
do
objeto
da
representação que cada uma encerra, e nesse ponto não faz sentido
55
referir-se a cada uma delas como música pura, pois nos modelos
teóricos desta cor rente, por conta dessas caracter ísticas, não ser iam
sequer obr as musicais.
No entanto são feitas tão somente para a
escuta e com a ausência de qualquer texto ou voz narrativa, o que as
diferencia de uma criação radiofônica. Além disso, a tendência à
qual estão ligadas, a música concr eta, já havia feito o ritual de
passagem para o domínio do musical ao apresentarem-se em um
concer to, e portanto indicarem ter em sido compostas com o intuito
de ser em músicas. Por estes fatores dados consider amos, portanto,
ou ao menos aceitaremos tempor ariamente, as obras que estudaremos
como musicais.
Mas talvez o que ligue essas obras ao domínio do musical é o
fato
de que há
representação
nelas uma outra
exterior
(ou
dimensão que foge da mera
extra- musical,
em
oposição
ao
que
Hanslick chamaria de musical). Trata-se de uma construção sonor a
baseada em uma escuta reduzida, base par a a criação do musical – e
aqui estamos nos r efer indo a uma terminologia e também a um
caminho de criação ditado por Pier re Schaef fer. Ou seja, nestas
obras há um tr abalho de composição não só a partir ou nas imagens
exteriores que despertam ( ou seja, nas imagens que se dirigem ao
real), mas também no som em si, nas relações sonor as intrínsecas
postas em relevo por esse trabalho – que podem ref orçar as imagens
referenciais, mas podem também estabelecer um outr o campo de
imagens, paralelo àquele, que não se r efer e ao real. Esta existência
bipartida foi bem percebida por Pierre Schaeffer, e mais adiante
retornaremos
momento
aos
mesmo
dilemas
de
sua
do
fundador
criação.
da
música
concreta
no
Também
iremos
discutir
sua
admissão de um musical em si – fato que o aproxima do pensamento
de Hanslick, comparação que iremos ef etuar adiante. Por agora
porém devemos prosseguir em outra direção: tendo como ponto de
referência
as
obras
acusmáticas
que
escolhemos,
seguimos
na
56
descrição
deste
campo
musical
repr esentativo
no
esforço
de
delimitar seus limites.
3. 1.2. Existe uma pura ‘música anedótica’?
Mas se não é possível generalizar o conceito de música pura
para todas as obras musicais – visto que as obras que estudaremos
aqui não o são, apesar de serem músicas - cabe perguntar também se
é possível criar, no campo da escuta, uma imaginação do mundo,
uma
representação.
Pois,
e
par afraseando
a
teoria
da
música
autônoma, não seria a esta uma arte cujas possibilidades de leitur a
são tão múltiplas que impossibilitam qualquer identidade entre a
obra
concretizada
e
aquilo
que,
no
seu
projeto,
supostamente
representaria? Em outros termos: uma música que f aça alusão a uma
realidade exterior a ela mesma estaria fadada a sempre recorrer às
palavras para explicitar seu sentido?
Michel Chion coloca a questão a partir de uma divertida
citação de Saint- Saëns:
A censura que se faz à música por não exprimir nada
além dela mesma, sem o auxílio da palavra, se aplica
ig ualmente à p intu ra (...). Um quadro jamais v ai represent ar
Ad ão e Eva a u m es pect ador que não con heça a Bíbli a; ele
não irá representar nada além de um homem e uma mulher
n u s n o m e i o d e u m j a r d i m ( . . . ) 42. ( S a i n t - S a ë n s a p u d C h i o n ,
p.23, 1993).
E Chion, que havia qualificado a comparação de Saint- Saëns
como maldosa, em seguida justifica-se: “(. ..) o quadro representa
quase inteiramente alguma coisa que se pode identificar sem o
auxílio de um título: aqui, ‘um homem e uma mulher nus no meio de
um jar dim’ ; enquanto que a música, mesmo para coisas assim
42
“le reproche qu’on fait à la musique de ne rien exprimer par elle-même, sans le secours de la parole, s’applique
également à la peinture”. (...) “Un tableau ne répresentera jamais Adam et Ève à un spectateur qui ne connaîtrait pas la
Bible; il ne saurait représenter autre chose qu’un homme et une femme nus au milieu d’un jardin”. (Saint-Saëns apud
Chion, p.23, 1993).
57
c o n c r e t a s , n ã o p o d e r e c o r r e r s e n ã o a o c ó d i g o e a o s i m b ó l i c o ” 43
(Chion, p.24, 1993) . Pelo menos na música instr umental ou vocal é
necessário, portanto, haver, para uma repr esentação do mesmo tipo
que a do exemplo de Saint- Saëns, um contrato simbólico que se
estabeleça entre a obr a e seus ouvintes. I sto é absolutamente válido
para a música instrumental, pois o som de um instr umento ( em
situação acusmática) vai sempre remeter à sua f onte. A imitação
neste caso vai se limitar a um discurso metafórico ou alusivo.
Mas a música acusmática pode fazer uso de sons referenciais,
ou seja, daqueles sons gravados em que se reconhece sua or igem.
Pois enquanto que as músicas instr umentais e vocais empregam,
como supor te de fixação, a escrita, e como meio de realização, as
pr óprias f ontes sonoras, e disso não podem se desvencilhar , a
música acusmática tem a gravação sonora como suporte de f ixação e
os alto-falantes como meios de realização. Os alto-falantes então
pr ojetam estes sons; é neles que esta música se realiza:
[o alt o-falant e] (...) é capaz de real izar uma imensa
quantidade de sons distintos; boa parte desses sons chegam
ao ouvinte por intermédio de uma outra função assumida
pelo alto-falante que eu denomino de ‘buraco’. Por este
buraco, podem entrar sons de diferentes lugares e momentos,
sejam reai s ou imaginados. (Ao abo rdar i-som, ou a imagem
de som, François Bayle diz que ele ‘não é som de nada. Pois
sucessivamente encontrado, perdido, reencontrado, dotado
desse atributo alado de leveza e de economia radical: vindo
de outro lugar!’). É aqui que uma primeira ambigüidade
funcional se revela: ele deve soar em determinado ambiente,
e ao mesmo tempo trazer sons de outros ambientes. (Freire
Garcia, p. 113 , 20 04)
As fontes imaginadas dos sons estão assim além do altofalante,
pois
esta
música
pode
trabalhar
com
todos
os
sons
diretamente captados das fontes que quer evocar, no espaço que quer
43
(...) le tableau répresente tout de même clairement quelque chose qu’on peut identifier sans le secours d’aucun titre:
ici “un homme et une femme nus au milieu d’un jardine”; tandis que la musique, même pour des choses aussi
concrètes, ne peut recourir qu’au code et au symbole”. (Chion, p. 24, 1993).
58
representar. E nquanto que na música vocal- instrumental a imagem
da fonte dos sons conf unde-se com o suporte de realização, na
música
acusmática,
pela
opacidade
dos
alto-falantes,
isto
não
acontece, a imagem das fontes distingue-se de seus ‘pr ojetores’.
Mas
será
este
fato
suf iciente
para
a
criação
de
um
cenário
imaginário no ouvinte? Além disso: uma mer a gr avação de uma cena
sustenta-se enquanto r epresentação da mesma?
Claro que estas músicas não se atêm a um r ealismo assim
estrito: vimos que, na música de Chion, este possui gradações,
conforme a percepção do real do protagonista. Por outro lado, a
realidade como é captada por um par de microfones tem pouco em
comum com aquela percebida pelos ouvidos. Em primeiro lugar, a
cadeia de fixação e reprodução não é ‘neutra’ com relação ao som
que se escuta diretamente. Não há sistema de gravação capaz de
fixar de f orma total todas as propriedades do som em meio aéreo,
nem
há
sistema
algum
de
alto-falantes
que
não
imprima
sua
coloração, ou sala de escuta que seja acusticamente neutra. O
microf one não capta a espacialidade dos sons que me chegam; ele a
tr aduz por relações de amplitude, as quais não são suf icientes par a
cr iarem uma imagem na minha percepção. Um som vindo de for a de
minha janela é distinto para mim de um som que está dentro de
minha sala; se um mesmo cenário, antes composto por sons vindos
de todas as direções, for gravado, os sons de fora ser ão traduzidos
como menos intensos que os outros (mesmo havendo sons dentro de
minha sala que me chegam com a mesma ou com menor amplitude),
e ambos serão amalgamados em um único espaço bidimensional. A
suposta
neutralidade
do
aparato
eletroacústico
deve
relativizada e a noção mesma de ‘f onte’ sonora em
ser
então
um meio
acusmático tor na-se assim mais complexa, pois entr e o som captado
e o som gr avado há todo o apar ato de gravação que deixa vestígios
de seu trabalho, por mais realista que uma captação queira ser .
59
Mas
a
principal
quebra
com
um
sistema
realista
de
representação nestas obras decorre justamente do f ato delas serem
acusmáticas. A situação acusmática supõe um ouvinte separado do
lugar onde as supostas fontes reais f oram emitidas. No som de um
cenário há somente... o som
– sem a presença dos outr os aspectos
que compõem a cena (visualidade, cheir o, temperatura,
etc)
–
característica do som fixado que f oi chamada de esquizofonia por
Murray Schafer (Schafer, 1992, p. 176) . Uma pr imeira conseqüência
desta situação resulta no fato de não se ver a fonte dos sons, e por
isso se dar conta de que, para um mesmo som, há várias causas
interagindo – aquilo que Michel Chion chamou de Pluricausalidade
do Som ( Chion, 1999, p. 161-162; 1994, p. 27). Tome-se o seguinte
exemplo, seguido da explicação de seu autor:
Demos um p equeno g olpe seco co m uma caneta sob re
uma mesa. Qual é a cau sa d esse som? Es ta p ergu nta, seg undo
o que se entenda por causa, deixa aberta uma dezena de
respostas possíveis. Podemos dizer que é a caneta, mas
também que é a mão; que são a mesa e a caneta, uma contra
a outra; ou a ponta da caneta. Podemos dizer que a causa
deste breve choque é a onda vibratória que chega ao ouvido,
mas também nosso movimento, ou inclusive o desejo de fazer
u m a d e m o n s t r a ç ã o . ( C h i o n , 1 9 9 9 , p . 1 6 1 ) 44.
Assim, conforme as condições e as intenções de escuta se
tira esta ou aquela interpretação da causa desse som. Diríamos até,
por outro lado, que neste exemplo não se pode deduzir apenas pela
escuta (se este som for, por exemplo, gravado) qual seja sua f onte:
se a caneta, se a mesa, etc. T rata-se de um som inespecífico, e
discer niríamos apenas que se trata de um som seco, percussivo,
talvez deduzir íamos ser o som de um objeto metálico contra outro de
madeira, etc.
44
Demos un pequeño golpe seco con una estilográfica sobre uma mesa. Cuál es la causa de este sonido? Esta pregunta,
según qué entendamos por causa, deja abierta uma decena de respuestas posibles. Podemos decir que es la estilográfica,
pero también que es la mano; que son la mesa y la estilográfica, uma contra outra; o la punta de la estilográfica.
Podemos decir que la causa de este breve choque es la onda vibratoria que llega al oído, pero también nuestro
movimento, o incluso nuestro deseo de hacer uma demonstratión. (Chion, 1999, p. 161).
60
Agora, aliás, acabamos de esboçar uma segunda categoria de
escuta causal, decorrente da situação acusmática, e que Michel
Chion chama de indício sonoro materializador ( Chion, 1994, p.114;
1999, p. 135). Assim é def inido:
Os ind ício s so noro s materi alizadores s ão o s detalh es
do som que nos fazem ‘sentir’ as condições materiais da
fonte sonora, e referem ao processo concreto da produção
so nora. El es p odem nos dar informações sob re a sub stân cia
causadora do som – madeira, metal, papel, pano – bem como
a maneira pela qual o som foi produzido – por
fricção,
impacto, oscilações desiguais, movimentos periódicos de vai
e v e m , e a s s i m p o r d i a n t e . ( C h i o n , 1 9 9 4 , p . 1 1 4 ) . 45
Evidentemente,
estes
indícios
estão
presentes
no
som
independentemente de uma situação acusmática, mas são postos em
relevo à medida que não se vê sua causa. Por outro lado, são
vestígios necessár ios para que o ouvinte f ormule uma imagem dessas
causas; são elementos significantes para que r ecrie ou imagine a
cadeia causal do som, e não só isso, como também todo o ambiente
ou a cena em que esse som f oi produzido
– e isso não r efer e
necessariamente a um ambiente ou uma causalidade real, mas a uma
imaginária, conveniente confor me o contexto narrativo ou musical, e
realizável conforme certa perícia composicional. Este pr ocesso de
imaginação necessita da memória para se estabelecer, pois, pela
escuta, um som com for tes indícios materializador es vai induzir
todo um campo de imagens ligadas às fontes imaginadas - no
pr ocesso de imaginação/lembrança que descr evemos no pr imeiro
capítulo através do pensamento de Bachelard e que denominamos de
escuta onírica.
Mas para que uma identidade se estabeleça o compositor deve
selecionar os sons que conduzam à imagem que quer criar; caso
45
The materializing indices are the sound’s details that causes us to ‘feel’ the material conditions of the sound source,
and refer to the concrete process of the sound production. They can give us information about the substance causing the
sound – wood, metal, paper, cloth – as well as the way the sound is produced – by friction, impact, uneven oscillations,
periodic movement back and forth, and so on. (Chion, 1994, p. 114).
61
contrário, esta pode f icar dispersa. Pois o microf one é uma janela
pela qual passam, indistintos, todos os sons, ao contr ário da atenção
do ouvinte, que hierarquiza (voluntária ou involuntariamente) os
sons que lhe chegam:
(...) se Mendel ssoh n pu dess e ter ti do u m gravad or p ara
registrar os sons da gruta de Fingal e reescutá-los em seguida,
ficaria muito decepcionado com a inexpressividade do resultado,
e mesmo de sua ‘narrativa vaga’. Da mesma forma, os ruídos
captad os n os l ugares reais que ins piraram Oliv ier Messiaen em
su a ob ra Des ca nyon s au x ét oiles n ão resul tari am, como nós
mesmos fizemos a experiência, em nada de específico: é mais
provável que se ouça mais a passagem de carros de turistas e, em
horas determinadas, algum canto de pássaros e o cricrilar dos
insetos do que a majestade muda da paisagem e do esplendor
m u l t i c o l o r i d o d a s r o c h a s . ( C h i o n , 1 9 9 3 , p . 3 3 3 ) 46.
Desta colocação de Michel Chion deduzo então que par a as
obras que iremos analisar a realidade acústica objetiva interessa
pouco: em uma situação de escuta cotidiana jamais se está atento a
todos os aspectos do som, e nem se está atento por todo o momento.
É a noção mesma de tempo que está em questão: em uma situação de
escuta nor mal a atenção hierar quiza objetos a serem percebidos em
detrimento de outr os durante o fluxo temporal. Mas a gravação capta
todos os sons a todo instante, e quando se escuta uma repr odução já
se induz a uma intencionalidade que é a de uma atenção a todos os
eventos captados, sem distinção hierár quica para a per cepção. Tal
situação
é
artificial:
ocorre,
por
um
lado,
por
conta
das
características do aparato técnico, e por outr o, por conta da escuta
acusmática, que retira os sons de seus contextos originais.
O real portanto aparece, nas obras que abordaremos, como
representação. Para o senso comum a gravação sonora é apenas um
46
“ (...) si Mendelssohn avait pu avoir um magnétophone pour enregistrer les sons de la grotte de Fingal et les
réécouter ensuite, il aurait été très déçu de l’inexpressivité du résultat, et même de son ‘flou narratif’. De même, des
bruits captés dans les sites réels qui ont inspiré à Olivier Messiaen son ouvre Des canyons aux étoiles ne donnent,
comme nous en avons fait l’expérience, rien de spécifique: on a plus de chance d’y entendre des passages de cars de
touristes et, à des heures déterminées, quelques chants d’oiseaux et crissements d’insectes que la majesté muette du
paysage et la splendeur bariolée des roches.” (Chion, 1993, p. 333)
62
aprisionamento do som original – é sua cópia idêntica - mas, como
vimos, ela é insuf iciente para constituir uma repr odução do real,
pois tem pouco em comum com a percepção deste. As obras que
pr ocur am r epresentar a realidade acústica o fazem, por tanto, a par tir
de uma reconstrução, e
por isso são composições. O que as
diferencia das obr as instrumentais/vocais que se referem ao real –
c o m o o c a s o d a m ú s i c a p r o g r a m á t i c a 47 - é j u s t a m e n t e o u s o d a
gr avação sonor a, uma r epresentação dir eta do r eal, seu análogo,
como a fotografia (conforme descrevemos no cap. 1) . Nestas obr as
instrumentais- vocais o real chega seja pelo uso da imitação e da
onomatopéia seja por via de elementos convencionais muito mais
evidentes que na música eletroacústica. Os pássaros de Messiaen,
por exemplo, são imitações instrumentais, ‘onomatopéias’, e nunca
serão entendidos como o som do pássaro. São sons de instrumentos
imitando pássaros. Outros procedimentos composicionais provêm do
real, como a imitação cujo modelo é o eco, mas ser ão escutados
sempre
como
um
simulacro
do
real.
todavia, pode dispor do som do pássaro,
A
música
eletroacústica,
pode gravar um ambiente
com eco, e deslocar estes sons “naturais” para dentro de uma obra
musical. Mas estes elementos entram apenas enquanto objetos: a
gr avação sonor a não pode r eproduzir ou representar a r ealidade
como se escuta pois não possui o mesmo tipo de f luxo sonoro que a
percepção, nem dá conta das especificidades espaciais do som
“natur al”. O som gravado não é o som escutado normalmente – e
para r econstruir esta escuta é preciso fazer uso de convenções ou
reconstruções.
Um outro caso da r epresentação do real atr avés do som ocor re
no cinema. Em um f ilme, os sons colocados em sincr onia com suas
fontes mostradas na tela não são necessariamente bem-definidos do
47
Para uma conceituação geral deste tipo de abordagem musical, ver Chion, Michel: Le poéme symphonique. Fayard:
Paris, 1993.
63
ponto de vista da imagem sonor a causal: o espectador imediatamente
associa aquele som àquela imagem. Se se deseja criar uma cadeia
causal realista ou ver ossímil entr e sons e imagens os sons podem
ser, então, muito mais estilizados que propriamente realistas; o
t r a b a l h o d e s í n c r e s e 48 d á c o n t a d e l i g á - l o s à s i m a g e n s . B a s t a q u e
possuam características condizentes com aquela fonte, as quais
podem se limitar a indícios materializadores comuns. Por exemplo:
o som de passos com sapatos em um chão de madeira pode se reduzir
a quaisquer toc-tocs – claro, estr anho ser ia um som de passos que,
na imagem, acontecem em um gramado, e sonoramente parecessem
ocorrer em uma sala com piso de madeir a. O som de um r iacho,
todavia, não precisa ser necessariamente do riacho que se vê; basta
um som de água cor rente para conferir verossimilhança.
Na
ausência
música
do
eletroacústica
elemento
isto
visual
ocorre
obriga
o
de
outra
forma:
compositor
a
a
buscar
pr ecisamente, caso queira repr esentar objetos do mundo, os sons de
suas
f ontes.
Aqui
ocorre
também
a
estilização
e
o
uso
de
convenções: caso se queira aludir a uma imagem da realidade será
preciso
se
ater
a
sons
muito
claros
do
ponto
de
vista
da
referencialidade; pode-se empr egar mesmo esquemas sonoros não
necessariamente
reais
–
mas
eficientes
do
ponto
de
vista
da
representação - para espelhar estes objetos (como o fogo em La
Tentation de Saint Antoine, como vimos no cap. 2).
O título das
obras, ou outr as pistas verbais (notas de programa, vozes) também
são essenciais par a conduzir a imaginação do ouvinte para as
imagens desejadas – fato que f az com que esta música se distancie
ainda mais de um ideal de música pura ou autônoma.
48
Palavra forjada por Michel Chion, uma combinação de síntese e sincronia, assim definida: “(...) é a amálgama
espontânea e irresistível produzida entre um fenômeno auditivo particular e um fenômeno visual quando estes ocorrem
ao mesmo tempo”. (Chion, 1994, p. 63). [ “(...) is the spontaneous and irresistible weld produced between a particulary
auditory phenomenon and visual phenomenon when they occur at the same time”]
64
3. 1.3. Sonoro e musical: serão estes term os excludent es?
As obr as que iremos estudar estão associadas a uma ver tente
da música eletroacústica chamada paisagem sonora. Abor dam em
seu tecido uma dupla organização: uma primeira, explícita, diz
respeito a uma representação do real, exterior ou extrínseca. Mas a
outra diz respeito talvez a uma constr ução intrínseca dos sons entr e
si, naquilo que tr adicionalmente se estipula por musical.
Paisagem sonora (cf. Glossário) é um gêner o de música
eletroacústica acusmática que emprega a gravação sonora com o
intuito
de
representar
uma
realidade
acústica
(ou
seja,
faz
o
caminho inverso da gravação). Atém-se portanto a um pr imeiro
vértice
destas
controverso,
músicas
pois
bífidas,
abrange
uma
as
acusmáticas.
gama
muito
larga
É
um
de
termo
obras
e
pr eocupações estéticas e que, entr etanto, diz pouco sobre uma
representação acústica, pois não dá conta que, enquanto a paisagem
visual é um quadro estático e esquemático, o mesmo não ocorre nem
pode
ocorrer
com
o
som,
que
é
um
fenômeno
em
constante
tr ansf ormação e que só pode ocorrer no tempo. Não nos cabe por ém
discutir a validade de um termo que é amplamente empregado. Por
terem
portanto
o
aspecto
representativo
predominante
nossas
músicas são associadas à paisagem sonora.
Mas se um dos aspectos da análise destas obras vai se ater na
maneir a pela qual estes sons r epresentam uma imagem narrativa do
evento
sugerido
em
seu
título
(car acterística
predominante
da
paisagem sonora), outro aspecto vai ser o de apontar as f ormas de
composição a partir da escuta reduzida, as quais também estão
pr esentes nas obras que ir emos estudar . E ste me parece ser um rico
paradoxo
e
uma
das
maiores
forças
da
música
eletroacústica
65
a c u s m á t i c a , c o m o t a m b é m a p o n t a M i c h e l C h i o n 49: a r e l a ç ã o t e n s a e
pr esente numa mesma obra entre uma composição que ora privilegia
imagens referenciais e ora a mater ialidade do som. Oposição que se
instalou desde a primeira idade da música eletroacústica, nos Cinq
études de bruits de Pierre Schaeffer (1948) – obras iniciais da
música concreta - evidente desde alguns de seus títulos bipartidos:
Etude aux chemins de fer, Etude aux tourniquets, Etude pathétique
o u E t u d e a u x C a s s e r o l e s 50. E s t e s t í t u l o s o p õ e m , e m u m a m e s m a
sentença, uma forma abstrata ou um substantivo que denota uma
tendência à abstração – de qualquer forma ligado à tradição da
música ‘abstrata’ (Estudo) – a um termo que nos conta ou sobre a
fonte do som ou sobre o personagem principal da ‘anedota’, na
narratividade que aquela música contém, como no caso do Etude aux
c h e m i n s d e f e r 51. E s t a f o i a p r i m e i r a c o m p o s i ç ã o c o n c r e t a d e P i e r r e
Schaeffer,
e
desde
sua
feitura
o
compositor
constata
esta
ambivalência, como relata em 1948, no ‘primeir o diário da música
concreta’, antes de concluir a obra:
10 de maio: minha composição hesita entre dois
campos: o das seqüências dramáticas e o das seqüências
m u s i c a i s 52. ( S c h a e f f e r , 1 9 5 2 , p . 2 0 ) .
mas
demonstra
um
certo
desconforto
com
a
inevitável
pr esença, nesta composição com ‘sons f erroviár ios’ , do anedótico:
aos
A seqü ênci a dramát ica limi ta a imaginação. Ass iste-se
eventos: saída, parada. É visível. A locomotiva se
49
“Uma das riquezas da música de sons fixados reside, com efeito, na sua ambivalência com relação à questão da
anedota, a qual não cessa de desaparecer e aparecer” [Une des richesses de la musique des sons fixés réside en effet
dans son ambivalence par rapport à la question de l’anecdote, sans arrêt congédiée puis reintroduite]. ( C h i o n ,
1991, p. 14)
50
Estudo das Ferrovias, Estudo dos chocalhos, Estudo Patético ou Estudo das Panelas. Tourniquets não possui
tradução exata em português: trata-se de um brinquedo infantil semelhante a um chocalho metálico.
51
52
O Étude aux Chemins de Fer (versão de 1948) encontra-se integral na faixa 14 do CD em anexo.
10 mai. Ma composition hesite entre deux partis: des séquences dramatiques et des séquences musicales.
(S c h aeffe r, 1 9 5 2 , p . 2 0 ).
66
desloca, a ferrovi a é deserta.... A máquin a so fre, res pira, se
detém – antropomorfismo. Tudo isso é o contrário da música.
En tret anto , fu i bem su cedi do ao is olar um ritmo, e ao opô-lo
a si mesmo com uma cor diferente. Claro, escuro, claro,
es curo . Es te ritmo pod e mu ito bem ficar imutáv el p or u m
bom tempo. Cria-se assim uma espécie de identidade e esta
repetição faz esquecer que se trata de um trem. (idem,
i b i d e m , p . 2 1 ) 53
Emblemático do paradoxo da música concreta ou de sua contradição, o
Estudo das Ferrovias soa, para mim, como uma série de focalizações em diversos
aspectos do som de um trem: a partida, o som interno, de mais de perto das
rodas, a parada... como numa célebre seqüência, em Alexandre Nevsky, analisada
em O Sentido do Filme, de tomadas estáticas de uma paisagem e da tropa russa 54
(Einsenstein, [1947] 2003, p. 118). Na imagem vê-se, nesta sequência, dois
personagens na encosta da montanha, bem ao longe, em seguida próximos, e em
seguida um pouco mais distantes. Adiante, um plano geral da tropa russa na
estepe. Um novo plano na dupla de personagens. E agora o olhar volta-se para a
tropa: vista por trás, depois de frente com close no rosto de uma mulher, depois
com close em um velho, em seguida em um jovem, e em seguida o plano geral
da tropa vista de frente. A imagem da tropa em expectativa foi então decupada
em diversos planos, como fez a música de Schaeffer com relação aos sons do
trem.
Seqüência de Alexandre Nevsky
As repetições em loop (cf. Glossário) dos ‘ritmos isolados’ contribuem
para acentuar um realismo. Não é o trem uma enorme máquina sonora que produz
essas repetições? O loop, pelo emprego do sulco fechado (cf. Glossário) como
53
La séquence dramatique contraint l’imagination. On assiste à des événements; départ, arrêt. On voit. La locomotive
se déplace, la voie est déserte ou traverse. La machine peine, soufflé, se détend – anthropomorphisme. Tout cela est la
contraire de la musique. Cependent, j’ai réussi à isoler um rythme, et à l’opposer à lui-même dans une couleur sonore
différente. Sombre, clair, sombre, clair. Ce rythme peut três bien rester longtemps inchangé. Il se crée ainsi une sorte
d’identité et sa répétition fait oublier qu’il s’agit d’um train. (idem, ibidem, p.21).
54
Sendo que aqui consideramos apenas as imagens, e não a relação destas com a música.
67
primeiro suporte da música concreta é uma decorrência natural desse suporte e
transformou-se também, por conseqüência, no primeiro objeto retórico desta arte
nascente. Teria sido, neste contexto, a escolha dos trens meramente casual?
O loop foi, de qualquer forma, essencial para a posterior formulação da
teoria de uma escuta reduzida. É um recorte temporal repetido em seqüência, que
enquadra um som. A repetição por sua vez faz com que o ouvinte perceba
nuanças que passariam desapercebidas no fluxo sonoro natural, de modo que esta
nova dimensão do sonoro passa a ser o foco de sua percepção: faz com que tudo
que não se refira à percepção deste ‘puro sonoro’ passe para segundo plano –
sendo essa a idéia da escuta reduzida, como veremos com detalhe adiante.
Mas a repetição em loop, por enquadrar o som,
permite também, por
isolá-lo do continuum sonoro, que o ouvinte o analise e formule uma imagem
referencial estática – conforme desperte sua imaginação para a memória que tem
desses sons, relacionando-os com a vivência que teve ou que imaginou ter de seu
contexto. Esta é outra possibilidade que a técnica permitiu, como uma fotografia
do sonoro, ou uma lente de aumento. Assim é que posso distinguir se a tomada é
exterior ou interior ao trem, se é próxima ou distante das rodas, e formular as
imagens subseqüentes a isso.
Porém é possível escutar no Estudo uma outra dimensão, ‘musical’:
ritmos
compostos
através
da
montagem,
formando
frases
musicais
(Étude_exemplo, faixa 15, 2’15” do orgiginal). No exemplo adiante temos uma
idéia musical ‘tradicional’: a primeira série de quatro sons, Σ , reverberados, de
ataque/ressonância e massa tônica, formam uma pulsação que se espalha para as
outras duas séries de sons repetidos (Φ e Ξ), conforme mostra a linha acima dos
objetos Σ e Ξ. Σ ecoa em Ξ, pois esse possuiu as mesmas características tipomorfológicas daquele, e por isso o complementa e encerra a frase. A seqüência
de apitos quebra com a periodicidade de Φ e abre espaço para a reintrodução da
seqüência final, que é uma variação da inicial. (ouvir faixa 15)
68
Audiopartitura: 2’15” a 2’28” (Étude aux Chemins de Fer)
A frase analisada compõe-se, portanto, de uma seqüência de ritmos
isolados repetidos em loop – série de quadros estáticos que se engendram
seguindo uma lógica ‘musical’, e não ‘anedótica’. Cada quadro, porém, contém
uma imagem (exterior/interior, distante/próxima da fonte, etc), imagem autosuficiente e fechada em si mesma (com relação a um pano de fundo ou um ponto
de fuga, o trem, presente no título da obra e em sons claramente referenciais), e
sua ordem é indiferente para a construção de uma narratividade - como os
quadros de Einsenstein, os quais foram montados a partir da relação forma
visual/música, naquilo que chamou de “independência igual de planos” (idem,
ibidem, p. 113, nota 13) – ou seja, foram montados, na ordem entre os planos, de
forma a não engendrar uma lógica narrativa ou teleológica, mas de forma a
possuir um sentido com relação a um âmbito geral, a expectativa da batalha (ver
filme1 – CD 2).
69
3.1.4. A Escuta Reduzida
Mas, se da fala de Schaef fer deduz-se essa composição
entre dois pólos, evidenciada em sua produção musical, salta aos
olhos também o desconf orto com relação à existência daquilo que é
“o contrár io da música”. Presente desde os primeir os esboços, este
desconforto vai resultar mais tarde em uma prática musical mais
r e s t r i t i v a p o r p a r t e d e S c h a ef f e r , q u e v a i e v i t a r o ‘ a n e dó t i c o ’ – p o i s ,
para ele, a aventura concr eta, a música feita a partir de qualquer
material gravado ( os chamados, até então, ‘ruídos’ ) deve se ater
preferencialmente
aos
‘valores
musicais’
do
som,
deve
ser
constr uída sobretudo a par tir de um viés musical. Como sugere
Rodolf o Caesar , esta prática musical posterior à primeira música
concreta entra em acordo com sua teoria em formulação no fim dos
anos cinqüenta – a qual pr ocur ava o ‘específico da música’ na
composição com ruídos – específico que não se encontrava na
referencialidade dos sons. A obra que transpar ece esta preocupação
em tir ar se possível todo o ‘anedótico’ é o Étude aux objets, de
1959, e assim fala Caesar sobre o Étude aux Allures:
Transpareceu, no Étude, o esforço de sistematização de objetos sonoromusicais pelos critères de perception, aplicado na concepção e na feitura da música.
A música de Schaeffer pós-Traité adquiriu, assim, mais ‘classicismo’ em detrimento
da diminuição na carga polissêmica (...).A teoria dos objetos sonoro-musicais não
poderia se ajustar facilmente às obras desta primeira fase [a fase ‘concreta’, anterior
aos Étude aux objets]. As ambigüidades semânticas destas peças, sua
referencialidade, sua energia, seus sentidos e a poética alimentada por todos os
aportes externos a uma 'escuta reduzida' ficaram, mais tarde, ausentes. É como se a
partir de 1958 a música composta por Schaeffer entrasse em acordo com os quadros e
encaixes morfo-tipológicos descritos em seu Tratado. (Caesar,
http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcpesqs/escupes.htm, acessado em
02/09/2003).
A
construção
musical
schaef feriana
do
fim
dos
anos
cinqüenta confirma então o projeto descrito mais tarde no Traité des
objets sonores, de 1966. Tal construção deve ser feita a par tir de
70
uma escuta reduzida, termo que se ref ere a um método de trabalho,
uma ferramenta, que consiste em escutar um som for a de seus
contextos, “abstraindo-o de sua causalidade, f onte, signif icação, ou
seja, colocando em par ênteses o mundo ‘for a do som’”, como bem
sintetizou Laura Di Pietro (Di Pietro, 2000, p. 35). O que se busca
aqui é um encontro com a mater ialidade do som, é voltar a intenção
de escuta não para aquilo que o som refere (uma escuta dos signos
ou dos índices, dos quais é portador), mas par a o som em si. É
colocá-lo em parênteses, objeto puro para a percepção. Decorr e daí
a redução, ou seja, coloca- se à par te toda a questão da causalidade,
ou qualquer outra referência codif icada (seja nota musical seja
palavra).
A noção mesma de objeto sonoro decor re daí: trata-se de
escutar o som como objeto em si mesmo, em oposição a outras
escutas:
No momento em que escu to, no t oca-discos, um ruído
de galope, assim como o índio nos Pampas, o objeto que eu
viso, no sentido bem geral que temos dado ao termo, é o cavalo
a galope. É com relação a ele que entendo o som como índice,
ao redor desta unidade intencional a qual se ordenam minhas
diversas impressões auditivas.
No momento em que escu to u m di scurso, viso aos
conceitos, que me são transmitidos por esse intermediário. Com
relação a esses conceitos, significados, os sons que escuto são
os significantes.
Nestes doi s casos, não há objeto s onoro: h á uma
percepção, uma experiência auditiva, através da qual eu viso a
u m o u t r o o b j e t o . ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 8 ) 55
O som fixado, por outr o lado, é um pressuposto par a o
conceito de objeto sonoro, pois “gravado, o objeto sonoro se dará
55
“Au moment où j’écoute, au torne-disque, um bruit de galop, tout comme l’Indien dans la Pampa, l’object
que je vise, dans le sens très général que nous avons donné au terme, c’est le cheval au galop. C’est par rapport à lui
que j’entends le son comme indice, autour de cette unité intentionelle que s’ordonnent mes diverses impressions
auditives.
Au moment où j’écoute um discours, je vise des concepts, qui me sont transmis par cet intermédiaire. Par
rapport à ces concepts, signifiés, les sons que j’entends sont des signifiants.
Dans ces deux cas, il n’y a pas d’object sonore: il y a une perception, une éxperience auditive, à travers
laquelle je vise un autre objet.” (Schaeffer, 1966, p. 268).
71
como idêntico, através das percepções diferentes que terei a cada
e s c u t a ” ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 9 ) 56 – “ t r a n s c e n d e n t e à s e x p e r i ê n c i a s
individuais” ( idem, ibidem). A fixação sonora portanto transforma
este “objeto efêmero” (ou seja, que não é “fixo no tempo” –
Schaef fer, 1966, p. 161) em um objeto estável, e permite uma
investigação do sonoro que vá para além de uma descrição subjetiva
–
que
permite
portanto
um
método
e
uma
investigação
intersubjetiva.
Tal método busca alcançar, através de uma percepção
“naïve”,
ou
seja,
anterior
a
qualquer
formulação,
estruturas
decorr entes da escuta reduzida que conduzam a um novo musical,
feito
a
partir
de
todo
o
sonoro.
Funda
para
tal
um
solfejo
generalizado pois, par a descrever essa nova paleta sonora o solfejo
tr adicional se mostra inef icaz, pois é baseado em noções como
altura e duração proporcional. Mas este novo solfejo é aberto mesmo
aos sons de altura def inida, pois se trata de escutá-los com novos
ouvidos, de ater-se ao que o som tem de material, e não a noções
padronizadas pela acústica ou pela música tradicional. No caso de
um som de altura definida, por exemplo,
que
vão
além
da
percepção
do
trata-se de buscar valores
parâmetro
nota;
valores
que
descrevam essas outras potencialidades sonoras e as sistematizem
em gamas, ou categorias escalares.
Deve encontrar então, pela escuta reduzida, os critérios
d e f o r m a e d e m a t é r i a 57 d e u m s o m a r t i c u l a d o ( o u s e j a , d e s t a c á v e l
do contínuo tempor al), isolando-o de sua significação, atendo- se
somente
ao
sistematizar
56
som
a
em
si.
composição
Fruto
‘com
de
uma
todos
tentativa
os
sons’,
histórica
sua
de
música,
“Enregisté, l’object sonore de donnera comme identique, à travers les perceptions différentes que j’em aurai à chaque
écoute” (Schaeffer, 1966, 269).
57
A chamada tipologia do objeto sonoro.
72
portanto,
deveria
evitar
o
anedótico;
caso
contrário
seria
um
fr acasso:
Eu já havi a ex peri ment ado [o t rabalho com ruíd os] a
propósito das ferrovias: é necessário arrancar os ruídos de
seu contexto dramático, assim como o som musical da prisão
das notas, das palavras e das frases da linguagem musical.
Di to d e ou tra forma, mesmo se o materi al d os ruído s
me garantisse uma certa margem de originalidade com
relação à música, eu estaria, nos dois casos, voltado ao
mesmo problema: arrancar o material sonoro de todo o
contexto, dramático ou musical, antes de querer lhes dar uma
forma. Se tivesse êxito, teria uma música concreta. Se não,
nada além de trucagem e procedimentos de rádio. (Schaeffer,
1 9 5 2 , p p . 4 6 - 4 7 ) 58.
Mas, se para a teoria schaef feriana esta subtração do anedótico
parece condizente (pois está à busca do objeto sonoro, ou de um
som em si) , este impulso é inconsistente com sua obra anterior à
aparição do Etude aux objets, de 1958. Na chamada fase concreta o
anedótico
aparecia
sistematicamente
constr ução a partir do som
e
convivia
bem
com
esta
- apesar do desconforto pr esente nos
escritos da época. Mesmo sua teoria, apesar de se dirigir a um
entendimento do som escutado em si, não é absolutamente restritiva
com relação ao uso do ‘anedótico’na música: é sua prática musical
que acaba por expulsá- lo completamente.
3. 1.5. A “música pura”: existe um som em si?
O que o teria levado a tal guinada? É sabido que Schaef fer não
teve uma f ormação musical tradicional: sua trajetória foi múltipla,
mas destacou-se até então, sobretudo, como criador de rádio. Por
58
“Je l’avais déjà expérimenté à propôs des chemins de fer: il fallait arrancher le bruit à son contexte dramatique, tout
comme le son musical à la prison des notes, des mots et des phrases du language musical.
Autrement dit, même si le matériau du bruit me garantissait une certaine marge d’originalité par rapport à la
musique, j’étais, dans le deux cas, conduit au même problème: arracher le matériau sonore à tout contexte, dramatique
ou musical, avant de vouloir lui donner une forme. Si j’y parvenais, il y aurait une musique concrète. Sinon, il n’y
aurait que truquage et procedés de mise en onde”. (Schaeffer, 1952, pp. 46-47).
73
aventurar- se, de maneira r adical, em um terreno tão tr adicionalista
como o da música, sofr eu as mais diver sas críticas depreciativas,
dentre
as
quais
são
as
de
Pierre
Boulez
as
mais
conhecidas
(“trabalho de diletantes espantados”; “fizeram do estúdio de música
concreta um mercado de pulgas de sons em que o bricabraque,
infelizmente,
não
guarda
nenhum
tesour o
escondido”,
etc.
cf.
Boulez, 1995, p. 262). A f uga da referencialidade pode ser, então,
uma reação def ensiva contr a os esf orços em favor de uma música
pura, sustentados igualmente pela vanguarda serialista de então.
Esta busca por elementos “musicalmente intrínsecos” do som “tende
para a idéia de música absoluta” ( Freire Garcia, 2004, p. 79), pois a
tipologia dos objetos sonoros, “por exemplo, não utiliza nenhum
cr itér io de localização espacial, de características ambientais ou
mesmo
semântico.”
(idem,
ibidem).
O pr ojeto schaef feriano
é,
portanto, contrário àquilo que está pr esente em sua obra anter ior.
Ao
tentar
excluir
todo
o
‘ extr a-musical’
aproxima- se,
paradoxalmente, tanto de seus antagonistas quanto dos opositor es da
música programática do século XIX, que fundaram a noção de
música absoluta.
Esta noção foi claramente formulada em O Belo Musical, de
Eduard Hanslick, publicada pela primeira vez em 1854 – e que agor a
retomamos. Nesta obra busca-se mostrar que o belo da música está
não para aquilo que ela refere (sentimentos, imagens, conceitos),
mas na sua própria construção musical, ou seja, nas suas r elações
formais intrínsecas. O “material sonor o” exprime somente idéias
musicais, cuja finalidade está em si mesmo e que não r efer e a nada
além de sua pr ópria forma. O belo musical portanto é um em si:
To dos os elementos mus icai s es tão relacion ados ent re s i
secretamente e em afinidades eletivas baseadas em leis naturais.
Es tas afin idad es eleti vas, que de forma in visí vel domi nam o
ritmo, a melodia e a harmonia, exigem cumprimento na música
humana e marcam com brutalidade e arbítrio qualquer relação
74
qu e as con trad iga. Viv em i nsti ntiv amen te, aind a qu e não na
forma científica e consciente, em todos os ouvidos cultos, que,
por conseguinte, percebem o orgânico e a racionalidade de um
grupo de notas, ou seu absurdo e antinaturalidade, através da
pu ra i ntui ção (...). (Hansli ck, [189 1] 1 989, p. 67)
A música, neste contexto altamente idealista, assemelha-se a
um fenômeno natural. Não é discutida enquanto produto da cultura,
pois
somente
os
“ouvidos
cultos”,
ou
seja,
os
de
indivíduos
tr einados na tradição musical ocidental, são capazes de perceber
esta beleza em si.
Schaef fer estava longe de apregoar este ideal eurocentrista e
elitista: ao contr ário, seu esforço descritivo buscava dar conta de
todas as organizações sonoras, inclusive aquelas de músicas nãoocidentais.
Mas
o
objeto
sonoro
é
um
conceito
que
permite
aproximações com o belo musical no que diz respeito a essa escuta
autônoma do som ou da música. Ao contr ário de Hanslick, todavia,
Schaef fer acreditava que o ‘natural’ do som é o de ser escutado em
seus
contextos
r e f e r e n c i a i s 59.
O
esforço
da
escuta
reduzida
é
sobretudo ‘artificial’ , intencional. Mas ambos acr editavam nessa
escuta do som ou da música em si como sua essência, aquilo que ela
tem de inexorável e de permanente.
A crença em uma beleza ‘natural’ da música (o ideal de
Hanslick) leva a um absoluto, no qual ela não pode ser descrita com
palavr as, pois não se refere a nada.
Descrever esse bel o in dependen te d a mú sica, es se
elemento especificamente musical é extraordinariamente
difícil. Como a música não possui um modelo na natureza e
não exprime um conteúdo conceitual, só se pode falar dela
com áridos termos técnicos ou com imagens poéticas. Seu
reino, na verd ade, ‘não é dest e mu ndo’. To das as fantásticas
representações, caracterizações, descrições de uma peça
musical são alegóricas ou errôneas. O que para qualquer outra
59
“Por escuta natural queremos descrever a tendência prioritária e primitiva de se servir do som para informar-se de
um evento” (Schaeffer, 1966, p. 120). [Par écoute naturelle, nous voulons décrire la tendance prioritaire et primitive à
se servir du son pour reseigner sur l’événement].
75
arte não passa de descrição, para a música já é metáfora.
(Hansli ck [1891 ] 19 89, p. 6 5).
Mas é precisamente aqui que o conceito falha, pois o própr io
Hanslick diz que o conteúdo da música são “for mas sonoras em
movimento”, e ao descr ever estas f ormas recorr e a uma comparação
com uns ‘arabescos vivos’ que inventa – como está na epígr afe
desse capítulo. Assim, par a se falar de música é preciso r ecor rer a
outrem:
Segund o es ta concepção [de mús ica pura em Hansli ck],
aquilo que se chama a música deverá implicitamente
es tabelecer um só nível ho mogêneo de d efin ição . Uma vez
encontrado ele deverá ser a referência, e todo o resto,
julgado extra-musical, é descartado. Entretanto, não se cessa
de caçar este extra-musical, como um inseto inoportuno, que
não cessa de retornar, pois justamente a ordem diz
‘intrinsecamente musical’ e suas relações não poderão se
apoiar senão em esquemas simbólicos que partilham com
outras
ordens
de
fenômenos
lingüísticos,
artísticos,
c i e n t í f i c o s , h u m a n o s o u n a t u r a i s . ( C h i o n , 1 9 9 3 , p . 2 5 ) 60.
A
própria
linguagem
schaef feriana
na
tipologia
e
na
morfologia do objeto sonoro esbarra ou na metáfora ou em conceitos
referentes
a outros sentidos além
da audição.
Isto
não
é um
pr oblema de uma incapacidade descr itiva da linguagem. O som é um
objeto vago, impalpável; apesar de ser “deste mundo” possui, como
vimos, uma relação não-previsível com suas fontes. Michel Chion
menciona mesmo que não há um isomorfismo absoluto entr e a causa
e o som, e nem um absoluto heteromorfismo. .. o som de um r iacho
que flui é estático, de uma esferográf ica que desenha objetos
circulares no papel é contínuo, e o de uma ser ra cortando a madeir a,
apesar de traçar nesta uma linha, “desenha no ouvido uma espécie de
60
“Selon cette conception, ce qu’on appelle la musique devrait implicitement reveler d’un seul niveau de definition,
homogène. Une fois trouvé il devient la reference, et tout le reste, jugé extra-musical, est écarté. Ou du moins on ne
cesse de chasser, comme un insecte importune, cet extra-musical qui ne cesse de faire retour, parce que justement
l’ordre dit ‘intrinsèquement musical’ et ses relations ne peuvent que s’appuyer sur des schèmes symboliques qu’il
partage avec d’autres ordres de phénomènes linguistiques, artistiques, scientifiques, humains ou naturels.” (Chion,
1993, p. 25).
76
‘superfície’
decorrente
circular”
de
um
(Chion,
1999,
acelerador de
carro
p.
150).
r esponde
Porém,
o
som
exatamente às
mínimas inflexões do pedal, e uns pizzicati de violoncelo respondem
visualmente como uma imagem elegante e pontual da mão direita.
Pode ser, ainda, que o som estimule ou se dir ija não apenas ao
‘aparelho auditivo’, mas que seja a “metáfora de uma percepção
contínua e sem limites” (idem, ibidem, p. 88) que atravesse todo o
sensível.
Denise
Garcia
analisa
situações
musicais
em
obras
eletroacústicas que são constr uídas a partir de modelos corpor ais e
que se dir igem à r espiração, ao gesto ou à voz. Em seu trabalho,
caracteriza a música eletr oacústica como “sem sistema”, que buscou
no cor po sua coerência ou seu modelo ( Garcia, 1998, p. 173) –
música cujas “verdadeiras telas, onde se projetam as vibrações dos
sons emitidas pelos alto-f alantes, são os nossos corpos. Neles
confluem os sons que acordam todos os sentidos.” ( idem, ibidem).
Em uma análise de uma cena de La mariée etáit en noir (A
noiva vestida de negro), f ilme de Tr uffaut, Chion aponta um outro
aspecto da imaginação sobr e o som – a de que se acredita que
este
possa carr egar consigo não apenas as características f ísicas da
cadeia causal – a crença neste absoluto isomor fismo - mas também
seu afeto ou pathos. A cena pode ser resumida em um sujeito que
mostra a um amigo a gr avação sonor a que fez de uma mulher
vestindo meias de nylon e que cruza as per nas; o sujeito que gravou
informa que havia tentado fazer com meias de seda, mas que estas
não haviam traduzido o efeito desejado. Chion discute então o que
seria esta ‘tr adução’:
Se entendi corretamente, ao tocar sua gravação o
personagem não estava tão interessado em chamar seu amigo
para que identificasse a causa real. Se estivesse, poderia ter
dito, ‘Mas você não pode dizer que isto é o som de meias de
mulher’. Ele desejava, ao invés, trazer um efeito ou sensação
associada com a fonte sonora – um efeito de sensualidade,
erotismo, intimidade, contato. É por isso que as meias de nylon,
77
mesmo sendo um material mais comum, mostraram-se, ao seu
gosto, melhores que as meias de seda para traduzir o efeito na
g r a v a ç ã o . ( C h i o n , 1 9 9 4 , p . 1 1 0 ) 61
O personagem que grava mostra, pelo seu experimento, que a
seda não produz um som que traduz os sentidos associados a ela (o
pr azer do tato na ligeira aspereza, a imagem de sensualidade, etc) .
Mas o som das meias de nylon não basta também para a tradução
desse efeito: é pr eciso uma explicação ver bal e, eu adicionaria, uma
contextualização narrativa (tr ata- se de uma mulher vestindo meias) .
O som da f ricção das meias de nylon é o indício sensível da cena
criada
pela
narração
e,
a
partir
dela,
torna-se
um
objeto
extremamente er otizado. Por outro lado, par ticulariza o sentido da
imagem ref erencial, dando- lhe uma mesma carga de significação. A
imagem nar rativa e o som tornam-se assim um bloco único: o som
das meias traduz-se em sensação tátil, mas esse ef eito é conseguido
através do dir ecionamento feito pela narrativa. Este som escutado
em um contexto acusmático e sem nenhuma pista ver bal talvez não
conduza necessariamente a nenhum desses valores, nem mesmo ao de
algo dado ao toque.
O som permanece assim aber to à imaginação. Por ser um
objeto absolutamente vago, irr adia-se em muitas direções, toma
emprestado campos díspares da linguagem e remete para muito além
do sensório ‘auditivo’ – se é que uma tal região homogênea exista.
Por chocar -se com tantas outras sensações cria blocos contínuos de
tato-audição, audio- visão, etc – sendo por isso uma abstração como
a escuta reduzida algo completamente ilusór io, embora essencial
para a for mulação da teoria de uma música “a partir do sensível”.
Porém não é possível sustentar que a essência da música esteja no
61
“If I understand correctly, in playing his recording the character was not so interested in getting his friend to identify
the real source. If he were, he could have said, ‘But you couldn’t tell that it was the sound of stockings.’ Rather, he
wished to convey an effect or feeling associated with source – an effect of sesuality, eroticism, intimacy, contact. This
is why the nylon stockings, even though a more commom material, proved more to his taste than silk stockings in the
rendering of the recording” (Chion, 1994, p. 110).
78
som em si e em suas relações inter nas. O ‘ puro musical’ é, por tanto,
a essas alturas da criação musical, uma restrição dos limites da
música.
A partir da contextualização teórica que foi feita até aqui
podemos então prosseguir para a análise de três obras que refletem
as questões levantadas. As duas últimas são peças acusmáticas que
lidam com o musical/extra- musical e enf atizam uma ubiqüidade
destes dois campos. A primeira é um filme do qual iremos analisar
seu início, em uma cena que é, em forma de filme, uma reflexão
sobre estas questões r elacionadas à representação do r eal e à escuta
deste. Iremos iniciar por ela.
3.2.
P aisagens
Presque Rien,
Sonoras?
Análises:
C’ era
una
Volta
il
West,
Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé
Rouge - estudos da escuta.
3. 2.1. C’Era una Volta il West
De volta à análise de obras. A cena inicial de Era uma vez no
o e s t e , f i l m e d e S e r g i o L e o n e 62. A e n o r m e s e ç ã o d e c r é d i t o s q u e
ocorre em um silêncio em que todos os sons são significativos – os
primeiros treze minutos do filme. Trecho enigmático de uma obra
analisada por Michel Chion (Chion, 1999, p. 107) e Rodolfo Caesar
(Caesar , 2004), e que aqui adicionarei outr as obser vações que são
relacionados com o nosso tema, como a repr esentação (pelo som e
pela imagem) de um sujeito hipotético que a tudo obser va e a
intenção de escuta dos per sonagens.
Que ouvimos ali então desde o início e que chama nossa
atenção pela continuidade? O som de um pássaro, incessante, e um
62
O trecho a ser analisado está no CD 2, filme 2.
79
som como que de uma respir ação, tr ês notas escorregadias ( ou seja,
que se fixam em um centro mas fogem dele em seguida), como um
ostinato, ao longe. Do primeir o som sabemos de imediato qual seja
sua fonte. É evidente que se trata do som de um pássar o pr eso em
uma gaiola, pr ovavelmente pendurada em algum canto estação de
tr em. Em breve esta impressão se conf irma, pois um dos tr ês vilões
que
invadem
a
estação
resolve
provocar
o
bicho,
imitando-o
nervosamente. Parece estar irr itado com seu ruído incessante.
O ruído do pássaro cessa assim que dois dos tr ês invasores
saem da estação e o olhar da câmar a os acompanha; não cessa porém
o som- respiração. Aprendemos então que este vem de for a, pois
assim que a câmara mostra o cata-vento o som f ica mais presente, e
decifr amos sua fonte. Um personagem se dir ige até o cata-vento e
passa por ele; ouvimos agora novos detalhes que se somam ao
ostinato: um objeto sonoro feito de impulsos agudos iterativos,
constante, cuja fonte parece ser a de uma fricção metálica. Porém,
nesse plano ainda não é possível
associar este novo objeto à fonte.
É no plano seguinte que a associação se faz: a câmara olha o
personagem de cima, da plataforma onde está o cata-vento – e o som
é responsável aqui por criar um ef eito típico de westerns: como se
torna
muito
mais
presente,
tomamos
consciência
de
que
é
representação da escuta de alguém que está próximo ao cata-vento;
parece ser a escuta deste que olha o personagem. T rata-se de um
sujeito ou de um mero olhar da câmara? Ser á esta uma câmar a
subjetiva? O f ilme explora assim esse efeito típico: nos westerns
sempre há alguém à espreita de um outr o que não sabe de sua
pr esença, que não está ciente do olhar do outr o, e em geral esse
olhar vem de cima, de um lugar alto. A ação continua e descobrimos
que não há um sujeito específico sobre a plataforma, há apenas um
olhar e uma escuta... Já nos r efer imos a esta repr esentação de um
sujeito hipotético na apresentação desse capítulo, e aqui teremos
80
oportunidade de esclar ecê- la. Como em O Homem da Câmara, filme
de Dziga Vertov, o olhar, embor a não personificado, pressupõe o
ponto de vista de um obser vador:
Na análise do filme de Dziga Vertov , Jacques Au mont
demonstra que o uso do enquadramento no filme como
manifestação de um ponto de vista supõe que este não é
atribuído a nenhum personagem senão àquele relativamente
ab strato d o própri o “h omem da câmara”. (Au mont & Marie,
1999, p. 125).
Mas a seqüência de Leone traz outros detalhes com relação à
escuta. Seguimos o per curso do som de cata-vento. Ele está em
pr imeiro plano até o momento em que um dos vilões, sentado em
uma cadeira de balanço, escuta o som de um telégrafo que chega,
quebrando a textur a quase silenciosa até então. O ruidoso apar elho
está ao seu lado e interrompe seu cochilo; irr itado (diríamos até:
ir ritado pelo telégraf o interr omper sua escuta sonolenta do som do
cata-vento), arranca os fios da máquina, e impõe à paisagem o
silêncio de antes. O som de cata-vento, porém, não acontece em
seguida: o gesto do homem interrompe também todos os sons, e o
silêncio que segue dá lugar a uma série de acontecimentos sonoros
delicados.
O primeiro deles ocorr e com o personagem que havia passado
em
frente
ao
cata-vento.
E stá
encostado
em
uma
parede
e,
subitamente, uma gota de água cai em sua testa. Escutamos o ruído
agudo e br ilhante da gota na pele do homem. Em seguida, põe seu
chapéu, e o som muda completamente: torna- se opaco e grave. O
homem parece ter uma feição de prazer quando coloca o chapéu e
c o n s t a t a a m u d a n ça d o s o m . . . m a i s t a r d e , q u a n d o c h e ga r o t r e m e s u a
espera estiver ter minada, irá beber a água acumulada. Mas, como
pergunta Michel Chion, o homem coloca seu chapéu para proteger
sua cabeça da água, ou par a guardá-la e assim saciar sua sede? Ou
81
teria simplesmente colocado o chapéu para mudar o som da gota, por
simples pr azer auditivo?
O
outro
acontecimento
ocorre
com
um
personagem
que,
encostado em um bebedouro para animais, passa a estalar os dedos e
a
produzir
ruídos
secos
e
iter ativos.. .
o
faz
deliberadamente,
exager adamente, em todos os dedos.
E um terceiro acontecimento ocorre com o homem na cadeira
de balanço. Uma mosca o ronda e interr ompe seu sono. E scutamos
seu ruído e imaginamos o incômodo, mas o homem tem uma idéia
súbita: consegue prender a mosca dentr o do cano de seu revolver. O
som
do
animal,
antes
com
grande
variação
de
tom,
torna-se
aprisionado pela r essonância do cano, ressoa uma única nota. O fato
é que o homem parece satisfazer-se em escutar esse novo som. Mas
teria
o
prazer
da
escuta
ou
simplesmente
o
prazer
pela
sua
descoberta astuta?
Estariam estes homens brincando com o som? Estariam eles
conscientes dessas var iações? Suas ações, de f ato, modular am os
ruídos, mas teriam acontecido em f unção do som?
A isso não há resposta, pois os personagens estarão mortos
minutos depois... De f ato, eles estão assim atentos a todo o r uído
por que esperam, em uma estação vazia no meio do deser to, o tr em,
que traz o homem que supostamente irão matar mas que os mata.
Mas quanto ao som de cata- vento, ele volta ao fundo, antes do trem
chegar , mas quando este surge desaparece completamente. O som do
tr em ( que vem ao longe como um apito, muito semelhante ao som da
mosca no r evólver) toma conta de toda a paisagem. O som de catavento só r etor na quando resta o silêncio absoluto após o tiroteio,
quando todos os tr ês personagens iniciais estão mortos. Fica como
um comentário irônico, de mau- agouro. Soa sozinho por um bom
tempo,
close
no
moinho
girando,
impiedoso
absolutamente alheio aos males dos homens.
e
constante,
82
O
percurso
do
som
de
cata-vento
assemelha- se
ao
pr ocedimento de imagem de som que Pier re Schaef fer deu ao trem
em Étude aux chemins de fer: ora soa mais per to, ora mais longe,
or a com mais detalhe, etc. A difer ença está no jogo que se faz com
sua fonte sonora: por todo o início da seqüência, não se sabe qual é,
é uma fonte acusmática, e por conta disso nos referimos a esse som
ou por uma metáfor a, som-respiração, ou com r efer ência a um
pr ocedimento musical, decorrente de sua característica
repetitiva,
som ostinato. É de se perguntar se, na minha primeira escuta, eu
havia percebido conscientemente esse som antes que se mostrasse
sua fonte. Na verdade, é um som possível naquela paisagem. Cria
também um efeito audio- visual que Michel Chion chama de extensão
(Chion, 1994, p. 87) e que consiste numa dilatação espacial, pela
escuta acusmática, da cena na tela. Na cena no interior da estação, o
s o m d o c a t a - v e n t o , j u n t a m e nt e c o m o v e n t o e u m s i l ê n ci o a m p l o , d ã o
abertura ao espaço visual, mostram uma cena mais ampla que a vista
na tela – e que vai se confirmar momentos depois.
Outro fato associado ao Étude é o som do tr em. Aqui “ele
sofre, respira, se detém”, e escutamos, quando apita para ir embor a,
uma leve ressonância, que mostra acusticamente aquilo que estamos
vendo: a cena se passa em um largo vale, muito amplo, que dá aos
sons uma cor impalpável, pois não há r ever beração e nem reflexão
alguma. Há apenas essa leve ressonância, que amplia levemente a
duração dos sons.
O que estou descrevendo? Um aspecto do som que molda o
ambiente acústico em que f oi emitido: se de dentro ou de f ora do
lugar de escuta, se em um vale ou um deser to, etc. O som deixa
indícios desse espaço e a imaginação dá conta de r ecriá-los.
83
3 . 2 . 2 . P r e s q u e R i e n 63
Luc
Ferrari
nos
conta
sobr e
estes
procedimentos
de
‘f otografia sonora’, semelhantes aos que descr evemos a pouco:
O que é belo nos barcos a motor é que pela sua ressonância eles mostram a
forma das montanhas ao redor do porto. O interesse, eu nem diria pela beleza, mas o
interesse de um carro que passa pela rua é o de descrever as casas. Se se prestar bem
a atenção, elas não possuem a mesma sonoridade na Rue Mouffetard ou no
Boulevard Haussmann, é também uma forma de descrever a arquitetura, ali onde
vivem as pessoas, daquilo que elas escutam a partir de suas janelas. Estas são as
paisagens para mim. (Ferrari & Caux, pp. 128-129, 2002)64.
A que barcos a motor ou a que porto estaria se ref erindo? Aos
que estão presentes em Presque Rien ou Le lever du jour au bord de
l a m e r 65, o b r a d e 1 9 6 7 - 7 0 q u e i n a u g u r o u a p r á t i c a d e p a i s a g e n s
sonoras, ou, como se r efer e, de “f ilmes sonoros, visíveis somente no
i n t e r i o r d a m e n t e ” 66 ( F e r r a r i & C a u x, p . 1 4 8 , 2 00 2 ) , q u e s e u t i l i z a d a
gr avação sonor a como um “plano- seqüência e imagem sonor a fixa,
tipo de diapositivo que dá à escuta uma fatia do r eal, como método
d e t r a b a l h o e c o m o m e i o d e s e l i b e r t a r d o s h á b i t o s ” 67 ( F e r r a r i &
Caux, p. 178, 2002).
Por meio desse método Ferr ari busca fazer um estudo dos sons
cotidianos - como se r efer e - pois acr edita que somente a gravação
sonora é capaz de trazer para o tecido musical a sociedade e o
ambiente, fato impossível de se conseguir com outr os meios, como a
orquestra:
O conceito dos ‘Presque Rien’ é a observação de um
fenômeno sonoro ou social que não poderia ser apreendido
63
64
A obra integral está na faixa 16 do CD em anexo, Presque Rien.
Mais ce qui est beau dans les bateaux à moteur, c’est que par leur résonance, ils montrent la forme des montagnes
autour du port. L’intérêt, je ne dirais pas la beauté, mais l’intérêt d’une voiture qui passe dans la rue, c’est qu’elle décrit
les maisons. Si on fait bien attention, elle n’a pas la même sonorité dans la rue Mouffetard ou sur le Boulevard
Haussmann, c’est aussi une façon de décrier l’architecture, là où vivent les gens, ce qu’ils entendent depuis leurs
fenêtres. C’est ça mes paysages à moi. (Ferrari & Caux, p.128-129, 2002).
65
Uma tradução do título pode ser: Quase nada, ou o raiar do dia à beira do mar
66
“Moi je faisais des films sonores, visibles seulement à l’interieur de la tête” (Ferrari & Caux, p. 148, 2002)
67
“Elle revendique clairement (...) le plan-séquence et l’image sonore fixe, sorte de diapositive qui donnerait à entendre
une tranche de réel, comme méthode de travail, et comme moyen de se libérer des habitudes”. (Ferrari & Caux, p. 178,
2002)
84
senão por meio da grav ação . Em seg uida a t écni ca entra em
jogo: onde se colocar, onde colocar o microfone, o que escolher
para permanecer na rarefação dos elementos. (Ferrari & Caux,
1 9 9 2 , p . 1 5 4 ) 68.
Portanto não se trata apenas de uma representação da realidade,
mas também de um esforço composional em direção a uma ‘ rarefação
d o s e l e m e n t o s ’ . F e r r a r i c l a s s i f i c a a s é r i e d a s P r e s q u e R i e n 69 c o m o
minimalista, mas não ligada ao sentido que as obras de Steve Reich,
Terry Riley e Philip Glass deram ao ter mo, referente à repetição. As
Presque Rien aproximam-se antes do minimalismo de La Monte
Young e Cage, idéia baseada em uma música com notas muito longas
e tenutas, com pouca var iação, e com fór mulas que se repetem em
longos per íodos. Músicas que criam um ambiente de concentr ação e
de ref lexão sobre o pr ocesso de escuta.
Presque Rien portanto é minimalista por tr abalhar com poucos
elementos
sonoros,
por
ser
uma
busca
pela
atenção
do
som
cotidiano, uma “negação do som clássico no sentido da altura do
s o m , d a d i n â m i c a ” 70 ( i d e m , i b i d e m , p . 5 1 ) , n u m a p o s t u r a a t é m e s m o
política. O autor tem assim consciência de que sua ‘fotogr afia
sonora’ é uma repr esentação, uma construção. Quando questionado
se essa ligação com o minimalismo ocor re por conta de uma mínima
intervenção
do
compositor
no
material
gravado,
responde
o
seguinte:
Não, h á a mesma qu anti dade de comp osição, mas que fica
escondida. O que se entende da intervenção, é a de que se
deformou a realidade. É como uma pintura hiper-realista que
di ssimula a in terv enção da fot o po r detrás do ato de p intar. (...)
68
Le concept des ‘Presque Rien’, c’est l’observation d’un phénomène sonore ou social que ne peut être appréhendé
qu’avec les moyens de l’enregistrement. Ensuite, la technique entre en jeu: où se mettre, où se mettre le micro, que
choisir pour demeurer dans la raréfaction des éléments. (Ferrari & Caux, 1992, p. 154).
69
As outras duas obras da série são P r e s q u e R i e n n ° 2 . A i n s i C o n t i n u e l a N u i t d a n s m a T ê t e
M u l t i p l e – 1 9 7 7 ; P r e s q u e R i e n a v e c f i l l e s – 1 9 8 9 - Quase Nada n° 2. Assim Continua a Noite em
minha Mente Multiplicada; Quase Nada com meninas.
70
“ (...) c’est-à-dire la négation du son classique dans le sens de la hauteur du son, de la dynamique” (Ferrari & Caux,
1992, p. 51).
85
É uma composição, e o compositor intervém permanentemente.
( i d e m , i b i d e m , p . 5 1 ) 71
Há por tanto um compromisso com o r eal, um hiper-realismo, e
esse é escolhido deliberadamente. O autor usa a gr avação sonor a
como r etrato da paisagem acústica, em oposição ao uso feito por
Schaef fer e pela música eletroacústica. Esta prática iniciou-se em
Hétérozygote, uma composição ‘ abstrata’ de 1964 na qual, em meio
a s o n s “ c o n v e n i e n t e s p a r a o m u s i c a l ” 72 s e i n s e r e m v o z e s ( u m a
pergunta, um diálogo.. .) – que par ecem ‘registro da realidade’
talvez pelo seu tom casual, nada ‘ digno de obr a’, em contr aste total
com o outr o material. A obra, que foi feita no GRM (Groupe de
Rcherches Musicales), então dirigido por Pier re Schaef fer, ger ou
uma polêmica que r esultou na r uptura de Ferrar i com o grupo.
A tendência de uso de material gravado e ‘ tirado da realidade’
acentuou-se em obr as posterior es, como Music Promenade, de 196469 e, a partir de Pesque Rien, tornou-se uma marca de seu autor . A
oposição à teoria de Schaef fer é clara:
(...) a mu siqu e co ncrète era u m ti po d e ab stra tiza ção [si c]
do som – nós não queríamos saber qual a sua origem, sua
causal idad e... Enq uant o
que aqui eu queria
que você
reconhecesse a causalidade – isto era o ruído de tráfego e não
era só para fazer música mas para dizer: isto é o ruído de
tráfeg o! Talvez uma in fluência de Cage. (Ferrari & Warburton,
1 9 9 8 . ) 73
Mas
se Presque Rien possui esse f orte acoplamento com o
real, não se r estr inge apenas a uma representação realista. Na minha
escuta, essa obra conjuga o elemento r epresentativo da praia, do
mar, das pessoas e dos eventos dali, e a partir disso realiza um
71
“Non, il y a autant de composition, mais elle est cachée. Si on entend l’intervention, c’est qu’on a déformé la réalité.
C’est comme une peinture hyperr’raliste qui dissimule l’intervention de la photo derrière l’acte de peintre. (…) C’est
une composition, le compositeur intervient en permanence.” (idem, ibidem).
72
Cf. Glossário e cap. 1
73
“(…) musique concrète was a kind of abstractisation [sic] of sound-we didn't want to know its origin, its causality...
Whereas here I wanted you to recognise causality-it was traffic noise it wasn't just to make music with but to say: this
is traffic noise! (Laughs) Cage's influence, perhaps.” (Ferrari & Warburton, 1998)
86
estudo de pulsações e ressonâncias. O vale ao qual Fer rari se refere
(audível pelo efeito quase idêntico daquele descrito na cena de Era
uma
Vez no
Oeste,
mas
ainda
mais pronunciado
sonoramente)
tr ansf orma-se em uma enorme caixa de r essonância. Porém, esse
aspect o ‘a bstr ato’ não é evid ente . É como se Ferr ari deix asse a o bra
em um estágio anterior ao musical. É como se tivesse exposto os
“elementos musicais convenientes” – no sentido schaef feriano – mas
os mantivesse soltos, sem conecção evidente. Como o “menino do
c a p i m ” ( o e n f a n t à l ’ h e r b e d e S c h a e f f e r 74) , F e r r a r i p e s q u i s a s e u
material.
Fez
uma
montagem
aberta
ao
musical,
montagem-
investigativa daquilo que gravou. Os objetos estão diluídos; a nós,
que escutamos, resta r ealizar as associações musicais, se assim o
desejarmos. A obra foi organizada de modo a sugerir o musical a
partir de um f luxo sonoro apar entemente natural ( mas também
forjado para ‘ parecer natural’ – pois, como comentei antes, a
gr avação sonor a distancia- se da percepção ‘natural’) : as duas
escutas estão em potência.
De que maneira deixa esses elementos musicais soltos? Tomes e c o m o e x e m p l o 75 t o d o s o s s o n s i t e r a t i v o s e d e p u l s a ç ã o r e g u l a r d a
peça: um pequeno sino que passa por nós em 1’26”, o cacarejar de
uma galinha em 1’44”, um motor (de barco?) ao longe, em 1’48”,
outro motor de popa em 3’08”, e assim por diante: a obra toda é
pontuada por esse tipo de som, cujo elemento f ixo, como o timbre
em um critério instrumental, é o perf il melódico sem ou com pouca
variação e o modo de sustentação iterativa. O que varia é a tipologia
de massa, em dois aspectos: alterna entre tônica e complexa – sendo
que esta última possui um grande nível de variação de espessur a,
e
tr ansita na densidade da iteração, que pode ser muito rarefeita
(como no caso do sino mencionado) – a ponto de se determinar que
74
75
Traité des Objects Musicaux, p. 339.
Para a descrição dos sons que segue, seguirei a morfo-tipologia dos objetos sonoros de Schaeffer.
87
cada evento é um objeto sonoro - ou muito densa, e então é uma
granulação – como no caso de um dos motores que
acelera (cf
exemplo caminhão, 7’15” – faixa 17).
Alguns
desses
objetos
sonoros
são
semelhantes,
como
o
cacarejo e um som de motor que se inicia em 4’ 23”: num primeir o
momento este último é idêntico ao da galinha, escutado antes, mas
pr olonga-se demais antes da ar ticulação aguda caracter ística do
cacarejo, que não ocorre. Sua iteração é também muito regular, e
fica
mais
complexa
após
a
fala
de
uma
mulher,
que
parece
‘disfarçar ’ a transição: traz outr os elementos distintos do pr imeiro
som, com outra rítmica. Não há mais dúvidas, trata-se de um motor.
Ocorre aqui uma metamorfose gradual da imagem de som, um efeito
d e s í n t e s e c r u z a d a 76 a l g u n s a n o s a n t e s d a i n v e n ç ã o d a t é c n i c a ( c f
exemplo galinha-barco – faixa 18 - extr aído de um trecho do
cacarejar puro e de outro trecho do cacarejo-motor). A imagem
confusa acentua-se por
conta de sons longínquos de um
asno
(presentes desde o início da peça) , que relacionam-se ao ambiente
das galinhas.
Mais adiante, em 5’00”, após o som de motor executar um pico
de amplitude e densidade ( há uma aceleração do motor) e desalinhar
sua pulsação, um outro motor ( ?) estabiliza-se no mesmo andamento
que o cacarejo, com uma massa próxima da sílaba que o animal
emite, mas mais grave, improvável. O cacarejo retorna quase em
seguida, mas a associação já havia sido feita. Esse último trecho é
pontuado pelo som de vozes, e durante o som gr ave de motor cacarejo passam por nós e desapar ecem passos que seguem, também
eles, a mesma tipo-mor fologia de sons iter ativos e massa complexa.
De fato, parecem “se encaixar” ritmicamente no motor-cacar ejo.
76
Trata-se de uma técnica de síntese por FFT em que, a partir dos dados da análise de Fourier de dois sons, combinase, digamos, a estrutura de frequências de um com a estrutura de amplitudes de outro, criando-se assim um som
híbrido. A mistura pode ser feita gradualmente, e o efeito pode assemelhar-se com o que descrevemos acima.
88
Estes objetos sonoros semelhantes não estão nem seguidos uns
dos outros, nem simultâneos. E stão soltos no discurso. Entre o
cacarejar e o motor-cacarejo outros eventos ocorrem: um outro
motor é ligado, um homem passa com passos ruidosos e uma
marcação vocal per iódica, um pássaro voa deixando no ar pingos
agudos,
impulsos periódicos.
E stes
sons distanciam
os
objetos
semelhantes, deixam pouco evidente a associação entre eles (todo o
tr echo está na faixa 19, cacareco_motor_grave).
Mas se é possível identificar uma identidade entre os sons que
apontei e de um a outr o um possível degradé, um outro fator de
‘abstr ação’ é a forma. De modo ger al, a música pode ser ar ticulada
em duas. E m 7’ 15” um motor de caminhão, muito próximo, liga e
aceler a; tem uma espessura de massa muito ampla que varia nas
aceler ações sucessivas, e distancia-se (cf. exemplo caminhão – faixa
17). É um som muito pr esente, ocupa todo o espaço sonoro, e
quando par te, o silêncio que segue dá lugar a um som agudo
iterativo, de cigarras, que não havia aparecido até então e que vai
dominar o restante da peça. Neste momento inicia-se uma outra
seção. Nela vão pr edominar não mais os sons de motor e o degradé
de sons de sustentação iterativa da seção anterior , mas um jogo com
vozes, água e cigarras; figura e f undo e eco.
O jogo com ecos aparece entre as vozes logo após o caminhão
partir ; ele decorr e como sugestão ao compositor da própria acústica
do lugar da gravação, que imprime um eco nas vozes com mais
amplitude (cf exemplo vozes_chamando – faixa 20). De qualquer
forma, o vale confere um halo de reverberação a todas as vozes e
lhes dá um car áter de distância; a mim sugere uma certa sonolência,
um cer to onirismo. As f alas em uma língua para mim desconhecida
(e provavelmente também para o compositor) transformam esta
linguagem em pura sonoridade, como era par a Aschenbach as do
garoto polonês Tadzio, também escutadas em uma pr aia, ao longe,
89
mesma situação de ‘escuta’ do gravador de Ferr ari (pois os sons
indicam isso):
As chen bach não ent endi a uma só pal avra do que ele
dizia, talvez as maiores banalidades, mas que a seus ouvidos
eram u ma v aga melo dia. Ass im, por ser estrangeiro, sua fal a
era sublimada em música, um sol altivo banhava-o de um
brilho suntuoso e a infinitude do mar era o fundo constante a
dar maior relevo a sua fig ura. (Th omas Man n, Mo rte em
Veneza . Trad. Eloí sa Ferreira Araú jo Silva. 20 03, p. 5 55 6 ) 77.
O onirismo da cena é acentuado também por conta do eco
daquele lugar, que acaba por aprisionar algumas das falas e gritos
a o l o n g e . A q u i p ar e c e m o s e n t r a r e m u m d é j à - v u a c ú s t i c o m u i t o s u t i l ,
um ritornelo de um tr echo bem lar go. No exemplo vozes- déjà-vu
(faixa 21) , excerto da peça de 10’04” a 13’06”, as vozes infantis
que
chamam
ao
longe
(isoladas
no
exemplo
vozes_chamando)
aparecem idênticas por quatro vezes. O que as segue são sons
diferentes
em
cada
aparição.
Portanto
parece
haver
situações
distintas, o que dá uma impressão de f luxo temporal ‘natur al’. De
fato,
na
primeira
repetição
das
vozes
pensei
que
f osse
uma
insistência da criança, um fato ‘natur al’. Só depois de algumas
audições percebi o jogo, pois as vozes distanciam- se de cerca de 1
minuto, tempo bastante longo – improvável para uma repetição
idêntica e de difícil memorização.
Uma outra repetição ocorre nesse trecho. T omemos o exemplo
vozes- déjà-vu (f aixa 21) como marcação de tempo. Há, a partir de
0’41”, a seguinte ordem de eventos: a voz infantil grita ao longe;
tr ata- se de sua segunda aparição. Logo depois um som grave de
barco inicia-se. Dez segundos depois um homem ao longe chama por
uma mulher (sua voz possui um ligeiro eco) e esta o responde;
77
Conferir também o filme de Luchino Visconti, “Morte em Veneza” (baseado no romance de Thomas Mann) cuja
tadução visual da praia é semelhante à cena onírica que se tem em Presque Rien. Curiosamente, o filme foi lançado
apenas um ano depois da música de Ferrari.
90
iniciam um pequeno diálogo. Há algumas crianças envolvidas. O
barco vai embora ao longe e ao fundo. Em seguida, a voz infantil
ocorre pela terceira vez, e a seqüência barco – homem - diálogo se
repete. Fecha- se o ciclo.
A impr essão de continuidade ocorre não só por aquilo que
segue, mas também por aquilo que antecede a voz infantil. Por
serem acontecimentos distintos, dão a impr essão naturalista de um
fluxo contínuo:
já
havíamos mencionado
que
o som
tem
essa
pr opriedade de um objeto em constante devir.
O que antecede as terceira e quarta aparições, que apr isionam
um longo trecho, são coisas distintas: a segunda o é por uma voz
masculina ‘melismática’ mais próxima; a terceira, pelo som gr ave de
motor de barco e pela mesma voz melismática, que parece falar
outras palavras. Mais tarde, em 2’ 25”, a mesma voz inf antil vai
intervir novamente ao longe, mas não com a mesma fala. Em
seguida, porém, o mesmo personagem retorna, mais distante – e
repetindo o mesmo objeto sonor o. E ste é separado em duas partes, e
sua pr imeira inter venção é ligeiramente distanciada da segunda com
relação às aparições anter iores. T rata-se de uma variação, pois o
som também vem com amplitude r eduzida, dá uma impr essão de
distância.
Mas a ilusão de um fluxo natur al ocorr e pr incipalmente por
conta das cigarras ao fundo, que permanecem inalteradas ao longo
do trecho e desde sua apar ição após o forte som de motor de
caminhão. Assim, enquanto que a montagem das vozes apr esenta
pequenos
cortes
e
sutis
interrupções
inevitáveis
no
pr ocesso,
acreditamos que as cigarras estão no mesmo ambiente que as vozes e
por isso não notamos as intervenções. A ilusão nasce desta polifonia
de
continuidades:
numa
camada
contínua
e
outra
descontínua,
pr edomina a contínua, e somos levados pelo seu fluxo. Assim, três
fatores contribuem par a que a ilusão r ealista não se r ompa com os
91
ritornelos: o aproveitamento do ambiente com ecos, que faz com que
os ritornelos sejam sua conseqüência natural, a continuidade do som
de cigarras e,
evidentemente,
o fato da camada de vozes ser
compatível com a de cigarr as no plano do cenár io: ambas são
plausíveis naquele ambiente.
Mas o som de cigar ras torna-se gradativamente forte até o fim
da peça a partir da entrada de dois barcos consecutivos (o primeir o
de
14’32”
a
15’26”
e
o
segundo
de
15’40”
a
15’58”),
que
aproximam- se e desapar ecem. Acabam por disfarçar o acr éscimo do
nível do som de cigarr as, e conseqüentemente a ação da mão do
compositor na mesa de mixagem.
Entre a última aparição da voz inf antil e a passagem dos
barcos aparecem fortes batidas iterativas mas não periódicas (em
13’20”), ligeiramente à direita de minha escuta. Junto a elas inicia
uma movimentação na água, muito pr óxima a mim. Como não se
sabe qual seja a f onte das batidas, não se pode dizer se estas causam
o
movimento
ambigüidade,
da
pois
água.
não
Aqui
sabemos
o
som
acusmático
tampouco
se
se
mostra
trata
sua
de uma
montagem ou se de fato os dois sons ocorreram ao mesmo tempo. Se
houve relação causal entre os dois eventos esta se per deu. Somente
aquele que gravou estes sons sabe de f ato qual a sua imagem de som
verídica, real – que não nos inter essa mais: na minha imaginação
tr ata- se de alguém consertando algo dentro da água, pois há algumas
vozes
junto
com
as
batidas,...
tal
interpretação
é
no
entanto
completamente pessoal!
A água próxima a mim continua, não as batidas, que cessam
depois que os dois bar cos passam. A seguir inicia um coro feminino
(15’56”) e logo um longo solo vocal feminino. Trata-se de uma
canção estrófica sobre as cigarras, que agora estão muito mais
pr esentes. Figura sobr e fundo, como vem sendo desde o início da
segunda parte da peça: o som de cigarr as constitui um fundo inerte
92
que dá continuidade ao discurso, mas que permanece em segundo
plano.
Assim,
até este momento
a segunda parte da peça foi
ar ticulada três vezes: na a entrada das cigarr as e das vozes, em c.
8’15”, em 13’06”, com a entrada das batidas e fim das vozes
distantes, e em 16’, após a passagem do segundo barco e a entr ada
do coro feminino.
A partir daqui caminha-se para o f im. A voz feminina vai
desaparecendo em fade out e as cigarras sur gindo em fade in. As
cigarr as passam então a dominar toda a paisagem e não há outro som
– um efeito absolutamente irreal. Esta é a única intervenção forte do
compositor , que é explícito em mostrar sua ação. O título da obra
serve como
metáfor a para este final súbito: o nascer do dia,
cintilante, claro como o som das cigar ras. Este gesto contribui para
uma teleologia da obra, um per curso que vem de sons muito tênues
no início, passa por sons de veículos e se dir ige para sons de
pessoas desper tas, plenas em suas atividades no calor de um dia de
verão.
A continuidade realista de antes é interrompida também por
conta da quebr a na espacialidade. O domínio das cigar ras nesse final
(após o completo silêncio da voz que canta)
é o primeiro momento
em que o som perde per spectiva: amplia-se para todo o espaço e
torna- se irreal. Antes, todos os sons referiam-se a um ponto de
escuta, aquele representado na ‘tela estereofonica’ e que o ouvinte
identificava como sendo a sua própria percepção. Note- se que na
minha descrição referi-me a sons distantes ou próximos, que passam
por mim ou se distanciam, que estão à minha direita ou à minha
esquer da, etc. Neste som de cigarr as não é possível essa descr ição.
Ele anula toda a lateralidade e a profundidade, bem como qualquer
outro som de r efer ência, de compar ação. Perdemos a noção de figura
e fundo, que este mesmo som contribuía antes para elucidar .
93
Assim, é como se nesse f inal a música tirasse de si um f oco
da escuta direcionado, em perspectiva. Tal deslocamento causa uma
estranheza
e faz com
que o
ouvinte
abandone o
processo
de
identificação no qual estava imerso até então. Pois se o som estava
em
per spectiva
com
relação
a
um
“ponto
de
fuga”,
conseqüentemente r epresentava uma escuta hipotética que se situava
nesse centro. Mas a perspectiva faz com que o ouvinte crie uma
empatia ou uma identif icação, que tome par a si aquela repr esentação
como se estivesse escutando in loco, como se fosse repr esentação de
sua pr ópria escuta. É o ilusionismo da “câmara-olho” de Vertog e da
câmara subjetiva no cinema: o espectador vê a tela como a sua
pr ópria percepção. O ouvinte de Presque Rien é levado a imaginar
que é o centro convergente dos sons da praia,
de que se trata de
uma ‘paisagem acústica’ dada à contemplação.
Nem as associações entre objetos sonor os, na primeira parte,
nem os ritornelos na segunda são suficientes para romperem com
esse
ilusionismo.
i t e r a t i v o s 78
Na
primeira
parte,
os
degradés
de
objetos
são demasiado sutis: per gunto-me se a hipótese que
l a n c e i - a d e q u e s e r i a m “ o b j e t o s c o n v e n i e n t e s ” 79 d e i x a d o s s o l t o s ,
anteriores
a uma f ormulação musical
–
não
estaria
demasiado
influenciada pelo meu conhecimento da teor ia schaef feriana; se tal
hipótese, como Schaef fer mesmo poderia atentar, não é decorrência
da minha escuta particular de especialista (um mecânico de bar cos
teria outr a leitur a destes sons). No entanto, a forte presença de sons
iterativos de perf il melódico estático e sua variação não pode ser
casual. Mas de qualquer forma a montagem f eita disfarça essa
insistência, que ademais só será talvez percebida por alguns músicos
ou outros sujeitos conhecedores da teoria schaef feriana. Os objetos
78
Degradés q u e p r o s s e g u e m t a m b é m n a s e g u n d a p a r t e , a p e s a r d e n ã o m a i s s e r e m o f o c o
da composição: o som d e cigarras é uma transpo sição para o agu do d e um som
iterativo de motores, e o som das fortes b atid as é uma variação de um som iterativ o
periód ico.
79
Cf. Glossário e cap. 1
94
iterativos são naturalistas, de fonte facilmente r econhecível (pelo
menos,
possuem
acontecem
em
indícios
um
tempo
materializadores
muito
condizente
os
com
claros)
eventos
–
e
naturais
esperados (ou desejados) da cena.
Quanto aos ritornelos da segunda parte, contr ibuem ainda mais
para
um
ilusionismo:
não
são
imediatamente
perceptíveis
mas
causam uma sensação vaga de algo não possível ali. Como o
personagem Chris, em Solaris, filme de Tarkóvsky, o ouvinte pode
ficar transtor nado por estes eventos que se repetem quase idênticos
mas ligeiramente modificados por conta dos contextos variáveis –
um lugar da escuta, em constante retorno/devir. O déjà-vu sonoro,
se per cebido, pode ger ar então a dúvida: trata-se de uma r epetição
real ou objeto da minha imaginação, alucinação repentina? De
qualquer f orma, apresenta- se como repr esentação dessa alucinação,
e portanto não quebra com a ilusão realista.
É o fade in do som de cigarras que quebra com o r ealismo. A
ação arbitrária do compositor evoca a teor ia dramática de Rosenfeld
(cf cap. 2) no sentido de uma intervenção épica r adical. Aquilo que
antes era pura representação, pura ilusão mimética, passa, de um só
gesto,
de
uma
cena
completamente
dramática
para
outra
completamente épica. A ação é repentina e acentua, pela comparação
imediata, a imersão na cena vivenciada antes. Por conta disso minha
própria
linguagem
no
decorrer
da
análise
de
Presque
Rien
tr ansf ormou-se pouco a pouco: deixei de descrever os sons com
relação a um sujeito hipotético e passei a relacioná-los com a minha
escuta. Seria mais honesto e verdadeir o que assumisse ter sido
levado pelo jogo ilusionista, admitindo com isso ter f eito uma
leitur a parcial e subjetiva.
Com
esses
questionamentos
acerca
da
minha
posição
pr ivilegiada de ouvinte informado da teoria schaef feriana, por tanto
imerso em uma escuta à procura de um sentido musical para as
95
obras, per cebi também que, no caso de Presque Rien, a separação
entre musical e extra- musical não procede, não é pertinente par a
descrevê-la. Pois a obra põe em dúvida a divisão schaef feriana das
escutas (causal, semântica, reduzida) ao colocar em um mesmo
ambiente
objets
c o n v e n a b l e s 80
e
sons
referenciais
–
os
sons
iterativos podem muito bem ser isolados de seus contextos causais e
são apropr iados às categor ias tipo-morfológicas,
ao mesmo tempo
em que possuem uma referencialidade nítida e um papel claro
enquanto personagens de uma paisagem. Quanto aos ritornelos, eles
parecem ser inspir ados nos ecos que o ambiente proporciona. Apesar
de ser em um pr ocedimento ‘ abstrato’ integr am-se completamente ao
contexto natur alista da obra. O acréscimo de amplitude no som de
cigarr as, por outr o lado, traz uma inf ormação de outra ordem da
oposição musical/extra- musical: rompe com o naturalismo, mas não
conduz a uma instância musical. Trata-se de uma intervenção épica
e
uma
quebra
tr idimensional.
com
o
Podemos
modelo
dizer
repr esentativo
que
reduz
este
de
um
espaço
espaço
a
duas
dimensões, pois perde prof undidade.
Se prosseguisse concluindo em uma separação entre musical e
anedótico estar ia f inalmente contradizendo a constatação teórica de
antes, a de que não existe o campo de uma pura escuta reduzida. De
fato, pelo menos nesta música não pude fazer uma tal separ ação.
Pois as duas instâncias estão intr incadas em cada objeto sonor o
destacável: do lado da representação, pelo contexto já criado (ou
seja, pelos sons que o envolvem) ou mesmo por suas car acterísticas
que me levam a associá-lo a uma família ou a um gr upo de objetos
do mundo. Por outr o lado, é o trabalho de escuta reduzida que f az
com que eu selecione este som como dif erente daquele, que o
associe a um trator, a um barco ou a uma galinha. Posso mesmo
compar ar a materialidade de cada som, e feito isso já estarei
80
Cf. Glossário e cap. 1.
96
hierarquizando
os
objetos que
julgo mais convenientes para
a
compar ação; estarei cr iando assim um outro campo de signif icações
para além do ‘ anedótico’ ou do semântico.
Mas as duas instâncias estão intrincadas aqui principalmente
por conta das ilusões acústicas elaboradas nos dois campos da
escuta. A metamorf ose do cacar ejo em motor e as vozes em ritornelo
são
dois
exemplos
características
de
um
‘intrínsecas’
jogo
do
que
som,
foi
feito
a
mas
que
se
partir
dirige
das
às
ambigüidades que a escuta acusmática cria na identif icação causal.
Todo o sentido destes jogos se dá no campo da escuta causal, mas
não teria sido possível se não se apropriasse, no primeiro caso, da
materialidade semelhante dos sons cacarejo e motor -cacarejo, e no
segundo, da materialidade condizente com o ambiente acústico da
cena (repetição/eco).
3. 2.3. Des mains insomniaques conduiront le coupé rouge
D i v e r s o é o c a s o d e s t a o b r a . Des Mains Insomniaques Conduiront le
Coupé Rouge 81 é primeiro movimento de Douze Melodies Acousmatiques, de
Denis Dufour, composta quarenta anos depois dos Estudos de Ruído e formada,
também, por pequenos movimentos e pela mesma estratégia composicional, a de
pequenos estudos a lidar com a oposição entre musical e extra-musical. C o m o o
Étude aux chemins de fer, remete incessantemente a objetos do
mundo e encadeia seus elementos sonoros de for ma ‘ abstrata’ –
nesse caso, através de uma for te construção motívica com sons
referenciais, como ver emos. Mas, difer entemente da música de
Schaef fer, remete a uma miríade de imagens díspares, enquanto que
o Étude r efer e-se incessantemente ao trem e ao seu percur so. Com
relação a Presque Rien, pode-se dizer que, como esta, também
81
O movimento encontra-se na íntegra na faixa 22 do CD.
97
remete a um espaço, possui um cenário, mas este não é fixo como na
obra de Ferrar i. Como veremos, não é possível fixá-lo, embora haja
uma recorr ência espacial que define algo como um campo dif uso
único. Isso não quer dizer que se aproximem de um ideal de música
pura : os sons continuam nitidamente r efer enciais; e o cenário que
cr iam continua par tilhável entre r epetidas e diver sas escutas.
O movimento tem como título 82, como aliás todos os outros, um verso do
poema Rendez-vous, de Tom Aconito, e, até onde pude verificar, não existe uma
relação direta entre o título e o conteúdo das imagens (além do fato de
escutarmos claramente, de tempos em tempos, um carro que passa e que deixa
sua marca através do som de um pneu passando em seixos). Ela é, ao contrário
das outras duas obras estudadas anteriormente, de uma polifonia de sons
referenciais muito nítidos. Tomando somente seus primeiros vinte e seis
segundos (faixa 23, Duf_peq) posso reconhecer, não necessariamente nessa
ordem de aparição e muitas vezes simultaneamente, pios de pássaros, água,
bicicleta, percussões metálicas, percussões de pele (tom-tons, tímpanos), woodblocks, sirene, farfalhar de asas. Por trás dessa massa confusa de sons
referenciais 83, porém, um jogo elaborado parece se formar; trata-se de uma
“melodia de timbres” com sons referenciais, que é feita tanto numa instância
perceptiva segmentável (X e Z) 84, por vezes em alturas e ritmos, por vezes
somente em ritmo, quanto num campo não segmentável (Y).
Esta
divisão
(segmentável/não-segmentável)
vem
do
binômio
schaefferiano de articulação/apoio, base para a separação (ou, se preferirmos, a
‘triagem’) de um objeto sonoro a partir do fluxo sonoro. Em Schaeffer,
articulação “ocorre onde há uma ‘ruptura do continuum sonoro em eventos
energéticos sucessivos distintos’ como para as consoantes – e tal articulação está
82
Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge pode ser traduzido livremente por “As mãos insones
conduzirão o coupé vermelho”.
83
Lista de sons referenciais que inclue também aqueles de origem instrumental, pois em uma obra sobre suporte estes
sons são representações de instrumentos e seus gestos. No contexto desta obra a noção mesma de representação
acentua-se ainda mais, pois, na oposição com os sons “tirados do mundo”, os sons instrumentais representam, como
um campo, a música no sentido tradicional.
84
A partir daqui estou me referindo à partitura de escuta do trecho, a seguir, e à faixa X do CD.
98
em relação com a sustentação do som” 85 (Chion, 1983, p. 114. A citação no
trecho é de Pierre Schaeffer). E apoio ocorre “onde o fenômeno sonoro se
prolonga, como uma vogal, e este apoio está ligado à intonação do som” 86.
(idem, ibidem). Um típico objeto ilustrativo é uma nota de piano, com um ataque
nítido que delimita o objeto no fluxo contínuo da escuta (articulação) e que, a
partir deste ataque, possui uma ressonância estável (apoio). Mas o binômio que
propus é mais simples: não busca focalizar os dois diferentes estágios do objeto
sonoro, mas simplesmente descrever sons como destacáveis ou não do contínuo
sonoro em objetos delimitáveis. Um som como o de água não é pontual, não
possui fronteiras nítidas de duração. Já tratamos deste problema metodológico na
análise do som inicial de La Tentation de Saint Antoine (cap. 2, anexo) quando
descrevemos a incapacidade de separação entre dois de seus objetos sonoros
(desert_b e desert_c) que se fundiam, ou seja, que não se podia delimitar a
fronteira entre eles, apesar de haver uma “mudança de estado” entre um e outro
som que me fez separá-los em dois eventos.
Feita esta ressalva metodológica podemos prosseguir na descrição destes
vinte e seis primeiros segundos da obra tendo como ponto de vista sua
construção motívica, ou mesmo melódica. Desde o primeiro momento, então, no
ataque inicial, junto aos demais objetos em seguida, no plano X (frase a), formase um pulso regular espelhado em pios (campo Z). As demais frases do material
pontual percussivo desta primeira parte (A: 4” – 11,3”, frases b, c) interagem
com o pulso formado em pios, quase como uma improvisação em cima dele, e
cria sincopas e pequenos deslocamentos. O material de pios é interrompido por
uma série de intervenções, que marcam uma importante articulação: entrada de
sirene metálica e do material não segmentável, bicicleta e água (11,3” – Z para a
sirene e Y para os demais). Porém, no campo X, a mesma estrutura periódica
com os materiais percussivos pontuais se mantém (α”), o que me faz interpretar
todo este trecho (até 15”) como uma unidade.
85
“Il y a articulation là où il y a ‘rupture du continuum sonore en événements énérgetiques successifs distincts’,
comme pour les consonnes – et cette articulation est en relation avec l’entretien du son.” (Chion, 1983, p. 114).
86
Il y a appui là où le phénomène sonore se prolongue, comme une voyelle, et cet appui est lié à l’intonation du son”.
99
A entrada de tímpano (15,3”) indica uma nova seção, diferente da
anterior: um silêncio antes dela acentua esta impressão – mas acontece também
do material percussivo pontual ter silenciado, fazendo de tímpano um “solo”.
Uma nova aparição de sirene metálica, que interrompe tímpano, conduz a
uma última seção, com a retomada do material percussivo pontual em estruturas
iterativas e a aparição de pássaro au-au, o qual se divide em duas partes, sendo
que sua segunda parte, por se constituir em um pulso regular, tem ressonância
com pios, e, de fato, possui uma mesma relação com os materiais percussivos
pontuais. Todo o trecho é interrompido por farfalhar (30,3”).
100
101
Aqui notamos sobretudo uma forte construção motívica, demonstrada em
α, e que possui ressonâncias tanto nos materiais percussivos pontuais quanto em
tímpano, pássaro au-au e mesmo em materiais improváveis, como água e
farfalhar: em água algumas “gotas” se destacam e se tornam quase ou totalmente
segmentáveis. Esta “segmentação da água” é evidenciada em um dobramento
exato de um trecho característico do motivo α, entre água (ou melodiágua) e cow
bells (13,2”). Tal dobramento é tanto de perfil melódico quanto rítmico.
É este forte encadeamento motívico que prende a escuta e permite que os
olhos passeiem com maior liberdade por esse denso desfile de imagens. Assim
como em Schaeffer, então, aqui a escuta reduzida organiza os materiais, de uma
forma não de todo isenta de ironia (como o fica sendo a água saltando aos olhos
por um motivo, tornando-se assim ‘instrumento musical’), mas com intensa
polifonia e com a ausência de um pólo de atração referencial: as imagens
parecem girar alucinadamente – algumas voltam e outras se perdem, outras ainda
se transformam pelo choque com terceiras, etc – enquanto que em Schaeffer elas
relacionam-se com o trem.
Feita esta primeir a investigação acerca do
mecanismo de
engendramento sonoro da obra torna-se desnecessário descrever
detalhadamente todos os passos de sua escr ita. Pois agora pretendo
me ater à forma como esta obra constrói sua peculiar cena acústica.
Pois se em Presque Rien o conceito mesmo de paisagem sonora
parece condizente, aqui não se pode falar o mesmo, apesar de
parecer remeter também a espaços r eais. Em Presque Rien os
eventos acontecem clar amente em um espaço único e delimitado,
enquanto que aqui isto existe, mas não é tão nítido. Primeiramente,
o jogo motívico entre sons de instrumentos musicais e os outr os
sons r efer enciais ‘naturais’ ( pássaros, água, bicicletas, etc) ger a
este paradoxo
elementos
é
imagético:
uma tal
completamente
‘ costura
fantasiosa,
sonora’
não
entre estes
ocorre
nos
engendramentos ‘reais’ de uma gravação do tipo ‘plano- sequência’
102
de Presque Rien - mas ao mesmo tempo este procedimento é feito
com objetos realistas, e esta combinação é par adoxal. Além disso,
toda a montagem pode assemelhar-se com a cena acústica que se
ouve de uma janela urbana. Veja-se, por exemplo, Janela Indiscreta,
filme de Hitchcock, em que é possível ouvir a massa de sons que se
tem aqui. O olhar da câmara, no entanto, focaliza a escuta para este
ou aquele som cuja causa quer enfatizar – e isso parece acontecer
também na música de Denis Dufour . Porém, tal foco é feito pelo
jogo motívico: tome-se como exemplo os acor des de um piano
“vindo de fora” (de um vizinho, talvez). E ste som passa por uma
‘melodia de timbres’ r efer encial: apar ece através de uma pulsação
feita de impulsos de massa complexa, curtos mas muito densos
(1’46”). São pancadas percussivas, em seguida metamorfoseadas no
acorde de piano, que em seguida tr ansf orma-se em arrulhar de um
pombo (exemplo piano_pomba – faixa 24). O piano é o pivô da
tr ansf ormação, e é também um som que não havia aparecido até
então.
Mas se por momentos a peça par ece repr esentar uma escuta de
um sujeito em repouso, com sons interiores ou exterior es ao espaço
em que está – o exemplo de Jeff, o personagem observador em
Janela
Indiscreta
(de
fato
alguns
sons
são
retomados
permanentemente: o som de pássaros, de pequenos sinos ao vento,
etc) -
há outros momentos em que essa impressão f ica difusa. São
os momentos de turbulência, em que, aliado a um acréscimo de
densidade e amplitude, há uma focalização no som ou de um trem
que passa, ou de um carro, ou de uma r evoada. Tais eventos ocorrem
algumas vezes: de 0’30” a 0’45”, de 1’ 24” a 1’ 52”, de 2’03” a
2’08”, de 2’40” a 2’53” e de 3’10” a 3’25” – e alternam com os
momentos de calmaria que relacionei antes com a escuta “em
repouso”. A peça tem portanto uma estr utur a cíclica.
103
Como nos loops de Presque Rien, alguns sons são recorrentes
e retornam da mesma forma como vieram da primeira vez. O
contexto em que aparecem está no entanto transformado. Tome-se o
exemplo da ‘sirene metálica’ que apareceu em 0’11” e em 0’ 20”:
neste primeiro contexto são dois eventos ligados pela proximidade e
pela ligeira variação (ambas as sirenes são um glissando ascendente,
e a segunda sirene expande um pouco mais o glissando para o
agudo) . Em 3’45”, a dupla sirene irá se repetir exatamente, mas o
fundo, ou os sons entr e elas, é outro. Não está porém completamente
tr ansf ormado: há entre ambas as aparições duplas o som de água. O
som pássaro au-au também ocorre depois da segunda aparição tanto
na primeir a quanto na segunda vez. Mas quando a pr imeira sirene
aparece pela segunda vez, vem acompanhada também de outro
pássar o em primeir o plano, o qual já havia aparecido em 0’ 45” portanto em outro contexto. O trinado agudo que a antecede também
é o mesmo que havia concluído o objeto pios do início da peça.
Concluímos que, no que se refere aos sons que retornam, há
um for te caráter cíclico na obra, mas que não é linear , que se
assemelha antes a um puzzle de sons r efer enciais. Esta ciclicidade é
paradoxal: ao mesmo tempo em que estabelece um cenário único,
feito por sons que estão sempr e pr esentes mas em constante var iação
– e com isso acaba por ger ar a impressão de uma fixidez espacial do
suposto ouvinte representado – cria também o estranhamento que
descrevemos nos loops de Presque Rien, em que objetos idênticos
retornam em contextos diversos, fato que é absolutamente não
realista mas que tem uma ligação com o real na medida em que usa
objetos sonoros referenciais.
Uma ciclicidade linear entretanto ocorre na alternância entre
momentos de turbulência e momentos de calmaria, e é como se a
turbulência acontecesse no espaço da calmaria. Isso é corroborado
por que os sons dentro da turbulência são diver sos a cada vez que
104
aparecem – enquanto que na calmaria são, apesar de em constante
variação, os mesmos sons. A noção de um espaço fixo está em
calmaria, e a turbulência é como se fosse um acontecimento deste
espaço. Tal impressão se f ixa mais ainda por que os sons que
estavam em calmaria continuam soando em turbulência e passam por
ela. Na pr imeira turbulência, por exemplo (de 0’30” a 0’45”–
exemplo turbulência – faixa 25), escutamos pequenos sinos agudos
de rítmica aleatór ia, que estavam presentes na calmaria anter ior e
que tr anspassam a turbulência. A causa destes sons parece ser a de
pequenos objetos metálicos suspensos que se chocam pela ação do
vento – vento que parece ser também a “causa” da turbulência. De
fato, há uma presença constante destes pequenos sons metálicos em
toda a peça, e isto cr ia a imagem de que, neste local onde está o
suposto ouvinte, está ventando.
Há por tanto a sensação de um espaço fixo que é tomado por
eventos improváveis na realidade: a invasão de um trem ou de um
automóvel, o close no farf alhar das asas de um pássaro, etc. E ste
espaço é também povoado por sons que já ocorreram antes e que, no
plano da r epresentação de uma escuta, estão mais ligados à memória
que à audição. No entanto, é pela presença constante de alguns sons
que a imagem de um espaço único se for ma, e assim podemos
comparar
esta
obra
com
Presque
Rien:
ela
possui
o
mesmo
pr ocedimento de representação de uma suposta escuta de um sujeito
hipotético, como a câmara subjetiva cinematogr áfica.
Entretanto sua construção em outro plano - no ‘outro mundo’
da escuta musical abstrata - também a liga ao Étude aux chemins de
fer. Ao contr ário de Presque Rien aqui esta construção é evidente
para a escuta; não é um mecanismo de organização, mas um possível
percur so de fr uição.
Por combinar estes dois pólos apar entemente opostos a obra de
Dufour
situa-se
então
em
um
estranho
lugar
da
música
105
eletroacústica, pois transita entr e o musical e o extra- musical. Aqui
as duas instâncias possuem um sentido duplo: o musical r efer e-se
tanto à constr ução
a partir da
escuta reduzida
quanto
a uma
referência à r ealidade sonora da música tr adicional – que apar ece
tanto
na
composição
por
motivos rítmico-melódicos
quanto
na
utilização de instrumentos tradicionais cuja imagem referencial é
explícita. Por combinar simultânea e ostensivamente as duas escutas
encontra-se
assim
eletroacústica
em
posterior
um
momento
histór ico
da
música
aos questionamentos de Ferrar i –
cujo
resultado é a incorpor ação de um hiper -realismo (por conta da
representação de uma escuta, com sua f luidez) ao mesmo tempo em
que não abandona os procedimentos composicionais herdados da
pr ática schaef feriana. Uma autêntica música dupla, como a música
concreta. A histór ia mostr a-se assim mais uma vez irônica, pois a
obra r etoma uma pr ática da música fixada em suporte que havia sido
descar tada pelo seu pr óprio inventor. A música eletroacústica fecha
um
ciclo
momentos
de negação
de
distintos
a
-
dois de
seus aspectos essenciais em
composição
pela
referencialidade
e
a
composição pela escuta reduzida – incorporando agora ambos os
métodos de composição.
3. 3. Conclusão
Mas será que a música de Denis Dufour coloca em questão a
existência de um puro campo da música, de uma música absoluta?
Pois, se em Presque Rien isto acontece - os jogos que lá ocorr em só
podem
ser
entendidos
se
se
combinar
dois
pólos
da
escuta
(referencial e reduzido) - aqui as duas f aces são simultâneas mas
estão em camadas distintas e não permeáveis. Musical e extra-
106
musical
aqui
não
dependem
um
do
outro
para
existirem
isoladamente, e tampouco há algum contato entr e eles. Constituem
campos isolados, coexistindo em um mesmo tecido musical que
permite
simultaneamente
duas
escutas.
Denis
Dufour
conciliou
assim uma composição f ocalizada na escuta da mater ialidade do som
– a qual aparece, inclusive, por conta da presença de sons de
instrumentos, que induzem a esta escuta ‘musical’ – com uma
composição a partir dos sons r efer enciais que faz a representação de
um “sujeito escutante”, como em Presque Rien. A riqueza da obr a
está justamente no par adoxo pela combinação destes dois elementos
e por isso questiona a fronteira entre musical e sonoro, como antes
apontamos ocor rer na música concreta. Retoma portanto aquilo que
Schaef fer havia abandonado em detr imento de uma sistematização da
composição abstrata ‘com r uídos’– o referencial, e com este o
paradoxo.
Paradoxo por trazer para a música aquilo que tradicionalmente
se opõe a ela. O própr io pensamento schaef feriano esclarece a
q u e s t ã o : “ o m u s i c a l n ã o é n a d a m a i s q u e u m s o n o r o c o n v e n i e n t e ” 87
(Schaef fer apud Chion, 1983, p. 97) – e o termo conveniente pr ovém
de objetos convenientes para o musical (cf cap. 1 ou o glossário),
ou seja, o musical é todo o sonoro que se adéqua aos critérios dos
objets convenables, estipulados sobr etudo por serem aptos para uma
escuta reduzida – portanto pouco r efer enciais ou emotivos. Com isso
retomamos novamente a antiga noção de música autônoma, pois esta
música de objets convenables deve retirar de si todo o ‘nãomusical’: o impulso teórico de Schaef fer é o de isolar o específico
da música em oposição aos demais sons do mundo par a poder trilhar,
a partir de uma nova metodologia da escuta, por uma prática de
composição com os novos materiais. A música para Schaef fer não
está portanto aber ta ‘ a todo o sonoro’ : a escuta sim, mas esta deve
87
“le musical n’est qu’un sonore convenable”. (Schaeffer apud Chion, 1983, p. 97).
107
selecionar ,
para realizar
o
exercício
da redução,
os materiais
adequados. A ênfase está portanto em um material que, em si, é apto
ou não par a o musical.
A música de Dufour contém o método de composição pela
escuta reduzida: os materiais que empr ega são equilibrados do ponto
de vista da tipologia schaef feriana, ou seja, possuem formas claras
que não evoluem de modo imprevisível ou desordenado; são em sua
maioria curtos e memor izáveis; podem ser agrupados em famílias, e
entre elas há uma complementar idade. Além disso, a escrita de
Dufour
é
nítida
do
ponto
de
vista
composicional:
per cebe-se
facilmente as idéias motívicas e os jogos de fr aseado; mesmo a
forma cíclica é bastante clara (a oposição turbilhão/calmaria).
Dufour emprega à r isca os modelos do conveniente para o musical
de Schaef fer, exceto no que diz r espeito à referencialidade. E neste
campo constrói um discurso par alelo e coer ente na repr esentação de
um “sujeito escutante”, confor me descr evemos anter iormente. O
paradoxo então reside neste divórcio das duas escutas que ocor re no
espírito do ouvinte, e não na obra em si. É como se estas duas
instâncias fossem irreconciliáveis, mundos par alelos mas divididos
por uma barreira intransponível.
Mas
qual
ouvinte
percebe
esta
dupla
articulação?
Evidentemente, esta é uma interpretação minha que bem ou mal
tr ansmiti por via deste tr abalho; é a interpretação de uma escuta
dirigida pela minha trajetória cultural específica e que vai acabar
por
dirigir
de
alguma
forma
a
escuta
do
leitor
deste
texto.
Considerando então novamente a música de Dufour , lançar ei uma
hipótese que tem como objetivo questionar, pela possibilidade de
uma generalização absoluta, o campo da escuta musical abstrata, um
dos lados da bifur cação. Retir emos então a par te visual da seqüência
de Era uma vez no Oeste. A banda sonora pode constituir também
uma música? Evidentemente, uma tal escuta ‘acusmática’ do filme
108
está já direcionada pela lembrança que tenho das imagens às quais
os sons estão originalmente acoplados – mas se tentar um esfor ço de
‘ e s c u t a r e d u z i d a ’ 88 p o s s o m e s m o c o n c l u i r q u e h á u m a c o e r ê n c i a
musical, principalmente nas seqüências em
que os personagens
“brincam com os sons”: há uma recorrência de sons de água em
diversos aspectos (contínuo, em gotas. ..), há uma simetria entre os
sons do telégr afo, das gotas e dos dedos estalando no que se r efer e à
sua tipologia de massa e à sua rítmica, etc. ( cf. exemplo Oeste –
faixa 26). Ou seja, para este determinado critério musical - aquele
aprendido de Schaef fer – temos música. Mas eu poder ia também
escutar estes sons e permanentemente r emetê-los às imagens do
filme que tenho em minha memór ia. Estaria com isso “escutando um
filme”, ou realizando uma escuta musical?
Uma outra possibilidade seria a de uma escuta ainda mais
“na ive” , em que não faço di stin ção entr e me ate r à mate rial idad e do s
sons ou à sua referencialidade. “Escuta desinter essada”, se é que
possa de f ato existir. Tomemos os cavalheiros que principiam a
br incar com os sons em Era uma Vez no Oeste. O que fazem eles
senão modular a pr ópria escuta a partir de sua ação no mundo, em
função desta escuta? Como quem toca um instrumento, estariam
moldando os objetos em sua volta e com isso cr iando um campo de
recompensa e f rustração da imaginação anterior ao ato de modular.
É como se o homem com chapéu e o outro que cochila e aprisiona a
mosca esperassem o som resultante de sua ação.
Ou ainda, por casualidade é que modularam o som: o motivo
pr incipal para que o primeiro homem colocasse o chapéu é a de que
a gota não caísse em sua testa (ou talvez para que acumulasse água
na
aba, para ser
bebida depois);
o
homem
que cochilava
foi
importunado pela mosca e por isso inventou um modo de aprisionála. Mas não importa a razão que os levou a modular seu espaço
88
Aqui em um sentido duplo: tanto para isolar das imagens da minha lembrança quanto no sentido schaefferiano.
109
acústico, e sim que perceberam a mudança. O som resultante destes
gestos poderia passar em branco não fosse a situação em que os
homens se encontravam: em primeiro lugar estavam imersos em um
silêncio tão imenso que qualquer som ocupava todo o espaço. Além
disso encontravam- se entre a apreensão e o tédio pela espera de um
desconhecido que dever iam matar. Ouvido ao mesmo tempo atento e
desatento, alerta ao menor indício de perigo e ávido por despr egar se da situação tensa.
O ouvido passa a ser então um canal por onde entra o sinal de
ameaça e um veículo da válvula de escape do real ameaçador .
Rodolf o Caesar fala deste possível órgão do medo e da noite a partir
do aforismo 250 da Aurora de Nietzsche,
O ouvido, este órgão do medo, só alcançou tanta grandeza na noite e na
penumbra de cavernas obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da
era do receio... Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi assim que a
música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra. (Nietzsche apud Caesar,
2003, p.1160).
E a partir do aforisma, comenta:
Sublimação de terrores, a escuta musical dentro dessa
caverna não seria uma ‘explicação’daquilo que se escuta na
condição propiciada pelo acusmatismo da noite, mas um
processo que resulta em interpretações dos eventos que,
inicialmente perturbadores num estado de vigília, despertam a
atenção para um imaginação – apenas porque estes eventos da
escuta noturna deixam de se apresentar apenas como portadores
de sig nifi cado s in dici ais claros e imediat os. Essa escuta não
lida necessariamente somente com os sinais ou indícios
ameaçadores identificados à luz do dia mas realiza – ou se
confunde com – a superação de um medo, celebrando o seu fim.
(Caesar, 2003, p. 1160)
Assim como o homem da ‘era do receio’ a escuta de nossos
cowboys bifur ca-se então entr e pr agmática e sonhadora. Apesar de
se encontr arem na clar idade de um dia em pleno deserto, estariam
sujeitos às ameaças de um outr o que possivelmente os espreitar ia. A
110
vastidão do deserto é um esconderijo perfeito, pois o olhar não dá
conta de todos os micro-detalhes do espaço infinito. O deserto é
portanto uma noite com sinal contr ário, e cega pelo excesso de luz.
Por conta disso o ouvido f ica atento à menor mudança no vasto
silêncio.
Atenção
longa
e
cansativa,
que
abre
espaço
para
o
devaneio.
O que os levaria a criar sons e a deliciarem-se com isto:
situação de escuta ou intencionalidade? Ou ainda: a música veio por
gestos casuais ou por uma ação intencional? Como já salientamos
antes, não é possível definir. O que impor ta é que a música é uma
escuta, ela não existe em si mas no ouvinte. A partir do momento
em que os três cowboys depar am-se com o som não com sentido
utilitário mas como objeto de deleite estão fazendo música. Esta
ocorre, por exemplo, na diferença, par a a escuta, entr e o som da
mosca livr e
e o som dela aprisionada no cano da arma – no prazer
desta descober ta. Pode ser também, por que não, que ocorra como
mero prazer sensual: o deleite da textura do som da mosca dentro do
cano ( sensação indizível de uma leve asper eza audível) , ou, como
vimos, o suposto som do atrito das meias de uma mulher quando
cr uza as pernas (induzindo a todo um corpo de sensações guardadas
na memória). E neste último caso, apesar de se tratar de uma escuta
referencial, continua- se apreendendo o som descolado do utilitário,
como é próprio da escuta musical.
O real estaria aberto à escuta musical, que or ganiza os sons,
hierarquiza-os,
seleciona- os.. .
Mas
esta
organização
é
já
um
pr ocesso que vai para além do som e depende da história de cada
indivíduo; está atrelada à sua intenção de escuta, mesmo à sua
personalidade, e a outros inúmeros fatores. Por conta disto é que a
análise da obr a de Dufour aqui apresentada é absolutamente parcial:
o modelo bipar tido da música concr eta, no qual me baseei, é uma
constr ução teórica que, com relação a essa obr a, apesar de ressoar
111
na minha percepção, pode não ser apreendido por alguém que não
possua uma for mação musical semelhante à minha. Assim, se Ferr ari
expõe um pré-musical não esper a que todos os seus ouvintes o
percebam: sua obra, bem como a de Dufour ,
se comunica com seu
público não exclusivamente por este viés, mas antes por elementos
que são comuns a um gr upo muito amplo de ouvintes. Ela representa
uma
cena
com
objetos
partilhados
pela
maioria
dos
sujeitos
ocidentais contemporâneos (a água, motores, vozes) – sendo que a
apreensão de uma construção ‘abstr ata’ não é imprescindível para a
fruição da obra.
Contudo, Presque Rien também está aberta para uma escuta
‘abstr ata’ – assim como a música de Dufour , de Schaef fer, de
Leone. .. r etomo aqui a questão de Barthes – que difere a música das
outras artes por esta não ser repr esentativa – e afirmo que ela é e
não é, ao mesmo tempo. .. Podemos f echar as duas questões que
deixamos antes em aber to em dois dos subtítulos deste capítulo
(Existe uma pura música ‘anedótica’ ? e A música pura: existe um
som em si?) com, ao invés de uma asser tiva, uma solução ambígua.
Pois, como mostra a música de Denis Dufour , uma instância não
exclui a outra, elas coexistem. Na música de Ferrari elas não estão
lado a lado, mas se fundem em um único acoplamento. A escuta
musical – ou seja, não utilitária, e não mais entendida como oposta
a uma escuta r efer encial - pode of erecer uma clara imagem dos sons
ao mesmo tempo em que pode procurar se distanciar desta instância
causal e construir uma outra lógica. Schaef fer trilhou por uma
descrição da f orma e da matéria do som e construiu com isso uma
série de caracteres que, uma vez conhecidos, dirigem completamente
a escuta como o faz uma pr eocupação com a causalidade. Sua
formulação
teórica
tipo-morfológica
baseada
em
uma
escuta
reduzida, apesar do seu mérito como metodologia br ilhante para uma
investigação do ‘puro sonoro’ ou de um som ‘em abstrato’ e
112
fundadora de um pensamento sem o qual esta discussão não existiria
e do qual somos caros, é tão arbitrária quanto ser ia uma escuta
centrada em um outro aspecto do som (classificar como agudo ou
grave - categoria físico-acústica, como etéreo ou vulgar - categoria
místico-religiosa, como sensual ou apático...etc).
E é ar bitr ária por que, com relação à escuta musical, não
encontramos universais objetivos. Não estamos tr atando de um
fenômeno natur al, em que talvez isto ocorr a. A escuta musical
depende de fatores cuja particularização chega mesmo ao individual.
Existem porém pontos comuns da escuta em geral: uma pesquisa
inter- subjetiva como f oi a de Pier re Schaef fer trata de trazer estes
elementos comuns, mas sua generalidade deve ser relativizada e não
pode constituir o único método par a uma pesquisa do fenômeno
musical,
pois
exclui
a
dimensão
subjetiva
tampouco
existe
própria
da
fruição
estética.
Por
outro
lado,
uma
escuta
livre,
absolutamente isenta de qualquer f ixação conceitual, ou de qualquer
representação.
Tal
acepção
é
impossível
por
ser
mesmo
uma
contradição em ter mos. Pois escutar opõe- se a ouvir justamente no
ponto em que o primeir o verbo pressupõe uma intencionalidade que
não está presente no segundo, e o ato intencional de escutar é
justamente o de cr iar sentido para aquilo que chega aos ouvidos. A
escuta musical cria sentido de um modo não específ ico, e podemos
dizer mesmo que ela permeia todas as outras escutas possíveis.
Ela
carrega os sons de valores - pois cada ouvinte recria o mundo à sua
maneir a, com as ferramentas que tem – sendo a referencialidade
causal
a mais imediata e a mais partilhada entre inúmeros sujeitos,
mas também uma dentre inúmeras possíveis. Outr as f erramentas são
comuns par a a criação de sentido estético, como a escuta musical
tr adicional, mas as imagens sonoras chegam mesmo ao domínio do
individual pois tocam, como vimos no primeiro capítulo, esferas
113
profundas e arcaicas da memória que o indivíduo tem dos objetos do
mundo.
Esta ambigüidade na recepção deve-se talvez, como já
enfatizamos antes, ao fato do som ser um objeto impalpável que faz
com que a escuta se torne o mais f luido dos sentidos estéticos.
As músicas e o filme que estudamos neste capítulo trazem
portanto
questões
que
não
se
limitam
a
uma
oposição
entre
musical/extra- musical. Em Presque Rien a oposição não faz sentido
por que a instância musical ( no sentido que a oposição sugere, ou
seja, a instância ‘abstrata’ou não ref erencial) não é evidente, sendo
que a obra é toda extra- musical. Como salientamos antes, trata-se de
uma composição feita para a escuta. Se então não é uma música, que
outra coisa seria? O musical sendo sinônimo de ‘música absoluta’
portanto aqui não faz sentido.
Estas obras ampliam os limites do campo musical justamente
por representarem ou “porem em cena” a escuta de um sujeito
hipotético. As obras de Ferrari e Dufour não mostram apenas uma
cena acústica, mas sim esta cena escutada por alguém: há uma
centralidade para onde os pontos de audição convergem ou, como no
caso do som de cigarras no final de Presque Rien e os momentos de
Turbilhão na obra de Dufour , uma anulação deste centro – o que faz
com que o percebemos ainda mais nitidamente, pela sua ausência.
São obras que remetem à própria escuta
do ouvinte, o qual acaba
por se identif icar com o sujeito hipotético representado e que
permanentemente compar a a sua experiência do mundo com aquilo
que está na obra. Como as obras flutuam no real ao inserir em nele o
im prov ável , el e é leva do p orta nto (se assi m o dese jar, ou seja , se for
“f isgado” pela obr a) a descolar-se de uma escuta pragmática do som
referencial para entrar em um jogo semelhante àquele dos cowboys
do filme de Leone. É essa, a meu ver, a dimensão utópica destas
obras, qual seja a de criar uma situação musical partido da realidade
a fim transfor mar a escuta do real. É de trazer o mundo para uma
114
atenção pr ópria do musical, a uma situação de ser que desloca os
objetos sonoros referenciais para a dimensão do lúdico ou do
onírico.
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O som habita toda a parte; mas os sons,
quero dizer, as melodias que falam a
língua superior do reino dos espíritos,
não repousam mais que no âmago do
homem.
(Hoffmann apud Schaeffer, Traité des
Ob jets Mu sica ux)
116
No per curso deste trabalho par timos de algumas oposições
fundamentais e cor relatas: musical e extra- musical, musical e
sonoro, autonomia da música e referencialidade. Espelhada pela
pr odução da música concreta, a teoria schaef feriana - nosso ponto
de par tida e guia f undamental – for mula a questão, e liga, nestes
pares opostos,
o primeiro vér tice ao intr ínseco da música, e o
segundo àquilo que atira a escuta para for a. Nas primeiras músicas
concretas
a
noção
de
pares
opostos
coexistia,
mas
as
duas
dimensões não se anulavam: elas compar tilhavam o mesmo espaço
musical, e essa situação tencionava a oposição, tr azendo-a par a o
pr imeiro plano das preocupações cr iativas.
Tal situação, tematizada por Schaef fer em muitos de seus
escritos, levou-o finalmente a abandonar o vér tice “não-musical”
em favor do pr imeiro. Mas esta não foi uma orientação geral, pois
muitos
de
seus
seguidores
continuaram
na
prática
inicial
e
desenvolveram aquela questão delicada, de forma mesmo a anular a
oposição:
como
vimos
no
trajeto
do
trabalho,
as
obras
que
estudamos integram as duas dimensões. Na obra de Ferrari o
musical está tão organicamente colocado no domínio referencial
que a separação perde sentido.
Sob o ponto de vista de sua poética o procedimento de
combinação entre uma r ede elaborada de construções realistas e
or ganizações abstr atas entre os elementos sonoros é o que traz a
força destas músicas. Sua ligação com o real ata a imaginação a
elementos
convencionais
palpáveis
para
em
seguida
levar
a
audição, pela construção abstr ata e deslocada da r ealidade, para o
domínio do poético. A música torna-se metáfora do devaneio, pois
possui uma estrutura que segue seu mesmo trajeto. Conduz o
ouvinte, a par tir de uma consciência de si, de uma clareza que vê
objetos representados fora de mim, a um estágio de ampliação do
117
real, a uma ilusão de ser mais do que eu sou. Não conduzem a um
delírio, a uma alucinação ou ao sonho, em que essa consciência se
desfaz: convida o ouvinte a partilhar de um jogo que lida com
objetos que são decalques da realidade e que por via do jogo dela
se descolam.
Por conta destas distorções levam assim a uma consciência
do ilusionismo. A imagem transformada conduz a uma comparação
com seu modelo e torna-se objeto de reflexão acerca da própria
apreensão do r eal: dos valores que dou aos objetos, da maneira
como percebo o transcorrer do tempo, da forma como entendo
situações
reais
ou
irreais.
Distendem
a
consciência
do
real,
levando-a a um outro status de ser : antes comum e restrito, agora
amplo e lúdico.Tal não é aliás a utopia de todas as músicas? O
jogo com o real portanto conduz a uma situação musical única, a
uma ampla libertação de uma escuta calcada no hábito, mas o faz a
partir deste campo estável e encer rado.
Vimos que a música de Michel Chion mostra uma cena de
alucinação em que o personagem distingue mal entre seus sonhos e
a
percepção
do
mundo.
Assistimos
ao
seu
drama
de
longe,
percebemos os estágios de delírio, lembrança e nor malidade mas,
por fim, não somos capazes de determinar se suas visões do diabo
e de outros seres terr íveis são pr odutos de sua imaginação ou
‘aparições reais’. Levados pela constr ução imagética, passamos
nós
mesmos
a
duvidar
de
três
estágios
tão
delineados
de
consciência. Se compar ado com os personagens do filme de Leone,
eles
também
percebemos
imersos
que
Santo
na
“noite
Antonio
clara”
do
encontra- se
deserto
voltado
diurno,
para
sua
consciência asfixiante, enquanto que os cowboys têm a atenção
dirigida para
o
mundo.
No
filme
os
temores
são
bem
mais
palpáveis. Em Santo Antonio, é sua memória que lhe prega peças e
evoca os seres que lhe aparecem, seja em alucinação, seja em
118
realidade. Apesar da dúvida que temos com relação àquilo que
percebe,
são
aparições
a
que
assistimos
de
fora,
que
não
vivenciamos, numa repr esentação que deixa clar o o nosso lugar de
observador es.
Tal não acontece com as músicas de Dufour e Ferrari. Em
Chion o devaneio está lá, faz parte do jogo, mas nas outras
músicas ele é repr esentado pela forma como elas se manifestam.
Por levarem a escuta para dentro da cena, elas constituem a
metáfora do devaneio, pois representam uma per cepção do mundo.
E, por trazerem o real par a o domínio da música na medida em que
tratam os elementos do mundo de forma livre e lúdica, constituem
uma ampliação do musical. Se a música nasce da escuta liberta de
um pragmatismo, estas obras são por isso um manifesto veemente
por uma cr iação musical aberta tanto para a instância referencial
quanto par a a ‘abstrata’. Instâncias que se ar ticulam de f orma não
hierár quica (em Presque Rien não há separação, enquanto que na
música de Dufour são campos paralelos), e constituem possíveis
deslocamentos da r ealidade próprios da escuta onírica. A situação
de escuta acusmática de sons ref erenciais pr opicia esta condição,
pois o ouvinte imagina as fontes dos sons exibidos numa condição
de escuta ausente do mundo, colocada em obra artística e por tanto
com uma outra relação de intencionalidade com o real. A escuta
‘abstr ata’ ,
também
decorrência
do
acusmatismo
e
menos
representativa mas não menos lúdica, é assim um outro pólo
possível para o devaneio além de escuta referencial.
O jogo que leva à referencialidade ou à abstração ocorre
assim a partir de sua relação com a realidade. Mas ampliar iam as
músicas a noção deste real, ou dar iam subsídios poéticos para a
compreensão da escuta ou dos mecanismos de identif icação entre o
sujeito e aquilo que está diante de si? Esta questão não será
tr atada neste trabalho,
pois está
além
de
nossas proposições
119
iniciais. Ela surgiu no decorr er da análise destas obr as e constitui
um ponto de partida para investigações posteriores. Porém, me
parece que estas músicas evidenciam o fato de que o real é
moldado por aquilo que per cebemos, ou seja, pelos valores que
damos
aos
objetos
dados
à
percepção.
E
elas
o
fazem
por
induzirem a esta escuta em espelho, em que me identifico com a
representação do real. Elas põem em evidência, portanto, a própria
percepção que tenho das coisas, pois r epresentam uma escutamodelo com a qual vou me deparar e que comparo com a minha
vivência.
Seleciono desse embate aquilo que apreendo, e durante
as diversas escutas decifr o a própria maneira como per cebo e me
relaciono com as coisas do mundo.
Para ilustrar esta possibilidade de uma escuta individual
termino este trabalho com uma anedota: Des Mains Insomniaques
Conduiront le Coupé Rouge f oi analisada, em 2003, por um gr upo
de estudantes do qual eu f azia par te,
em uma classe do pr ofessor
Rodolf o Caesar . Se me lembro bem, os r esultados dessas análises
não poderiam ser mais díspares: duas colegas construír am uma
narrativa, um enredo com personagens e com uma linearidade
teleológica a partir da música. O resultado er a absolutamente
coerente: em uma das narrativas er a como se a música f osse o som
de um filme que tirássemos a imagem – e assim podemos dizer que
ela
migrou
de
uma
escuta
musical
para
uma
escuta
cinematográfica. A dimensão de uma constr ução ‘abstrata’ não foi
percebida pela autora, talvez pelo fato dela não ter uma formação
musical. De qualquer f orma, a outr a analista, que é pianista,
também não imaginou tal dimensão, e custou a admitir que eu
havia construído a análise vista no pr esente trabalho.
As outras pessoas realizar am inter pretações mais ou menos
centradas em uma escuta ‘musical’, como eu. Um colega fez uma
descrição da f orma cíclica ger al que aqui eu chamei de alternância
120
entra turbulências e calmarias, e encontrou outr os ritornelos que
ainda hoje reluto em admitir. Outro colega, ainda, criou uma
metodologia interessante: escutava a música ao ar- livr e, a fim de
distinguir aquilo que era do domínio musical daquilo que estava no
ambiente, em r epetidas audições. Por conta disso, fez um estudo de
sua pr ópria escuta
Mas não importam os detalhes,
mas sim o f ato de que a
música de Dufour suscitou uma gama ampla de interpretações, nada
estereotipadas, em um grupo de pessoas nem tão dif erentes entr e
si. Domínios individuais, perf eitamente coerentes em si e com
relação à música, e complementares. Escutas em espelho, que
falam mais da vivência que temos do mundo do que da obra. Esta
permanece um enigma em constante mutação mas que serve, como
um
dispositivo,
para
iniciar
constr ução que faço do real.
o
processo
de
consciência
da
121
GLOSSÁRIO
Câmara Subjetiva: “Câmar a que funciona como se f osse o olhar do
ator. A câmara é tratada como ‘participante da ação’, ou seja, a
pessoa que está sendo filmada olha dir etamente par a a lente e a
câmara
representa
participando
o
dessa
ponto
mesma
de
vista
cena”.
de
um
outro
MACHADO,
per sonagem
Jorge
(org.)
Vocabulário do Roteirista: site da internet acessado em 18/01/2004.
Fad e in / fade out : Acrésci mo ou decréscimo “artifi cial” de amplitude
não -presente no som r eal mas real izada no som sob suporte, de m odo a
par tir ou chegar de/ a uma amplit ude inaudível. Assim, fad e in ocorre
com o acréscimo e fad e out como decréscim o do volume de um som.
Loop: palavr a da língua inglesa, def inida assim por um dicionário:
f o r m a p r o d u z i d a p o r u m a c u r v a q u e s e v o l t a p a r a s i m e s m a 89.
Mantendo o mesmo sentido, trata-se de um som cujo fim se une
imediatamente
ao
seu
início,
ou
seja,
um
som
repetido
continuamente. Em sistemas de repr odução em fita produz-se um
loop quando se cola o início de uma fita ao seu fim; em sistemas
digitais há inúmeras maneiras
de fazê-lo:
seja
através de
um
seqüenciador, ou seja, aparelho que gerencia uma seqüência de
loops, ou a simples repetição de um som em um progr ama de
mixagem
multipistas (ou seja,
programa que
simula um mixer
multipistas).
Música acusmática: música cujo emissor do som, ou pelo menos seu
emissor real,
ou
seja,
sua
origem
anterior
à gravação
não
é
visualizada pelo ouvinte. O termo acusmático f oi r etomado de
Pitágoras por
89
Pierre Schaeffer
para designar esta condição
“loop: 1. shape produced by a curve crossing itself”. (Oxford Learner’s Pocket Dictionary, 1993)
de
122
escuta, tendo sido um passo muito importante para a consolidação
de seu conceito de objeto sonoro. Para Tr evor Wishar t, Schaef fer
considera que “o adjetivo acusmático r efer e-se por tanto à apreensão
d o s o m s e m r e l a ç ã o c o m s u a f o n t e . ” ( W i s h a r t , 1 9 9 6 , p . 1 2 9 ) 90 –
embora
nada
na
teoria
schaef feriana
indique
que
a
situação
acusmática induza necessar iamente a uma dissociação entre o som e
sua fonte. Isso ocorre apenas por via da escuta reduzida, atitude
intencional de escuta que tem esse fim. No Traité des Objets
Musicaux há mesmo a seguinte ressalva: “No momento em que
escuto, no toca-discos, um ruído de galope, assim como o índio nos
Pampas, o objeto que eu viso, no sentido bem geral que temos dado
a o t e r m o , é o c a v a l o a g a l o p e 91. ” ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 8 ) – o q u e
leva a uma outra reflexão: “Pois o cavalo não é menos presente na
gr avação ( sem visão) que na foto ( sem audição) . O acusmatismo não
c r i a , i p s o f a c t o , o o b j e t o s o n o r o ” ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 8 ) 92. A
situação de escuta acusmática por tanto não induz a uma escuta
reduzida.
Porém,
por
fazer
com
que
o
ouvinte
se
atente
à
materialidade do som, tal situação de escuta é mais pr opícia que
outras par a o exer cício da escuta reduzida. E, por não mostrar a
or igem dos sons, propicia também com que o ouvinte imagine esta
or igem, e mesmo que atente-se para a identificação das fontes
sonoras.
A
situação
de
escuta
acusmática
acentua
então
dois
possíveis caminhos da escuta: a redução e a referencialidade – e o
faz por centrar a percepção do ouvinte tão somente no som.
Objet Convenable (objeto conveniente), objeto conveniente para o
musical: na teoria schaef feriana refere-se a objetos sonoros aptos a
serem empr egados como objetos musicais, para a realização musical.
90
“The adjective acousmatic thus refers to the apprehension of a sound without relation to its source.”
( W i sh ar t, 1 9 9 6 , p .1 2 9 ) .
91
“Au moment où j’écoute, au torne-disque, um bruit de galop, tout comme l’Indien dans la Pampa,
l’object que je vise, dans le sens très général que nous avons donné au terme, c’est le cheval au galop.”
(Schaeffer, 1966, p. 268)
92
“Car le cheval n’est pas moins présent dans l’enregistrement (sans vision) que dans la photo (sans
audition). L’acousmatique ne crée pas, ipso facto, l’objet sonore.” (Schaeffer, 1966, p. 268).
123
Para
que
o
sejam
devem
satisfazer
a
alguns
critérios,
como
simplicidade, originalidade e abstração. Para tal, devem ser curtos,
bem memorizáveis, não devem portar um sentido, uma afetividade,
ou remeter a uma f onte, e deve haver equilíbrio entre seus aspectos
tipológicos, ou seja, entr e os tipos de compor tamento internos ao
objeto musical. Conceito tautológico, pois é um objeto conveniente
para
o
musical,
e
o
“musical
não
é
mais
que
um
sonoro
c o n v e n i e n t e ” 93. S ã o p o r t a n t o o b j e t o s q u e s e i n s e r e m e p o s s u e m
função em contextos musicais, para isso definidos a partir dos
cr itér ios apontados.
Em outras palavras, na sua busca por uma ‘ música dos sons’ ,
ou seja, de todos eles, Schaef fer procura uma diferenciação entre
som musical e não- musical. Um objeto conveniente vai sintetizar,
nesta teor ia, os sons que são aptos para serem utilizados em uma
composição musical; tr ata- se de um a priori geral, que não leva em
conta os contextos musicais.
Paisagem sonora: termo pr ovavelmente criado por Murray Schafer
que, em sua obra, refere-se a um tecido sonoro qualquer que é dado
à
contemplação
ou
ao
estudo.
Uma
composição
musical,
um
pr ograma de rádio ou um ambiente acústico podem ser entendidos
como tal. O termo pressupõe portanto um distanciamento ou uma
separação entr e sujeito e objeto que, na minha opinião, não ocorre
necessariamente diante de algo dado à escuta.
Por ter surgido de estudos acústicos cujo fim é ecológico o
termo foi associado também a um gênero da música acusmática
composto por um corpo de obras que representam – com uma suposta
objetividade – um espaço acústico específico. Esta representação
pode evidenciar diversos fatores que variam conforme a intenção do
compositor , como a especif icidade acústica do lugar representado,
sua pr ofundidade, etc. O conteúdo ecológico do ter mo por f im f oi se
93
“le musical n’est qu’un sonore convenable” – P. Schaeffer, apud Chion, 1983, p.97
124
esgarçando pelo uso, sendo que atualmente refere-se a uma obra
cujo f im é representar uma cena acústica r etir ada do r eal.
O próprio termo é no entanto questionável, pois o som não é
estático nem se dá por inteiro à audição: seu sentido constrói-se no
tempo, é um objeto em constante devir. Paisagem, ao contr ário, é
um ter mo que induz a um olhar a distância de um território amplo, o
qual é retirado do continuum temporal seja par a a análise seja par a a
contemplação. Apesar da sono-fixação trazer a possibilidade de uma
escuta
em
repetidas
vezes,
o
som
continua
incessantemente
reverberante na cr iação de sentidos: não é possível uma análise
continuada, ou em continuação: sempre que nos referimos ao som
nos atemos ou à memória ou a uma r epresentação.
Cabe salientar também que, apesar de terem sido associadas ao
termo, as obras acusmáticas de Ferrar i “que r epresentam o real” são
(no
caso
de
Hétérozygote
e
Music
Promenade)
anteriores
às
formulações de Schafer e, bem como muitas obras do repertório
ligado à tradição da música concreta, não compartilham da sua
perspectiva objetivista. Como tentei mostr ar nas análises de algumas
obras neste tr abalho, são de construção livre no que diz r espeito a
um compromisso com o r eal. Elas partem dele como modelo ou como
referência par a em seguida conduzirem a escuta par a um outro
campo, livre de um realismo. São obras que se atêm mais a uma
investigação da escuta que do material sonoro.
Presença: conceito da acústica de salas usado para a mensur ação
(inter -subjetiva) de uma boa sala de concertos; pode ser r esumido
como sendo o grau da presença (tanto em quantidade quanto em
nível) das primeir as r eflexões nos primeir os 80 milisegundos de um
som, em uma sala qualquer. É usado par a dosar o gr au e o tipo de
reverberação em uma sala ideal, a qual deve pr opor cionar aos
ouvintes uma sensação de proximidade aconchegante com a execução
musical, mas deve- se dosar esta pr oximidade de for ma a evitar que o
125
som fique totalmente isento de reverberação, pois isto acarretaria
numa sala impr ópria para a escuta.
Som em delta: são sons que “(... ) obedecem a um perf il de
intensidade de cr escendo/decr escendo. Trata-se do encadeamento
clássico de um ‘som ao reverso’ (um som de per cussão-r essonância
posto ao r ever so) com um som de percussão- ressonância posto ao
o r i g i n a l ” 94 ( C h i o n , 1 9 9 9 , p . 3 3 0 ) .
Som fixado em suporte, fono-f ixação : termo cunhado por Michel
Chion (cf. Chion, s.d., p.131) para designar o som gr avado em um
suporte, seja em um disco de acetato, seja em fita, seja em um disco
rígido de computador. Por conter o fluxo contínuo da escuta e
possibilitar a escuta de um mesmo som repetidas e inumeráveis
vezes, per mite que se componha dir etamente sobre o suporte, o som
fixado tor nando-se assim um objeto manipulável.
Sulco fechado; sillon fermé: trata-se do sistema de f ixação sonor a
nos discos de acetato nos quais se cor tava um sulco circular
confor me acontecia a sensibilização mecânica.
Isto
é,
o sulco
fechava-se sobre si mesmo, seu final inter calando- se com o início,
de modo que o som realizava um per manente ritornelo ( cf Loop).
Foi
neste
suporte
que
as
primeiras
músicas
concretas
foram
realizadas, e por conta da limitação do suporte podemos escutar a
quase onipresença de loops, fato que mar cou estilisticamente esta
fase e que se tornou objeto retórico da música sobre supor te.
94
“(...) obedecen al perfil de intensidad crescendo/decrescendo. Se trata del encadenamiento clásico de un
‘sonido al revés’ (un sonido de percusión-resonancia vuelto del revés) con un sonido de percusiónresonancia al derecho”. (Chion, 1999, p.330).
126
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133
Anexo 1 – análise e audiograma
Som inicial de La Tentation de Saint Antoine
NOTA:
a
presente
análise
se
baseia
na
terminologia
e
na
metodologia de Pierre Schaeffer e Guy Reibel, demonstrada no
Solfège de l’objet sonore (Schaeffer, Reibel et alii, s.d. ) Em seguida
(no segundo parágrafo) é feita uma pequena crítica ao método
schaefferiano, o qual não dá conta
da estrutura dinâmica deste
som.
O objeto pode ser fragmentado em 3 par tes (désert a, désert b,
désert c – faixas 4, 5, 6, fr agmentos da faixa 2, désert). A
ar ticulação entre as duas primeiras se dá pela repetição ( na segunda)
do impulso
tônico inicial (N’ ), que na segunda vez é prolongado e
tr ansf orma-se em nota tônica ( N), e que tem como desfecho um
glissando descendente até o final do r egistro, seguido por uma
ressonância gr ave (reverberada), sendo o glissando descendente uma
nota tônica variada (Y) e a ressonância uma nota de massa complexa
(X). E ntre desert_a e desert_b há uma sequência de sons agudos e
estridentes, vocálicos (ssic ssic ssic ssic ssic - massa complexa
iterativa - X”), que ligam o impulso inicial ( N´) à sua repetição.
A relação temporal entre o impulso inicial, sua repetição e o
final do glissando (até onde o percebemos) é a de uma pulsação,
formando 3 eventos em sequência
relacionados metricamente. Na
verdade, entendo desert_b e desert_c como uma unidade, e separ eios apenas para salientar as 3 etapas de desert_b ( impulso seguido
por nota tônica, glissando descendente e a ressonância, desert_c).
Apesar
de,
entre
desert_b
e
desert_c,
existirem
três
estágios
perceptualmente distintos, não podem porém ser separados, pois
possuem uma unidade gestual, acentuada pela aparição, na segunda
134
vez, da nota tônica após a repetição do impulso inicial. E sta nota
tônica (em ver melho, desert_b) mantém tensa a r elação entre o
impulso e a reverberação, sendo que esta última acaba por ser uma
conseqüência ou um efeito cuja causa é o glissando descendente, e
que por sua vez constitui- se numa possível resolução da nota tônica
sustentada (outras for mas de sair dela ser iam simplesmente um fade
out ou um adensamento de massa; o compositor porém pr efer iu o
glissando descendente) . Portanto, se as etapas contidas neste trecho
(desert_b e desert_c) podem ser descritas separadamente não podem
porém ser destacáveis ou segmentáveis, ou seja, separadas em
objetos, pois não é possível delimitar onde se inicia ou onde se
termina este ou aquele objeto: as etapas possuem uma ligação de
causa e ef eito, e não existem, entre as elas, articulações com um
terceiro objeto, ou silêncios; soam continuamente, e percebemos sua
“mudança de estado” quando esta já ocorreu.
Já o “objeto ssic ssic ssic” pode ser apontado com clareza,
pois destaca-se completamente dos demais: ao aparecer delimita o
fim da ressonância do impulso tônico inicial e ter mina com a
aparição da repetição do mesmo (com uma ligeir a sobreposição entre
o início do outro objeto e fim deste – a qual é bem perceptível). Ou
seja, é um bom objeto schaef feriano, destacável, cur to, de ligação
longínqua com uma possível fonte vocal.
135
Audiograma
136
Anexo 2 - transcrição e tradução de Le Désert, 1° Quadro de La
Tentation de Saint Antoine.
NOTA: apresentamos aqui uma transcrição das f alas na obra de
Chion. Notamos que o compositor utiliza-se o mais das vezes do
texto de Flaubert, mas nunca em sua or dem original. Por vezes,
também, acrescenta outras falas que não pr ovêm do romance. Por
isso, trouxemos da obra de Flaubert tudo que foi identificado como
sua e aproveitamos a tradução em português. Mas aquilo que não foi
identificado f oi transcrito das falas, cuja ilegibilidade para um
ouvinte não-fr ancês, como é o nosso caso, nem sempre é clara – fato
que gera inexatas interpretações. Por isso consideramos tal
tr anscrição um guia para a nossa análise, e não um documento a ser
seguido.
Tempo voz
Texto Original
Tradução
0’00’’ narrdor
La Tentation de Saint
Antoine.
Prémière Partie,
Le Désert.
A Tentação de
Antão.
Primeira Parte,
O Deserto.
1’51’’ St. Ant
Et c’est la clarté de
l’aube,
E é a
aurora,
1’56’’ St. Ant
vient, offre de la lune,
Venha, oferenda da lua
2’10’’ St. Ant
J’ éprouve une fatigue,
comme si tous mes os
étaeint br isés. Pourquoi?
Me sinto cansado, como
se
tivesse
todos
os
ossos
quebrados.
Por
quê?
2’33’’ St. Ant
Et j’avais cru pouvoir
venir à Dieu.
Eu
acreditava
chegar a Deus.
Santo
claridade
da
poder
137
venir à Dieu.
chegar a Deus.
3’05’’ St. Ant
Quand j’étais un enfant, je
m’ amusais avec des
cailloux, à constr uire des
er mitages. Ma mère, pr ès
de moi, me regardait.
Quando eu era garoto,
me
divertia
com
as
pedrinhas,
construindo
er emitérios, minha mãe,
atrás
de
mim,
me
olhava.
3’28’’ St. Ant
La prière m’était
intolerable. J’ ai le coeur
plus sec qu’un rocher.
Autref ois, on débour dait
d’amour.
A
oração
me
era
intolerável.
Tenho
o
coração tão seco quanto
uma rocha. Antigamente,
tr ansbordando de amor.
3’48’’ St. Ant
Oh, charmé des or aisons,
felicité de l’ extase,
pr ésence du ciel, qu’est de
Vous devenu.
Oh, encanto das or ações,
felicidade
do
êxtase,
pr esença dos céus, que
de Vós virá.
6’11’’ St. Ant
Encore un jour! Un jour de
passé!
Autrefois pourtant, je
n’ étais pas si misérable!
Avant la fin de la nuit, je
commençais mes or aisons;
puis je descendais vers le
fleuve chercher de l’eau,
et je remontais par le
sentier rude avec l outre
sur mon épaule, em
chantant des hymnes.
Ensuite, je m’ amuse à
ranger tout dans ma
cabane.
Mais um dia! Mais um
dia que passou!
Outrora, todavia, eu não
era
[assim]
tão
miserável!
Antes
de
acabar
a
noite,
começava
minhas
or ações; depois, descia
na direção do rio a
buscar água e tornava a
subir pela ver eda rude
com o odre no ombro,
cantando os hinos. A
seguir ,
distraía-me
pondo tudo em ordem na
minha cabana.
8’14’’ narrdora
Il marche dans l’enceinte
des roches, lentement. Le
ciel est r ouge, la ter re
complètement noire. Dans
une éclaircie, tout à coup,
passent des oiseaux
formant un bataillon
triangulaire, pareil à un
morceau de métal, et dont
les bords seuls fr émissent.
Ele anda ao redor das
rochas, lentamente. O
céu é vermelho, a terra
completamente
negra.
Em um canto do espaço,
súbito,
passam
aves
formando um batalhão
tr iangular , semelhante a
um pedaço de metal, do
qual apenas as bordas
estremecem.
138
formant un bataillon
triangulaire, pareil à un
morceau de métal, et dont
les bords seuls fr émissent.
Antoine les regarde.
formando um batalhão
tr iangular , semelhante a
um pedaço de metal, do
qual apenas as bordas
estremecem.
Antão os obser va.
8’43’’ St. Ant
Tous me blâmaient lorsque
j’ ai quitté la maison. Ma
soeur de loin me faisant
des signes pour revenir;
ma mère s’af faissa
mourante; et l’autre
pleurait, Ammonaria, cet
enfant que je recontrais
chaque soir au bord de la
citerne. Elle a couru
auprès de moi. Le vieil
ascète qui m’emmenait lui
a cr ié des injures. Et je
n’ ai plus revu personne.
Todos me censuravam
quando deixei o meu lar.
Minha irmã de longe me
fazia sinais para voltar;
minha mãe pr ostou-se
agonizante; e a outra
chorava,
Ammonaria,
essa criança que eu
encontrava
todas
as
tardes à borda do poço.
Ela correu atrás de mim.
O velho asceta que me
conduzia,
atirou-lhe
injúrias. E nunca mais
vi ninguém.
9’32’’ St. Ant
Quelle solitude! Quel
ennui!
Que solidão! Que tédio!
9’42’’ St. Ant
C’ est une si belle
existence que de tordre au
feu des bâtons de palmier
pour faire des houlettes;
puis d’echanger tout cela
avec les Nomades contre
du pain qui vous br ise les
dents! Ah! misère de moi!
Assez! Assez!
É uma bela existência
torcer no fogo paus de
palmeira
para
fazer
cajados, depois tr ocar
tudo
isso
com
os
nômades por pão que
vos quebra os dentes!
Ah!
Pobre
de
mim!
Basta! Basta!
10’10’’ St. Ant
Quelle solitude! Quel
ennui!
Que solidão! Que tédio!
10’28’’ St. Ant
Misère de moi! Est que ça
ne...
Pobre de mim! Será que
isso não.. .
10’40’’ St. Ant
Assez! Assez!
Basta! Basta!
139
10’54’’ St. Ant
narrdora
Je n’en peux plus! Assez!
Assez!
Eu não
Basta!
posso
mais!
Il se tour ne vers le petit
chemin entre les r oches.
Volta- se em direção da
trilha entre as rochas.
11’09’ ’ St. Ant Oui! L a bas, tout au f ond,
une masse remue, comme
de gens que cherchent les
chemins. E lle est là! Ils se
trompent!
Sim! Lá embaixo, bem
no fundo, uma massa se
movimenta,como
pessoas que pr ocur am o
caminho. E stá lá! Eles
se enganar am!
11’22’ ’narrdora Et tout de suite il lui
entend chuchoter.
E em seguida ele a
ouviu
sussurrar:
Ah
Antoine!
11’23’’ St. Ant Ah! Antoine!
Ah! Antoine!
11’29’ ’narrdora Et, tout à coup, passent au
milieu de l’air, d’abord
une flaque d’eau, ensuite
une pr ostituée, le coin
d’ un temple... Ces images
ar rivent brusquement.
Elles défilent d’une façon
vertigineuse. D’autre fois,
elles s’ar rêtent e pâlissent
par degrés, et
immédiatement d’autres
arrivent.
E, de repente, passam no
ar, primeiro uma poça
de água, depois uma
pr ostituta, o ângulo de
um
templo...
E stas
imagens
chegam
br uscamente.
Elas
desfilam
de
maneira
vertiginosa.
Outras
vezes,
param
e
empalidecem
gradualmente,
e
imediatamente
outras
chegam.
11’53’’ St.Ant
Quelqu’un, Repondez?
Alguém? Responda?
12’03’’ St.Ant
Arrière! Arrière! Vous
ètes tous des mensonges!
Para trás! Par a tr ás!
Vocês
são
todos
mentira!
12’28’’ St.Ant
Ah! C’ etait une illusion!
Pas autre chose!
Ah! Era uma
Nada mais!
ilusão!
140
Cependant. .. j’avais cru
sentir l’approche.. .
Mais porquoi viendr ait- Il?
D’ ailleurs, est-ce que je
ne connais pas ses
ar tifices? J’ai repoussé le
monstr ueux anachorète qui
m’offrait, en riant, des
petits pains chauds, le
centaure qui tâchait de me
pr endr e sa cr oupe, - et cet
enfant noir apparu au
milieu des sables, qui était
très beau, et qui m’a dit
s’ appeler l’ esprit de
fornication.
Entretanto...
tinha
acreditado
sentir
a
aproximação... Mas por
que viria ele? Aliás, não
conhecerei
seus
artifícios? Eu repeli o
monstr uoso
anacoreta
que me oferecia, rindo,
pãezinhos
quentes,
o
centauro
que
tentava
carregar-me
na
sua
garupa, - e esta criança
negra aparecida no meio
das areias, tão bela, e
que me disse chamar-se
o espírito da fornicação
14’26’’ St.Ant
L’autre pleurait,
Ammonaria.
A
outra,
chorava.
14’48’’ St.Ant
Non, Ammonaria ne l’aura
pas quitté!
Não, Ammonaria não o
deixar á mais!
Ammonaria
141
Anexo 3 - faixas no disco em Anexo dos exemplos extraídos das obras estudadas:
Capítulo 2: Faixas 1 a 12, extratos de La Tentation de Saint Antoine – Le Désert,
de Michel Chion, e de Apocalypse de Jean, de Pierre Henry.
1. La Tentation de Saint Antoine – Le Désert (integral)
2. désert
3. tarântulas
4. désert a
5. désert b
6. désert c
7. bichos
8. apo_cavalos
9. valsa
10. animais
11. bichos_apo
12. loops
13. ilusion
Capítulo 3: Faixas 14 e 15 (Étude aux Chemins de Fer), 16 a 21 (Presque Rien),
22 a 25 (Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge), 26(Era uma vez no
Oeste).
14. Étude
15. Étude_exemplo
16. Presque Rien
17. caminhão
18. galinha-barco
19. cacareco_motor_grave
20. vozes_chamando
21. vozes déjà-vu
22. Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge
23. duf_peq
24. piano-pomba
25. turbulência
26. Oeste
Disco 2: f ilme 1 ( extrato de Alexander Nevsky) e filme 2 (extrato
de C’ era una volta il west).

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