Guia de direitos reais em Timor-Leste (Desembargador Rui Penha)
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Guia de direitos reais em Timor-Leste (Desembargador Rui Penha)
Rui Penha GUIA DE DIREITOS REAIS EM TIMORLESTE Sumários desenvolvidos das aulas ministradas ao III Cursode Magistrados e Defensores Públicos no CFJ 2008/2009 Tribunal de Recurso CFJ - Centro de Formação Jurídica 2012 Ficha Técnica: Título: Guia de Direitos Reais em Timor-Leste Autor: Rui Penha Edição: Tribunal de Recurso/Centro de Formação Jurídica Dili, Junho de 2012 Tiragem: 2 DIREITOS REAIS1 I – DEFINIÇÕES E CARACTERÍSTICAS 1. Definição Direito real é o poder que se exerce sobre uma coisa e que se traduz na possibilidade de exigir de todos os outros indivíduos o respeito do exercício desses poderes sobre a coisa.2 Ana Prata define o direito real como “um direito subjectivo que recai directamente sobre as coisas ou realidades a elas juridicamente assimiladas, conferindo ao seu titular poderes sobre elas e o direito de exigir de todos os outros uma atitude de respeito pela utilização que delas faça, de acordo com os poderes que o direito lhe confere”.3 No plano interno o direito real caracteriza-se pelo tipo de poderes que podem ser exercidos sobre a coisa. Por exemplo, direitos reais de gozo ou de garantia.4 No plano externo o direito real caracteriza-se pelo poder de exigir dos outros a obrigação passiva universal, o respeito pelo direito em concreto, nomeadamente, os direitos de propriedade, de usufruto, de servidão, de aforamento. Os direitos reais têm eficácia erga omnes. Ou 1 O presente texto segue as regras do acordo ortográfico aprovado para adesão pela Resolução do Parlamento Nacional nº 14/2009, de 6 de Maio, mantendo-se, no entanto, a redação constante dos textos reproduzidos. 2 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 15, a propósito da origem histórica da expressão refere que a mesma deriva da figura actio in rem que se dirigia contra uma coisa, por contraposição à actio in persona que se dirigia contra uma pessoa. 3 Prata, Dicionário Jurídico, 2005, pág. 439. 4 Nos direitos reais de gozo as coisas objecto do direito são afectadas a que os seus titulares retirem delas utilidades, será o caso do direito de propriedade. Nos direitos reais de garantia as coisas objeto do direito são afetadas a que os seus titulares possam obter o cumprimento de uma obrigação, pelo valor dessas coisas ou pelos seus rendimentos, com preferência sobre os demais credores dos titulares dessas coisas, como acontece com a hipoteca (Duarte, Curso de Direitos Reais, 2007, pág. 19). 3 seja, os direitos reais individuais são impostos a todos os indivíduos, que têm que os respeitar.5 Assim, Carvalho Fernandes conclui que é adequado defini-lo como “o poder jurídico absoluto, atribuído a uma pessoa determinada para a realização de interesses jurídico-privados, mediante o aproveitamento imediato de utilidades de uma coisa corpórea”.6 Rui Pinto sublinha a necessidade de definição do direito real através das suas características próprias, para concluir que “o direito real é uma situação jurídica activa através da qual se faz a afectação de coisas de modo inerente aos interesses de uma pessoa individualmente considerada”.7 Já Rui Pinto Duarte critica a própria definição de direito real, concluindo que não há uma definição que possa caracterizar todos os direitos reais, uma vez que a definição de direito real foi construída a partir do direito de propriedade, mas a mesma não se adequa a todos os outros direitos reais.8 5 Dispenso-me da análise das várias teorias sobre a natureza dos direitos reais (nomeadamente as teorias clássica ou realista e moderna ou personalista) e recomendo sobre o assunto a leitura da monografia de Diana Gomes Carvalhinho, Direitos Reais: Noções Gerais, in “Revista Jus Navigandi”, ano 10, nº 739, Teresina (Brasil), 14 Julho 2005 (igualmente acessível em www.juspodivm.com.br), na qual refere: “Existem, pelo menos, duas formas radicalmente opostas de conceber os direitos reais e de contrapô-los aos direitos pessoais: a teoria clássica ou realista e a teoria moderna ou personalista. Em síntese, para a teoria clássica ou realista, os direitos reais devem ser vistos como um poder direto e imediato sobre a coisa, enquanto os direitos pessoais traduzem uma relação entre pessoas, tendo por objeto uma prestação. Por outro lado, os defensores da teoria moderna ou personalista sustentam, basicamente, que o direito real não reflete relação entre uma pessoa e uma coisa, mas, sim, relação entre uma pessoa e todas as demais”. 6 Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 48. 7 Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, págs. 47-57. 8 Duarte, Curso de Direitos Reais, 2007, pág. 323. 4 2. Princípios característicos dos direitos reais São características fundamentais dos direitos reais: eficácia absoluta, inerência, sequela, preferência, tipicidade, transmissibilidade, elasticidade, publicidade, e consensualidade.9 2.1 Princípio da eficácia absoluta Como resulta da própria definição do direito de propriedade, a principal característica dos direitos reais é a sua eficácia absoluta.10 Quer isto dizer que os direitos reais são oponíveis erga omnes, atribuindo ao seu titular o poder de exercê-los em face de quem quer que seja e, em contrapartida, impondo a todas as pessoas, indistintamente consideradas, o dever de respeitar o seu exercício.11 A posição do titular estabelece-se com a coisa objeto do seu direito, sendo independente de quaisquer outras pessoas. O titular do direito pode exigir o seu respeito de todas e quaisquer outras pessoas. Ou seja, conforme acentua José de Oliveira Ascensão, “tem uma posição independente, um poder no seio da ordem jurídica”.12 Os direitos reais são absolutos não porque não sofram quaisquer restrições, mas porque obrigam toda a sociedade a um dever de abstenção, o dever de não perturbar o seu exercício por parte do sujeito ativo (o titular do direito). Sobre esta matéria estabelece o art. 572º do Código Civil Indonésio (CCI)13 que se presume que a propriedade está livre de 9 Não é obviamente uma enumeração completa ou sequer comummente aceite, a essencialidade das características dos direitos reais é apresentada de forma diversa por diversos autores. 10 Este não é contudo entendimento unânime, conforme Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1993, págs. 302 a 311. 11 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 44. Veja-se ainda Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 54. 12 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 613. 13 Forma como se referirá sempre o Código Civil Indonésio recebido como legislação nacional timorense nos termos das disposições conjugadas dos arts. 165º da Constituição da RDTL, 3º, nº 1, do Regulamento da Untaet nº 1/1999, e 1º da Lei nº 2/2002, este com a interpretação expressa pelo art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro. O regime jurídico indonésio iniciou a sua vigência no território nacional 5 qualquer reclamação. Um indivíduo que reclame algum direito sobre os bens de outro indivíduo será obrigado a provar o direito que invoca.14 Por sua vez, estabelece o art. 1227º do Código Civil de TimorLeste15 que, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. 2.2 Princípio da inerência A inerência é uma consequência da eficácia absoluta dos direitos reais, e traduz-se na aderência do direito real à coisa que constitui seu objeto, justificando, em última análise, a oponibilidade erga omnes. Ou seja, a coisa continua a ser objeto do mesmo direito real, ainda que se verifique a sua transmissão, independentemente do número que vezes que ocorra tal transmissão. Salienta José de Oliveira Ascensão, “O fenómeno é muito significativo no que diz respeito aos direitos reais menores, que como consequência natural da integração naquele país, iniciando-se a sua vigência de facto com a invasão, ou, pelo menos a constituição do primeiro do governo provisório de Timor-Leste em 17 de Dezembro de 1975, tendo sido formalizada a integração do território de Timor-Leste na Indonésia através da declaração do Presidente da República da Indonésia de 17 de Julho de 1976. Por acórdão do Tribunal de Recurso de 26-2-2013, processo nº 01/Cível/Apelação/2009/TR, relator Rui Penha, decidiu-se que O art. 4º das normas revocatórias que antecedem o articulado da Lei Agrária Indonésia nº 5/1960, revoga expressamente o Livro II do CCI, mas apenas na parte referente ao solo, água e recursos naturais, ou seja, apenas na parte respeitante ao domínio público do Estado. Quanto ao resto a revogação só se concretizou tacitamente, ou seja, na medida em que tenha havido regulamentação diversa da que existia anteriormente. 14 “Tiap-tiap hak milik harus dianggap bebas adanya. Barangsiapa membeberkan hak atas kebendaan milik orang lain, harus membuktikan hak itu”, da versão em inglês, “Article 572. Each property shall be presumed to be free of any claim. An individual who claims any right to another individual’s assets, shall be obliged to prove that right”. 15 Aprovado pela Lei nº 10/2011, de 14 de Setembro, com entrada em vigor a 12 de Março (art. 19º da Lei), a que se passará a referir apenas como Código Civil. Relativamente ao direito sobre bens imóveis, apenas tem aplicação o novo Código “após o reconhecimento ou atribuição dos primeiros títulos de direito da RDTL” (art. 3º da Lei). 6 subsistem íntegros, não obstante toda a disposição efectuada pelo titular do direito real maior”.16 Por exemplo, o titular do direito de superfície sobre um imóvel mantém o seu direito inalterado, mesmo que se verifiquem várias transmissões do direito de propriedade sobre o imóvel objeto do seu direito. Igualmente, o usufruto mantém-se ainda que o proprietário de raiz aliene o seu direito de propriedade, etc. 2.3 Princípio da sequela (Direito de sequela ou de seguimento) A sequela é uma prerrogativa, característica ou faculdade dos direitos reais, igualmente resultante do seu carácter absoluto. O direito segue a coisa, persegue-a, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação em que a coisa se encontre. Ou seja, ainda que outra pessoa se aproprie da coisa, o titular do direito real pode sempre exercer sobre a coisa os poderes correspondentes ao seu direito.17 No caso de alguém furtar um bem imóvel, o seu proprietário não deixa de poder exigir a sua devolução de quem o venha a adquirir e deter. A hipoteca mantém-se inalterada ainda que o devedor venda o imóvel dado de garantia. 16 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 50. A este propósito veja-se o art. 621º do CCI (“Setiap pemegang besit suatu barang tak bergerak, dapat minta kepada pengadilan negeri di daerah tempat barang itu terletak, untuk dinyatakan sebagai pemiliknya. Ketentuan-ketentuan perundang-undangan tentang hukum acara perdata mengatur cara mengajukan permintaan demikian”, na versão em inglês: “Any individual may have his property title to immovable assets, which he owns, acknowledged by the court of justice, within whose legal jurisdiction the assets are located”). Veja-se igualmente o art. 1234º, nº 1, do Código Civil: “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade”. 17 7 2.4 Princípio da preferência (Direito de preferência ou de prevalência) Traduz-se na circunstância de os direitos reais constituídos sobre uma coisa prevalecerem sobre os direitos de crédito incidentes sobre essa coisa e sobre os direitos reais posteriormente constituídos sobre a mesma coisa, que se revelem total ou parcialmente incompatíveis com o inicial.18 Por exemplo, um direito real de garantia, como seja uma hipoteca, permite ao seu titular obter o pagamento do crédito garantido por tal direito em primeiro lugar, em prejuízo de um credor que não tenha o seu crédito garantido por um direito semelhante. Igualmente a primeira hipoteca, ou seja registada em primeiro lugar,19 confere ao seu titular prevalência sobre o credor detentor de hipoteca registada posteriormente. Trata-se igualmente de característica resultante do carácter absoluto dos direitos reais. 2.5 Princípio da tipicidade Os direitos reais estão sujeitos ao princípio da tipicidade ou do numerus clausus. Ou seja, não podem existir outros direitos reais para além daqueles que estão tipificados na lei, nem podem ser criados pelos particulares direitos reais com conteúdo diferente dos que estão legalmente regulados. Dessa forma percebemos que um direito real é um direito tipificado normativamente, isto é, para que um direito se qualifique como real, antes de tudo ele tem que estar elencado na lei, delimitado legalmente. Assim, os tipos de direitos reais e respetivos conteúdos devem encontrar-se pré-determinados e descritos na lei. 18 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 62. Importa referir que no caso de hipotecas sobre imóveis o registo é constitutivo do direito – art. 621º do Código Civil: “A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes”. 19 8 O princípio da tipicidade está expressamente consagrado no artigo 1228º do Código Civil.20 Já o CCI,21 à semelhança da generalidade dos sistemas jurídicos da altura não consagra expressamente este princípio, sendo seguro, porém, que se regulam de forma expressa todos os direitos reais considerados admissíveis pelo ordenamento jurídico.22 Esta preocupação é ainda mais evidente na Lei Agrária de 1960,23 conforme se pode ver da redação dada ao artigo 16º, nº 1.24 2.6 Princípio da especialidade Os direitos reais devem ter por objeto coisas individualizadas, coisas determinadas. Acrescenta o artigo 1224º do Código Civil, que só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade regulado no Código.25 Por outro lado, o direito real que incide sobre uma coisa é diferente do direito real, ainda que porventura igual, que incida sobre outra coisa. O facto de o direito dever incidir sobre uma coisa determinada não impede que, por exemplo, possa incidir sobre uma universalidade.26 Acentuam Álvaro Moreira e Carlos Fraga, “Está visto que as coisas colectivas, revistam elas a fisionomia de coisas compostas ou de universalidade de facto, são compatíveis como objecto de direitos reais, 20 Artigo 1228º (Numerus clausus): 1. Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional. 21 Toda a restante legislação indonésia a que se faça referência neste texto é legislação recebida internamente nos termos das disposições legais referidas na nota 7. 22 Veja-se o art. 528º do CCI. 23 Lei nº 5 de 1960 (UUPA) (Undang Undang No. 5 Tahun 1960 Tentang: Peraturan Dasar Pokok-pokok Agraria). 24 “Hak-hak atas tanah sebagai yang dimaksud dalam pasal 4 ayat (1) ialah …” (Na versão em inglês: “The rights on land as meant in paragraph (1) of Article 4 are as follows …”). 25 No mesmo sentido o artigo 519º do CCI. 26 A definição das coisas compostas será efectuada infra a propósito da distinção das coisas. 9 com a ideia de que estes têm de ter como objecto uma coisa certa e determinada. Isto, porque a universalidade ou a coisa composta são – elas próprias – uma forma de determinação ou de individualização”.27 2.7 Princípio da transmissibilidade Como qualquer direito patrimonial o direito real é transmissível. Significa isto que a ligação entre o direito e o seu titular é cindível, pode ser quebrada por vontade do titular ou por outra causa. Esta característica traduz no fundo a alienabilidade e a hereditabilidade dos direitos reais.28 Característica que se encontra particularmente acentuada no CCI que inclui as normas relativas às sucessões por morte no seu Livro Dois,29 que tem por título Coisas, e que regula apenas a matéria respeitante aos direitos reais e a sucessões.30 2.8 Princípio da elasticidade No caso dos direitos reais onerados ou limitados (por exemplo por usufruto, servidão, hipoteca), a extinção do direito real menor faz expandir o direito real principal, reconstituindo-se a propriedade plena do direito. Conforme referem Álvaro Moreira e Carlos Fraga, “sempre que estamos perante um direito real limitado, concorrem dois direitos sobre o mesmo objecto: o direito de propriedade e o direito real limitado a certas utilidades da coisa”; há uma concorrência de direitos.31 Assim, se o direito real menor se extinguir, há uma imediata restauração da propriedade plena do direito de propriedade.32 27 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 100. Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, págs. 103 e 104. 29 Capítulos XII a XVIII, arts. 830º a 1130º. 30 A este propósito veja-se ainda o art. 20º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia (UUPA) (“Hak milik dapat beralih dan dialihkan kepada pihak lain”, na versão em inglês: “A Hak milik can change hands and be transferred to other parties”). 31 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, págs. 113 e 114. 32 Veja-se o art. 20º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia (UUPA) (“Hak milik adalah hak turun-menurun, terkuat dan terpenuh yang dapat dipunyai orang atas tanah”, na versão 28 10 2.9 Princípio da publicidade33 A constituição ou transferência de um direito real deve ser efetuada de forma pública, de modo a ser conhecida de todas as pessoas.34 Esta necessidade de publicidade implica a obrigação do uso de forma especial (a escritura pública) para a celebração dos contratos que impliquem a constituição ou disposição de direitos sobre imóveis, nomeadamente a sua alienação (art. 617º do CCI35 e art. 808º do Código Civil36).37 Relativamente ao registo dos atos de oneração ou disposição sobre bens imóveis o Código Civil não lhe atribui efeito constitutivo, pelo que os atos efetuados com observância do formalismo legal produzem imediatamente efeitos jurídicos.38 Ou seja, o adquirente passa em inglês: “A Hak milik (right of ownership) is the inheritable right, the strongest and fullest right on land which one can hold”. 33 Sobre a questão do princípio da publicidade nos direitos reais veja-se André Gonçalo Dias Pereira, A Característica da Inércia dos Direitos Reais: brevíssima Reflexão sobre o Princípio da Publicidade, 2008, págs. 13-30. 34 Embora a questão do registo das situações jurídicas e das transmissões dos bens se tenha colocado essencialmente relativamente aos bens imóveis, existem bens móveis, nomeadamente, os veículos automóveis, relativamente aos quais a questão da necessidade do registo se tem colocado. 35 “Semua akta penjualan, penghibahan, pembagian, pembebanan atau pemindahtanganan barang tak bergerak harus dibuat dalam bentuk otentik, atas ancaman kebatalan”, na versão em inglês: “All deeds, by virtue of which immovable assets are disposed of, bequeathed, distributed, encumbered, or transferred, shall be rendered invalid unless drawn up in an authentic form”. 36 “O contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública”. 37 Nos termos do art. 15º do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, Regularização da Titularidade de Bens Imóveis em Casos Não Disputados, “são revogadas todas as normas de direito indonésio actualmente em vigor em Timor-Leste que regulem a forma de transmissão de direitos reais, quando aplicáveis aos bens imóveis já sujeitos ao procedimento de registo, previsto neste diploma”. 38 Importa contudo ter presente que, normalmente, a precedência do registo pode ter consequências jurídicas importantes, devido ao princípio da protecção de terceiros de boa fé, no caso de nova alienação de imóvel por quem já havia alienado o mesmo anteriormente a outrem. 11 a ser proprietário do imóvel, independentemente da entrega do imóvel ou do registo.39 O CCI impõe um regime de efeito constitutivo do registo ao determinar que a transferência do direito efetuada por escritura pública só se efetiva com o registo da mesma.40 Mais exige que a prova da venda só possa ser efetuada mediante certidão do registo,41 assim se reforçando o princípio da publicidade do ato.42 A mesma preocupação de publicidade resulta ainda do disposto no art. 19º da Lei Agrária Indonésia.43 Porém, por se tratar de uma norma programática dirigida ao próprio Governo da República da Indonésia, não se afigura que a mesma tenha aplicação na RDTL. O art. 15º do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, Regularização da Titularidade de Bens Imóveis em Casos Não Disputados, veio revogar as normas de direito indonésio atualmente em vigor em Timor-Leste que regulem a forma de transmissão de direitos 39 Princípio da consensualidade (a constituição e transmissão dos direitos reais resultam do contrato, não sendo exigida a tradição da coisa). 40 Art. 616º “Penyerahan atau penunjukan barang tak bergerak dilakukan dengan pengumuman akta yang bersangkutan dengan cara seperti yang ditentukan dalam pasal 620” (“The delivery or order of immovable assets shall be effected by publication of the deed, in the manner stipulated in article 620”). 41 “Tiap petikan dalam bentuk biasa dari rol atau daftar kantor lelang, guna membuktikan penjualan barang yang diselenggarakan dengan perantaraan kantor tersebut menurut peraturan yang telah ada atau yang akan diadakan, dianggap sebagai akta otentik” (“Evidence of the sale of the assets shall be in the form of excerpts from the roll or registers of the auction department in the customary format effected with the assistance of the aforementioned department”) (art. 617º); “Dengan mengindahkan ketentuan-ketentuan yang tercantum dalam tiga pasal yang lalu, pengumuman termaksud di atas dilakukan dengan memindahkan salinan otentik yang lengkap dari akta otentik atau surat keputusan hakim ke kantor penyimpan hipotek di lingkungan tempat barang tak bergerak yang harus diserahkan itu berada, dan dengan mendaftarkan salinan ini dalam daftar yang telah ditentukan” (“the public notification shall take place:- by submitting to the office of the registrar of the mortgages within whose area the immovable assets to be delivered or ordered are located, an authentic and complete copy of the authentic deed or of the judgment, and by the recording of the copy in the register designated thereto”) (art. 620º). 42 O mesmo se aplica aos casos previstos nos arts. 617º a 619º ainda do CCI. 43 “Untuk menjamin kepastian hukum oleh Pemerintah diadakan pendaftaran tanah diseluruh wilayah”, na versão em inglês: “To guarantee legal certainty, the Government is to implement land registration throughout the whole territory …”. 12 reais, quando aplicáveis aos bens imóveis já sujeitos ao procedimento de registo, previsto neste diploma. Ou seja, uma vez efetuado o registo nos termos do diploma em questão, não importa mais averiguar se o titular inscrito adquiriu o direito mediante escritura pública ou por outra forma, valendo apenas o registo efetuado nos termos de tal diploma. Tem assim tal registo efeito constitutivo, independentemente de qualquer título que lhe esteja subjacente.44 A obrigação da escritura pública, embora não do registo, encontra-se ainda consagrada no Regime Jurídico do Notariado (Decreto-Lei nº 3/2004, de 4 de Fevereiro), nos termos do disposto no seu art. 37º, nº 2, al. a). Igualmente a proposta de Lei de Regime Especial Para a Definição da Titularidade dos Bens Imóveis (mais conhecida como Projecto de Nova Lei das Terras),45 ainda em apreciação pelo Parlamento Nacional, manifesta iguais preocupações de publicidade (além do reconhecimento ou atribuição de direitos).46 3. O registo O registo predial é forma de expressão máxima do princípio da publicidade supra referido. O registo permite conhecer a situação exata dos bens imóveis, nomeadamente a titularidade do direito de propriedade e encargos que possam onerar o direito, para que o potencial adquirente do bem tenha conhecimento exato de todos.47 No dizer de Oliveira Ascensão, “teve-se sobretudo em vista evitar a possível existência de ónus ocultos, que entravariam a circulação dos bens”.48 44 Sobre esta questão veja-se análise do diploma em causa infra. Termos em se passará a designar tal projeto. 46 “A presente lei estabelece o regime especial para a definição da titularidade imobiliária por meio do reconhecimento e da atribuição de primeiros direitos de propriedade de bens imóveis da República Democrática de Timor-Leste” (art. 1º, nº 1). 47 Veja-se o preâmbulo do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, Regularização da Titularidade de Bens Imóveis em Casos Não Disputados. 48 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 333. 45 13 Daí que o registo sempre tenha sido entendido como necessário para que o seu beneficiário possa opor o direito a terceiros. 49 Ou seja, o fim do registo é manifestar o estado jurídico da propriedade.50 O registo faz-se mediante a descrição do prédio, para sua identificação, e a inscrição de todos os atos que o possam afetar (como as escrituras de compra e venda do mesmo, doações, constituição de usufruto, de servidões, hipotecas, etc.).51 Relativamente aos atos praticados no período da colonização portuguesa ou ocupação indonésia a questão não se coloca, sendo obrigatória a formalidade da escritura pública.52 Quanto ao registo, nos termos do art. 949º do Código Civil Português de 1867, entre outros, estavam sujeitos a registo “as transmissões de propriedade immovel, por título gratuito ou oneroso” (§ 4º).53 O registo, tal como se veio a manter posteriormente (enquanto vigorou a legislação portuguesa), visava apenas dar publicidade ao ato e não tinha natureza constitutiva. Assim, se António vendesse, por 49 Ou seja, ainda que o registo não seja constitutivo, o registo faz com quem contrata com base no mesmo e regista o seu direito seja protegido relativamente a situações jurídicas, nomeadamente anteriores transmissões do imóvel ou constituição de ónus sobre o mesmo, que não se encontrem devidamente registados. 50 Ferreira, Codigo Civil Portuguez Anotado, vol. II, 1870, pág. 442. 51 De acordo com o estabelecido no art. 2º, als. g) e h), do Decreto-lei nº 12/2008, de 30 de Abril (Estatuto Orgânico do Ministério da Justiça), são atribuições do Ministério da Justiça: organizar e prestar serviços de administração e cadastro de bens imóveis em todo o território nacional, promover as medidas de implementação necessárias à gestão do património imobiliário do Estado e estabelecer e garantir os serviços de registo e de notariado. 52 Art. 875º do Código Civil Português de 1966, e o art. 617º do CCI. No âmbito do Código Civil Português de 1867, a compra e venda e a doação de bens imóveis teria que ser realizada mediante escritura pública, ou, pelo menos, mediante escrito particular, no caso de imóveis com valor inferior a cinquenta mil réis (para a compra e venda o art. 1590º e para as doações o art. 1459). 53 O Código Civil Português de 1867 (conhecido por Código Civil de Seabra) vigorava em todo o território de Portugal, incluindo as chamadas províncias ultramarinas, onde se incluía Timor-Leste, desde 18 de Novembro de 1869, conforme o art. 1º do Decreto de 18 de Novembro de 1869, que determinou a sua aplicação imediata a todo o território ultramarino, independentemente da sua publicação nos Boletins Oficiais dos diversos territórios (art. 2º). 14 escritura pública de compra e venda, um prédio a Bernardo, ainda que este não registasse tal aquisição do direito, podia sempre impor o mesmo contrato ao António, uma vez que este se encontrava vinculado pelo contrato celebrado, não podendo opor-se António invocando o facto de no registo estar ainda inscrito como titular do direito de propriedade. Porém, se António vendesse de novo o mesmo prédio a Carlos, procedendo este ao registo da sua aquisição, sem que o Bernardo o fizesse antes, então o Carlos poderia opor ao Bernardo o registo para ficar ele com o prédio. É que, quando adquiriu o prédio, por imposição do princípio da publicidade, tudo se passou como se António fosse o dono do mesmo. Resta a Bernardo exigir uma indemnização a António por ter alienado o prédio que lhe havia vendido a ele. Ou seja, relativamente a terceiros os títulos sujeitos a registo só produzem efeitos desde que sejam efetivamente registados (art. 951º do Código Civil de Seabra).54 Este regime manteve-se inalterado após a entrada em vigor do Código Civil Português de 196655 (que veio substituir o Código de Seabra), conforme resulta dos arts. 2º, 7º, nº 1, e 9º, nº 1, do Código de Registo Predial Português de 1967, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.611, de 28-3-1967.56 Os terceiros de boa fé, com o título de aquisição do seu direito devidamente registado, beneficiavam ainda de proteção no caso de declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico respeitante ao bem imóvel por si adquirido e registado, celebrado antes da sua aquisição, nos termos do art. 291º, nº 1, do Código Civil Português de 54 Ferreira, Codigo Civil Portuguez Anotado, vol. II, 870, pág. 388. O art. 1549º do mesmo Código Civil de Seabra determinava igualmente, a propósito da compra e venda, que em relação a terceiro, a venda, sendo de bens immobiliarios, só produzirá effeito, desde que for registada. 55 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, e tornado aplicável nas então províncias ultramarinas (designadamente em Timor-Leste), a partir de 1 de Janeiro de 1968, conforme o art. 2º, nº 1, da Portaria do Ministério do Ultramar nº 22.869, de 4-9-1967. 56 Alterado pelo Decreto-Lei nº 49.053, de 12-6-1969. 15 1966.57 Por exemplo, se Bernardo viesse invocar a nulidade de contrato, ou anulação de contrato de compra e venda que celebrara com António, se este já tivesse vendido a Carlos, que desconhecia o alegado vício, tendo adquirido o bem com base no que constava do registo, a declaração de nulidade ou a anulação do primeiro negócio não prejudicaria o seu direito, sem prejuízo da possibilidade de ainda se fazer valer o vício do negócio mediante o registo da ação no prazo de três anos (nº 2 do referido artigo).58 Ou seja, a proteção do terceiro só se verifica se a aquisição por este ocorrer decorridos três anos sobre a transmissão anterior, ou se a ação a pedir a declaração de nulidade ou anulação do negócio inicial não for registada em tal prazo. Nos termos do art. 8º do aludido Código de Registo Predial Português de 1967, o registo definitivo constituía presunção de que o direito definitivamente registado pertencia à pessoa em nome da qual estava registado. O CCI vai ainda mais longe, impondo o efeito constitutivo do registo e exigindo certidão do registo da venda ou outro tipo de transmissão ou constituição de ónus ou encargos sobre imóveis, para prova dos mesmos (art. 617º).59 Conforme disposto do art. 23º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia, o direito de propriedade (hak milik), toda e qualquer transferência 57 Artigo 291º (Inoponibilidade da nulidade e da anulação): 1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável. 58 O nº 2 do art. 291º do Código Civil Português de 1966 tem a seguinte redacção: Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 59 Nos termos do art. 578º, nº 1, do CPC, “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior”. 16 afetando tal direito, a anulação (ou declaração de nulidade) do mesmo a constituição de ónus sobre o direito tem que ser registado.60 A Lei Agrária Indonésia, sem referir a presunção, vem dizer que o registo serve como forte meio (ou ‘instrument’) de prova (art. 23º, nº 2).61 Ou seja, a legislação indonésia igualmente estabelece uma verdadeira presunção, uma vez que confere à certidão do registo um valor probatório superior aos restantes meios de prova, o que implica que quem pretenda por em causa o facto registado terá o ónus de demonstrar a sua inexistência (ou diversa configuração), como se de uma verdadeira inversão do ónus de prova se tratasse. O problema que se tem colocado em Timor-Leste consiste em determinar a solução a dar aos casos das transações jurídicas tendo por objeto bens imóveis durante o período em que não havia notários nacionais e tendo em consideração a inexistência de registo predial (situação que ainda não se encontra resolvida). Uma das soluções mais frequente foi a celebração de contratos escritos com a chancela de um ou mais advogados, que assim procuravam dar alguma certeza jurídica ao ato de transmissão do direito sobre bens imóveis. Mas também se verificaram muitas transmissões de imóveis por mero escrito particular ou por acordo verbal. Com respeito por entendimento diverso, afigura-se não se poder atribuir a tais atos a eficácia jurídica pretendida, ou seja, a virtualidade de operarem a transmissão do direito sobre o bem imóvel, ou a constituição de qualquer ónus sobre o mesmo. De facto, não se afigura que a situação excecional própria da construção, ou reconstrução, das infraestruturas jurídicas nacionais possa permitir a omissão de 60 “Hak milik, demikian pula setiap peralihan, hapusnya dan pembebanannya dengan hak-hak lain harus didaftarkan menurut ketentuan-ketentuan yang dimaksud dalam pasal 19” (na versão em inglês: “A hak milik, every transfer affecting a hak milik, the nullification of a hak milik, and the encumbering of a hak milik with other rights must be registered in accordance with the provisions referred to in Article 19”). 61 “Pendaftaran termaksud dalam ayat (1) merupakan alat pembuktian yang kuat mengenai hapusnya hak milik serta sahnya peralihan dan pembebanan hak tersebut” (na versão em inglês: “The registration referred to in paragraph (1) shall serve as a strong instrument of evidence concerning the nullification of a hak milik and concerning the validity of the transfers and encumbrances affecting the said right”). 17 formalidades consideradas ordenamentos jurídicos. essenciais pela generalidade dos Mais, não se pode ignorar a reafirmação da obrigação da celebração mediante escritura pública dos atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície ou de servidão sobre coisas imóveis, consagrada no art. 37º, nº 2, al. a), do Regime Jurídico do Notariado (Decreto-Lei nº 3/2004, de 4 de Fevereiro).62 Ou seja, o próprio legislador nacional entendeu não atribuir relevância jurídica à aludida situação. Como meio de obstar a esta situação, o já referido Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, Regularização da Titularidade de Bens Imóveis em Casos Não Disputados, veio proceder à inscrição registral com efeito constitutivo dos imóveis em nome de quem demonstre ser titular de um direito sobre o mesmo, independentemente da validade formal de qualquer título que lhe esteja subjacente.63 Para além destes efeitos do registo nos termos do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, não deixam tais contratos de produzir efeitos jurídicos, seja como meio de transmissão da posse sobre os imóveis,64 nos termos do art. 543º do CCI65, seja como facto gerador de obrigações entre as partes contratantes. 4. Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho Conforme já referido, o Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, Regularização da Titularidade de Bens Imóveis em Casos Não Disputados, pretendeu estabelecer o regime para o reconhecimento do direito de propriedade sobre bens imóveis não disputados, para efeitos de registo. 62 Este diploma entrou em vigor no dia 7 de Março de 2004 (art. 79º). Diploma que se analisará infra, no capítulo 4. 64 Situação que se analisará infra aquando do estudo da posse. No Código Civil veja-se o art. 1178º (Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor). 65 Veja-se o acórdão do Tribunal de Recurso (TR) de 8 de Junho de 2010, processo nº 05/Agravo/Cível/2009/TR, relator Rui Penha. 63 18 Trata-se de vir finalmente regular uma situação de aquisição formalmente inválida do direito de propriedade, na sequência das circunstâncias supra referidas, bem como de proceder à inscrição dos imóveis transacionáveis entre particulares e, sempre que possível, fixar o primeiro titular do direito.66 A restrição dos efeitos do diploma ao registo é essencial, uma vez que resulta do teor do Decreto-Lei em causa que a inscrição registral nele prevista, não prejudica os interesses de terceiros, não intervenientes no processo, que assim podem fazer valer um direito real próprio, incompatível com o registo, conforme expresso no art. 8º, nº 3, do diploma em causa. Isto é, aliás, consequência do disposto no art. 4º, nº 2, que estabelece uma mera presunção do direito a favor do titular inscrito, como é norma do direito registral. Mais claramente, o proprietário do imóvel que não tenha intervindo no processo de registo previsto no diploma pode sempre fazer valer o seu direito de propriedade contra a pessoa inscrita como titular do direito no registo lavrado nos termos da aludida lei. Contudo, parecendo contrariar o referido, o art. 15º do DecretoLei nº 27/2011, de 6 de Julho, determina: “São revogadas todas as normas de direito indonésio actualmente em vigor em Timor-Leste que regulem a forma de transmissão de direitos reais, quando aplicáveis aos bens imóveis já sujeitos ao procedimento de registo, previsto neste diploma”. Ou seja, o legislador parece ter pretendido desta forma resolver o problema resultante de transmissões formalmente inválidas do direito, regularizando a situação através da atribuição de efeitos constitutivos ao registo lavrado nos termos do diploma, independentemente da validade formal da aquisição do direito pelo titular inscrito em resultado do processo em causa. Afigura-se, no entanto que, conforme referido supra, o particular cujo direito de propriedade, ou outro, venha a ser lesado com o registo em causa poderá sempre67 invocar a nulidade da transmissão, nomeadamente em tribunal. Efetivamente, importa lembrar que art. 37º, nº 2, al. a), do Regime Jurídico do Notariado obriga à celebração de escritura pública para a transmissão ou oneração de direito reais sobre 66 67 Veja-se o nº 2 do art. 1º, bem como o art. 3º. A todo o tempo, como se lê no art. 8º, nº 3. 19 imóveis, norma que não se encontra abrangida pelo referido art. 15º do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho. Em conclusão, não obstante o disposto no aludido art. 15º do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, a titularidade do direito inscrito tem fins meramente de registo, estabelecendo mera presunção da titularidade do direito, a qual poderá sempre ser ilidida em tribunal por qualquer particular cujo direito possa estar em oposição com o teor do registo.68 5. Função social (questão da nacionalidade) Nos termos do art. 54º, nº 2, da Constituição da RDTL, a propriedade privada não deve ser usada em prejuízo da sua função social. A este propósito refere-se no preâmbulo da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (Regime Jurídico dos Bens Imóveis) “a Constituição da República Democrática de Timor-Leste estabelece, no seu artigo 54°, os princípios gerais relativos à propriedade privada, reconhecendo inequivocamente esse direito e referindo que ela deve ter uma função social e que só cidadãos nacionais têm direito à propriedade privada da terra”. Usando a expressão de Oliveira Ascensão, “os direitos reais são outorgados para a realização do sujeito, que os deve exercer em benefício social”.69 Expressões da função social do direito são todas as limitações legais que são impostas ao exercício absoluto do direito de propriedade (a propriedade ilimitada). Daí que o Código Civil reflita a limitação do direito através da figura do abuso de direito70 (art. 325º).71 68 Art. 518º, nº 2, do CPC. Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 191. “A função pessoal que o direito real prossegue deve realizar também uma função social” (Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 171). 70 Posição criticada por José de Oliveira Ascensão, que defende uma definição legislativa expressa sobre a matéria (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 193 e 194). 71 “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. 69 20 Embora no CCI não se encontre igualmente norma expressando claramente a função social dos direitos reais, esta encontra-se fortemente vincada na Lei Agrária Indonésia de 1960, que lhe atribui carácter verdadeiramente sagrado.72 Assim, encontra-se expressamente consagrado no art. 6º da Lei a função social dos direitos sobre a terra.73 Manifestação desta função social do direito de propriedade encontra-se no nº 4 do mencionado art. 54º da Constituição, ao preceituar que só os cidadãos nacionais têm direito à propriedade privada da terra.74 A questão da exigência da nacionalidade para a titularidade do direito de propriedade plena75 vigorava já no território nacional, por aplicação dos arts. 9º, nº 1, e 21º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia, devidamente adaptada à RDTL.76 Como consequência, encontram-se os Tribunais impedidos de julgar ações judiciais no sentido de ser reconhecido o direito de propriedade a um cidadão estrangeiro. 72 Art. 1º, nº 2 (“Seluruh bumi, air dan ruang angkasa, termasuk kekayaan alam yang terkandung didalamnya dalam wilayah Republik Indonesia, sebagai karunia Tuhan Yang Maha Esa adalah bumi, air dan ruang angkasa bangsa Indonesia dan merupakan kekayaan nasional”, ou, na versão em inglês: “All the earth, water, and airspace, including the natural resources contained therein, which exist within the territory of the Republic of Indonesia as gifts from the Only One God, are the Indonesian nation’s earth, water, and airspace and constitute the nation’s wealth”). 73 “Semua hak atas tanah mempunyai fungsi social” (“All land rights have a social function”). 74 Veja-se o art. 4º, nº 1, do Projecto de Nova Lei das Terras. 75 Os expatriados podem apenas ser titulares do direito de uso, conforme Elucidation of Act No. 5 of 1960 Re Basic Provisions Concerning The Fundamentals of Agrarian Affairs, ponto II (5) (Orang-orang asing dapat mempunyai tanah dengan hak pakai yang luasnya terbatas) (“Expatriates can only have a hak pakai (right of use) to land of limited dimensions”). 76 Assim, a questão coloca-se hoje relativamente aos cidadãos indonésios (os quais podiam ser proprietários de bens imóveis no território de Timor-Leste antes da independência nacional e deixaram agora de ter tal possibilidade). Com relevância sobre este assunto veja-se ainda o Regulamento da UNATET nº 2000/27, sobre a proibição temporária de transacções de terras em Timor-Leste por cidadãos indonésios não habitualmente residentes em Timor-Leste e por empresas indonésias. 21 O Tribunal de Recurso tem entendido que não se trata de saber se quem invoca o direito de propriedade possui ou não documento de identificação emitido pelas autoridades de Timor-Leste, o que será necessário exclusivamente para a nacionalidade adquirida, mas apenas se o pretenso proprietário preenche os requisitos legais para poder invocar a nacionalidade originária, conforme disposto nos arts. 3º, nº 2 e 3, da Constituição, e no art. 8º, nº 1 e 2, da Lei da Nacionalidade (Lei nº 9/2002).77 Como salientado nos mesmos acórdãos, a questão da nacionalidade de quem invoca o direito de propriedade é considerada condição para a procedência da pretensão, e não um pressuposto processual.78 No acórdão de 2-2-2010, o Tribunal de Recurso concluiu ser possível a titularidade do direito de propriedade sobre um imóvel a cidadão estrangeiro se casado com um nacional timorense, desde que tal imóvel esteja abrangido pela comunhão de bens resultante do casamento.79 No acórdão de 16-6-2009,80 o Tribunal de Recurso decidiu que “o art. 54º, nº 4, da CRDTL (…) dispõe sobre a propriedade privada da terra e não quanto à posse ou propriedade do prédio nela incorporado”, o que permite a conclusão que a aludida proibição não tem aplicação aos 77 Acórdãos do TR de 10-3-2010, processo nº 23/2001, e processo nº 12/2009, ambos relatados por José Luís da Goia. 78 Tratando-se de condição para a procedência da pretensão, e não mero facto impeditivo do direito, o respectivo ónus de prova impende sobre quem invoca o direito e não sobre a parte contrária (art. 510º, nº 1, do CPC). 79 Escreveu-se em tal acórdão (processo nº 07/2009, relator José Luís da Goia) “embora o autor não possa ele mesmo ser titular do direito de propriedade sobre o terreno dos autos, nada obsta a que se considere o direito adquirido pela sua mulher através do casamento com o autor. É certo que o autor beneficia indirectamente de tal direito da cidadã nacional sua mulher, por força do mesmo regime. Porém, o direito passa a pertencer a esta, pelo que nunca o autor poderá beneficiar do direito de propriedade, por exemplo, em caso de divórcio”. Contrariamente ao que se escreveu, por manifesto lapso, em tal acórdão, nos termos do art. 35º da Lei Indonésia nº 1/74, o regime supletivo de bens no casamento é o regime de comunhão de adquiridos, pelo que, salvo convenção antenupcial que estabeleça outro regime, só pode haver comunhão (e a doutrina exposta no acórdão só é válida) para os casos em que os bens são adquiridos durante o casamento. 80 Processo nº 06/2003, relator José Luís da Goia. 22 casos de prédios urbanos. Com todo o respeito discordo de tal posição, embora possa parecer ser esse o entendimento que resulta ainda da Lei Agrária Indonésia. Como se verá infra (V), a construção ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência constitui parte integrante do imóvel.81 Sendo assim, quer a construção, quer o solo onde a mesma é implantada, perdem a sua individualidade e passa a haver coisa única. Daí que se conclua que o prédio ainda está abrangido pela proibição da norma constitucional, uma vez que ele inclui o terreno onde foi implantado. É certo que alguma doutrina entende ser possível a existência de um direito de propriedade sobre uma construção, distinto do direito de propriedade sobre o terreno, nas situações de direito de superfície.82 Porém, como se verá, os cidadãos estrangeiros não podiam sequer ser titulares do direito de superfície, sobre prédios urbanos, ou seja edifícios,83 pelo que, por maioria da razão, não podiam ser titulares do direito de propriedade sobre o mesmo tipo de bens. Por outro lado, embora com a entrada em vigor do Código Civil de Timor-Leste se tenha por tacitamente revogada a legislação indonésia referida84 e, consequentemente, não se verifique agora a proibição legal de os cidadãos estrangeiros serem titulares do direito real de superfície, ainda estamos a falar de um direito distinto do direito de propriedade.85 Relativamente às pessoas coletivas, nomeadamente sociedades comerciais, resulta do art. 21º, nº 2, da Lei Agrária, que a possibilidade de aquisição do direito de propriedade, ainda que para sociedades constituídas exclusivamente por pessoas singulares nacionais, está 81 Vejam-se os arts. 195º, nº 3, do Código Civil e 500º do CCI. Veja-se ainda o art. 1º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março, Regime Jurídico dos Bens Imóveis (I Parte: Titularidade de Bens Imóveis). 82 Este assunto sera abordado adiante a propósito da análise do direito de superfície. 83 Art. 36º, nº 1, da Lei Agrária de 1960 (UUPA). 84 Nomeadamente a Lei Agrária. 85 Como se verá a propósito da análise do direito de superfície. 23 dependente de regulamentação governamental, de determinação do governo ou de ato administrativo86 (art. 22º, nº 2).87 O Projecto da Nova Lei das Terras, resolvendo a questão, consagra expressamente a possibilidade do direito de propriedade a pessoas coletivas constituídas exclusivamente por cidadãos nacionais (art. 7º, nº 1), prevendo igualmente o direito de superfície para as demais pessoas coletivas, nomeadamente constituídas por estrangeiros ou com sede no estrangeiro (art. 7º, nº 2). Com a revogação da lei indonésia que regulava esta matéria, não se vê qualquer tipo de impedimento a que as pessoas 86 Conforme Elucidation of Act No. 5 of 1960 Re Basic Provisions Concerning The Fundamentals of Agrarian Affairs, ponto II (5) (Demikian juga pada dasarnya badanbadan hukum tidak dapat mempunyai hak milik (pasal 21 ayat 2). Adapun pertimbangan untuk (pada dasarnya) melarang badan-badan hukum mempunyai hak milik atas tanah, ialah karena badan-badan hukum tidak perlu mempunyai hak milik tetapi cukup hak-hak lainnya, asal saja ada jaminan-jaminan yang cukup bagi keperluan-keperluannya yang khusus (hak guna-usaha, hak gunabangunan, hak pakai menurut pasal 28, 35 dan 41) (“corporate bodies basically cannot have a right of ownership [Article 21(2)] on the consideration that that corporate bodies do not need to have a right of ownership but another right will do for them as long as it is equipped with an adequate guarantee for the fulfillment of their specific requirements (e.g. hak guna-usaha, hak guna-bangunan, or hak pakai according to Articles 28, 35, and 41)”). 87 Contra parece pronunciar-se o Relatório Sobre os Resultados de Pesquisa, Recomendações Políticas para a Lei Sobre os Direitos de Terra e Restituição de Título, embora entenda ser desejável clarificação legislativa, nos termos do qual “o artigo 54, parágrafo 4 do Constituição não excluiria pessoas jurídicas ou sociedades comerciais de Timor-Leste. Este ponto de vista é compartilhado pelos oficiais seniores do governo e membros do parlamento que foram consultados pelo LLP, assim como os participantes na mesa redonda do dia 30 de Junho de 2004 sobre direitos de terras. Praticamente todos os grupos de trabalho na mesa redonda concordaram que as entidades legais de Timor-Leste devem poder ser titulares de propriedade perfeita. As seguintes sugestões foram feitas nesta consideração: As sociedades comerciais Timorenses e outras pessoas jurídicas devem ter direito a possuir terra. A Lei deve esclarecer a definição de ‘nacionais’ e ‘cidadãos’. A nacionalidade de Timor-Leste numa sociedade comercial deve ser determinada por um capital mínimo (de 50-60%) empreendido por pessoas de Timor-Leste. Isto permitiria a participação de investidores estrangeiros em sociedades comerciais de Timor-Leste. Se uma sociedade comercial declara falência, toda a terra que for possuída por ela deve reverter para o estado”. Afigura-se, porém, como vem sendo comum, que este entendimento ignorava o sistema jurídico existente naquele momento em Timor-Leste, como seja a aludida Lei Agrária (que era legislação nacional timorense), e que regulava de forma que se afigura clara esta matéria. 24 coletivas nacionais possam ser titulares do direito de propriedade sobre imóveis. Importa ainda considerar que, nos termos do art. 1º, al a), do Regulamento nº 2000/27 da UNTAET, qualquer contrato ou acordo celebrado por um cidadão da Indonésia que habitualmente não resida em Timor Leste para vender qualquer interesse ou direito relativo a terra no território de Timor Leste, não produz qualquer efeito. Conforme decidido no acórdão do Tribunal de Recurso de 103-2010: “A ratio legis do Regulamento em questão afigura-se evidente. Tratava-se então de impedir que nacionais indonésios, sem qualquer ligação a Timor Leste, pudessem beneficiar da situação de ocupação do território que se verificava antes da independência. A referência a cidadãos da Indonésia não habitualmente residentes em Timor Leste tem precisamente esse significado. Assim, a venda de imóveis por cidadãos da Indonésia que habitualmente residissem em Timor Leste já não se encontra abrangida pela cominação prevista no referido art. 1º do Regulamento em causa”.88 A Lei Agrária Indonésia (UUPA), como já se viu, ia ainda mais longe, ao impedir a aquisição (ou titularidade) do direito de superfície, quer sobre terreno agrícola, quer sobre prédio urbano a pessoas singulares que não fossem nacionais, ou mesmo a pessoas coletivas (nomeadamente sociedades comerciais) que não estivessem reconhecidas segundo a legislação nacional, ou domiciliadas em território nacional.89 88 Processo nº 12/2009, relator José Luís da Goia. Decidiu-se ainda no mesmo acórdão que “tratando-se de facto impeditivo do direito invocado pelo autor, impende sobre o réu o ónus de prova da verificação dos requisitos constantes do referido Regulamento, nos termos do art. 510º, nº 2, do CPC”. 89 Arts. 30º, nº 1, (Yang dapat mempunyai hak guna-usaha ialah. a. warga-negara Indonesia; b. badan hukum yang didirikan menurut hukum Indonesia dan berkedudukan di Indonesia) e 36º, nº 1 (Yang dapat mempunyai hak guna-bangunan ialah a. warga-negara Indonesia; b. badan hukum yang didirikan menurut hukum Indonesia dan berkedudukan di Indonesia) (na versão em inglês: “Those eligible for a 25 A questão que se colocava consistia em saber se esta condição também teria aplicação na RDTL, face à redação menos restritiva da própria Constituição. Ou seja, se a legislação ordinária indonésia, recebida no sistema jurídico nacional, podia estabelecer restrições à titularidade de direitos ainda mais amplas que aquela que resulta do texto constitucional. Afigura-se que a resposta terá que ser positiva. Efetivamente, a Constituição estabelece expressamente que “Todo o indivíduo tem direito a propriedade privada, podendo transmiti-la em vida e por morte, nos termos da lei”.90 Sendo assim, a Lei Fundamental acolhe as restrições constantes da Lei ordinária relativas à limitação da titularidade do direito de propriedade, nomeadamente da lei que já existia anteriormente e que a Constituição acolheu,91 como a aludida Lei Agrária Indonésia (UUPA). Ora, se o titular do direito de propriedade só podia dele dispor nos termos da lei, então a disposição dos direitos reais menores sobre os imóveis, como seja o direito de superfície, também não podiam ser constituídos contra a disposição legal supra referida, 92 pelo que os cidadãos estrangeiros e as pessoas coletivas (nomeadamente sociedades comerciais) que não estivessem reconhecidas segundo a legislação nacional, ou domiciliadas em território nacional, não podiam sequer ser titulares daquele direito.93 hak guna … are as follows: a. Indonesian citizens, and b. bodies corporate incorporated under Indonesian law and domiciled in Indonesia”). 90 Art. 54º, nº 1. 91 Art. 165º. 92 O que pode ter sérias repercussões ao nível do investimento estrangeiro, tão necessário no estado actual de construção do novo país da RDTL. Efetivamente fica vedado o uso do mecanismo legal mais adequado para a hipótese de alguém construir nomeadamente infraestruturas turísticas ou de outra natureza, uma vez que os restantes mecanismos jurídicos não asseguram de forma tão eficaz a possibilidade de uso das mesmas pelo período mínimo necessário à recuperação do investimento feito. 93 Porém, o art. 55º, nº 2, da Lei Agrária (UUPA), prevê a possibilidade de, excepcionalmente, o Estado poder conceder o direito de superfície sobre bens do seu domínio a empresas estrangeiras, que não preencham os requisitos dos aludidos arts. 30º, nº 1, e 36º, nº 1, desde que tal seja considerado necessário no ato que o autoriza (Hak guna-usaha dan hak guna-bangunan hanya terbuka kemungkinannya untuk diberikan kepada badan-badan hukum yang untuk sebagian atau seluruhnya bermodal asing, jika hal itu diperlukan oleh Undang-undang yang mengatur pembangunan 26 Com a entrada em vigor do Código Civil de Timor-Leste a legislação de origem indonésia que impõe as aludidas restrições terá que se considerar revogada, subsistindo apenas a limitação constitucional. Com esta questão está ainda relacionada a do direito de propriedade, uso e posse útil das terras, que, nos termos do art. 141º da Constituição serão regulados por lei. 6. As coisas Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas.94 Consideram-se fora do comércio jurídico todas as coisas que não podem ser objeto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual (art. 193º, nº 2, do Código Civil. Veja-se os arts. 519º a 526º do CCI). As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis, consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes ou futuras (art. 194º do Código Civil).95 São coisas imóveis os prédios rústicos e urbanos, as águas, as árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo, os direitos inerentes aos imóveis e as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos (art. 195º, nº 1, do Código Civil).96 nasional semesta berencana) (na versão em inglês: “The possibility for the granting of a hak guna-usaha and hak guna-bangunan to corporate bodies whose capital is partly or wholly foreign is open only in the case where it is deemed necessary to grant such rights to such corporate bodies in the light of an act which regulates pembangunan nasional semesta berencana (well-planned total, national development)”). 94 Art. 193º, nº 1, do Código Civil. Para o CCI são coisas os bens ou direitos que podem ser objecto de propriedade (art. 499º). Veja-se igualmente os arts. 527º e 528º do CCI. 95 Para o CCI as coisas são tangíveis ou não tangíveis (art. 503º) e móveis ou imóveis (art. 504º). Os bens móveis podem ainda dividir-se em consumíveis e não consumíveis, definindo-se os consumíveis como aqueles que desaparecem devido ao uso (art. 505º). 96 Veja-se os arts. 500º e 506º a 508º do CCI. Particularmente significativa é a descrição constante dos arts. 506º e 507º do CCI, da qual resulta evidente, por um lado, 27 Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica.97 São partes componentes dos prédios rústicos as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as construções destinadas às alfaias agrícolas. O prédio rústico abrange também o espaço aéreo e o subsolo correspondentes. Nos termos do art 1266º, nº 1, do Código Civil, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico. Igual é a redação do art. 571º do CCI e, de forma ainda mais impressiva, o art. 4º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia.98 Entende-se por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (art. 195º, nº 2, do Código Civil). Edifício incorporado é aquele que se encontra unido ou ligado ao solo, fixado nele com carácter de permanência por alicerces, colunas, estacas ou qualquer outro meio.99 Uma casa desmontável não é prédio urbano. Integram o prédio urbano os pátios ou os quintais dos edifícios.100 o princípio da ligação ao solo como distintivo da classificação do bem como imóvel, por outro lado, o princípio da universalidade de certas coisas, como sejam as fábricas, que, por serem imóveis (devido ao facto de estarem instaladas em construções permanentemente fixadas no solo) transmitem tal qualidade de bem imóvel aos bens móveis que as equipam. Veja-se ainda o art. 1º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março, Regime Jurídico dos Bens Imóveis (I Parte: Titularidade de Bens Imóveis). 97 Art. 195º, nº 2, do Código Civil. O CCI não estabelece a distinção entre prédios rústicos e prédios urbanos. 98 “Hak-hak atas tanah yang dimaksud dalam ayat (1) pasal ini member wewenang untuk mempergunakan tanah yang bersangkutan, demikian pula tubuh bumi dan air serta ruang yang ada diatasnya, sekedar diperlukan untuk kepentingan yang langsung berhubungan dengan penggunaan tanah itu dalam batas-batas menurut Undang-undang ini dan peraturan-peraturan hukum lain yang lebih tinggi” (na versão em inglês: “The land rights referred to in paragraph (1) of this article confers authority to use the land in question as well as the mass of the earth and the water existing under its surface and the space above it to a point which is essentially required to allow for the fulfillment of the interests that are directly related to the use of the land in question, such a point being within the limits imposed by this Act and by other legislation of higher levels”. 99 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 23. 100 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, pág. 131. 28 É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência.101 São partes integrantes dos prédios rústicos os muros de vedação ou os engenhos para tirar água. São partes integrantes dos prédios urbanos as instalações elétricas ou os para-raios e os elevadores. Para o Código Civil (art. 196º, nº 1) são móveis todas as restantes coisas, ou seja, a definição de coisa móvel acha-se por exclusão de partes. Serão móveis as coisas que não sejam caracterizadas pela lei como imóveis. Por exemplo, a energia elétrica é coisa móvel e, como tal, a sua subtração fraudulenta integra o crime de furto. Nos termos do CCI, são coisas móveis aquelas que são movíveis ou podem ser movidas (art. 509º CCI).102 A base da distinção entre coisas móveis e imóveis é a circunstância de poderem ou não ser transportadas de um para outro lugar sem se deteriorarem. Importa aqui fazer uma breve referência às benfeitorias, incluídas no mesmo subtítulo II do Código Civil, que trata das coisas e que aqui temos estado a analisar. Para o Código Civil consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (art. 207º, nº 1). Assim, constituem benfeitorias não só as obras necessárias à conservação da coisa, como pintar, substituir telhado danificado, substituir janelas quebradas, mas também todas as obras que melhorem o prédio, como a construção de casas de banho em casas onde não existiam, ou a construção de uma piscina. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (art. 207º, nº 2, do Código Civil). São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa (art. 207º, nº 3, do Código Civil). Por exemplo: a substituição de um telhado que tenha as telhas partidas 101 Art. 195º, nº 3, do Código Civil e 500º do CCI. Nos arts. 509º a 518º do CCI encontramos depois a descrição de várias coisas concretas que o Código considera como móveis. Esta descrição não deve, porém, ser considerada taxativa, podendo obviamente existir inúmeras outras coisas móveis, para além das descritas nas referidas disposições legais. 102 29 (se o telhado não for substituído, não só não se pode usar devidamente a casa, como a entrada da água das chuvas vai estragar todo o imóvel); a substituição de janelas com a madeira apodrecida ou vidros partidos, a reconstrução de uma parede que, pela ação do tempo ameaça ruir. São benfeitorias úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor (art. 207º, nº 3, do Código Civil). Por exemplo: a construção de casa de banho numa casa que não tinha (trata-se de um melhoramento que beneficia o uso da casa e, consequentemente, aumenta o seu valor); a colocação de um sistema central de ar condicionado; etc. Já se podem colocar dúvidas relativamente à construção de uma piscina (porém, se da mesma resultar um aumento considerável do valor do imóvel deve considerar-se benfeitoria útil). São benfeitorias voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para o recreio do benfeitoriante (art. 207º, nº 3, do Código Civil). Será o caso de alguém que gosta de ter peixes e constrói um lago para os mesmos no logradouro da casa, ou a colocação de estátuas dispendiosas num jardim, etc. (desde que não aumentem o valor do imóvel). O CCI não contém uma definição legal de benfeitorias, nem as caracteriza, sendo certo, porém, que se refere às mesmas em várias disposições relativas aos direitos reais sobre imóveis. Por exemplo, o direito do possuidor a indemnização por benfeitorias necessárias realizadas no imóvel que possuía, quer se encontre de boa-fé ou de máfé, no caso de ter de o entregar ao seu proprietário (arts. 575º e 579º do CCI).103 Também, pode surpreender-se claramente a distinção entre as reparações necessárias à manutenção do imóvel,104 ou seja, benfeitorias 103 “Selanjutnya la berhak menuntut kembali segala biaya yang telah harus dikeluarkan guna menyelamatkan dan demi kepentingan barang tersebut”, na versão em inglês: “expenditures necessary for the maintenance and benefit of the assets”. O CCI apenas exclui o direito a indemnização por benfeitorias necessárias ao possuidor que tenha adquirido a posse por meios violentos (art. 580º). 104 “…guna menyerahkan kembali dan memperbaiki”, na versão em inglês: “expenses for the maintenance of the assets”. 30 necessárias (art. 578º), ou reparações no interesse do imóvel105 (art. 578º) assim como reparações para utilidade e melhoramento da aparência do imóvel106 (art. 581º do CCI).107 Por outro lado o CCI estabelece ainda uma distinção entre reparações para o fim de manutenção e as reparações maiores no art. 793º, estas últimas exemplificadas no art. 794º, ambos do CCI.108 105 “…segala biaya dan pengeluaran yang telah dikeluarkannya guna memelihara kebendaan”, na versão em inglês: “expenses for the interest of the assets”. 106 “…segala pengeluaran yang bermanfaat guna kebendaan itu atan guna menghiasinya”, na versão em inglês: “expenses in respect of utility and improvement in appearance”. 107 Importa considerar, contudo, que as reparações para melhorar a utilidade do imóvel podem integrar o conceito de benfeitorias úteis do Código Civil. 108 “Yang harus dianggap sebagai perbaikan besar adalah: perbaikan akan kerusakan bemt pada tembok dan langit-langit; perbaikan balok-balok dan atap seluruhnya; seluruh perbaikan tanggul dan tanggul kecil bangunan pengairan, demikian pula tembok penyangga dan tembok batas; Segala perbaikan tainnya harus dianggap sebagai perbaikan biasa”, na versão em inglês: “Major repairs include the following: repairs to big walls and arched roofs; repairs to beams and entire roofs; the total repair of dikes, wharf's, plastered waterworks, including supporting and boundary walls. All other repairs shall be regarded as regular maintenance”. 31 32 II – POSSE 1. Definição Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1171º do Código Civil),109 ou seja, a posse é interpretada como a detenção ou uso de bens que um indivíduo, por si ou através de outra pessoa, tem em seu poder, como se tivesse o correspondente direito (art. 529º do CCI).110 Para Ricardo Gomes da Silva, “A posse consiste numa relação de pessoa e coisa, fundada na vontade do possuidor, criando mera relação de fato, é a exteriorização do direito de propriedade. A propriedade é a relação entre a pessoa e a coisa, que assenta na vontade objetiva da lei, implicando um poder jurídico e criando uma relação de direito”.111 109 Trata-se de redacção identica há do art. 1251º do Código Civil Português de 1966, que vigorou em Timor Leste até à implementação do regime jurídico indonésio. No mesmo sentido o art. 6º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real). Veja-se igualmente o art 9º, nº 1, do Projecto da Nova Lei das Terras (A posse, para efeitos desta lei, é o uso ou a possibilidade efectiva de uso do bem imóvel para fins de habitação, cultivo, negócio, construção, ou para qualquer outra actividade que requeira a utilização física do bem imóvel). 110 “Yang dimaksudkan kedudukan Berkuasa ialah, kedudukan seseorang suatu kebendaan, baik dengan diri sendiri, maupun dengan perantaraan orang lain, dan yang mempertahankan atau menikmatinya selaku orang yang memiliki kebendaan itu”, na versão em inglês: “Possession is interpreted as the holding or enjoyment of assets, which an individual, either in person or through another person, has within his power, as if he has actual title thereto”. Já o Código Civil de Seabra continha uma concepção mais abrangente, incluindo na sua definição aqueles que se passaram a considerar-se meros detentores, conforme art. 474º (“diz-se posse a retenção ou fruição de qualquer cousa ou direito”). Porém, logo acrescenta no seu § 1º que “os actos facultativos ou de mera tolerância não constituem posse”. Também o CCI parece reflectir a possibilidade de definição da mera detenção como posse (posse imediata), no seu art. 1959º. 111 Silva, Direito das Coisas – Posse. 33 A posse pode referir-se ao direito de propriedade (o possuidor age como se fosse o dono do prédio), ou relativamente a qualquer outro direito real de gozo (aqui o possuidor atua como se fosse titular do respetivo direito, como por exemplo como titular de um direito de servidão, de superfície, de usufruto, etc.).112 A situação comum, como é do conhecimento geral, é o exercício de posse correspondente ao direito de propriedade.113 No entanto, a posse de um estrangeiro sobre um bem imóvel, atenta a limitação resultante da nacionalidade supra analisada não poderá ser considerada como referente ao direito de propriedade, nem o podia ser em relação ao direito de superfície até à entrada em vigor do novo Código Civil.114 Estão excluídos de posse os direitos reais de garantia (por exemplo a hipoteca) e os direitos reais de aquisição (por exemplo o direito de preferência) por se tratar de direitos não duradouros. O direito real de garantia, ou os direitos reais de aquisição, exercem-se de uma só vez, não podendo existir nestes casos o exercício de poderes de facto sobre a coisa. Igualmente são insuscetíveis de posse as chamadas coisas incorpóreas. Efetivamente, a posse pressupõe a prática de atos (determinados), o que impede que possa incidir sobre bens que não sejam objetivamente palpáveis, como os direitos de autor ou os direitos industriais.115 112 É no seu domínio que se verifica a posse, quer no direito de propriedade, quer também, por exemplo, com a servidão, ou o usufruto. 113 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 178. “A lei protege todo aquele que age sobre a coisa como se fosse o proprietário, explorando-a, dando-lhe o destino para que economicamente foi feita. Em geral, quem assim atua é o proprietário, de modo que, protegendo o possuidor, quase sempre o legislador está protegendo o proprietário” (Silva, Direito das Coisas – Posse). 114 Título I, IV. Com a revogação da Lei Agrária Indonésia, através da revogação tácita resultante da entrada em vigor do Código Civil de TL, nada obsta a que se reconheça a possibilidade da titularidade do direito de superfície a um estrangeiro. 115 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 65. 34 Já o estabelecimento comercial, enquanto universalidade de facto, pode ser objeto de posse.116 A posse pode coincidir com o direito respetivo (posse causal). Por exemplo, o proprietário de uma casa que nela reside é simultaneamente possuidor e proprietário. Igualmente no caso de o proprietário ter a casa arrendada e receber as rendas correspondentes, é proprietário e possuidor, uma vez que o arrendatário é mero detentor, o proprietário exerce a posse por intermédio deste. Porém, a posse pode não coincidir com o direito respetivo (posse formal). Por exemplo, um lavrador que começa a cultivar o terreno vizinho, fazendo-o de forma reiterada, sem qualquer autorização do respetivo proprietário, afirmando a sua intenção de se comportar como dono do terreno, colhendo os frutos. Neste caso o direito de propriedade continua a ser do vizinho (dono do terreno), mas a posse passou a ser exercida pelo aludido lavrador. Da mesma forma, alguém que tenha furtado ou achado um objeto que pertença a outra pessoa passa a exercer a posse sobre tal objeto, que continua a pertencer a outro. Ainda no caso de alguém adquirir por contrato um prédio de uma pessoa que não é seu proprietário e passa a ocupar o mesmo, em consequência de tal contrato, passa a exercer a posse, mas o prédio continua a pertencer a outra pessoa. Os bens de domínio público também não podem ser objeto de posse, uma vez que se encontram excluídos do comércio jurídico (art. 193º, nº 2, do Código Civil.117 Vejam-se os arts. 537º e 520º a 525º do CCI). 116 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 64-65. Sobre o conceito de estabelecimento comercial veja-se o acórdão do Tribunal de Recurso de 26-1-2011, processo nº 05/Cível/2010/TR, relator Rui Penha. 117 Contra, para as situações em que “um sujeito exerce uma actuação correspondente a um direito que englobe poderes de facto sobre uma coisa e a lei não exclua essa consequência”, Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 70-71. 35 2. Elementos da posse 2.1 Considerações gerais A posse é caracterizada por dois elementos, o corpus ou domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efetivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício, e o animus, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.118 Elemento material – corpus – que se traduz nos atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa (art. 529º do CCI).119 Conforme salienta Oliveira Ascensão, “na origem de toda a situação jurídica posse há sempre uma actuação de facto, que é inclusivamente uma actuação material. A tutela jurídica é sempre subsequente à verificação de uma dada realidade de facto”. Contudo, não se exige contacto material com a coisa, podendo tal atuação de facto ser efetuada por outra pessoa, em nome do possuidor, ou até nem existir, verificando-se apenas a sua possibilidade, conforme visto supra.120 Elemento psicológico – animus – que se traduz na intenção de o exercente se comportar como titular do direito real correspondente aos atos que pratica (art. 538º do CCI).121 118 Art. 1173º do Código Civil. Seguiu-se a teoria subjectiva de Savigny (A posse é o poder de dispor fisicamente da coisa, com ânimo de considerá-la sua e defendê-la contra a intervenção de outrem. Encontram-se, assim, na posse dois elementos: um elemento material, o corpus, que é representado pelo poder físico sobre a coisa; e, um elemento intelectual, o animus, ou seja, o propósito de ter a coisa como sua, isto é, o animus rem sibi habendi, e os dois elementos são indispensáveis para que se caracterize a posse, pois se faltar o corpus, inexiste relação de fato entre a pessoa e a coisa; e, se faltar o animus, não existe posse, mas mera detenção) em detrimento da teoria objetiva de Ihering (Considera que a posse é a condição do exercício da propriedade. Critica veementemente Savigny, para ele a distinção entre corpus e animus é irrelevante, pois a noção de animus já se encontra na de corpus, sendo a maneira como o proprietário age em face da coisa de que é possuidor) – Silva, Direito das Coisas – Posse. 120 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 80 e 83. 121 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 84 e 85. Veja-se o art. 12º do Projecto da Nova Lei das Terras. 119 36 O facto de a lei exigir o corpus e o animus para efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos.122 A prova do animus resulta, no entanto, de uma presunção, isto é, o exercício do primeiro faz presumir a existência do segundo.123 A relação possessória é relação material permanente e duradoura e daí que os factos que a integram tenham que ser exercidos de forma a poder concluir-se que aquele que os pratica pretende exercer sobre a coisa um poder permanente.124 Porém, a posse mantém-se enquanto haja a possibilidade de continuar a atuação correspondente ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não implica necessariamente que ela se traduza em atos materiais (art. 1179º, nº 1, do Código Civil e art. 542º do CCI). Nesta perspetiva, há corpus enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder, querendo, renovar a atuação material sobre ela. 2.2 Posse pessoal ou por intermédio de outrem A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem (art. 1172º, nº 1, do Código Civil e arts. 529º e 540º do CCI).125 Em caso de dúvida presume-se que a posse é daquele que exerce o poder de facto (art. 1172º, nº 2, do Código Civil e art. 534º do CCI). 122 Art. 510º, nº 1, do CPC. Art. 1179º, nº 2, do Código Civil. Veja-se Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 191. 124 Esta presunção da existência do animus só pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse – são actos facultativos ou são actos de mera tolerância (Rodrigues, A Posse, 1996, págs. 192-195). 125 Ainda no mesmo sentido o art. 6º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real, podendo a posse ser exercida pelo titular do direito ou por intermédio de outrem) e o art. 9º, nº 2, do Projecto da Nova Lei das Terras (A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem). 123 37 Posse em nome de outrem é aquela que sendo exercida por uma pessoa é juridicamente imputável a outra.126 A presunção do art. 1172º, nº 2, do Código Civil só funciona em caso de dúvida e não quando se trate de uma situação definida, que exclui a titularidade do direito invocado. Já o art. 534º do CCI contém uma verdadeira presunção que terá de ser afastada por prova do contrário (art. 518º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil [CPC]).127 A posse mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao direito ou a possibilidade de a continuar (art. 1177º, nº 1, do Código Civil e art. 1957º do CCI). Enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito, de tal modo que este possa renovar a atuação material sobre ela, querendo, há corpus.128 Nesta perspetiva, há corpus enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder, querendo, renovar a atuação material sobre ela. Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou (art. 1177º, nº 2, do Código Civil e art. 535º do CCI). Ou seja, no caso de um possuidor consentir o uso da coisa por outra pessoa, ainda se entende que é o primeiro o possuidor da coisa. Para além de se presumir que a posse continua em nome de quem a começou, ela mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar. Para que a posse se conserve não é necessária a continuidade do seu exercício, basta que, uma vez principiada a atuação correspondente ao exercício do direito haja a possibilidade de a continuar. A relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não implica necessariamente que ela se traduza em atos materiais. 2.3 Sucessão e acessão na posse Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores 126 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 557. Veja-se ainda o disposto no art. 1174º do Código Civil e os arts. 529º e 540º do CCI. O Código de Processo Civil, que se passará a designar por CPC, foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 1/2006, de 21 de Fevereiro, tendo entrado em vigor no dia seguinte (art. 5º). 128 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 89. 127 38 desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (art. 1176º do Código Civil e art. 541º do CCI). O Código Civil, não enquadra a sucessão da posse nos meios de aquisição de posse (art. 1183º). Estamos perante uma demonstração do princípio de que a posse não depende da apreensão material da coisa. Conforme José de Oliveira Ascensão, “Os herdeiros têm posse independentemente do conhecimento da morte do de cujus, ou do facto designativo, ou até da existência do bem. Quer dizer que aqui, mesmo sem corpus nem animus, a lei atribui aos herdeiros a protecção possessória”.129 A posse do sucessor forma um todo com a do de cujus, havendo só alteração subjetiva.130 Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor (art. 1177º, nº 1, do Código Civil e arts. 543º e 1958º do CCI). Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do adquirente, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito (art. 1177º, nº 2, do Código Civil). Assim, por exemplo, no caso de acessão, se a posse do antecessor for de má fé, o adquirente só poderá invocar a acessão da posse, ou seja, a posse desde o seu início por parte daquele, com as mesmas características de má fé. Se o novo possuidor passou a usufruir o bem de boa fé, então poderá invocar tal característica da posse (posse de boa fé) mas apenas a partir do momento em ele mesmo adquiriu a posse. A acessão é possível apenas na aquisição derivada e é facultativa, isto é, o adquirente pode invocar apenas a sua posse, a do seu antecessor ou as duas conjuntas. Só é admissível em relação a posses consecutivas.131 A acessão de posses pressupõe a existência de um vínculo jurídico por via do qual a posse haja sido regularmente transmitida a quem a invoca atualmente. A separação que se verifica, quer no CCI, quer no Código 129 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 78. Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 103. 131 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 103. 130 39 Civil,132 entre a sucessão por morte e a acessão por transmissão da posse leva a concluir que o sucessor por morte do possuidor não pode invocar a diferente característica da sua posse. Assim, enquanto o adquirente da posse por transmissão do possuidor pode invocar tanto a posse do transmitente como apenas a sua, essa faculdade está vedada ao sucessor na posse. Por exemplo, se alguém adquirir por transmissão entre vivos a posse, pode invocar a posse do transmitente (nomeadamente da pessoa que lhe vendeu o imóvel), designadamente para contagem do prazo de usucapião (ou prescrição aquisitiva). Mas, como se viu, se invocar a posse do transmitente a sua posse terá as mesmas características que tinha na pessoa do transmitente. Assim, se o transmitente era possuidor de má fé, ao invocar a posse deste o adquirente passa a ser também possuidor de má fé. Ora, se o adquirente obteve o imóvel (ou o bem em causa) de boa fé, no convencimento que a mesma efetivamente pertencia ao transmitente, assim ignorando que lesava o direito de outrem, pode então invocar a boa fé da sua posse, a qual apenas se considerará como iniciada quando ele adquiriu o bem e não desde o início da posse pelo transmitente.133 Ao distinguir a sucessão por morte da acessão na posse por transmissão entre vivos, considerando que na primeira o sucessor passa a ocupar o lugar do de cujus mantendo a posse exatamente as mesmas características, o legislador terá querido retirar esta possibilidade ao sucessor. Ou seja, se a posse do de cujus era de má fé, esta característica mantém-se após a transmissão, não podendo o sucessor invocar a sua ignorância de violação do direito de outrem (a boa fé) quando sucedeu ao de cujus.134 Por outro lado, se a posse do de cujus era de boa fé, a característica da boa fé da posse mantém-se ainda que o herdeiro tenha 132 O que também ocorria no âmbito dos Códigos Portugueses de 1867 e de 1966 (respetivamente arts. 482º, § 2º, e 483º do primeiro e arts. 1255º e 1256º do segundo). 133 O adquirente pode ter todo o interesse em invocar apenas a sua posse porque a lei trata de forma menos favorável o possuidor de má fé. No âmbito do CCI, como se verá, o possuidor de má fé nem sequer pode adquirir o bem por usucapião (arts. 549º e 1963º). 134 Aliás, como se viu, a sucessão opera automaticamente, não precisando o sucessor sequer de invocar a posse do de cujus que se mantém na mesma. 40 conhecimento que a mesma viola o direito de outrem, não obstante o disposto no art. 1190º, nº 1, do Código Civil135 (deixa de poder beneficiar da proteção do possuidor de boa fé relativamente aos frutos da coisa objeto da posse). 2.4 Posse precária São havidos como meros detentores ou possuidores precários: (a) os que exercem o poder de facto sobre a coisa, mas sem intenção de agir como beneficiários do direito; (b) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; (c) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem (art. 1173º do Código Civil e art. 1959º do CCI. Veja-se ainda o art. 556º do CCI).136 A detenção engloba as situações em que, embora haja exercício de facto, não se constitui a relação jurídica de posse.137 Há detenção nos casos em que o exercício é desacompanhado da intenção de agir como beneficiário do direito, a posse em nome de outrem, e quando alguém exerce indevidamente poderes sobre coisa do domínio público.138 Na simples detenção ou posse precária, o sujeito exerce os poderes correspondentes ao direito (corpus) mas não os exerce como se fora titular dele (animus) e, por isso, este estado de coisas, por mais tempo que dure, não pode conduzir à aquisição do direito, de que o 135 Contra Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, Coimbra Editora, Coimbra, 1970, pág. 539. 136 A doutrina brasileira distingue a posse em direta e indireta. “Diz-se indireta a posse quando o seu titular, afastando de si por sua própria vontade a detenção da coisa, continua a exercê-la imediatamente após haver transferido a outrem a posse direta. Assim, a lei reconhecendo o possuidor direto e o possuidor indireto, dá a ambos a possibilidade de recorrer aos interditos (ações) para proteger sua posição ante terceiros, além de conceder-lhes tais remédios possessórios um contra o outro, se necessário for” (Silva, Direito das Coisas – Posse). Também o CCI, no seu art. 1959º, faz referência a pessoas que “possuem em nome de outra pessoa”, porém, não se pode retirar daqui que o CCI aceite a distinção supra referida, uma vez que exclui expressamente os detentores precários dos meios de defesa da posse (art. 556º). Veja-se ainda os arts. 9º, nº 3, e 10º, nº 1, do Projecto da Nova Lei das Terras. 137 Veja-se o acórdão do Tribunal de Recurso de 13-7-2010, processo nº 07/CÍVEL/2007/TR, relator Rui Penha. 138 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 89 e 90. 41 interessado não se apresenta como beneficiário.139 O instituto jurídico da posse não se confunde com a ocupação material da coisa. A situação jurídica de posse é, naturalmente, diversa da de mera detenção e a distinção tem essencialmente a ver com o animus envolvente. Trata-se de situações em que uma pessoa exerce um poder de facto sobre uma coisa sem a intenção de exercer o direito real correspondente. Noutra perspetiva, o caso de uma pessoa que exerce poderes de facto sobre uma coisa no interesse de outrem, com base em negócio jurídico ou na lei, não podendo adquirir a posse verdadeira e própria (ou seja em nome próprio) sem inversão do título da posse.140 Já os atos de mera tolerância são atos praticados com o consentimento, expresso ou tácito, do titular do direito real mas sem que este pretenda atribuir um direito ao beneficiário. Com a sua tolerância o titular do direito apenas quer significar que não fará oposição, que não reagirá contra os atos incompatíveis ou contrastantes do seu direito. Mas não quer limitar este: o seu direito conserva toda a licitude de onde deriva que o autor da tolerância se reserva a faculdade de, em qualquer momento, pôr fim à atividade tolerada.141 Por exemplo, o locatário e o promitente-comprador são meros detentores. Nestes casos, quem é possuidor é o senhorio ou o promitente-vendedor. A entrega da coisa ao arrendatário ou ao promitente-comprador resulta do contrato celebrado, através do qual não se transfere qualquer direito, nem a aparência do mesmo.142 Contudo, como já se referiu, presume-se que a posse é daquele 139 Telles, revista O Direito, 1989 (Janeiro-Março), pág. 650. Instituto que se analisará infra. 141 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 70. 142 Veja-se, por exemplo, a própria definição de arrendamento (arts. 953º e 954º do Código Civil). Sendo elemento essencial a cedência pelo senhorio do gozo temporário de um imóvel, tal implica a obrigação do inquilino da sua restituição, findo o contrato. Assim, a detenção e fruição do imóvel é feita em nome do senhorio, que pode ser mero possuidor e não proprietário. A detenção e uso do imóvel pelo inquilino é meramente precária e resulta do próprio contrato de arrendamento, não da intenção de usar o mesmo como se fosse seu dono. A menos que o arrendatário proceda à inversão do título de posse, nos termos a analisar infra. Sobre este ponto a disposição expressa do art. 9º, nº 3, do Projecto da Nova Lei das Terras. 140 42 que exerce o poder de facto (art. 1172º, nº 2, do Código Civil e art. 534º do CCI). Havendo corpus há, em princípio, posse,143 exceto se a causa da situação a desvalorizar para mera detenção.144 3. Caracteres da posse A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art. 1178º do Código Civil.145 Art. 541º do CCI: a posse pode ser de boa fé ou de má fé). 3.1 Posse titulada e posse não titulada Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de aquisição, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (art. 1179º, nº 1, do Código Civil e art. 1964º do CCI). Ou seja, o negócio jurídico é em princípio adequado para que se proceda à transferência do direito, embora careça de validade substancial (por exemplo, por o vendedor não ser o dono do prédio). Os vícios formais, como a falta de escritura pública quando a mesma é exigida, conduzem à falta de título, contrariamente ao que acontece com os vícios de natureza substantiva, nomeadamente a falta do direito de quem declarou transmitir o mesmo, ou os vícios substanciais do negócio.146 O nº 1 do art. 1179º do Código Civil esclarece que nem a falta do direito do transmitente, nem a falta de validade substancial do negócio 143 Art. 1172º, nº 2, do Código Civil e art. 534º do CCI. Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 93. 145 O Projecto da Nova Lei das Terras acrescenta ainda a definição de posse duradoura (“Para efeitos deste diploma, posse duradoura é a que transcorre ininterruptamente por pelo menos vinte anos”). Porém, como já se referiu, o conceito de posse pressupõe o exercício, ou possibilidade de exercício, do poder de facto sobre o imóvel, de forma ininterrupta, ou seja, sem o ínterim de uma posse diferente, pelo que a aludida definição se apresenta redundante. Trata-se, contudo, de classificação consagrada igualmente no Código Civil Português de 1867, art. 522º (“Posse continua é a que não tem sido interrompida”). 146 Art. 1964º do CCI. 144 43 jurídico excluem o título. A contrario, temos de admitir que a falta de validade formal impede que se fale de título.147 Isto é o que resulta expressamente do disposto no art. 1964º do CCI. A posse titulada relativa ao direito de propriedade, ou qualquer outro direito enunciado no 617º do CCI, só pode ser provada mediante a apresentação de certidão de escritura pública da qual resulte a mesma, uma vez que só por esta forma o direito se poderia adquirir. 148 Se a posse só é titulada se for adquirida mediante título formalmente válido (a escritura pública), quem não apresentar certidão da escritura pública não pode invocar a posse titulada. Ou seja, a posse relativa a um direito de propriedade resultante da aquisição por mero escrito particular é posse não titulada. Ainda que a escritura pública que está na origem da aquisição da posse, possa ser anulada por incapacidade, erro, dolo, ou coação, a posse não deixa de ser titulada.149 No caso de a coisa pertencer a pessoa diversa do vendedor (venda de coisa alheia) o regime é diverso da anulação, mas a posse continua a ser titulada.150 Neste caso o negócio é nulo,151 mas tal nulidade vigora apenas entre as partes contratantes, sendo ineficaz relativamente ao proprietário da coisa. Consequentemente, o proprietário não tem que pedir a anulação do contrato, limitando-se a agir como se o mesmo não existisse.152 A existência do título pressupõe a transmissão da posse, pelo que só pode ocorrer posse titulada nos casos de aquisição derivada da mesma. O título não se presume, devendo a sua existência ser provada 147 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 96. Art. 578º, nº 1, do CPC. Embora a 2ª parte do art. 617º do CCI exija a apresentação de certidão do registo para prova da transmissão do direito de propriedade (resultado do efeito constitutivo do registo já analisado supra), para efeitos de título de posse basta a apresentação da escritura pública, como claramente resulta do art. 1964º do CCI. 149 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 199. 150 Sobre a venda de bens alheios veja-se Cunha, Venda de Bens Alheios, Revista da Ordem dos Advogados de Portugal, 1987, págs. 421-472. 151 Arts. 626º do Código Civil e 1471º do CCI. O contrato pode, porém, validar-se. 152 Cunha, Venda de Bens Alheios, 1987, pág. 464. 148 44 por aquele que o invoca (art. 1179º, nº 2, do Código Civil).153 3.2 Posse de boa fé e posse de má fé A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (art. 1180º, nº 1, do Código Civil e art. 531º do CCI).154 A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé (art. 1180º, nº 2, do Código Civil). Já para o CCI a posse presume-se sempre de boa fé, impendendo o ónus de prova da má fé sobre quem a alega (arts. 533º e 1965º).155 Será suficiente se a boa fé existir aquando da aquisição da posse (art. 1966º do CCI). A posse adquirida por violência é sempre considerada de má fé, mesmo quando seja titulada (art. 1180º, nº 3, do Código Civil).156 A ignorância a que a lei se reporta envolve, em regra, a convicção do exercício de um direito próprio, adquirido por título válido, sendo o momento relevante para o efeito o da aquisição da posse, seja por apreensão da coisa, seja por tradição material ou simbólica. Sendo assim, não deve considerar-se de boa fé quem, embora não sabendo que viola o direito de outra pessoa, também não tem a mínima preocupação em saber se viola ou não.157 A posse é de má fé se o possuidor estava consciente que os bens 153 Art. 510º, nº 1, do CPC. O momento relevante para aferir as características da posse (boa ou má fé, violenta ou pacífica, etc.) é o momento da constituição ou início da posse. Assim, se ao adquirir a posse o possuidor ignorava legitimamente que lesava o direito de outra pessoa, a posse mantém-se de boa fé, ainda que venha mais tarde a conhecer que lesava o direito de outrem, sem prejuízo do disposto nos arts. 361º, al. a), do CPC, 1190º, nº 1, do Código Civil e 532º do CCI. 155 Conforme os arts. 512º, nº 1, e 518º, nº 1 e 2, do CPC. 156 Embora o CCI não o diga expressamente, é evidente que também considera tal posse como de má fé, sendo certo que penaliza severamente o possuidor que tenha obtido a posse com violência, não lhe reconhecendo sequer os direitos que reconheceu ao possuidor de má fé, conforme resulta dos arts. 557º, 563º, 568º e 580º do CCI. 157 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 98-99, referindo ainda Menezes Cordeiro, in Boa Fé, vol. I, § 16. 154 45 na sua posse pertenciam a outrem (art. 532º do CCI). Não está de má fé quem ignore a existência do direito que está lesando, desde que não tivesse qualquer obrigação de o conhecer. É de boa fé a posse que não sendo, na sua origem violenta, se tenha constituído pensando o possuidor: a) que tinha ele próprio o direito; b) que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.158 Segundo Pires de lima e Antunes Varela, “sendo a posse adquirida por intermédio de um representante, é na pessoa deste que deve existir a boa fé, salvo se na constituição da posse tiver sido decisiva a vontade do representado, ou este tiver de má fé. É a doutrina do [art. 250º do Código Civil]. Assim, por exemplo, se um procurador é encarregado de administrar uma herança alheia e se apropria de um prédio na convicção errada de que ele pertence à mesma herança, a posse é de boa fé. Se, porém, o procurador recebeu instruções específicas para se apropriar daquele prédio, é já na pessoa do representado que cabe verificar-se a boa fé”.159 3.3 Posse pacífica e posse violenta Posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art. 1181º, nº 1, do Código Civil).160 Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 246º161 (art. 1181º, nº 2, do Código Civil).162 A violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre a própria coisa, nomeadamente quando adquirida por meio de arrombamento. 158 Cordeiro, Direito Reais, 1993, pág. 437. Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 1986, pág. 55. 160 Veja-se o art. 15º, nº 1, do Projecto da Nova Lei das Terras. 161 O art. 246º do Código Civil define a coacção moral. 162 Como já se referiu, o CCI não define a posse violenta, mas refere-se a ela em vários dos seus preceitos, retirando ao possuidor todos os eventuais direitos resultantes da posse. Afigura-se que têm plena aplicação as considerações doutrinárias expostas a propósito do regime relativo à posse violenta no âmbito do Código Civil. Veja-se o art. 15º, nº 2, do Projecto da Nova Lei das Terras. 159 46 A posse que começou violenta será juridicamente considerada violenta mesmo que cesse a violência. Já não é violenta a posse que começou sem coação (física ou moral), muito embora a sua manutenção possa resultar de atos de violência repetida por parte do possuidor (vejase o art. 536º do CCI).163 Ou seja, se o possuidor começou a usufruir da coisa de forma pacífica, sem usar de violência contra ninguém, mas depois se opõe de forma violenta a que o anterior possuidor reassuma os poderes sobre a coisa, a posse não é violenta. Pelo contrário, se o possuidor ocupou o imóvel de forma violenta (com uso de coação física, ou de coação moral, conforme definido supra), mas depois passa a fruir o bem sem oposição do anterior possuidor, ainda assim a posse é juridicamente considerada violenta. 3.4 Posse pública e posse oculta Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1182º do Código Civil). A publicidade derivada da posse limita-se a noticiar, a dar a conhecer ao público, a existência de um direito real.164 Posse oculta é definida tendo em atenção, não o momento constitutivo, mas o próprio exercício. É relevante se o possuidor dá a conhecer ou não o exercício da posse, não se a adquiriu subrepticiamente. A posse oculta é verdadeira posse, mas é preterida pela melhor posse do possuidor esbulhado, ou seja, o anterior possuidor, cuja posse é afetada pela posse oculta, não chega a perder a posse, por a posse oculta não ser conhecida.165 Assim, aquele que esconde a posse não pode opor a mesma ao possuidor esbulhado ou ao proprietário, mas já a pode opor a outra pessoa que pretenda impedir a sua posse. 163 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 100. Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 406. 165 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 101. 164 47 3.5 Posse efetiva e posse civil Oliveira Ascensão166 acrescentou ainda a posse efetiva e a posse civil ao elenco característico da posse. Posse efetiva é a que tem correspondência na situação de facto e posse civil a que não tem essa correspondência. Como exemplo, apresenta o caso do possuidor esbulhado, que mantém a posse durante um ano após o esbulho (conforme os arts. 1187º, nº 1, al. d), do Código Civil e 545º, nº 1, do CCI). Esta posse é meramente civil, porquanto a posse efetiva passou a pertencer ao esbulhador. 4. Aquisição da posse A posse adquire-se: a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito (art. 1183º, al. a), do Código Civil e art. 538º do CCI); b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efetuada pelo anterior possuidor (art. 1183º, al. b), do Código Civil e art. 543º do CCI); c) Por constituto possessório (art. 1183º, al. c), do Código Civil e art. 574º do CCI); d) Por inversão do título da posse (art. 1183º, al. d), do Código Civil e art. 535º do CCI). A aquisição da posse pode ser originária ou derivada, no primeiro caso por apossamento ou inversão do título e, no segundo, por tradição, sucessão ou constituto possessório. 4.1 Apossamento Entre outros meios, a posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito. O apossamento traduz-se na aquisição unilateral da posse por via 166 48 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 102 e 103. do exercício de um poder de facto, ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, de atos materiais correspondentes ao exercício do direito, conforme o referido art. 1183º, al. a), do Código Civil. Trata-se de uma forma de aquisição originária da posse, porquanto a mesma não deriva da posse anterior de outra pessoa. É necessário que se pratiquem atos de intensidade suficiente para se poder afirmar que o sujeito colocou a coisa debaixo do seu poder (como refere Oliveira Ascensão, “prática reiterada de actos materiais correspondentes ao exercício do direito”).167 Precisamente porque na origem da posse está a atuação material sobre a coisa e não um negócio jurídico, podem adquirir a posse os incapazes, com exceção dos que padecem de anomalia psíquica.168 Os menores desprovidos do uso da razão só podem adquirir por usucapião, por eles próprios, o direito de propriedade ou outro direito real de gozo relativo às coisas suscetíveis de ocupação.169 No mais, nomeadamente em relação aos bens imóveis, adquirem por usucapião por intermédio dos seus representantes legais. Os menores com capacidade de entender e de querer podem obter em seu proveito a produção de todos os efeitos prescricionais aquisitivos permitidos na lei.170 Ou seja, podem adquirir o direito correspondente ao exercício da posse por usucapião. 167 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 81. Art. 1188º do Código Civil (“Podem adquirir posse todos os que têm uso da razão, e ainda os que o não têm, relativamente às coisas susceptíveis de ocupação”), e art. 539º do CCI (“Orang gila tidak dapat memperoleh besit untuk diri sendiri. Anak belum dewasa dan wanita bersuami, dengan melakukan perbuatan tersebut di atas, dapat memperoleh besit atas suatu barang”, na versão em inglês: “Individuals who are insane cannot acquire possession for themselves. Minors may acquire possession of assets in the manner set out above”). 169 Isto significa que não podem adquirir por usucapião o direito de propriedade ou qualquer outro direito real sobre imóveis, uma vez que estes não são susceptíveis de aquisição por ocupação. 170 Sousa e Matias, Da Incapacidade Jurídica de Menores, 1983, pág. 113. 168 49 4.2 Tradição da coisa A tradição da coisa consubstancia-se na transferência voluntária da posse entre vivos, em regra quando a transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre quando há entrega da coisa. Trata-se da forma específica de transferência voluntária da posse entre vivos.171 O contrato de compra e venda não cria o domínio, pois apenas o transmite, não sendo de invocar como facto integrativo da posse. O essencial é que os atos aquisitivos se dirijam ao estabelecimento de uma relação duradoura com a coisa, não bastando um contrato fugaz, passageiro.172 Juntamente com a sucessão na posse por morte do anterior possuidor, a tradição trata-se de um caso de acessão da posse. Contudo, no caso da tradição, a acessão é facultativa, uma vez que o novo possuidor pode invocar a posse do antecessor, somando a deste à sua, ou não, limitando-se a invocar apenas a sua posse, desde o memento da transmissão.173 Por exemplo, como já se viu, se a posse do antecessor for de má fé, o novo possuidor pode ter interesse em invocar apenas a sua posse, no caso de esta ser de boa fé, dado que se acrescer a posse do antecessor a sua posse será igualmente considerada como posse de má fé (art. 1176º, nº 2, do Código Civil e arts. 536º e 541º do CCI). 4.3 Constituto possessório Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa (art. 1184º, nº 1, do Código Civil e arts. 543º e 574º do CCI). Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar (art. 1184º, nº 2, do 171 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 114 (“Aí, a transmissão da situação jurídica acompanha a transferência da situação de facto: o antigo possuidor demite-se da sua situação, em que ingressa o novo possuidor. Há então uma entrega”). 172 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 97. 173 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 115. 50 Código Civil). Por exemplo, no caso de o proprietário de um prédio arrendado o transmitir por contrato de compra e venda a outra pessoa, esta passa a ser possuidora do mesmo, ainda que se mantenha o contrato de arrendamento e consequentemente a detenção do imóvel pelo arrendatário.174 Para José de Oliveira Ascensão175 são pressupostos do constituto possessório: a) a transmissão do direito real relativo à coisa a que a posse se refere; b) pelo possuidor; c) sem haver entrega. O que se pretende é atribuir a posse ao adquirente do direito de propriedade, ainda que a coisa não lhe seja entregue materialmente. O anterior proprietário, ou outra pessoa, mantém a detenção da coisa, mas a lei passa a considerar o adquirente como possuidor da mesma. O exercício do constituto possessório terá que ser efetuado mediante ação declarativa de condenação, com processo comum.176 Não existindo processo especial para o caso, a ação aproxima-se muito da ação de reivindicação de propriedade.177 A ação só improcederá se o terceiro detentor provar que tem melhor posse do que aquela que resulta do constituto possessório, ou seja a posse do adquirente do direito de propriedade. Tal situação ocorrerá no caso de o anterior proprietário não ser já o possuidor da coisa que vendeu. Para o mesmo autor, embora os artigos em causa (quer no Código Civil, quer no CCI) refiram apenas o direito de propriedade, “deve-se entender a referência à propriedade num sentido amplo e proteger deste modo todos os direitos reais que conferem posse, pois então são idênticas as razões de decidir”.178 4.4 Inversão do título de posse A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do 174 Conforme art. 988º do Código Civil e art. do CCI. Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 116. 176 Arts. 3º, nº 2, al. b), e 347º, nº 2, do CPC. Não tem relevância para o caso a discussão doutrinária sobre a característica de tal ação (ação real ou possessória). 177 Sobre o assunto veja-se Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 118-119. 178 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 120, citando também Manuel Rodrigues, “A Posse”, nº 89. 175 51 detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1185º do Código Civil e arts. 1960º e 1961º do CCI).179 Qualquer detentor pode adquirir a posse opondo-se ao titular do direito sobre a coisa detida, seja qual for a razão da existência da mera detenção.180 Não há inversão do título quando, depois de se extinguir a relação jurídica que originou a detenção, por exemplo mandato ou depósito, a coisa continua em poder do detentor apenas porque o respetivo titular não exigiu a sua restituição.181 Aqui a detenção da coisa está condicionada pelo título que lhe deu origem, daí a necessidade de inversão do título.182 A cedência da posse propriamente dita sobre uma coisa pressupõe a celebração de algum negócio jurídico que tenha por objeto mediato a referida transferência, como é o caso, por exemplo, dos contratos de alienação do direito de propriedade ou de constituição de direitos reais. Não sendo a traditio realizada em consequência de um ato de alienação do direito de propriedade, tendo em vista a sua futura alienação, não se pode concluir pelo animus correspondente a um direito real nem concluir pela inversão do título. Traditio brevi mani consiste em o possuidor e detentor substituírem o negócio jurídico ou o facto que deu origem à detenção, por um novo negócio jurídico, em virtude do qual a relação material até ali existente entre o detentor e o objeto passa a ser uma relação possessória. Por exemplo, no caso de arrendamento, um terceiro, que invoca ser ele o proprietário do imóvel, e o arrendatário celebram um contrato nos termos do qual este adquire o direito de propriedade sobre o imóvel. Passa o inquilino a ser possuidor do imóvel, ainda que o 179 Vejam-se ainda os arts. 535º, 536º e 1959º do CCI. Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 667. 181 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 98. 182 A inversão do título da posse, oposição categórica, de modo a sobrepor-se à aparência representada pelo título, tem de traduzir-se em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 29-10-2009, processo nº 151/2001.S1, relator Pereira da Silva, in www.dgsi.pt/jstj). 180 52 contrato em causa seja formalmente inválido, designadamente por ter sido celebrado verbalmente ou mediante mero escrito particular.183 Já, a modificação da situação da posse, em que o mero detentor passa a ser verdadeiro possuidor, implica uma atuação positiva daquele, traduzida na inversão do título de posse, ou, do lado do proprietário, uma situação de abandono dos seus poderes de proprietário, consentindo que sejam exercidos pelo detentor.184 Porque a inversão do título da posse ocorre quando o detentor se opõe àquele em cujo nome possuía,185 essa oposição tem de traduzir-se em atos positivos e inequívocos praticados pelo oponente.186 Ou seja, não basta que o detentor passe a considerar-se possuidor, é necessário que manifeste em atos materiais sobre a coisa o exercício correspondente ao direito (nomeadamente de propriedade) e que afirme de forma clara e inequívoca essa sua intenção perante o possuidor anterior, em nome de quem detinha a coisa.187 5. Perda da posse O possuidor perde a posse: 183 Art. 1961º do CCI. Art. 544º do CCI (“Orang kehilangan besit, sekalipun tanpa kehendak untuk menyerahkannya pada orang lain, bila barang yang dikuasainya ditinggalkannya secara nyata”, na versão em inglês: “An individual shall forfeit the possession, notwithstanding the absence of intent to assign the assets to another person, if the individual clearly abandons such”). 185 Art. 1960º do CCI. 186 Neste sentido o art. 536º do CCI (“Orang kehilangan besit, sekalipun tanpa kehendak untuk menyerahkannya pada orang lain, bila barang yang dikuasainya ditinggalkannya secara nyata”, na versão em inglês: “An individual cannot, due to his intent, or due to the passage of time, change the origin and the basis of his personal possession”). Veja-se Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 668, e Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 98. 187 “Oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía” (art. 1185º do Código Civil). No mesmo sentido os aludidos arts. 535º e 536º do CCI. “A oposição tem de ser categórica, de modo a sobrepor-se à aparência que era representada pelo título. Por exemplo, o usufrutuário declara peremptoriamente que é ele quem é o proprietário, que só por engano agira a título de usufrutuário, e faz saber ao proprietário a sua oposição” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 92). 184 53 a) Pelo abandono (art. 1187º, nº 1, al. a) do Código Civil e art. 544º do CCI); b) Pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio (art. 1187º, nº 1, al. b), do Código Civil e arts. 545º, nº 2, e 546º do CCI); c) Pela cedência (art. 1187º, nº 1, al. c), do Código Civil e art. 543º do CCI); d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano (art. 1187º, nº 1, al. d), do Código Civil e arts. 545º, nº 1, e 1978º do CCI). 5.1 Abandono Como já se referiu supra a posse não implica necessariamente a detenção material da coisa. Assim, a perda da posse pelo abandono só ocorre quando o possuidor, intencionalmente, se afasta do bem com o fim de se privar de sua disponibilidade física e de não mais exercer sobre ela quaisquer atos possessórios. A perda da posse pelo abandono deverá ser exteriorizada de maneira que não existam dúvidas que o possuidor efetivamente pretende abandonar a coisa, ou seja, não pretende manter a res.188 O referido abandono implica necessariamente a extinção do corpus e do animus da posse por virtude de ato material intencionalmente dirigido à rejeição da posse ou da coisa possuída, não se confundindo com a simples inação do titular que não cuida da coisa.189 Há pois uma atuação voluntária, que diferencia estas situações das de mera inércia do titular, que não leva por si à perda da posse.190 Assentando a posse no corpus, ou seja num efetivo e existente controlo material de uma coisa nos termos de um direito, ela extingue-se quando o possuidor, por sua vontade ou sem ela, deixa de ter esse controlo material. O abandono só extingue a posse havendo perda do 188 Coisa. Acórdão da Relação de Lisboa de 9-3-2010, processo nº 28/05.4TBVLS.L1-1, relatora Ana Grácio, in www.dgsi.pt/jtrl. 190 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 122. 189 54 corpus, o possuidor quebra o controlo material que tinha sobre a coisa, deixando de o exercer por opção própria.191 O abandono pressupõe um ato material, praticado intencionalmente, de rejeição da coisa, pelo que a perda de posse, pelo abandono, está diretamente conexionada com a intenção de “atirar a coisa fora da esfera de atuação material do titular da posse”.192 5.2 Perda ou destruição material da coisa A perda da coisa refere-se aos bens móveis e dá-se quando for absolutamente impossível encontrá-la, de modo que não se possa mais utilizar a coisa economicamente. A destruição da coisa decorre de evento natural ou fortuito, de ato do próprio possuidor ou de terceiro. É preciso que se inutilize a coisa definitivamente, impossibilitando o exercício do poder de utilizar economicamente o bem por parte do possuidor, pois a sua simples danificação não implica a perda da posse. Em ambos os casos o corpus tornou-se impossível. Trata-se de uma situação em que a impossibilidade de exercício do corpus é definitiva e não meramente provisória. Enquanto na perda da coisa, a posse extingue-se pelo simples desaparecimento do poder de facto independentemente da vontade, 193 no caso do abandono basta que se largue a coisa, isto é, que não se exerça mais qualquer atividade sobre ela, conscientemente. A perda da posse pela inalienabilidade da coisa ocorre quando a coisa for colocada fora do comércio por motivo de ordem pública, de moralidade, de higiene ou de segurança coletiva, não podendo, assim, ser possuída porque é impossível exercer, com exclusividade, os poderes inerentes ao domínio. Integra esta situação a expropriação da coisa por utilidade pública. Neste caso, a coisa, ou o bem imóvel, passa a integrar o domínio público, pelo que passam a estar excluídos do comércio 191 Vieira, Direitos Reais, 2008, págs. 605 e 606. Acórdão da Relação do Porto de 11-10-1994, processo nº 9341240, relator Araújo de Barros, in www.dgsi.pt/jtrp. 193 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 777. 192 55 jurídico, sendo assim insuscetíveis de posse (art. 193º, nº 2, do Código Civil e os arts. 537º e 520º a 525º do CCI). 5.3 Cedência A tradição, além de meio de aquisição da posse pode acarretar a sua extinção, é uma perda por transferência. Trata-se, pois, de perda de posse relacionada com as formas de aquisição derivada (tradição e constituto possessório). Neste caso haverá perda da posse para quem transmite o bem, pela demissão do seu corpus e do animus, ou só deste último. A lei não prevê a morte do possuidor como forma de extinção da posse, porquanto esta não se extingue transmitindo-se para o seu sucessor. 5.4 Nova posse A perda da posse pela existência da posse de outrem verifica-se quando o primeiro possuidor, por inércia, deixa decorrer o prazo de ano e dia, depois de ter sido turbado ou esbulhado no exercício da sua posse por outra pessoa, ainda que contra a sua vontade. Esta inércia acarreta a perda da sua posse, dando lugar a uma nova posse em favor de outrem. A nova posse de outrem conta-se desde o seu início, se foi tomada publicamente, ou desde que é conhecida do esbulhado, se foi tomada ocultamente; sendo adquirida por violência, só se conta a partir da data em que termine a violência (art. 1187º, nº 2, do Código Civil e art. 565º do CCI).194 O possuidor perde a posse logo que sobre a mesma coisa se constitua nova posse incompatível com a primeira a favor de outra pessoa. Antes do aludido decurso do ano, a posse anterior prevalece sobre a nova posse. Mas no caso do apossamento de outrem, mesmo que contra a vontade do possuidor inicial, este perde a posse em consequência de aquele novo possuidor manter a nova posse por mais de 194 56 Veja-se o art. 1202º do Código Civil e o art. 558º do CCI. um ano, ou seja, pelo menos, um ano e um dia.195 Sobre a mesma coisa não podem incidir posses incompatíveis, com exceção da situação acima referida.196 Sendo que, o primeiro possuidor goza da faculdade de, no prazo de um ano, recuperar a sua posse.197 6. Efeitos da posse 6.1 Presunção da titularidade do direito O possuidor goza da presunção da titularidade do direito exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse (art. 1188º, nº 1, do Código Civil e arts. 548º, nº 1, e 549º, nº 1, do CCI).198 Ao estatuir que a posse confere a presunção da titularidade do direito, a lei presume que quem está na posse da coisa é titular do direito correspondente aos atos que pratica sobre ela. Face a esta presunção, surgindo uma situação de dúvida, esta é superada em termos favoráveis ao possuidor.199 Assim, a posse anterior ao registo de qualquer direito 195 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 124. José de Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais, 2000, pág. 124) defende que “o esbulhador tem logo, nos termos gerais, uma verdadeira posse, resultante do seu apossamento. Podem por isso existir posses em conflito actual. O critério de preferência é-nos dado pela antiguidade de mais de um ano”. Acrescenta de seguida: “Interessa-nos sobretudo acentuar que sobre a mesma coisa podem existir posses contraditórias. A autonomia relativa que a posse foi atingindo, em relação à situação de facto de que nasceu, permite que se constitua sobre uma coisa uma nova posse, sem que isso signifique necessariamente a destruição da posse anterior” (pág. 126). 197 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 110. 198 Protege-se a posse porque ela é a exteriorização do domínio, pois o possuidor é o proprietário presuntivo. Tal proteção é conferida através de ações possessórias. Enquanto a ação reivindicatória é a propriedade na ofensiva, a ação possessória é a propriedade na defensiva. Desse modo, a proteção possessória é um complemento à defesa da propriedade, pois através dela, na maioria das vezes, vai o proprietário ficar dispensado da prova de seu domínio (Silva, Direito das Coisas – Pose). 199 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 204. 196 57 sobre a coisa ilide a presunção de propriedade resultante do registo.200 Em caso de dúvida a lei faz presumir a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa. José de Oliveira Ascensão salienta que esta presunção, porque se baseia numa aparência, só funciona quando o sujeito se apoderou faticamente da coisa. Por exemplo, uma posse meramente jurídica, como a resultante de constituto possessório, não dá presunção de titularidade.201 Por força do disposto neste artigo, é de presumir que quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos atos que pratica sobre ela. Assim, provado o elemento material da posse e dele decorrendo, por força dessa presunção, o elemento moral, compete à parte contrária ilidir essa presunção, sob pena de ser reconhecido o direito respetivo. Esta presunção é aplicável tanto para a posse de boa fé como para a posse de má fé (arts. 548º, nº 1, e 549º, nº 1, do CCI). Importa aqui lembrar que a posse não titulada se presume de má fé (art. 1180º, nº 2, do Código Civil). Justificando este preceito escrevem Álvaro Moreira e Carlos Fraga, “é que, de facto, pode ser difícil ou impossível provar directamente por uma cadeia ininterrupta de transmissões a titularidade do direito”.202 6.2 Responsabilidade do possuidor O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa (art. 1189º do Código Civil e art. 574º do CCI). O possuidor de má fé responde pela perda ou deterioração da coisa nos termos da responsabilidade pelo risco por mora do devedor 200 Conforme se viu já, o registo faz presumir a titularidade do direito inscrito (arts. 8º do Código de Registo Predial Português de 1967 e 23º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia). Esta presunção cede perante posse anterior ao registo. 201 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 106. Acrescenta o autor, “não tem que ser posse efectiva, tal como é reclamada pela usucapião, mas é uma posse que tem de se manifestar por uma actuação fáctica sobre a coisa”. 202 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 204. 58 (art. 741º do Código Civil).203 Ou seja, o possuidor de má fé é responsável pela perda ou deterioração da coisa, mesmo que estes factos lhe não sejam imputáveis, a menos que demonstre que os danos sempre teriam ocorrido ainda que não tivesse existido a sua posse (art. 579º, nº 2, do CCI). 6.3 Frutos O possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais percebidos204 até ao dia em que souber que está a lesar com a sua posse o direito de outrem, bem como os frutos civis correspondentes ao mesmo período (art. 1190º, nº 1, do Código Civil e art. 548º, nº 3, do CCI).205 Se ao tempo em que cessa a boa fé estiverem pendentes frutos naturais, é o titular obrigado a indemnizar o possuidor pelas despesas de cultura, sementes ou matérias-primas e, em geral, de todas as despesas de produção, desde que não sejam superiores ao valor dos frutos que vierem a ser colhidos (art. 1190º, nº 2, do Código Civil e art. 576º do CCI)206. O possuidor de boa fé tem que restituir os frutos após cessar a boa fé. Mas, tendo ele pago as despesas relativas às plantações ou obras, das quais resultam os aludidos frutos (sementes, obras, que não sejam enquadráveis na definição de benfeitorias, aquisição de água para rega, etc.), e estando de boa fé na altura de tal investimento, deve deduzir tais encargos na restituição dos frutos resultantes do investimento feito. Caso o valor do investimento seja superior ao valor dos frutos, não pode, porém, exigir a diferença, mas nada terá que pagar. 203 1. Pelo facto de estar em mora, o devedor torna-se responsável pelo prejuízo que o credor tiver em consequência da perda ou deterioração daquilo que deveria entregar, mesmo que estes factos lhe não sejam imputáveis. 2. Fica, porém, salva ao devedor a possibilidade de provar que o credor teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em tempo. 204 Recebidos. 205 Veja-se ainda o art. 575º do CCI. 206 Cessa a boa fé com a citação do possuidor em ação de restituição de posse ou de reivindicação contra o possuidor atual, conforme art. 361º, al. a), do CPC (no mesmo sentido o art. 532º do CCI e o art. 1190º, nº 2, do Código Civil). Como se viu, a posse é de boa fé quando quem a exerce ignora que lesa o direito de outra pessoa. Assim, se o autor vem invocar algum direito sobre o bem possuído, após a citação o possuidor não pode mais ignorar que outra pessoa se arroga direitos sobre o mesmo bem. Daí que cesse a boa fé do possuidor. 59 Se o possuidor tiver alienado frutos antes da colheita e antes de cessar a boa fé, a alienação subsiste mas o produto da colheita (o dinheiro recebido) pertence ao titular do direito real sobre a coisa, deduzida a indemnização a que o parágrafo anterior se refere (art. 1190º, nº 3, do Código Civil).207 A justificação do preceito resulta do facto de a alienação dos frutos poder ser efetuada antes da colheita dos mesmos. O possuidor de má fé deve restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse e responde, além disso, pelo valor daqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido (art. 1191º do Código Civil e art. 549º, nº 2, do CCI).208 O possuidor de má fé comete um acto ilícito que obriga a indemnizar, designadamente a restituir os frutos que a coisa produziu, ou podia produzir. Conforme salienta José de Oliveira Ascensão, daqui resulta que só o possuidor de boa fé goza do direito de fruição da coisa, estando o mesmo vedado ao possuidor de má fé.209 Se os frutos percipiendos210 excederem os frutos produzidos pela coisa, o proprietário pode exigir ainda ao possuidor a soma correspondente a esse excesso. Se o possuidor não for diligente e não explorar devidamente o imóvel, quando o podia fazer, então responde também por tal omissão. O proprietário pode ainda exigir a diferença em relação aos frutos que ele próprio, em concreto, poderia obter. A partir do momento em que a ação de reivindicação for proposta pelo reivindicante, o possuidor fica na situação de possuidor de má fé.211 Poderá continuar a ter a convicção de que possui justamente, mas essa convicção é inoperante.212 6.4 Encargos Os encargos com a coisa são pagos pelo titular do direito e pelo 207 O mesmo resulta do disposto no art. 576º do CCI. Vejam-se ainda os arts. 559º e 579º, nº 1, do CCI. 209 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 107. 210 Os frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido. 211 Cessa a boa fé da posse quando contra o possuidor for intentada ação de restituição do imóvel ou de reivindicação (arts. 361º, al. a), do CPC, 532º do CCI e 1190º, nº 1, do Código Civil). 212 Rodrigues, A Posse, 1996, pág. 350. 208 60 possuidor, na medida dos direitos de cada um deles sobre os frutos no período a que respeitam os encargos (art. 1192º do Código Civil e arts. 575º e 579º, nº 1, do CCI).213 Daqui resulta que os encargos serão suportados pelo possuidor, até à interposição da ação para entrega do imóvel. Aliás, o pagamento dos encargos constitui manifestação da posse, do uso do imóvel como titular do direito. Trata-se aqui apenas de encargos e não de benfeitorias. Trata-se de despesas correntes inerentes ao uso da coisa, como, por exemplo, os impostos ou os foros. 6.5 Benfeitorias214 Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas, desde que o possam fazer sem detrimento da coisa (art. 1193º, nº 1, do Código Civil e arts. 575º e 579º, nº 1, do CCI). Excetua-se no CCI o caso da posse adquirida por violência (art. 580º). O direito de indemnização por benfeitorias pressupõe e exige a posse em nome próprio. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, o titular do direito compensará o possuidor pelo valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1193º, nº 2, do Código Civil). O possuidor goza do direito de retenção sobre a coisa pelo valor das benfeitorias necessárias efetuadas (art. 688º do Código Civil e art. 575º, 2ª parte, do CCI).215 O pedido de indemnização de benfeitorias que não podem levantar-se sem detrimento da coisa destina-se a evitar um enriquecimento sem causa à custa do possuidor que é obrigado a entregar a coisa. Assim, o valor da indemnização não deve exceder o valor dos melhoramentos efetuados. 213 214 Conforme referido no ponto anterior. Sobre o conceito e características das benfeitorias veja-se supra o Título I, Capítulo V. 215 Porém, o CCI refere apenas o possuidor de boa fé. 61 O possuidor de boa fé tem direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, não se dando detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem receber o valor delas (art. 1195º, nº 1, do Código Civil e art. 581º do CCI). No entanto, para José de Oliveira Ascensão, parece dever entender-se que o possuidor de boa fé poderá sempre levantar as benfeitorias voluptuárias, desde que repare as deteriorações causadas na coisa.216 O possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito (art. 1195º, nº 2, do Código Civil). A obrigação de indemnização por benfeitorias é suscetível de compensação quando exista a responsabilidade do possuidor por deteriorações na coisa (art. 1194º do Código Civil). Ou seja, o titular do direito que reivindique a coisa do possuidor terá que indemnizar este pelas benfeitorias feitas, mas pode deduzir a tal valor aquilo que o possuidor tiver que pagar por deteriorações da coisa pelas quais seja responsável. 6.5 Usucapião A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião, ou prescrição aquisitiva (arte. 1207º do Código Civil e artes. 548º, nº 2, 1946º e 1955º do CUCI). Dada a sua importância tratar-se-á autonomamente esta matéria 217 infra. 7. Defesa da posse 7.1 Ações possessórias Existem os seguintes meios de defesa judicial da posse, previstos nos arts. 1196º a 1206º do Código Civil: ação de prevenção, ação de 216 217 62 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 109. Ponto 8. manutenção, ação de restituição, ação de restituição no caso de esbulho violento e embargos de terceiro. Para além destes meios, existem ainda os meios de defesa da posse de carácter extrajudicial, ou seja a ação direta e a legítima defesa, previstos nos arts. 327º e 328º do Código Civil. No entanto, o recurso ao tribunal constitui o meio de defesa normal do possuidor esbulhado.218 Um dos efeitos relevantes da posse traduz-se nos respetivos meios de defesa, as chamadas ações possessórias. A posse confere a possibilidade de vir a juízo requerer determinadas providências para sua defesa, mediante as chamadas ações possessórias. Podemos, assim, falar de um contencioso possessório para designar o conjunto dessas ações, por oposição ao contencioso petitório, representado fundamentalmente pelas ações destinadas a defender a propriedade e não a posse. As ações possessórias são, genericamente, ações destinadas a defender a posse contra atos que a ameacem ou que a lesem. São estas a ação de prevenção, a ação de manutenção, as ações de restituição da posse e os embargos de terceiro.219 7.2 Ação de manutenção da posse Se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar (art. 1196º do Código Civil).220 Para a aplicação da ação de prevenção é necessário, além de uma situação de posse, que esta não tenha sido lesada e que tenham ocorrido factos de que seja legítimo inferir estar o possuidor sob ameaça séria de ser perturbado ou esbulhado (trata-se pois de uma ação antecipatória). A expressão justo receio destina-se a inculcar a ideia de que não basta um receio mais ou menos vago, os atos atribuídos ao réu hão-de ter o carácter de ameaças positivas e capazes de se traduzir em vias de 218 Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 1986, pág. 24. Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, págs. 207 e 208. 220 Não existe disposição semelhante no CCI. 219 63 facto.221 O meio adequado para a ação de prevenção será a providência cautelar não especificada dos arts. 305º a 316º do CPC. Efetivamente, se a ameaça é séria, como exige o artigo, então o recurso ao processo declarativo comum não acautela o direito do possuidor ameaçado, devido à natural demora do mesmo. Isto não invalida, obviamente, que o possuidor tenha que intentar posteriormente ação declarativa, sob pena de caducidade da providência, nos termos dos arts. 307º, nº 1, e 313º, nº 1, al. a), do CPC.222 7.3 Restituição de posse O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter a posse ou recuperá-la por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 327º (do Código Civil), ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse (art. 1197º do Código Civil e arts. 550º, 551º e 566º do CCI). A manutenção da posse tem lugar quando o possuidor não foi esbulhado da coisa, mas houve mera perturbação da sua posse. Havendo esbulho, o meio adequado é a restituição. Conforme salientado por Manuel Rodrigues, “Há esbulho sempre que alguém for privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar. O esbulho pode ser parcial, verificar-se só em relação a uma parte do objecto, como quando alguém se apropria de uma parte de um prédio rústico possuído por outrem, murando-a por exemplo”.223 Daí que não ocorra esbulho, mas antes mera turbação da posse, quando os atos de terceiro apenas dificultam o exercício do poder de facto inerente à posse, que assim se mantém na esfera do possuidor.224 No esbulho, o terceiro não permite que o possuidor atue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando o 221 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 835. A acção principal segue a forma de acção declarativa de condenação com processo comum (arts. 3º, nº 2, al. b), e 347º, nº 2, do CPC (Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 1986, pág. 30). 223 Rodrigues, A Posse, 1996, pág. 363. 224 Cordeiro, A Posse, 2005, pág. 146. 222 64 último desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.225 O ato de esbulho consiste no facto de o possuidor ficar privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse.226 Daí que não haja esbulho quando os atos de terceiro apenas dificultam o exercício dos poderes do possuidor. O recurso à ação direta e à legítima defesa (arts. 327º e 328º do Código Civil) pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) impossibilidade de recurso, em tempo útil, aos meios coercivos normais, nomeadamente aos tribunais; b) violação efetiva ou eminente do direito; c) racionalidade dos meios utilizados. Quanto ao segundo requisito, há ação direta quando existe uma agressão do interesse do titular já finda ou consumada e existe legítima defesa quando essa agressão é atual, portanto já iniciada mas ainda não consumada. Quando não se verificar situação de esbulho violento, o possuidor ainda assim pode recorrer ao tribunal, usando a providência cautelar de embargo de obra nova, se, por exemplo, o esbulhador construir um muro que impeça a posse, ou pode usar os meios cautelares comuns ou a ação declarativa comum. No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido na posse ou esta será restituída ao mesmo enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito (art. 1198º, nº 1, do Código Civil e arts. 561º e 562º do CCI). Ou seja, enquanto estiver pendente ação para decidir a questão da titularidade do direito e até decisão da mesma. Para isso deve o possuidor esbulhado recorrer a uma providência cautelar comum dos arts. 307º a 312º do CPC. Se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse (art. 1198º, nº 2, do Código Civil e art. 561º do CCI). É melhor posse a que for 225 Veja-se o acórdão do Tribunal de Recurso de 1-12-2011, processo nº 11/Cível/Agravo/2011/TR, relator Rui Penha. 226 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 126. 65 titulada; na falta de título, a mais antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse atual (art. 1198º, nº 3, do Código Civil). Só é plenamente protegido pelas ações de manutenção e de restituição da posse o possuidor cuja posse é superior a um ano, ou seja, que detenha a posse chamada de ano e dia. Tal possuidor pode sempre, provada que seja a posse de ano e dia, obter a manutenção ou restituição da posse, não sendo admitida a contraparte a provar que tem melhor posse. Só depois é que se irá discutir se a posse é ou não legítima.227 Não existindo processo especial para a situação do constituto possessório previsto no art. 1184º, nº 1, do Código Civil e arts. 543º e 574º do CCI, o mesmo deve ser exercido através de ação declarativa de condenação, com processo comum, nos termos gerais. Saliente-se que as ações mencionadas não são aplicáveis à defesa das servidões não aparentes, salvo quando a posse se funde em título provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu (art. 1200º do Código Civil e arts. 552º e 553º do CCI). Não pode haver posse nas chamadas servidões não aparentes, porquanto os atos correspondentes ao conteúdo das servidões não aparentes são normalmente atos de tolerância do proprietário da coisa. 7.4 Restituição provisória de posse O possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.228 No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (art. 317º do CPC e art. 563º do CCI). São requisitos específicos da providência: - esbulho, ou seja a retirada total ou parcial da posse de um bem; - a violência, ou seja que a retirada do bem ocorra com utilização 227 228 66 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 210. Veja-se os arts. 1199º do Código Civil e 563º do CCI. de força.229 Assim, ficam dispensados certos requisitos gerais como sejam o receio de lesão grave ou o prejuízo com a demora da entrega do bem. Ou seja, “o autor não carece de alegar e provar que corre um risco, que é exposto à ameaça de um dano jurídico com a demora da posse, bastando-lhe alegar e provar os pressupostos desta acção cautelar”.230 Quanto à posse, como é característico das providências cautelares, basta demostrar a mera probabilidade da sua existência. Basta ao autor demonstrar que “é, aparentemente, titular do direito que invoca”.231 A violência poderá ser contra a pessoa ou contra a coisa. Por exemplo, constitui caso de violência contra a coisa arrombar a porta de uma casa e substituir a fechadura. Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física ou de coação moral (art. 1181º, nº 2, do Código Civil). A coação moral, na hipótese de esbulho, ocorre quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação pelo receio de um mal de que foi ilicitamente ameaçado. A coação física supõe completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada. 232 Coação física é aquela em que através do recurso à força física, se anula e exclui totalmente a liberdade exterior do coacto, conduzindo à completa ausência de vontade do mesmo e colocando-o numa situação de impossibilidade material de agir. No silêncio da lei, a doutrina portuguesa233, a propósito de disposição semelhante, têm-se dividido quanto à questão de saber se a violência para efeitos de caracterizar o esbulho como de violento tem de recair sobre pessoas, ou se também pode recair sobre coisas. O entendimento maioritário da doutrina vai no sentido de que, para efeitos do deferimento do procedimento cautelar de restituição 229 Isto é, o ato de retirar a posse ao requerente é não consentido. Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 1986, pág. 120. 231 Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 1986, pág. 120. 232 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. I, 1987, pág. 23. 233 A jurisprudência estrangeira, nomeadamente a portuguesa, tem o efeito de doutrina. Só se pode falar verdadeiramente em jurisprudência quando se trata de decisões proferidas pelos tribunais nacionais de Timor-Leste. 230 67 provisória de posse, tanto é admissível que a violência tenha sido exercida sobre as pessoas, ou sobre as coisas, mas neste caso, só releva se tiver por fim intimidar o possuidor, o que só poderá ocorrer sobre as coisas que constituem obstáculo ao esbulho e não sobre a própria coisa, objeto da posse.234 Porém, esta violência tem que se reportar ao momento do esbulho, o que logo resulta da expressão esbulhado com violência e não a momento posterior, em que já depois do aludido esbulho o esbulhador se opõe com violência à restauração por parte do possuidor235. A violência contra as coisas só releva se se pretender por via dela intimidar, direta ou indiretamente, a vítima da mesma, sendo irrelevantes os meros atos materiais de danificação ou destruição inaptos para afetar o possuidor em termos psicológicos. O possuidor tem que intentar posteriormente ação declarativa, sob pena de caducidade da providência, nos termos dos arts. 307º, nº 1, e 313º, nº 1, al. a), do CPC. 7.5 A ação de manutenção ou de restituição da posse A ação de manutenção da posse segue a forma de processo declarativo de condenação e pode ser intentada pelo perturbado ou pelos seus herdeiros, mas apenas contra o perturbador, salva a ação de indemnização contra os herdeiros deste (art. 1201º, nº 1, do Código Civil). A ação de restituição de posse pode ser intentada pelo esbulhado ou pelos seus herdeiros, não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho (art. 1201º, nº 2, do Código Civil). O que ressalta deste artigo é que a ação de restituição não pode ser intentada contra quem esteja na posse da coisa de boa fé. 234 Reis, Código de Processo Civil Português Anotado, vol. I, 2004, pág. 670. Trata-se de situação semelhante à que ocorre com a aquisição da posse por meio de violência (ver Capítulo III, al. c). Aliás o esbulho pode consistir na aquisição de uma nova posse, pelo que se justifica a aplicação dos mesmos princípios. Neste sentido o acórdão do Tribunal de Recurso de 7-7-2011, Processo nº 06/Cível/Agravo/2011/TR, relator Rui Penha. 235 68 A ação de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a ocultas (art. 1202º do Código Civil e arts. 558º e 565º do CCI). Ambos os preceitos, do Código Civil e do CCI, referem-se a prazo de caducidade, como é expresso no primeiro caso.236 Se os vários atos de perturbação são complementares uns dos outros por se dirigirem a um mesmo fim e se deles resulta a constituição como possuidor de uma pessoa contrária, o prazo de um ano conta-se a partir do primeiro desses atos. Se os vários atos de perturbação, mesmo que sejam de natureza idêntica, têm autonomia e não envolvem a perda da posse, o prazo ocorre separadamente em relação a cada um deles.237 É havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse ou a ela foi restituído judicialmente (art. 1203º do Código Civil e art. 560º do CCI). É assim indiferente a posse do esbulhador, uma vez que sobre a mesma coisa não podem haver duas posses plenas. O possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência da turbação ou do esbulho (art. 1204º, nº 1, do Código Civil e arts. 568º e 576º a 581º do CCI). A restituição da posse é feita à custa do esbulhador e no lugar do esbulho (art. 1204º, nº 2, do Código Civil). Só depois de mantido ou restituído 236 Prata, Dicionário Jurídico, 2005, pág. 179. Caducidade é a extinção não retroativa de efeitos jurídicos em virtude da verificação de um facto jurídico stricto sensu, isto é, independentemente de qualquer manifestação de vontade. Como forma extintiva dos direitos, a caducidade opera quando o direito não é exercido dentro de um dado prazo fixado por lei ou convenção. O termo do prazo de caducidade opera com o simples instaurar da ação (art. 322º, nº 1, do Código Civil). O prazo de caducidade atinente ao processo, não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei que regula cada situação concreta o admite (art. 319º do Código Civil). O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido (art. 322º, nº 1, do Código Civil). No caso de um facto continuado, o prazo só se inicia a partir do momento em que cessa esse facto. 237 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 130. Por exemplo, se o possuidor de um prédio vizinho começa por cultivar uma parte do prédio do esbulhado e depois constrói um muro separando a parte do prédio que ocupou do restante prédio do esbulhado, o prazo inicia-se com o primeiro ato (o cultivo do terreno alheio). Diferentemente, se o vizinho ocupa apenas temporariamente parte do terreno do esbulhado para pastar o seu gado, o prazo é distinto em relação a cada uma destas ocupações, correndo separadamente. 69 pode o possuidor exigir ao turbador ou esbulhador que o indemnize. 7.6 Embargos de terceiro O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente, por exemplo uma penhora em ação executiva, pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo (art. 1205º do Código Civil). Nos termos do disposto no artigo 286º do CPC, se qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. Ou seja, os embargos de terceiro visam restituir ao possuidor ou titular de outro direito real a coisa que lhe foi retirada por ato judicial, de apreensão ou entrega de bens, desde que o mesmo não tenha sido parte na causa. Permite-se, deste modo, que os direitos substanciais atingidos ilegalmente pela penhora ou ato de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar. São, pois, requisitos essenciais da atendibilidade dos embargos de terceiro que o embargante tenha a posição de terceiro, isto é, que não tenha intervindo no processo ou no ato jurídico de que emana a diligência judicial, nem represente quem foi condenado no processo, ou quem no ato se obrigue, e que tenha a posse ou direito sobre a coisa que a diligência de penhora fez apreender, incompatível com a mesma. O embargante não necessita de provar a sua propriedade sobre os bens que considera indevidamente apreendidos, é bastante a prova da sua posse. Já a prova de que ele, embora possuidor, não é proprietário e de que os bens podem ser executados incumbe ao credor.238 7.7 Composse Cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, 238 70 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 129. Conforme o art. 510º, nº 2, do CPC. pode usar contra terceiro dos meios supra referidos, quer para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro (art. 1206º, nº 1, do Código Civil).239 Já nas relações entre compossuidores não é permitido o exercício da ação de manutenção (art. 1206º, nº 2, do Código Civil). 8. Usucapião240 8.1 Definição Conforme já se referiu, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião, ou prescrição aquisitiva ou positiva (art. 1207º do Código Civil241 e arts. 548º, nº 2, 1946º e 1955º do CCI)242. A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo variável. O tempo necessário varia consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, a característica da 239 Ou seja, não se verifica a situação de litisconsórcio necessário prevista no art. 31º do CPC, pelo que apenas um dos compossuidores tem legitimidade para intentar acção ou providência para manutenção ou restituição da posse. 240 No estudo da usucapião tomar-se-á em consideração o regime previsto no Código Civil Português de 1867 e no Código Civil Português de 1966, por terem manifesto interesse na apreciação concreta das situações que se colocam, para além, como é evidente do regime do CCI e do Código Civil de Timor-Leste. Importa ter em conta que grande parte das situações de posse que possam legitimar a invocação da usucapião se iniciou ainda no âmbito do Código Civil Português de 1867, sobretudo tendo em consideração o escasso período de vigência no território nacional de TimorLeste do Código Civil Português de 1966. 241 Igual o art. 1287º do Código Civil Português de 1966. O CCI denomina este instituto como de prescrição aquisitiva (designação frequente na doutrina internacional) e regula o mesmo precisamente no capítulo relativo à prescrição (Capítulo VII, do Livro IV, Secção 2), embora também se lhe refira no capítulo que aborda a posse (Capítulo II, do Livro II). No mesmo sentido o Código Civil Português de 1867, que designa a situação de prescrição positiva no seu art. 505º. Por contraponto à prescrição extintiva, ou negativa, que extingue o direito do credor, aqui a prescrição cria, ou faz nascer um direito novo na esfera do seu beneficiário. 242 Veja-se Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 112. 71 posse, ou o regime jurídico aplicável. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má-fé, titulada ou não titulada, etc.) influem apenas no prazo. O art. 517º do Código Civil Português de 1867 estipulava que “a posse para o effeito da prescripção deve ser: 1º Titulada;243 2º De boa fé;244 3º Pacifica;245 4º Continua;246 5º Publica”. 247 O Código Civil Português de 1966 continha regime semelhante ao do atual Código Civil de Timor-Leste (art. 1287º). Ou seja a posse, para efeitos de usucapião pode ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada. Importa salientar, contudo, que no CCI a posse de má fé não confere direito à aquisição por usucapião ou, como se diz naquele código, por prescrição aquisitiva. Assim, no âmbito do CCI, para além de pública e pacífica, a posse tem que ser de boa fé. 243 “É posse titulada a que a que se funda em justo titulo; e diz-se justo titulo qualquer modo legtimo de adquirir, independentemente do direito do transmitente” (art. 518º). 244 “Posse de boa fé é aquella que procede de titulo cujos vicios não são conhecidos do possuidor. Posse de má fé é a que se dá na hipothese inversa” (art. 476º). Assim, para que a posse fosse de boa fé, no âmbito do Código Civil Portguês de 1867, seria sempre necessário que fosse titulada, não podia haver boa fé sem título (Ferreira, Codigo Civil Portuguez Anotado, vol. II, 1870, págs. 12-13). O que suscita alguma dificuldade é a circunstância de, por um lado, a posse se presumir de boa fé (art. 478º), sendo certo que o título não se presume, tendo a sua existência que ser provada por quem o invoca (art. 519º). A solução desta aparente contradição é apresentada por José Dias Ferreira: “A boa fé não se presume sem existir título, por que a boa fé consiste em se desconhecer os vícios do título”. Ou seja o que se presume é que o título não padece de vícios, mas quem invoca a boa fé na posse tem sempre que invocar e provar a existência do título. Como se verá adiante, não quer dizer que a prescrição não produzisse efeitos no caso de posse não titulada e, consequentemente, de má fé, conforme se pode verificar da leitura do art. 529º do Código Civil de Seabra. 245 “Posse pacifica é a que se adquire sem violência” (art. 521º). 246 “Posse continua é a que não tem sido interrompida” (art. 522º). 247 “Posse publica diz-se aquella que foi devidamente registada, ou tem sido exercida de modo que pode ser conhecida dos interessados” (art. 523º). O registo seria normal na posse de boa fé, uma vez que a mesma teria que ser titulada. 72 O instituto jurídico da posse, para efeitos de usucapião, não se confunde com a ocupação material da coisa. É necessário, como já se analisou supra, que essa ocupação revista em si mesma as características próprias do direito correspondente. É esta manifestação do direito que conduz à sua aquisição com o decorrer do tempo e não a mera ocupação da coisa. O que se visa com a prescrição, seja ela aquisitiva ou extintiva, é a segurança jurídica, a proteção do interesse social em estabelecer harmonia, justiça e segurança, dando fim a litígios e evitando que estes fiquem por tempo indefinido à disposição de alguém, se lhe fosse permitido muitos anos depois vir reclamar um direito seu que se perdeu no tempo, com a consequente dificuldade de reconstituição das provas que até poderão ter deixado de existir.248 Esta é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade e aquela que o ordenamento jurídico considera a mais relevante, pelo que requer que a posse tenha especiais características, que de algum modo a tornem digna do direito a que conduz.249 Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do 248 “A posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu e não a posse precária … a posse na sua força jurísgena aspira ao direito, tende a converter-se em direito. Daí que o ordenamento não somente a proteja, como a reconheça como um caminho para a dominialidade, reconstituindo-se através dela a própria ordenação definitiva. O que nela se homenageia é menos a posse em si do que o direito que a mesma indicia, que é a prefiguração do direito a cujo título se possui. Donde a exigência, em qualquer sistema possessório de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio – e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 20-9-2005, processo nº 05A1773, relator Fernandes Magalhães, in www.dgsi.pt/jstj). Acrescentase no acórdão, ainda do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 30-9-2004, “A situação jurídica de posse é, naturalmente, diversa da de mera detenção e a distinção tem essencialmente a ver com o animus envolvente. Trata-se de situações em que uma pessoa exerce um poder de facto sobre uma coisa sem a intenção de exercer o direito real correspondente ou, noutra perspectiva, de pessoa que, com base em negócio jurídico ou na lei, exerce poderes de facto sobre uma coisa no interesse de outrem, caso em que não adquire a posse verdadeira e própria, ou seja, em nome próprio, sem inversão do título da posse” (processo nº 04B2894, relator Salvador da Costa, in www.dgsi.pt/jstj). 249 Carvalho, Introdução à Posse, 1989/1990, pág. 67. 73 início da posse (art. 1208º do Código Civil e art. 1957º do CCI).250 É como se o direito existisse desde o início da posse. Como se houvesse coincidência inicial. Em contrapartida, morre o direito de propriedade anterior.251 A usucapião aproveita a todos os que podem adquirir (art. 1209º, nº 1, do Código Civil e arts. 538º do CCI).252 Assim, os incapazes podem adquirir por usucapião, tanto por si como por intermédio das pessoas que legalmente os representam (art. 1209º, nº 2, do Código Civil e arts. 539º do CCI).253 Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título, conforme referido supra (art. 1210º do Código Civil e art. 1959º do CCI).254 Vejam-se ainda os arts. 1173º, 1183º, al. d), e 1185º do Código Civil e o arts. 535º, 536º e 556º do CCI. A usucapião por um compossuidor relativamente ao objeto da posse comum aproveita igualmente aos demais compossuidores (art. 1211º do Código Civil). São aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 291º (nulidade dos negócios que modifiquem o 250 Art. 1288º do Código Civil Português de 1966. Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, 1981, pág. 154 (“Quando falamos de decadência do direito como forma de extinção objectiva referimo-nos aos casos em que um direito morre por formação de um direito incompatível, que prevalece sobre ele. É o que se passa na usucapião”). 252 Art. 1289º do Código Civil Português de 1966 e art. 510º do Código Civil Português de 1867. 253 Porém, só podem adquirir por si os bens susceptíveis de aquisição por ocupação, isto é, bens móveis. “Em vista da letra do Codigo póde sustentar-se que para adquirir a posse são competentes até os menores, comtanto que tenha uso de rasão, ao passo que para adquiri a propriedade pela prescripção são incompetentes os menores, ainda que tenham uso de rasão” (Ferreira, Codigo Civil Portuguez Anotado, vol. II, 1870, pág. 15), mas podem adquirir por intermédios dos seus representantes legais (art. 507º do Código Civil Português de 1867 e art. 1289º, nº 2, do Código Civil Português de 1966). 254 Art. 1290º do Código Civil Português de 1966 e art. 480º do Código Civil Português de 1867. 251 74 prazo de usucapião), 293º (possibilidade de renúncia à usucapião apenas depois de decorrido o respetivo prazo), 294º (necessidade de invocação da usucapião pelo beneficiário) e 296º (possibilidade de invocação da usucapião por terceiros) todos do Código Civil (art. 1212º do Código Civil e art. 1946º do CCI). Como já se referiu, estamos no âmbito da prescrição aquisitiva, que não deixa de ser um caso de prescrição. 8.2 Usucapião de imóveis Não podem adquirir-se por usucapião: a) As servidões prediais não aparentes; b) Os direitos de uso e de habitação (art. 1213º do Código Civil e arts. 552º e 556º do CCI).255 Conforme se viu supra, a posse para poder conduzir à aquisição do direito por usucapião tem de ser pública e pacífica, pelo que as servidões não aparentes estão excluídas, uma vez que não são públicas, não são conhecidas das pessoas. Desconhecendose o exercício dos atos materiais de posse não se pode atribuir relevância jurídica aos mesmos.256 255 Não existe disposição expressa de proibição da aquisição por usucapião do direito de uso e ocupação, mas ela parece resultar evidente do regime previsto nos seus arts. 818º a 829º, em especial do art. 827º. Para Alfredo Moraes de Almeida também o aforamento não era suscetível de aquisição por usucapião no âmbito do Código Civil Português de 1867, em virtude de a mesma não estar incluída nas formas de constituição previstas no art. 1655º (Almeida, Da Emphyteuse no Moderno Direito Civil Portuguez, 1898, pág. 64). Já o Código Civil Português de 1966 prevê a usucapião como forma de constituição do aforamento no seu artigo 1497º. 256 Veja-se igualmente o art. 1438º, nº 1, do Código Civil e o art. 699º do CCI. Art. 678º do CCI (“Pengabdian pekarangan tampak atau tidak tampak. Pengabdian pekarangan tampak adalah yang ada tanda-tanda lahiriahnya, seperti pintu, jendela, pipa air dan lain-lain semacam itu. Pengabdian pekarangan tidak tampak adalah yang tidak ada tanda-tanda lahiriah mengenai adanya, seperti larangan membangun di atas pekarangan, membangun lebih tinggi dari ketinggian tertentu, hak menggembalakan ternak dan lain-lainnya yang memerlukan suatu perbuatan manusiana”, versão em inglês: “Visible servitudes are those that are physically apparent such as a door, a window, a water pipe and other such similar objects. Invisible servitudes are those whose existence is imperceptible, such as the prohibition against building on a plot of land, or against building above a certain height, the right to graze cattle and other matters that require human involvement”). Art. 1438º, nº 2, do Código Civil, “Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes”. 75 Quanto ao direito de uso e habitação esta impossibilidade está relacionada com a sua natureza. O direito de habitação tem a natureza de afetação de satisfação de necessidades pessoais. O direito de habitação abrange o usus e o fructus, mas apenas na medida das necessidades pessoais do seu titular e da sua família. Este direito tem de se entender somente como abrangendo o morador usuário, tem de se pautar pelas suas necessidades pessoais, contrariamente ao usufruto em que a fruição e o uso são ilimitados.257 A usucapião, como qualquer outra situação de prescrição, não é de conhecimento oficioso, pelo que tem necessariamente que ser invocada pela pessoa a quem aproveita (art. 294º do Código Civil,258 aqui aplicável por remissão do art. 1212º, e art. 1950º do CCI).259 A questão que se coloca neste caso é a de saber se o direito de propriedade, adquirido por usucapião, pode ser invocado por quem já não é possuidor, mas foi possuidor do imóvel durante o prazo necessário para a sua verificação, tendo entretanto sido esbulhado pelo possuidor atual. Afigura-se que não, salvo o caso do esbulho violento. Isto resulta expressamente dos arts. 1955º e 1978º do CCI,260 mas também do art. 257 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 420. O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público. 259 “Hakim, karena jabatannya, tidak boleh menggunakan kedaluwarsa”, na versão em inglês: “The judge may not, officially, apply the means of prescription”. 260 “Untuk memperoleh hak milik atas sesuatu dengan upaya kedaluwarsa, seseorang harus bertindak sebagai pemilik sesuatu itu dengan menguasainya secara terusmenerus dan tidak terputus-putus, secara terbuka di hadapan umum, dan secara tegas”, na versão em inglês: “To acquire ownership of property by means of prescription, an individual must have continuous, uninterrupted, open and unequivocal possession” (art. 1955º) e “Kedaluwarsa dicegah bila pemanfaatan barang itu dirampas selama lebih dari satu tahun dari tangan orang yang menguasainya, baik oleh pemiliknya semula maupun oleh pihak ketiga”, em inglês:“Prescription shall be precluded if the owner, within a period of more than one year, has been denied the enjoyment of a matter, either by the previous owner, or by a third party” (art. 1978º). Lembre-se que a posse se perde através da posse de outrem por período superior a um ano (art. 545º, nº 1, do CCI). 258 76 1207º do Código Civil. Conforme é acentuado por José de Oliveira Ascensão, a posse prescricional é necessariamente uma posse efetiva, o que pressupõe um exercício atual do poder de facto sobre a coisa.261 Porém, para o mesmo autor, o possuidor causal262 poderá invocar a usucapião como forma de aquisição originária, se não tiver título bastante ou tiver perdido este.263 Conforme acentua Rui Pinto, “não se perceberia que o possuidor formal ganhasse com a invocação da usucapião e o possuidor causal, legítimo, não a pudesse invocar, ficando cingido ao título”.264 A invocação da usucapião tanto pode ocorrer judicial como extrajudicialmente.265 O que quer dizer que o possuidor que pretenda invocar a usucapião não tem que intentar ação judicial para esse efeito, mas terá que a invocar, nomeadamente perante o atual possuidor, no caso de ter sido esbulhado.266 A invocação extrajudicial da usucapião pode ser feita de qualquer forma,267 embora assuma particular relevância a escritura pública.268 Para o Código Civil, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art. 1217º do Código Civil)269. O que significa que o possuidor esbulhado ainda pode invocar a usucapião (judicial ou extrajudicialmente) até um ano após ter cessado a violência, ainda que não exerça poder de facto 261 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 297-298. Não tem, no entanto, que ser exercida pessoalmente pelo possuidor, podendo sê-lo por interposta pessoa. 262 A pessoa que tem um título de propriedade mas não a posse. 263 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 94-95 e 104. 264 Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 547. 265 Judicialmente pode ser invocada, por exemplo, em acção de reivindicação, ou em defesa por excepção na acção contra si intentada. 266 Art. 294º do Código Civil e art. 1950º do CCI. 267 Duarte, Curso de Direitos Reais, 2007, pág. 295. 268 A este propósito veja-se a escritura de justificação notarial, prevista nos arts. 72º-A e 73º-A do Regime Jurídico do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei nº 3/2004, de 4 de Fevereiro, introduzidos pelo Decreto-Lei nº 24/2009, de 26 de Agosto. 269 No caso de posse oculta, ela só assume relevância jurídica depois de se tornar pública. Quanto à posse violenta, ela não perde a sua característica de “posse violenta”, mesmo cessando a violência, mas pode a mesma conduzir à verificação da prescrição aquisitiva (ou usucapião), desde que decorra o prazo da posse de má fé a contar da data da cessação da violência. 77 sobre o imóvel.270 No âmbito do CCI, porém, no caso de o possuidor ter sido esbulhado com violência a sua posse mantém-se sem limite de prazo (ou seja o primitivo possuidor nunca perde a posse, embora perca o domínio sobre a coisa), ainda que cesse a violência, pelo que pode a todo o tempo invocar a prescrição, enquanto se mantiver a posse do esbulhador com violência.271 A prescrição pode ser invocada judicialmente mesmo em sede de recurso (art. 1951º do CCI). Importa, porém, ter presente que a citação do réu possuidor para ação de reivindicação da propriedade do imóvel que ele possui interrompe o prazo prescricional (art. 314º, nº 1, do Código Civil e art. 1980º do CCI). 8.3 Prazos de usucapião 1. Código Civil Português de 1867 A matéria encontrava-se regulada nos arts. 526º a 529º nos seguintes termos: No caso de registo da mera posse o prazo era de cinco anos (art. 526º, § 1º). A mera posse só podia ser registada se existisse sentença, transitada em julgado, que declarasse que o autor possuía o imóvel de forma pública pacífica e contínua há mais de cinco anos (art. 524º do Código Civil Português de 1867). Só depois do trânsito da sentença se poderia proceder ao registo da mera posse, mediante certidão da mesma, ocorrendo a prescrição (ou usucapião) decorrido o prazo de cinco anos, agora sobre a data do registo. O que na prática resulta que o prazo seria sempre superior a dez anos a contar da data do início da posse. Havendo registo do título de aquisição, o prazo de usucapião era de dez anos, igualmente a contar da data do registo (art. 526º, § 2º). Importa aqui lembrar que apenas a posse titulada era considerada de boa fé para o Código Civil Português de 1867. Pressupondo igualmente que o título fosse formalmente válido, ou, não o sendo, desconhecendo o possuidor os vícios do mesmo (art. 476º). Existindo título o mais natural 270 271 78 Conforme o art. 1187º, nº 1, al. d), do Código Civil. Arts. 568º e 536º do CCI. seria que se procedesse ao registo do mesmo. No caso de a sentença de mera posse ou do título de aquisição sofrerem de qualquer vício, nomeadamente que os tornasse nulos ou anuláveis (aqui se incluindo o vício de forma do título), mas mesmo assim tivessem sido registados, então a prescrição positiva, ou aquisitiva, ocorreria passados dez anos sobre os prazos referidos anteriormente, mesmo que o possuidor conhecesse de tais vícios, ou seja, ainda que se verificasse má fé do possuidor (art. 527º).272 Não existindo registo da posse ou do título, no caso da posse de boa fé (que, lembre-se, pressupõe sempre a existência de um título), o prazo de usucapião era de quinze anos (art. 528º).273 E no caso de má fé o prazo era de trinta anos (art. 529º).274 2. Código Civil Português de 1966 Nos termos do Código Civil Português de 1966 a usucapião ocorria do seguinte modo: Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião teria lugar: a) Quando a posse, sendo de boa fé, tivesse durado por dez anos, contados desde a data do registo; ou b) Quando a posse, ainda que de má fé, tivesse durado quinze anos, contados da mesma data (art. 1294º).275 Se o possuidor dispusesse de título, ainda que substancialmente inválido, por exemplo por o vendedor não ser o proprietário do imóvel, a aquisição do direito por usucapião poderia ocorrer decorridos dez anos sobre a data do registo, se o possuidor ignorava que lesava o direito de 272 Este preceito relembra ainda a necessidade da inversão do título da posse para que o detentor do imóvel em nome de outrem possa invocar a posse, a qual só se inicial com tal inversão. 273 Trata-se aqui do caso de o possuidor ter um título e não proceder ao registo do mesmo. Repare-se que o prazo é aqui inferior ao que resulta da posse com registo do título mas com má fé do possuidor (que seria de pelo menos vinte anos, nos termos dos arts. 526º e 527º). 274 Está aqui incluída a situação de posse sem qualquer título, independentemente de o possuidor conhecer ou não que viola o direito de outrem. O que distingue a posse de boa fé da de má fé é a existência ou inexistência do título. 275 Lembre-se que o título tem que ser formalmente válido, embora possa ser substancialmente inválido (art. 1259º). 79 outrem (art. 1260º, nº 1), nomeadamente por ignorar a invalidade substancial do título, ou decorridos quinze anos ainda que conhecesse que lesava o direito de outrem. A publicidade resultante do registo justifica esta especial proteção da posse titulada. Se não existisse título, podia ainda ocorrer registo da mera posse nos termos referidos supra.276 Neste caso (registo de mera posse), a usucapião podia dar-se decorridos cinco anos, contados desde a data do registo, se fosse de boa fé277 (art. 1295º, nº 1, al. a)), ou decorridos dez anos, a contar da mesma data, ainda que não fosse de boa fé278 (art. 1295º, nº 1, al. b)). Não havendo registo, quer do título (ainda que este existisse), quer da mera posse (ainda que existisse sentença declarando-a), a usucapião só podia ocorrer decorridos quinze anos, se a posse fosse de boa fé, ou vinte anos, se fosse de má fé (art. 1296º). Se a posse tivesse sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começavam a contar-se desde que cessasse a violência ou a posse se tornasse pública (art. 1297º). 3. Código Civil Indonésio (CCI)279 Ao abrigo deste regime, os prazos de prescrição ocorrem nos 276 Mais uma vez o registo da mera posse tem de ser precedido de sentença passada em julgado, na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não inferior a cinco anos (art. 1295º, nº 2, do Código Civil Português de 1966). 277 Com ignorância de lesar o direito de outrem. 278 Ainda que com conhecimento de lesar o direito de outrem. 279 Embora se utilize esta expressão por ser comum entre os juristas nacionais e por facilidade de compreensão do objecto, importa não esquecer que o CCI, na versão que vigorava a 25 de Outubro de 1999, constitui legislação nacional, por ter sido recebida internamente pela Constituição e pela lei ordinária nos termos referidos no Título I, Capítulo II, al. f), nota 13. Pelo que verdadeiramente falamos do Código Civil Timorense (nem faz sentido referir que a legislação aplicada em território nacional é estrangeira, embora tal possa ocorrer segundo as normas de direito internacional privado). Assim, falamos de legislação timorense que como tal deve ser considerada e respeitada e que não coincide necessariamente com a legislação vigente no território da indonésia, uma vez que as alterações ocorridas após a aludida data de 25 de Outubro de 1999 na legislação indonésia não se aplicam em Timor-Leste. 80 seguintes termos: a) decorridos vinte anos para o possuidor e boa fé que tenha um título legítimo de aquisição; ou b) decorridos trinta anos para os restantes possuidores de boa fé (art. 1963º do CCI). Também será de trinta anos o prazo de prescrição para a posse titulada, no caso de o título ser formalmente inválido (art. 1964º do CCI). Como já se referiu, presume-se a existência de boa fé na posse (art. 1965º do CCI), sendo ainda suficiente que a boa fé exista aquando da aquisição da posse (art. 1966º do CCI), pelo que pode haver má fé posterior (no sentido de se vir a tomar conhecimento da violação do direito de outrem) sem que seja afetado o direito de prescrição. O CCI não prevê a hipótese de registo da mera posse.280 Mas, como é óbvio, pode haver registo do título que confere a posse. Como já se referiu, sendo o título formalmente válido, em princípio nada obstará a que se proceda ao registo do mesmo, salvo se ocorrer violação do trato sucessivo do registo.281 O CCI, porém, não dá qualquer tipo de privilégio ao registo desta posse titulada, mantendo-se o prazo de vinte anos, independentemente do registo. No CCI o possuidor de má fé não pode adquirir por usucapião (art. 549º do CCI).282 Por maioria de razão, não se permite a aquisição do direito no caso da posse constituída com violência, ainda que a mesma violência venha a cessar (arts. 536º e 568º do CCI). 4. O Código Civil de Timor-Leste O regime é em tudo semelhante ao que vigorava no âmbito do Código Civil Português de 1966. Assim, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar: a) Quando a posse, sendo de boa fé, tiver durado por dez anos, contados desde a data do registo; 280 Ou seja, para efeitos de determinar se a posse é titulada não exige o CCI o registo, embora o exija, como se viu, para a transmissão válida do direito de propriedade. 281 Por exemplo a pessoa que consta como vendedora na escritura pública de compra e venda não ser a que consta como titular do direito de propriedade no registo. 282 A boa fé traduz-se na ignorância de violar direito de outra pessoa (art. 531º do CCI). 81 b) Quando a posse, ainda que de má fé, houver durado quinze anos, contados da mesma data (art. 1214º do Código Civil).283 O título, relembra-se, tem que ser formalmente válido (ou seja, no caso dos imóveis, tem de se tratar de uma escritura pública), embora possa ser substancialmente inválido (art. 1181º do Código Civil). Não havendo registo do título de aquisição, mas registo da mera posse, a usucapião tem lugar: a) Se a posse tiver continuado por cinco anos, contados desde a data do registo, e for de boa fé; b) Se a posse tiver continuado por dez anos, a contar da mesma data, ainda que não seja de boa fé (art. 1215º, nº 1, do Código Civil). Conforme se referiu já nos outros casos em que se previa o registo da mera posse, este registo só pode ocorrer em vista de sentença passada em julgado, na qual se reconheça que o possuidor tem posse pacífica e publica por tempo não inferior a cinco anos (art. 1215º, nº 2, do Código Civil).284 Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (art. 1216º do Código Civil). Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art. 1217º do Código Civil). 8.4 Acessão na posse A acessão, bem como a sucessão na posse podem ser determinantes na verificação do prazo da prescrição aquisitiva, ou usucapião. Esta situação já foi analisada supra, no Título II, Capítulo II, c), para onde se remete. 283 Também aqui a boa fé se traduz na ignorância de violar direito de outra pessoa (art. 1182º, nº 1). 284 Valem aqui as considerações tecidas anteriormente sobre a matéria. 82 8.5 Contagem dos prazos no caso de sucessão de leis Esta matéria é de particular relevância, uma vez que os cidadãos nacionais timorenses estão sujeitos a quatro regimes jurídicos distintos durante um período inferior a meio século. Sobre este assunto estabelece o art. 288º, nº 1, do Código Civil, que a lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar. Mais estabelece o nº 2 do mesmo artigo que a lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial.285 A prescrição é sempre um instituto de direito substantivo, não podendo ter aplicação uma norma que fixa prazo de prescrição mais reduzido aos casos que antecedem a sua entrada em vigor (art. 11º do Código Civil). Ou seja, a parte não pode ser surpreendida por uma norma nova que venha reduzir o prazo de prescrição, e que dessa forma o impeça definitivamente de vir a exercer o seu direito. Importa aqui analisar a questão controversa do regime aplicável em Timor-Leste na sequência da invasão indonésia. Por acórdão do Tribunal de Recurso de 15-7-2003286, fixou-se a doutrina que “juridicamente a administração indonésia, bem como a legislação indonésia, nunca vigoraram validamente no território de Timor-Leste”, assim se concluindo que a legislação que sempre vigorara em Timor-Leste era a legislação portuguesa (“A legislação vigente em Timor-Leste antes de 25 de Outubro de 1999 só podia ser aquela que, de acordo com os princípios do direito internacional, estava legitimamente em vigor nesse território”). A decisão teve voto 285 O Código Civil Português de 1966 continha regime idêntico no seu art. 297º. Já o CCI não contém disposição semelhante, embora se entenda que devem aqui valer os mesmos princípios. 286 Processo 18/2003/TR, relator Cláudio Ximenes. 83 de vencido da juíza Jacinta Correia da Costa, a qual entendia que a legislação indonésia passara a vigorar no território de Timor-Leste após a invasão do território pela República da Indonésia. Aquela posição foi exaustivamente reafirmada pelo Tribunal de Recurso nos acórdãos que se seguiram, sempre com voto de vencido da juíza Jacinta Correia da Costa,287 até à publicação da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, sobre a interpretação do art. 1º da Lei nº 2/2002, de 7 de Agosto. Com esta interpretação legal terminou a querela jurisprudencial ficando definitivamente assente que a legislação a considerar como legislação aplicável no território de Timor-Leste era a legislação indonésia. Alude o referido art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, a toda a legislação indonésia que era aplicada e vigorava de facto em Timor-Leste, antes do dia 25 de Outubro de 1999. Como é sabido a Indonésia invadiu Timor-Leste em 7 de Dezembro de 1975. Em 17 de Dezembro de 1975, as autoridades indonésias constituíram um governo provisório de Timor-Leste. Porém, só em 17 de Julho de 1976 foi emitida a declaração do Presidente de República da Indonésia que integrou o território de Timor-Leste na República da Indonésia. 287 A título meramente exemplificativo acórdão de 18-7-2003 (processo 2/2002, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 18-7-2003 (processo 10/2003, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 18-7-2003 (processo 13/2002, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 23-7-2003 (processo 12/2003, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 23-7-2003 (processo 11/2002, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 12-8-2003 (processo 30/2001, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 12-8-2003 (processo 11/2001, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 11-9-2003 (processo 1A/2002, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 2-10-2003 (processo 2/2003, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 10-10-2003 (processo 20/2001, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 16-10-2003 (processo 31/2001, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 11-11-2003 (processo 10/2002, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 17-11-2003 (processo 54/2003, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 17-11-2003 (processo 8/2003, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 18-11-2003 (processo 30/2003, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 18-11-2003 (processo 8/2002, relator José Maria Calvário Antunes), acórdão de 21-11-2003 (processo 17/2002, relator Cláudio Ximenes), acórdão de 18-11-2003 (processo 30/2003, relator José Maria Calvário Antunes) e acórdão de 10-12-2003 (processo 45/2003, relator José Maria Calvário Antunes). 84 A primeira questão que se coloca consiste em saber se a legislação indonésia é apenas considerada como legislação timorense após a data de 25 de Outubro de 1999, ou se a mesma deve ser considerada como legislação igualmente aplicável no território antes de tal data, e portanto relevante para apreciação das questões jurídicas relativas ao período que a antecede. Afigura-se evidente que a intenção do legislador foi precisamente conferir relevância à legislação indonésia, validando a aplicação da mesma durante o período da ocupação. Neste sentido pronunciou-se o acórdão do Tribunal de Recurso de 1 de Junho de 2012,288 no qual se esclareceu serem de particular relevância razões de segurança jurídica. Importa não esquecer que inúmeros actos jurídicos foram praticados ao abrigo da legislação indonésia, cuja validade poderia passar a ser questionada se prevalecesse o entendimento maioritário deste Tribunal de Recurso. A segunda questão consiste em saber a partir de que data se deve considerar a vigência da legislação indonésia no território de TimorLeste. Nos termos do art. 1º, nº 2, da Constituição, o dia 28 de Novembro de 1975 é o dia da Proclamação da Independência da República Democrática de Timor-Leste, o que significa que o regime jurídico aplicável no território nacional será aquele que o legislador nacional definir. Não por virtude da ocupação ilegal do território pela República da Indonésia, mas sim por decisão soberana do Estado timorense. Conforme decidido no aludido acórdão, o que o art. 165º da Constituição e o art. 1º da Lei nº 2/2002, de 7 de Agosto, na interpretação dada pela Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, fizeram foi … determinar qual é a legislação nacional, que deve considerarse vigorar no território nacional desde a data da proclamação da independência, a que se seguiu imediatamente as ocupação de facto pelas forças indonésias. E essa opção recaiu sobre a legislação que vigorava no território da República da Indonésia até 25 de Outubro de 1999. Ainda que não se sufrague este entendimento, a referência à 288 Processo nº 05/Cível/Apelação/2012/TR, relator Rui Penha. 85 vigência de facto feita no referido art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, sempre levará à conclusão que se tem por vigente o regime jurídico indonésio no território de Timor-Leste, pelo menos desde a data da constituição do governo provisório de Timor-Leste em 17 de Dezembro de 1975. Concluiu, assim, o referido acórdão que é legislação timorense a legislação indonésia (ou melhor dizendo de origem indonésia), com as diversas alterações produzidas até 25 de Outubro de 1999 (o que, como já se referiu, se entende por ser esse o regime que regulou as relações jurídicas do território nacional até tal data), permanecendo este regime em vigor após 25 de Outubro de 1999, mas na versão vigente a tal data. A legislação identificada nas disposições referidas não é legislação indonésia (actualmente a legislação indonésia será diferente da que existia naquele país em 25 de Outubro de 1999), mas sim legislação timorense, através da sua recepção por órgão de soberania nacional. 8.6 Alguns casos de eventual aquisição do direito de propriedade por usucapião 1. Posse de boa fé (necessariamente titulada)289, iniciada antes de 1 de Janeiro de 1968: Havendo registo do título de aquisição, o prazo de usucapião é de dez anos, a contar da data do registo (art. 526º, § 2º, do Código Civil Português de 1867). Este prazo (de dez anos) foi mantido pelo Código Civil Português de 1966, a partir de 1-1-1968 (art. 1294º do Código Civil Português de 1966), pelo que nenhuma alteração se verificaria com a sucessão de leis. O prazo seria sempre de dez anos a contar da data do registo do título.290 A questão complica-se no caso de à data da entrada em vigor do CCI o prazo prescricional ainda não ter decorrido. O que acontece se o título de posse tiver sido registado entre 17-12-1965 e 31-12-1967. Uma 289 Art. 476º do Código Civil Português de 1987. Sendo o prazo idêntico tudo se passa como se não houvesse alteração. O art. 297º do Código Civil Português de 1966 apenas regula os casos em que o prazo passa a ser diferente, precisamente porque mantendo-se nada se altera em termos do seu cômputo. 290 86 vez que o regime jurídico indonésio se iniciou, conforme visto, em 1712-1975, não teria decorrido o aludido prazo de dez anos previsto, quer no Código Civil Português de 1966, quer no Código anterior a este (o Código Civil Português de 1867). Neste caso, o prazo a considerar passaria a ser de vinte anos, conforme previsto no CCI, no seu art. 1963º, embora se contasse desde a data da posse titulada e não desde o registo do título, uma vez que por este novo regime o registo deixou de ter relevância para a determinação do prazo de prescrição aquisitiva. 2. Posse de má fé (ou seja, não titulada)291, iniciada antes de 1 de Janeiro de 1968: Neste caso o prazo de posse para efeitos de usucapião era de trinta anos. No entanto, com a entrada em vigor do Código Civil Português de 1966, em 1 de Janeiro de 1968, aquela posse de má fé poderia passar a ser considerada de boa fé, uma vez que, ainda que o possuidor não tivesse o título que o Código anterior exigia para que se considerasse a posse de boa fé, agora, ao abrigo do novo regime, bastaria que o possuidor ignorasse, aquando da aquisição da posse, que lesava o direito de outra pessoa (art. 1260º, nº 1, do Código Civil Português de 1966). Assim, o prazo de usucapião para esta posse de boa fé passaria a ser de apenas quinze anos (art. 1296º). Porém, o novo prazo para a posse de boa fé (qualificação que nasceu com a entrada em vigor do novo Código) terá que se contar somente a partir de 1-1-1968.292 E, uma vez que o Código Civil Português de 1966 apenas esteve em vigor em Timor-Leste por escassos oito anos (de 1-1-1968 a 17-12-1975), a usucapião nunca se teria verificado durante tal período, por ser período temporal inferior a quinze 291 Art. 476º do Código Civil Português de 1987. A posse titulada também era considerada de má fé se o possuidor conhecesse os vícios substanciais do título, como por exemplo se conhecesse que quem lhe transmitira o imóvel não era o seu proprietário (embora aqui, e no caso de haver registo do título, o prazo fosse inferior, conforme referido supra em c). 292 Sobre o assunto veja-se o acórdão do Tribunal de Recurso de 3-3-2011, processo nº 07/Cível/2005/TR, relator Rui Penha. 87 anos. Posteriormente, com entrada em vigor do novo regime do CCI, o prazo de posse para a verificação da prescrição aquisitiva passou a ser novamente de trinta anos (art. 1963º do CCI). Assim, na hipótese de se ter conservado a posse, e considerando que o prazo de usucapião começou a contar somente em 1 de Janeiro de 1968, com a entrada em vigor do Código Civil Português de 1966, só nessa altura a posse passou a ser tida como de boa fé, pelo que a usucapião apenas poderia verificarse em 2-1-1998.293 Daqui resulta que, se o possuidor tiver posse não titulada e souber que a sua posse viola o direito de outra pessoa, então a posse será sempre considerada de má fé, pelo que o prazo terá que se verificar sempre antes da entrada em vigor do CCI, uma vez que o CCI não reconhece a posse de má fé para efeitos de prescrição aquisitiva, ou usucapião. A curta vigência do Código Civil Português de 1966 não permitiu a aplicação do prazo ali previsto (o prazo era de vinte anos, nos termos do art. 1296º, no entanto o Código vigorou apenas por nove anos e meio).294 Então o prazo para que se pudesse considerar verificada a usucapião teria que terminar antes da entrada em vigor do CCI, contando-se desde a data do início da posse. Efetivamente, com a entrada em vigor do CCI deixou de se poder considerar a posse de má fé para efeitos de aquisição do direito. 3. Posse de boa fé295 no âmbito do Código Civil Português de 1966, entre 1 de Janeiro de 1968 e o início da vigência do regime jurídico indonésio a 17 de Dezembro de 1975: Dado o escasso período de vigência do Código, como se viu, nunca se poderia verificar o decurso do prazo nele previsto necessário 293 Lembre-se que pelo CCI a posse de má fé não permitiria a verificação da usucapião. Importa recordar que o novo prazo, por ser inferior, só se iniciaria com a entrada em vigor do Código (art. 297º, nº 1, do Código Civil Português de 1966). 295 Com ignorância de violar o direito de outrem (art. 1260º, nº 1, do Código Civil Português de 1966). 294 88 para que pudesse ocorrer a usucapião de um bem imóvel.296 Ou seja, com a posterior entrada em vigor do CCI, o prazo a considerar será sempre o previsto neste Código, isto é, trinta anos a contar do início da posse. Como já se viu,297 o prazo mais curto do Código Civil Português de 1966 só se inicia com a entrada em vigor do Código,298 e este vigou por tempo inferior ao prazo necessário para ocorrência da usucapião, pelo que neste caso o prazo novo do CCI aplica-se, contando-se a partir do início da posse. 4. Posse de má fé299 no âmbito do Código Civil Português de 1966, iniciada entre 1 de Janeiro de 1968 e a integração do território na Indonésia em 17 de Dezembro de 1975: No âmbito do Código Civil Português de 1966 o possuidor de má fé poderia adquirir o direito por usucapião, desde que decorridos vinte anos a contar do início da posse (art. 1296º). No entanto, com a entrada em vigor do CCI, a usucapião deixou de ser reconhecida relativamente à posse de má fé. Como aquele prazo de vinte anos é mais longo que o período de vigência do Código Civil Português de 1966, a usucapião nunca poderia ter ocorrido. 5. Posse de boa fé,300 no âmbito do CCI,301 ou seja, iniciada após 17 de Dezembro de 1975: Nenhuma complexidade se verifica neste caso.302 Se a posse for 296 A menos que se tratasse de uma mera posse registada (art. 1295º, nº 1, al. a), do Código Civil Português de 1966). 297 Capítulo 8.5. 298 1 de Janeiro de 1968. 299 Com ignorância de violar o direito de outrem (art. 1260º, nº 1, do Código Civil Português de 1966). 300 Com ignorância de violar o direito de outrem (art. 531º do CCI). 301 Como já se referiu, o CCI não admite a possibilidade de aquisição do direito de propriedade por prescrição aquisitiva no caso de posse de má fé, pelo que tal hipótese não será considerada. 302 Relembra-se que só a posse de boa fé (e nunca a de má fé) é susceptível de conduzir à aquisição do direito por prescrição aquisitiva. 89 titulada303 o prazo será de vinte anos, a contar do seu início, e se não for titulada será de trinta anos. 6. Posse de boa fé304 iniciada durante a vigência do CCI, mas cujo termo se verifica após a entrada em vigor do Código Civil para Timor-Leste. Para a hipótese mais comum de ausência de título e de registo, o Código Civil prevê um prazo de prescrição de quinze anos, para que se possa invocar a usucapião (art. 1216º). Como se viu, no âmbito do CCI tal prazo é de trinta anos (art. 1963º). Assim, por aplicação da regra do art. 288º, nº 1, ainda do Código Civil, devem contar-se dois prazos: um prazo de trinta anos a contar do início da posse (prazo do CCI) e um prazo de quinze anos a contar da data de entrada em vigor do Código Civil. A prescrição aquisitiva, ou usucapião, ocorrerá na data em que primeiro terminar qualquer dos aludidos prazos. Por exemplo: supondo que o Código Civil, na parte relativa aos imóveis, entra igualmente em vigor em 12-3-2012 e que a posse se iniciou em 3-5-2000. Teremos primeiro que considerar o prazo de trinta anos previsto no art. 1973º do CCI, pelo que a prescrição ocorreria em 4-5-2030 (30 anos + 3-5-2000). Seguidamente considera-se o novo prazo de quinze anos a contar da entrada em vigor do Código Civil, pelo qual o termo do prazo se verificará em 13-3-2027 (15 anos + 2012).305 A usucapião verificar-se-á na data mais próxima, ou recente, 123-2027, aplicando-se assim o novo regime. 303 Mais uma vez, para ser titulada a posse tem que fundar-se num título formalmente válido (art. 1964º do CCI). 304 Com ignorância de violar o direito de outrem (art. 1180º, nº 1, do Código Civil). 305 O novo prazo nunca terminará antes de decorridos os quinze anos sobre a data de início da vigência do novo Código. 90 7. Posse de má fé306 iniciada durante a vigência do CCI. O Código Civil de Timor-Leste prevê a possibilidade de aquisição do direito sobre o imóvel correspondente à posse, ainda que esta seja de má fé (art. 1216º),307 sendo o prazo de vinte anos. Uma vez que o CCI excluía tal possibilidade no seu regime para o possuidor de má fé, o prazo só se inicia com a entrada em vigor do novo Código. 8. Aforamento:308 O alvará de aforamento concedido pela administração colonial portuguesa tem sido invocado com frequência, junto dos tribunais judiciais, como forma de aquisição do direito de propriedade. Sobre este assunto pronunciou-se o Tribunal de Recurso no acórdão de 23 de Setembro de 2010,309 concluindo que o alvará de aforamento não constitui meio de aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel. A questão que interessa apreciar, também analisada naquele acórdão, consiste em saber da possibilidade de aquisição do direito de propriedade mediante usucapião em consequência do alvará de aforamento. Conforme se afirma no referido acórdão, citando a sentença ali em apreciação, “o aforamento, também designado por aprazamento ou enfiteuse, consiste no desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, directo e útil, dando lugar ao pagamento de um foro pelo titular do domínio útil ao senhorio, ou titular do domínio directo”. Embora o aforamento se aproxime muito do direito de propriedade o enfiteuta possui apenas o chamado domínio útil, com poder jurídico 306 Com consciência de se violar o direito de outrem (art. 1180º, nº 1, do Código Civil). Admite-se mesmo a usucapião nos casos de posse adquirida por violência (art. 1217º), iniciando-se o prazo após o termo da violência (art. 1187º, nº 2, do Código Civil). 308 O aforamento, também conhecido por emprazamento ou enfiteuse, será aqui analisado apenas na perspectiva da sua relevância para efeitos de usucapião, deixando o estudo, ainda que breve, do instituto para momento posterior. 309 Processo nº 01/Cível/Apelação/2009/TR, relator Rui Penha. No mesmo sentido pronunciou-se igualmente o já referido acórdão de 1 de Junho de 2012, processo nº 05/Cível/Apelação/2012/TR, relator Rui Penha. 307 91 sobre coisa de outrem, podendo usufruir do bem de forma completa, aliená-lo a título oneroso ou gratuito, transmitir o mesmo por sucessão hereditária. No entanto, o senhorio mantém sempre o domínio direto, pelo que não se pode considerar que o enfiteuta (ou foreiro) seja o proprietário do imóvel. Ainda assim, a aquisição do direito de propriedade por usucapião pode ocorrer, mas apenas nas hipóteses em que tenha ocorrido inversão do título.310 Ou seja, o foreiro deixa de se comportar como tal (como mero foreiro) passando a agir como proprietário, fazendo-o por forma a tornar tal intenção conhecida do senhorio, o titular do domínio direto. O alvará de aforamento era concedido pela administração colonial portuguesa e o domínio direto pertencia ao Estado Português, pelo que transmitiu-se para o Estado Indonésio após a integração do território nacional na República da Indonésia. Sendo assim, coloca-se a questão de saber quando se poderia verificar a inversão do título da posse. Tirando alguma situação excecional a inversão só poderia ser invocada com a derrocada da administração colonial, ocorrida na sequência da invasão de Timor-Leste pelas forças indonésias a 7-121975. Efetivamente, deixando de haver titular do domínio útil, poderia considerar-se assim invertido o título da posse. Porém, o regime jurídico indonésio não admitiu tal possibilidade. Confrontado com a necessidade de resolver uma realidade jurídica que não tinha consagração no seu próprio ordenamento jurídico,311 o Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 1991, procedeu à conversão do direito de aforamento de terreno urbano concedido pela administração colonial portuguesa em direito de uso de estruturas (Hak Guna-Bangunan) por um período de 310 O titular do alvará de aforamento detém posse apenas sobre o domínio útil e não sobre o domínio directo, pelo que é possuidor apenas daquele e não deste, não podendo adquiri o direito de propriedade plena, a menos que tenha ocorrido inversão do título de posse (veja-se o Título II, Capítulo I, supra). 311 Uma vez que o CCI não previa a figura do aforamento e o mesmo encontrava-se excluído da Lei Agrária de 1960, no art. 3º, nº 2. 92 vinte anos.312 Como se pode constatar, ainda que se pudesse aceitar a aludida inversão do título de posse, a conversão do aforamento, com a consequente extinção do mesmo, ocorreu antes de terminado o prazo de prescrição aquisitiva previsto no art. 1963º do CCI. Assim, não se pode considerar a aquisição do direito de propriedade sobre um imóvel, por usucapião, na sequência de um alvará de aforamento concedido pela administração colonial portuguesa, a menos que o possuidor demonstre a inversão do título da posse acorrida com antecedência superior a trinta anos sobre o referido Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991. 9. Contrato-promessa de compra e venda: Esta matéria tem particular interesse, uma vez que a celebração do contrato-promessa de compra e venda de imóvel é frequentemente utilizada como forma de contornar as dificuldades de realização da escritura pública, por não haver notários oficiais em número suficiente e com a necessária abrangência territorial, e dadas as dificuldades do registo. Contrato-promessa é o contrato mediante o qual as partes apenas se obrigam a celebrar certo contrato (art. 345º, nº 1, do Código Civil).313 No contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel a única obrigação dos contraentes consiste na celebração futura de um outro contrato (de compra e venda de imóvel). É, pois, óbvia a conclusão de que o contrato-promessa de compra e venda não tem a virtualidade de transmitir o direito de propriedade para o promitente-comprador, uma vez que apenas obriga o promitente vendedor a proceder futuramente a tal transferência através do contrato prometido, a escritura pública de 312 O “direito de uso de estruturas” encontra-se regulado na secção V (arts. 35º a 40º) da Lei de Bases Agrária (UNDANG-UNDANG POKOK AGRARIA – UUPA), aprovada pela Lei nº 5 de 1960. 313 Este tipo contratual não se encontra especialmente regulado no CCI mas é obviamente admissível com base no princípio da liberdade contratual, consagrado, entre outros, nos arts. 1233º, 1234º e 1313º do CCI. Como se pode ver embora não exista uma disposição específica relativamente à liberdade contratual, ela está bem patente em toda a parte relativa às obrigações contratuais no CCI. 93 compra e venda do aludido imóvel, sendo ainda seguro que nunca poderia operar a transmissão do direito se não for observada a forma exigida pela lei.314 A questão coloca-se relativamente à admissibilidade de usucapião no caso, muito frequente, de se entregar o imóvel ao promitente-comprador, que o passa a fruir, aquando da celebração do contrato-promessa. Esta forma contratual, como já se referiu, tem sido utilizada como meio de contornar a dificuldade de realização da compra e venda de imóveis mediante o formalismo estabelecido na lei. Nestes casos, uma vez que para o contrato-promessa de compra e venda de imóveis o CCI não prevê qualquer forma especial,315 usa-se a forma de contrato celebrado por escrito particular, nomeadamente com intervenção de um ou mais advogados, que as partes têm o cuidado de apelidar de contrato-promessa de compra e venda, para transmitir o imóvel ao promitente-comprador, o qual paga na forma de sinal316 o valor correspondente à totalidade do preço ao promitente-vendedor. A discussão doutrinal levantada em redor desta questão começa na determinação se o promitente-comprador é possuidor, ou se será mero detentor. Usufruindo do imóvel na sequência de um contrato promessa, deve considerar-se o promitente-comprador mero detentor, uma vez que usufrui o imóvel por mera tolerância do promitentevendedor e não por que se considere já proprietário do mesmo, sabendo o promitente-comprador que só com a celebração do contrato definitivo (ou prometido) se tornará proprietário.317 314 Veja-se supra o Título I, Capítulo III, a propósito do registo. O Código Civil prevê que, no caso de promessa de compra e venda de bens imóveis, o contrato seja celebrado por escrito (art. 345º, nº 2), prevendo-se ainda um formalismo mais apertado no caso da promessa de compra e venda de edifícios ou fracção autónoma do mesmo (art. 345º, nº 3), formalismo ainda mais difícil de concretizar em Timor-Leste que a celebração da própria escritura. 316 Designação que se dá ao valor que o promitente-comprador entrega ao promitente vendedor como antecipação do preço, e que constitui garantia do cumprimento do contrato (arts. 376º e 377º do Código Civil). 317 Neste sentido Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 2003, pág. 48, e Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124º, Coimbra: Coimbra Editora, 1991, pág. 347 (“os poderes que o promitente-comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao 315 94 Porém, se na sequência do contrato-promessa se verifica a entrega do imóvel acompanhada de um sinal equivalente à totalidade do preço, existe um verdadeiro contrato de compra e venda do imóvel, que apenas carece de futura formalização de acordo com as exigências legais, tendo a doutrina vindo a aceitar que, nestes casos, o promitentecomprador passa a exercer posse sobre o imóvel.318 Embora não se trate de posse titulada,319 será, em princípio, posse de boa fé, podendo verificar-se a usucapião assim que decorrido o decurso do respetivo prazo, conforme analisado supra. Acresce que, se o promitente-vendedor era possuidor de boa fé, o contrato-promessa poderá constituir igualmente meio para transmissão de tal posse, pelo que o promitente-comprador poderá beneficiar do prazo da posse daquele.320 10. Propriedade resolúvel: Os contratos de venda de casas em propriedade resolúvel pelo Estado (também conhecidos por renda resolúvel) encontravam-se consagrados no art. 2º do Decreto-Lei nº 23 052, de 23 de Setembro de 1933,321 como forma de providenciar habitações económicas para as pessoas economicamente mais desfavorecidas.322 Também no art. 2171º do Código Civil Português de 1867 (Código de Seabra) a propriedade resolúvel encontrava-se prevista como a propriedade que, “conforme o título da sua constituição, está sujeita a ser revogada, independentemente da vontade do proprietário”. No Código Civil Português de 1966 esta é definida como propriedade sob condição (art. 1307º, nº 1).323 O nº 3 do art. 1307º remetia o regime do direito do proprietário-adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente, perante o promitente-alienante ou transmitente”). 318 Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 109º, Coimbra: Coimbra Editora, 1976-1977, pág. 347, Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124º, Coimbra: Coimbra Editora, 1991, pág. 348, e Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, 2006, pág. 832. 319 Art. 1964º do CCI e art. 1179º, nº 1, do Código Civil. 320 Arts. 543º e 1958º do CCI e arts. 1176º e 1208º do Código Civil. 321 Publicado no então Diário do Governo [de Portugal], I Série, nº 217. 322 O diploma tinha a epígrafe “Casas Económicas”. 323 Veja-se o art. 1227º, nº 1, do Código Civil. 95 direito de propriedade resolúvel para os arts. 272º a 277º do mesmo diploma, ou seja, para o regime das condições resolutivas.324 Daí que se entenda que os contratos de renda resolúvel sejam celebrados sob condição resolutiva. A condição resolutiva consistia na falta de pagamento das prestações por parte do adquirente. A atribuição das casas era feita nos termos do art. 34º do Decreto-Lei nº 23:052, através de um contrato de compra e venda de propriedade resolutiva, contra o pagamento de 240 prestações mensais, adquirindo o comprador a propriedade plena com o pagamento da última prestação (art. 36º). Nos termos do art. 35º do mesmo diploma, com a celebração do contrato o comprador adquiria a posse do imóvel. Assim, deve o titular do direito de propriedade resolúvel ser considerado possuidor de boa fé, com posse titulada.325 8.7 Usucapião de móveis326 Os direitos reais sobre coisas móveis sujeitas a registo adquiremse por usucapião, nos termos seguintes (art. 1218º do Código Civil): a) Havendo título de aquisição e registo deste, quando a posse tiver durado dois anos, estando o possuidor de boa fé, ou quatro anos, se estiver de má fé; 327 b) Não havendo registo, quando a posse tiver durado dez anos, independentemente da boa fé do possuidor e da existência de título. A usucapião de coisas não sujeitas a registo dá-se quando a posse, de boa fé e fundada em justo título, tiver durado três anos, ou quando independentemente da boa fé e de título tiver durado seis anos 324 Conforme o art. 1228º do Código Civil. Arts. 476º do Código Civil Português de 1867 e 1259º, nº 1, e 1260º, nº 1, do Código Civil Português de 1966 (veja-se supra Capítulo III, deste Título II). 326 Por manifestamente assumir menor relevância, faz-se apenas breve referência à usucapião de bens móveis. Analisar-se-á apenas o regime do CCI, e o previsto no Código Civil de Timor-Leste, uma vez que os prazos previstos não justificam a análise dos diplomas que vigoraram anteriormente. 327 Será o caso da compra de um carro, com registo da aquisição, não pertencendo o mesmo à pessoa que o vendeu. Não se conhecem casos de registo de outros móveis (que não os veículos automóveis), sem prejuízo do registo dos títulos de valores mobiliários. 325 96 (art. 1219º do Código Civil). É aplicável à usucapião de móveis o disposto no artigo 1217º, ou seja, nos casos de posse violenta ou oculta os prazos só se iniciam com o termo da violência ou a publicidade da posse (art. 1220º, nº 1, do Código Civil). Quem exigir de uma pessoa a coisa móvel cuja posse lhe fora retirada, tendo esta pessoa comprado a mesma coisa de boa fé a comerciante que negocie coisas semelhantes ou do mesmo género é obrigado a restituir o preço que o adquirente tiver dado por ela, mas goza do direito de regresso contra aquele que culposamente deu causa ao prejuízo (art. 1221º do Código Civil). Veja-se, no mesmo sentido, o art. 582º do CCI. Assim, exemplificando, se alguém compra numa loja de antiguidades uma estatueta, ignorando que o objeto adquirido pertence a um terceiro e que tal objeto foi perdido, furtado ou vendido ao comerciante por quem erroneamente julgava ter legitimidade para o fazer, ainda nestes casos, corre o comprador do objeto o risco de este mais tarde lhe ser exigido pelo verdadeiro proprietário. A lei tenta, porém, temperar um pouco esta desproporção da boa fé ao atribuir ao adquirente a possibilidade de exigir do reivindicante a restituição do preço, concedendo a este um direito de regresso contra quem é responsável pela colocação da coisa no comércio, contra a vontade do seu proprietário. Portanto, a boa fé não constitui um obstáculo ao exercício do direito de sequela, mesmo naquele caso particular de a coisa móvel objeto da reivindicação ter sido adquirida a comerciante.328 Relativamente ao CCI não estão previstos prazos especiais de prescrição para a aquisição de móveis. Assim, são aqui aplicáveis os mesmos prazos já referidos para a aquisição por prescrição aquisitiva dos bens imóveis. 328 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, págs. 56 e 57. 97 98 III – DIREITO DE PROPRIEDADE 1. Definição O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (art. 1225º do Código Civil). Propriedade é o direito de ter livre aproveitamento da coisa e dispor dela de modo absoluto, desde que um indivíduo não viole as leis e ordens públicas emanadas das autoridades, no uso de tais bens, e desde que não interfira com os direitos dos outros indivíduos (art. 570º do CCI).329 Por seu lado a Constituição da RDTL estipula que todo o indivíduo tem direito à propriedade privada, podendo transmiti-la em vida e por morte, nos termos da lei, embora só os cidadãos nacionais tenham direito à propriedade privada da terra (art. 54º, nº 1 e 4, da Constituição). O direito de propriedade é um direito absoluto do qual resulta a exclusividade reconhecida ao proprietário.330 A propriedade é 329 “Hak milik adalah hak untuk menikmati suatu barang secara leluasa dan untuk berbuat terhadap barang itu secara bebas sepenuhnya, asalkan tidak bertentangan dengan undang-undang atau peraturan umum yang ditetapkan oleh kuasa yang berwenang dan asal tidak mengganggu hakhak orang lain; kesemuanya itu tidak mengurangi kemungkinan pencabutan hak demi kepentingan umum dan Penggantian kerugian yang pantas, berdasarkan ketentuan-ketentuan perundang-undangan”, na versão em inglês: “Ownership is the right to have free enjoyment of property and to dispose thereof absolutely, provided that an individual does not violate the laws of the public ordinances stipulated by those who have been granted authority to do so, in the course of using such assets, and provided that an individual does not interfere with other individuals rights”. 330 Esta é a definição resultante do art. 20º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia de 1960 (“Hak milik adalah hak turun-menurun, terkuat dan terpenuh yang dapat dipunyai orang atas tanahna”, versão em inglês: “A Hak milik (right of ownership) is the inheritable right, the strongest and fullest right on land which one can hold”). 99 comummente qualificada como o direito real máximo, o modelo de todos os outros direitos reais.331 Dá-se o nome de fruição ao aproveitamento dos frutos e produtos de uma coisa, seja dos frutos materiais, seja dos frutos jurídicos (rendas ou juros ou outro tipo de rendimento). Entende-se por disposição a forma de exercício dum direito que implica a sua alteração ou perda, absoluta ou relativa. Há duas classificações possíveis do conceito de disposição: disposição total e disposição parcial; disposição material e disposição jurídica.332 Para José de Oliveira Ascensão “a propriedade é o direito real que outorga a universalidade dos poderes que à coisa se podem referir”.333 A propriedade tem, porém, igualmente uma função social, que frequentemente determina a limitação daquele direito absoluto (art. 54º, nº 2, da Constituição da RDTL. Vejam-se os citados arts. 570º do CCI e 1225º do Código Civil).334 O direito de propriedade deve ser exercido dentro dos limites impostos, por um lado, pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico e, por outro lado, pelas restrições, quer de interesse privado, quer de interesse público que a lei expressamente consagra.335 Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei (art. 1226º do Código Civil). Trata-se de um dos princípios gerais dos direitos reais (o numerus clausus, ou princípio da 331 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 441. “O direito de propriedade é o molde jurídico onde se vaza o poder humano de usar, de gozar, ou de dispor dos bens de forma plena” (Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 217). 332 Mendes, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1978, pág. 40. 333 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 448. 334 “Na propriedade é onde o Direito subjetivo atua, de tal forma que na própria definição da propriedade verifica-se que se trata de uma definição onde o direito do proprietário exclui todos os demais, “erga ommes”; então, por excluir todos os demais ele é o senhor absoluto da propriedade. É necessário, então, admitirmos o conceito da socialidade do direito para que possamos ter as condições necessárias para a convivência em sociedade” (Ribeiro, Direito Das Coisas – Principais Modificações). 335 Gomes, Comentário ao Novo Regime de Licenciamento de Obras, 1971, pág. 22. Sobre a função social do direito de propriedade veja-se o escrito supra (Título I, Capítulo IV). 100 tipicidade). A lei não permite que sejam constituídos direitos reais que ela própria não preveja.336 Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei, sendo sempre devida indemnização adequada ao proprietário ou aos titulares dos outros direitos reais afetados (arts. 1229º e 1231º do Código Civil. No mesmo sentido o art. 570º do CCI e art. 54º da Constituição da RDTL).337 O que se prevê aqui é a possibilidade de intervenção do Estado no direito de propriedade privada, por meio de privação forçada da propriedade, nomeadamente por expropriação por utilidade pública.338 Veja-se o art. 18º da Lei Agrária Indonésia de 1960.339 2. Conteúdo do direito de propriedade (propriedade de imóveis) 2.1. Conteúdo A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (art. 1264º, nº 1, do Código Civil. Veja-se o art. 571º do CCI e o art. 1º, nº 4 a 6 da Lei Agrária Indonésia de 1960). O proprietário não pode, todavia, proibir os atos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em 336 Veja-se o Título I, Capítulo II, e). Sobre a vertente constitucional do direito de propriedade veja-se Canotilho e Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, págs. 799-805. 338 Canotilho e Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, págs. 805-810. 339 “Untuk kepentingan umum, termasuk kepentingan bangsa dan Negara serta kepentingan bersama dari rakyat, hak-hak atas tanah dapat dicabut, dengan memberi ganti kerugian yang layak dan menurut cara yang diatur dengan Undang-undang”, na versão em inglês: “In the interests of the public as well as of the nation and of the state and in the collective interests of the people, land rights can be revoked by providing appropriate compensation and in accordance with the procedure which is to be stipulated by way of an Act”. 337 101 impedir (art. 1264º, nº 2, do Código Civil).340 2.2. Limitações ao direito de propriedade: O fundamento das limitações ao direito de propriedade encontrase no primado do interesse coletivo ou público sobre o individual e na função social da propriedade, visando proteger o interesse público social e os demais interesses privados, considerado em relação à necessidade social de coexistência pacífica. A natureza das limitações de direito privado é de obrigação propter rem, porque tanto o devedor (o proprietário) como o credor (o que beneficia das limitações) são titulares de um direito real, os direitos incidem sobre a mesma coisa, mas não são oponíveis erga omnes, uma vez que não interessam a terceiros.341 Efetivamente, um dos componentes do direito de propriedade é o direito de usar e fruir os bens de que se é proprietário podendo, por isso, o proprietário utilizar o seu prédio até aos limites da sua confinância com os prédios vizinhos.342 As limitações de direito privado ao direito de propriedade são, pois, restrições resultantes de relações de vizinhança, pelo que as limitações apenas interessam e dizem respeito aos vizinhos. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, elas visam “regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, em consequência de solidariedade dos seus direitos, ou seja, em virtude da impossibilidade de serem uns exercidos plenamente sem afectação dos direitos dos vizinhos”.343 Acrescenta-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 20-10-1987, “No entanto, apesar dos reflexos da natureza absoluta do direito de propriedade emanada do direito romano, o certo é 340 Designadamente, não pode impedir que os aviões comerciais sobrevoem a sua propriedade. Sobre o assunto o art. 2º da Lei Agrária Indonésia defere ao Estado a possibilidade de criação de limites legais ao direito de propriedade, nomeadamente relativamente ao subsolo e ao espaço aéreo. 341 Veja-se supra o Capítulo IV do Título I. Veja-se sobre a matéria da limitação do direito de propriedade Barbosa e Filho, Compreendendo os novos limites à propriedade, uma análise do art. 1228 do Código Civil brasileiro. 342 Canotilho e Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, págs. 804-805. 343 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, págs. 94 e 95. 102 que o seu exercício está sujeito a restrições ou limitações quer de interesse público, quer de interesse privado. É assim que as limitações impostas ao direito de construir, em benefício da navegação aérea são determinados pelo interesse público, enquanto a proibição de abrir portas ou janelas a menos de metro e meio do prédio vizinho, tem a sua justificação no interesse particular do dono do prédio vizinho”.344 As obrigações de direito público são normalmente encontradas em legislação autónoma (não no Código Civil) e visam salvaguardar essencialmente o interesse público.345 Estes limites são gerais porque são comuns a todos os imóveis, todos estão sujeitos a suportar os limites impostos pela administração pública em defesa do interesse público. Já as limitações ao direito de propriedade baseadas no interesse privado visam o propósito de coexistência harmónica e pacífica de direitos, que podem ser conflituantes, entre vizinhos. Fundam-se no próprio interesse do titular do bem ou de terceiro, a quem este pretende beneficiar, não afetando, dessa forma, a extensão do exercício do direito de propriedade como direito absoluto. Caracterizam-se por dizerem respeito apenas aos direitos de propriedade sobre prédios vizinhos (bilateralidade), em função da relação que a situação de vizinhança impõe, aplicando-se a ambos (vínculo recíproco). Nessa medida, o direito de vizinhança impõe limitações à propriedade individual mediante normas jurídicas que visam conciliar os interesses de proprietários vizinhos, reduzindo os poderes inerentes ao domínio de modo a regular a convivência social (art. 625º do CCI). Ou seja, ambos cedem no seu direito na medida necessária à convivência entre eles. Por haver contiguidade entre prédios, o proprietário não é livre de fazer tudo aquilo que se compreenderia num ilimitado jus 344 In “Boletim do Ministério da Justiça de Portugal”, nº 370, Lisboa, 1987, pág. 553. Contam-se entre estas as restrições à construção constantes de planos directores (ordenamento do território), que visam harmonizar a possibilidade de construção pelos privados, por forma a evitar a ocupação irracional e irreversível da terra, designadamente criando zonas habitacionais e zonas de serviços ou industriais diferenciadas, estipulando limites de construção, por exemplo em altura, bem como as chamadas servidões públicas (ou servidões administrativas), como seja a proibição de se poder construir demasiado perto da estrada, por forma a poder no futuro proceder ao alargamento da mesma. 345 103 utendi, abutendi e fruendi,346 têm de estabelecer-se restrições derivadas da necessidade de coexistência.347 Assim, identifica a lei as seguintes limitações: a) Emissão de fumo: O proprietário de um imóvel pode opor-se à, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art. 1266º do Código Civil. No mesmo sentido, veja-se o art. 655º do CCI).348 Os dois requisitos, prejuízo substancial para o uso do imóvel e que as emissões não resultem da utilização normal do prédio de que emanam, são cumulativos.349 O direito de oposição subsiste mesmo que a atividade de onde resultam as emissões haja sido autorizada por entidade pública. 350 No 346 Direito de uso, abuso (no sentido de uso pleno e ilimitado, incluindo de disposição e até de destruição) e de fruição da coisa. 347 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 204. 348 “Barangsiapa menyuruh menggali sebuah sumur, selokan atau kakus ditempat yang berdekatan dengan tembok batas milik bersama atau bukan milik bersama, atau hendak mendirikan pipa asap, tempat perapian dapur atau tempat masak di tempat yang demikian, atau membuat kandang, tempat rabuk, gudang, gudang garam, tempat penyimpan bahan keras atau bangunan yang merugikan dan membahayakan, maka ia wajib membuat jarak antara tembok dengan bangunan tersebut sebagaimana ditetapkan dalam peraturan khusus atau menurut kebiasaan tentang hal itu, ataupun ia wajib mengusahakan bangunan itu sedemikian rupa menurut peraturan dan kebiasaan yang ditentukan untuk itu agar tidak menimbulkan kerugian bagi pekarangan-pekarangan yang berdekatan”, na versão em inglês: “An individual, who, within the area surrounding a communal or non-communal wall, has had a well, sewer, or outhouse dug, intends to install a chimney, a fireplace, an oven or furnace, intends to build a stable or fertilizer container, or build a salt storehouse or warehouse, or install a storage place of corrosive material, or intends to build other harmful or dangerous constructions, shall be required to leave or create space in the manner described in the special ordinances or customs in that regard, or to carry out constructions as required by the regulations and customs, in order to prevent any damage which may be caused to the neighboring plots of land”. 349 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 426. 350 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 142. 104 entender de Álvaro Moreira e Carlos Fraga, este preceito aplica-se a quaisquer vizinhos e não apenas ao vizinho contíguo (ao do lado).351 Assim, para Rui Pinto, para efeitos do normativo em causa, um prédio situado na margem esquerda de um rio é vizinho de outro situado na margem direita do rio.352 A Constituição concede maior proteção aos direitos, liberdades e garantias de que aos direitos económicos, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de consistência, de proteção jurídica, de densidade subjetiva daqueles direitos para estes.353 Assim, por exemplo, no caso de colisão ou conflito de direitos fundamentais devem prevalecer os direitos de personalidade (art. 326º do Código Civil). Daí que o direito a não sofrer as perturbações referidas nos arts. 1266º do Código Civil e 655º do CCI prevaleça sobre o direito de propriedade ou o direito de desenvolver qualquer indústria na propriedade, ainda que licenciada administrativamente. b) Obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas: O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei (art. 1267º, nº 1, do Código Civil.354 Veja-se de novo o art. 655º do CCI). Trata-se aqui de um perigo meramente presumido, contrariamente ao que acontece nos casos do art. 1266º do Código Civil (art. 655º do CCI), fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, que exigem o dano efetivo. 351 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 244, nota 53. Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 208. 353 Veja-se J.J. Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 125º, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, pág. 293; Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, 1996, pág. 135; Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, Coimbra: Coimbra Editora, 1970, pág. 378; Sá, Abuso do Direito, 2005, pág. 528; e Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 1999, pág. 201. 354 Trata-se de norma preventiva. Não tem que se verificar já um dano efectivo, mas apenas a sua possibilidade (Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 597). 352 105 Se as obras, instalações ou depósitos tiverem sido autorizados por entidade pública competente, ou tiverem sido observadas as condições especiais prescritas na lei para a construção ou manutenção deles, a sua inutilização só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se torne efetivo (art. 1267º, nº 2, do Código Civil). Segundo Rui Pinto, “presume-se que a existência da instalação não assume perigo significativo, sendo o mesmo inferior às vantagens económicas associadas à respectiva exploração”.355 Neste caso só se pode proibir a atividade se afinal se verificar o dano efetivo. É devida, em qualquer dos casos, indemnização pelo prejuízo sofrido (art. 1267º, nº 3, do Código Civil).356 c) Minas, poços e escavações O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra (art. 1268º, nº 1, do Código Civil). Mais uma vez, consideram-se, não penas os prédios contíguos, mas todos os que se encontrem na proximidade, ou vizinhança. O direito de construir constitui prerrogativa inerente da propriedade, o direito que possui o seu titular de construir no seu terreno o que quiser, ressalvados os direitos dos vizinhos e os regulamentos administrativos.357 Logo que venham a sofrer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor das obras, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias (art. 1268º, nº 2, do Código Civil e art. 1369º do CCI).358 Trata-se, portanto, de responsabilidade civil objetiva, prevista no art. 433º do Código Civil (art. 1369º do CCI), uma vez que a responsabilidade existe 355 Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 212. Trata-se de uma hipótese de responsabilidade pelo risco, pelo que a obrigação de indemnização se verifica independentemente de culpa do proprietário (arts. 433º a 444º do Código Civil). 357 Talvez por isso o CCI não o refira expressamente. 358 Mais uma vez, a obrigação de indemnizar existe independentemente de culpa (arts. 433º a 444º do Código Civil). 356 106 independentemente de culpa do proprietário. Se qualquer edifício ou outra obra oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do desmoronamento puderem resultar danos para o prédio vizinho, é lícito ao dono deste exigir da pessoa responsável pelos danos359 as providências necessárias para eliminar o perigo (art. 1270º do Código Civil e art. 654º do CCI).360 Ou seja, o proprietário do prédio vizinho pode tomar providências com vista à prevenção dos danos previsíveis, antes que os mesmos ocorram. d) Passagem forçada momentânea: Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objetos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros atos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses atos (art. 1269º, nº 1, do Código Civil, igual ao art. 651º do CCI).361 No caso de o dono do prédio vizinho recursar a passagem, o direito pode ser exercido através da instauração de uma providência cautelar não especificada prevista nos arts. 305º a 312º do CPC. Ou seja, se o titular do direito for impedido de aceder ao prédio vizinho, pode intentar procedimento cautelar não especificado por forma a poder exercer o mesmo. Trata-se de um caso em que o procedimento cautelar não é dependente de uma ação judicial posterior, dado que, uma vez garantido o acesso, o seu interesse encontra-se satisfeito, pelo que não terá o titular do direito interesse em intentar a ação correspondente. É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem; no entanto, o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao seu 359 A pessoa responsável é o proprietário ou possuidor do edifício (art. 426º do Código Civil). 360 Se o perigo de ruína ou desmoronamento resultar de obra nova pode-se recorrer ao procedimento cautelar de embargo de obra nova, dos arts. 334º a 339º do CPC. 361 Note-se que não se está aqui perante qualquer servidão. Não é uma servidão que se constitui, mas somente uma passagem momentânea, embora forçada (Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 245). 107 dono (art. 1269º, nº 2, do Código Civil).362 Em qualquer dos casos, o proprietário do prédio tem direito a ser indemnizado do prejuízo sofrido (art. 1269º, nº 3, do Código Civil).363 e) Águas, terras e entulhos Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente (art. 1271º, nº 1, do Código Civil, conforme também o art. 626º do CCI). Ou seja, quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior do terreno não pode instalar um dique contra o qual a água de torrente natural ou da chuva fique retida, uma vez que isso prejudicaria o proprietário do terreno superior, que ficaria alagado, e constituiria assim uma limitação do direito deste.364 Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento (que impeçam o curso das águas), nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar (que aumentem o caudal das águas), sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida (art. 1271º, nº 2, do Código Civil. e o art. 626º do CCI). Deve permitir-se que os terrenos recebam ou escoem as águas naturalmente, sem que as mesmas sejam retidas. Porém, pode o proprietário do terreno fazer obra que dirija as águas de forma menos prejudicial para o seu terreno.365 No caso de terem sido efetuadas obras num terreno para conter as águas, em benefício desse terreno e dos terrenos vizinhos, ou quando seja necessário efetuar obras novas para desviar o curso das águas com a mesma finalidade de benefício de todos os terrenos vizinhos, ou seja, 362 Por exemplo, o proprietário tem que tolerar a passagem momentânea de alguém que precisa ir buscar uma coisa sua que acidentalmente se encontre na propriedade daquele, como um animal que para lá fugiu, ou uma coisa que para lá caiu (Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 245). 363 “É uma obrigação de indemnizar fundada no sacrifício ou facto lícito” Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 221 – nota 357. 364 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 246. 365 Acórdão da Relação de Lisboa de 9-11-1979, Colectânea de Jurisprudência, ano IV, tomo 5º, Coimbra: Casa do Juiz, 1979, pág. 1597, citado por Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 897. 108 para evitar prejuízos nos terrenos, o dono do prédio onde existam essas obras defensivas, ou onde seja necessário efetuá-las, é obrigado a fazer reparos ou as obras necessárias, ou, não querendo ele fazê-las, a tolerar que os donos dos prédios que sofram danos ou estejam expostos a danos iminentes as façam, sem que o dono do referido prédio sofra prejuízo com isso (art. 1272º, nº 1, do Código Civil).366 O mesmo acontece sempre que seja necessário retirar de algum prédio materiais cuja acumulação ou queda estorve o curso das águas com prejuízo ou risco de terceiro (art. 1272º, nº 2, do Código Civil). Também neste caso, o dono do prédio deve retirar os materiais que impedem o normal curso das águas, ou terá que consentir que os vizinhos prejudicados com essa situação entrem no seu prédio para os retirar. Todos os proprietários que participam do benefício das obras são obrigados a contribuir para as despesas delas, em proporção do seu interesse, sem prejuízo da responsabilidade que recaia sobre o autor dos danos (art. 1272º, nº 3, do Código Civil). f) Direito de demarcação O proprietário de um prédio pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles (art. 1273º do Código Civil e art. 630º-A do CCI). Embora não possa obrigar os seus vizinhos a proceder à demarcação, estes têm obrigação de pagar uma parte dos gastos com a construção dos muros ou outra forma que tenha sido utilizada para o efeito, na proporção em que a construção confinar com o seu prédio. Segundo António Carvalho Martins, “A demarcação é a operação material de colocar marcos ou sinais exteriores permanentes e visíveis, que assinalem diversos pontos da linha divisória entre dois prédios contíguos, sendo lícito também aproveitar para o mesmo fim sinais naturais já existentes, tais como um rochedo, um combro, uma árvore, na qual podem ser gravadas as iniciais de um dos proprietários”.367 366 O proprietário só está obrigado a tolerar que os proprietários dos prédios vizinhos façam as obras na sua propriedade se não as fizer ele mesmo. 367 Martins, Demarcação, 1999, págs. 17-18. 109 A principal função do direito de demarcação está na definição das estremas dos prédios vizinhos, assim se conferindo maior segurança e certeza na extensão dos direitos de cada um. Daí a sua relevância aqui reconhecida pela lei, que assim fomenta a demarcação. No caso de os proprietários vizinhos não acordarem na definição das estremas dos respetivos prédios deverão recorrer ao Tribunal para o efeito.368 O art. 1274º do Código Civil fixa o modo como se procede à demarcação.369 Segundo António Carvalho Martins, a ação de demarcação não tem natureza real, mas apenas pessoal, sendo a causa de pedir complexa e constituída pela existência da propriedade confinante e incerta relativamente às estremas.370 “Com a demarcação, não está em causa a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação de um direito”.371 A forma de processo será ação declarativa de condenação, com processo comum (arts. 3º, nº 2, al. a), e 347º, nº 2, do CPC), tendo particular relevância a prova pericial como um dos meios probatórios utilizáveis.372 O direito de demarcação é imprescritível, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião (art. 1275º do Código Civil). Por se tratar de uma faculdade inerente ao direito de propriedade, fazendo parte do seu conteúdo legal, não se pode extinguir pelo não uso da mesma.373 g) Direito da tapagem Na sequência do referido direito de demarcação, também pode o 368 Quem intentar uma acção de demarcação tem que alegar: a) que é proprietário de um prédio confinante com outro pertencente ao demandado; b) que não está definida a linha divisória entre o seu prédio e o confinante (acórdão da Relação de Lisboa de 2310-1968, citado por Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 898). 369 Não existe no CPC processo especial de demarcação, pelo que o mesmo deve seguir a forma comum (art. 347º, nº 2, do CPC). 370 Martins, Demarcação, 1999, pág. 20 (“Por ela não se pretende a declaração de qualquer direito real, ou da sua amplitude, mas unicamente obter que se precisem as estremas de prédios confinantes”). 371 Martins, Demarcação, 1999, pág. 23. 372 Martins, Demarcação, 1999, pág. 59. 373 Martins, Demarcação, 1999, pág. 70. 110 proprietário, a todo o tempo, murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo (art. 1276º do Código Civil e art. 631º do CCI). No que se refere ao direito de tapagem, o proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo o seu prédio urbano ou rural, para que possa proteger, dentro dos seus limites, a exclusividade de seu domínio, desde que observe as disposições regulamentares e não cause dano ao vizinho. Como já se viu, a construção de muros de tapagem não pode impedir o normal fluxo das águas que decorrem dos prédios superiores, pelo que, ao proceder à tapagem do seu prédio, deve o proprietário respeitar o direito do vizinho previsto no art. 1271º, nº 1, do Código Civil e art. 626º do CCI,374 sob pena de o proprietário que procede à construção responder pelos prejuízos que cause ao vizinho. h) Construções e edificações O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem diretamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio (art. 1280º, nº 1, do Código Civil. Vejam-se os arts. 647º a 650º do CCI). Janelas são as aberturas que, não sendo portas e estando niveladas com as paredes (contrariamente às varandas que se projetam para a frente delas), têm em qualquer das suas dimensões mais de quinze centímetros e por função, além de assegurar a entrada de luz e ar, facultar vistas. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela (art. 1280º, nº 2, do Código Civil e art. 647º do CCI). Porém, se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário (art. 1280º, nº 3, do Código Civil). Efetivamente, se o 374 Escoamento das águas que provenham do prédio superior. 111 prédio não se encontra frente ao outro, mas ao seu lado (obliquamente), não faz sentido a restrição. As restrições do artigo precedente não são aplicáveis a prédios separados entre si por estrada, caminho, rua, travessa ou outra passagem por terreno do domínio público (art. 1281º do Código Civil). Não se impede a abertura de portas e janelas para uma estrada ou rua, ainda que esta tenha uma largura inferior à referida no art. 1280º, nº 1, do Código Civil. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “Começam somente os prejuízos a ser atendíveis, se existir um parapeito, porque, neste caso, tal como numa janela, a pessoa pode debruçar-se, ocupando parcialmente o prédio alheio, e arremessar com facilidade objectos para dentro dele: a devassa começa a tomar aspectos mais graves”. 375 “Isso quer dizer, que não são propriamente as vistas que interessam, mas o devassamento, ou, melhor, a possível ocupação do terreno vizinho. Basta que no parapeito duma janela ou dum terraço, a pessoa se debruce, numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso o que importa evitar”.376 Estas restrições são uma manifestação do conteúdo do direito de propriedade previsto no art. 1264º, nº 1, do Código Civil e art. 571º do CCI. Contrariamente ao que possa parecer da expressão legal direito de vistas, o que está em causa não é o direito de poder ver sobre o prédio vizinho, mas sim a proibição de não se poder debruçar sobre o mesmo, assim se violando os aludidos preceitos, no sentido em que se invade a propriedade do vizinho, ainda que em altura.377 Portanto, não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, embora o vizinho possa levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, vedando tais aberturas (art. 1283º, nº 1, do Código Civil. Veja-se o art. 645º do CCI). Efetivamente, sendo o fundamento da proibição impedir que as pessoas se debrucem 375 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, pág. 196. Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, citando a “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 99º, pág. 240. 377 Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 906, citando a “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 99º, pág. 239. 376 112 sobre o prédio, assim invadindo o mesmo, as aberturas que não permitem que alguém se debruce sobre o prédio não estão abrangidas pela proibição. Pelos mesmos motivos, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram (art. 1283º, nº 2, do Código Civil e art. 646º do CCI). A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião (art. 1282º, nº 1, do Código Civil e 1946º e 1963º do CCI). Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício (ou outra construção que ele edificar) e o edifício ou obra já edificados no prédio vizinho o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras (art. 1282º, nº 2, do Código Civil).378 Ou seja, se um proprietário constrói um edifício junto à estrema do seu prédio confinando com o prédio vizinho e nela abre janelas dando para este, se mantiver esta situação pelo prazo legal de usucapião, fica o proprietário do prédio vizinho impedido de construir junto à estrema do seu prédio, uma vez que assim iria tapar as janelas do prédio ali existente e o proprietário que construiu aquele prédio adquiriu, por usucapião, o direito de conservar tais janelas, embora as tenha aberto em violação do art. 1280º, nº 1, do Código Civil. O embargo de obra nova, previsto nos arts. 334º a 339º do CPC pode ser utilizado como meio de oposição à violação do direito de vistas.379 378 O que importa para a constituição desta servidão é a existência de obras (ou seja, das janelas, varandas ou outras aberturas) e não a utilização. Por outro lado, a servidão mantém-se ainda que se proceda à demolição da construção para sua reconstrução (Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 154). 379 Não de deve, porém, esquecer a necessidade de interposição da acção declarativa competente no prazo de 30 dias após a notificação do decretamento judicial do embargo (arts. 307º, nº 1, e 313º, nº 1, al. a), do CPC). 113 i) Estilicídio O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de meio metro entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo (art. 1285º, nº 1, do Código Civil e art. 652º do CCI).380 No entanto, pode construir-se a menos de meio metro se se canalizar as águas por meio de algeroz. Mais uma vez pretende-se impedir a invasão de propriedade alheia, agora mediante águas que resultem de edifício construído no prédio. Constituída por qualquer título a servidão de estilicídio, o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante (art. 1285º, nº 2, do Código Civil).381 Por exemplo, se o beirado de um telhado deita diretamente as águas das chuvas para o prédio vizinho por tempo suficiente para a constituição de tal direito (de deitar as águas sobre o prédio vizinho) por usucapião, então o vizinho terá que aceitar tal situação, ficando impedido de construir de modo a impedir ou dificultar que as águas escorram para o seu prédio. j) Plantação de árvores e arbustos É lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios;382 contudo o dono do prédio vizinho pode arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele penderem, desde que o dono da árvore o não faça dentro do prazo de três dias, depois de lhe ser solicitado, judicial ou extrajudicialmente, 380 Uma vez observado o espaço previsto na lei já o proprietário do prédio vizinho é obrigado a aceitar o escoamento natural das águas para o seu prédio, nos termos dos arts. 1271º, nº 1, do Código Civil e 626º do CCI (Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 157). 381 Também pode ser constituída servidão de estilicídio nos termos já referidos para a constituição de servidões por usucapião ou acordo (Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 247). 382 Mais uma vez, sendo o direito de propriedade um direito de uso e abuso da coisa objecto do mesmo, pode o proprietário usar a coisa até ao seu limite. 114 para o fazer (art. 1286º, nº 1, do Código Civil e art. 666º do CCI). No caso de as raízes, troncos ou ramos passarem ao prédio alheio e os seus titulares não os arrancarem no prazo de três dias, depois de instados judicial ou extrajudicialmente para o efeito, pode o vizinho prejudicado fazê-lo pelas suas próprias mãos, mas os ramos, troncos ou raízes cortados continuam a pertencer ao dono do prédio vizinho, devendo ser-lhe devolvidos.383 O poder assim conferido ao dono do prédio vizinho configura a legitimação do recurso à autotutela do seu direito de propriedade, depois de solicitação feita ao dono das árvores e do não cumprimento por este do seu dever de impedir que aquelas causem danos ao prédio vizinho.384 O vizinho prejudicado com a invasão das raízes e ramos das árvores não tem o direito a pedir ao dono das mesmas qualquer indemnização, nomeadamente a destinada a compensar os danos causados por essa invasão no seu prédio.385 O proprietário de árvore ou arbusto contíguo a prédio de outrem ou com ele confinante pode exigir que o dono do prédio lhe permita fazer a apanha dos frutos, que não seja possível fazer do seu lado; mas é responsável pelo prejuízo que com a apanha vier a causar (art. 1287º do Código Civil). No caso de os ramos de uma árvore penderem sobre o prédio vizinho o proprietário deste apenas pode exigir que os mesmos sejam cortados, nos termos já referidos, mas os frutos continuam a pertencer ao dono do prédio onde está implantada a árvore. 386 Daí que este tenha o direito de entrar no prédio vizinho para colher tais frutos. Não é adquirível por prescrição (usucapião) o direito de deitar ramos, tronco ou raízes sobre o prédio vizinho. 383 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 159, e Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 606. 384 Acórdão da Relação do Porto de 9-3-2010, apelação nº 2899/05.5TBOAZ.P1, da 2ª Secção, relatora Sílvia Pires, acessível em www.dgsi.pt/jtrp. 385 Pires de Lima, in Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 95º, págs. 367-368, Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, pág. 230, Justo, Direitos Reais, 2007, pág. 247, e jurisprudência portuguesa citada no referido acórdão da Relação do Porto de 9-3-2010. 386 Como já se referiu, as árvores fazem parte integrante do prédio onde estão implantadas. 115 2.3. Paredes e muros de meação Por parede ou muro deve entender-se qualquer construção com pedra com consistência, bem como construções de tijolo, adobe ou taipa, estando excluídas as vedações de madeira, arame, ou sebes vivas ou mortas.387 O proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio (ou seja, com parede ou muro edificado pelo proprietário do prédio vizinho na estrema divisória dos dois prédios) pode adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído (art. 1290º, nº 1, do Código Civil).388 Trata-se aqui do direito do proprietário confinante a comunhão forçada, uma forma de transferência coactiva ou expropriação por utilidade particular, que se traduz no exercício de um direito potestativo.389 O CCI prevê, em contrário, que nenhum muro se possa tornar comum sem o consentimento do seu proprietário (art. 640º do CCI). Se um proprietário quiser murar o seu prédio, sem o acordo e contribuição do vizinho, terá que construir o muro no interior do seu prédio (sem ocupar o prédio vizinho), mas o proprietário do prédio confinante só pode adquiri a compropriedade, ou comunhão, sobre o muro, pagando metade do valor deste e do terreno do vizinho onde o mesmo foi construído. No dizer de Álvaro Moreira e Carlos Fraga, “Há aqui uma expropriação forçada de metade do muro no interesse do proprietário confinante”.390 387 Rodrigues, A Posse, 1996, pág. 370. Ainda Martins, Paredes e muros de meação, 1999, pág. 21. 388 Trata-se de uma comunhão forçada do muro ou parede, uma vez que o proprietário que a construiu não pode opor-se à aquisição da comunhão pelo proprietário do prédio vizinho. Este goza, portanto, de um direito potestativo à aquisição da comunhão no muro. 389 Martins, Paredes e muros de meação, 1999, págs. 28 a 31. No mesmo sentido Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, págs. 199-200. 390 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 248. Importa relembrar que o CCI não prevê esta comunhão forçada, pelo que o muro ficará sempre propriedade de quem o construiu, a menos que este aceite a comunhão. Assim, o proprietário do prédio confinante, não pode usar o muro, pelo que, se pretender construir junto à extrema dos prédios, terá que construir um novo muro paralelo ao que já existe pertencente ao vizinho. 116 Porém, a comunhão forçada só existe relativamente ao muro construído na estrema dos prédios confinantes. Se um proprietário construiu o muro dentro do seu terreno mas ainda afastado da estrema,391 o muro apenas a ele pertence e não poderá haver comunhão forçada, uma vez que, a existir a comunhão forçada, o vizinho iria adquirir uma parte do terreno do outro prédio, fora de qualquer previsão legal.392 A parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem (art. 1291º, nº 1, do Código Civil. Veja-se o art. 633º do CCI). Se um dos prédios for mais alto que o outro, o muro presume-se comum até à altura do mais baixo e, daí para cima, pertencerá apenas ao prédio mais alto.393 Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário (art. 1291º, nº 2, do Código Civil).394 São sinais que excluem a presunção de comunhão: a) A existência de espigão em ladeira só para um lado;395 b) Haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele; c) Não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados (art. 1291º, nº 3, do Código Civil. Veja-se o art. 634º do CCI). No caso da existência de espigão em ladeira só para um lado (alínea a), presume-se que o muro pertence ao prédio para cujo lado se inclina a ladeira; nos outros casos, àquele de cujo lado se encontrem as construções ou sinais mencionados, ou seja cachorros de pedra salientes 391 Por exemplo, quando constrói uma casa afastada um metro e meio do terreno do vizinho, em observância dos arts. 1280º, nº 1, do Código Civil e 647º a 650º do CCI, não pode o vizinho pretender usar essa construção como divisória e obter comunhão na parede da casa. 392 Martins, Paredes e muros de meação, 1999, pág. 35. 393 Em relação à parte que excede a altura do prédio inferior existe uma presunção de propriedade exclusiva do dono do prédio mais alto (Martins, Paredes e muros de meação, 1999, pág. 45). 394 Trata-se de uma presunção legal ilidível nos termos do art. 518º, nº 2, do CPC. 395 Inclinação do topo do muro para o lado do presumido proprietário. 117 encravados em toda a largura dele (art. 1291º, nº 4, do Código Civil). Trata-se de construções ou outros elementos inseridos no muro, nomeadamente para suportar telhados ou beirais, que levam a presumir que quem as edificou será o dono do muro. Daí que, se o muro sustentar em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados, presume-se do mesmo modo que ele pertence exclusivamente ao dono da construção (art. 1291º, nº 5, do Código Civil). O proprietário a quem pertença em comum alguma parede ou muro não pode abrir nele janelas ou frestas, nem fazer outra alteração, sem consentimento do seu consorte (art. 1286º, nº 1, do Código Civil.396 Veja-se o art. 644º do CCI). Trata-se de consequência da comunhão. Se o muro é comum a abertura de janelas ou frestas necessita do consentimento do outro proprietário do muro. No caso de o muro pertencer apenas a um dos proprietários, estaremos perante um caso de uma edificação ou construção, sendo a proibição resultante da aplicação do art. 1280º, nº 1, do Código Civil (ou dos arts. 647º a 650º do CCI). Qualquer dos consortes tem, no entanto, a faculdade de edificar sobre a parede ou muro comum e de introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro (art. 1293º, nº 1, do Código Civil. No mesmo sentido o art. 636º do CCI). Mas, se a parede ou muro tiver espessura inferior a meio metro, não tem lugar a restrição (art. 1286º, nº 1, do Código Civil). Ou seja, se a parede ou muro tiver espessura inferior a meio metro pode a introdução de traves ou barrotes ultrapassar o meio da parede ou do muro, uma vez que não teria sustentação suficiente se fosse imposto o aludido limite. Já o art. 641º do CCI impedia, nos casos em que o muro fosse comum, nos termos do disposto no art. 640º do CCI (ou seja, no caso de comunhão com o consentimento do proprietário), que algum consorte pudesse abrir buracos ou construir contra o muro comum, sem consentimento do outro. Segundo o regime do CCI cada um dos proprietários de prédios confinantes devia murar o seu prédio, dentro dos limites do mesmo, apenas sendo admissível a comunhão do muro no caso de ele ser edificado em conjunto pelos proprietários na linha 396 O direito a manter janelas ou frestas no muro comum pode, porém, ser adquirido por prescrição (usucapião), nos termos gerais já analisados a propósito das construções e edificações. 118 divisória, ou se o proprietário que o edificou consentisse na comunhão, com ou sem retribuição, ficando assim excluída a possibilidade da comunhão forçada prevista no novo Código Civil. A qualquer dos consortes, ou comproprietários do muro, é permitido alterar a parede ou muro comum, contanto que o faça à sua custa, ficando a seu cargo todas as despesas de conservação da parte alterada (art. 1294º, nº 1, do Código Civil e art. 637º, primeira parte, do CCI).397 Como é óbvio, se a parede ou muro não estiver em estado de aguentar o alçamento, o consorte que pretender levantá-lo tem de reconstruí-lo por inteiro à sua custa e, se quiser aumentar-lhe a espessura, é o espaço para isso necessário tomado do seu lado (art. 1294º, nº 2, do Código Civil e art. 637º, segunda parte, do CCI). O proprietário que não precise de aumentar ou alterar o muro não pode ser obrigado a contribuir para tal obra da iniciativa do seu vizinho. Contudo, para adquirir comunhão na parte aumentada, o que pode fazer mediante a já analisada comunhão forçada, nomeadamente para poder dele usufruir, o consorte que não tiver contribuído para o alçamento terá que pagar metade do valor dessa parte e, no caso de aumento de espessura, também metade do valor do solo correspondente a esse aumento (art. 1294º, nº 3, do Código Civil e art. 639º do CCI). A reparação ou reconstrução da parede ou muro comum é feita por conta dos consortes, em proporção das suas partes (art. 1295º, nº 1, do Código Civil e art. 635º do CCI). O muro comum pode beneficiar de maneira diversa os prédios vizinhos, como acontece no caso de servirem de parede a construções de altura diferente, o que justifica que os encargos com a reparação ou reconstrução possam ser diferentes. Já no caso de o muro ser de simplesmente de vedação, a despesa é dividida pelos consortes em partes iguais (art. 1295º, nº 2, do Código Civil), uma vez que aqui o benefício é igual para ambos os prédios. Se, porém, algum dos consortes tirar do muro proveito que não 397 O alçamento é uma faculdade discricionária, mas não podem, com ele, serem prejudicadas servidões que um comproprietário do muro tenha adquirido relativamente ao mesmo (Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 171). 119 seja comum ao outro, ou seja, um tirar proveito além da vedação, a despesa é rateada entre eles em proporção do proveito que cada um tirar (art. 1295º, nº 3, do Código Civil). Será o caso de construir um anexo ou alpendre aproveitando o muro. Se a ruína do muro provier de facto do qual só um dos consortes tire proveito, só o beneficiário é obrigado a reconstruí-lo ou repará-lo (art. 1295º, nº 4, do Código Civil e art. 641º do CCI). Se a ruína resultar de aproveitamento que um dos vizinhos faça do muro, obviamente só ele será responsável pela sua reparação. É sempre facultado ao consorte eximir-se dos encargos de reparação ou reconstrução da parede ou muro, renunciando ao seu direito de comunhão na parede ou muro nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 1331º (art. 1295º, nº 5, do Código Civil e art. 635º do CCI).398 Trata-se de regra própria da compropriedade, no caso de um comproprietário entender que os encargos com a coisa são excessivos terá que renunciar ao direito de propriedade sobre o muro para se poder eximir a comparticipar nos referidos encargos. 3. Defesa da propriedade O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (art. 1232º, nº 1, do Código Civil e art. 574º do CCI). Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (art. 1232º, nº 2, do Código Civil). 398 Art. 1331º, nº 1, do Código Civil, os comproprietários devem contribuir, em proporção das respectivas quotas, para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum, sem prejuízo da faculdade de se eximirem do encargo renunciando ao seu direito. No caso, o comproprietário do muro terá que renunciar ao seu direito, passando o muro a pertencer apenas àquele que suportou os custos da reparação do muro. 120 A ação de reivindicação trata-se, nas palavras de Alberto dos Reis, de “uma acção destinada a fazer valer um direito real sobre um prédio”. 399 Conforme referido no acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Março de 1975, “A causa de pedir nas acções de reivindicação, ou seja, o facto jurídico de que deriva o direito real só pode ser constituído pela alegação de uma das formas de adquirir”.400 Esta forma de aquisição do direito terá que ser uma forma originária de aquisição, nomeadamente a prescrição aquisitiva (ou usucapião), não bastando a invocação de uma forma derivada de aquisição do direito real, como o contrato de compra e venda (art. 377º, nº 4, 2ª parte, do CPC). Assim, terá o autor na ação de reivindicação que provar que o alienante do prédio era efetivamente proprietário do mesmo, com base numa forma originária de aquisição.401 Conforme referido no acórdão da Relação de Lisboa de 1-62010, “A acção de reivindicação tem por fim o reconhecimento do direito de propriedade a quem dele se arroga contra qualquer possuidor ou detentor e a consequente restituição da coisa ao seu proprietário. Trata-se, por conseguinte, de uma acção real. E a causa de pedir nesta 399 Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63º, nº 2404, Coimbra: Coimbra Editora, 1930/1931, pág. 362. 400 Sumariado no Boletim do Ministério da Justiça de Portugal, nº 244, Lisboa, 1975, pág. 177. 401 Das diversas formas de aquisição de imóveis previstas no art. 584º do CCI, acessão, prescrição aquisitiva (ou usucapião), sucessão legal ou testamentária, ou outro título de transmissão do direito pelo seu titular (como sejam a compra e venda ou a doação), só as duas primeiras são formas de aquisição originária. Porém, só a acessão natural pode constituir meio de aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, dado que a acessão industrial não é reconhecida como tal pelo CCI como forma de aquisição de tal direito, conforme resulta evidente do disposto nos arts. 600º e 601º do CCI. Assim, basicamente, só a prescrição aquisitiva, ou usucapião, prevista nos arts. 548º, nº 2, 1946º e 1955º do CCI, constitui forma de aquisição originária do direito de propriedade sobre imóveis. As restantes formas de aquisição (com excepção da acessão natural, repete-se) são meramente derivadas (acórdão do Tribunal de Recurso de 14-42011, processo nº 03/Cível/Agravo/2011/TR, relator Rui Penha). No mesmo sentido acórdão da Relação de Lisboa de 19-3-1975 (sumariado no Boletim do Ministério da Justiça nº 246, pág. 177, citado por Neto, Código de Processo Civil [Português] Anotado, 1997, pág. 543) “a transmissão não é fonte de direitos, mas meio de os transferir, caso existam”. 121 espécie de acções implica a alegação do facto jurídico de que deriva o direito real invocado, o que, segundo a teoria da substanciação perfilhada pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, requer a alegação da aquisição originária, que não meramente derivada, daquele direito real, nomeadamente por virtude de usucapião, acessão ou ocupação”.402 Porém, no caso de o autor beneficiar da presunção do direito de propriedade resultante do registo, em conformidade com o disposto nos arts. 617º e 620º do CCI e art. 23º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia de 1960 (Lei nº 5 de 1960 (UUPA) Undang Undang No. 5 Tahun 1960 Tentang: Peraturan Dasar Pokok-pokok Agraria), não terá que alegar a aludida aquisição originária.403 O mesmo ocorrerá na sequência dos registos efetuados ao abrigo do Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho, Regularização da Titularidade de Bens Imóveis em Casos Não Disputados. Importa lembrar que a presunção do direito de propriedade resultante do registo cede perante a presunção idêntica atribuída ao possuidor, a menos que o registo da titularidade do direito seja anterior ao início da posse (art. 1188º, nº 1, do Código Civil e arts. 548º, nº 1, e 549º, nº 1, do CCI).404 Deste modo, se o autor numa ação de reivindicação invoca o registo posterior à data do início da posse do réu, terá que alegar e provar a aquisição originária do direito.405 402 Acórdão da Relação de Lisboa de 1-6-2010, processo nº 405/07.6TVLSB.L1-7, relator Tomé Gomes, acessível em www.dgsi.pt/jtrl (ainda citado no mesmo acórdão do TR). Ainda no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 82-2011, processo nº 12/09 9T2STC.E1.S1, relator Sebastião Póvoas, www.dgsi.pt/jstj, e o acórdão do Tribunal Supremo de Moçambique de 31-3-2008, processo nº 70/2001, relator Luís Filipe Sacramento, publicado no Boletim de República [de Moçambique], III Série, nº 5, Suplemento, de 4-2-2010. 403 Referido acórdão do TR de 14-4-2011. 404 O efeito presuntivo resultante da posse “tem como limite o registo: se existir, a favor de outrem, registo anterior ao início da posse, esta não gera a presunção da titularidade do direito a que corresponde” (Duarte, Curso de Direitos Reais, 2007, pág. 292. 405 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 205. 122 Entende-se no acórdão da Relação de Coimbra de 30-5-1990 que, “a causa de pedir nas acções de reivindicação é de natureza complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade dos autores, como a ocupação abusiva do prédio pelo réu. Para o triunfo da acção deve, portanto, o autor convencer de que é o proprietário do prédio com base em factos alegados e que o mesmo se acha abusivamente ocupado pelo réu”.406 Porém, na sequência da definição legal de causa de pedir do art. 377º, nº 4, do CPC, a essência da ação de reivindicação é a afirmação e o reconhecimento do direito de propriedade. Portanto, a causa de pedir é o ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para alegar que tal direito lhe pertence.407 Neste sentido esclarece Carvalho Fernandes que o pedido tem um ponto principal e outro secundário: “o principal é o reconhecimento de direito de propriedade; o secundário, o de restituição da coisa reivindicada. Na verdade, a condenação do réu na restituição da coisa constitui, na própria letra da lei, uma consequência da procedência daquele pedido”, conforme o art. 1232º, nº 2, do Código Civil.408 No entanto, sempre terá o autor que alegar e provar que o réu praticou um facto ilícito ofensivo do seu direito. De facto, nas ações de condenação é indispensável, para além do facto constitutivo do direito, que o autor alegue o facto ofensivo do mesmo, embora a causa de pedir continue a ser o facto jurídico de que procede o direito real. O facto ilícito praticado pelo réu aparece como condição para a condenação pedida: a restituição da coisa que pertence ao autor409. 406 In Boletim do Ministério da Justiça de Portugal, nº 397, Lisboa, 1990, pág. 572. No mesmo sentido Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. 14º, 1957, pág. 928, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 4-7-1972 e de 28-10-1975, da Relação de Lisboa de 14 de Julho de 1981 e da Relação do Porto de 16 de Março de 1989 e da Relação de Coimbra de 30 de Maio de 1990, todos in Boletim do Ministério da Justiça de Portugal, Lisboa, nº 2l9, 1972, pág. 176, nº 250, 1975, pág. 179, nº 315, 1989, pág. 307, e nº 385, 1990, pág. 603, respectivamente. 407 Acórdão da Relação de Évora de 2-12-1983, in “Colectânea de Jurisprudência”, ano VIII, tomo 5º, Coimbra: Casa do Juiz, 1983, pág. 274. 408 Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 272. 409 Citado acórdão da Relação de Lisboa de 2-12-1983. No mesmo sentido Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 92, e os acórdãos da Relação do Porto de 30-1-1979 e da Relação de Évora de 26-1-1989, in Boletim do Ministério da Justiça de Portugal, Lisboa, respectivamente nº 284, 1979, pág. 286, e nº 383, 1989, pág. 632, e da Relação 123 Não estamos, contudo, perante uma cumulação de pedidos, tal como a define o art. 352º do CPC. Tal pretensão, como maioritariamente vem defendendo a doutrina e a jurisprudência, não traduz uma cumulação real, mas uma cumulação aparente de pedidos.410 Em sentido contrário, porém, parece pronunciar-se Oliveira Ascensão.411 Seguindo Alberto dos Reis: “A cumulação é aparente. Sob o ponto de vista substancial o pedido é um só. A acção de reivindicação é uma acção de condenação, mas toda a condenação pressupõe uma apreciação prévia de natureza declarativa. De maneira que, ao pedir-se o reconhecimento do direito de propriedade (efeito declarativo) e a condenação na entrega (efeito executivo), não se formulam dois pedidos substancialmente distintos, unicamente se indicam as duas espécies de actividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da acção”.412 Sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a ação de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo (art. 1234º do Código Civil). O direito de reivindicar é uma manifestação da sequela, uma manifestação do conteúdo do direito real, e a propriedade, como aliás outros direitos reais, é imprescritível, não se extinguindo, portanto, por prescrição extintiva.413 É admitida a defesa da propriedade por meio de ação direta, nos termos do artigo 327º (art. 1235º do Código Civil).414 de Évora de 19-7-1979, in “Colectânea de Jurisprudência”, ano IV, tomo 3º, Coimbra: Casa do Juiz, pág. 1327. 410 Acórdão de Relação de Coimbra de 3-4-1984, in “Colectânea de Jurisprudência”, ano IX, tomo 2º, Coimbra: Casa do Juiz, pág. 51. 411 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 419-420. Veja-se igualmente o acórdão da Relação do Porto de 16-1-2012, processo nº 158/03.7TBBTC.P1, relator Augusto de Carvalho, in www.dgsi.pt/jtrp. 412 Reis, Comentário ao Código de Processo Civil Português”, vol. III, 1944, pág. 148. 413 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 92. 414 Veja-se supra o Título II, Capítulo 7.3 (O recurso à ação direta e à legítima defesa (arts. 327º e 328º do Código Civil) pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) impossibilidade de recurso, em tempo útil, aos meios coercivos normais, nomeadamente aos tribunais; b) violação efetiva ou eminente do direito; c) racionalidade dos meios utilizados). 124 4. Aquisição da propriedade 4.1. Formas de aquisição do direito de propriedade O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (art. 1237º, nº 1, do Código Civil e art. 584º do CCI). Não se trata de enumeração taxativa, pelo que podem existir outros meios de aquisição da propriedade. O contrato e a sucessão por morte não constituem verdadeiramente modos de aquisição do direito de propriedade, mas sim formas de transmissão do mesmo. Daí que, no que respeita aos bens imóveis, se considerem apenas a usucapião e a acessão como formas de aquisição originária do direito, enquanto os modos de transmissão do mesmo são denominados formas de aquisição derivada.415 4.2. Ocupação Segundo Carvalho Fernandes, a ocupação dá-se pela apreensão material de coisas (móveis) sem dono.416 Compreendem-se aqui as coisas que nunca tiveram dono, ou que foram abandonadas pelo anterior dono. A ocupação constitui forma de aquisição do direito de propriedade mas apenas de coisas móveis. Assim, podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições constantes dos artigos seguintes ao art. 1239º do Código Civil (no mesmo sentido o art. 574º do CCI). O princípio básico que resulta dos arts. 1239º a 1244º do Código Civil é que a pessoa que encontrar um bem móvel cujo dono seja conhecido deve entregar a mesma a este, ou avisá-lo que a achou. Caso contrário (se o dono for desconhecido), pode ficar com ela. Os bens móveis do domínio privado do Estado, que forem abandonados, podem ser adquiridos por ocupação. 415 Veja-se sobre esta matéria o já referido acórdão do Tribunal de Recurso de 14-42011. 416 Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 330. 125 4.3. Acessão Dá-se a acessão, quando com uma coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia (art. 1245º do Código Civil e art. 588º do CCI). Salienta Rui Pinto que o instituto da acessão visa regular as situações em que “dois bens pertencentes a diferentes donos são, em resultado das forças da natureza ou por acto humano, ligados ou unidos de modo que a sua separação lhes seria danosa”.417 Para Oliveira Ascensão “a acessão repousa pois necessariamente numa determinada situação material, que é a resultante da união de duas coisas pertencentes a dono diverso”.418 A acessão diz-se natural, quando resulta exclusivamente das forças da natureza; dá-se a acessão industrial, quando, por facto do homem, se confundem objetos pertencentes a diversos donos, ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia (art. 1246º, nº 1, do Código Civil). No dizer de Carvalho Fernandes, “se a união ou incorporação resultarem exclusivamente da ação de forças da natureza, a acessão diz-se natural; se há intervenção de facto humano, ainda que este não seja a sua causa única, a acessão diz-se industrial”.419 A acessão natural é sempre imobiliária. Já a acessão industrial é mobiliária ou imobiliária, conforme a natureza das coisas (art. 1246º, nº 2, do Código Civil). Será imobiliária se ocorrer a junção de bens a um imóvel, será móvel que ocorrer a junção de coisas móveis a outra coisa móvel. Importa lembrar que constitui benfeitoria o melhoramento de obra ou plantação já existente e acessão a obra ou plantação nova, incluindo a acrescentada. Se num terreno existe alguma construção, ela pode ser objeto de benfeitoria. Porém, se não existia lá qualquer edifício, o que se construir constitui acessão e não benfeitoria. A acessão dá-se pela mera união das coisas. Assim, o momento de aquisição por acessão é o da união das coisas. Porém, a aquisição por acessão normalmente não é, normalmente, automática, dependendo da 417 Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 307. Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 302. 419 Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 336. 418 126 manifestação de vontade do beneficiário nesse sentido. 4.3.1. Acessão natural Pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza (art. 1247º do Código Civil. Veja-se no mesmo sentido o art. 588º do CCI). Aqui a acessão natural não é uma aquisição potestativa; não depende de manifestação de vontade de um beneficiário, dá-se pela mera união das coisas.420 Por aluvião entende-se a deslocação lenta e gradual de terras de um prédio para outro, seja por ação das águas, seja por ação do vento, Segundo Rui Pinto, “No aluvião há um depósito lento, continuado e imperceptível, enquanto a avulsão é um depósito súbito único e perceptível”.421 Assim, pertence aos donos dos prédios confinantes com quaisquer correntes de água tudo o que, por ação das águas, se lhes unir ou neles for depositado, sucessiva e impercetivelmente (art. 1248º, nº 1, do Código Civil). E o mesmo regime é aplicável ao terreno que insensivelmente se for deslocando, por ação das águas, de uma das margens para outra, ou de um prédio superior para outro inferior, sem que o proprietário do terreno perdido possa invocar direitos sobre ele (art. 1248º, nº 2, do Código Civil. Vejam-se os arts. 595º a 598º do CCI, que precisam diversas situações de aluvião). Efetivamente, porque a deslocação se faz lentamente, de forma quase impercetível, não é possível o proprietário do terreno que fica sem as terras exigir a restituição das mesmas ao proprietário do prédio que as recebe. Assim, a acessão, no aluvião, opera imediatamente e automaticamente: constituindo-se o direito real sobre a coisa assim que se verifiquem os factos naturais pressupostos do seu funcionamento, independentemente da vontade do adquirente.422 420 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 721. Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 312. 422 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 717. 421 127 Se, por ação natural e violenta (avulsão), a corrente arrancar quaisquer plantas ou levar qualquer objeto ou porção conhecida de terreno, e arrojar essas coisas para prédio alheio, o dono delas tem o direito de exigir que lhe sejam entregues, contanto que o faça dentro de seis meses, se antes não foi notificado para fazer a remoção dessas coisas no prazo que tiver sido fixado judicialmente (art. 1249º, nº 1, do Código Civil).423 A expressão conhecida significa que o objeto deve ser individualizável.424 Ou seja, a porção de terra que foi deslocada de um terreno para o outro tem que ser passível de identificação, autonomizável. Só assim se poderá proceder à sua remoção. Não se fazendo a remoção nos referidos prazos, passam as terras, e respetivas implantações se for o caso, a pertencer ao prédio que acrescentaram, o prédio que as recebeu (art. 1249º, nº 2, do Código Civil. No mesmo sentido a segunda parte do art. 599º do CCI). Só não será assim se o proprietário do terreno que ficou sem as terras intentar ação para obter a sua restituição, por o proprietário do prédio que as recebeu não as entregar sem intervenção do tribunal. Ou seja, na avulsão a aquisição opera-se diferida e automaticamente, passando as terras e implantações a integrar o prédio que as recebeu, apenas se o proprietário do terreno que ficou sem elas não exigir a sua devolução nos prazos referidos na lei ou fixado pelo tribunal.425 Relativamente ao leito dos rios, se a corrente mudar de direção, abandonando o leito antigo, os proprietários deste conservam o direito que tinham sobre ele, e o dono do prédio invadido conserva igualmente a propriedade do terreno ocupado de novo pela corrente (art. 1250º, nº 1, do Código Civil). Ou seja, a propriedade conserva-se nos exatos termos em que se encontrava antes. Simplesmente o dono do terreno por onde corria o rio passa a ser proprietário de terreno seco, enquanto o dono do 423 Veja-se o art. 599º do CCI que para a situação de avulsão estabelece o mesmo regime, mas fixa o prazo de três anos para que o dono das terras, plantas ou outros objetos deslocados os exija do dono do terreno que os recebeu. 424 José de Oliveira Ascensão, Revista “Scientia Iuridica – Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro”, tomo 22º, Universidade de Braga, 1973, pág. 327. 425 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 718. 128 terreno por onde passa a correr o rio tem o seu terreno ocupado pelo mesmo. Se a corrente se dividir em dois ramos ou braços, sem que o leito antigo seja abandonado, é ainda aplicável o mesmo regime (art. 1250º, nº 2, do Código Civil). Diferente era o regime para a mesma situação previsto no CCI. Nos termos do art. 592º do CCI, os donos dos terrenos que passaram a ser ocupados pelo leito do rio têm direito a ocupar os terrenos deixados pelo mesmo, na mesma proporção dos terrenos que tinham, como forma de compensação. Porém, a inundação temporária não confere quaisquer direitos (art. 593º do CCI. Veja-se ainda o art. 594º do CCI). As ilhas ou mouchões que se formem nas correntes de água pertencem ao dono da parte do leito ocupado (art. 1251º, nº 1, do Código Civil. Veja-se o art. 590º do CCI). Tal como visto anteriormente, não há alteração da propriedade. Porém, se as ilhas ou mouchões se formarem por avulsão, o proprietário do terreno onde a diminuição haja ocorrido goza do direito de remoção nas condições prescritas pelo já referido artigo 1249º (art. 1251º, nº 2, do Código Civil). Este regime é ainda aplicável aos lagos e lagoas, quando aí ocorrerem situações semelhantes (art. 1252º do Código Civil).426 4.3.2. Acessão industrial mobiliária Se alguém, de boa fé, unir ou confundir (ou seja, juntar) objeto seu com objeto alheio, de modo que a separação deles não seja possível ou, sendo-o, dela resulte prejuízo para alguma das partes, o dono daquele que for de maior valor faz seu o objeto adjunto, desde que indemnize o dono do outro ou lhe entregue coisa equivalente (art. 1253º, nº 1, do Código Civil).427 Assim, se um dono de um carro usa peças de 426 Para Rui Pinto nenhuma destas situações se traduz em verdadeira acessão. Há apenas uma modificação do objecto da propriedade (Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 315). Em sentido contrário parece pronunciar-se Carvalho (Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 338). Efectivamente, pode haver por avulsão a incorporação de imóveis, nomeadamente árvores ainda implantadas no solo, que serão identificáveis e cuja devolução poderá ser exigida. 427 Conforme salienta Oliveira Ascensão, embora a lei fale em união e confusão, não vale a pena distingui-las, uma vez que as trata da mesma maneira (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 304). 129 outra pessoa na reconstrução do motor do seu carro, pensando erradamente que as mesmas lhe foram dadas para esse efeito, verifica-se a confusão de ambas as coisas, o motor do carro e as peças que nele foram incorporadas, ficando ele com o motor e as peças, se o motor tiver valor superior às peças que foram usadas, indemnizando o dono das peças.428 O regime assenta na boa fé de quem provocou a união. Se quem procede à união ou confusão está de boa fé, o dono da coisa que tiver maior valor fica com o objeto novo resultante da junção, indemnizando o outro. Se está de má fé, a vantagem será sempre do dono da outra coisa.429 Assim, se ambas as coisas forem de igual valor e os donos não acordarem sobre qual haja de ficar com ela, abrir-se-á entre eles licitação, adjudicando-se o objeto licitado àquele que maior valor oferecer por ele, ficando obrigado a pagar ao outro metade do valor da adjudicação (art. 1253º, nº 2, do Código Civil). Se os interessados não quiserem licitar, será vendida a coisa e cada um deles ficará com a parte que deva pertencer-lhe do produto da venda (art. 1253º, nº 3, do Código Civil). Em qualquer dos casos, o autor da confusão é obrigado a ficar com a coisa adjunta, ainda que seja de maior valor, se o dono dela preferir a respetiva indemnização (art. 1253º, nº 4, do Código Civil). Ou seja, o autor da junção fica sempre com o resultado da adjunção, independentemente do valor das coisas, se a outra parte preferir a indemnização. O CCI prevê a acessão industrial mobiliária no art. 606º, estipulando que a coisa passa a pertencer a quem procede à incorporação, independentemente do valor, desde que pague os materiais utilizados e indemnize o primitivo dono da coisa. Veja-se ainda o art. 608º do CCI. Se a união ou confusão tiver sido feita de má fé e a coisa alheia 428 No caso da união é possível identificar o objecto incorporado, ou junto, no caso da confusão essa identificação torna-se impossível. 429 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 304. 130 puder ser separada sem padecer detrimento, será esta restituída a seu dono, sem prejuízo do direito que este tem de ser indemnizado pelo dano sofrido (art. 1254º, nº 1, do Código Civil. Veja-se o art. 609º do CCI, o qual tem aplicação também nos casos de acessão de boa fé). Se, porém, a coisa não puder ser separada sem padecer detrimento, deve o autor da união ou confusão restituir o valor da coisa e indemnizar o seu dono, quando este não prefira ficar com ambas as coisas adjuntas e pagar ao autor da união ou confusão o valor que for calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1254º, nº 2, do Código Civil). Se a adjunção430 ou confusão se operar casualmente e as coisas adjuntas ou confundidas não puderem separar-se sem detrimento de alguma delas, ficam pertencendo ao dono da mais valiosa, que pagará o valor da outra; mas se este não quiser fazê-lo, assiste idêntico direito ao dono da menos valiosa (art. 1255º, nº 1, do Código Civil). Se nenhum deles quiser ficar com a coisa, será esta vendida, e cada um deles haverá a parte do preço que lhe pertencer (art. 1255º, nº 2, do Código Civil). Se ambas as coisas forem de igual valor, observar-se-á o disposto nos números 2 e 3 do artigo 1253º, licitação ou venda da coisa (art. 1255º, nº 3, do Código Civil). Nos termos do disposto no art. 607º do CCI, se a adjunção ou confusão se operar casualmente e as coisas adjuntas ou confundidas não puderem separar-se sem detrimento de alguma delas, fica o novo objeto pertencendo em conjunto a todos os donos dos materiais, na proporção do valor do material de cada um. Dá-se especificação quando alguém, pelo seu trabalho, dá nova forma a coisa móvel pertencente a outrem, de tal modo que ela não poderá ser restituída à forma primitiva, ou não o pode ser sem perda do 430 A adjunção é a junção de bens móveis feitas casualmente, embora sempre com intervenção do homem. Por exemplo, H inadevertidamente, deixa cair o conteúdo de uma lata de tinta numa lata com tinta de outra pessoa (Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 321). 131 seu valor pela especificação.431 Será o caso de um pintor, convencido de ter para tal autorização, fazer uma nova pintura sobre uma tela que já continha uma outra pintura anteriormente. Neste caso, o autor da especificação fica com a coisa transformada, se ela não puder ser restituída à primitiva forma ou não puder sê-lo sem perda do valor criado pela especificação. Porém, no caso de a coisa poder ser restituída à forma original, embora com perda do valor resultante da especificação, o dono da matéria pode ficar com a coisa, se o valor da especificação não exceder o da matéria (art. 1256º, nº 1, do Código Civil). Em ambos os casos, o que ficar com a coisa é obrigado a indemnizar o outro do valor que lhe pertencer (art. 1256º, nº 2, do Código Civil). A especificação de boa fé, quando a coisa não possa ser restituída à forma primitiva sem perda do valor acrescentado, confere a titularidade da coisa resultante ao trabalhador ou ao dono da coisa anterior, consoante o valor aditado seja ou não superior ao valor da coisa e podendo o dono da coisa, no último caso, preferir a indemnização, a que se encontrará sempre obrigada a parte que adquirir.432 Se a especificação tiver sido feita de má fé, será a coisa especificada restituída a seu dono no estado em que se encontrar, com indemnização dos danos, sem que o dono seja obrigado a indemnizar o autor da obra (especificador), se o valor da especificação não tiver aumentado em mais de um terço o valor da coisa especificada. Se o aumento for superior a um terço, deve o dono da coisa pagar o que exceder o dito terço (art. 1257º do Código Civil). A especificação de má fé confere a titularidade da coisa transformada ao titular da coisa primitiva, independentemente do valor acrescentado. O autor da especificação será indemnizado, mas apenas se o acréscimo de valor for superior em um terço ao valor da coisa e na medida em que exceda esse terço.433 Se uma nova pitura tiver maior valor do que a que estava pintada na tela, sabendo o pintor que não 431 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 435. Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 725. 433 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 725. 432 132 estava autorizado a fazer a nova pintura e que a tela pertencia a outra pessoa, o dono da tela fica com a nova pintura e só terá que indemnizar o pintor se o valor da nova pintura exceder um terço do valor que tinha a pintura que anteriormente se encontrava na mesma tela, e apenas na parte em que exceder. Mais terá o dono da tela direito a uma indemnização pelos prejuízos que possa ter sofrido. Constituem casos de especificação a escrita, a pintura, o desenho, a fotografia, a impressão, a gravura e outros atos semelhantes, feitos com utilização de materiais alheios (art. 1258º do Código Civil). 4.3.3. Acessão industrial imobiliária Seguindo a definição de Rui Pinto, “na acessão industrial imobiliária assiste-se a uma incorporação voluntária pelo agente de coisa móvel, sua ou alheia, em coisa imóvel”.434 A acessão industrial imobiliária constitui uma forma de aquisição da propriedade sobre um imóvel (trata-se de uma forma de aquisição originária). No entanto, como se verá, não era assim para o CCI, no qual a acessão industrial imobiliária não constituía forma de aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel. É discutida a questão de saber se a aquisição do direito de propriedade em virtude da acessão industrial imobiliária é automática ou depende de manifestação de vontade nesse sentido. Assim, para Oliveira Ascensão a acessão tem carácter potestativo, ou seja, existe um direito ou faculdade concedido ao seu beneficiário, que ele pode ou não exercer.435 Já Rui Pinto entende que, pelo menos em certas situações, a acessão se dá por mero efeito da união das coisas, exemplifica com a acessão industrial imobiliária em que o valor acrescentado pela acessão é inferior ao valor do prédio antes da mesma.436 Aquele que em terreno seu construir obra ou fizer sementeira ou plantação com materiais, sementes ou plantas alheias adquire os materiais, sementes ou plantas que utilizou, pagando o respetivo valor, 434 Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 322. Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 308. 436 Pinto, Direitos Reais de Moçambique, 2006, pág. 339-341. 435 133 além da indemnização a que haja lugar (art. 1259º do Código Civil).437 Esta disposição é semelhante à do art. 602º do CCI, o qual acrescenta que o dono dos materiais utilizados pelo dono do terreno não pode pedir a remoção desses materiais. São elementos constitutivos da acessão: a construção de uma obra, a sua implantação em terreno alheio, a formação de um todo único entre o terreno e a obra, o valor de um e outro e a boa fé na conduta do autor da obra. Há acessão quando se altera substancialmente a coisa, através de uma nova construção ou plantação, quando há uma transformação, e benfeitoria quando se verifica um simples melhoramento de uma edificação já existente. Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações (art. 1260º, nº 1, do Código Civil).438 Ou seja, por exemplo, se uma pessoa construir uma casa num terreno pertencente a outra pessoa, estando convencido que o terreno lhe pertence a ele (boa fé), e o terreno com a casa tiver um valor superior ao dobro do valor do terreno antes da construção (sendo portanto o valor acrescentado pela construção superior ao valor anterior do terreno), fica essa pessoa com o direito de adquirir a propriedade sobre o imóvel (terreno e casa incorporada), pagando ao dono do terreno o valor que este tinha anteriormente. Neste caso só se verifica a aquisição do direito se o autor da acessão manifestar esse desejo e pagar a indemnização correspondente ao valor inicial do terreno.439 437 A expressão terreno deve ser entendida como prédio alheio e, consequentemente, a obra pode ser levada a cabo num prédio rústico ou urbano (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 17-3-1998, in “Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ”, ano VI, tomo I, Casa do Juiz, Coimbra, 1998, pág. 136). 438 No mesmo sentido o art. 2306º do Código Civil Português de 1867 e o art. 1340º do Código Civil Português de 1966. 439 Como se viu, trata-se de um direito potestativo do autor da acessão. 134 Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1253º (art. 1260º, nº 2, do Código Civil). Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação (art. 1260º, nº 3, do Código Civil). Só há acessão se houver boa fé. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno (art. 1260º, nº 4, do Código Civil). No caso de a obra, sementeira ou plantação ter sido feita de má fé, tem o dono do terreno o direito de exigir que seja desfeita e que o terreno seja restituído ao seu primitivo estado à custa do autor dela, ou, se o preferir, o direito de ficar com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1261º do Código Civil). Quando as obras, sementeiras ou plantações sejam feitas em terreno alheio com materiais, sementes ou plantas alheias (quer o terreno, quer os materiais de construção, as plantas ou sementes pertencem a pessoas diferentes de quem faz a plantação ou construção), o dono dos materiais de construção, sementes ou plantas pode adquirir o direito de propriedade sobre o terreno, ou ser indemnizado pelo seu valor, nos mesmos termos fixados no artigo 1260º para o caso de construção de um imóvel, ainda que haja má fé do autor da construção ou plantação. Ou seja, mesmo que o autor da construção ou plantação soubesse que o terreno não lhe pertencia, o dono dos materiais não pode ser responsabilizado pela construção ou plantação feita por aquele, uma vez que não foi ele quem procedeu à construção e plantação e desconhecia que o terreno fosse alheio (art. 1262º, nº 1, do Código Civil). Mas se tiver agido com culpa, se por alguma forma induziu quem fez a construção ou plantação (estando este de boa fé) a fazê-la sabendo que o terreno não lhe pertencia a si, nem a quem fez a construção ou plantação, é-lhe aplicável mesmo regime que resultaria de ser ele próprio a fazer a construção ou plantação, mas de má fé. Ou seja, tem o dono do terreno o direito de exigir que seja desfeita e que o 135 terreno seja restituído ao seu primitivo estado à custa do dono dos materiais de construção, plantas ou sementes, ou, se o preferir, o direito de ficar com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1262º, nº 2, do Código Civil). Se o dono dos materiais de construção, sementes ou plantas e a pessoa que fez a plantação estiverem os dois de má fé, é solidária a responsabilidade de ambos, e a divisão do enriquecimento é feita em proporção do valor dos materiais, sementes ou plantas e da mão-de-obra. Neste caso, o dono dos materiais de construção, sementes ou plantas induz ou aceita que a pessoa que faz a construção ou a plantação o faça em terreno que sabe ser alheio, e este faz a construção ou plantação sabendo igualmente que o terreno é alheio. Daí a responsabilidade solidária de ambos. Quando na construção de um edifício em terreno próprio se ocupe, de boa fé, uma parcela de terreno alheio, o construtor pode adquirir a propriedade do terreno ocupado, se tiverem decorrido três meses a contar do início da ocupação, sem oposição do proprietário, pagando o valor do terreno e reparando o prejuízo causado, designadamente o resultante da depreciação eventual do terreno restante (art. 1263º, nº 1, do Código Civil). O mesmo regime se aplica relativamente ao titular de qualquer outro direito real (art. 1263º, nº 2, do Código Civil). Diferente, como já se referiu, era o regime previsto no CCI. Assim, se alguém erigisse construção usando os seus próprios materiais em terreno pertencente a outro indivíduo o dono do terreno podia ficar com a construção para si (art. 603º do CCI). Se quem erigisse a construção estivesse de boa fé o dono do terreno podia optar entre reembolsar o valor dos materiais de construção e salários pagos a quem construiu, ou pagar uma soma monetária equivalente ao acréscimo do valor introduzido pela construção no terreno (art. 604º do CCI). Ou seja, conforme resulta evidente do disposto nestes artigos e nos arts. 600º e 601º do CCI, no âmbito deste regime, quem procedesse à implantação de imóveis ou culturas em terreno alheio nunca poderia por essa via adquirir o direito de propriedade sobre o terreno, ainda que tivesse agido de boa fé. 136 Se alguém erigisse construção usando os seus próprios materiais em terreno pertencente a outro indivíduo, agindo de má fé, o dono do terreno podia ficar com a construção para si, ou exigir que esta fosse removida por quem procedera à construção, a expensas deste, o qual ainda teria que indemnizar o dono do terreno por eventuais outros prejuízos resultantes da construção (art. 603º do CCI). Porém, se o dono do terreno optasse por ficar com a construção ou as culturas, teria que compensar os custos dos materiais empregues e dos salários pagos, sem poder optar pelo valor acrescentado do terreno (art. 603º do CCI). Em conclusão, o CCI não prevê a acessão industrial imobiliária como forma de aquisição da propriedade, contrariamente ao que sucede com o Código Civil Timorense. Ora, para aferir a possibilidade de aquisição do direito com base na acessão importa considerar o regime vigente à data da construção ou sementeira (art. 11º, nº 1, do Código Civil). Assim, se esta ocorreu já no âmbito de vigência do Código Civil, é possível a aquisição da propriedade nos termos supra referidos, caso contrário, tem aplicação o regime do CCI, que impede tal possibilidade.440 4.4. Direitos portuguesa concedidos pela administração colonial 4.4.1. Alvará de propriedade perfeita Recuando ao período das descobertas e da conquista de territórios pelo Reino de Portugal, do ponto de vista internacional (naquela época), a descoberta e a conquista legitimam a soberania e as terras passam assim a pertencer à Coroa que delas dispõe livremente.441 Relativamente ao regime jurídico interno todo o território pertencia ao Rei, à Coroa (Bula Romanus Pontifex), e mais tarde ao Estado Colonial.442 440 No caso de uma construção, deve considerar-se a data em que a mesma foi concluída. 441 Caetano, História do Direito Português, 2000, pág. 526. 442 Decreto de 13 de Agosto de 1832 e a Carta de Lei de 9 de Maio de 1901. 137 Os alvarás de propriedade perfeita, embora raros,443 constituem títulos de concessão originária do direito de propriedade, do Estado Colonial Português para os particulares que deles beneficiaram.444 Os alvarás de propriedade perfeita foram transformados em direito de propriedade (Hak Milik), nos termos do art. 2º, nº 1, do Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 1991.445 4.4.2. Alvará de propriedade indígena Os alvarás de propriedade indígena traduzem-se no reconhecimento do direito de propriedade já titulado por indivíduos originários das colónias.446 Porém, conforme referido, o Estado colonial português não deixou nunca de considerar que as terras atribuídas por meio dos alvarás de propriedade indígena continuavam a pertencer-lhe, reconhecendo-se apenas ao titular do alvará a possibilidade de ocupar e fruir a terra, sem qualquer contrapartida, mas não se atribuindo ao mesmo o direito de propriedade. Precisamente porque a situação não era clara, existindo a ideia dos titulares de alvará de propriedade indígena que os mesmos eram proprietários da terra,447 o Governador da Província de Timor veio expressamente declarar que apenas o Estado Colonial Português era proprietário da terra, com exceção dos casos de propriedade perfeita, 443 Relatório da missão de trabalho em Timor-Leste de equipa técnica do Instituto dos Registos e do Notariado do Ministério da Justiça de Portugal. 444 Neste sentido o acórdão do Tribunal de Recurso de 24-5-2011, processo nº 06/Cível/2011/TR, relator Rui Penha. 445 A questão é aqui abordada apenas relativamente aos cidadãos de nacionalidade indonésia, que na altura incluía os cidadãos timorenses, uma vez que relativamente aos estrangeiros a conversão foi feita para outros tipos de direitos reais (menores), ou para relações contratuais. 446 Sobre esta matéria veja-se Sousa, Administração Colonial, 1914, págs. 215-216 (“antigamente não se reconheciam direitos de propriedade aos indígenas; as suas terras eram res nullius. Porem, mais tarde, razões de justiça e motivos de ordem politica levaram os povos colonisadores a mudar de orientação”). 447 Veja-se a referida Carta de Lei de 9 de Maio de 1901 e o Diploma Legislativo nº 718, publicado no Boletim Oficial de Timor nº 18, de 7 de Maio de 1966. 138 através da Portaria do Governo da Província nº 193, de 27 de Julho de 1914,448 “a ninguém é reconhecida a propriedade perfeita dos terrenos, sejam os proprietários nacionais ou estrangeiros, indigenas ou não indigenas”, acrescentando “aos indigenas é reconhecido o direito de aforamento dos terrenos que usufruem e habitam independentemente da adjudicação em hasta pública” (art. 11º), direito de aforamento que resulta da conversão dos títulos anteriores (§ 1º do art. 11º). Esta conversão dos alvarás de propriedade indígena em aforamento veio a ser confirmada pelo Diploma Legislativo nº 719, de 7 de Maio de 1966.449 Assim, não podem invocar os titulares de alvará de propriedade indígena o direito de propriedade sobre a terra, apenas com base no mesmo,450 conforme se verá de seguida. 4.4.3. Aforamento451 O Estado Português conferiu igualmente, em maior número, alvarás de aforamento, que também podiam ser designados alvará de propriedade foreira.452 O aforamento foi considerado o instrumento jurídico mais adequado, ao tempo, para levar a cabo a ocupação efetiva da terra com fins produtivos, garantindo, em simultâneo, que se mantinha a titularidade do direito de propriedade no Estado colonizador, conforme referido supra.453 448 Publicada no Boletim Oficial de Timor nº 34 de 1914. Publicado no Boletim Oficial de Timor nº 18, de 7 de Maio de 1966. 450 Já poderão invocar os direitos inerentes à ocupação da terra, nomeadamente a aquisição do direito por usucapião. 451 A questão merece análise nesta sede, independentemente da caracterização que se vier a fazer deste tipo de direito real menor infra, porque se tem constatado a invocação da atribuição de alvará de aforamento pela administração colonial portuguesa, como uma forma de aquisição do direito de propriedade plena sobre imóveis. 452 O sistema de aforamento era entendido como o ideal para concessão de terras nas colónias (Ramos e Sousa, Administração Colonial, 1914, pág. 317). 453 “Nascida a emphyteuse, como contrato juridico, da necessidade a que os proprietarios chegaram de não poderem por si proprios cultivarem os seus extensos predios, por falta de braços e de capitaes moveis que n’elles empregassem, deixando449 139 Efetivamente, o aforamento, também designado por emprazamento ou enfiteuse, consiste no desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, direto e útil, dando lugar ao pagamento de um foro pelo titular do domínio útil ao senhorio, ou titular do domínio direto (arts. 1653º do Código Civil Português de 1987 e 1491º, nº 1, do Código Civil Português de 1966).454 Na enfiteuse, o proprietário transfere ao enfiteuta o jus utendi, o jus fruendi e, inclusive, o jus disponendi. Daí que parte dos doutrinadores considere o enfiteuta também um proprietário, sendo certo, porém, que maioritariamente se entende na doutrina que não o é.455 Segundo José de Oliveira Ascensão, “Toda a constituição de um direito real menor implica, não uma transferência de poderes do proprietário para outrem, mas a constituição ex novo desses poderes na cabeça do novo titular, e simultaneamente a limitação da propriedade por um dever que soluciona o conflito entre os direitos sobrepostos. E isto é, afinal, a oneração”.456 No sentido de o titular do domínio direto manter para si o direito de propriedade pronunciou-se igualmente Alfredo de Morais Almeida, acrescentando: “o direito de propriedade do senhorio directo como que se conserva latente, ... revivendo e recuperando todo o seu vigor logo que as circumstancias o reclamem”.457 Na jurisprudência portuguesa tem-se defendido mesmo que a concessão por aforamento de terrenos nas antigas Províncias Ultramarinas de Portugal, é figura diferente e mais complexa que a enfiteuse. Na concessão por aforamento compete ao senhorio direto os assim converter em extensos matagaes bravios; ella é, pois, como que um recurso desesperado, o ultimo, de que os mesmos proprietarios lançaram mão para valorisar os seus vastos territorios, visto elles por si sós não o poderem fazer, nem encontrarem arrendatários que, nas condições ordinarias tomassem conta d’elles” (Almeida, Da Emphyteuse no Moderno Direito Civil Portuguez, 1898, pág. 55). 454 Sobre esta matéria pronunciou-se o acórdão do Tribunal de Recurso de 3-8-2010, processo nº 01/Cível/Apelação/2009/TR, relator Rui Penha, que aqui se seguiu. 455 Veja-se Almeida, Da Emphyteuse no Moderno Direito Civil Portuguez, 1898, pág. 55 456 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 279. 457 Almeida, Da Emphyteuse no Moderno Direito Civil Portuguez, 1898, pág. 57. 140 fiscalizar a atividade do foreiro sobre o aproveitamento de modo a saber-se se este é feito de acordo com o programa delineado.458 Coloca-se a questão de saber se os titulares de alvarás de aforamento não adquiriram o direito de propriedade perfeita sobre os prédios objeto do aforamento, face à extinção legal dos aforamentos rurais e urbanos operada pelo legislador português, respetivamente através do Decreto-Lei [do Governo de Portugal] nº 195-A/76, de 16 de Março (extinção do aforamento de prédios rústicos), e do Decreto-Lei [do Governo de Portugal] nº 233/76, de 2 de Abril (extinção do aforamento de prédios urbanos). Efetivamente, em ambos os casos, o foreiro (ou seja, o titular do alvará de aforamento) adquiriu o direito de propriedade plena sobre os prédios objeto do aforamento com a extinção deste, conforme arts. 1º, nº 1, e 1º, nº 2, dos referidos diplomas, respetivamente. Porém, como já se referiu, no acórdão do Tribunal de Recurso de 1-6-2012459 concluiu-se que os aludidos diploma não tiveram aplicação no território de Timor-Leste em virtude de naquelas datas o ordenamento jurídico português já não vigorar no território nacional. O CCI não regulava o aforamento, uma vez que o instituto que mais se aproximava do aforamento tinha duração limitada, não sendo perpétuo, com a designação de direito de ocupação por arrendamento de longa duração,460 previsto nos arts. 720º a 736º, sendo o seu regime mais próximo do arrendamento.461 Assim, nos termos do art. 3º, nº 2, do Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 1991, sobre a conversão dos direitos de propriedade sobre imóveis na Província de Timor Leste de acordo com a Lei de Bases Agrária, o direito de aforamento de terreno urbano foi convertido em direito de uso de 458 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa nº 0061321, de 29 Setembro 1992, in vlex.pt. No mesmo sentido, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa nº 0059011, de 26 Maio 1992, igualmente in vlex.pt. 459 Processo nº 05/Cível/Apelação/2012/TR, relator Rui Penha. 460 “Hak Guna Usaha (erfpacht)”. 461 Sendo certo, porém, que o mesmo é regulado na parte relativa aos direitos reais. A enfiteuse também era regulada na parte relativa aos direitos reais no Código Civil Português de 1996 (arts. 1491º a 1523º), mas era regulado na parte relativa aos contratos no Código Civil Português de 1867 (arts. 1653º a 1705º). 141 estruturas462 por um período de vinte anos.463 Este facto veio reforçar ainda mais a natureza de direito real menor do aforamento, aproximando-o agora ao direito de superfície consagrado nos arts. 711º a 719º do CCI. O direito de superfície é entendido como um direito autónomo – a se – próximo do direito de propriedade, mas que não se confunde com este.464 Assim se concluiu no acórdão do Tribunal de Recurso de 3-82010:465 “se é certo que o beneficiário do aforamento pode usar o prédio como seu, também é certo que ele não adquiriu o direito de propriedade plena sobre o mesmo”.466 Este alvará de aforamento só poderia converter-se em propriedade mediante remissão do foro, nos termos do art. 1511º do Código Civil Português de 1966, casos em que era emitido o competente alvará de propriedade.467 4.4.4. Renda resolúvel O direito de propriedade resolúvel encontrava-se previsto no art. 2171º do Código Civil Português de 1867 (Código de Seabra) como o que, “conforme o título da sua constituição, está sujeita a ser revogada, independentemente da vontade do proprietario”. No Código Civil Português de 1966 o mesmo é definido como propriedade sob condição (art. 1307º, nº 1).468 O nº 3 do art. 1307º remetia o regime do direito de propriedade resolúvel para os arts. 272º a 277º do mesmo diploma, ou seja, para o regime das condições 462 “Hak Guna Bangunan”. O “direito de uso de estruturas” (Hak Guna-Bangunan) encontra-se regulado na secção V (arts. 35º a 40º) da Lei de Bases Agrária (UNDANG-UNDANG POKOK AGRARIA – UUPA), aprovada pela Lei nº 5 de 1960. 464 Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 431. 465 Processo nº 01/Cível/Apelação/2009/TR. 466 No mesmo sentido o mencionado acórdão de 1-6-2012, processo nº 05/Cível/Apelação/2012/TR, relator Rui Penha. 467 Relatório da missão de trabalho em Timor-Leste de equipa técnica do Instituto dos Registos e do Notariado do Ministério da Justiça de Portugal. 468 Veja-se o art. 1227º, nº 1, do Código Civil. 463 142 resolutivas.469 Daí que se entenda que os contratos de renda resolúvel sejam celebrados sob condição resolutiva. Conforme se refere na sentença proferida pelo juiz João Felgar, a 10-11-2009,470 “o regime em causa [de concessão de terrenos para construção em regime de renda resolúvel] foi amplamente utilizado pelo Estado português a partir da década de 30 na construção subsidiada de imóveis (Decreto Lei nº 23052, de 23 de Setembro de 1933). Encarregando-se o Estado do financiamento da construção através da constituição de fundos, alienava os imóveis entretanto construídos sendo o respetivo preço pago em prestações mensais. Enquanto decorresse o prazo de pagamento, a propriedade do imóvel estava sujeita a uma série de limitações (nomeadamente, não podia ser sujeito a posteriores alienações, tanto mais que nem sequer estava registado a favor do adquirente; as benfeitorias careciam de autorização prévia, etc.). Caso o pagamento não viesse a completar-se, haveria lugar a um despejo do adquirente (desalojado por mandato, de acordo com a expressão empregue pelo legislador) e à perda das prestações pagas, havendo lugar à rescisão do contrato. “Em Timor Leste, enquanto colónia portuguesa, foi constituído o Fundo das Habitações Económicas pelo Decreto nº 46602, de 20 de Outubro de 1965, com a especial função de promover a construção de casas económicas em regime de propriedade resolúvel nos termos do DL nº 23 052, cujo funcionamento veio a ser regulado pela Portaria nº 3848, de 6 de Fevereiro de 1966”. Sendo o regime o de transmissão do direito sob condição resolutiva impõe-se a prova da verificação do pagamento integral do preço para que o titular do direito possa invocar o direito de propriedade sobre o imóvel.471 Porém, se o titular do direito faleceu antes de se 469 Conforme o art. 1228º do Código Civil. Processo nº 42/CIVEL/2009/TD.DIL, do Tribunal Distrital de Dili. 471 Acórdão do Tribunal de Recurso de 30-3-2009, processo nº 57/2003, relator José Luís da Goia (“Embora os efeitos do contrato celebrado, sob condição resolutiva propriedade resolúvel - se produzam logo aquando da conclusão do negócio, uma vez que o direito de propriedade sob condição resolutiva tem o conteúdo normal do direito de propriedade, é certo que nestes contratos realizados sob condição resolutiva, como são aqueles denominados de contrato de atribuição de moradia económica celebrados ao abrigo do disposto no Decreto Lei nº 23 052, de 23 de Setembro de 1933, em 470 143 concluir o pagamento, o direito de propriedade consolidava-se na pessoa dos seus herdeiros, cessando a obrigação de pagamento das prestações em falta, conforme disposto no art. 25º, § 4º, da Portaria nº 3 848, publicada no Boletim Oficial de Timor nº 5, de 5 de Fevereiro de 1966. 4.4.5. Alvará de arrendamento O contrato de arrendamento encontrava-se definido nos arts. 1022º e 1023º do Código Civil Português de 1966, como aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um imóvel, mediante retribuição (renda). A mesma definição encontrava-se no Código Civil Português de 1867 (arts. 1595º e 1596º).472 O alvará de arrendamento consubstancia um contrato de arrendamento com o Estado colonial português, pelo que apenas confere ao seu titular (arrendatário, ou inquilino), o direito ao uso e fruição do imóvel, por tempo limitado. Sendo assim, não pode constituir meio de aquisição do imóvel, nem confere posse ao arrendatário.473 Os alvarás de arrendamento conferidos pela Administração Colonial Portuguesa foram convertidos em direito de uso (Hak Pakai), pelo período de 10 anos pelo art. 4º, nº 2, do Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 1991, 5. Transmissão do direito de propriedade sobre imóveis474 A transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, bem como a constituição, transmissão ou alteração de qualquer outro direito real sobre imóveis, tem que ser efetuada por escritura pública (art. 809º princípio, a plena propriedade do prédio objecto do contrato, apenas se transmite com o pagamento da última prestação da renda mensal”). 472 Art. 1595º: “Dá-se contrato de locação, quando alguem traspassa a outrem, por certo tempo, e mediante certa retribuição, o uso e fruição de certa coisa”. Art. 1596º: “A locação diz-se arrendamento quando versa sobre cousa immovel”. 473 Conforme referido supra (Título II, Capítulo II, als. b) e d), o arrendatário é mero detentor, não possuidor, sendo possuidor o senhorio, no caso o Estado, que exerce a posse por intermédio do arrendatário. 474 Esta matéria foi já objecto de estudo supra no título I, capítulos 2 (al. h) e 3. 144 do Código Civil e arts. 617º e 613º do CCI). No mesmo sentido, o art. 37º, nº 2, al. a), do Regime Jurídico do Notariado (Decreto-Lei nº 3/2004, de 4 de Fevereiro) estabelece a obrigação da celebração dos referidos negócios por escritura pública. A falta de observância desta forma determina a nulidade do contrato (art. 211º do Código Civil e art. 617º do CCI). Contrariamente ao que ocorre no Código Civil, o CCI prescrevia a natureza constitutiva do registo dos atos de transmissão, constituição ou alteração de direitos reais (arts. 616º, 617º e 620º do CCI), o que significa que tais atos, como seja a compra e venda de imóveis só poderão produzir efeitos após o registo.475 Ou seja, enquanto no âmbito do CCI é obrigatório o registo dos atos referidos para que os mesmos possam produzir os seus efeitos, o novo Código Civil basta-se com a obrigação de celebração dos negócios por escritura pública, produzindo eles os seus efeitos mesmo que não se proceda ao respetivo registo, que assim é facultativo.476 475 Por isso a prova dos contratos de transmissão, constituição ou alteração de direitos reais só pode ser feita mediante certidão do registo em vez de mera certidão da escritura pública do contrato (art. 617º, 2ª parte, do CCI). 476 O mesmo regime vigorava no âmbito do Código Civil Português de 1867 (art. 1590º), podendo, porém, a venda ser feita por escrito particular se o imóvel tivesse valor inferior a cinquenta mil réis, e no âmbito do Código Civil Portugês de 1966 (art. 875º do). No entanto, o negócio só produzia efeitos em relação a terceiros após o registo (art. 1549º do Código Civil Português de 1867 e art. 7º, nº 1, do Código de Registo Predial Português aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 611, de 28 de Março de 1967). Ou seja, o negócio produzia efeitos entre os contraentes (vendedor e comprador), mas só poderia ser oposto a outras pessoas após o registo. 145 146 IV – COMPROPRIEDADE 1. Definição Existe compropriedade, ou propriedade em comum, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (art. 1323º, nº 1, do Código Civil).477 A doutrina divide-se relativamente à natureza jurídica da compropriedade. a) A doutrina tradicional entende a compropriedade como a coexistência dos direitos de cada um dos comproprietários sobre uma quota ideal do bem (cada um dos comproprietários tem direito a uma fração do bem, mas esta não é especificada, é meramente ideal, só com a divisão a mesma pode ser determinada);478 b) Para outra, existem diversos direitos de propriedade, individuais, sobre o mesmo objeto, que se limitam reciprocamente;479 c) Finalmente, para outra, existe um único direito com vários titulares.480 Afigura-se que a lei seguiu a primeira das apontadas posições:481 cada um dos direitos em concurso incide sobre a coisa comum, embora não se refira a parte específica da mesma.482 Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa 477 Determinado direito pode pertencer a vários indivíduos ao mesmo tempo, caso em que se configura a comunhão. Se recair tal comunhão sobre um direito de propriedade tem-se o condomínio ou compropriedade. Um estado anormal da propriedade; uma vez que, tradicionalmente, a propriedade pressupõe assenhoreamento de um bem com exclusão de qualquer outro sujeito, a existência de uma co-titularidade importa uma anormalização da sua estrutura. 478 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 255, citando Manuel Rodrigues. 479 Luís Pinto Coelho, segundo Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 257. No mesmo sentido Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 271 (“Na comunhão encontramos uma pluralidade de direitos da mesma espécie, que recaem sobre idêntica coisa”). 480 Henrique Mesquita, segundo Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 255. 481 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, págs. 256-257. 482 Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 350. 147 comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes;483 as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo (art. 1323º, nº 1, do Código Civil). As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles (art. 1324º do Código Civil). A aplicação das regras da compropriedade à comunhão de quaisquer outros direitos tem importância, designadamente para efeitos de direito de preferência.484 Daqui resulta, por exemplo, que o direito de preferência, próprio da compropriedade, também se aplica aos casos de contitularidade do direito de usufruto, de servidão, ou de qualquer outro direito real. Não existia no CCI regulamentação autónoma da compropriedade, pelo que se deve usar o regime resultante da aplicação das regras da propriedade e da distribuição e divisão de herança, por analogia (art. 573º do CCI). Para se poder falar em comunhão é necessário que os diversos direitos (dos diferentes proprietários) que incidem sobre a mesma coisa sejam idênticos, isto é, que sejam qualitativamente iguais. Podem ser, no entanto, quantitativamente diferentes, no sentido de as respetivas afetações implicarem diferentes percentagens das utilidades e valor da coisa.485 Ou seja, todos têm que ser proprietários, sem limitações especiais para algum deles, mas um pode ter, por exemplo, uma quota de 75% da propriedade comum e o outro ter apenas os restantes 25%; as quotas de cada comproprietário podem ser diferentes. 483 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 266 (“ao contrário do que acontece nas outras hipóteses de sobreposição de direitos reais, as posições do vários participantes são qualitativamente idênticas. Não se deduza daí que também são quantitativamente idênticas. Pode a repartição quantitativa ter-se feito de modo a que a um pertença 1/6, a outro 1/3, a outro 1/2 ... Intervém assim uma noção de quota”). 484 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 252. 485 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 621. 148 Compropriedade é diferente da herança indivisa.486 No caso de herança indivisa o direito de propriedade é apenas um, o da própria herança enquanto património autónomo. Só após a aceitação da herança os bens que a integram poderão passar a pertencer em compropriedade a vários herdeiros.487 Também se distingue a compropriedade da sociedade, uma vez que esta pressupõe uma atividade económica que não seja de mera fruição, ao passo que a compropriedade é uma atividade de mera fruição.488 Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e participam separadamente nas vantagens e encargos da coisa na proporção das suas quotas (art. 1325º, nº 1, do Código Civil). Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este terceiro seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro (art. 1325º, nº 2, do Código Civil).489 Ou seja, o comproprietário tem legitimidade para intentar uma ação de reivindicação contra outra pessoa (que não seja igualmente comproprietário), sem necessidade de intervenção dos restantes titulares do direito.490 486 No CCI a herança só permanece indivisa no caso de se desconhecerem os herdeiros, ou não haja acordo sobre quem tenha tal qualidade, caso em que a herança é colocada sob custódia judicial (art. 833º do CCI). Assim, logo que seja seja aberta a herança, os bens do de cujus passam a ser titulados em compropriedade pelos seus herdeiros. 487 Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 936, citando os acórdãos da Relação de Coimbra de 26-6-1968 e da Relação de Lisboa de 1-3-1973, respectivamente na Revista dos Tribunais, ano 88º, pág. 95, e sumariado no Boletim do Ministério da Justiça de Portugal, nº 235, pág. 346. 488 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 254. 489 No âmbito do CCI (art. 834º), o herdeiro pode exigir a restituição da totalidade dos bens da herança de qualquer pessoa que não seja herdeiro, mas só pode exigir a sua quota se os bens estiverem na posse de outros ou outros herdeiros. Parece, assim, que o CCI segue a doutrina de que a compropriedade é constituída por direitos individuais convergentes sobre os mesmos bens. Porém, não se compreende como se pode conseguir a entrega de uma quota em caso de compropriedade sem se proceder à divisão para partilha. 490 Ou seja, não se verifica aqui o litisconsórcio necessário previsto no art. 31º do CPC. 149 2. Direitos e encargos do comproprietário Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito (art. 1326º, nº 1, do Código Civil). O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título (art. 1326º, nº 2, do Código Civil).491 Ou seja, se um comproprietário possuir as partes dos outros, pode adquirir essas partes por usucapião, mas apenas se, relativamente a elas, inverter o título de possuidor em nome alheio. Até à inversão do título, o comproprietário que possua a totalidade do prédio é possuidor em nome alheio da parte que exceder a sua quota.492 A inversão do título de posse, entre eles, apenas se poderá dar por oposição de um ao outro dos contitulares, ou do uso por um contra o uso que o outro pretendesse fazer da coisa. O estado de facto criado pela divisão feita pelos comproprietários sem escritura ou ato público pode converter-se em estado de direito, mediante usucapião, se cada um dos comproprietários tiver exercido posse exclusiva sobre o quinhão que ficou a pertencer-lhe na divisão e tal posse se revestir dos requisitos legais. 493 É o caso, muito comum, de partilha de herança meramente informal, que podem conferir o direito a uma parte determinada do imóvel que integrava a herança, devido ao decurso do tempo. 491 Conforme supra (Título II, Capítulo IV, al. d), para que o comproprietário possa invocar a posse para efeitos da aquisição do direito de propriedade sobre a totalidade do direito, terá que primeiro proceder à inversão do título de posse, nos termos dos arts. 1185º do Código Civil e 1960º e 1961º do CCI. 492 “Há aqui uma aplicação dos princípios gerais: enquanto não houver inversão do título, a posse de cada um mede-se pelo título que possui” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 267). 493 Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 939. 150 3. Administração da coisa É aplicável aos comproprietários, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 916º, relativo à administração das sociedades civis (art. 1327º, nº 1, do Código Civil). Nos termos do art. 916º, nº 1, do Código Civil, na falta de convenção em contrário, todos os comproprietários têm igual poder para administrar. Pertencendo a administração a todos ou apenas a alguns deles, qualquer dos comproprietários tem o direito de se opor ao ato que outro pretenda realizar, cabendo à maioria decidir sobre o mérito da oposição (art. 916º, nº 2, do Código Civil). O conflito é resolvido pela recíproca limitação no exercício dos direitos concorrentes, de modo a chegar-se a uma situação de paralelismo das vantagens e sacrifícios.494 Pertencendo a administração a todos os comproprietários em conjunto, entende-se, em caso de dúvida, que as deliberações podem ser tomadas por maioria (art. 916º, nº 3, do Código Civil). Salvo estipulação noutro sentido, considera-se tomada por maioria a deliberação que reúna os sufrágios de mais de metade dos comproprietários (art. 916º, nº 4, do Código Civil). Contudo, para que se verifique a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas (art. 1327º, nº 1, do Código Civil). Não basta uma maioria pessoal de votos, é necessário que essa maioria represente também a maioria das quotas. Ou seja, as maiorias referidas nestas disposições legais são constituídas simultaneamente pela maioria dos votos (dos comproprietários), mas esta tem que constituir também a maioria das quotas.495 Por exemplo se um comproprietário possui 60% do direito sobre o bem e mais quatro têm 10% cada um, o que tem a quota maior tem que votar a decisão, sob pena de ter que se recorrer ao tribunal para dirimir a questão.496 Ainda que para a administração em geral, ou para determinada 494 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 265-266. Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 940, e Cordeiro, Direitos Reais, 1993, pág. 624. 496 “Exige-se pois uma maioria ponderada” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 268). 495 151 categoria de atos, seja exigido o assentimento de todos os comproprietários, ou da maioria deles, a qualquer deles é lícito praticar os atos urgentes da administração destinados a evitar um dano iminente (art. 916º, nº 5, do Código Civil). É possível cada comproprietário praticar atos de administração isoladamente. A cada comunheiro é lícito praticar atos de administração, enquanto não houver oposição dos restantes. Os comproprietários podem deliberar, por maioria a forma de administração da coisa. Se o não fizerem aplicam-se as regras que supletivamente regem sobre a administração das sociedades (art. 916º do Código Civil). Quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade (art. 1327º, nº 2, do Código Civil). Os atos realizados pelo comproprietário contra a oposição da maioria legal dos consortes são anuláveis e tornam o autor responsável pelo prejuízo a que der causa (art. 1327º, nº 3, do Código Civil). 4. Disposição e oneração da quota O comproprietário pode dispor de toda a sua quota na comunhão ou de parte dela, mas não pode, sem consentimento dos restantes consortes, alienar nem onerar parte especificada da coisa comum (art. 1328º, nº 1, do Código Civil).497 A disposição ou oneração de parte especificada sem o consentimento dos consortes é havida como disposição ou oneração de coisa alheia (art. 1328º, nº 2, do Código Civil). Tal como acontece no caso de venda de coisa alheia, sendo embora a mesma anulável na relação entre o comprador e o vendedor, no caso de venda ou arrendamento da totalidade da coisa por um dos comproprietários, sem o consentimento dos restantes, o negócio é ineficaz em relação a estes, pelo que os mesmos não têm que tomar 497 Tratando-se a compropriedade de um direito de propriedade sobre uma quota ideal, não pode o compropietário dispor daquilo de que não é proprietário, uma determinada parte individual do bem comum. 152 qualquer atitude no sentido de o declarar, apenas tendo que se comportar como se o negócio não existisse. Segundo Vaz Serra, “Os aforismos res inter alios acta aliis non prodest nec nocet e nemo plus júris transferre potest quam ipse habet, são também aplicáveis à venda, feita por um dos comproprietários, da coisa ou de parte especificada dela, sem consentimento dos outros, dado que essa venda representa venda de coisa alheia no que se refere aos direitos de compropriedade ou de quotas dos demais comproprietários: ao dispor de coisa comum ou de parte determinada desta, o comproprietário dispõe, não apenas do seu direito sobre a coisa, mas também dos direitos dos outros sobre ela. Há aí, portanto, no que respeita ao direito deles, uma venda ou disposição de coisa alheia. “Consequentemente, essa venda é ineficaz em relação aos consortes que nela não consentiram, tal como é ineficaz em relação ao versus dominus a venda de coisa totalmente sua em que ele não consinta. Resulta daí que esses consortes não precisam de fazer anular o contrato podendo comportar-se como se ele não tivesse sido celebrado”.498 No entanto, o contrato de compra e venda de coisa comum por apenas um dos comproprietários pode ser convertido, pelas partes contratantes, num contrato de compra e venda da quota do vendedor na coisa comum. A disposição da quota está sujeita à forma exigida para a disposição da coisa (art. 1328º, nº 3, do Código Civil). Assim, no caso de venda de quota referente a bem imóvel, a mesma tem que ser celebrada por escritura pública (art. 809º do Código Civil).499 O consentimento dos restantes comproprietários terá que ser prestado pela mesma forma exigida para o negócio, ou seja, por escritura pública se for o caso de venda da quota referente a um bem imóvel. O consentimento pode ser anterior, contemporâneo ou mesmo posterior ao negócio. 498 In “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 103º, pág. 56, citado por Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 941. 499 No mesmo sentido os arts. 617º e 618º do CCI. 153 5. Direito de preferência O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes (art. 1329º, nº 1, do Código Civil). Para José de Oliveira ascensão, “O direito de preferência atribui a um sujeito a prioridade na aquisição, em caso de alienação ou oneração realizada pelo titular actual de um direito real”. 500 Complementam Álvaro Moreira e Carlos Fraga que, “O direito real de preferência confere a pessoas em certas situações a possibilidade de adquirirem uma coisa, no caso de o proprietário dela a pretender alienar e o preferente estar disposto a pagar por ela a mesma importância que o terceiro adquirente se propõe pagar. É, portanto, o direito de fazer suas certas coisas, dando o valor pelo qual se projecta negociar a coisa”. 501 Como resulta do texto legal, a preferência só se verifica no caso de venda a estranhos na comunhão, assim, no caso de venda a um outro comproprietário, os restantes comproprietários não gozam de tal direito.502 O direito de preferência só vale para os negócios onerosos, e não para os negócios gratuitos, pelo que não pode haver preferência, como é evidente, no caso de doação de bens.503 O direito de preferência tem a natureza de um direito real de aquisição.504 No caso do direito de preferência conferido ao comproprietário, estamos perante um caso de preferência legal.505 O titular do direito de preferência pode renunciar ao mesmo antecipadamente. É aplicável à preferência do comproprietário, com as adaptações 500 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 571. Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 138. 502 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, pág. 333. 503 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 263. 504 Sobre a natureza do direito de preferência Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 574-576. 505 O direito de preferência pode ter a natureza negocial, resultando de cláusula testamentária (art. 2098º do Código Civil), ou de pacto de preferência (arts. 349º a 358º do Código Civil). As preferências legais são típicas, no sentido de terem de estar especialmente previstas na lei. 501 154 convenientes, o disposto nos artigos 351º a 353º506 (art. 1329º, nº 2, do Código Civil). Assim, querendo vender a coisa que é objeto da preferência, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato (art. 351º, nº 1, do Código Civil). O Código não estipula qualquer exigência de forma para a comunicação, pelo que se deve considerar válida qualquer forma que dê a conhecer ao titular do direito de preferência os aludidos elementos do negócio projetado.507 O obrigado à preferência, ou seja, o vendedor, deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda com as cláusulas essenciais correspondentes e que são determinativas e condicionantes da vontade do titular em preferir ou não, nomeadamente a identificação do comprador e o preço.508 Significa isto que, quer no caso de projeto de venda, quer no caso de venda consumada, o titular do direito tem sempre que conhecer os elementos ou cláusulas essenciais do negócio realizado ou projetado porque só assim poderá formar a sua vontade com pleno conhecimento de causa. Só depois dessa comunicação se pode constatar se o preferente renunciou ou não ao direito de que era titular. Efetivamente, recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade (art. 351º, nº 2, do Código Civil).509 506 Normas que regulam a preferência convencional (estabelecida mediante contrato). Não é, portanto, exigida a forma escrita, podendo fazer-se a mesma verbalmente (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 577). Porém, uma vez que é o alienante que tem o ónus de prova da comunicação (art. 510º, nº 2, do CPC), deve este adoptar um meio de comunicação que lhe permita a prova do mesmo (se a comunicação for verbal, deve o vendedor fazer-se acompanhar de pessoas que possam testemunhar a mesma). 508 A identificação do comprador é considerado elemento essencial para determinar a vontade do titular do direito em preferir, uma vez que tendo o mesmo que partilhar a propriedade sobre o bem com este, a pessoa em causa pode assumir particular relevância atenta a própria natureza da compropriedade. 509 A caducidade não precisa ser alegada pelo beneficiário, uma vez que neste caso é de conhecimento oficioso, por se tratar de norma de ordem pública (324º, nº 1, do Código Civil). Neste sentido Antunes Varela, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 103º, pág. 298, e contra Vaz Serra, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 78º, pág. 182, ambos citados por Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 947. 507 155 Estamos perante uma declaração unilateral de vontade, recetícia, e que produz efeitos a partir do momento em que chega à esfera do conhecimento do destinatário ainda que este dela não tome conhecimento efetivamente (art. 215º do Código Civil). Estes factos (conhecimento dos elementos completos da venda e inércia continuada e por tempo determinado, que conduz à caducidade do direito) são factos extintivos que como tal têm que ser provados pelo vendedor (art. 510º, nº 2, do CPC). A comunicação da venda ou do projeto de venda, se não contiver todos os elementos essenciais do negócio, omitindo ou adulterando cláusulas essenciais que constam dele, tem a mesma consequência da omissão do obrigado à preferência na comunicação ao titular do direito da venda ou do projeto de venda. Neste caso, se o obrigado à preferência vier a vender a terceiros o prédio que devia dar de preferência, o titular do direito pode exercê-lo nos seis meses seguintes à data em que teve conhecimento completo dessas mesmas cláusulas essenciais do contrato que condicionam a vontade do preferente em exercer ou não o direito (art. 1330º, nº 1, do Código Civil). Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável (art. 352º, nº 1, do Código Civil). Se o obrigado receber de terceiro a promessa de uma prestação acessória que o titular do direito de preferência não possa satisfazer, será essa prestação compensada em dinheiro; não sendo avaliável em dinheiro, é excluída a preferência, salvo se for lícito presumir que, mesmo sem a prestação estipulada, a venda não deixaria de ser efetuada, ou que a prestação foi convencionada para afastar a preferência (art. 353º, nº 1, do Código Civil). Se a prestação acessória tiver sido convencionada para afastar a preferência, o preferente não é obrigado a satisfazê-la, mesmo que ela seja avaliável em dinheiro (art. 353º, nº 2, do Código Civil). Sendo dois ou mais os preferentes, a quota alienada é adjudicada a todos, na proporção das suas quotas (art. 1329º, nº 3, do Código Civil). 156 6. Ação de preferência O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada,510 mediante ação judicial, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação (art. 1330º, nº 1, do Código Civil).511 Por força do disposto no art. 289º, nº 2, do Código Civil, tal prazo só pode ser entendido como prazo de caducidade. Nos termos do disposto no art. 319º, ainda do Código Civil, o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe, o que significa que a única forma de evitar a caducidade é praticar o ato dentro do prazo fixado.512 Assim, para obstar à caducidade basta à parte intentar a ação dentro do prazo estipulado, não tendo que se preocupar se os réus serão ou não citados ainda no decurso de tal prazo.513 O direito de preferência só nasce com a aquisição efetiva do prédio e não com a comunicação da intenção da mesma, ou com o contrato-promessa respetivo. A referida comunicação apenas serve para concluir pela prévia renúncia ao exercício do direito.514 A procedência de uma ação de preferência tem como consequência necessária uma modificação subjetiva no negócio que justificou o exercício do respetivo direito. Modificação subjetiva, com eficácia ex tunc, por concretamente colocar o preferente na posição que 510 “Se a alienação tiver sido realizada fora das condições legais manifesta-se então o direito real” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 577). O titular do direito de preferência (o preferente), através do exercício do direito de preferência, pode ficar com o bem alienante, reembolsando o comprador pelo preço por ele pago na aquisição de tal bem. 511 A ação de preferência segue a forma de ação declarativa de condenação, com processo comum (arts. 3º, nº 2, al. b), e 347º, nº 2, do CPC), com as especialidades referidas no art. 1330º do Código Civil (embora aqui se encontre elementos próprios das acções constitutivas). 512 Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 1995, pág. 571. 513 Já o prazo de prescrição só se interrompe com a citação do réu, conforme o art. 314º, nº 1, do Código Civil, sem prejuízo do disposto no nº 2, do mesmo artigo. Veja-se no mesmo sentido os arts. 1979º e 1980º do CCI. 514 Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 2003, pág. 225, e in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 126º, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, pág. 62. 157 inicialmente detinha o adquirente da coisa.515 O direito de preferência não envolve a obrigação de contratar, mas apenas a de, querendo a pessoa contratar, escolher certa pessoa (o preferente) antes de qualquer outra, em igualdade de circunstâncias com a sua contraparte.516 A preferência pressupõe a concorrência ou colisão de direitos opostos ou inconciliáveis sobre a mesma coisa, sendo o do preferente superior.517 A ação deve ser posta pelo menos contra o adquirente da coisa, mas há quem entenda que se deve demandar o adquirente e o alienante, que estava obrigado a dar a preferência.518 Certo é, porém, que, produzindo a preferência apenas uma substituição da posição do comprador o vendedor não tem verdadeiramente interesse na ação, pelo que não se poderá considerar que a sua falta constitua motivo de ilegitimidade (conforme art. 29º do CPC).519 O direito de preferência e a respetiva ação não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transação judicial (art. 1330º, nº 2, do Código Civil). 7. Benfeitorias necessárias Os comproprietários devem contribuir, em proporção das respetivas quotas, para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum, sem prejuízo da faculdade de se eximirem do encargo renunciando ao seu direito (art. 1331º, nº 1, do Código Civil). No caso de um comproprietário entender que os encargos com a coisa são 515 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, pág. 380. Antunes Varela, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 115º, Coimbra: Coimbra Editora, 1983, pág. 274. 517 Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 18 de Janeiro de 1979, in “Boletim do Ministério da Justiça de Portugal”, nº 283, Lisboa, 1979, pág. 279. Vejase Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 576 (a preferência está ou pode estar “relacionada com um conflito de direitos reais que ela, por liquidação, vai solucionar”). 518 Veja-se Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 578. 519 Ou seja, não se está perante um caso de litisconsórcio necessário do art 31º do CPC. 516 158 excessivos terá que renunciar ao direito de propriedade sobre o imóvel. Caso contrário terá que comparticipar nos mesmos. A renúncia, porém, não é válida sem o consentimento dos restantes consortes, quando a despesa tenha sido anteriormente aprovada pelo interessado, e é revogável sempre que as despesas previstas não venham a realizar-se (art. 1331º, nº 2, do Código Civil). A renúncia do comproprietário está sujeita à forma prescrita para a doação e aproveita a todos os consortes, na proporção das respetivas quotas (art. 1331º, nº 3, do Código Civil). A renúncia relativa ao direito de compropriedade sobre coisa imóvel só será válida se for celebrada por escritura pública (art. 881º, nº 1, do Código Civil).520 As obrigações referidas neste artigo quanto às despesas de conservação ou fruição da coisa comum constituem exemplo típico de obrigações propter rem ou ob rem, isto é, de obrigações impostas, em atenção a certa coisa, a quem for titular desta. Assim, dada a conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é determinada através da titularidade da coisa: é obrigado quem for titular do direito real. Como a obrigação existe por causa da res, ao obrigado é concedida a faculdade de se libertar dela, renunciando ao seu direito real (abandono liberatório).521 Se o comproprietário obrigado renunciar ao seu direito, quem adquire a quota são os outros comproprietários. Trata-se de uma espécie de compensação para o encargo acrescido que eles têm nas despesas de conservação ou nas benfeitorias necessárias. 8. Extinção da compropriedade 8.1. Direito de exigir a divisão Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa (art. 1332º, nº 1, do Código Civil).522 O prazo fixado para a indivisão da coisa não excederá cinco 520 Conforme o art. 211º do Código Civil. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 1993, pág. 151. 522 A este propósito veja-se o art. 1066º do CCI, com redacção semelhante. 521 159 anos; mas é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção (art. 1332º, nº 2, do Código Civil).523 Trata-se de uma exceção ao princípio contido no número 1 do art. 1332º.524 A indivisibilidade pode constar do negócio de aquisição do bem, acordando todos os comproprietários que não se poderá proceder à divisão durante um determinado prazo, ou pode ser fixada em testamento. A cláusula de indivisão vale em relação a terceiros, mas deve ser registada para tal efeito, se a compropriedade respeitar a coisas imóveis ou a coisas móveis sujeitas a registo (art. 1332º, nº 3, do Código Civil). O registo é necessário para que a cláusula possa ser oposta a terceiros. Assim, na ausência de registo, o terceiro que tenha adquirido a quota pode exigir a divisão. 8.2. Processo da divisão A divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei do processo (art. 1333º, nº 1, do Código Civil). Ou seja, a divisão pode ser efetuada por via negocial (amigavelmente), ou por meio de ação judicial, quando os interessados não chegaram a um entendimento. A ação judicial deve seguir a forma de ação declarativa de condenação, com processo comum (arts. 3º, nº 2, al. b), e 347º, nº 1, do CPC).525 Deve, porém, comprovado o direito do autor e citados os réus, depois de proferido o despacho saneador,526 proceder-se a conferência entre as partes, para se tentar obter a divisão amigável (art. 400º, nº 2, do CPC), seguindo-se sorteio se os bens tiverem igual valor ou licitações, após o que se proferirá sentença adjudicando-se os quinhões respetivos a um dos comproprietários e condenando-se os obrigados a pagar tornas 523 O mesmo prazo é fixado no aludido art. 1066º do CCI. Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 266. 525 Neste caso a prova deverá consistir apenas na determinação dos interessados, caso isso tenha sido questionado, na verificação da divisibilidade ou indivisibilidade do bem e no apuramento dos factos necessários a que se proceda à divisão à formação de quinhões, ou para se decidir pela indivisibilidade do bem. Neste caso, antes de proferida a sentença, deverá ainda o juiz realizar uma diligência para sorteio das fracções. 526 Independentemente da conciliação prevista no art. 385º do CPC. 524 160 no seu pagamento. Tratando-se de bem indivisível, procede-se então a licitações para determinar para quem fica o bem, após o que se proferirá sentença adjudicando-se o bem a um dos comproprietários e condenando-se este a pagar o preço devido aos restantes. A divisão amigável está sujeita à forma exigida para a alienação onerosa da coisa (art. 1333º, nº 2, do Código Civil). Assim, no caso da divisão por via negocial de bem imóvel, a mesma tem que ser realizada por escritura pública.527 Como já se referiu, o estado de facto criado pela divisão feita pelos comproprietários sem escritura ou auto público pode converter-se em estado de direito, pelo princípio da usucapião, se cada um dos comproprietários tiver exercido posse exclusiva sobre o quinhão que ficou a pertencer-lhe na divisão e tal posse se revestir dos requisitos legais.528 Por exemplo, se dois ou mais herdeiros de um terreno procedem à divisão informal do mesmo (sem celebração de qualquer escritura pública) e passam a usar cada um uma parte determinada do aludido terreno, ainda formalmente indiviso, decorrido o prazo de usucapião de imóveis, passam a ser proprietários da porção de terreno que cada um ocupa. 527 528 Arts. 809º e 211º do Código Civil. Neto, Código Civil Anotado, 1993, pág. 964. 161 162 V – PROPRIEDADE HORIZONTAL 1. Definição As frações de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal (art. 1334º do Código Civil). Há propriedade horizontal quando as frações autónomas componentes de um prédio pertençam a proprietários diferentes. Esses proprietários diversos são chamados de condóminos. Cada condómino é proprietário exclusivo da sua fração e comproprietário das partes comuns do prédio (art. 1340º, nº 1, do Código Civil). Atualmente, isto tem uma importância maior, especialmente nos grandes centros urbanos que crescem verticalmente, e com o acentuar dessa tendência também se acentua a importância da propriedade horizontal. Os requisitos da propriedade horizontal são assim de ordem material e referem-se ao objeto: a) Uma construção organizada de modo a que o edifício possa ser fracionado e em que as frações resultantes possam ser autónomas e independentes entre si. Autónomas no sentido de cada uma delas ser autossuficiente para o fim a que se destina; independentes por cada uma delas dever garantir a necessária privacidade para o fim a que se destina;529 b) O edifício, para além de ser fracionado em partes com as características indicadas, tem que ter partes comuns. 530 Não há propriedade horizontal sem que existam partes comuns e frações 529 Nos termos do art. 1335º do Código Civil, “só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública”. Veja-se Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 462. 530 “A propriedade horizontal supõe que não há autonomia estrutural das várias fracções, na medida em que fazem parte do mesmo objecto unitário, e que funcionalmente haja utilização de coisas comuns – escadas, ascensores, canalizações, etc. (Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 273). 163 autónomas. O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respetivo regime é o facto de as frações independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária.531 Não existe no CCI regulamentação autónoma para a propriedade horizontal. 2. Modos de constituição da propriedade horizontal Encontram-se previstos no art. 1337º, nº 1, do Código Civil, e são negócio jurídico, usucapião ou decisão judicial proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário. 2.1 Usucapião Pode dar-se quando, num prédio com todas as características necessárias para a propriedade horizontal, se verifique uma situação de posse sobre as partes autonomizáveis do mesmo.532 2.2 Decisão judicial Havendo um edifício em compropriedade, um dos meios de proceder à sua divisão, em ação de divisão de coisa comum, é a constituição de uma propriedade horizontal, desde que, em termos materiais, se verifiquem os requisitos da propriedade horizontal. Também pode haver constituição da propriedade horizontal em processo de partilhas. Até porque a instituição da propriedade horizontal é a única forma que se conhece para dividir um prédio urbano, um edifício.533 531 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 271. Assim, por exemplo, num prédio com quatro fracções autonomizáveis, cada uma delas é ocupada por uma família, com o animus de proprietário apenas dessa fracção, pelo prazo correspondente à prescrição aquisitiva do direito de propriedade sobre imóveis. 533 “Figure-se que dois indivíduos são co-herdeiros de um proprietário de um prédio, cada um deles tendo direito a uma quota ideal; em vez de um deles ficar com o prédio e o outro receber tornas, decidem fazer a divisão submetendo o prédio ao regime de 532 164 A decisão judicial de constituição de propriedade horizontal deve ser pedida por uma das partes.534 2.3 Negócio jurídico Neste caso pode acontecer uma de duas situações: 1º - Existir um prédio já construído cujo proprietário decide submetê-lo por qualquer razão, ao regime da propriedade horizontal. Para tanto, há que celebrar um título constitutivo que consiste numa escritura que o notário lavrará com base no documento que a entidade competente para verificar os requisitos materiais da propriedade horizontal atesta.535 A partir do momento de celebração do título constitutivo, as frações autónomas estão aptas para serem adquiridas. O direito pleno e exclusivo do proprietário do edifício altera-se, já que as vicissitudes da coisa afetam o direito. Então, deixa de existir um direito de propriedade para passarem a existir vários direitos de propriedade, tantos, quantas as frações autónomas existentes. O fracionamento do edifício implica automaticamente o fracionamento do direito, o que significa que, ainda que haja um só proprietário, existem vários direitos de propriedade, tantos quantas as frações autónomas. 2º - Edifícios construídos tendo em vista a aplicação desde o início do regime da propriedade horizontal. Neste caso, a constituição da propriedade horizontal só surge a partir do momento em que o edifício está em condições de cumprir o fim a que se destina. propriedade horizontal, porque se verificam os requisitos respectivos e cada um deles fica com um certo número de unidades equivalentes às do outro; fazem a divisão criando o regime de propriedade horizontal” (Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 279). 534 Princípios do impulso processual (art. 7º do CPC) e do dispositivo em processo civil (art. 220º do CPC). 535 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 275. 165 3. Conteúdo obrigatório do ato de constituição da propriedade horizontal O art. 1338º do Código Civil indica os aspetos que têm que constar obrigatoriamente do título constitutivo: - Identificação derivada das várias frações autónomas; - Valor de cada fração relativamente ao todo, determinado em percentagem ou permilagem. O título constitutivo tem ainda que indicar qual o fim que se destina a propriedade horizontal. A fração autónoma é objeto de um direito de propriedade exclusiva, enquanto as partes comuns são objeto de compropriedade. A expressão propriedade horizontal designa um regime jurídico que vai dar lugar à figura do condómino. Por força da realidade material, o direito de condómino tem uma estrutura bipartida e complexa, porque engloba, como já se viu: a) Um direito de propriedade exclusiva sobre a fração autónoma; b) Um direito de compropriedade sobre as partes comuns. O condómino não tem dois direitos, tem um único direito que possui esta estrutura complexa, ou seja, o direito do condómino é integrado por dois direitos que se fundem para dar origem a um direito diferente. Nesta fusão, ambos os direitos perdem algumas das características que lhe são fundamentais, quando considerados isoladamente.536 Por isso, o direito de propriedade, além das limitações normais da propriedade em geral, encontra-se neste caso também limitado por outras limitações constantes do art. 1342º do Código Civil, sendo a principal, a limitação pelo fim específico a que a coisa se destina; Também a compropriedade sofre alterações importantes, visto 536 Sobre a natureza do regime da propriedade horizontal veja-se Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, págs. 463-464, e Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, págs. 273274. 166 que se trata de uma compropriedade forçada, no sentido de que, aqui, a regra é a impossibilidade de divisão. Além disso, os condóminos não gozam do direito de preferência na aquisição.537 Frequentemente, o título constitutivo não identifica quais as partes comuns. Porém, tudo aquilo que não seja devidamente especificado no título como fração autónoma considera-se parte comum e, como tal, pode ser usado por todos. Existe ainda a possibilidade de consignar, no título constitutivo, a utilização exclusiva de uma parte comum por uma fração autónoma. As partes comuns encontram-se definidas pelo art. 1341º do Código Civil538 e, nem todas as partes comuns têm a mesma natureza: - Há partes obrigatoriamente comuns (nº 1); - Há partes presumidamente comuns (nº 2). Face a esta disposição, o título constitutivo que especifica alguma das partes obrigatoriamente comuns como inteirando (integrando) uma fração autónoma, será nulo quanto a tal indicação. No entanto, o título constitutivo pode afetar uma destas partes obrigatoriamente comuns ao uso exclusivo de um titular de uma fração autónoma. Aquela parte do prédio continua a ser comum, embora seja utilizada exclusivamente por um condómino.539 No que concerne às partes obrigatoriamente comuns, nenhum dos condóminos pode negarse ao pagamento dos encargos de conservação e fruição. Já relativamente às partes presumidamente comuns, o título constitutivo pode identificar qualquer destas partes como parte integrante de uma fração autónoma. 537 Veja-se Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 464. “São necessariamente comuns o solo e tudo o que constitui a estrutura do prédio, a cobertura, as entradas e passagens que não sejam de uso exclusivo de um dos condóminos e as instalações gerais de água, electricidade, aquecimento e semelhantes” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 462). 539 Por exemplo, é usual que o proprietário do último andar de um prédio possa usar o terraço do mesmo quando a casa dá directamente para tal terraço. 538 167 4. Administração das partes comuns na propriedade horizontal Conforme referido por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, “É necessária a existência de uma estrutura adequada à prática dos actos de administração dessas partes comuns”.540 As partes comuns de um edifício em propriedade horizontal são administradas por dois órgãos, a saber: - A assembleia dos condóminos; - A administração dos condóminos. Da assembleia dos condóminos fazem parte todos aqueles que são proprietários de uma fração autónoma e as decisões desta assembleia são tomadas validamente segundo três tipos de maiorias: - Em regra, maioria simples; - Para deliberar sobre inovações, maioria qualificada – art. 1346º do Código Civil; - Para modificar o título constitutivo, unanimidade – art. 1339º do Código Civil; - Para dispor de uma parte comum exige-se também a unanimidade e isto porque a disposição de uma parte comum implica a alteração do título constitutivo. 5. Extinção do Condomínio A extinção da propriedade horizontal pode dar-se por força de três circunstâncias distintas: - A destruição do edifício (prevista no art. 1349º do Código Civil). Aqui a extinção corresponde à conversão por efeito do desaparecimento do edifício, do regime de propriedade horizontal para a compropriedade normal do terreno e dos materiais que tenham subsistido. 540 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 284. “A matéria da administração das partes comuns traz problemas complexos, que não permitem abandoná-la às regras normais da comunhão” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 466). 168 - A concentração das propriedades singulares nas mãos de uma só pessoa. A concentração não implica a extinção automática da propriedade horizontal, podendo o proprietário único do prédio manter o regime para o caso, por exemplo, de pretender vender mais tarde as frações tal como existiam. Para que se extinga a propriedade horizontal é necessário que expressamente seja manifestada essa intenção no próprio título de concentração ou cancelamento, no registo predial, da inscrição do título constitutivo. - Expropriação do edifício por utilidade pública. Se o edifício sujeito ao regime de propriedade horizontal for expropriado por utilidade pública, extingue-se a propriedade horizontal, uma vez que o prédio fica afeto ao fim público que provocou a expropriação. 169 170 VI – PROPRIEDADE DAS ÁGUAS 1. Classificação das águas As águas são classificadas na lei como públicas ou particulares. As primeiras estão sujeitas ao regime estabelecido em leis especiais e as segundas às disposições do Código Civil, nos artigos 1305º e seguintes. Sobre esta matéria importa ter em consideração o disposto no art. 139º da Constituição da RDTL, o qual determina no seu nº 1: “Os recursos do solo, do subsolo, das águas territoriais, da plataforma continental e da zona económica exclusiva, que são vitais para a economia, são propriedade do Estado e devem ser utilizados de uma forma justa e igualitária, de acordo com o interesse nacional”. 541 Por outro lado são ainda evidentes as preocupações ambientais relativas à utilização da água542 consagradas no nº 3 do aludido preceito constitucional.543 Nestes termos, a ideia de desenvolvimento integrado, harmónico e sustentável surge como o resultado de um equilíbrio necessário entre as políticas de crescimento económico e social e a conservação da Natureza.544 1. São particulares: a) As águas que nascerem em prédio particular e as pluviais que nele caírem, enquanto não transpuserem os limites do mesmo prédio ou daquele para onde o dono dele as tiver conduzido, e ainda as que, ultrapassando esses limites e correndo por prédios particulares, forem consumidas antes de se lançarem no mar ou em outra água pública; b) As águas subterrâneas existentes em prédios particulares; 541 Veja-se os arts. 521º e 522º do CCI. Água que a própria constituição considera um recurso natural essencial ao desenvolvimento nacional. 543 “O aproveitamento dos recursos naturais deve manter o equilíbrio ecológico e evitar a destruição de ecossistemas”. 544 Masseno, Da disciplina jurídica dos recursos hidroagrícolas em Portugal, 1996, pág. 26. 542 171 c) Os lagos e lagoas existentes dentro de um prédio particular, quando não sejam alimentados por corrente pública; d) As águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1868, por preocupação, doação régia ou concessão; e) As águas públicas concedidas perpetuamente para regas ou melhoramentos agrícolas; f) As águas subterrâneas existentes em terrenos públicos, municipais ou de freguesia, exploradas mediante licença e destinadas a regas ou melhoramentos agrícolas (art. 1306º, nº 1, do Código Civil). A preocupação consistia na ocupação de coisas da Coroa, da Nação ou do Estado, ou seja, de águas públicas e não de águas particulares.545 Quer dizer que, no que respeita às águas, preocupação define-se como a apropriação de águas do domínio público por um particular. Por outro lado, à derivação da água da corrente não navegável nem flutuável para fins particulares, chamava-se presa.546 A presa consiste no desvio de um curso de água por um particular para uso da mesma. Guilherme Moreira salienta que, “A presa de água, juridicamente pode representar ou não uma servidão, conforme a derivação da água é feita ou não em prédio alheio e em proveito de outro prédio, considerando-se a presa como o próprio facto da derivação, e relacionando-se esta derivação com o uso da água que, sem solução de continuidade, é conduzida para o prédio ou local em que se aproveita, a presa e o aqueduto547 formam um todo”.548 545 Costa, Propriedade das águas das Correntes não Navegáveis nem Flutuáveis, 1978, pág. 5. 546 Represa para retenção e aproveitamento das águas. 547 Encanamento por onde se leva a água, sobre arcadas ou sob a plataforma das vias de comunicação, de um ponto para outro (Grande Dicionário Universal da Língua Portuguesa, versão em formato eletrónico). 548 Moreira, As Águas no Direito Civil Português, vol. I, 1960, págs. 173-174. 172 No domínio do direito anterior ao Código Civil Português de Seabra, mais precisamente até 21 de Março de 1868, era lícito a qualquer particular, se outro o não tivesse feito antes, apropriar-se para fins agrícolas ou fabris das águas de uma corrente não navegável ou flutuável, mediante a construção de obras permanentes de captação e derivação; a isto chama-se direito de preocupação. Na medida dessa apropriação, verificava-se uma desafetação do uso público das águas apropriadas, tornando-se estas particulares, tendo os direitos resultantes da preocupação sido salvaguardados, sucessivamente, pelo Código Civil Português de Seabra (art. 438º), Decreto nº 5787-IIII, de 10 de Maio de 1919 – Lei das Águas (art. 33º) e Código Civil Português de 1966 (art. 1386º, nº 1, al. d). Por isso que, adquirido por preocupação o direito de propriedade sobre determinadas águas, passou tal direito a poder ser alvo de qualquer negócio jurídico translativo daquela ou de usucapião nos termos gerais. Não estando fixado o volume das águas referidas nas alíneas d), e) e f), do art. 1306º, nº 1, entender-se-á que há direito apenas ao caudal necessário para o fim a que as mesmas se destinam (art. 1306º, nº 2, do Código Civil. Veja-se o art. 629º do CCI). Ou seja, pretende-se assegurar um uso equitativo (equilibrado e justo) da água por todos os proprietários que dela possam aproveitar. Todos os aproveitamentos que não envolvam atos materiais que excedam o limite fixado mantêm-se livres tanto no que respeita ao domínio público hídrico como às águas particulares.549 São ainda classificadas como águas particulares: a) Os poços, galerias, canais, levadas, aquedutos, reservatórios, albufeiras e demais obras destinadas à captação, derivação ou armazenamento de águas públicas ou particulares; b) O leito ou álveo das correntes não navegáveis nem flutuáveis que atravessam terrenos particulares (art. 1307º, nº 1, do Código Civil. Veja-se o art. 591º do CCI). 549 Masseno, Da disciplina jurídica dos recursos hidroagrícolas em Portugal, 1996, pág. 39. 173 Entende-se por leito ou álveo a porção do terreno que a água cobre sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto (art. 1307º, nº 3, do Código Civil). Quando a corrente passa entre dois prédios, pertence a cada proprietário o terreno compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito ou álveo (ou seja, entre a margem e o meio do leito do rio), incluindo aqui o direito às ilhas ou mouchões formados no leito do rio, nos termos do disposto no artigo 1251º (art. 1307º, nº 3, do Código Civil). As faces ou rampas e os capelos dos cômoros550, valados, tapadas, muros de terra, alvenaria ou enrocamentos erguidos sobre a superfície natural do solo marginal não pertencem ao leito ou álveo da corrente, mas fazem parte da margem (art. 1307º, nº 4, do Código Civil). Em casos urgentes de incêndio ou calamidade pública, as autoridades administrativas podem, sem forma de processo nem indemnização prévia, ordenar a utilização imediata de quaisquer águas particulares necessárias para conter ou evitar os danos (art. 1308º, nº 1, do Código Civil). Se da utilização da água resultarem danos apreciáveis, têm os lesados direito a indemnização, paga por aqueles em benefício de quem a água foi utilizada (art. 1307º, nº 2, do Código Civil). Apenas no caso de se verificarem danos apreciáveis para o dono da água haverá lugar a indemnização. O dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água pode servir-se dela e dispor do seu uso livremente, ressalvadas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo (art. 1309º do Código Civil). Veja-se o art. 627º do CCI, o qual consagra o mesmo princípio, sem prejuízo dos direitos adquiridos pelos proprietários dos terrenos situados a jusante, conforme disposto no art. 626º do mesmo diploma. 550 Pequena elevação de terreno, combro, outeiro, cabeço, socalco (Grande Dicionário Universal da Língua Portuguesa, versão em formato eletrónico). 174 Considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões (art. 1310º, nº 1, do Código Civil). A usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio; sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova (art. 1310º, nº 2, do Código Civil). Em caso de divisão ou partilha de prédios sem intervenção de terceiro, a aquisição do direito de servidão nos termos do artigo 1440º não depende da existência de sinais reveladores da destinação do antigo proprietário (art. 1310º, nº 3, do Código Civil). Os donos dos prédios para onde se derivam as águas vertentes de qualquer fonte ou nascente podem eventualmente aproveitá-las nesses prédios; mas a privação desse uso por efeito de novo aproveitamento que faça o proprietário da fonte ou nascente não constitui violação de direito (art. 1311º do Código Civil. Veja-se o art. 627º do CCI). Ao proprietário da fonte ou nascente não é lícito mudar o seu curso costumado, se os habitantes de uma povoação ou casal há mais de cinco anos se abastecerem dela ou das suas águas vertentes para gastos domésticos (art. 1312º, nº 1, do Código Civil).551 Se os habitantes da povoação ou casal não houverem adquirido por título justo o uso das águas, o proprietário tem direito a indemnização, que será paga, conforme os casos, pela respetiva junta de freguesia552 ou pelo dono do casal (art. 1312º, nº 2, do Código Civil. Veja-se o art. 628º do CCI). Neste artigo é imposta uma restrição à faculdade de aproveitamento e disposição da água de fonte ou nascente. A restrição consiste na obrigação do proprietário da fonte ou nascente não impedir ou dificultar o aproveitamento que venha sendo feito há mais de cinco anos. A obrigação de não mudar o curso costumado da água só existe quando, por essa forma, se prejudiquem os beneficiários da restrição, e 551 Entende-se por povoação um agregado de casas formando um lugar ou aldeia. Entende-se por casal o lugar formado por uma só casa. 552 A junta de freguesia é uma autarquia local, nomalmente constituída por um povoado, não prevista ainda na legislação nacional timorense. 175 tal não se verifica se estes se aproveitam das águas no local onde nascem. Quando o abastecimento se faça na corrente formada por essas águas, a obrigação negativa só deverá abranger o caudal de que os habitantes da povoação ou casal careçam; quanto ao excedente há liberdade para o proprietário. Ou seja, o proprietário pode desviar o curso da água, mas terá que manter no curso que existia anteriormente a água necessária à satisfação das necessidades dos beneficiários. Esta limitação abrange igualmente o curso subterrâneo da água.553 Este artigo, porque limitativo do direito de propriedade, tem que ser interpretado restritivamente. As mesmas regras são aplicadas, com as necessárias adaptações, às águas pluviais referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 1308º e às águas dos lagos e lagoas compreendidas na alínea c) do mesmo número (art. 1313º do Código Civil). É lícito ao proprietário procurar águas subterrâneas no seu prédio, por meio de poços ordinários ou artesianos, minas ou quaisquer escavações, contanto que não prejudique direitos que terceiro haja adquirido por título justo (art. 1314º, nº 1, do Código Civil). Assim, não pode o proprietário fazer por esse meio alterar ou diminuir as águas de fonte ou reservatório destinadas ao uso público (art. 1316º do Código Civil). Fora esta situação, a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular, em consequência da exploração de água subterrânea, não constitui violação de direitos de terceiro, exceto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas e não naturais (art. 1314º, nº 2, do Código Civil). As infiltrações provocadas, não naturais, são as que as que artificialmente causam o desvio das águas que se encontram ou passam à superfície ou no subsolo do prédio vizinho, indo para além daquelas que atinjam naturalmente o prédio do captante e onde o problema das infiltrações se não põe. Tal como se verifica para as águas das fontes e nascentes, também se consideram títulos justos de aquisição das águas subterrâneas qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou 553 Mesquita, Direitos Reais, 1984, pág. 216. 176 de constituir servidões, conforme os casos (art. 1315º, nº 1, do Código Civil). A simples atribuição a terceiro do direito de explorar águas subterrâneas não importa para o proprietário a impossibilidade de usar do mesmo direito, a menos que tal resulte claramente do título (art. 1315º, nº 2, do Código Civil). Devem ser criados por legislação administrativa mecanismos de controlo do aproveitamento das águas subterrâneas, sujeitando a sua captação a licenciamento. 2. Condomínio das águas Pertencendo a água a dois ou mais utilizadores, todos devem contribuir para as despesas necessárias ao conveniente aproveitamento dela, na proporção do seu uso, podendo para esse fim executar-se as obras necessárias e fazer-se os trabalhos de pesquisa indispensáveis, quando se reconheça haver perda ou diminuição de volume ou caudal (art. 1318º, nº 1, do Código Civil). O coutente não pode eximir-se do encargo, renunciando ao seu direito em benefício dos outros coutentes, contra a vontade destes (art. 1318º, nº 2, do Código Civil). A divisão das águas comuns, quando deva realizar-se e se nada estiver escrito sobre o assunto no respetivo título, é feita em proporção da superfície de terreno que cada um precisa regar e das necessidades e natureza da cultura dos terrenos a regar. Pode repartir-se o caudal ou o tempo da utilização da água, como mais convier ao seu bom aproveitamento (art. 1319º do Código Civil. Veja-se o art. 630º do CCI). O artigo deve ser interpretado extensivamente de forma a abarcar todos os direitos ao uso de águas, nomeadamente por servidão. As águas fruídas em comum que, por costume seguido há mais de vinte anos, estiveram divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição continuam a ser aproveitadas por essa forma, sem nova divisão (art. 1320º, nº 1, do Código Civil).554 554 Trata-se de uma situação de relevância jurídica do costume, nos termos do art. 2º do Código Civil (“Os usos costumeiros são juridicamente atendíveis quando a lei o determine”). 177 A obrigatoriedade do costume impõe-se também aos coutentes que não sejam donos da água, sem prejuízo dos direitos do proprietário, que pode a todo tempo desviá-la ou reivindicá-la, se estiver a ser aproveitada por quem não tem nem adquiriu direito a ela (art. 1320º, nº 2, do Código Civil). O costume na divisão de águas respeita aos costumes de facto, aos modos como em cada localidade ou aldeia se procede ao aproveitamento das águas Consideram-se abolidos no aproveitamento das águas o costume de as utilizar pelo sistema de torna-torna555 ou outros semelhantes, mediante os quais a água pertença ao primeiro ocupante, sem outra norma de distribuição que não seja o arbítrio; as águas que assim tenham sido utilizadas consideram-se indivisas para todos os efeitos (art. 1321º, nº 1, do Código Civil). Consideram-se igualmente abolidos os costumes de romper ou esvaziar os açudes e diques construídos superiormente, retirando deles água para ser utilizada em prédios ou engenhos situados inferiormente que não têm direito a tal aproveitamento; se existir direito ao aproveitamento, consideram-se as águas indivisas (art. 1321º, nº 2, do Código Civil). Sempre que dos títulos não resulte outro sentido, entende-se por uso contínuo o de todos os instantes; por uso diário, o de vinte e quatro horas a contar da meia-noite; por uso diurno ou noturno, o que medeia entre o nascer e o pôr-do-sol ou vice-versa, por uso semanal, o que principia ao meio-dia de domingo e termina à mesma hora em igual dia da semana seguinte; por uso estival, o que começa em 1 de Abril e termina em 1 de Outubro seguinte; por uso hibernal, o que corresponde aos outros meses do ano (art. 1322º do Código Civil). 555 O sistema do torna-torna quer dizer que em teoria a primeira pessoa a chegar pode desviar todo o caudal para o seu campo, pelo tempo que quiser (Emmanuel Salesse, Os que “sabiam” e os que “andam baralhados”: funcionamento técnico e social de um regadio, in Revista Etnográfica, Vol. VII (1), 2003, págs. 33-61 (pág. 39). 178 VI – BREVE REFERÊNCIA A ALGUNS DIREITOS REAIS MENORES 1. Usufruto Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância (art. 1362º do Código Civil. Veja-se o art. 756º do CCI). O usufruto pressupõe sempre um concurso de direitos, o concurso com o direito de propriedade. O proprietário de raiz556 fica com o seu direito diminuído (do usus e do frutus), ficando esses direitos de usar e fruir o imóvel a pertencer ao usufrutuário.557 O usufrutuário tem a totalidade do gozo da coisa, com exceção da possibilidade de alteração da forma ou substância do seu objeto.558 O usufruto é sempre temporário, nunca podendo exceder a vida do usufrutuário (art. 1366º do Código Civil. Conforme ainda os arts. 807º e seguintes do CCI). Tanto o proprietário como o usufrutuário podem alienar o seu direito a terceiros, mas ambos ficam obrigados a preservar a coisa, já que o direito do outro pressupõe a sua existência no estado em que encontrava na altura da constituição do usufruto. Assim, o usufruto constitui um direito real sobre coisa alheia, um direito real integrado pelas faculdades de uso e fruição de uma coisa que, na verdade, pertence a outra pessoa.559 2. Uso e habitação O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família (art. 1470º, nº 1, do Código Civil). Quando 556 Ou nua propriedade (nua porque fica despojada dos direitos referidos). Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 351. 558 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 470. 559 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 352-353. 557 179 este direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação (art. 1470º, nº 2, do Código Civil. Veja-se o art. 821º do CCI). Contrariamente ao usufruto, em que o uso e perceção dos frutos do bem não têm qualquer limitação, estamos aqui perante um caso em que os mesmos estão limitados às necessidades do seu titular e respetiva família. Assim, o direito de habitação não inclui a possibilidade de arrendar o imóvel, contrariamente ao que acontece com o usufrutuário.560 Trata-se de direitos destinados apenas à satisfação de necessidades pessoais. Importa lembrar aqui que os alvarás de arrendamento do tempo colonial português foram convertidos em direito de uso, pelo período de dez anos, pelo art. 4º do Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 199. O direito de uso encontrava-se definido em moldes diferentes dos previstos no Código Civil no art. 41º da Lei Agrária Indonésia.561 3. Direito de superfície O direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações (art. 1414º do Código Civil. Veja-se o art. 711º e seguintes do CCI, bem como os arts. 35º e seguintes da Lei 560 Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 418. “Hak pakai adalah hak untuk menggunakan dan/atau memungut hasil dari tanah yang dikuasai langsung oleh Negara atau tanah milik orang lain, yang memberi wewenang dan kewajiban yang ditentukan dalam keputusan pemberiannya oleh pejabat yang berwenang memberikannya atau dalam perjanjian dengan pemilik tanahnya, yang bukan perjanjian sewa-menyewa atau perjanjian pengolahan tanah, segala sesuatu asal tidak bertentangan dengan jiwa dan ketentuanketentuan Undangundang ini”, na versão em inglês: “A hak pakai is a right to use, and/or to collect produce from, land directly controlled by the State or land owned by another individual (tanah milik) which grants authority and obligations as determined in the relevant right-granting decree by the official who is authorized to grant it or as determined in the agreement with the owner of the land, where the agreement is not a land-lease agreement (perjanjian seqa-menyewa) or land-exploitation agreement, given that everything is possible as long as it does not contradict the spirit and provisions of this Act”. 561 180 Agrária Indonésia). Segundo José de Oliveira Ascensão, “a superfície pode ser simplesmente definida como o direito real de ter coisa própria incorporada em terreno alheio”.562 Importa aqui relembrar o escrito supra relativamente à impossibilidade de existência autónoma do solo e de uma construção sobre ele edificada. Segundo Pires e Lima e Antunes Varela, o superficiário é proprietário da obra ou da plantação e tem um direito real de gozo autónomo sobre o terreno onde foi plantada ou edificada a coisa objeto do direito de superfície.563 Já para Oliveira Ascensão, a situação do superficiário é composta por dois direitos reais: o direito de plantar ou construir em terreno alheio e o direito de propriedade sobre a coisa plantada ou construída.564 Acrescenta, contudo, que nenhum destes direitos é constante, para concluir que o direito do superficiário é um direito composto. Ou seja, não se pode concluir que o superficiário é verdadeiro proprietário de um imóvel. O direito de superfície constitui um direito a construir em terreno alheio e fruir de tal construção, com alguma autonomia relativamente ao solo, mas não constitui direito de propriedade distinto da construção relativamente ao solo. Isto parece resultar evidente do disposto no art. 1428º do Código Civil, não obstante o mesmo referir que o proprietário do solo adquire a propriedade da obra ou das plantações. Mais claro é o art. 715º do CCI que refere que o proprietário do imóvel adquire a posse sobre as construções ou plantações. Assim, Menezes Cordeiro entende que o direito de superfície 562 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 525. O implante tanto pode ser um edifício como uma plantação. 563 Lima e Varela, Código Civil Português Anotado, vol. III, 1987, págs. 588-590. No mesmo sentido Moreira e Fraga, Direitos Reais, 1971, pág. 117. 564 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 532-533. Também o mesmo autor em O direito de superfície referente a plantações, na revista Scientia Iuridica. Ano XXI, Braga, 1972, págs. 365-380. 181 sobre uma obra ou plantação não é um direito de propriedade, porque não é nem exclusivo nem pleno, tratando-se de um direito real autónomo (é um direito real complexo).565 Acrescenta Carvalho Fernandes que, por lhe faltar exclusividade, o direito de superfície é um direito real a se, próximo da propriedade, mas distinto desta.566 O direito de superfície pode ter particular interesse para as situações em que um estrangeiro pretende construir uma casa em território nacional, ou uma empresa estrangeira pretenda construir uma fábrica, quer o terreno seja privado, quer seja público.567 Por esta forma podem os estrangeiros investir em território nacional, construindo casas ou fábricas, que poderão usar por período de tempo limitado e que passarão a ser propriedade do proprietário do solo findo o prazo estipulado no contrato. Finalmente lembra-se que art. 3º do Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 1991, converteu em direito de superfície (hak guna-usaha ou hak gunabangunan) tal como definidos nos arts. 28º a 40º da Lei Agrária Indonésia, os imóveis objeto de alvarás de aforamento concedidos pelas autoridades coloniais portuguesas. 4. Servidões prediais Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (art. 1433º do Código Civil. Veja-se o art. 674º do CCI). Servidão é o direito real que permite aumentar as utilidades que um direito real de gozo sobre um imóvel proporciona, mediante uma restrição correlativa de um direito de gozo sobre um imóvel vizinho. A servidão pressupõe necessariamente dois imóveis, entre os quais se 565 Cordeiro, Direitos Reais, 1993, págs. 714-716. Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2007, pág. 431. Veja-se ainda Duarte, Curso de Direitos Reais, 2007, pág. 183. 567 Embora a Lei Agrária Indonésia também vede o direito de superfície a estrangeiros (art. 36º), com a entrada em vigor do Código Civil, deve considerar-se tal restrição revogada, assim cessando a proibição. 566 182 estabelece uma relação que beneficia um deles à custa do outro.568 A servidão é real e não pessoal. Diz respeito aos prédios, o dominante e o serviente, e não às pessoas dos seus titulares (art. 1435º, nº 1, do Código). Assim, a alteração na titularidade dos prédios não afeta a servidão.569 As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família, esta nos termos do art. 1439º do Código Civil, e na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos (art. 1437º do Código Civil. Veja-se os arts. 695º a 702º do CCI). 5. Aforamento Importa, para melhor clarificação do que foi exposto supra, definir, embora sumariamente o aforamento, designação que a enfiteuse recebeu nas províncias ultramarinas portuguesas, incluindo Timor-Leste, durante o domínio colonial. Conforme José de Oliveira Ascensão, “a enfiteuse, aforamento ou emprazamento tem de característico provocar o aparecimento de dois domínios, denominados directo e útil. Ao titular do domínio directo dáse o nome de senhorio ou senhorio directo, ao titular do domínio útil, o de foreiro ou enfiteuta. “O domínio útil conferia ao foreiro o direito de uso e fruição do prédio, constituir ou extinguir servidões, alienar ou onerar o seu domínio, entre vivos ou por morte, preferir na venda ou dação em pagamento do domínio directo, obter a redução do foro ou encampar o prazo, e remir o foro. “Por sua vez, o titular do domínio útil tinha essencialmente o direito a receber o foro”.570 Concluiu, pois, José de Oliveira Ascensão que se estaria perante 568 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 488. Esta ideia está claramente vincada no art. 674º do CCI. 570 Veja-se Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 646. 569 183 uma situação de comunhão irregular, ou de propriedade dividida.571 Na designação de Lafayette Pereira, “a enfiteuse, instituto cuja origem remonta aos gregos, é o direito real de tirar da coisa alheia todas as utilidades e vantagens que ela encerra, e de empregá-la nos mesteres a que por sua natureza se presta, sem destruir-lhe a substância, e com a obrigação de pagar ao proprietário uma certa renda anual.572 “Na enfiteuse, o proprietário transfere ao enfiteuta o jus utendi, o jus fruendi e, inclusive, o jus disponendi. Isso porque o enfiteuta pode também alienar seus direitos, mesmo sem a anuência do senhorio, e dispõe do direito de sequela, podendo reivindicar a coisa de quem quer que seja. Tão fortes são essas características que parte dos doutrinadores consideram o enfiteuta também um proprietário,573 sendo certo, porém, que maioritariamente se entende na doutrina que não o é. Fruto de uma realidade social, o aforamento constitui uma ocupação de imóvel não explorado gerando benefícios tanto ao ocupante quanto ao proprietário”. Como já se referiu supra, não se pode considerar o enfiteuta como proprietário. A enfiteuse “é um direito real sobre coisa imóvel alheia: retira-se da coisa todas as suas utilidades e vantagens, com a obrigação de pagamento ao proprietário de certa quantia anual”.574 Ou seja, seguindo Maria Helena Diniz: O senhorio direto é o titular do domínio direto ou iminente. É aquele que tem a propriedade do imóvel aforado e está dele afastado, não tendo a posse direta. 575 571 Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 648. Pereira, Direito das Coisas, vol. 1º, 1943, pág. 456. 573 “Assim, em face da vastidão de poderes conferidos ao titular do domínio útil, o mesmo passou a ser considerado pela doutrina como verdadeiro proprietário” (Ascensão, Direito Civil – Reais, 2000, pág. 646). 574 Acórdão deste Tribunal de Recurso de 24 de Novembro de 2009, proferido no âmbito do processo nº 01/2002, relator Cláudio Ximenes. Veja-se Almeida, Da Emphyteuse no Moderno Direito Civil Portuguez, 1898, pág. 57. 575 Maria Helena Diniz, Código Civil [Brasileiro] Anotado, 1ª edição, São Paulo: Saraiva, 1995, anotação ao art. 678º. “O direito do enfiteuta -direito real sobre coisa alheia -ainda que tão amplo, como vimos já, ainda que tão forte a ponto de poder se converter em domínio pelo pagamento do resgate, conforme veremos adiante, não se identifica, jamais, com o direito garantido ao senhorio direto” (Gisewa Maria Fernandes Novaes Hironaka, Enfiteuse (instituto em extinção), in Revista do Instituto 572 184 Acresce que, na jurisprudência portuguesa tem-se defendido que a concessão por aforamento de terrenos nas antigas Províncias Ultramarinas de Portugal, é figura diferente e mais complexa que a enfiteuse. Na concessão por aforamento compete ao senhorio direto fiscalizar a atividade do foreiro sobre o aproveitamento de modo a saber-se se este é feito de acordo com o programa delineado.576 Ou seja, entende-se que o proprietário seria sempre e apenas o Estado Português. Com a integração de Timor-Leste no Estado da Indonésia surgiu a situação peculiar de se manterem direitos reais (resultantes do aforamento) que não tinham consagração legal no regime jurídico indonésio,577 em clara violação do princípio da tipicidade dos direitos reais, ou do numerus clausus. Daí, para além das outras situações ali previstas, a necessidade do Regulamento Governamental Indonésio nº 18 de 1991, de 31 de Março de 1991. Com a promulgação deste diploma não subsistiram mais dúvidas relativamente à natureza real menor do direito de aforamento, tal como concedido no território de Timor-Leste, pelo que se terá que concluir que o mesmo não conferiu qualquer direito de propriedade perfeita aos seus titulares.578 de Pesquisas e Estudos, Faculdade de Direito de Bauru, nº 21, Vila Falcão (Brasil): ITE, p. 37-47, 1998, pág. 41). 576 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 Setembro 1992, processo nº 0061321, in vlex.pt. No mesmo sentido, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa nº 0059011, de 26 Maio 1992, no mesmo sítio. 577 Quer no CCI, quer na Lei Agrária Indonésia de 1960. 578 Referido acórdão do Tribunal de Recurso de 23 de Setembro de 2010, processo nº 01/Cível/Apelação/2009/TR, relator Rui Penha. 185 186 BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Alfredo de Moraes, Da Emphyteuse no Moderno Direito Civil Portuguez, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1898. 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SOUSA, Pais de, e MATIAS, Carlos, Da Incapacidade Jurídica de Menores; Interditos e Inabilitados no Âmbito do Código Civil, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 1983. VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, vol. II, 5ª edição, Coimbra: Almedina, 1993. VIEIRA, José Alberto, Direitos Reais, Coimbra: Coimbra Editora, 2008. 190 ÍNDÍCE I – DEFINIÇÕES E CARACTERÍSTICAS 1. Definição 3 2. Princípios característicos dos direitos reais 5 2.1 Princípio da eficácia absoluta 5 2.2 Princípio da inerência 6 2.3 Princípio da sequela 7 2.4 Princípio da preferência 8 2.5 Princípio da tipicidade 8 2.6 Princípio da especialidade 9 2.7 Princípio da transmissibilidade 10 2.8 Princípio da elasticidade 10 2.9 Princípio da publicidade 11 3. O registo 13 4. Decreto-Lei nº 27/2011, de 6 de Julho 18 5. Função social (questão da nacionalidade) 20 6. As coisas 27 II – POSSE 1. Definição 33 2. Elementos da posse 36 2.1 Considerações gerais 36 2.2 Posse pessoal ou por intermédio de outrem 37 2.3 Sucessão e acessão na posse 38 2.4 Posse precária 41 3. Caracteres da posse 43 3.1 Posse titulada e posse não titulada 43 191 3.2 Posse de boa fé e posse de má fé 45 3.3 Posse pacífica e posse violenta 46 3.4 Posse pública e posse oculta 47 3.5 Posse efectiva e posse civil 48 4. Aquisição da posse 192 48 4.1 Empossamento 48 4.2 Tradição da coisa 50 4.3 Constituto possessório 50 4.4 Inversão do título de posse 51 5. Perda da posse 53 5.1 Abandono 54 5.2 Perda ou destruição material da coisa 55 5.3 Cedência 56 5.4 Nova posse 56 6. Efeitos da posse 57 6.1 Presunção da titularidade do direito 57 6.2 Responsabilidade do possuidor 58 6.3 Frutos 59 6.4 Encargos 60 6.5 Benfeitorias 61 6.5 Usucapião 62 7. Defesa da posse 62 7.1 Acções possessórias 62 7.2 Acção de manutenção da posse 63 7.3 Restituição de posse 64 7.4 Restituição provisória de posse 66 7.5 A acção de manutenção ou de restituição da posse 67 7.6 Embargos de terceiro 70 7.7 Composse 70 8. Usucapião 71 8.1 Definição 71 8.2 Usucapião de imóveis 75 8.3 Prazos de usucapião 78 8.4 Acessão na posse 82 8.5 Contagem dos prazos no caso de sucessão de leis 83 8.6 Alguns casos de eventual aquisição do direito de propriedade por usucapião 86 8.7 Usucapião de móveis 96 III – DIREITO DE PROPRIEDADE 1. Definição e conteúdo 2. Conteúdo do direito de propriedade (imóveis) 99 101 2.1. Conteúdo 101 2.2. Limitações ao direito de propriedade 102 2.3. Paredes e muros de meação 116 3. Defesa da propriedade 120 4. Aquisição da propriedade 125 4.1. Formas de aquisição do direito de propriedade 125 4.2. Ocupação 125 4.3. Acessão 126 4.3.1. Acessão natural 127 4.3.2. Acessão industrial mobiliária 129 4.3.3. Acessão industrial imobiliária 133 4.4. Direitos concedidos pela administração colonial portuguesa 137 193 4.4.1. Alvará de propriedade perfeita 137 4.4.2. Alvará de propriedade indígena 138 4.4.3. Aforamento 139 4.4.4. Renda resolúvel 142 4.4.5. Alvará de arrendamento 144 5. Transmissão do direito de propriedade sobre imóveis 144 IV – COMPROPRIEDADE 1. Definição 147 2. Direitos e encargos do comproprietário 150 3. Administração da coisa 151 4. Disposição e oneração da quota 152 5. Direito de preferência 154 6. Acção de preferência 157 7. Benfeitorias necessárias 158 8. Extinção da compropriedade 159 8.1. Direito de exigir a divisão 159 8.2. Processo da divisão 160 V – PROPRIEDADE HORIZONTAL 194 1. Definição 163 2. Modos de constituição da propriedade horizontal 164 2.1 Usucapião 164 2.2 Decisão judicial 164 2.3 Negócio jurídico 165 3. Conteúdo obrigatório do acto de constituição 166 4. Administração das partes comuns 168 5. Extinção do Condomínio 168 VI – PROPRIEDADE DAS ÁGUAS 1. Classificação das águas 171 2. Condomínio das águas 177 VII – BREVE REFERÊNCIA A ALGUNS DIREITOS REAIS MENORES 1. Usufruto 179 2. Uso e habitação 179 3. Direito de superfície 180 4. Servidões prediais 182 5. Aforamento 183 BIBLIOGRAFIA 187 ÍNDICE 191 195