a África

Transcrição

a África
Limpeza étnica, promovida com apoio governamental,
já matou mais de 400 mil pessoas
e expulsou 2 milhões
Finalmente, o genocídio no oeste do Sudão está quase terminado. Há um problema, porém: o genocídio está
chegando ao fim apenas porque não restam negros para matar ou submeter à limpeza étnica. No esforço para
"limpar" o oeste do país de "zurgas" -termo que pode ser traduzido como "crioulos"-, o governo da Frente
Islâmica Nacional já exterminou mais de 400 mil deles e expulsou outros 2 milhões de suas casas.
As milícias racistas governamentais, conhecidas como Janjaweed, adorariam continuar a matar e devastar, mas
os povoados negros já foram todos queimados, e todas as mulheres negras já foram estupradas, inseminadas
com "semente árabe" para "destruir sua raça de dentro para fora". O primeiro genocídio do século 21
transcorreu sem transtornos, e os genocidas venceram.
Alguns dos sobreviventes acabaram chegando ao solo britânico. Adam Hussein hoje vive em Doncaster. Um dia
qualquer no ano passado, ele estava no quintal de sua casa, com seu tio e sua irmã, quando "de repente vimos
um avião passar pela cidade e começar a jogar bombas. Depois de alguns minutos, vimos chegar os Janjaweed,
que atacaram minha irmã e meu tio, e... eles morreram. Eu os vi agarrando outras meninas e moças e
estuprando-as." Adam foi posto na prisão pelos Janjaweed, como parte do "pogrom". Ele só conseguiu fugir por
acaso, e, com muita sorte, conseguiu embarcar num navio que acabou chegando a Londres.
Represália
A responsabilidade principal pelo genocídio cabe ao governo da Frente Islâmica Nacional, em Cartum. Durante
décadas o governo tratou Darfur como nada além de uma fonte de leais recrutas muçulmanos para combater na
guerra civil movida pelo governo contra os cristãos do sul do país. Os "zurgas" serviam para morrer às centenas
de milhares, travando uma guerra inútil, mas não eram bons o suficiente para fazer parte do governo nem para
que se gastasse dinheiro público com eles.
Quando, em 2003, eles encenaram uma pequena revolta contra décadas de tratamento desse tipo, Cartum
reagiu com ferocidade estarrecedora. O governo soltou as milícias Janjaweed -grupos de homens a cavalo,
armados com facões e metralhadoras- e apoiou os ataques delas com helicópteros de guerra.
À medida que a violência foi se tornando mais e mais selvagem, a linha dura de Cartum passou a enxergar o que
estava acontecendo como oportunidade.
Darfur fica sobre a fronteira geográfica que separa a África árabe da África negra, e, desde a década de 1980, os
islâmicos de Cartum anseiam por "arabizar por completo nossa parte da África" e expulsar do país a população
negra, "inferior". Essa era sua chance. Eles fizeram com que a repressão de uma rebelião local fosse pouco a
pouco derrapando, transformando-se em genocídio.
As milícias adorariam continuar a matar,
mas os povoados negros já foram todos queimados
Ficou claro desde muito cedo que se tratava de uma reprise de Ruanda. Romeo Dallaire foi o chefe da força de
manutenção da paz da ONU em Ruanda que se esforçou desesperadamente -e em vão- para convencer o mundo
a intervir, só para ser obrigado a assistir, impotente, a centenas de milhares de pessoas sendo massacradas
sistematicamente. Ele descreveu Darfur como "Ruanda em câmera lenta".
Tony Blair, em 2001, prometeu que, "se Ruanda voltar a acontecer, teremos a responsabilidade moral de agir".
Mas, confrontado com isso, ele não ofereceu nada além de uma folha de figueira moral: propôs que uma força
da União Africana (UA) fosse enviada para monitorar um cessar-fogo em Darfur. Mas a UA não possui a
capacidade física de pacificar nem sequer Tunbridge Wells, o que dirá Darfur. Ela enviou 3.000 homens apenas
para monitorar uma área do tamanho da França.
Gerard Prunier, especialista em Darfur, diz que a força da AU consiste de "milhares de pequenos Dallaires negros
que não podem fazer mais do que assistir à matança, que segue adiante. Enviá-la para Darfur foi a maneira que o
mundo encontrou de não fazer nada, sem admitir que não está fazendo nada".
Esse fato foi ilustrado com clareza na semana passada, quando um campo de refugiados supostamente
protegido por tropas da UA foi invadido por milicianos Janjaweed que massacraram 37 pessoas sem que um
único tiro fosse disparado contra eles. Foi a mini-Srbrenica de Darfur.
Descontrolados
Num primeiro momento, a administração Bush falou sobre Darfur em tom contundente, tendo sido um dos
primeiros governos a falarem publicamente em genocídio. Ao mesmo tempo, porém, como revelou o "Los
Angeles Times", enviou aviões a Cartum para conduzir até Washington o chefe da inteligência sudanesa, Salan
Abdallah Gosh, justamente a pessoa que supervisionava os massacres.
Gosh foi recebido em reuniões secretas em que foi saudado como "aliado estreito" pelo fato de ter
compartilhado com os EUA informações sobre a Al Qaeda e por ter tomado medidas no sentido de abrir os
campos petrolíferos do Sudão para grandes empresas americanas. Bem, afinal, que importância tem um
pouquinho de genocídio quando se está entre amigos? O Departamento de Estado já começou até a difundir a
posição de propaganda sudanesa segundo a qual os Janjaweed são "tribais descontrolados e selvagens" que não
estão sob o comando de Cartum. Mas quantos tribais descontrolados contam com helicópteros militares com a
insígnia do Exército sudanês?
A lista de pessoas que traíram a população de Darfur não pára por aí. Tanto a China quanto a França possuem
interesses petrolíferos no Sudão, razão pela qual disseram a Kofi Annan que vetarão qualquer tentativa do
Conselho de Segurança de sequer impor sanções ao Sudão. No auge dos massacres em Darfur, a própria ONU
indicou o governo sudanês para ser membro da Comissão de Direitos Humanos da ONU por um prazo de três
anos.
Os "jihadistas" que afirmam estar combatendo em prol dos muçulmanos de toda parte, da Palestina à
Tchetchênia e o Iraque, até agora não disseram nada para condenar o massacre de 400 mil muçulmanos
inocentes em Darfur. Pelo contrário, eles apóiam o massacre, porque o governo de Cartum impõe a lei da sharia
em toda parte por onde vai e, entre 1991 e 1996, chegou a convidar Osama bin Laden, o herói deles, a se instalar
no país.
Grandes empresas, entre elas a Siemens e a Alcatel, continuam a operar e a pagar impostos no Sudão, mesmo
cientes de que o dinheiro está sendo canalizado para assassinatos em massa.
O holocausto de Darfur constitui uma demonstração cabal e irrefutável do quão pouco as instituições mais
poderosas do mundo são motivadas por considerações de moralidade humana fundamental. Confrontadas com
um caso inequívoco do crime mais hediondo de todos, elas vêm conspirando para continuar a trabalhar com os
assassinos, como se o genocídio não passasse de uma inconveniência de pouca monta.
Folha de São Paulo
Caderno Mundo
08 de outubro de 2005

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