Mergulho no U-1277

Transcrição

Mergulho no U-1277
Mergulho no U-1277
Era quase uma obsessão. A história da Batalha do Atlântico durante a 2ª Guerra Mundial e a
extraordinária acção dos submarinos alemães, os U-Boats, me impressionaram bastante, desde
menino.
Já meio velhusco, agora mergulhador, tive a feliz oportunidade de visitar um deles, no seu próprio
elemento, nas profundezas.
A guerra já havia terminado e o U-1277, um submarino tipo VII C, contrariando as ordens de
rendição, prosseguia em patrulha no Atlântico. Na noite de 03 de Junho de 1945, aproximou-se da
costa portuguesa, a cerca de uma milha, ao largo do Cabo do Mundo, ao Norte da cidade do Porto,
desembarcou a maioria da tripulação em botes de borracha e derivou um pouco mais mar
adentro. O capitão e quatro homens, abriram então todas as válvulas e escotilhas do submarino,
provocando o seu afundamento intencional. No derradeiro instante, abandonaram a nave no
último bote.
O U-1277 naufragou de popa e os portugueses recolheram e internaram toda a tripulação,
entregando-a aos ingleses. A história continuou sua marcha. Agora surgia um outro inimigo, novos
fatos, grandes mudanças e logo o naufrágio do U-1277 foi esquecido.
Em 1973, alguma coisa no fundo começou a prender as redes dos pescadores de Angeiras e
Matosinhos.. Mergulhadores logo desvendaram o mistério: lá estava ele, o U-Boat, com algumas
redes ainda presas ao seu casco
enferrujado.
Trinta anos depois estou
desembarcando no aeroporto da
cidade do Porto, atrapalhado por
duas enormes sacolas de mergulho.
Sou recebido pelo José Garcia,
médico, notável mergulhador e
integrante de um grupo de
entusiastas de um clube local. Era o
meu sorridente anfitrião.
Que coisa! Do aeroporto, directo
para uma sala no clube. Sou
apresentado para um grupo de
mergulhadores portugueses e um
espanhol. Segue-se o planejamento
do mergulho, demonstrado pelo mergulhador chefe da expedição, o Luís Mota. Puxa! Equipar e
embarcar! Estou ainda embaraçado da viagem e estranho muito o absurdo peso do cilindro de
aço...português.
Nossa lancha, após uns trinta minutos de marcha, chega a região do naufrágio. O Luís e o José
buscam então pontos de referência já conhecidos na praia cujo contorno se distingue claramente.
Navega-se lentamente, observando-se a tela do ecobatímetro.
Dois momentos de profunda emoção: a mancha negra fusiforme surge perfeitamente definida na
tela e ao mesmo tempo ocorre uma gritaria do pessoal que está na proa: são manchas de óleo. O
U-1277 ainda sangra!
Saliva na máscara, um pouco de ar no colete, um ajuste na fivela do cinto de lastro e uma
elegante entrada de costas na água.
Horror! Um choque terrível. A água está gelada, muito fria mesmo. Perco o equilíbrio com o peso
do cilindro e minha máscara começa a alagar. É um péssimo começo.
Iniciamos a descida, eu e o meu dupla José, lentamente, pelo longo cabo da bóia. O português
com uma roupa de 8 milímetros, capuz e luvas. Eu com a minha de 5, própria para as águas do
Arvoredo.
Que frio! Nunca senti nada igual, dor de frio, particularmente no rosto. Uma olhadela nos
instrumentos e fico estupefacto com os 13ºC graus que vejo.
Olhando para baixo tudo aparece em um tom azul escuro, contrastando com o cabo branco que se
perde nas profundezas. Algo que nos causa uma desagradável impressão e ainda por cima surge
uma inoportuna dor de dente. O U-Boat está a 30 metros mas não chegamos nunca! Cruza por
nós um imenso caranguejo branco que emerge.
Então eu o vejo. Uma longa sombra sobre um fundo de areia branca, com grandes marcas de
ondas. Ali está ele, o U-1277. Tem a popa enterrada e seu casco está inclinado 45º a BE. A
visibilidade é de 5 metros.
Lembro dos nomes dos ases dos U-Boats, Otto Kretchmer, Wolfgang Luth, Erich Topp, Gunther
Prien...torpedos, periscópios, badges, liberty ships, o conhecidíssimo alarme de imersão, é, aquele
que a gente escuta nos filmes...
Uma súbita pancada na perna! É o meu dupla que me chama à realidade. Exploramos a escotilha
que está sobre o compartimento dos diesels, ante-a-ré da torre. Está fechada. Seguro na roda de
abertura. É emocionante. Aos diabos com a dor de dente! Subimos pela torre, maravilhados pela
ausência de gravidade. No caminho se observa um emaranhado de tubulações e restos do
snorkell. A escotilha da torre está aberta e eu sinto uma atracção irresistível de por ali penetrar.
Desço metade do corpo, está escuro, há lodo e pedaços de metal afiado. Um túnel estreito. O José
me puxa. Não, não podes entrar, é muito perigoso.
Exploramos agora os dois periscópios. Longas e afiladas estruturas cobertas de algas. Com a faca
raspamos o tubo e logo aparece, faiscando, o aço inox. Existe muita vida, em toda parte no casco.
Gorgónias, anémonas brancas e rosadas, caranguejos, moreias, ouriços, centenas de peixes. O
casco externo está desmantelado mas o casco de pressão ainda se mantém.
Continuamos. Ali estão os tubos lança-torpedos da proa. Quatro sinistros cilindros, agora coloridos
de vida pelas anémonas. Lembro então que o U-1277 afundou com todos os seus 14 torpedos e
que talvez alguns deles ainda estejam nos tubos. Coloco uma garrafinha lastrada lá dentro, quase
na boca de um enorme congro azulado que eu não vi e que ali fez sua casa. Dentro dela vai uma
mensagem: “Aos marinheiros da arma submarina alemã, homens corajosos e de moral
elevadíssimo. Que sob as ondas lutaram até o fim e, por muito pouco, não mudaram o destino de
duas guerras mundiais”. É um ritual que faço em cada naufrágio que visito.
Um grande polvo cinzento nos observa, desinteressado, da porta da sua toca
Vinte minutos de tempo de fundo. Meu Deus, como passou rápido! O ponteiro do manômetro se
aproxima da marca vermelha, é hora de subir. E ainda tem a parada descompressiva.
Mas foi extraordinário, e pertence a somente aqueles que ali vão. E só nós, mergulhadores,
podemos entender isso.
Nestor Antunes de Magalhães