Livro Fontes e Edições - Completo

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Livro Fontes e Edições - Completo
FONTES E EDIÇÕES
Gladis Massini-Cagliari
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Paulo Roberto Sodré
organizadores
Araraquara
GT de Estudos Medievais - ANPOLL
2012
Série Estudos Medievais
n. 3
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL)
– Grupo de Trabalho Estudos Medievais
Comissão Científica:
Célia Marques Telles (Universidade Federal da Bahia/UFBA)
Lênia Márcia Mongelli (Universidade de São Paulo/USP)
Maria do Amparo Tavares Maleval (Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ)
Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela/USC)
Rip Cohen (The Johns Hopkins University [USA])
Stephen R. Parkinson (University of Oxford [U.K.])
Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp)
Catalogação: Ana Maria de Matos, CRB 6/ES, n. 425.
Programador visual do e-book:
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
F683
Fontes e edições [recurso eletrônico] / Gladis Massini-Cagliari, Márcio Ricardo Coelho Muniz,
Paulo Roberto Sodré, organizadores. – Araraquara : ANPOLL, 2012.
(Série Estudos Medievais ; n. 3)
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.
Modo de acesso: World Wide Web:
<http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/gtmedieval/interno.php?secao=publicacoes>.
ISBN 978-85-89760-04-1
1. Literatura medieval – História e crítica. 2. Liturgia – Espanha – Canções e música. 3.
Literatura portuguesa – até 1500 – História e crítica. 4. Poesia satírica portuguesa – Crítica e
interpretação. 5. Amor na literatura. 6. Pensamento religioso – Influências gregas. 7. Idade
Média. I. Massini-Cagliari, Gladis. II. Muniz, Márcio Ricardo Coelho. III. Sodré, Paulo Roberto.
IV. Série.
CDD: 809.8940902
CDU: 82(091)“04/14”
Sumário
Prefácio
Sobre a liturgia moçarábica
1
Célia Marques Telles
Risonete Batista de Souza
Universidade Federal da Bahia (UFBA); CNPq
A configuração do amor nas cantigas pastorelas
21
Clarice Zamonaro Cortez
Marciléia de Souza Apolinário
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Uma intrincada rede de fontes e de influências no
Decameron, de Giovanni Boccaccio
55
Delia Cambeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Duas leituras dos poemas 55 e 56 de Fernão da Silveira no
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
72
Geraldo Augusto Fernandes
Universidade de São Paulo (USP); Universidade Nove de Julho
Antropônimos e Topônimos nas Cantigas de Santa Maria
87
Gladis Massini-Cagliari
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara); CNPq; FAPESP
Helena Maria Boschi da Silva
Pós-Graduação – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
A estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra ou Coronica do
Condestabre
111
Maria do Amparo Tavares Maleval
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
O jugar de palabras nas rubricas explicativas das cantigas
de escárnio e maldizer
140
Paulo Roberto Sodré
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Fontes da misoginia medieval: ressonâncias aristotélicas
no pensamento religioso medieval
Pedro Carlos Louzada Fonseca
Universidade Federal de Goiás (UFG)
160
Apresentação
Este e-book, Fontes e edições, que ora apresentamos, é o terceiro livro da Série Estudos
Medievais, série oficial de obras publicadas pelo Grupo de Trabalho de Estudos
Medievais (GTEM) da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e
Linguística (Anpoll). A coleção que se iniciou em 2008 e que, neste, tem seu terceiro
número, pretende dar a conhecer, a um público especializado e diversificado, trabalhos
que refletem sobre aspectos fundamentais da pesquisa sobre Língua e Literatura da
Idade Média: seus métodos, suas fontes, seus corpora, seus objetivos, seu alcance. Mais
especificamente, a Série Estudos Medievais se dedica a trazer à luz as pesquisas
desenvolvidas pelos integrantes do GTEM, a partir do tema focalizado ao longo do
biênio, recortado dos objetivos gerais de pesquisa do Grupo.
Em Julho de 2008, veio à luz o primeiro e-book temático, com o objetivo de publicar os
trabalhos que vinham sendo até então produzidos no GTEM, nos seus dois primeiros
biênios de atuação. O tema do primeiro livro “virtual” organizado pelo Grupo era
Metodologias; desta forma, a obra reuniu trabalhos que focalizam procedimentos
metodológicos adotados no desenvolvimento das pesquisas em andamento no contexto
dos Estudos Medievais brasileiros nas áreas de Letras e Linguística. Resultado dos
encontros inaugurais do GTEM, o primeiro volume da Série Estudos Medievais visou
mostrar, sobretudo a estudantes e estudiosos brasileiros, a importância da metodologia
na discussão dos temas medievais, seja na área dos estudos linguísticos, seja na dos
literários.
Prosseguindo com a importante discussão metodológica iniciada no número 1 da Série,
o número 2, publicado em 2009 e dedicado às Fontes, objetivou a investigação dos
documentos, das obras, da fortuna crítica e dos materiais imprescindíveis à constituição
de corpora e à fundamentação teórica das pesquisas do Grupo.
Este terceiro número da série continua e aprofunda a reflexão iniciada no volume
anterior, estendendo a discussão sobre as fontes dos estudos medievais (documentais,
críticas e materiais) às suas edições, ou seja, à forma como os textos medievais
remanescentes encontram-se disponibilizados ao leitor atual, às leituras e interpretações
que receberam e às possibilidades de seu aproveitamento para os estudos linguísticos e
literários.
A maior parte dos trabalhos reunidos neste volume foi apresentada no terceiro encontro
temático do GTEM, ocorrido em Belo Horizonte, na Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de 1 a 3 de julho de 2010; como de
praxe, o encontro interno do Grupo realizou-se como uma das atividades do XXV
Encontro Nacional da Anpoll, associação maior que o abriga.
Este volume reúne oito artigos, que ilustram as linhas de trabalho que o Grupo vem
desenvolvendo e que se pretendem como um pequeno conjunto representativo de
publicações voltadas para a pesquisa brasileira em Estudos Medievais. Seguindo o
costume dos volumes anteriores, os artigos foram ordenados a partir da ordem alfabética
do prenome do primeiro autor.
No primeiro capítulo do volume, Célia Marques Telles e Risonete Batista de Souza
exploram o Missale mixtum e o Breviarium Gothicum, textos da Liturgia moçarábica. O
primeiro dá conta do conteúdo do missal e resume a história da liturgia cristã no mundo
hispano-godo-moçárabe, enquanto que, no segundo, figuram os Hymni mozarabici.
Neste texto, as autoras exploram a dimensão tanto das fontes como das edições, uma
vez que, acreditando que nos textos da liturgia moçarábica, além da consolidação da
liturgia hispano-goda-moçarábica na Península Ibérica, podem ser encontrados outros
elementos da língua usada na Hispânia visigoda, as autoras buscam os elementos
linguísticos desse romance nos textos dos hinos.
O segundo capítulo, de Clarice Zamonaro Cortez e Marciléia de Souza Apolinário,
centra-se na configuração do amor nas cantigas de amigo com motivos das pastorelas,
um gênero em que ocorre o encontro amoroso entre cavaleiros e pastoras. A este respeito, as
autoras visam o papel das cantigas de amigo galego-portuguesas como fonte para a
compreensão de uma das concepções medievais de amor, que, nas pastorelas, carrega
consigo a ampla tradição poética e cultural do Trovadorismo: o ambiente guerreiro, a
religiosidade, a musicalidade e a paisagem ideal da poesia. Todos estes elementos
convergem para colocar em destaque um personagem específico e crucial para a
representação dessa concepção amorosa: a jovem pastora enamorada.
Saindo do contexto do medievo ibérico, Delia Cambeiro, no terceiro capítulo, se dedica
a destrinchar a intrincada rede de fontes e de influências no Decameron, de Giovanni
Boccaccio (1313-1375). A autora analisa a vasta rede de interferências de ordem
intertextual e polifônica, que leva os leitores a buscar as diferentes fontes de influências
desta primeira obra urbana moderna, ao mesmo tempo em que discute, com base nas
novelas boccaccianas, as possíveis marcas recebidas e as deixadas pelo Decameron na
literatura europeia.
No quarto capítulo, de retorno ao cenário ibérico, Geraldo Augusto Fernandes explora
diferentes edições de duas cantigas do Cancioneiro geral de Garcia de Resende, com
base nas divergentes leituras que receberam dos dois últimos editores do compêndio:
António José Gonçalves Guimarães (1910-1917) e Aida Fernanda Dias (1973-1974 e
1990-1993). A tarefa do autor é hipotetizar sobre os motivos de tais visões divergentes.
O texto de Gladis Massini-Cagliari e Helena Maria Boschi da Silva, que constitui o
quinto capítulo deste livro, focaliza os antropônimos e topônimos no ancestral medieval
do português contemporâneo, abordando a questão das Cantigas de Santa Maria de
Afonso X (1221-1284) como fonte fidedigna e rica para o estudo dos nomes próprios. A
partir do levantamento geral de todos os nomes de pessoas e lugares que ocorrem nas
cantigas religiosas galego-portuguesas, as autoras examinam as ocorrências de
antropônimos de origem estrangeira, que são analisadas de acordo com o sistema
fonológico vigente no galego-português da época, de modo a verificar o seu grau de
adaptação em termos de pronúncia, a partir das pistas deixadas pela escrita.
Já o sexto capítulo, de autoria de Maria do Amparo Tavares Maleval, investiga A
estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra (1360-1431) ou Coronica do Condestabre. A
autora trata da importante questão da disponibilização e das edições das fontes primárias
do medievo, exemplificando com a crônica, de autor anônimo, que trata da vida e dos
feitos do nobre acima referido. A obra recebeu uma edição crítica por Adelino de
Almeida Calado (1991). Com base nessa edição e após acompanhar-lhe o processo de
editoração, a autora reflete sobre a obra, analisando-a, tendo em vista principalmente o
perfil de cavaleiro (quase) perfeito que nela é construído. Para tal, a autora acompanha
todo o percurso de edições que a obra recebeu até o momento.
O foco do capítulo seguinte, de Paulo Roberto Sodré, é o jugar de palabras nas rubricas
explicativas das cantigas de escárnio e maldizer. Como mostra o autor, o jugar de
palabras é um conceito constante na Lei XXX do Título IX da Segunda de Las siete
partidas, de Afonso X, nas quais constariam as normas de comportamento palaciano
junto ao rei e aos que frequentam sua corte. A proposta do artigo é explorar o potencial
das setenta e quatro rubricas atributivas e explicativas que acompanham a compilação
geral da lírica profana medieval como fonte para o estudo da natureza do gênero
satírico.
Fechando o volume, o artigo de Pedro Carlos Louzada Fonseca concentra-se nas fontes
da misoginia medieval, investigando as ressonâncias aristotélicas no pensamento
religioso da época. De maneira comparativa e crítica, o capítulo examina duas das
principais ideias que podem ser consideradas como fundamentais na formação da
tradição antifeminista na cultura e literatura europeias: 1) os estudos de Aristóteles
sobre a fisiologia da mulher, nos quais o papel feminino na procriação foi reduzido
àquele de matéria prima, a esperar a agência formadora ou movimentadora do sêmen do
homem; 2) a desagradável equação entre mulher e matéria, que encontrou apoio no
pensamento religioso da Idade Média.
Não se restringindo apenas aos textos trovadorescos galego-portugueses e sendo válida
para os textos medievais europeus em geral, a afirmação de Lênia Márcia Mongelli, ao
final da “Introdução” aos Fremosos cantares da “nossa” lírica medieval, aplica-se ao
espírito básico dos textos aqui analisados por todos os membros do GTEM1:
Não é necessário enfatizar, em solo ibérico e até fora dele, a longevidade das lições
trovadorescas – ainda muito vivas nos séculos XVI e XVII, distorcidas no século XIX,
desmaiadas mas perfeitamente audíveis na modernidade e plenas de pujança das
“redescobertas” no século XXI.
Da mesma forma como ocorreu nos números anteriores desta Série, os capítulos aqui
resumidos, sobre múltiplos aspectos e sentidos relativos às “fontes” dos projetos
voltados para as línguas e as literaturas do Medievo românico e à utilização das edições
preparadas a partir delas para os Estudos Medievais, constituem um pequeno contributo
no sentido de participar ativamente dessas “redescobertas”, que renovam o interesse na
1
MONGELLI, L. M. Fremosos cantares: antologia da lírica medieval galego-portuguesa. São Paulo:
Martins Fontes, 2009. p. xlvi.
produção desse período e demonstram a importância dos a(u)tores medievais para a
compreensão da construção da nossa identidade linguística e cultural, tanto no nível
individual de usuários da língua como no de agentes da cultura e da literatura.
Comissão Editorial (organizadores)
Gladis Massini-Cagliari
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Paulo Roberto Sodré
Maio de 2012
Sobre a liturgia moçarábica
Célia Marques Telles
Risonete Batista de Souza
Universidade Federal da Bahia (UFBA); CNPq
Resumo: Os volumes 85 e 86 da Patrologia Latina, editada por J.-P. Migne, em 1862, trazem os
textos da chamada Liturgia Moçarábica: O Missale mixtum e o Breviarium Gothicum. O
Missale mixtum compreende duas partes que integram o volume 85, antecedidas de um
Praefatio de Alexandro Lesleo, S. J.. que dá conta do conteúdo do missal e resume a história da
liturgia cristã no mundo hispano-godo-moçárabe. O volume 86 contem o Breviarium Gothicum,
que é antecedido de uma saudação ao leitor de Francisco Antonio Lorenzana, arcebispo de
Toledo. No Breviarium Gothicum destacam-se os Hymni mozarabici. Ora, como é sabido, o
romance moçarábico é documentado pela lírica moçarábica e pelos glossários. Espera-se poder
encontrar algum elemento lingüístico desse romance nos textos dos hinos.
Palavras-chave: Moçárabe; Liturgia hispano-goda; Hinos moçarábicos.
Abstract: The 85th and the 86th volumes of the Patrologia Latina, edited by J.-P. Migne, in 1862,
bring the texts of the so called Mozarabic Liturgy: the Missale mixtum and the Breviarium
Gothicum. The Missale mixtum includes two parts that integrate the 85th volume, preceded by a
Praefatio of Alexandro Lesleo, S. J. This one presents the missal contents and summarizes the
Christian liturgy history in the Hispano-gothico mozarabic world. The 86th volume brings the
Breviarium Gothicum, that is preceded of a reader salutation by Francisco Antonio Lorenzana,
archbishop of Toledo. In the Breviarium Gothicum one can notice the Hymni mozarabici. And,
as it is very well known the Mozarabic romance is documented by the mozarabic lyric and by
the glossaries. We expect can find some linguistic elements of this Romance in the texts of the
hymns.
Keywords: Mozarab; Hispano-gothica Liturgy; Mozarabic hymns.
1. Introdução
Este trabalho é a continuação do estudo das fontes medievais no Mosteiro de São Bento
da Bahia (TELLES, 2008). Acreditava-se que nos textos da liturgia moçarábica, além da
consolidação da liturgia hispano-goda-moçarábica na Península Ibérica, se pudesse
encontrar outros elementos da língua usada durante a Hispânia visigoda. Os textos em
latim cristão, no que tange às interferências dos editores, não oferecem senão alguns
traços, à luz da métrica rítmica, que podem ser atribuídos a esses falantes.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
1
1.1. O rito no medievo
Os historiadores destacam que a Idade Média ocidental é essencialmente um período do
domínio do gesto. Isto se deve, sobretudo, ao fato de ser uma sociedade ágrafa. Por esta
razão, o gesto, os sons (fórmulas orais, músicas) e o uso de objetos simbólicos se
sobrepunham à escrita, acessível a poucos. Claude Schmitt (2002, p. 415) observa que o
rito é pluridimensional e engloba os gestos, os aspectos vocais, as vestimentas, além da
manipulação de objetos simbólicos, por exemplo, a coroa e o cetro na consagração régia
e o pão e o vinho no rito eucarístico. A repetição ordenada dos gestos e das expressões
orais por um grupo social com finalidades simbólicas termina por constituir-se em
rituais que foram transmitidos por séculos e, muitas vezes, chegaram às sociedades
atuais.
O rito é, pois, uma categoria da sociedade e da cultura medievais e os homens daquele
tempo não desconheciam os aspectos que o compunha. Embora os romances de
cavalaria, por exemplo, tenham legado descrições bastante satisfatórias de rituais
profanos como a sagração do cavaleiro, foram as liturgias eclesiásticas que formaram
um corpo mais abundante do legado medieval. Aliás, alguns antropólogos defendem
que o rito está associado ao sagrado, funcionando num eixo vertical, que liga os homens
ao divino. Por outro lado, os rituais laicos refletem as relações humanas e constituem as
cerimônias.
Interessa-nos, neste trabalho, justamente o aspecto do sagrado e, portanto, o que se
constitui o rito propriamente dito. Mas antes convém destacar outro aspecto do rito
extremamente importante para nosso objeto de estudo, que é o fato de ele ter uma
dimensão histórica. Ou seja, o rito nasce progressivamente, aos poucos, e passa por
transformações antes e mesmo depois de ser adotado por toda a Igreja. Considerar estes
aspectos é essencial quando se pretende investigar o rito moçárabe.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
2
1.2. O rito moçarábico
Rito visigótico-moçárabe, hispânico ou moçarábico são denominações para o conjunto
mais ou menos coeso de rituais litúrgicos praticados pela Igreja cristã no território
ibérico sob o domínio árabe. Entretanto, historicamente, a gênese desse rito é muito
mais complexa do que sugere tal denominação. Primeiro, considerando o fato de que
um rito é construído ao longo de tempo, ele não surgiu propriamente no período em que
floresceu a chamada cultura moçarábica. É preciso lembrar que a Igreja construiu seu
corpo doutrinário, sobretudo, ao longo da Idade Média, portanto, não se pode
considerar, neste período, que havia um rito acabado, pronto.
Embora o problema das origens do rito moçarábico esteja parcialmente em aberto, é
possível identificar alguns aspectos relevantes, a partir dos elementos de que dispomos
até então. As primeiras referências a ele são do período visigótico (PRADO, 1928, p. 8).
Sabe-se que alguns de seus elementos devem derivar do antigo rito gálico, associado ao
ambrosiano e ao irlandês, assim como do rito bizantino, além do monacal ou beneditino.
Ele foi codificado ao longo de vários concílios1 e graças ao esforço de liturgistas como
Santo Isidoro de Sevilha, sobretudo no Ecclesiasticis Officiis, e Santo Ildefonso de
Toledo.
A rigor, a liturgia hispânica tem sua origem na romana dos primeiros tempos da Igreja e
vai amalgamando influências dos mais diversos grupos sociais formadores da sociedade
medieval peninsular. O fato de grande parte do território hispânico ter ficado sob
domínio dos árabes, a partir dos princípios do século VIII, contribuiu para acentuar a
situação de isolamento do centro e sul da Península, que de resto já se constituía um
território pouco acessível graças a seu distanciamento geográfico, desde a época dos
romanos. É de se esperar que, tal como a língua, a Península Ibérica fosse fonte de
arcaísmos culturais e, consequentemente, litúrgicos. Mas a condição arcaizante de seus
ritos litúrgicos vai ser percebida mais agudamente após a introdução do rito romano
1
Prado (1928, p. 27-28) enumera uma série de concílios espanhóis que vão desde cerca o início do século
IV em Elvira ou Iliberis até o século IX em Córdoba, destacando que são fontes preciosas para a história
da liturgia moçarábica.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
3
renovado, trazido ao território peninsular, sobretudo, pelos monges cluniacenses, no
século XI, empenhados divulgadores da Reforma Gregoriana, cujo maior protagonista
foi o papa Gregório VII (1073-1085).
O rito romano penetrou na Espanha através de Aragão e Catalunha e foi, aos poucos,
ganhando terreno frente ao rito moçarábico, “resignáronse al fin los pueblos de España a
perder su antiguo Rito, Rito querido y venerado em que habían sido bautizados, em que
oyeron cantar sus padres las alabanzas divinas” (PRADO, 1928, p. 78). Aos poucos, o
rito moçarábico, assim como a própria cultura dos povos submetidos ao domínio árabe
foi retrocedendo tal como a fronteira muçulmana redesenhada pelas investidas dos
cristãos nas guerras de reconquista.
O resgate dos elementos deste rito poderá contribuir para entender melhor a língua e a
cultura dos moçárabes, obliteradas pela política centralizadora dos cristãos do norte, que
impuseram sua língua, sua cultura e, por conseguinte, a ortodoxia dos ritos eclesiásticos
romanos. Felizmente, o acesso ao rito moçarábico, graças às muitas fontes canônicas, é
mais fácil do que ao romance moçarábico2, substituído paulatinamente pelo que hoje
designamos como dialeto andaluz. Dentre elas, destacamos as reunidas nos volumes 85
e 86 da Patrologia Latina, editada por J.-P. Migne, em 1862, trazem os textos da
chamada Liturgia Moçarábica: O Missale mixtum e o Breviarium Gothicum, objeto de
nosso estudo neste trabalho.
2. A patrologia latina
Em trabalho anterior (TELLES, 2008) retoma-se o que informa o verbete patrologia do
Diccionario literario de obras y personajes de todos los tiempos y de todos los países
(CORTÌ, 1959, v. 7, p. 945a-946a) oferece informações sobre a obra:
2
A língua moçárabe é conhecida através dos glossários latino-árabes, as citações em aljamia de vários
escritores árabes, as inscrições, os topônimos e os textos curtos das cantigas tradicionais contidas nas
jarchas ou no Cancioneiro de Bem Cuzmán. (ZAMORA VICENTE, 1996).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
4
PATROLOGÍA GRIEGA Y LATINA [Patrologiae cursus completus]. Al
ingenio poderoso y a la actividad incansable del abate Jacques-Paul Migne
(1800-1875), teólogo francés, debemos la existencia de esta obra colosal, que
ideó y realizó entre 1844 y 1866, con objeto de recoger en una colección
única todos los textos cristianos, griegos y latinos, compuestos desde la época
de // los Apóstoles hasta los umbrales de la Edad Moderna. La colección se
subdivide en dos partes: la patrología griega y la latina. La griega comprende
todos los textos cristianos compuestos desde la época de los Apóstoles al
Concilio de Florencia (1459); en 161 tomos (más 2 vols. de índices),
publicados en dos series, la una de 108, la otra de 55 volúmenes, en los que al
lado del texto griego va la traducción latina; existe adermás una tercera serie
de 84 volúmenes, que contiene solamente las traducciones latinas de los
textos. La obra comienza con Clemente de Roma, Bernabé Apóstol, Mateo
Apóstol, // Hermas, para llegar hasta Teodoro de Gaza, Juan Paleólogo,
Constantino Paleólogo, etc. La patrología latina, en 221 volúmenes (más
cuatro de índices), se extiende desde los orígenes de la literatura cristiana, es
decir, desde Tertuliano y Cipriano, hasta Inocencio III (1216). Después de la
muerte de Migne, en 1880, Horoy añadió a esta serie un apéndice de 6
volúmenes con el título Patrologia Latina Medii Aevi, la cual parte del “Ordo
Romanus”, de la “Quinta Compilatio decretalium”, para llegar con el sexto
volumen a los escritos de San Francisco de Asis y de San Antonio de Padua.
El mayor mérito de esta obra consiste en ofrecer la primera edición de
bastantes textos griegos y latinos, y la primera traducción latina de algunos
textos griegos: se trata sin embargo de ediciones que tienen muchos defectos
desde el punto de vista crítico. Migne, en efecto, tuvo que recurrir a ediciones
preexistentes y, por consejo de Pitra, sobretudo a las de los benedictinos.
Tales ediciones, hechas con método menos riguroso que el actual, no pueden
ser aceptadas como base para trabajos filológicos. Sin embargo, son muy
útiles las noticias eruditas sobre la vida de los autores y sobre la historia
literaria y religiosa de varios textos, que se anteponen a la edición de cada
uno de ellos3.
3
Traduzindo: “PATROLOGIA GREGA E LATINA [Patrologiae cursus completus]. Ao engenho
poderoso e à atividade incansável do abade Jacques-Paul Migne (1800-1875), teólogo francês, devemos a
existência desta obra colossal, que foi idealizada e realizada entre 1844 e 1866, com o objetivo de
recolher em uma coleção única todos os textos cristãos, gregos e latinos, compostos desde a época dos //
Apóstolos até os umbrais da Idade Moderna. A coleção se subdivide em duas partes: a patrologia grega e
a latina. A grega compreende todos os textos cristãos compostos desde a época dos Apóstolos ao Concílio
de Florença (1459); em 161 tomos (mais 2 vols. de índices), publicados em duas séries, uma de 108, a
outra de 55 volumes, nos quais ao lado do texto grego vai a tradução latina; existe, além disso, uma
terceira série de 84 volumes, que contém somente as traduções latinas dos textos. A obra começa com
Clemente de Roma, Barnabé Apóstolo, Mateu Apóstolo, // Hermas, para chegar até Teodoro de Gaza,
João Paleólogo, Constantino Paleólogo etc. A patrología latina, em 221 volumes (mais quatro de índices),
se extende desde as origens da literatura cristã, isto é, desde Tertuliano e Cipriano, até Inocêncio III
(1216). Depois da morte de Migne, em 1880, Horoy acrecentou a esta série um apêndice de 6 volumes
com o título Patrologia Latina Medii Aevi, que parte do “Ordo Romanus”, da “Quinta Compilatio
decretalium”, para chegar com o sexto volume aos escritos de São Francisco de Assis e de Santo Antônio
de Pádua. O maior mérito desta obra consiste em oferecer a primeira edição de bastante textos gregos e
latinos, e a primeira tradução latina de alguns textos gregos: trata- se, sem dúvida, de edições que têm
muitos defeitos do ponto de vista crítico. Migne, com efeito, tevo que recorrer a edições preexistentes e,
por conselho de Pitra, sobretudo às dos beneditinos. Tais edições, feitas com método menos rigoroso do
que o atual, não podem ser aceitas como base para trabalhos filológicos. Entretanto, são muito úteis as
notícias eruditas sobre a vida dos autores e sobre a história literária e religiosa de vários textos, que se
antepõem à edição de cada um deles”.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
5
A publicação da Patrologia Latina (migne, 1844, 221t.), iniciada em 1844, compreende
221 tomos, 217 relativos à coletânea de textos patrísticos latinos e 4 volumes de índices,
contrariamente à informação de M. Cortì. São dez séculos de literatura patrística
habilmente recolhidos. O primeiro autor da seleção é Tertuliano (séc. III) e o último é
Inocêncio III (séc. XIII).
Do séc. III ao séc. XIII, recolheu-se a obra de 130 Padres da Igreja, como vai indicado
no Quadro 1 abaixo:
Período
séc. III
séc. IV
séc. V
séc. VI
séc. VII
séc. VIII
séc. IX
séc. X
séc. XI
séc. XII
séc. XIII
Total de Padres
3
9
16
10
5
4
22
8
11
36
6
Quadro 1. Total de autores da Patrologia latina.
O quadro 2 mostra a relação de todos os autores da coletânea.
Tomos
1-4
Período
séc. III
5-19
séc. IV
20-61
séc. V
62-74
séc. VI
75-87
séc. VII
88-96
séc. VIII
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Autores
Tertulianus; Minucius, S. Ciprianus
Arnóbio; Lactantius; Constantinus Magnus; S. Hilarius; S.
Zeno; S. Damasius; S. Ambrosius; Ulfila; Poetarum
Christianorum
Scriptores Ecclesiastici; Rufinus; S. Hyeronimus; Orosio;
S.Agustinus; Mercator; Cassianus; S. Prosper; S. Petrus
Chrysl; Salvianus; Leo Magnus; S. Maximus; Sidonius
Apolinarius; S. Gelasius; Aurelianus Prudentius; S. Paulinus
Eugippirtus; Boetius; S. Fulgentius; S. Benedictus; Dionysius
Exigus; Primasius; Cassiodorus; S. Gregorius Turonensis; S.
Germanus; Vitor Patrum
S. Gregorius Magnus; Scriptores Ecclesiastici; S. Isidorus;
Liturgia Moçarábica; Missal Mixtus
Lemantus; Scriptores Ecclesiastici; Venerabilis Beda; S.
Hildephonsus
6
97-130
séc. IX
131-138
séc. X
139-151
séc. XI
152-207
208-217
séc. XII
séc. XIII
218-221
Carolus Magnus; S. Paulinus; B. Alcuinus; Smaragdus; S.
Benedicti; Abbatis Amanensis; S. Agsbardus; Theodulfus;
Gregorius IV; B. Rabanus Maur.; Walofrid Strasburgensis; Leo
IV; Haymonis; Nicolau I; S. Radbertus; Batramnus; Joanes
Scotus; Usuantus; Carol Calvus; Hinamarus; Enastasius Abb.;
Isidorus Mercator
Remigius; Regino; S. Odo; Alto; Floduardo; Ratherius;
Hrotsuithe; Richerus
Silvester II; Burchandus; S. Fulbertus; Herman Contredo; S.
Petrus Damianus; Othlonus; Joannes; S. Gregorius VI; Victor
III; B. Lanfrancus; B. Urbanus I
S. Bruno; Hugo Olbas; Godefridus Bullonis; Venerabilis
Guibertus; Goffridus; Sanctisivo; Paschalis III; S. Bruno
Astenus; Baldricus; S. Ruppertus Abbas; Venerabilis
Hildebertus; Leo Petrus Daconi; Venerabilis Godefridus; Hugo
de S.Victore; Petrus Abaelardus; Willelmus; Ergenius I;
Venerabilis Herbeius; S. Bernardus; Sugerius; Gratianus;
Ordericus Vitalis; Petrus Venerabilis; S. Thomas Cantias;
Petrus Lombardus; Venerabilis Gerhohus; Richard A.
S.Victore; S. Hildegardis; Adamus Scotus; Joannes Saresberri;
Alesandre III; Arnulfus; Petrus Cellensis; D. Philippus;
Clementis III; Petrus Blasensis
S. Martini Legion; Alanus; Hellimondus; Stephanus Abbas;
Sicardus; Inocentius III
4 tomos de índices
Quadro 2. Resumo do conteúdo da Patrologia latina
Entre os trabalhos datados do século VII estão a Liturgia Moçarábica e o Missal Mixtus
(volumes 85 e 86).
2.1. Descrição intrínseca dos volumes 85 e 86
De modo sucinto podem fazer-se a descrição intrínseca dos dois volumes que
ínteressam à liturgia moçarábica.
O volume 85 tem como conteúdo: o Praefatio in MissaleMixtam de Fr. Ant. Lorenzana,
seguido de: Missalis mixti pars prima, Missalis mixti pars prima, de um Appendix , da
Missa S. Pelagii martyris , do Kalendarium vetus e do Kalendarium Gotho-Hispanum.
A que seguem uma Advertência dos editores e o Missale mixtum sive Mozarabum et
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
7
Breviarioum Gothicum, redigido segundo a Regra da Liturgia Moçarábica e uma
Dedicatória a Benedicto XIV.
O Praefatio é impresso em duas colunas (de 1 a 94), com parágrafos numerados de 1 a
306, achando-se dividido em 17 partes:
Epistola dedicatória editione toletanae praemissa: ao arcebispo Franciscum Ximenem,
ao “júris doctoris” Alfonsi Ortis e aos cônegos toledanos
Calendarum mozarabicum, saepius auctem Benedictio aque MISSALE MIXTUM
SECUNDUM REGULAM B. ISIDORI DICTUM MOZARABES; pars prima (Impresso
em duas colunas (de 109 a 655)
MISSALE MIXTUM SECUNDUM REGULAM B. ISIDORI DICTUM MOZARABES;
pars posterior (Impresso em duas colunas (de 655 a 1036)
Tabula ad inveniendu, que continetur in isto missali et primo tabella adominicarum
cum singulis feriis sequentibus
Appendix prima – Missa S. pelagii Martyris a Mozarabicus circa annum DCCCCXXX
compósita
Appendix secunda – Fragmentum vetusti kalendarii a Francisco de Pisa editi
Index rerum analyticus
Ordo rerum quae in hoc tomo continentur
O volume 86 consta de um Prefácio de Antonio Lorenzana, arcebispo de Toledo,
Franciscus Antonius Lorenzana. Archiepiscopus Toletanus, hispaniarum primus,
Lectori salutem, com explicações sobre a edição; de Cantus Eugeniani seu melodici
explanatio facta a Divo Hieronymo Romero, sanctae ecclesiae toletanae hjispaniarum
primatis portionario, et cantus melodici magistro; de uma Regula; do Breviarium ad
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
8
debite persolvendum divinum officium secundum B. Isidori regulam; de uma Descriptio
divini Officii per totum circulum anni; de um Psalterium; de Cantica; de Hymni
mozarabici; de Horae canonicae; além de Commune e Sanctorale; seguidos de um
Appendix e da Festa breviário Gothico-Hispano addita in editione cardinalis Ximenii.
Traz ainda um Index rerum analyticus e uma Ordo rerum quae in hoc tomo continentur.
O Praefatio de Alexandro Lesleo, S. J., consta de: Pars prima Missalis Mozarabici (col.
11 § 1); Pars secunda Missalis Mozarabici (col. 17 § 2); An Missa Missale Mozarabum
vetustum sir sacramentarium (col. 20
§ 3); An liturgia Missalis Mozarabici sit
Gotho-Hispana (col. 20 § 4); An liturgia Missalis Ximenii eadem sit atque Gallicana?
(col. 24 § 5); Satis fit eorum difficultatibus qui opinantur liturgiam Missalis Ximenii
diversam esse a Gallicana
(col. 26 § 6); Respondetur iis qui aiunt liturgiam Missalis
Ximenii vitiatam esse (col. 29 § 7); An Missale Mozarabum immune sit ab erroribus
Felicis et Elipandi (col. 41
§ 8); An liturgia Missalis Ximenii apostolic sit (col. 46 §
9); An primaeva Hispanorum liturgia eadem fuerit atque Romana (col. 48 § 10); An
sanctus Leander Auctor habendus sit liturgiae Gotho-Hiapanae (col. 55 § 11); An
sanctus Isidorus auctor fuerit liturgiae Gotho-Hispanae (col. 61 § 12); An liturgia
Gotho-Hispana ab apostolarum aevo ad excidium regni Visigothotum in Hispania
constanter obtinuerit (col. 63 § 13); An liturgia Romana ab ecclesius provintiae
Bracarensis in concilio primo Bracarensi suscepta fuit; (col. 73 § 14); De primaeva
origine liturgiae Gallicanae inquiritur. Et an ex Hispania in Galliam, an potius e Gallia
in Hispaniam propagata fuerit (col. 78 § 15); An sanctus Leander, aut sanctus Isidorus,
aut sanctus Iulianus auctor fuerit Missalis Mozarabici (col. 82
§
16);
Missale
Mozarabum cum libris liturgicis Gallicanis comparator (col. 86 § 16 [bis]).
As figuras 1-2 reproduzem o dorso, o corte e as capas do volume 85,
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
9
Figura 1. Aspecto externo do volume 85 (dorso e corte)
Figura 2. Aspecto externo do volume 85 (frente e verso)
enquanto as figuras 3-4 reproduzem o dorso, o corte e as capas do volume 86 da
Patrologia latina.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
10
Figura 3. Aspecto externo do volume 86 (dorso e corte)
Figura 4. Aspecto externo do volume 86 (frente e verso)
Por sua vez, as figuras 5 e 6 reproduzem as folhas de rosto, respectivamente dos
volumes 85 e 85 da Patrologia latina.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
11
Figura 5. Folhas de rosto do volume 85
Figura 6. Folhas de rosto do volume 86
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
12
No volume 85, no Missale mixtum, acham-se publicados o Calendarium mozarabicum
(col. 95-96) e uma versão do Kalendarium gotho hispanum (em appendix secunda, col.
1051), enquanto no volume 86 acha-se publicada outra versão do Kalendarium
gothicum (col. 37-38).
Figura 7. CALENDARIUM MOZARABICUM (Missale mixtum, col. 95-96 (v. 85)
e Missale mixtum, appendix secunda, Kalendarium gotho hispanum, col. 1051 (v. 85)
Figura 8. CALENDARIUM MOZARABICUM
(Missale mixtum, col. 95-96 (v. 85) e Breviarium Gothicum, col. 37-38 (v. 86)
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
13
As Figuras 7 e 8, acima, mostram uma comparação entre o Calendarium mozarabicum e
cada uma dessas versões do calendário godo. Assinalam-se em todos eles as indicações
dos dias das kalendas, das nonas e dos idos.
2.2 A edição
É bom lembrar que, originalmente, trata-se de textos latinos anteriores à invasão árabe
(711), editados no séc. XVI pelo Cardeal Ximeno.
No Praefatio (col. 9, L. 46-52), lê-se:
Zelo fidei accensus eximius ille cardinalis Xime- / nius, Christianus et
politicus heros, sparsos undique / Gothicos, Isidorianos, seu Mozarabicus
Codices in / unum collegit; viros doctissimos undequaque accivit; / peritiores
in Mozarabico ritu sacerdotes selegit; / iisque divitiis onustus. Breviarium
secundum regulam / sancti Isidori tandem, anni 1502 prelo commisit4.
Ainda no Praefatio (col. 25, L. 42-59) pode ler-se:
imo quidam post multa saecula floruerunt; nunc autem ex pervetustis nostris
Codicibus manu- / scriptis secernuntur festivitates, de quibus tempore /
Gothorum, seu Paulo ante Maurorum invasionem age- /
batur facilique negotio pereallebunt id quod opta- / bant: nam hymni in
corpore Breviarii et post cantica / appositi vetustati ritus omnes congrunt;
nec ullus, / fastidium generet, quando hymni sunt in corpore / Breviarii, fit
remissio ad propriam festivitatem; nam / licet in quibusdam verbis discrepet
Editio card. Xi- / menii a nostro Codice ms., cum in módico appareat /
discrimen, non est justa causa praefatos hymnos cor- / rigendi. Non leve ad
asserendam nostri Codicis vetustatem / argumentum insurgit ex numero et
4
Traduzindo: “O Cardeal Ximeno, cidadão cristão e político, foi o escolhido, pelo zelo da fé, para coletar
em um único volume os códices godos, isidorianos e moçarábicos esparsos por toda parte. Para tanto,
chamou, de todos os lugares, homens doutíssimos e escolheu os mais doutos sacerdotes acerca do ritual
moçarábico. Pleno daquelas riquezas, o Breviarium secundum regulam / sancti Isidori foi, enfim,
mandado ao prelo no ano de 1502”.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
14
ordine horarum / canonicarum ad quas aptatur hymnus, et priorum /
Ecclesiae saeculorum nobis speciem referunt; [...]5”.
Ressalta-se na edição a Lectori Salutem de Franciscus Antonius Lorenzana, na qual
chama-se a atenção para o uso de alguns sinais abreviativos, como vão indicados nas
figuras 9 e 10 a seguir.
= idem ac repetitio
= paragraphum
= solicitudinem ubi aliquid
obscuritatis est
= matutinum
Figura 9. Sinais abreviativos e suas equivalências, segundo Lorenzana
5
Traduzindo: “[...] mas alguma coisa floresceu depois de muitos séculos; agora, ao contrário, as
festividades são separadas a partir dos nossos códices manuscritos postos às avessas, sendo conduzidos
desde o tempo dos godos ou de Paulo antes da invasão dos mouros e conhecem de modo fácil o que
escolhem. Com efeito, todos os ritos antigos adicionados reúnem, no corpo do Breviário, os hinos e
depois os cânticos. Nem mesmo se gerou aversão quando os hinos foram colocados no corpo do
Breviário, sendo feita remissão à própria festividade. De algum modo é permitido que a edição de nosso
códice feita pelo cardeal Ximeno discrepe em palavras, quando são de pequena monta, não é justo que se
corrijam os citados hinos. Não é pouco levantarem-se argumentos antigos que atribuam a nossos códices,
pelo número e ordem das horas canônicas, hino a elas adaptado, restituído pela Igreja antiga, por todos os
séculos”.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
15
= ymnum
Figura 10. Sinal abreviativo para ‘hino’, segundo Lorenzana
A Patrologia latina foi editada por
Jacques-Paul Migne, no século XIX (1862),
momento em que, no Praefatio (col. 25, L. 20-32), foram apontados alguns problemas
de grafia.
In praefato Psalterio mici pro mihi, macina pro machina / semper scribitur;
aliquoties b pro v, vel e contra, / Josep pro Joseph; Asap pro Asaph, tropeum pro
tro- / pheum, et alia his simillima, praetermittendo aspira- / tionem litterae h,
reperies; et hoc evidens est si- / gnum Gothicae pronuntiationis et scripturae;
lingua / etenim vernacula illorum gutturalis magna cum diffi- / cultate Latino
ingenuo sermoni assuefiebat; et ob / hec rudes exscriptores pervetusti ritus
memorat /a verba apposuerunt, ut videre est in aliis ejusdem ae- / tatis Codicibus;
et ne offendiculum sacerdotibus Moza- / rabicis remaneret, correcta sunt in
Psalterio praefata / verba6.
6
Traduzindo: No Psalterio citado está sempre escrito mici por mihi, macina por machina; algumas vezes
b por v, e vice versa, Josep por Joseph; Asap por Asaph, tropeum por tropheum, encontras, ainda, outros
semelhantes, negligenciando a aspiração da letra h. E isto é sinal evidente da pronúncia e da escrita dos
godos, pois a língua vernácula deles, fortemente gutural, acostumava-se com dificuldade ao modo de
expressão do latim comum. Diante dessa palavras lembradas, os escritores rudes acrescentaram rituais
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
16
A propósito dessa edição, Ernst Robert Curtius (1957, p. 267) declara que Jacques-Paul
Migne é “o mais emérito patrólogo do século XIX, notável menos pela pesquisa, do que
pelos seus trabalhos difundindo as obras dos Padres”. Entretanto, não deixa de falar nos
“muitos defeitos” da obra, mas ressalta a união da ciência eclesiástica e a iniciativa de
uma empresa capitalista privada (CURTIUS, 1957, p. 268). Lembra, por fim, que, no
século IX, por necessidades do culto, teve origem a poesia dos hinos (CURTIUS, 1957,
p. 268).
A propósito dos hinos moçárabes, ressalta Roger Wright que se conservaram cerca de
trinta ou quarenta hinos moçárabes da Espanha muçulmana (WRIGHT, 1982, p. 235).
Alguns deles foram atribuídos a Álvaro ou a Eulógio. Foram pensados intrinsecamente
para sua reprodução oral, sendo, portanto, rítmicos e não métricos (WRIGHT, 1982, p.
236).
Assinala R. WRIGHT que tanto o latim híbrido dos documentos notariais como o
“latim” mais respeitável dos hinos, histórias e poemas podem ser explicados pela teoria
da existência de um único nível falado, em lugar de três ou de dois. Assim, a língua de
Leão é uma “só língua vernácula, com um tipo de escritura complexo associado a ela,
utilizado com um maior ou menor grau de perfeição pelos diferentes escritores”
(WRIGHT, 1982, p. 264).
O hino segue o modelo normal dos trímetros jâmbicos rítmicos: doze vogais escritas (ou
ditongos clássicos) em cada verso. Dentro dessa tradição, a sílaba portanto continua
sendo definida mediante a ortografia original (WRIGHT, 1982, p. 265).
Nos hinos moçarábicos é comum a vacilação entre as formas secla, seclum, seclis,
carbunclus e as correspondentes proparoxítonas, de acordo com a necessidade do ritmo.
Quanto ao Missale mixtum, Alexandro Lesleo afirma no Praefatio:
invertidos, que podem ser vistos em códices de outras épocas e, para que não se tornem obstáculos para
os sacerdotes moçárabicos, tais palavras foram corrigidas no Psalterio.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
17
Haec sunt argumenta quibus demonstrare ca- / nali sunt Hispanos a viris
apostolicis liturgiam Ro- / manam una cum fide Christi accepi se, quorum alia /
incerta, alia levia, alia sunt quae in contrariam par- / tem facile deducuntur. Nunc
ad eas rationes exami- / nandas transeo, quibus persuadere volunt liturgiam /
Gotho-Hispanam, seu Mozarabicam, saeculo vii ex- / cogitatum fuisse, et a viris
sanctis Leandro et Isidoro / in cum quem postea ordinem retinuit digestam fuisse /
atque dispositiam (Parte X, § 171, col. 55, L. 39-48)7.
Liturgiam Gotho-Hispanam apud catholicos / Hispanos solam obtinuisse,
praeter hactenus dicta, / persuadet scriptorum Hispanorum, et maxime sancti /
Isidori, silentium de alia quacunque liturgia quae in / illis regionibus aliquando in
usu fuerit. Si enim unus / excipiatur canon, quem mox examinabo, nihil in /
scriptoribus, nihil in conciliis Hispaniensibus inve- / nire est quod suspicionem
moveat aliam liturgiam eos unquam suscepisse praeter hanc unam quam GothoHispanam et postea Mozarabicam appelarunt (Parte XIV, § 227, col. 73, L. 44col. 74, L. 10)8.
3. O latim no reino visigodo
R. Menéndez Pidal, no clássico Orígenes del español (1968, p. 503), data a época
visigoda de 414 a 711, afirmando que na corte visigoda os mais doutos falavam um
latim, escolástico, como o que era escrito por São Julião, Santo Ildefonso ou Santo
Isidoro.
Quanto à fala dos que não tinham esses estudos especiais, seria, sem dúvida, “um latim
muito romanceado”. Os rústicos não se serviam do latim para nada, nem mesmo as
damas hispano-godas mais distintas. A língua familiar seria um “romance plano”
(MENÉNDEZ PIDAL, 1968, p. 503).
7
Traduzindo: “Estes são argumentos unos que demonstram os canais que são hispanos e cujos varões
apostólicos aceitam a liturgia romana com a fé de Cristo, de que alguns são contrárias, outras fracas e
outras são as que são conduzidas facilmente pela parte contrária. Agora passo àquelas razões examinadas,
pelo que querem convencer que a liturgia godo-hispana, ou moçarábica, fosse descoberta no século VII, e,
a partir de homens como Leandro e Isidoro, quando, em seguida, conservou a ordem para que fosse aceita
e ordenada”.
8
Traduzindo: “Para os católicos hispanos, ao longo do que até aqui foi dito, apenas a liturgia godohispana prevaleceu e convenceu os escritores hispânicos, em especial Santo Isidoro, havendo silêncio de
todos para outra liturgia que estivesse em uso naquelas regiões. Se, na realidade, outro cânone existisse,
era de imediato avaliado. Nada nos escritores, nada nos Concílios Hispanienses, é encontrado que
provoque suspeita de que algum dia outra liturgia fosse sustentada ao lado da que chamaram GodoHispana e depois Moçarábica”.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
18
Nesse período primitivo (séc.V ao VIII) o latim era a única língua falada em público:
era a
língua da comunicação distinta entre todas as pessoas cultas. O romance,
reservado ao uso familiar, era a única língua comum dos incultos (MENÉNDEZ
PIDAL, 1968, p. 503).
No século X, assinala R. Menéndez Pidal (1968, p. 527), o romance falado (que se
manifestava fora dos moldes do latim escolástico, que oprimiam a língua escrita) podia,
comumente, ter maior estabilidade do que o latim escrito vulgarmente. O latim dos
notários corria em paralelo a esse latim escolástico.
A propósito das relações entre o latim e o romance na Idade Média, Roger Wright
(1982, p. 79) assinala que existem diferenças de atitudes referentes à natureza desse
latim e do romance.
Que latim era esse? É, ainda, Roger Wright que, lembrando o De orthographia de
Alcuino, lembra que “os que pronunciavam da maneira ali prescrita falariam como os
Padres, que haviam escrito as homilias (WRIGHT, 1982, p. 184).
4. Considerações finais
A busca de dados que corroborassem a língua dos hispano-godos ou moçárabes
sobretudo nos hinos moçarábicos não foi de todo infrutífera.
Se, por um lado, a interferência do editor novecentista no texto não permite que sejam
oferecidos dados seguros, registraram-se nos textos latino-cristãos hispano-godos ou
moçarábicos resquícios de uma língua falada, inúmeros traços da fala puderam ser
vistos aqui e ali, de acordo com as necessidades rítmicas.
Destacam-se, desse modo: a grafia de formas sem a vogal postônica ou a grafia das
vogais átonas pretônicas. Ainda aparecem formas lexicais, que necessitam de um exame
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
19
mais acurado para que se possa determinar se são do texto original, ou se foram
introduzidas pelos editores dos textos no século XVI ou no século XIX.
Referências
CORTÌ, M. Patrología griega y latina. In: PORTO-BOMPIANI, González. Diccionario
literario de obras y personajes de todos los tiempos y de todos los países. Barcelona:
Montaner y Simón. v. 7, 1959. p. 945a-946a.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e idade média latina. Trad. Teodoro
Cabral, com a colab de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: MEC; INL, 1957.
MENÉNDEZ PIDAL, R. Orígenes del español: estado lingüístico de La Península
ibérica hasta el siglo XI. 6. ed., segúnlLa tercera muy correg. y adic. Madrid: EspasaCalpe, 1968.
MIGNE, J.-P. Patrologiae: cursus completus sive bibliotheca universalis, integra,
uniformis, commoda, oeconomica, omnium SS. Patrum, Doctorum Scriptorumque
ecclesiasticorum qui ab aevo apostolico ad usque Inocentii III tempora floruerunt...
Parisiis: Excudebat Migne, 1862. t. 85 e 86.
MIGNE, J.-P. Patrologiae; cursus completus sive bibliotheca universalis, integra,
uniformis, commoda, oeconomica, omnium SS. Patrum, Doctorum Scriptorumque
ecclesiasticorum qui ab aevo apostolico ad usque Inocentii III tempora floruerunt...
Parisiis: Excudebat Migne. 1844. 221 t.
PRADO, Germán. Historia del rito mozárabe y toledano. Burgos: Abadía de Santo
Domingo de Silos,1928.
SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (org.).
Dicionário temático do Ocidente Medieval. Coord. da tradução de Hilário Franco
Junior. São Paulo: EDUSC. v. 2, 2002. p. 415-430.
TELLES, Célia Marques. Fontes medievais no Mosteiro de São Bento da Bahia. In:
ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, 24. Brasília: ANPOLL. Comunicação no GT
de Estudos Medievais, 2008.
WRIGHT, Roger. Latín tardio y romance temprano: en España y la Francia carolingia.
Vers. esp. de Rosa Lalor. Madrid: Gredos, 1982.
ZAMORA VICENTE, Alonso. Dialectología española. 2. ed. aum. Madrid: Gredos,
1996.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
20
A configuração do amor nas cantigas
pastorelas
Clarice Zamonaro Cortez
Marciléia de Souza Apolinário
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
1. Introdução
Grande parte das cantigas de amigo passou por diversas classificações sociológicas e
estéticas, tendo alcançado várias possibilidades de abordagem. Quanto à temática do
amor, Spina (1996) lhes confere um saudosismo culturalmente típico, capaz de atingir
uma confidência lírica de retoques muito mais realísticos do que as cantigas de amor.
Nas cantigas de amigo, a importância da mulher é indiscutível. A expressão dos
sentimentos, fora do convencionalismo cortês marca, segundo Ferreira (s/d [19??], p.
21), “as reações femininas suscitadas pelo amor por meio de um realismo psicológico
singular”, pelo qual se pode vislumbrar o encanto do namoro, a ira (sanha) diante da
traição, o esquecimento e o abandono.
Sob tais ponderações, o amor é o motivo
constante dessa poesia, cuja tendência foi a de ornamentar e doutrinar tal sentimento nas
suas mais variadas formas de composição. Se às cantigas de amor foram impostos os
preceitos exigidos pela ideologia do amor cortês, às cantigas de amigo, com sua
diversidade, coube revelar poética e expressamente os sentimentos da mulher pelo seu
amado em uma poesia feminina, que se distingue da poesia de inspiração, visto que
todas as composições desta espécie são atribuídas a poetas e não poetisas1.
Acerca das pastorelas, fica evidente que possuem uma unidade narrativa capaz de
informar, estilisticamente, que os estados sentimentais de seus personagens explicam-se
em razões para as quais os trovadores dispensam a ornamentação excessiva, preferindo
a predominância dos valores sensoriais e o registro do cenário lírico. Quanto ao tema
1
Cf . PIMPÃO, 1947, p.99.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
21
pastoril, são de exclusiva influência provençal as cantigas que registram o encontro de
um cavaleiro com uma pastora num ambiente bucólico.
A Provença, antiga província romana, possivelmente adaptou e desenvolveu esse gênero
de poesia cujas “raízes encontram-se com os poemas pastorais de Teócrito que, cerca de
200 anos antes de Cristo, demonstrou inigualável naturalidade ao pintar a vida
camponesa, principalmente a antiga vida campestre da Sicília” (FERREIRA, s/d [19??],
p. 44). Tal variedade temática, doze séculos mais tarde, teve grande voga entre os
provençais e no gosto de alguns poetas mais cultos do lirismo galego-português. Muito
discutidas são as suas origens e a sua inclusão entre os cantares de amigo. É o cavaleiro
que, ao iniciar o poema declarando sua admiração e o seu amor à pastora, contraria o
que preceitua a poética fragmentada do trovadorismo medieval.
Há, todavia, um recato e uma simplicidade por parte da moça, um realismo das
situações apresentadas, um ambiente rústico, uma descrição da natureza que, por vezes,
expressa a relação do homem com o meio de uma forma que muito difere dos modelos
occitânicos. Nas pastorelas galego-portuguesas a narração dos acontecimentos é feita
com base, unicamente, na experiência visual do eu-narrante, que pode se revelar ou não
como o cavaleiro, que compõe a situação ideal do flagrante campesino. Nas pastorelas
dos trovadores goliardos2, compostas em língua latina nos séculos XI e XII, sobretudo,
na França e na Alemanha, a poesia é carregada de uma atmosfera sensual, na qual a
conquista realiza-se por meio da posse física insistentemente requestada pelo cavaleiro.
Nota-se que, na mesma temática, foi possível colocar em perspectiva tanto os
sentimentos femininos quanto os masculinos. Todavia, o encanto e a inovação maior se
realizaram em solo lusitano, cujas pastorelas apresentam um desfecho amoroso mais
recatado, principalmente nos exemplares dialogados. Foram selecionados oito textos
definidos, geralmente, como pastorelas (cf. LANCIANI;TAVANI, 2002, p. 285), dos
quais três são de autoria do rei trovador D. Dinis (Ua pastor se queixava,/ Ua pastor
ben talhada, e Vi ojeu ua pastor cantar), e os demais, respectivamente, foram
compostos por D. Joan D’Avoin (Cavalgava noutro dia), Airas Nunes (Oi oj’eu ua
2
De acordo com Spina (1996, p. 27), a poesia dos goliardos floresceu em língua latina com um ritmo
acentual, satírico, lírico e confessional. Seus principais trovadores eram clérigos com uma imensa
carga cultural resultante do contato com a cultura letrística, clássica e escolástica.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
22
pastor cantar), Pedr’Amigo de Sevilha (Quand’eu un dia fui em Compostela), João
Airas Burgalês de Santiago (Pelo souto do Crexente) e Lourenço Jograr (Três moças
cantavam d'amor).
Cronologicamente, o primeiro texto de natureza pastoril entre as cantigas de amigo é o
texto atribuído a D. Johan d'Avoin: Cavalgava noutro dia. De acordo com Ventura
(apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p.355) Johan Perez d'Avoin nasceu em uma família
nobre portuguesa no início do século XIII. Conquistou poder e influência junto ao rei D.
Afonso III, do qual passou a ser servo particular. Ainda na juventude esteve na França
em companhia do rei onde testemunhou as mais ricas formas de compor a poesia de seu
tempo. O seu refinado modo de compor reflete imenso repertório lírico desenvolvido
em terras lusitanas e fortalecido pelas influências diretas da poesia francesa, pois, de
acordo com Spina (1996), os trovadores provençais, antes de irradiar para toda a Europa
boa parte de sua tradição, conviveram no início do século XI com personalidades únicas
como os clérigos vagantes, cuja cultura lírica prestigiava os nomes de Virgílio, Ovídio e
Horácio.
A cantiga de D. Johan d'Avoin, constituída por duas estrofes de 10 versos, na opinião de
D. Carolina de Michaelis (1904 apud FERREIRA, 1968, p. 105) há a possibilidade de
ter possuído originalmente mais duas estrofes das quais participariam as demais
pastoras. No entanto, nos cancioneiros consultados constam apenas duas estrofes: na
primeira há o registro do flagrante campesino, momento em que o cavaleiro/trovador
ouve e observa o canto triste e saudosista de uma das pastoras e na segunda, outra
pastora responde e aconselha paciência à amiga para ouvir os argumentos do cavaleiro.
Cavalgava noutro dia
per o caminho francês,
e ua pastor siia
cantando com outras três
pastores, e, non vos pês,
e direi-vos toda via
o que a pastor dizia
aas outras em castigo:
“Nunca molher crea per amigo 3,
pois s'o meu foi e non falou migo.”
3
Grifo nosso.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
23
“Pastor, non dizedes nada.”
diz ua d'elas enton,
“se se foi esta vegada,
ar verrás' outra sazon
e dirá-vos por que non
falou vosc', ai ben talhada;
e é cousa mais guisada
de dizerdes, com' eu digo:
“Deus, ora vees' o meu amigo
e averia gran prazer migo.”
Na primeira estrofe, o trovador confere ao cenário a referência ao espaço físico,
presente também nas estruturas do imaginário literário: o caminho francês. Segundo
Bédier (apud FERREIRA, 1986, p.106), esse caminho corresponde à estrada real da
cidade de Bordeaux, na França, a Santiago de Compostela, pelo qual passavam
inúmeros peregrinos destinados ao Santuário. O histórico trajeto de origem romana
também liga a cidade de Pamplona a Compostela e encontra na pastorela de Guiraut
Riquier, trovador provençal, semelhante referência nos seguintes versos: D'Astarac
vênia/ l'autrier vas la Ylla/ pel camin romieu (RIQUIER apud CUNHA, 2006, p.89).
De acordo com Pimpão (1947), a escolha de Santiago de Compostela expressa a
atmosfera religiosa da sociedade da época e as influências literárias advindas da
Provença.
Em conformidade com as regras gerais que se aplicavam às cantigas de caráter pastoril,
dentre as quais se sobressaíam o elemento narrativo e a abordagem por parte do
cavaleiro, D. Johan d'Avoin, estilisticamente, identifica seu narrador como um cavaleiro
pelo primeiro verso: Cavalgava noutro dia. No entanto, sua participação restringe-se à
função expositiva inicial dos fatos e dos diálogos existentes na estrofe. A hipótese de se
ter perdido outras duas estrofes dessa pastorela, leva-nos à possibilidade de imaginar
uma participação mais efetiva do eu-narrante personificado por um cavaleiro, nas
palavras de julgamento e afetividade, denunciados pela caracterização das pastoras.
O traço estilístico que permite atribuir uma moldura descritiva ou um cenário ao
desenvolvimento temático das pastorelas é recorrente em sete dos oito exemplares
galego-portugueses. Somente o trovador Lourenço Jograr omite em sua cantiga
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
24
qualquer descrição paisagística em função do encantamento do trovador no momento
em que se depara com a pastora cantando uma canção ou revelando suas desventuras
amorosas. D. Johan d'Avoin não desenvolve um extenso “prelúdio naturístico” em sua
cantiga, mas, implicitamente, que se trata de uma estação propícia às peregrinações e
aos flagrantes sentimentais dos trovadores.
Dos versos que revelam o canto das pastoras, verificamos que toda composição se
inspira na esperança fundada no amor que se presentifica nos versos (em negrito) da
segunda estrofe. A desilusão cantada pela primeira pastora em forma de conselho
(castigo) nunca molher crea per amigo,/ pois s'o meu foi e non falou migo, inspira a
tonalidade emotiva que se configura nas palavras da segunda, que devota uma fiel e
incansável credibilidade às razões do amigo que deixa de dar notícias à jovem
enamorada.
D. Johan d'Avoin retrata as jovens como mulheres entregues às suas sentimentalidades
em seu cotidiano, uma peregrinação ou um pastorear pelos campos. Embora as
descrições paisagísticas sejam mínimas (caminho francês), percebemos que as ações e
os diálogos acontecem em meio à dinâmica dos quadros que nos sugerem a presença de
um cavaleiro e de jovens pastoras num mesmo cenário. Em um ambiente cultural pleno
de efervescência, o trovador se destaca pela requintada observação da tradição lírica
occitânica e provençal, que irá se desenvolver efetivamente no reinado de Dom Dinis.
A confidência amorosa entre as mulheres (apresentadas em grupo) na cantiga de D.
Johan d'Avoin, ua pastor siia/ cantando com outras três, repete-se na cantiga de
Lourenço Jograr: Três moças cantavam d'amor. Lourenço Jograr, de acordo com Tavani
(2002), é um poeta singular do período alfonsino e servo do trovador Johan Garcia de
Guilhade, com o qual frequentou a Corte portuguesa de Afonso III e a castelhana de
Alfonso X.
Tanto os quartetos quanto o refrão revelam o caráter popular e folclórico da cantiga,
conferindo-lhe um caráter popular e folclórico. A predominância da redondilha maior
também contribui à natureza musical dos versos:
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
25
Três moças cantauam d'amor,
mui fremosinhas pastores,
mui coytadas dos amores,
e diss'end ua, mha senhor;
“dized', amigas, comigo
o cantar do meu amigo”.
Todas três cantauam mui ben,
come moças namoradas
e dos amores coytadas,
e diss' a por que perco o sen:
“dized', amigas, comigo
o cantar do meu amigo”.
Que gram sabor eu auya
de as oyr cantar enton,
e prougue-mi de coraçon
quanto mha senhor dizia:
“dized', amigas, comigo
o cantar do meu amigo”.
E, sse as eu mays oysse,
a que gran sabor estaua
e que muyto me pagaua
de como mha senhor disse:
“dized', amigas, comigo
o cantar do meu amigo”.
Além do refrão e da opção pelo uso da redondilha (traço de musicalidade) é a alusão ao
canto de três jovens que se individualiza na cantiga. Ela se encontra nos limites de
classificação entre as pastorelas, porque não retrata especificamente o flagrante
campesino mais evidente que caracteriza as demais composições, mas apresenta três
jovens como pastoras, aproximando-se (semanticamente) do relacionamento amoroso e
da atividade pastoril existente no universo literário das pastorelas.
De acordo com Spina (1996), a espionagem de amor que faz o poeta demonstra ser a
composição de uma cantiga que privilegia a exaltação do tema amoroso e saudosista em
detrimento da identificação alegórica da poesia com as normas convencionais das
pastorelas. Lourenço Jograr, inspirado nos recursos líricos oferecidos pela temática
pastoril e pelas cantigas de amor, cria o cantar de seus personagens (o cavaleiro e as
pastoras). Numa mesma cantiga temos o arrebatamento amoroso com tons de uma
sondagem do sentimento por parte do amigo, e os suspiros alegres e a vivacidade do
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
26
canto da donzela expressos no refrão.
Na primeira estrofe uma das jovens enamoradas faz o convite para iniciar o canto do
amado (“dized', amigas, comigo/ o cantar do meu amigo”). Diferentemente dos códigos
do amor cortês, que exigiam do trovador absoluto sigilo da identidade da senhora da
corte (comprometida, casada), na cantiga em questão há um jogo aberto de palavras nos
versos três moças cantavan d’amor/ mui fremosinhas pastores/ mui coytadas dos
amores [...], que permitem ao trovador resgatar o vocabulário das cantigas de amor,
incluindo-se a expressão mha senhor para indicar a sua preferida entre as três jovens.
Do mesmo modo, o uso do adjetivo fremosinhas refere-se à beleza singular das moças,
provocando a perda do juízo (e diss’ a por que perco o sen). Nas cantigas ocorre sempre
uma confissão amorosa da jovem que, com a partida de seu amigo, sofre e canta a
saudade e as dores da separação: Ali ouv'eu de mia morte pavor/ u eu fiquei mui coitada
pastor,/ pequena e d'el namorada. Nos textos de Lourenço Jograr e Pero de Veer, o
retrato da mulher apresentado como pastora é a reprodução de um modelo de beleza e
ingenuidade, expressão considerada como tópica das pastorelas.
No plano lexical, tanto a expressão senhor quanto pastor apresenta uma mesma função
– a de acentuar as qualidades da mulher que provocam no trovador o gran sabor de a oir
(grande prazer de ouvi-la). Tavani (2002) explica que um dos tópicos da cantiga de
amor, também presente na cantiga de amigo, é a equação de que o (a) amado (a)
equivale à chama dos olhos daquele que ama. Sendo assim, nada interrompe esse êxtase
de sentimento que perdurará por toda composição.
Quanto ao amor, os personagens apresentam-se sempre envolvidos em sua coita
amorosa que, neste caso, pode ser traduzida como desejo e paixão4, conectados a uma
aspiração natural de cada um que os impele a querer aproximar-se de uma felicidade
total encontrada no outro. O drama passional sugerido pelo termo coita, que em outras
composições alcança o extremismo do tormento amoroso que pode resultar na morte
como solução, não se aplica à cantiga de Lourenço Jograr por não se tratar da exposição
de um drama amoroso com todas suas tonalidades marcantes e expressões trágicas
4
Cf. Nunes (1928, p.597).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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como o abandono, o desprezo, a mentira e a morte. Por outro lado, a pastorela Três
moças cantavam d'amor reflete a sinceridade amorosa presente no espírito dos amantes
que encontram no canto o meio mais expressivo para comunicar as notas mais típicas de
sua emoção.
Misto de pastorela e reminiscência de cantiga de amor, a canção de Lourenço Jograr
denuncia seu empenho e esforço ao trabalhar com tantos elementos diferentes que
provinham de um rígido sistema poético. O trovador, como tantos outros galegoportugueses, conferiu à sua produção a organização retórica e estilística dos trovadores
de seu tempo que criavam e recriavam a partir do rígido sistema poético provençal.
O poeta se refere às jovens mui fremosinhas pastores, o que nos remete a imagens
semelhantes como a bailia de Airas Nunes Bailemos nós, já, todas três, ai amigas e a
pastorela de D. Joan D’Avoin, Cavalgava noutro dia/ [...] e ua pastor siia/ cantando
com outras três, que destacam o baile das moças em grupos de três, levando-nos a
refletir sobre o simbolismo do número três que corresponde à perfeição. Na concepção
cristã5, de acordo com São Cesário de Arles (s/d), Fides omnium christianorum in
Trinitate consistit – A fé de todos os cristãos consiste na Trindade, pois se Deus cria
tudo com sabedoria, e sendo a Unidade divina dogmaticamente Trina, logo podemos
relacionar sua bondade e perfeição a sua existência Trina no Pai, no Filho e no Espírito
Santo.
Curtius (1996) explica que a Antiguidade recebeu de Pitágoras e sua escola um
simbolismo e um misticismo numérico que confluíram com o cristão. Se o número sete
representa a criação, o três relaciona-se à Trindade (harmonia e perfeição). Antes
mesmo do simbolismo cristão, o número três remete às imagens da mitologia grega
como as Cárites representando harmonia e beleza, ou ainda, as Três Graças, filhas de
Zeus, sensivelmente interpretadas por pintores renascentistas como Sandro Botticelli
(1445-1510) em A Primavera (1478) e Peter Paul Rubens (1577-1640), na tela As Três
Graças (1639).
5
Cf. Chevalier; Gheerbrant (2006).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
28
Em continuidade à nossa leitura, a pastorela Oi oj’eu ua pastor cantar, / du cavalgada
per ua ribeira, de autoria de Airas Nunes, coloca-nos diante de um estado sentimental
que se difere das anteriores. O eu-lírico (na figura do cavaleiro) num tom narrativo, ao
passar por uma ribeira, depara-se com uma pastora de muito boa aparência (parecia mui
bem) que cantava sozinha (senlheira) e resolve aproximar-se para ouvir (ascuitar) suas
queixas de amor, enquanto confeccionava ua guirlanda de flores, conforme registram os
versos:
Oi oj’eu hũa pastor cantar,
du cavalgava per hũa ribeira,
e a pastor estava [i] senlheyra,
e ascondi-me pola ascuytar
e dizia muy ben este cantar:
“So lo ramo verde frolido 6
vodas fazen a meu amigo
[e] choran olhos d’amor.”
E a pastor parecia muy ben
e chorava e estava cantando
e eu muy passo fuy-mh-achegando
pola oyr e sol non faley ren,
e dizia este cantar muy ben:
“Ay estorninho do avelanedo
cantades vós e moyr[o] eu e pen[o]:
e d’amores ey mal,”
E eu oí-a sospirar enton,
e queixava-s’estando com amores
e fazi’ [ũ]a guirlanda de flores,
des y chorava muy de coraçon
e dizia este cantar enton:
‘Que coyta ey tan grande de sofrer!
amar amigu’e non [o] ousar veer!
e pousarey so l’avelanal.”
Poys que a guirlanda fez a pastor,
foy-se cantand’, indo-ss’en manselinho,
e torney-m’eu logo a meu caminho,
ca de a noiar non ouvi sabor;
e dizia este cantar ben a pastor:
“Pela ribeyra do ryo cantando
ya la virgo d’amor: quem amores
á como dormirá, ay bela frol !”
6
O grifo é nosso.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
29
Estrutura-se a cantiga em quatro oitavas, dividindo-se cada uma em duas partes, uma
quintilha seguida do refrão de três versos. O caráter narrativo e o esquema rítmico
contam com o dobre, figura retórica galego-portuguesa baseada na repetição de palavras
em diferentes pontos da cantiga (versos 1,5/ 9,13/ 17,21/ 25,29). Muito apreciada entre
os trovadores, uma de suas funcionalidades consiste em uma repetição léxica sem
flexão, seja qual for sua posição, contribuindo para a harmonia rítmica em sua
execução.
Uma profunda comunhão da jovem donzela com a natureza na criação de um quadro
bucólico comum às pastorelas pode ser observada nos fatos sensivelmente trabalhados
pelo trovador. Na primeira estrofe, após a apresentação do cavaleiro (espécie de
exórdio), o cantar da pastora revela que sob os ramos verdes da primavera,
(considerados sagrados) acontece o casamento de seu amigo. Na estrofe seguinte, há a
presença do estorninho no avelanedo (ou avelaneira), pássaro nativo de Trás-os-Montes,
encontrado sempre aos bandos, conhecido como um hábil imitador. Exerce o papel de
confidente da donzela, pedindo-lhe que cante (cantades vós), enquanto ela sofre pelos
amores mal sucedidos (d’amores ey mal). O cavaleiro ressalta, em seguida, a veracidade
dos sentimentos da jovem pela expressão chorava mui de coraçon e a transcrição do
canto aponta para sua coita amorosa num enquadramento paisagístico no qual se
verifica a presença das aveleiras. Na última estrofe, completa-se a beleza e graciosidade
da cantiga no momento em que, terminada a grinalda de flores, a pastora segue Pela
ribeira do rio como la virgo d’amor, enquanto o cavaleiro, respeitando as regras da
cortesia, prossegue seu caminho sem incomodá-la.
Tais imagens levam-nos a constatar a existência de um clima místico e religioso,
comum às cantigas de Airas Nunes. A influência da religiosidade revela-se pelo o que
representa simbolicamente a guirlanda de flores confeccionada pela donzela. Na
concepção cristã, de acordo com Biedermann (1993), a guirlanda (ou grinalda) significa
a vitória sobre as trevas do pecado, daí a íntima associação da Virgem Maria com as
rosas, perfeitamente justificável pelo estado de virgo em que se revela a pastora. A
ternura do desfecho também é de certa forma comovente, considerando-se a presença do
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
30
rio e da virgem em um mesmo quadro. O transcurso irreversível do rio, tal como a
cortesia passageira do cavaleiro, remete ao abandono e ao esquecimento da jovem que
ficou à margem de seus sentimentos.
A cantiga ilustra bem a característica espiritual das descrições da natureza unidas ao
estado de espírito da pastora, tendo em vista que o pousar, ou seja, a atitude de espera
sob os ramos das aveleiras indicia a fidelidade pelo amado. Vale acrescentar que a
“aveleira representa a fertilidade e a pureza feminina” (BIEDERMANN, 1993, p. 35).
Há, portanto, nos versos de Airas Nunes uma recuperação da concepção de
religiosidade que aponta para a natureza como uma forma de reconhecimento do
sagrado, idéia sustentada por Eliade (2001) que se trata de uma forma de se divisar a
presença do Criador nos múltiplos seres divinizados com os quais o eu-lírico estabelece
uma íntima relação. Na pastorela em questão, os elementos que protagonizam a
interação eu-lírico / cenário correspondem ao rio (ribeira), aos ramos verdes da
primavera (ramo verde frolido), ao estorninho, à guirlanda de flores, às aveleiras
(avelanal) e às flores (frol).
Sobre o cenário das pastorelas há duas vertentes interpretativas. A primeira se refere ao
cenário natural que, coerentemente, nos fornece dados significativos sobre a cultura
portuguesa na Idade Média e o forte domínio da religiosidade no período; os estratos
culturais representados pelas pastoras (os camponeses) e pelos cavaleiros (nobreza),
além do universo musical baseado na transmissão oral, envolvendo as camadas sociais e
populares da época. Em segundo lugar, o grande campo simbólico oferecido por essa
modalidade poética que, por sua vez, carrega uma tradição ideológica intimamente
ligada à religiosidade.
Sob tal perspectiva, os elementos compositivos do cenário pastoril galego-português
apresentam intensa carga simbólica ligada aos períodos que antecedem o medieval;
entretanto, a crescente religiosidade desse período esteve presente no cotidiano e
também no imaginário. A cantiga de Airas Nunes, singular na poesia medieval
portuguesa, revela-se como parte de um lirismo que apresentava um perfil feminino
mais dinâmico comparado ao das mulheres das cantigas de amor. Embora considerada
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
31
como parte de uma lírica profana, a pastorela Oi oj’eu hũa pastor cantar corresponde a
um texto poético cuja ligação entre o homem e a natureza contempla uma experiência
sacralizante do sentimento amoroso. De acordo com Eliade (2001), o homem desde
sempre vivenciou a oposição entre o sagrado e o profano, relação direta entre o Céu e a
Terra. Ao atribuir à natureza o significado de um lugar sagrado, o homem comunica
seus sentimentos com o divino pela intermediação de elementos como as árvores, as
flores, os pássaros etc. Se recorrermos às artes pictóricas fica evidente a influência da
natureza na ornamentação dos impressionantes edifícios medievais e das catedrais
góticas. A descrição da natureza na pastorela busca a exaltação de Deus em todos os
aspectos da vida do homem medieval.
Entre os elementos da natureza, as flores são as que mais traduzem os sentimentos da
amiga. Simbolicamente representam a beleza física, muito bem marcada pelo trovador
na caracterização da jovem donzela, por meio de uma adjetivação expressiva (parecia
muy ben), e da fugacidade das coisas representadas pelas juras de amor (preito)
passageiras feitas pelo amigo. A cortesia efêmera que ilude a jovem liga-se à honra
temporária representada pela guirlanda de flores que se desgastará com o tempo, ao
contrário das alianças que simbolizam o enlace matrimonial duradouro. Por outro lado,
a guirlanda também sugere a vitória sobre o pecado, outro conceito muito frequente na
literatura medieval.
Quanto à aveleira, de acordo com Biedermann (1993), a sua significação simbólica está
relacionada à fertilidade, além do caráter sagrado, local de reuniões e de julgamentos.
Na Idade Média, o avelanal continuou representando a fertilidade por se tornar um
ponto de frequentes encontros dos namorados que tentavam fugir da vigilância
constante das famílias. Ir para as aveleiras ou repousar sob elas significa, em muitas
cantigas, encontrar-se com o amigo ou esperar por ele. Os pássaros exercem o papel de
mediadores da vontade divina, o que explica a invocação do estorninho para cantar os
sofrimentos da jovem, aliviando sua dor e sugerindo piedade.
A presença do cavaleiro poderia comprometer a pureza da imagem de uma jovem
donzela que canta pelos campos enquanto pastoreia. Por outro lado, o flagrante
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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campesino decorrente desse encontro ocorre singularmente sob os preceitos de mesura e
de cortesia, enquanto “os outros autores de pastorelas introduzem na cena, seguindo o
exemplo dos modelos além-pirenaicos, o diálogo entre o cavaleiro que oferece o seu
amor e a pastorinha que o recusa desdenhosamente ou que acaba por aceitá-lo”
(TAVANI, 1988, p. 212). Airas Nunes reelabora o esquema do gênero com criatividade
e técnica original, e o eu-narrante (cavaleiro) não aborda a pastora a fim de seduzi-la.
Historicamente, na tradição literária medieval os encontros entre cavaleiros e pastoras
ocorriam com mais frequência por ocasião das festividades ligadas ao mês de maio.
Segundo a tese folclórica, toda a poesia trovadoresca se reduzia à natural transformação
literária de antigos temas populares ligados a um culto pagão específico do primeiro dia
de maio7, no qual moços e moças viviam na natureza celebrações do amor decorrentes
da chegada da Primavera. Com o cristianismo, essas festividades passaram a necessitar
de uma justificativa doutrinária. Aos olhos da fé católica, tais festividades eram formas
de prostituição justificada por rituais pagãos. Em outras palavras, inserem-se em um
mesmo cenário a manifestação de vestígios de um folclore tradicional, ligado a um
lirismo primaveril representado pela menina num quadro bucólico, aspectos de uma
situação cotidiana como a ação de um cavaleiro e as expressões de religiosidade.
Diante do exposto, esse lirismo ligado ao universo musical, essencialmente baseado na
transmissão oral, deixou-nos registros escritos de uma poesia que contempla uma
profunda interpenetração do sagrado e do profano, espécie de um hino ao estado de
virgo de uma jovem donzela, ao mesmo tempo em que, culturalmente enraizada, expõe
“um feixe de observações do mais alto valor sobre o feito psicológico da mulher”
(Lapa, 1973, p.159). Dentro desse contexto, a literatura galego-portuguesa soube
representar os dramas da vida amorosa feminina, revelados nas pastorelas, documentos
vivos do cotidiano da época. Nos versos da cantiga Oi oj' eu hua pastor cantar/ du
cavalgava per hua ribeyra, o amor não é apenas um sentimento com características de
ir e vir, capaz de inebriar os amantes e trazê-los bruscamente à realidade, mas,
corresponde a uma totalidade na vida do homem que, no amadurecimento do Eros,
relaciona-se em diferentes situações no amor conjugal. Por outras palavras, o eu-lírico
7
Cf. Tavani (2002, p.36).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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feminino da cantiga de Airas Nunes, representado pela jovem e bela pastora (de bon
parecer), bem como sua íntima relação com a natureza sacralizada, assume seu
sofrimento diante do abandono, vislumbrando uma esperança de renascer para o amor e
permanecer como la virgo do amor.
Além da habilidade do poeta de corte capaz de tratar com
desenvoltura e com soluções originais os assuntos de interesse do
príncipe, o clérigo-trovador revela assim um domínio invulgar da
forma e a disposição de tratá-la com a maior liberdade, dentro e
fora dos cânones da tradição. O mesmo anti-convencionalismo
manifesta-se também na pastorela: o cavaleiro, em vez de a
importunar com a sua oferta de amor, limita-se a escutar, sem ser
visto, a pastora que “chorava e estava cantando”. [...] Poeta de
corte, mas vivo e original – na medida, evidentemente, em que isto
era admitido na Idade Média -, homem de letras bom conhecedor e
apreciador da poesia trovadoresca galego-portuguesa e provençal,
Airas Nunes manifesta-se possuidor duma técnica e duma cultura
tradicional que ele sabia modificar e adaptar às exigências da
expressão poética. (TAVANI, 2002 apud LANCIANI; TAVANI,
2002, p.27-28)
Como clérigo, Airas Nunes não se deixaria seduzir pela polêmica da maledicência e
nem pelos defeitos morais que poderiam ser atribuídos aos seus personagens.
Consciente da concepção cristã de amor, considerando sua pureza e gratuidade
presentificadas em uma aliança matrimonial, o trovador demonstra respeito pela função
catártica da poesia por desenvolver motivos morais e estéticos em vez de simplesmente
exercitar as modalidades líricas do trovadorismo. A mesura observada pelo cavaleiro na
pastorela de Airas Nunes aparece nitidamente na fala da pastora da cantiga de Johan
Airas de Santiago, que, ao lado de D. Dinis, foi um dos mais fecundos trovadores pelo
número de cantigas registradas em sua autoria. O ambiente harmônico a que nos
referimos na cantiga anterior, agora é quebrado pela insubordinação do cavaleiro diante
dos riscos de difamar a jovem donzela:
Pelo Souto de Crexente
hua pastor vi andar
muyt’alongada de gente,
alçando voz a cantar,
apertando-sse na ssaya,
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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quando saya la rraia
do ssol nas rribas do Sar.
E as aves que voavan,
quando saya l’alvor,
todas d’amores cantavan
pelos rramos d’arredor,
mays non sey tal qu’ i’ stevesse
que en al cuidar podesse
senon todo en amor.
Aly ‘stivi eu muy quedo,
quis falar e non ousey,
empero dix’a gran medo:
— Mia senhor, falar-vos-ey8
hun pouco, se mh — ascuytardes
e ir-m’ey, quando mandardes,
mais aqui non [s] starey.
— Senhor, por Sancta Maria,
non estedes mais aqui,
"mais ide-vos vossa via;"
faredes mesura y,
ca os que aqui chegaren,
pois que vos aqui acharen,
ben dirán que mais ouv’i.
Apresenta a cantiga um cenário lírico que reflete o estado de espírito da donzela, nas
duas primeiras estrofes. Pizzorusso (apud LANCIANI; TAVANI, 2002, p. 343) explica
que as estrofes são dedicadas à orquestração musical, nas quais o canto dos pássaros
acompanha o canto da mulher. O trovador empregou um forte realismo nas demais
estrofes no diálogo entre a pastora e o cavaleiro, que não se identifica como tal, mas
como o próprio poeta. Embora a pastorela seja identificada como uma cantiga de amor
nos manuscritos, a cantiga de Johan Airas remete à concepção provençal de pastorela
pela presença da natureza e abordagem de um cavaleiro. Por outro lado, a conquista
amorosa não se concretiza e nem ao menos prolonga o debate. Para Spina (1996), a
pastora da cantiga representa a mulher de postura mais elevada, digna da cortesia do
trovador ao aconselhar, em defesa do pudor, que o cavaleiro se retire do lugar (última
estrofe).
É importante observar que o enquadramento narrativo recebe um alargamento de seus
8
O grifo é nosso.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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elementos. Os primeiros raios do sol que aquecem as águas do rio Sar9 no alvorecer,
podem ser identificados com o amor que surge no coração do cavaleiro, ao vislumbrar a
bela pastora digna de ser chamada de senhor.
A cantiga é extraordinária pela dinâmica dos quadros e pelas
riquezas das notas na descrição da paisagem matutina: o souto do
Crescente, os primeiros raios do sol nas margens do rio Sar, as
aves a entoarem hinos de louvor à madrugada, cantando melodias
amorosas por entre os ramos das árvores vizinhas. A pastorela de
Airas Nunes é tida por todos e críticos e comentadores que a
editaram como um das raras jóias da lírica trovadoresca. (SPINA,
1996, p.344)
Na abordagem de quatro das oito pastorelas do cancioneiro galego-português
configurou-se a forte presença da dimensão religiosa na concepção de amor nas
cantigas trovadorescas. A diversidade de traços estilísticos que denunciam o hibridismo
do gênero nos forneceu indícios que, desde cedo, os trovadores galego-portugueses
assumiram uma grande cumplicidade com a atmosfera poética que tomava conta de
toda Europa dos séculos XII e XIII. As reflexões registradas até aqui tiveram como
subsídio informações históricas e culturais do período medieval, bem como as
características do gênero lírico, sua conceituação e seus primeiros registros indicadores
de manifestação poética.
Considerado um dos mais fecundos trovadores, responsável por uma política cultural
singular na literatura medieval portuguesa, Dom Dinis viveu entre 1261 e 1325, tendo
reinado de 1267 até 1325. Com o cancioneiro composto por 137 cantigas, sua produção
lírica revela a influência provençal, estímulo à leitura de seus textos.
Na opinião de Gonçalves (2000), as sutilezas das composições do rei trovador
correspondem claramente aos motivos e temas trovadorescos que, associando-se às suas
expressões de rei poeta, representam a síntese de suas experiências desenvolvidas, por
exemplo, pela:
9
Rio da Galiza que nasce na freguesia de Bando (Santiago de Compostela) e corre pelas freguesias de
Sar, Conxo e Laranho.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
36
concepção do amor como um serviço feudal (Praz-mi a min,
senhor, de morrer) e o conceito de justiça dentro das regras do
código vassálico (Non sei como me salv'a mia senhor), a ideia de
considerar a dona amada como digna de um rei (Pois vos Deus fez,
mia senhor) ou a afirmação de que vale mais viver perto da senhor
do que ser um rei ou infante (Senhor, que de grad'oj'eu querria)
são convenções da poesia cortês, mas, quando o trovador é rei,
podemos supor que, que ao dirigir-se à senhor para lhe dizer
erades boa pera rei, a declaração assumiria o tom de invenção
irônica. [...] Poeta em maneira proençal, D. Denis distingue-se
também entre os outros trovadores por algumas características do
seu provençalismo, já por outros assinalados com base em
minuciosos confrontos. [...] Mas acerca de seu caráter indígeno, ou
mesmo popular destas cantigas de estrutura paralelística, convirá
ter em conta que, sendo D. Denis um poeta-rei ostensivamente
provençalizante, cuja atividade se situa numa época de síntese das
experiências trovadorescas na área galego-portuguesa, algumas
destas características, aparentemente populares, partem de
sugestões cultas: tal é, quanto a nós, o caso das cantigas Ai flores,
ai flores do verde pino. (GONÇALVES apud LANCIANI;
TAVANI, 2000, p. 208-209)
De acordo com a teoria da Arte de Trovar, as três pastorelas de D. Dinis foram inseridas
entre as cantigas de amor. Dentre elas, apenas a cantiga Vi oj'eu cantar d'amor,
apresenta o elemento chave do gênero entre os provençais: o diálogo entre o cavaleiro e
a pastora. Nessa cantiga a proposta amorosa desenrola-se logo nos primeiros versos,
suprimindo qualquer outra descrição pictórica do cenário e da relação da pastora com o
mesmo:
Vi oj’eu cantar d’amor
en um fremoso virgeu
ũa fremosa pastor,
que ao parecer seu
jamais nunca lhi par vi,
e por en dixi-lh’assi.
“Senhor, por vosso vou eu”10.
Tornou sanhuda enton,
quando m’est’oíu dizer,
e diss’: “Ide-vos, varon!
Quem vos foi aqui trager,
pera m,’irdes destorvar,
du dig’aqueste cantar
10
Grifo nosso.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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que fez quen sei ben querer?”
“Pois que me mandades ir,”
dixi-lh’eu, “senhor, ir-m’ei,
mais já vos ei de servir
sempr’e por voss’andarei,
ca voss’amor me forçou
assi que por vosso vou,
cujo sempr’eu já serei.”
Dix’ela: “Non vos ten prol
esso que dizedes, nen
mi praz de o oír sol,
ant’ei noj’e pesar en,
ca meu coraçon non é,
nen será, per bõa fé,
se non do [que] quero ben.”
O texto destaca o flagrante campesino apresentado em circunstâncias que envolvem o
canto de amor de uma pastora em um belo jardim, no qual se insere o cavaleiro,
encantado pela beleza da jovem, provocando a quebra da harmonia do quadro que se
observa. A beleza da mulher é colocada em relevo pelo cavaleiro. Ao referir-se aos seus
atributos físicos nos versos [...] que ao parecer seu/ Jamais nunca lhi par vi, ele a
destaca como uma mulher digna de cortesia, pois nenhuma outra no mundo assemelhase a ela. O cenário referente a este encontro concentra-se apenas na menção de um
espaço correspondente ao belo jardim, fremoso virgeu, deixando subentendido uma
atmosfera clara e límpida, a qual certamente se enquadra, coerentemente, à ternura e aos
sentimentos despertados pela visão do cavaleiro.
A reação instantânea da pastora é de ira (Ide-vos varon!) pelo empecilho causado pelo
cavaleiro que interrompe o seu cantar e também pelo cuidado que ela demonstra em não
desejar ser vista na companhia de um homem. Mesmo com a insistência do cavaleiro na
terceira estrofe, quando declara sua incapacidade de resistir aos encantos e ao amor
despertados pela beleza da pastora, irredutivelmente, ela confessa estar enamorada de
outro que possui seu coração e todo o seu amor. O breve desfecho da pastorela não
apresenta nenhuma satisfação por parte do cavaleiro, que segue seu caminho sem ao
menos lamentar, como de regra, pela indiferença da pastora e do sentimento não
correspondido. Quanto aos anseios femininos, a pastora segue sozinha em seu formoso
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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jardim cantando versos de amor pelo namorado, sem demonstrar nenhum tipo de
mudança no seu espírito pela presença perturbadora do cavaleiro.
A prática de um modelo provençal de composição se sobrepõe a qualquer intensidade
lírica que buscasse expressar maiores indícios amorosos, tanto por parte do cavaleiro
quanto por parte da donzela. O mais evidente na cantiga é a reação irada (sanha)
expressa pela jovem ao perceber a presença de um homem estranho, num lugar que
poderia ser vista por outras pessoas, podendo, assim, atrair comentários impróprios à
sua reputação.
Outro ponto que pode ser associado é a conotação amorosa que o jardim adquire na
pastorela e em grande parte da lírica medieval. O destaque para o fremoso virgeu
possibilita a convergência para duas leituras. A primeira é alegórica, fornecendo-nos
indícios da pureza do quadro bucólico em que se encontra a pastora que, além de bela,
também assume o papel de observadora (e cumpridora) dos preceitos morais e
religiosos de sua sociedade, devido ao desconforto sentido com a presença de um
galanteador. A segunda é naturalista, ao oferecer nos primeiros versos um cenário
propício ao exercício da conquista amorosa, a qual entre os provençais poderia resultar
também na posse física.
O formoso jardim para o cavaleiro pode, facilmente, representar o próprio corpo da
pastora devido a sua beleza e singularidade. Acerca do locus amoenus desse tipo de
composição, Brea (apud BILLY; CLEMENT; COMBIES, 2006, p.103) esclarece que
“Ce type de description contient presque tous les éléments distinctifs, destinés à
procurer du plaisir aux cinq sens”.11 No que se refere às pastorelas de D. Dinis:
Il semble évident que nous sommes em présence d'une de ces
évocations des troubadours gallo-romans (em langue d'oc ou
d'oil) que D. Denis aimait beaucoup, bien qu'on ne puisse pas
toujours proposer une source directe pour celles-ci. Em tout cas,
cette composition présente un schema métrique particulier, dont la
combinaison des rimes (ababccb) est assez commune, mais pas
11
Este tipo de descrição contém todos os elementos distintivos, destinados a proporcionar o prazer aos
cinco sentidos.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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avec des vers heptasyllabes; il est du mois curieux de constater
que seuls Gonçalo Garcia, marié avec une fille illégitime du roi
lui-même, et Johan Airas de Santiago (un des troubadours galégoportugais qui connaissaient le mieux la lyrique gallo-romane),
dans une autre pastourelle (où la bergére allait “pelo souto de
Crecente”), font usage de ce type de vers avec cette disposition
des rimes; et tous les deux de D. Dinis, les rimes masculines et
féminines (dans le texte de D. Denis, les rimes sont toujours
masculines). Nous n'avons pas trouvé ce schéma chez les
troubadours occitans et, em langue d'oil, les seuls exemples
connus concernet Gace Brulé et une chanson anonyme. La
pastourelle de D. Denis présente un três grand intérêt pour nous:
elle montre qui'il connaî bien l'importance du verger comme lieu
de rencontre amoureuse, surtout dans ce genre poétique.12
(BREA, apud BILLY; CLEMENT.; COMBIES, 2006, p. 113114)
Compreendemos que a imagem do jardim corresponde em parte à alegoria do hortus
conclusus, o jardim fechado, ou o jardim das delícias. Com o advento do culto mariano,
esse jardim adquire novas concepções relacionadas à figura da Virgem Maria na
representação de sua pureza, castidade, obediência e inviolável humildade. A ideia de
um jardim particular também se encontra em monastérios, que designam o local
particular e tranquilo para o exercício de orações e meditações.
O jardim perfeito e recluso pode ser personificado em Maria, que espera o lírio (o
próprio Cristo) sem a perda da virgindade. Assim, o fremoso virgeu presente na cantiga
compartilha da referência cristã que se justifica na presença da pastora (de beleza única)
à espera do amado. Não apontamos uma relação direta entre os cenários, bem como não
foi verificada uma diferença entre as concepções que ambos suportam, ao serem
colocados em paralelo. A escolha do trovador, ao apresentar o cenário da disputa verbal
12
Parece evidente que nós estamos em presença de uma dessas evocações dos trovadores galaicoromânicos (na língua d’oc ou d’oil) que D. Dinis valorizava muito, mesmo que jamais se pudesse
apresentar uma fonte direta para elas. Em todo caso, essa composição apresenta um esquema métrico
particular, cuja combinação das rimas (ababccb) é muito comum, menos com os versos
heptassílabos; é pelo menos interessante constatar que somente Gonçalo Garcia, casado com uma
filha ilegítima do próprio rei, e Johan Airas de Santiago (um dos trovadores galego-português que
conhecia melhor a lírica galaico-românica), em outra pastorela, na qual a pastora caminha “pelo
souto de Crecente”), empregam esse tipo de verso com essa disposição das rimas; e nos dois
exemplares de D. Dinis, as rimas são masculinas e femininas (no texto de D. Dinis são rimas sempre
masculinas). Não encontramos esse esquema com os trovadores occitanos e, na língua d’oil, os
únicos exemplos conhecidos um refere-se a Gace Brulé e uma canção anônima. A pastorela de D.
Dinis é muito interessante por nos mostrar que ele conhecia bem a importância do pomar como
lugar de encontro amoroso, sobretudo, neste gênero poético.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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entre seus personagens, não só atende aos requisitos estilísticos e retóricos das
pastorelas provençais, como também confere à sua cantiga um tom religioso com
evocações paradisíacas sugeridas pelo perfil sentimental feminino e pela mesura
atendida pelo cavaleiro.
Na pastorela Ua pastor se queixava, também de autoria de D. Dinis, o trovador também
apresenta lugares comuns do gênero, como o cenário natural e a pastora, o flagrante
campesino, no qual o trovador surpreende as queixas de amor (a coita amorosa) de uma
jovem que vive na zona rural.
Ũa pastor se queixava
muit’estando noutro dia,
e sigo medês falava
e chorava e dizia
com amor que a forçava:
“par Deus, vi-t’en grave dia13,
ai amor!”
Ela s’ estava queixando,
come molher con gram coita
e que a pesar, des quando
nacera, non fôra doita,
por en dezia chorando!
“Tu non és se non mia coita,
ai, amor!
Coitas lhi davam amores,
que non lh’eran se non morte,
e deitou-s’antr’ũas flores
e disse con coita forte:
“Mal ti venha per u fores,
ca non és se non mia morte,
ai, amor!
O recurso do dobre, novamente registrado nas pastorelas, indicia um repertório
composto por D. Dinis envolvendo influências cultas e populares. Como excelente
trovador que era, segundo Gonçalves (2000 apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p. 211),
teria composto os versos e também a música de suas cantigas, observando as expressões
melódicas e os recursos estilísticos de
metrificação, possibilitando a singular
dinamização dos valores poético-expressivos das imagens e dos conteúdos da poesia
13
Grifo nosso.
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pastoril.
A pastorela Ũa pastor se queixava apresenta o contínuo solilóquio feminino introduzido a
cada estrofe pela narração do trovador que a observa. Não se trata de uma abordagem
ou encantamento do trovador pela pastora, mas uma descrição cuidadosa dos fatos que
ele observa. Na primeira estrofe, refere-se a uma mulher muito chorosa de seus
sentimentos, a qual ele nomeia de pastor. Spina (1996) acredita não se tratar realmente
de uma pastora, mas de uma mulher da cidade devido ao seu tom extremamente triste e
queixoso. Pode-se dizer que D. Dinis condensa elementos básicos da poesia popular,
como a repetição e as lamentações amorosas.
A intensidade de seus sentimentos é explicitamente denunciada pela ocorrência dos
verbos queixar e chorar, e pelos versos chorava e dizia /con amor que a forçava, os
quais podem ser compreendidos como a síntese de um amplo sofrimento, resultado de
um amor que a domina completamente. Outro fator que nos leva a constatar o seu pesar
é a insistente caracterização do estado de espírito observado e narrado pelo trovador na
segunda estrofe, nos versos: Ela s'estav quexando/ como molher com gran coita.
A protagonista move-se num ambiente de murmúrios e lamentações, no qual tudo e
todos são testemunhas de seus infortúnios, traduzidos pela palavra coita que, neste
contexto, carrega o significado de intenso e terrível sofrimento. Tematicamente, sua
conotação, vai além de uma simples adjetivação que qualifica uma jovem enamorada,
tal como ocorre na cantiga de Lourenço Jograr (Três moças cantavan d'amor/ muy
coytadas dos amores) acima comentada. A palavra coita na pastorela de Dom Dinis se
refere a um tormento amoroso de profunda complexidade, capaz de designar a
identificação da mulher com uma desilusão que a priva de qualquer outra perspectiva,
não incluindo a morte como resultado ou fim desejado. A ocorrência do vocábulo no
plural (Coitas, verso 15) sugere a intensidade do sentimento de desgosto por ocasião de
sua infelicidade amorosa. Saliente-se que o termo ganha especial relevo devido à
inversão da frase que, na ordem direta, na opinião de Ferreira (s/d), resumir-se-ia a
Amores lhe davan coitas, ao passo que na cantiga a ordem registrada é Coitas lhe davan
amores.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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De acordo com Spina (1996), os versos [...] des quando nacera,/ non fora doita indicam
um amor à primeira vista, pois a mulher declara que, desde o seu nascimento, não tem
conhecimento, ou experiência nenhuma do amor. A tradução do termo doita14 refere-se
a algo já experimentado. No contexto da cantiga, há um sentimento não experimentado
pela donzela, mas que a faz ultrapassar os estágios suspirantes da paixão, para desejar a
morte ao seu objeto de sofrimento. Outra indicação do drama feminino pode ser
observada no emprego dos termos coita e morte os quais, além de auxiliar nos arranjos
da musicalidade, retoricamente, intensificam a repetição da dramaticidade da situação.
A grande habilidade técnica do Rei Trovador ainda contribui para que a parte narrativa
da pastorela retome um de seus elementos essenciais: a referência a um dos elementos
do locus amoenus no verso: e deitou-s antr'uasflores.
Como parte da ornamentação do discurso, a referência ao cenário adquire grande carga
simbólica ao considerar a natureza testemunha do amor não correspondido, porquanto o
divino (Par Deus, vi-ti en grave dia) e a natureza (e deitou-s antr'uasflores) são dignos
de conhecer a tristeza e os anseios da pastora. Nesse sentido, Deus e as flores
representam a continuidade de uma eterna perfeição e beleza, respectivamente,
comparada à efemeridade de uma felicidade que se inicia e, ao mesmo tempo, termina
no dia em que conheceu o seu amado.
As descrições da natureza presentes nas cantigas de amigo, principalmente nas
pastorelas, exemplificam e consolidam os recursos que a retórica elaborou a paisagem
ideal dessa modalidade poética. Compreendemos que o fremoso virgeu, o antr'uas
flores e a ribeira das pastorelas comentadas neste trabalho não traduzem a realidade,
mas servem de veículo e revestimento à uma paisagem ideal que participa do divino e
forma um microcosmo social que unifica a Natureza e o Amor.
O caráter intelectual das cantigas de D. Dinis evidencia-se pelo perfeito
desenvolvimento temático e adequação de todos os elementos típicos de cada gênero,
mas, principalmente, pelo aproveitamento pessoal do material retórico existente na
criação de um cancioneiro capaz de expressar uma síntese das experiências
14
Cf. Nunes (1928, p.611). Doito (a): adj. Ensinado, acostumado, experimentado, prático.
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trovadorescas de seu tempo.
Entre as cantigas mais representativas do cancioneiro dionisino encontra-se a pastorela
Ũa pastor ben talhada, caracterizando verdadeiramente a versatilidade do trovador na
apresentação de um diálogo cortês (e por que não dizer dramático) entre a pastora e um
formoso confidente, ao envolver adequadas referências espaço-temporais e indicações
sobre os personagens e seus gestos:
Ũa pastor ben talhada
cuidava en seu amigo
e estava, ben vos digo,
per quant’eu vi, mui coitada,
diss’: “Oimais non é nada15
de fiar per namorado
nunca molher namorada,
poisque mi o meu á errado.”
Ela tragia na mão
um papagai mui fremoso,
cantando mui saboroso,
ca entrava o verão,
e diss’: “Amigo loução,
que faria per amores,
pois m’errastes tan en vão?
E caeu antr’ũas flores.
Ũa gran peça do dia
jouv’ali, que non falava,
e a vezes acordava,
e a vezes esmorecia,
e diss’: “Ai Santa Maria,
que será de min agora?”
E o papagai dizia:
“Bem, por quant’eu sei, senhora.”
“Se me queres dar guarida”
diss’a pastor, “di verdade,
papagai, por caridade,
ca morte m’é esta vida”
Diss’el: “Senhor [mui] comprida
de ben, e non vos queixedes,
ca o que vos á servida
erged’olho e vee-lo-edes.”
15
O grifo é nosso.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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Na primeira estrofe ocorre a apresentação da mulher: Ua pastor ben talhada, com uma
adjetivação típica de uma pastorela e digna de uma donzela cuja beleza é singular. Sua
juventude anunciada pelo adjetivo pastor une-se à expressão ben talhada que a
caracteriza fisicamente como uma mulher, cujo corpo é formoso aos olhos do trovadorobservador. No que se refere ao seu estado de espírito, a expressão adjetiva mui coitada
finaliza sua descrição, introduzindo o saudosismo e o sofrimento amoroso. Os primeiros
versos do canto da pastora denunciam a decepção frente aos versos em que afirma não
devotar mais confiança ao seu amado: Oimais – daqui em diante16, já que sofre
intensamente com sua ausência. A segunda estrofe apresenta estrutura semelhante,
seguindo a fórmula de uma introdução narrativa que antecede o canto feminino. Na
mesma introdução há o registro da participação de um personagem inteiramente novo
nas pastorelas galego-portuguesas: o papagaio. Diferentemente do estorninho invocado
na cantiga de Airas Nunes, o papagaio nesta composição não só estabelece um diálogo
com a pastora, como também garante os aspectos da encenação dramática na cantiga.
Vale ressaltar que a descrição do pássaro garante ao texto a formação da imagem que
corresponde ao cenário primaveril, presença constante nas cantigas de amigo. Em uma
primeira leitura, o papagaio pode ser interpretado como elemento da natureza, ou seja,
um belo pássaro (formoso), cujo canto suave (mui saboroso) é resultado da Primavera,
período propício aos encontros e relacionamentos amorosos. Por outro lado, a chegada
do verão representa simbolicamente o encerramento desse período, no qual suspiram
jovens pastoras enamoradas pelos campos. Daí o descontentamento da mulher ao cantar
Amigo loução,/ que faria per amores,/ pois m’errastes tan en vão? O verbo errar neste
contexto refere-se à falta aos deveres de uma pessoa para com outra, ou seja, indica a
falta de comprometimento que o amigo não apresentou ao não cumprir com suas
promessas.
Voltando às informações que compõem a segunda estrofe, ao referir-se ao amado como
amigo loução, belo em relação à aparência, a pastora nos fornece argumentos que
justificam os sentimentos que a faz esmorecer de amor (desmaiar). Na mesma estrofe
16
Cf. Nunes (1928, p.611). Oimais: Adv. Desde hoje, daqui em diante, doravante.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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verificamos o locus amoenus das pastorelas representado pelo antr’ũas flores, local em
que a pastora expressa profunda comunhão com a natureza.
A religiosidade das cantigas de amigo e, especialmente, da pastorela de D. Dinis
(terceira estrofe, uma invocação à Santa Maria: Ai Santa Maria/ que será de min
agora?) pode ser interpretada como uma Providência divina, um anseio da pastora para
solucionar o problema trágico do abandono do namorado. O pensamento cristão
sustentava já no século XIII que o ser humano seguiria sua aspiração natural pelo
divino, encontrando plena felicidade no amor.
Na estrofe final, a jovem se sente desprovida de qualquer halo de idealidade, ou
expectativas ilusórias que possam ser suscitadas por sua paixão. Ela é muito mais
humana do que no início da composição, cujo motivo é a exposição de seu pesar quando
pede ao papagaio que a console somente com palavras de verdade, pois a ausência do
amigo a faz pensar na morte como solução para os infortúnios. São apresentadas as
palavras finais do papagaio que, ao elevar as qualidades da mulher, considerando-a
possuidora de todas as boas qualidades (Senhor mui comprida de ben)17, pede-lhe que
erga os olhos e veja a implícita chegada (ou presença) do seu amado.
O encadeamento das idéias elaborado por D.Dinis, o tom dramático da composição e a
escolha minuciosa do vocabulário, permitem-nos visualizar a ambiguidade da
personagem papagaio. A disposição dos diálogos e a sua elocução criativa nos remetem
a uma encenação teatral, na qual o amigo loução poderia facilmente ser identificado
com o próprio pássaro, tal como um disfarce a ser revelado na execução da pastorela.
Em outra leitura, a participação do papagaio ainda completa os elementos
identificadores da poesia pastoril.
As pastorelas de D. Dinis lembram-nos a delicadeza das descrições que Teócrito
apresentava. O trovador expressou as paisagens líricas e seus componentes da poesia
galego-portuguesa (antr'as as flores, fremoso virgeu, estorninho, papagai, Souto do
Crexente), colocando em evidência a vivacidade dos diálogos entre os personagens (17
Cf. Nunes (1928, p.589). Comprido (a) de ben: feliz ou dotado de todas as boas qualidades.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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Mia Senhor, falar-vos-ei/, Senhor, por Santa Maria/ não estedes mais aqui) assim como
o impulso de sentimentos comunicados ao mundo exterior por meio de reflexões (ca os
que aqui chegaren,/ pois que vos aqui acharen,/ bem diran que mais ouv'i.), emoções
(Mal ti venha per u fores,/ ca non és se non mha morte) e opiniões (Eu non vos queria
por entendedor/ ca nunca vos vi se non agora/ nen vos filharia).
O que foi destacado nesta exposição contribuiu para a observação do modo como a
retórica determinou entre os poetas galego-portugueses a paisagem ideal da poesia, tal
como ocorreu com os seus predecessores gregos e latinos. Se a imagem do homem ideal
correspondia a sua virtuosidade, lealdade e beleza, a natureza encontrará entre os poetas
a correlação direta com o divino, servindo-os de uma rica variedade de possíveis
descrições.
Nas pastorelas, é entre as flores de um formoso jardim ou com a companhia das aves
que a mulher encontra a paisagem agradável aos seus sentimentos e anseios, mesmo que
esteja no auge de seu sofrimento amoroso. É na campina de flores que a jovem espera
por bem-aventuranças. De acordo com Curtius (1996), a natureza participa do divino
entre os poetas da Antiguidade e da Idade Média, transforma-se em um motivo poético
indispensável aos adeptos de tais composições, os quais seguiram os passos de Teócrito
– o verdadeiro criador da poesia pastoril.
Foi o gênero poético que, depois da epopéia, maior influência
exerceu, por várias razões. Em todas as épocas encontramos vida
pastoril. É um modo fundamental da existência humana,
representado também no cristianismo pela história do nascimento
de Jesus, conforme o Evangelho segundo São Lucas. Aos pastores
corresponde – e isto é muito importante – um cenário especial, uma
região própria, que veio a ser a Sicília e mais tarde a Arcádia.
Conta igualmente com pessoal próprio, formando um microcosmo
social: pastores de gado bovino (de onde vem o nome bucólica),
pastores de cabra, pastoras etc. Enfim, a vida pastoril está ligada à
Natureza e ao amor. [...] A elegia amorosa dos romanos sobreviveu
poucas décadas. Não havia para ela continuação nem renovação
possíveis. Mas a Arcádia revela-se sem cessar. Isso foi possível
porque a temática pastoril não estava ligada a nenhum gênero e
tampouco a alguma forma poética. Encontrou acesso ao romance
grego (Longo), daí passando à Renascença. Do romance, a poesia
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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pastoral podia voltar à écloga ou passar ao drama. O mundo dos
pastores é tão vasto quanto o da cavalaria. Na Idade Média ambos
os mundos se encontram. Sim, no mundo dos pastores “enlaçamse” todos os mundos. (CURTIUS, 1996, p. 246-247)
Acerca desse enlace referido por Curtius é que a poesia lírica inspira o tema do amor e
passa a ocupar o primeiro plano, tornando-se o princípio de uma busca divina,
despertada em nós pelos aspectos da beleza do outro como um ímpeto inerente ao ser
humano. Se o amor torna-se a medida das coisas na poesia lírica, é oportuno
salientarmos que ele é também o princípio de qualquer outro sentimento. No que diz
respeito às pastorelas, o amor justifica o temor, a tristeza, o penar e o sofrer que
diversas vezes atinge as jovens pastoras. Por conseguinte, é pertinente considerar que no
século XII a poesia dos trovadores, em sentido lato, desfrutava de um amadurecimento
retórico e estilístico capaz de construir quadros picturais, nos quais o amor consagravase como princípio motor de tudo e de todos.
Outro bom exemplo desse aspecto foi-nos dado por Pedro Amigo de Sevilha ao compor
a pastorela Quand'eu un dia fui en Compostela.
Quand’eu un dia fui en Compostela
en romaria, vi ũa pastor
que, pois fui nado, nunca vi tan bela,
nen vi outra que falasse milhor
e demandei-lhi logo seu amor
e fiz por ela esta pastorela.
Dix[i-lh]’eu logo: “Fremosa poncela18,
queredes vós min por entendedor,
que vos darei boas toucas d’Estela
e boas cintas de Rocamador
e d’outras dõas, a vosso sabor
e fremoso pano pera gonela?”
E ela disse: “Eu non vos queria
por entendedor, ca nunca vos vi,
se non agora, nen vos filharia
dõas, que sei que non som pera mi,
pero cuid’eu, se as filhass’assi,
18
O grifo é nosso.
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que tal á no mundo a que pesaria.
E, se veess’outra, que lhi diria,
se me dissesse “ca per vós perdi
meu amigu’e dõas que me tragia”?
"Eu non sei rem que lhi dissess’ali;"
se non foss’esto de que me temi,
non vos dig’ora que o non faria.”
"Dix’eu; “Pastor, sodes bem razoada,"
e pero creede, se vos non pesar,
que non est oj’outra no mundo nada,
se vós non sodes, que eu sábia amar,
e por aquesto vos venho rogar
que eu seja voss’ome esta vegada.”
E diss’ela, come bem ensinada:
“Por entendedor vos quero filhar
e, pois fôr a romaria acabada,
aqui, du sõo natural, do Sar,
cuido-[m’eu], se me queredes levar,
ir m’ei vosqu’e fico vossa pagada.”
Pedro Amigo de Sevilha foi um Jogral ligado à corte de Alfonso X, o Sábio. Juntamente
com D. Dinis, figura entre os trovadores como um dos mais fecundos, pois seu
cancioneiro constitui-se de trinta e seis cantigas. De acordo com Beltran (apud
LANCIANI; TAVANI, 2000, p. 520) o trovador manifestou em seus textos uma forte
influência dos modelos provençais, privilegiando o tom cortês entre seus personagens.
Vale ressaltar que sua condição de jogral atribui-lhe a qualidade de pertencer a um
grupo de pessoas consideradas agentes da cultura, cuja atividade já havia se
diversificado na Península Ibérica, nos séculos XII e XIII. O jogral, de acordo com as
informações dos cancioneiros, desdobrou-se em múltiplas funções entre os galegoportugueses, as quais compreendiam o acompanhamento instrumental, a interpretação
vocal, a interpretação teatral e a produção de novas composições. Pedro Amigo de
Sevilha, embora não possua uma biografia mais detalhada e objetiva, encaixa-se entre
esse grupo de artistas que elevaram a cultura dos trovadores por onde passavam e
viviam.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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A pastorela em análise apresenta traços específicos das cantigas de amor por conduzir
em um tom cortês o diálogo que se estabelece entre a pastora e seu admirador. Spina
(1996) menciona a ausência de traços populares na técnica de composição desta cantiga,
devido a perfeita unidade narrativa que a domina. Por outro lado, a informação da
romaria e o arrebatamento sentimental referidos pelo cavaleiro muito se assemelham
aos traços estilísticos das pastorelas com elementos mais populares, que elevam o
sentimento amoroso aos extremos da vida de seus personagens. Como exemplo,
podemos citar o choro e o sofrimento diante da impossibilidade de viver ao lado do ser
amado.
O trovador constrói inicialmente uma narração perfeita de todo o quadro pictórico e das
emoções que lhe afetam os sentidos. Trata-se de um evento ocorrido no passado,
conforme o primeiro verso Quand'eu un dia fui en Compostela, durante uma atividade
de peregrinação a que se dedicava o cavaleiro. Nesta romaria ele conhece uma jovem de
beleza incomparável com qualquer outra no mundo, a qual lhe arrebata o coração, um
amor à primeira vista. Os versos “demandei-lhe logo seu amor” (pedi imediatamente o
seu amor) e “e fiz por ela esta pastorela” demonstram que o amor referido pelo
cavaleiro converte-se em “princípio motor” de sua vida e, consequentemente, de sua
poesia, motivo pelo qual ele empreenderá uma árdua ação de conquista. Visualizamos a
abordagem do cavaleiro, momento em que oferece à formosa donzela (Fremosa
poncela) os mais belos presentes (dõas), que toda mulher desejaria: as bonitas toucas
Estela (cidade espanhola), as cintas de Rocamador localizada ao sul da França, os bons
tecidos para as túnicas (gonela) e tudo o mais que ela viesse a desejar, se concedesse a
ele a possibilidade de se tornar o seu entendedor (namorado).
As estrofes seguintes apresentam a resposta da pastora à cortesia oferecida. Seus
argumentos são reflexivos e apresentam desenvoltura no falar. A jovem se coloca em
uma posição que a priva do amor oferecido e enfatiza o desejo de não prejudicar outra
mulher, que, possivelmente, pudesse ter compromisso com cavaleiro. Spina (1996)
ressalta que a ponderação e o retraimento reflexivo da pastora devem-se ao fato de que
o cavaleiro já possuísse as doas consigo e se destinassem para outra donzela. Caso
aceitasse, estaria causando grande desgosto a alguém no mundo: dõas, que sei que non
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
50
som pera mi,/ pero cuid’eu, se as filhass’assi,/ que tal á no mundo a que pesaria. Tal
atitude significa o bom senso e a cautela da jovem em não aceitar objetos de pessoas
desconhecidas.
O cavaleiro, no final, intensifica o seu apelo, afirmando não haver no mundo outra que
mereça o seu amor. Mais uma vez ressalta a sabedoria e a prudência de sua amada, ao se
referir a ela como Pastor, sodes ben razoada. O adjetivo autentica a atitude e a
ponderação das palavras da pastora. Somente após intenso debate, no qual aflora no
texto a consciência religiosa da mulher, é que ela se prontifica a aceitar a proposta do
cavaleiro no término da romaria. Registra-se a ausência dos motivos chorar e cantar,
recorrentes nas outras composições comentadas.
Por outro lado, se a cantiga se reveste de exemplos que anunciam sua aproximação com
gêneros mais cultos, é inegável a presença de elementos simbólicos que nos remetem às
características autóctones. Um deles é a comunhão com a natureza, muito comum na
poesia pastoril, na última estrofe, justamente no momento em que a pastora, após
expressar seu recato, decide aceitar a cortesia do cavaleiro e assumi-lo como
pretendente (namorado), assim que a romaria terminasse, num encontro marcado às
margens do rio Sar.
De acordo com Curtius (1996), o lugar ameno (locus amoenus) na poesia também
compreende a presença e o simbolismo que a imagem ou descrição de um rio pode
comportar. O curso tranquilo de um rio configura a perfeição do cenário, no qual se
concretizaria a aceitação do amor do cavaleiro.
A pastorela de Pedro Amigo de Sevilha, impulsionada pelo motivo amoroso e com
todas as suas influências provençais, reflete todo o trajeto descritivo da configuração
dos lugares, os quais abordam o percurso dos rios, a situação das cidades e os costumes
dos povos. Quanto à menção ao rio Sar, lhe é atribuída a função de testemunha do
comprometimento que o cavaleiro se propôs a fazer. Da situação das cidades,
destacamos a dinâmica da vida em sociedade que nos sugere o comércio das dõas
oferecidas pelo cavaleiro. No que se refere aos costumes dos povos, nada mais
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
51
representativo do que as romarias que se destinavam à Santiago de Compostela.
Com base na leitura que realizamos das pastorelas selecionadas, resulta que os
trovadores galego-portugueses que se dedicaram a expressar suas intenções artísticas
por meio dos versos pastoris, concebiam a multiplicidade de recursos retóricos como
instrumentos na expressão de sua arte, a qual, por sua vez, identificava no homem a
ânsia por uma completude espiritual que via no amor do outro a possibilidade de elevarse.
O amor nas pastorelas torna-se a principal medida das coisas, carregando consigo a
ampla tradição poética e cultural do trovadorismo que envolve: o ambiente guerreiro, a
religiosidade, a musicalidade e a paisagem ideal da poesia. Explica-se assim a presença
do cavaleiro, as invocações a Deus e a Santa Maria, os recursos líricos de composição
como o dobre e as férteis descrições da natureza que carregam uma imensa carga
simbólica.
Em sentido lato, todos estes elementos convergem para um personagem específico das
pastorelas: a jovem pastora enamorada. É a ela a quem a natureza serve de confidente, é
a ela a quem se dirige o serviço cavalheiresco e é à mulher que o amor causa uma
imensa exaltação sentimental capaz de atingir um valor fundamentalmente
transcendente (amor espiritual), e ao mesmo tempo, com impregnações de valores
humanos (amor físico).
Referências
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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
53
Uma intrincada rede de fontes e
de influências no Decameron,
de Giovanni Boccaccio
Delia Cambeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo: Boccaccio (1313-1375) foi o grande irradiador da cultura humanista. Ele levou para as
páginas de suas novelas inúmeras figuras humanas que, por influência do pai, alto funcionário
do famoso Banca dei Bardi, conheceu no meio do comércio, das finanças, dos salões nobres e
burgueses, também nas ruas de Florença e de Nápolis, entretanto, maravilhosamente disfarçadas
por sua incomparável arte de narrar. Ao longo desta obra prima transgressora, crítica e
inovadora – tantas vezes classificada de pornográfica – desfila a realidade de personagens
emblemáticas, ainda que, às vezes, mal compreendidas. Tais figuras, sem dúvida, tiveram
origem no mundo quotidiano do escritor, porém, o contexto ficcional certamente teve suas
raízes no passado da tradição literária da qual Boccaccio foi um ilustre herdeiro. O Decameron
aparece, enfim, como vasta rede de interferências de ordem intertextual e polifônica, o que leva
os leitores a buscar as diferentes fontes de influências desta primeira obra urbana moderna.
Nosso trabalho visa a discutir, com base nas novelas boccaccianas, as possíveis marcas
recebidas e as exercidas pelo Decameron na literatura europeia.
Palavras-chave: Boccaccio; Cinzio; Straparola; Pentameron; Heptameron.
Résumé : Boccace (1313-1375) fut le grand irradiateur de la culture humaniste. Il transporta
dans les pages de ses nouvelles plusieurs figures humaines qu´il connut influencé par son père –
haut fonctionnaire de l´importante Banque dei Bardi – dans le milieu du commerce, des finances,
des sallons nobles et bourgeois, encore dans les rues de Florence et Naples, néanmoins
merveilleusement truquées par le moyen de son incomparable art narratif. Tout au long de ce
chef-d´oeuvre transgresseur, critique et inovateur – parfois classifié de pornographique – défile
la realité de personnages emblématiques bien que souvent mal compris. Sans doute ils eurent
leurs origines dans le monde quotidien de l´écrivain, en revange, le contexte fictionnel
s´enracine certes dans le passé de la tradition littéraire dont Boccace fut son illustre héritier. Le
Decaméron se montre finalement comme un vaste réseau d´interférences d´ordre intertextuel et
polifonique, ce qui incite les lecteurs à rechercher les différentes sources d´influences de cette
première oeuvre urbaine moderne. Notre travail a pour but discuter à l´aide des nouvelles
boccaciennes les possibles empreintes reçues et celles exercées par le Decaméron sur la
littérature européenne.
Mots-clés: Decaméron; Heptaméron; Pentaméron; Basile; Marguerite De Navarre; Straparola.
1. Observações iniciais
Muito se diz sobre Il Decameron, de Giovanni Boccaccio (Certaldo ou Florença 1313Certaldo 1375), principalmente tratar-se de uma coletânea (apenas) de histórias eróticas,
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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que, pior ainda, alguns já afirmam pornográficas. É necessário, então, reverem-se tais
conceitos para melhor compreendermos a obra. Antes, porém, assinalamos sua visão já
pré-renascentista, apontada, dentre outros críticos, por Carlo Grabher (1951, p.198-199):
Nei riguardi della cultura egli rappresenta uno dei più stretti legami tra
Medio Evo e Rinascimento; infatti se da una parte si riallaccia per vari
aspetti ai preumanisti e mostra già la tendenza a sentire il mondo
classico come qualcosa di conchiuso e di distaccato dal mondo
medievale, [...] sente il mondo classico anche in chel suo vivo fluire
nel mondo medievale, onde il medioevo lo aveva quasi in sé fuso e
assorbito. [...] Insieme al Petrarca, e più del Petrarca ha il merito di
aver compreso l´importanza del mondo greco e di essersi adoperato a
ridestarne gli studi, sia cercando egli stesso di apprendere il greco, sia
con la protezione accordata a Leonzio Pilato, dal quale riuscì ad
ottenere una versione di Omero.
Já para De Sanctis (1960), um dos famosos críticos do XIX, no Decameron, a vida vem
à superfície, mostrando o mundo da natureza e uma emblemática “comédia humana” a
se organizar nesta obra exemplar, única e sem precedentes, até então, na narrativa
italiana e europeia, inspirando outros autores, trazendo marcas de outras criações, que
deram motivos a serem desenvolvidos pelo autor. Boccaccio foi, portanto, a voz literária
de um mundo, já tocado pela consciência dos valores do homem e em plena dinâmica de
questionamento sobre a condição humana.
Entre as novelas de temática erótica e de outras, Boccaccio não propõe nenhuma
finalidade moral ou edificante, como acontecia na tradição medieval dos Exempla, e que
Dante, na Comédia, deixa-nos entrever de forma sutil. Boccaccio adotou uma visão
realística do mundo e das ações dos homens, restituindo, recriando, mostrando e
fazendo aparecer múltipla e concreta totalidade da existência quotidiana. Para seu maior
estudioso, Vittore Branca, no Decameron,
Dalla prima all´ultima giornata si svolge in ideale itinerario che va
dalla riprensione aspra ed amara dei vizi dei grandi (I giornata) allo
splendore e architettato elogio della magnanimità e della cortesia nella
decima giornata e i punto di passaggio obbligato sono i larghi
affreschi che attraverso le varie giornate svolgono canonicamente la
“commedia dell´uomo” [...] [grifo do autor]. (BRANCA, 1956, p.222223)
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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É inegável o persuasivo papel exercido pela extensa e larga galeria de virtudes e de
vícios das personagens que nos suscitam risos, porém, sempre acompanhados de algum
toque reflexivo sobre a condição humana. Por toda obra percorre o olhar agudo e
condescendente do escritor para com os tolos como Andreuccio da Perugia, com os
astutos como Chichibio, com os embrulhões como Frate Cipolla e Ser Ciappelletto,
dentre muitos outros. Já quanto às novelas de tema erótico-amoroso, envolvendo figuras
femininas, os detratores de Boccaccio, originários de meio católico e sexófobo,
trataram-nas com suspeita e com firmes censuras por considerá-las licenciosas, imorais.
Um fato curioso a ser lembrado é a lenda que corre de um frade, que, em visita a
Boccaccio, conta-lhe a parição em sonho de um irmão de Ordem já falecido,
advertindo-o sobre a morte e a danação que recairia sobre o escritor por sua obra
libertina. Presa dramática de profunda crise ético-moral, Boccaccio procura o amigo
Petrarca que o demove da ideia de destruir o Decameron. De fato, mesmo que algumas
das novelas evidenciem um ludismo espirituoso e/ou licencioso para a ascética Idade
Média, a literariedade da obra, impregnada do que chamaríamos de dionisíaca
irreverência, não as deixou nem deixará cair na vulgaridade. Assim se expressou o
conhecido estudioso Asor Rosa, quanto às censuras ao Decameron, na época da
Inquisição:
Vale a pena observarmos que a verdadeira censura do texto
decameroniano, entretanto, não era realizado em Florença, mas em
Roma, onde [...] o dominicano Maso Manrique apostilava, apagava e
corrigia as partes que fossem moralmente suspeitas. Como escreve a
propósito Raul Mordente: ‘A divisão dos papéis era claramente
traçada: a Manrique e à Inquisição romana competia diretamente uma
censura verdadeira, a especialização (no caso linguística e filológica)’.
È interessante observarmos que em ambos os casos a censura apontou ,
mais do que aspectos eróticos e licenciosos do livro, aspectos de
declarada polêmica antieclesiástica [...]. Desse modo, o Decameron,
reduzido a um livro de agradável e inocente entretenimento, tornou-se
conhecido a tantas e tantas gerações de leitores [...]. (ROSA, 1992,
p.21-22)
Do poeta – e aqui utilizamos a palavra no sentido de criador – receberam os desavisados
juízes da Igreja pronta e criativa resposta, tanto no Proêmio, como no início da Quarta
jornada e também na Conclusão. Tais passagens – em que usou a tática metalinguística
com singulares intromissões do autor – são momentos em que se dirige tanto àqueles
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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que o acusavam, quanto a um público especial: suas “belíssimas”, “lindas”, “doces”,
“gentis”, “caríssimas” e “queridas” mulheres. Defende-se simulando uma confissão a
seu público feminino, porém, atinge aqueles que o atacavam.
Na Introdução à Quarta Jornada, Boccaccio (1971, p.10-11), como uma voz pertencente
à obra, diz ter um “corpo que Deus fez todo aparelhado para amar as mulheres [e quem
não o fizer] desconhece os prazeres do amor e a virtude da afeição natural”, por isto,
sim, o censuravam. Ele garante em tom irônico que, de fato, como dizem seus censores,
ele mais “parece um [alho-poró] de cabeça branca, porém de cauda verde”
(BOCCACCIO, 1971, p.207-211); acrescenta que as “Musas são mulheres, entretanto,
elas nunca foram motivo de [suas] composições... e, sim, só as mulheres”
(BOCCACCIO, 1971, p.207-211). Finalmente exclama mais irônico ainda:
calem-se os detratores; se não conseguem eles aquecer-se, que vivam
atormentados pelo frio, e fiquem com os seus prazeres, ou, antes, com
seus apetites corruptos. Deixem-me ficar, contudo, no meu prazer [...].
Sempre estive disposto a agradar todas vocês, lindas mulheres, agora,
mais do que nunca [...]. (BOCCACCIO, 1971, p.207-211 )
Boccaccio exclamava proceder de conformidade com as leis da Natureza e escrever em
socorro e refúgio das mulheres que amam, pois, para as demais, são suficientes as
agulhas, o fuso e a roca. Lembrando-nos preceitos poéticos horacianos, ele afirmava que,
“ao lerem a obra, as mulheres poderão obter prazer e útil conselho das coisas
reconfortantes que as narrativas mostram. [...] [porque] hoje são limitadas as leis sobre o
prazer” (BOCCACCIO, 1971, p.10-11 ) .
Notamos, assim, a intenção do autor em dar à obra um caráter agradável e útil,
sublinhando seu envolvimento direto com o mundo e com a realidade do público leitor
feminino, para ele, bastante especial, pois o considerava carente de prazer e de atenção.
As novelas trazem a marca de lúdico e prazeroso propósito, encontrada na Conclusão do
Autor, ao fechar literalmente as últimas linhas do Decameron. Aqui ouvimos essa voz
de um Boccaccio narrador que se intromete na obra, mais uma vez dirigida às mulheres:
Jovens nobilíssimas, para cujo consolo meti eu mãos à obra tão longa:
creio que, tendo-me auxiliado a graça divina, [...] pude levar [...] a
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
58
cabo o que [...], prometi fazer. [...] Deixando, desde agora, que cada
uma, dentre as mulheres, afirme e acredite o que lhe parecer melhor, é
tempo de colocar fim às palavras. Agradeço, com humildade, àquele
que, após tão longo esforço, me levou, com seu auxílio, ao fim
almejado. E vocês, agradáveis mulheres, vivam na paz de Deus; e
lembrem-se de mim, se, por alguma coisa, alguma de minhas novelas
lhes deu a recompensa de a terem lido. (BOCCACCIO, 1971, p. 581582 )
Com relação ao tão discutido “realismo” do Decameron, portanto, notamos representar
uma atitude pessoal do escritor preocupado em retratar, sem medo do pecado, penas e
prazeres do homem delineados em seu ângulo luminoso e/ou sombrio da psiquê. Tais
fotografias representam uma espécie de biografia cultural e espiritual de Boccaccio,
criado no meio de mercadores e de banqueiros. A obra comporta detalhes, descrições de
ambientes, referências históricas a lugares ou a pessoas de marcas históricas como o
pintor Giotto, o poeta Guinizzelli, dentre tantas outras famosas personagens
pertencentes ao universo cultural.
A biografia de Giovanni Boccaccio atesta que, por influência do pai, frequentou, para se
habituar nas artes financeiras e mercantis, que abandonaria pela literatura, o famoso
banco Casa dei Bardi, depois falida. Sua vivência em Florença e em Nápoli foi
circulando nos ambientes nobres, com as gentes da corte, com burgueses ricos e com
mercadores, comerciantes, afinal, homens de finanças e o povo da rua. Todo aquele
contexto social enriqueceu certamente a imaginação e o dom de observar os seres que
desfilavam pelas câmaras e antecâmaras dos palácios e pela múltipla cena de lugares
públicos e interiores, tudo magistralmente eternizado na obra. Só com isto, já
poderíamos afirmar que, inegavelmente, o Decameron é, sem dúvida, uma das grandes
literaturas modernas de tema urbano.
Além de delinear vícios, paixões, também qualidades humanas, o livro integra uma
chamada “literatura da peste”, que encontra raízes em outros momentos da invenção
literária. Desde a Antiguidade registraram-se epidemias e catástrofes, vistas como
punição divina. Nos textos sagrados, inclusive, encontramos um primeiro exemplo, já
que o Êxodo (7-11) descreve as pragas mandadas por Deus aos egípcios. Dentre as
fontes profanas literárias antigas ligadas ao tema, em obras anteriores à de Boccaccio,
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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citamos Virgilio, ao descrever nas Geórgias a peste que atacou os animais na região do
Nórico, província romana, hoje equivalente à Austria e à Hungria; mencionamos o
historiador Tucídides por descrever a peste de Atenas de 431-430 a.C.; apontamos o
poeta latino Lucrécio, que, no último livro de Rerum natura, também narra a peste
ocorrida em Atenas.
Entre os século XIX e XX, a peste, que deflagrou poeticamente o Decameron, veio a ser
destaque em meio aos tormentosos momentos de Os noivos, de Alessandro Manzoni;
também em A máscara da morte vermelha, de Edgard Allan Poe; Daniel Defoe, relata a
peste de Londres em seu Diário do ano da peste; chegamos a Albert Camus, que, em A
peste, coloca as personagens frente ao absurdo da falta de sentido e justificativa para a
dor humana; e, para finalizar, lembramos Antonin Artaud, que, em outro campo artístico,
o teatro, compara a peste a uma forma de expulsão de demônios. Artaud vê, em O teatro
e seu duplo, a cena teatral em analogia com a peste, sugerindo-a como um instante
psíquico em que se desatam conflitos interiores, liberam-se choques. Vale refletir com
o criador do conceito Teatro da crueldade que
O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela
cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após a
qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o
teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem
destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta suas energias;
e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a
ação do teatro, como a da peste, é benfazeja, pois, levando os homens
a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a
tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que
atinge até os dados mais claros dos sentidos; e, revelando para
coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a
assumir diante do destino uma atitude heróica e superior que, sem isso,
nunca assumiriam. [...] Santo Agostinho em A Cidade de Deus acusa
essa semelhança de ação entre a peste que mata sem destruir órgãos e
o teatro que, sem matar, provoca no espírito não apenas de um
indivíduo, mas de um povo, as mais misteriosas alterações.
(ARTAUD, 2006, p.29-30)
Assim, a vasta rede temática da Antiguidade até nossos dias, leva-nos à observação da
força desconstrutora da peste na narrativa boccacciana, mas, ao invés de escatológico
fim do mundo, o Decameron nos sugere uma eterna transformação das coisas, ou seja,
propõe a luta, o conflito, a tensão contínua como princípio de tudo, segundo Artaud
(2006, p29-30) “uma extrema purificação”. Apenas o trabalho da linguagem dado à
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
60
peste e a simbologia aí implicada já encerrariam a iníqua discussão sobre a questão de
ser o Decameron uma série de novelas de cunho licencioso.
Não podemos negar que ler a exposição minuciosa do que acontece na cidade, durante o
flagelo, é percorrer verdadeiro material fotográfico e cinematográfico. O pressentimento
da força da imagem, o aguçado cuidado em surpreender o homem em situação se
reforçam no fato de Boccaccio ter acrescentado à obra uma série de desenhos, para
narrar também visualmente a realidade da trama imaginada e desenvolvida nas palavras
do Decameron , abaixo transcritas:
Afirmo [...] que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação
do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença,
cuja beleza supera a de qualquer outra na Itália, sobreveio a mortífera
pestilência. [...] Esta peste foi de extrema violência [...] mesmo o ato
de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa [...] tocada, ou
utilizada por [...] enfermos, parecia transferir, ao que bulisse, a doença
referida. É de causar espanto o ouvir aquilo que preciso dizer. [...] Era
como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor
nauseabundo dos corpos mortos, das doenças e dos remédios. [...]
[T]iveram os meus olhos [...] certo dia, entre outras vezes, a seguinte
experiência: as vestes rotas de um pobre sujeito, morto por essa
doença, foram jogadas à rua. Dois porcos, de início, segundo
costumam fazer, sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram
com os dentes, cada um deles esfregando-as na própria cara. Apenas
uma hora depois, após umas convulsões, como se tivessem ingerido
veneno, os dois porcos caíram mortos por terra, sobre os trapos em tão
má hora jogados à rua. (BOCCACCIO, 1971, p14-15)
Com relação à força descritiva de Boccaccio, anteriormente assinalada, em 1999, jornais
italianos, tais como, Il Corriere della Sera, Il Giorno, entre outros, destacaram a
publicação de um volume do Decameron, pela Casa Editrice Le Lettere, ilustrado com
30 desenhos autografados pelo escritor, sob orientação de Vittorio Branca, o grande
estudioso de Boccaccio. Sem dúvida, este é um Boccaccio duplamente pioneiro, não só
pelo teor das novelas, mas por ilustrar, com figuras, a sociedade nobre, burguesa,
trabalhadora e popular em sua plena realidade e efervescência. Sensibilizado com a
inegável carga e a essência pictóricas de sua narrativa – particularidade demonstradas
nas breves linhas em que fala da peste – Boccaccio sentiu-se certamente provocado pelo
desejo de oferecer aos leitores seu texto visualizado. Mais uma prova, portanto, de que a
proposta da obra era estimular a observação, instigar o questionamento da sociedade
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
61
desenhada pelo escritor e artista de Certaldo, era passar por meio de uma situação
histórica trabalhada ficcionalmente um ponto de reflexão da existência.
2. Algumas fontes do Decameron
Conhecido apenas como Decameron, as famosas jornadas, porém, têm como subtítulo
“Commincia il libro chiamato Decameron, cognominado Prencipe Galeotto”, que
traduzimos para “Começa o livro chamado Decameron, cognominado Príncipe
Galehaut”. Desde o subtítulo, já ficou estabelecida interessante intertextualidade entre o
Decameron e a Commedia de Dante Alighieri, que retrata Francesca da Rimini e seu
cunhado, Paolo Malatesta, induzidos ao adultério pela leitura da história de amor de
Guinevere e Lancelote, que, para se aproximarem, foram auxiliados pelo cavaleiro
Galehaut, o Senhor das Ilhas Distantes ou Estranhas Ilhas. Flagrados em adultério,
sofrem as consequências da vendetta de Giovanni Malatesta, marido de Francesca, que
mata o irmão e a mulher.
Tal citação, bastante conhecida, foi tomada de Dante Alighieri, que, no Inferno, canto V,
versos 5-138, no círculo dos luxuriosos, lançou as figuras de Francesca da Rimini e
Paolo Malatesta, pertencentes à história e, a partir da Commedia, à literatura. A obra de
Dante abrigou a história da paixão irrompida entre os dois, no instante em que liam, per
diletto, ou seja, como prazer, por divertimento, em um momento agradável de ócio, a
passagem de um romance cavaleiresco, em que a Rainha Guinever, mulher de Artur, é
beijada pelo cavaleiro Lancelote. O beijo dos amantes fictícios estimulou Francesca e
Paolo a imitar as personagens da Demanda. Na Comédia, a Francesca-personagem, em
lugar do amante e de forma apaixonada, explica a Dante-personagem que, da mesma
forma que Galehaut favoreceu o cavaleiro e a rainha, o livro que liam fora o
intermediário dos amores entre ela e o cunhado: amor que os levou à morte, como já
aludimos, pelas mãos do marido Giovanni Malatesta.
Boccaccio concebeu para a obra o subtítulo de Principe Galeotto, certamente
entendendo que o Decameron poderia ajudar, favorecer seus leitores/leitoras em suas
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
62
penas de amor, da mesma forma que Galeotto – Galehaut – fez com Lancelote. Em
verdade, Boccaccio desejava favorecer suas adoráveis, encantadoras leitoras, pois, como
já assinalamos, no Proêmio do Decameron, o autor indica o público novo a que é
destinada a obra, evidentemente ao público feminino, que se deleitava com suas novelas
e personagens:
E haverá quem negue, [...] que é conveniente ofertar este alívio, este
conforto, mais às mulheres do que aos homens? [...] [Às] mulheres
[que] constrangidas pelos desejos, pelos caprichos e pelas ordens
paternas e maternas, fraternas e dos maridos, conservam-se a maior
parte do tempo encerradas em seus aposentos; mantêm-se ali, sem
nada fazer, sentadas, querendo e não querendo; numa hora só, nutrem
pensamentos vários, e não é possível que sejam sempre alegres esses
pensamentos. [...] Assim sendo, para que se corrija, para mim, o
pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fábulas, ou
parábolas, ou estórias, sejam lá o que forem. A sorte mostrou-se
menos propícia, como vemos, para as frágeis mulheres, e mais avara
lhes foi de amparo. Em socorro e refúgio das que amam, é que escrevo
(pois, para as demais, são suficientes a agulha, o fuso e a roca).
(BOCCACCIO, 1971, p.10)
Compreendemos que, após tantas alusões às mulheres e às histórias sobre amantes, o
autor passaria a ser alvo de ataques, que não enfraqueceram, mas que aguçaram a
preocupação de Boccaccio, que sentia o valor do diálogo obra-leitor, já atinava para “o
experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores” (JAUSS, 1994, 25).
Nos anos de florescimento do Humanismo, o ilustre certaldense intuiu “[e]ssa relação
dialógica” (JAUSS, 1994, 25), portanto, concentrou o espírito fortemente aguçado para
a recepção e o efeito de sua obra no público de então: teses que, nos anos 60, foram
sublinhadas nas reflexões de Hans Robert Jauss. As várias sinalações de a obra ser
direcionada às mulheres, que só tinham como passatempo o fio e a roca, sem um hiato
de sonho, longe de se referir a uma coleção de histórias pornográficas ou para rir,
reforçam o sentido e o valor da obra, pois, “[...] a experiência literária do leitor adentra
o horizonte de expectativa de sua prática, pré-formando seu entendimento do mundo e,
assim, retroagindo sobre seu comportamento social”. (JAUSS, 1994, p.51).
Quanto a outros fios intertextuais, além das citações tomadas em Dante, convém
assinalar o fato de entre os 10 narradores que se intercalam ao longo das 10 jornadas
para contarem as 100 histórias – os reis Panfilo, Filostrato, Dioneo e as rainhas
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
63
Pampinea, Elisa, Lauretta, Neifile, Fiammetta, Filomena, Emilia – encontrarem-se
nomes saídos de obras do próprio Boccaccio. Dentre as personagens nascidas de suas
páginas para ingressarem no Decameron citamos Panfilo e Fiammetta, que participam
da Elegia de Madona Fiametta; Emilia, da Teseida; Dioneu, do Ameto e Filostrato, de
obra homônima.
Ao penetrarmos nessa intrincada rede, atestamos que, o grande narrador literário do
mundo urbano lançaria seu olhar agudo, não apenas à Idade Média de Dante, para
colher subsídios para suas novelas, fiando e desfiando material próprio e de outros
autores, recebendo e passando, assim, a tradição literária não apenas da Itália, mas do
Ocidente. Em sua rede de textos, Boccaccio trouxe da Antiguidade a história dos
infelizes amantes da obra ovidiana Metamorfoses, Tisbe e Píramo, trabalhadas em De
mulieribus claris. Tisbe e Píramo têm conhecidos ecos no Decameron, na novela de
Girolano e Silvestra (IV, 2). O fenômeno de uma dialogada construção no Decameron
de/com outras vozes leva-nos à célebre afirmação de Julia Kristeva: “[...] todo texto se
constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro
texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Também a palavra de Antoine Compagnon nos chama a atenção para assunto tão vasto,
ao dizer que “escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à
confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita.
Ler ou escrever é realizar um ato de citação” (COMPAGNON, 1996, p.31).
Devemos colocar em relação tanto as figuras ovidianas retomadas em De mulieribus
claris quanto as da novela decameroniana Girolano e Silvestra. Este caso de relação
entre as fontes ovidianas e a novela boccacciana é apenas mais um de tantos exemplos
de intertextualidade encontrada na leitura do Decameron. Bastaria acrescentarmos o
notório exemplo de “Paulina romana femina”, retomada em Lisetta da Ca’Quirino (IV,
2), ou ainda o capitão dedicado a Lucrezia, novela com o mesmo preâmbulo da novela
de Madama Zinevra (II, 9.), todos de Boccaccio.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
64
É interessante lembrar algo quanto ao número de 100 novelas. Poderíamos pensar na
influência da obra de Dante na estrutura do Decameron, entretanto, este número passa,
de fato, a 101 novelas, pois não podemos omitir aquela em que o autor toma o cargo de
narrador na Introdução da Quarta jornada, texto de autodefesa e à qual já nos referimos.
Desta forma, pela divisão quantitativa dos relatos, Boccaccio sai da divisão do número
perfeito, 100, encontrada na emblemática obra de seu tão admirado mestre.
A divisão interna e o título firmados no Decameron leva-nos, agora, ao Hexameron, de
Santo Ambrósio, um texto sacro do século 4, constituído de homilias celebrativas dos
seis dias da criação, um provável modelo para seus 10 dias decameronianos da variada
experiência humana. Lembramos que, pela divisão quantitativa dos relatos, o título
escolhido por Boccaccio é também elucidativo: ao invés de hexa correspondente a 6,
temos Deca+meron, em grego lemos com o “livro dos dez dias”. Se em sua obra Santo
Ambrósio laudava a formação da vida pela força divina, Boccaccio celebra, de outra
forma, também a vitória da vida sobre a degradação do mundo dominado pela peste.
3. Herdeiros de Boccaccio
Como temos apontado, o Decameron reuniu ecos reveladores de fontes, intertextos,
influências certamente emblemáticos, também serviu de fonte para outros textos, que
eternizariam os nomes de Marguerite de Navarre, em L’Heptaméron, e Giambattista
Basili, em o Pentámeron. Aludimos ainda ao Ecatommici, de Giraldi Cinzio, e às
Novelas de Matteo Bandello, dois autores que se inspiraram na estrutura do Decameron
sugerindo-nos aplicá-la em seus contos. E não esqueçamos de que rastros, fontes destes
dois novelistas estão em Sheakspeare, que se inspitou, certamente, em Cinzio para
compor o seu Otelo. Em Bandello, o mesmo mestre inglês encontrou material para
Romeu e Julieta, enovelada história de dois amantes infelizes, também oriunda de um
conto do século XV, desenvolvido por Luigi Da Porto. Bandello traçou os perfis de suas
personagens de maneira bastante pessoal, já modificadas por possíveis modelos
herdados de alguma outra cultura e que lhe valeu traduções em vários países colocando
em evidência a obra.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
65
Neste ponto, vale ressaltar algo - mesmo que não se refira especificamente ao
Decameron - sobre os rastros literários dos famosos e desafortunados amantes,
personagens da não menos consagrada tragédia de Sheakspeare, escrita entre 1591 e
1595. Dante Alighieri, na Commedia, referiu-se, no canto do Purgatório (VI, 105) a
duas famílias – os Montecchi e os Capuleti – como inimigos, mas sem se referir a
Romeu nem a Julieta. Quanto às duas famílias, através da narrativa de Masuccio
Salernitano, em 1472, a história ganhou a primeira estrutura da já conhecida trama,
entetanto, os namorados se chamavam Mariotto e Giannozza, o espaço, ao invés de ser
Verona era Siena e a psicologia das personagens diferia bastante. Foi Luigi Da Porto
que, em sua Istoria novellamente ritrovata di due nobili amanti, História de novela
encontrada sobre dois nobres amantes, aproximadamente de 1530, apresentou-os em
versão moderna, transportando a cena para Verona e nomeando-os da forma que os
conhecemos: Romeu e Julieta. Daí em diante, vários foram os momentos em que se
retomou e se enriqueceu a ação e os fatos.
Em sequência a nosso estudo, citamos agora a influência de Boccaccio em Giovan
Francesco Straparola, que, em Noites prazerosas, ao longo de 13 noites, encadeou 75
novelas contadas por 13 mulheres. As 75 novelas estão acompanhadas de enigmas, em
versos de oitava rima, em geral enigmas licenciosos. Uma delas intitulada “Costantino
Fortunato”, comumente conhecida como O gato de botas, tornou-se fonte para outros
escritores, sendo retomada pelo francês Charles Perrault, no século XVII, nos famosos
Les contes de ma mère l'Oye, em português, As histórias da mamãe gansa.
Apontamos outra influência do Decameron, em L´Heptaméron, de Marguerite de
Navarre, irmã de François I, também chamada Marguerite d’Angoulême, d’Alençon e
de Valois, nascida em 1492, protetora de Rabelais e de Marot. O Heptaméron, ou o
“livro dos sete dias”, sua mais importante criação literária, de forte sugestão
boccacciana, é obra inacabada, só publicada após sua morte. Composta de contos em
que se alternam temas cômicos e trágicos, nela se evidencia mais o desejo de instruir do
que agradar e distrair, dela se extrai uma moral, uma pedagogia, ao mesmo tempo cristã
e mundana, que, claramente prefigura a vida de salão levada na corte.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
66
Nicole Cazauran (1991, p.17-28), em estudo sobre o texto de Marguerite de Navarre,
observa a existência do recurso da superposição de diferentes registros, tais como,
metafísico, cômico, satírico, moral. Ao longo da obra, desfilam toda sorte de
representantes sociais, desde a burguesia e a nobreza, em maior número, como também
gente do povo. Da estrutura fazem parte dez viajantes que se abrigam de uma violenta
tempestade numa abadia e, impossibilitados de se comunicar com o exterior, todos os
dias, cada um conta uma história, real ou inventada. Em forma de epílogo, a história é
concluída e comentada pelos participantes, em ameno diálogo. Era intenção da autora
que, à semelhança do Decameron, a obra compreendesse cem histórias, porém a morte
impediu-a de realizar seu intento, não indo além da segunda história do oitavo dia,
perfazendo 72 novelas. A obra se movimenta da reflexão séria à despretensiosa; das
histórias mais simples aos questionamentos filosóficos e teológicos.
A atmosfera das novelas com os debates finais suscitados pela trama encerram a busca
da verdade ao longo de uma conversação apoiada por máximas, por citações
importantes de passagens conhecidas à época, dando apoio ao que chamaríamos de
verdades essenciais. No fundo de toda comicidade e tragicidade, em meio a contos
“negros”, a intrigas galantes, a homens valentes, viris, a histórias de mulheres virtuosas
ou devassas, encontramos uma lição, um exemplo a ser notado, o que em Boccaccio
ficou velar, sem nada deixar transparecer. Para sintetizarmos o pensamento de Nicole
Cazauran (1991, p.17-28), em L´Heptaméron, está a imagem do homem em momentos
de furiosos desejos, ou como vítima de uma glória vã, sem consistência, perseverante no
mal e incapaz do bem, culpado ou vítima de desordens que apenas Deus pode acabar.
Outro nome da literatura italiana, Giambattista Basile, certamente, foi outro herdeiro de
Boccaccio. Após várias viagens pela Itália, Basile voltou a Nápoli, sua cidade natal, e
em 1621, aproximadamente, inicia o Pentameron, uma coletânea de narrativas, plenas
de elementos que nos sugerem a atmosfera de fábulas, cujas personagens falam o dialeto
napolitano, em oposição ao uso do florentino do Decameron. Não devemos, entretanto,
falar de Basile como um autor meridional, nem colocá-lo em oposição a autores do
setentrião, posicionamento crítico bastante encontrado na história da literatura italiana.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
67
Ao contrário, Basile deve ser interpretado como o nome que tornou vivas as expressões
dialetais de sua própria gente. Foi através do vulgar napolitano que manifestou a
substância de sua arte narrativa, a vida de uma cidade com múltiplas contradições e
particularidades, antes mostrada por Boccaccio em florentino, pouco a pouco convertido
em língua de prestígio.
Em verdade, Basile deu o título de “O conto dos contos”, ao conhecido Pentameron,
assim chamado por seu editor e não por escolha inicial de Basile. Mesmo que o autor
não tenha dado à obra originalmente um título análogo ao escolhido por Boccaccio, a
estrutura se inspirou, sem dúvida, na do certaldense. As jornadas são em número de 5 e
o número de novelas também ficou reduzido a 50. Elas são narradas por velhinhas
caracterizadas por seus defeitos físicos, portanto, temos Zeza a manca; Cecca a torta,
Meneca a papuda; Tolla a nariguda; Popa a corcunda; Antonella a babona, um
verdadeiro desfile de bruxas, de lâmias efabuladoras. Com relação à obra, na
Apresentação do Pentameron na edição de 1925, Benedetto Croce nos diz que: “a Itália
possui nos Contos dos contos ou o Pentameron, de Basile, o mais antigo, o mais rico e o
mais artístico entre todos os livros de fábulas populares (CROCE, 1925, p.98)”.
As histórias narradas na obra são do estilo fábulas, como frizou B. Croce, geralmente
retiradas da tradição popular e reelaboradas literariamente por Basile, em registro culto,
bem diverso do napolitano efetivamente falado. Às novelas acrescentou anotações
irônicas e comentários, às vezes, de cunho moral. A obra de Basile, por sua vez, serviu
também de fonte para outros autores de fábulas e contos, tais como, Charles Perrault e
os irmãos Grimm. Isto porque nos Contos dos contos encontra-se, entre outras bem
conhecidas, a história da Gata borralheira, também chamada de Cinderela.
Vimos, portanto, que anteriormente e a partir do Decameron formou-se uma intrincada
rede de fontes e de influências, além de inesgotável série de intertextos. É inegável a
relação entre tais narrativas, a criar entre si um visível rastro polifônico conectando-nos
de um texto ao outro: de Dante a Boccaccio, deste até Bandello e Cinzio e outros. Às
vezes, parece-nos impossível estabelecer se um textos seria escrito sem a influência de
um outro composto anteriormente e pertencente também a um conjunto de fios e de
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
68
interações literárias, mais ou menos visíveis, que os une sob o signo da
criação/recriação.
É preciso observar, porém, que da mesma forma que Boccaccio recebera e utilizara o
material literário reinante na cultura até seu tempo e o transformou de maneira magistral,
também seus herdeiros, na posse efetiva de tal herança, souberam burilar artisticamente
os valores recebidos. Quem nos certifica do valor e da dinâmica desse inventário de
fontes e influências é Jauss (1986, p.54-55):
La forme d´un genre nouveau peut également sortir des modifications
structurelles qui font qu´un groupe de genres simples déjà existants
s´insère dans un principe d´organisationsupérieure. L´exemple
classique est ici la nouvella toscane créée par Boccacio, qui imposa
ses normes à toute l´évolution ultérieure de la nouvelle comme genre
moderne. D´un point de vue génétique, le Decameron de Boccace a
intégré une variété étonnante de genres narratifs ou didactiques plus
anciens. [...] Les caractéristiques que retiendra la théorie ultérieure de
la nouvelle [...] ne suffisent pas, prises isolément, à fixer le genre :
elles atteignent leur fonction spécifique et, par là, leur efficacité
historique dans la structure de genre créée par Boccace. Cela ne veut
pas naturellement pas dire que, dès lors, tous les éléments de cette
structure devront se retrouver dans toutes les nouvelles ultérieures.
Les successeurs de Boccace ne se contantent pas de reprendre
simplement sa structure initiale [...].
Antes de fechar nosso ensaio, baseado em vasto mosaico textual composto pelas obras
nele comentadas, devemos acrescentar alguns breves comentários sobre um escritor
galego, Manuel Forcadela, sensível poeta e romancista, professor de literatura galega,
na Universidade de Vigo1. Ao lado dos policiais Sangue sobre a neve, Fóra de xogo,
acrescentamos o sensível romance Paisaxe con muller e barco, e A equipaxe do azar.
Sua poesia está marcada por Música de cinza, Lámpada e Medusa.
A produção de Forcadela estende-se por outros títulos, entretanto, focalizamos nossa
atenção no sugestivo romance de 1990, A armada invencível, que, pela temática
irreverente, a estrutura linguística, a escolha do vocabulário utilizado e as contínuas
inversões frasais, regadas com ironias e com explicações redundantes, sugeriu-nos, a
1
Conhecemos Manuel Forcadela durante nossa estada na Universidade da Coruña, para o Pós-Doutorado
em Literatura Comparada, com bolsa CAPES, fruto do convênio entre UERJ e UDC coordenado pela
Profª Drª Maria do Amparo Tavares Maleval e pela Profª Drª Laura Tato.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
69
partir das analogias encontradas, um futuro estudo comparado em diálogo com
Giovanni Boccaccio.
A futura pesquisa, na tentativa de refletir sobre a influência do estilo de Boccaccio em A
armada invencível, seria desenvolvida, então, a partir da hipótese de que tal obra de
Forcadela nos sugere uma vertente que atualizaria a narrativa boccaccesca.
Deste modo, demonstraríamos uma atualização de temas medievais retomados na
Galiza no século XX, porém, em nosso caso específico, entre as literaturas de língua
italiana e galega.
Referências
ARTAUD, Antonin. O homem e seu duplo. 2.ed. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo :
Editora Martins Fontes, 1999.
ASOR ROSA, Alberto. “Decameron” di Giovanni Boccaccio. Em: Literatura italiana.
Torino: Einaudi, vol.I, 1992.
BOCCACCIO, Giovanni. DecameronouPríncipe Galeotto. Trad. Urbano Tavares
Rodrigues. Belo Horizonte: Crisálida, 2008.
BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora
Abril, 1971.
BRANCA,Vittore. Giovanni Boccaccio. In: Letteratura italiana. I maggiori. Milano:
Marzorati, 1956.
CAZAURAN, Nicole. L´Heptaméron de Marguerite de Navarre. 2.ed. Paris: Editions
SEDES, 1991.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1996.
CROCE, Benedetto. Premessa. Em: Lo cunto de li cunti. Bari: Laterza, 1925.
DE SANCTIS, Francesco. Storia della Letteratura italiana. Firenze: Sansoni, 1960.
FORCADELA, Manuel. A armada invencible. Vigo: Edicións de Cumio,
GRABHER, Carlo. Boccaccio. Torino: UTET, 1951.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
70
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994
JAUSS, H. R. et al. Littérature médiévale et théorie des genres. In: Théorie des genres.
Paris: Éditions du Seuil, 1986.
KRISTEVA, Júlia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
71
Duas leituras dos poemas 55 e 56 de
Fernão da Silveira no
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
Geraldo Augusto Fernandes
Universidade de São Paulo (USP); Universidade Nove de Julho
Resumo: Na transcrição dos poemas 55, uma esparsa, e 56, uma cantiga, do Cancioneiro Geral
de Garcia de Resende (1516), percebe-se uma divergência na visão dos dois últimos editores do
Compêndio. Em 1910-1917, António José Gonçalves Guimarães considera os dois poemas uma
só composição, motivado que foi pela ausência de alguns dados característicos da “ordenação”
do Cancioneiro. Já Aida Fernanda Dias, em suas duas edições (1973-1974 e 1990-1993), separa
os dois poemas, atendo-se, parece, à forma e à temática das duas peças. Neste estudo, levantamse algumas considerações sobre os motivos de tais visões divergentes.
Palavras-chave: Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; Transcrição de textos antigos;
Leitura de originais; Opções de editores.
Abstract: In the transcription of two poems taken from the Cancioneiro Geral, a songbook
compiled by Garcia de Resende in 1516, there is a disagreement in vision of two editors of the
most recent editions of the Compilation. In 1910-1917, António José Gonçalves Guimarães
considers one sole composition the poems nr. 55, an esparsa, and nr. 56, a cantiga, maybe
because some characteristics data of the songbook are not evident. In her editions of 1973-1974
and 1990-1993, Aida Fernanda Dias separates both poems, sticking to the form and theme of the
compositions, as it seems. In this study, some considerations on the reasons of those
divergences are analyzed.
Keywords: Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral; Transcription of ancient texts; Reading of
originals; Options of editors.
O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende foi editado nove vezes, entrando nesse
cômputo a primeira aparição, em 1516, ano de sua publicação1. Diferentemente de seu
congênere castelhano, o Cancionero General de Hernando del Castillo, publicado em
1511, no qual Garcia de Resende se inspirou para publicar o seu Cancioneiro, a
Compilação portuguesa teve apenas a primeira edição. Castillo publicou outras em
1514, 1517, 1520, 1527, 1535, 1540, 1557 e 1573, tendo adicionado e excluído poemas
1
Cf. o volume V, do CANCIONEIRO, 1998, p. 441-443, “A Temática”, para uma relação de todas essas
edições.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
72
até a edição de 1527, enquanto ainda estava vivo; as demais aparições foram compostas
por outros editores e compiladores, sempre mantendo a “identidade” do original 2. Se o
compêndio castelhano avançou, o português não progrediu, talvez “porque a natural
condiçam dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dinas de grande
memoria, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e vertudes, de ciencia, manhas e
gentileza sam esquecidos” (CANCIONEIRO, 1990-93, p.9), como escreve Garcia de
Resende em seu Prólogo. Duas das edições que seguiram o Cancioneiro de Resende são
fac-símiles e duas são edições anastáticas. Para a análise que empreendo de leituras
diferentes dos dois poemas do Compêndio, valho-me da edição de 1910-17, de António
José Gonçalves Guimarães, e da edição de 1990-93, de Aida Fernanda Dias, a mais
completa até agora: são quatro volumes contendo os 880 poemas, adicionando, em
1998, uma edição crítica, “A Temática”, além de um Dicionário (Comum, Onomástico
e Toponímico), de 2003, trabalho de anos de pesquisa sobre os termos usuais dos poetas
palacianos.3 À parte esta edição, a mesma autora lançara em 1973-74 dois volumes do
CGGR4 juntamente com Álvaro J. da Costa Pimpão.
A edição de 1516 do CGGR apresenta-se em letras góticas e foi um dos primeiros textos
impressos em Portugal, depois da Bíblia; nele, Resende reúne poemas compilados desde
1449 até o ano de sua publicação. Resumo de meio século de poesia portuguesa, o
CGGR caracteriza-se pelo culto à forma, adicionando gêneros e temas que prenunciam
o Pré-Renascimento, o próprio Renascimento, o Barroco e mesmo outras tendências
literárias vindouras. As formas poéticas cultivadas pelos poetas palacianos podem ser
identificadas por seis grupos – baladas, cantigas, esparsas, trovas, vilancetes e poemas
de formas mistas, estes a grande novidade dos Quatrocentos e Quinhentos peninsulares.5
Quanto aos muitos e diversificados gêneros, destacam-se as epístolas, as glosas, e a
2
Cf. CANCIONERO General, 2004. Na Introdução, o editor Joaquín González Cuenca, estuda o
aparecimento de todas as edições, fazendo uma análise crítica delas.
3
Antes do surgimento desse Dicionário, Aida Fernanda Dias lançou o Contributo para um dicionário do
“Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1978, prévia da extensa
edição de 2003.
4
A partir daqui, usarei a sigla CGGR para referências ao Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
5
A característica original desse grupo é a mescla de várias formas numa só composição. Tome-se como
exemplo o texto que abre o CGGR, conhecido por “O cuidar e sospirar”. Trata-se de 146 poemas de
formas mistas numa só composição, desenvolvendo um único tema, o amor: 116 trovas, uma sextilha,
cinco quadras, uma quintilha, 22 cantigas e um vilancete. Registram-se no Cancioneiro 96 poemas cuja
forma é mista.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
73
disputatio, representada pelos subgêneros perguntas, respostas e ajudas6. Relativo aos
temas, ainda prevalece o amor, pervivência de uma tradição de longa duração medieval;
no entanto, mesmo que ainda “cortês”, esse amor mostra-se eivado de sensualidade, que
será mais explorada no Renascimento e no Romantismo, deixando de lado o
“fingimento de amor” das cantigas de amor e de amigo trovadorescas. Em muitos
poemas, o poeta revela um sentimento que vem aliado a certo desconcerto do mundo,
resultado das Conquistas portuguesas. Esse desconcerto, aliás, não se prende apenas ao
tema amoroso, pois se estende a qualquer outro sentimento em que o poeta se vê
“perdido” ou “desavindo” ante um mundo em transformação, característico do fim da
Idade Média. Destacam-se, ainda, numerosos poemas denominados por Resende
“cousas de folgar”, os correspondentes às cantigas de escárnio e de maldizer
trovadorescas, cujo tema concorre de perto com os poemas amatórios.
Quanto aos exemplares da edição príncipe do CGGR, Ivo Castro e Helena Marques Dias
citam onze, localizados em Lisboa, Coimbra, Évora, Vila Viçosa, Paris, Londres e Nova
York. Em artigo divulgado em separata na Revista da Faculdade de Letras de Lisboa,
IV série, n. 1, 1976-77, os dois estudiosos comentam que, apesar de ter sido editado
uma única vez, o Cancioneiro (1977, p. 117) teve duas impressões, feitas por dois
compositores7 diferentes em dois momentos também distintos, haja vista as
divergências apresentadas em alguns poemas. Castro e Marques Dias chegaram a essa
conclusão, porque as divergências eram muito evidentes, confrontados dois exemplares.
Quanto a essas divergências, os autores supõem que Hermão de Campos, o impressor,
se viu instigado a reimprimir algumas folhas dos exemplares porque, como uma parte
foi impressa em Almeirim e outra em Lisboa, teria sido possível que se perdessem
algumas folhas durante a viagem. Outra possibilidade é que o sucesso do Cancioneiro
6
As ajudas surgem quando se solicita a outro poeta sua opinião em relação a um questionamento feito
pelo proponente; as perguntas são dúvidas propostas por um poeta em forma de pergunta, pedindo a outro
que responda de acordo com sua sabedoria ou conhecimento sobre o lema, e as respostas, esclarecimentos
da dúvida trazida no mote pelo poeta proponente. A origem desses subgêneros é a tensó provençal.
Registre-se que as ajudas são, entre outras, a grande novidade do CGGR, subgênero não registrado, por
exemplo, no Cancionero de Hernando del Castillo.
7
Seriam, de acordo com os dois estudiosos os Compositores A, do Reservado 110, e B, do Reservado
112, ambos exemplares da Biblioteca Nacional de Lisboa. Castro e Marques Dias entendem por
“compositores” os oficiais responsáveis pela impressão.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
74
teria sido tal que Resende decidiu aumentar a tiragem (1977, p. 123). 8 Para chegar a
essa conclusão, os estudiosos valem-se de vários textos do CGGR, mas principalmente
do poema “Senhora, graciosa, discreta, eicelente”, intitulado “Outra sua.”, de Fernão da
Silveira, o Coudel-mor.9 Numa das impressões, fica evidente a separação por colunas da
esparsa labiríntica de palavras a que se dedicou o poeta; noutra, o mesmo poema
aparece com tal evidência somente nos quatro primeiros versos. Nas edições modernas,
a de 1910-17, de António José Gonçalves Guimarães, e nas de 1973-74 e 1990-93,
ambas de Aida Fernanda Dias, o que se percebe é a fidelidade do primeiro, Gonçalves
Guimarães, quanto à separação das palavras que caracterizam o labirinto e a opção
divergente da segunda. Dias junta as palavras, descaracterizando a intenção original do
Coudel-mor, de construir um labirinto de palavras cuja leitura pode ser feita da maneira
que aprouver ao leitor. Uma vez que a editora havia consultado alguns exemplares da
edição príncipe, em comunicação que apresentei recentemente questionei o quê teria
levado Dias a se “desvirtuar” tanto do original10. Ao que parece, a estudiosa não seguiu
a intenção primeira do poeta, que era justamente criar um labirinto. No entanto, essa
questão de “seguir o original” inverte-se quando se observa a publicação dos poemas 55
e 56,11 do mesmo Coudel-mor, como pretendo mostrar em seguida, valendo-me das
edições de Gonçalves Guimarães e de Fernanda Dias.
Antes disso, é necessário fazer algumas considerações quanto à questão das diferenças
entre dois exemplares de uma mesma edição. Castro e Marques Dias (1977, p. 105)
explicam que, num texto antigo, as variantes são binárias: “para cada passo em que os
exemplares não estão de acordo entre si, apresentam-se duas lições variantes, e nunca
mais de duas”. De acordo com os dois estudiosos, as variantes podem ser acidentais,
quando as diferenças se apresentam na ortografia, pontuação e apresentação tipográfica;
8
Aida Fernanda Dias concorda em parte com essas suposições: “Estamos convictos de que a deslocação
da tipografia de Hermão de Campos de Almeirim para Lisboa está na raiz destas divergências [mas] a
ideia de que esta operação foi pedida pela necessidade de ampliar a edição está afastada do nosso espírito,
pois, [...] pensamos que uma tiragem grande se impôs desde logo à mente de Resende” (1998, p. 93).
9
Esse “oficial da casa real” cuidava “da criação dos cavalos castiços e de marca. Também provia e
determinava as dúvidas sobre os acontecimentos e lançamentos dos cavalos aos que tinham contia
[quantia] ou fazenda a que fossem obrigados a manter cavalo, para com ele servirem na guerra” (DIAS,
2003, p. 645). Fernão da Silveira, à parte o cargo, foi uma espécie de líder ou coordenador dos poetas
cortesãos.
10
A comunicação foi apresentada no I Encontro Regional da ABREM, Associação Brasileira de Estudos
Medievais, Centro-Oeste, em agosto de 2010 (anais no prelo).
11
Sigo a numeração da edição de 1990-93, de Aida Fernanda Dias.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
75
ou substantivas, quando incide em erro tipográfico (de impressão ou de composição),
como nos exemplos: “soes tam namorado” contra “soys tã mao namorado” , “Cãgua”
contra “Cãtigua” ou, ainda, “cuydado” contra “coytado” (CASTRO; DIAS, 1977, p.
105-106). Além desse tipo de erro, elencam-se falta de palavras, de sílabas ou de tipos,
troca de tipos ou de posição de palavras e/ou utilização de tipo errado (p. 106). Todas
essas variantes, ao que tudo indica, não valem para o caso aqui estudado, uma vez que
não foi possível o confronto entre os outros exemplares. No entanto, mesmo que elas
existam, creio que, no caso dos poemas 55 e 56, o editor Gonçalves Guimarães foi
levado a outro tipo de erro – a não observação da questão temática, uma vez que, como
se verá, não há ligação entre a esparsa e a cantiga, mesmo que ambas tratem do tema
amatório.
Na introdução de sua edição do CGGR, Guimarães elenca os vários desafios com que se
deparou ao decidir lançar a Compilação. Registra que
a grafia da edição princeps foi mantida com o maior escrúpulo e, a não serem
manifestos erros tipográficos de caráter meramente esporádico ou que
evidentemente acusam lapsos, nada absolutamente modificaríamos sem uma
razão de conveniência. Mas é preciso que essa conveniência seja real e não
vá de encontro a algum facto, a alguma lei filológica ou alguma regra de
gramática. As reproduções de textos antigos feitas sem este critério carecem
de valor documental e degeneram em falsificações. (CANCIONEIRO, 191017, p. XII)
Alude, então, estritamente às questões das variantes acidentais e substantivas, pois “a
leitura de livros antigos tem dificuldades especiais, que se não encontram nos
modernos, avultando entre elas as de grafia, que era muito diversa e menos regular que
a de hoje. Eram também mais frequentes as imperfeições e gralhas tipográficas”. Para o
editor, as causas gerais sobre esses erros podem estar na “variedade dos copistas, que
nem sempre compreendiam bem o que copiavam”. (CANCIONEIRO, 1910-17, p. XV).
Guimarães não faz referência a outro problema que se apresenta ao editor – o da
interpretação desses textos relativamente à temática. Sobre “erros de interpretação”, a
única ressalva que faz é à palavra “bacho”, no original, que, depois de várias pesquisas e
relação dela com outros termos no poema, deduziu ser Baco; outra teria a ver com o
verso “& bem sabeys donde vʃaão”, emendado por “& bem sabeys dondeu ʃãoo” (i.e.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
76
“donde eu sou”). Guimarães confessa que foram estes os dois erros de interpretação que
cometeu ao editar o Cancioneiro. Mas, como se verá adiante, registra-se outro engano.
Na edição princeps, o poema 55, uma esparsa, aparece no Cancioneiro individual de
Fernão da Silveira, poeta identificado no topo das páginas por “Do coudel moor.”. Na
folha XXIIII, no canto inferior esquerdo, aparece a esparsa intitulada “Memorial do
coudel moor” e, em seguida, na coluna do meio, vem uma cantiga do mesmo poeta, à
qual Aida Fernanda Dias apôs o número 56. É o último poema do Coudel-mor, antes de
se iniciar o Cancioneiro individual de Álvaro de Brito Pestana. Leiam-se os poemas12:
12
Note-se que estão riscados um poema e o mote de outro, marcas da censura ordenada pela Real Mesa
Censória, como consta no Index Avctorvm dãnatae memoriae (1624). De acordo com Aida Fernanda Dias
(1998, p. 104-105), os poemas ou versos só puderam ser recuperados devido a restaurações empreendidas
ainda à época da censura.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
77
Figura 1. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, edição princeps, folha XXIIII.
Disponível em <http://purl.pt/12096> Acesso 10 nov. 2011
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
78
A leitura do Dr. Guimarães diverge do original, já que ele considera os dois poemas um
só. Como se pode observar, o título da esparsa mostra-se evidente; a ele, segue-se o
poema, fechado pelo pé quebrado13 “que ousadas”. Na cantiga que segue a esparsa, não
há título; daí ter o Dr. Guimarães, provavelmente, deduzido ser o poema uma sequência
da esparsa, como se pode ver abaixo:
Figura 2. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, 1910-17, p. 212
13
Juan del Encina assim define o pé quebrado: “ay outro género de trovar que resulta de los sobredichos
[i.e., ‘De lo principal que se requiere para aprender a trovar’, capítulo iiij de sua Arte D’Poesía], que se
llama pie quebrado, que es medio pie, así de arte real como de mayor; del arte real son cuatro sílabas o su
equivalencia, y este suélese trovar el pie quebrado mezclado con los enteros, y a las veces pasan cinco
sílabas por medio pie, y entonces dezimos que va la vna perdida, assí como dixo don Jorge [Manrique?]:
como debemos. En el arte mayor quando se parten los pies y van quebrados, nunca suelen mezclarse con
los enteros, mas antes todos son quebrados, según parece por muchos villancicos que ay de aquesta arte
trovados” (ENCINA, 1984, p. 88).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
79
Parece, então, que o editor foi “ludibriado” pela falta de um título para a cantiga. Mas
não somente por esse motivo. Garcia de Resende valeu-se do “caldeirão” – marca de
meia-lua que antecedia a primeira linha das didascálias, espécie de título dado ao poema
pelo próprio Resende, e dos primeiros versos de cada estrofe. Este fato pode ter
contribuído para o engano do estudioso, já que cada caldeirão pode indicar qualquer um
dos usos – anteceder um título ou uma estrofe. Além do mais, a repetição do termo
“que” no primeiro verso da cantiga, em sequência do pé quebrado, e do advérbio “tal”,
talvez tenha contribuído, uma vez mais, para a confusão do Dr. Guimarães.
No entanto, o que mais instiga nessa decisão de se juntarem os dois poemas é a questão
da temática. Para isso, reproduzo os dois poemas da maneira como fez Aida Fernanda
Dias nas suas duas edições. Registre-se que a estudiosa optou por uma modernização da
língua, caso não seguido pelo Dr. Guimarães, que declara: “transcrevemos o texto
literalmente” (CANCIONEIRO, 1910-17, p. XV), reproduzindo o gótico do original.
Essa transcrição literal pode-se observar, por exemplo, na justaposição da preposição
“de” ao substantivo “abril” que inicia o poema; a manutenção do “y” e do “j” em vez do
“i”; a prevalência do “u” equivalente ao “v”, no interior das palavras 14; a transcrição do
“s” longo; a nasalização de “an", representado pelo til sobre o “a”, como na palavra
“tãta"; a abreviatura de “vos” (v’) e “que” (com til sobre “q”); entre outros. Leia-se,
primeiramente, a esparsa, nas edições de 1970-74 e 1990-93 de Dias:
5
10
D'Abril aos onze dias,
cinquenta e oito a era,
senti eu quanto é fera
a mortal dor de Mancias.
Porem quero que saibaes
que com suas mortaes dores,
nam de jogo aficadas,
passei polos Carregaes
tam carregado d'amores
que ousadas...
14
Com relação a esses dois casos (o “j” e o “u”), observe-se que são resquícios do latim na língua
portuguesa em fase de consolidação. António José G. Guimarães (Cancioneiro, 1910-17, p. XIII) assim se
manifesta quanto a esse uso: “Vemos assim, por exemplo, a promiscuidade com que se escrevia v ou u, e
por outro lado, i, j ou y; mas o arbítrio não ia tão longe como à primeira vista se nos antolha”..
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
80
O poema vem em décima e classifica-se por “esparsa”. Esta forma estrófica caracterizase por ser monostrófica, variando de oito a dezesseis versos, e não apresenta motes –
próprios das cantigas e dos vilancetes –, nem “fim”15 – próprio das trovas e das baladas.
As esparsas originam-se das coblas esparsas das Leys d’Amors, conforme estudo de
Pierre Le Gentil (1949, p. 218-218),16 ou dos madrigais e epigramas, como supõe
Massaud Moisés (2004, p. 165), pois nestes e nas esparsas “se condensa um pensamento
artisticamente empregado”. Registre-se que, em Portugal, essa forma estrófica nunca
ultrapassou treze versos, ao contrário de seu congênere francês, que apresentava até
dezesseis versos. Quanto aos temas, servem tanto para a expressão de sentimentos
nobres como o amor, quanto para as expressões satíricas. Assim como a cantiga, a
esparsa volta a ser cultivada numa época em que os poemas de arte maior despontavam
como grande novidade. É possível que isso se explique pelo fato de os poemas de curta
extensão serem apropriados ao improviso e à sociabilidade paçã, mas também porque as
esparsas trazem em seu bojo, mais especificamente em sua forma, a abertura para
expressão de máximas, ditos, exempla etc. A esparsa 55 aqui estudada apresenta um
esquema rimático clássico nos quatro primeiros versos - abba; nos outros, o esquema é
de rimas misturadas cdecde e parece ter a ver com a intensidade das dores que
transporta o enamorado para os Carregaes, topônimo no plural usado não somente para
adequar a rima, mas para criar uma paronomásia com o verbo “carregar”, que segue no
verso seguinte: tem sentido não de “trazer”, “levar”, mas de “pleno”, “cheio” de amores.
É, no entanto, um amor que o faz perder-se. O Coudel-Mor parece ousar, ainda, ao
deixar o último verso incompleto: usa um pé quebrado, e a incompletude é marcada
pelas reticências.17Ainda quanto ao sistema rimático, Silveira adota a rima interna nos
versos cinco e seis, “saibaes/mortaes”, o que parece enfatizar sua vontade de mostrar a
intensidade da dor de amar.
15
O “fim” ou “cabo” encerrava uma composição poética com número menor de versos em relação às
estrofes anteriores.
16
O estudioso considerava as esparsas “genres mineurs” e aventa a possibilidade de os poetas palacianos
terem se inspirado no strambotto italiano (LE GENTIL, 1949, p. 221-222).
17
Registre-se que as reticências, na edição princeps, não são explícitas. Quanto a essa esparsa, escreve
Jorge A. Osório (2005, p. 324): “O jogo entre o topónimo conhecido de toda a gente, ‘Carregaes’, e o
sintagma ‘carregado d’amores’ pertence ao exercício retórico desta poesia, que trabalhava, no fundo, com
um espectro relativamente pequeno de figuras e de vocabulário; por exemplo não avançava para o
enriquecimento expressivo da metáfora”.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
81
Classificada como composição de forma fixa, a cantiga constitui-se de mote, de
quatro ou cinco versos, e glosa de oito ou dez. Em ambos os casos, a glosa retoma e
desenvolve o mote no início, ao longo do poema ou no “fim” (poucos casos). No
Compêndio de Garcia de Resende, entretanto, como acontece com a maioria dos
poemas selecionados pelo eborense, a variação entre extensão e conteúdo não segue
qualquer regra, apesar de a cantiga ser a que mais se aproxima da regularidade. Ao se
referir a várias formas poemáticas, à cantiga inclusive, Pierre Le Gentil (1949, p. 75)
declara que “dans la Péninsule au XVe. siècle, les classifications ne sont pas toujours
aisées à établir”. É assim que, conforme constata o estudioso, a cantiga foi-se alterando
de significado entre música e forma poética até atingir a estrutura desenvolvida pelos
poetas castelhanos e portugueses do fim da Idade Média, ou, como constata o mesmo
estudioso: “on sait que la chanson primitive est définie à la fois par les thèmes qu’elle
développe et par les règles téchniques qui determinent ses formes” (LE GENTIL, 1949,
p. 75). A origem da cantiga quatrocentista e quinhentista é a poesia trovadoresca
provençal e galego-portuguesa, mas apresenta uma curiosidade que a distingue de suas
antecessoras: a inversão do fim/cabo para a cabeça do poema, denominado agora
“mote”, em que o poeta lança a ideia a ser desenvolvida na glosa. Na cantiga 56, que
segue a esparsa, o tema amatório persiste, em forma irregular – um mote com cinco
versos, seguido de uma glosa em nona. Nela, Fernão da Silveira vale-se da annominatio,
com função antitética, para mostrar a ambiguidade da dama servida:
5
10
Que de tal troca se siga
ser de todo meu bem fora,
pois me vejo em tanta briga
quero vos trocar d’amiga
por immiga e por senhora.
Immiga pera poder
todo meu bem destroir;
senhora pera querer,
pera amar, pera servir,
pera me dar nova briga,
pois que vos vi em tal hora.
Mas que meus danos consiga,
convem trocar-vos d’amiga
por immiga e por senhora.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
82
Afora a retórica conceptista, pois quer o poeta ao mesmo tempo ter sua dama por
senhora e por amiga, quer tê-la também por inimiga, para poder ver destruído todo o seu
bem, ou seja, o seu amor: o “eu-lírico” não encontrará harmonia na amada, que para ele
é ambígua, “amiga e immiga”. Usando a enumeratio, enfatizada pela preposição “pera”,
define uma senhora tal como a tradição cortesã: aquela que o poeta quer possuir, amar,
servir e, para marcar a “coita de amor”, para lhe dar novo desassossego (“briga”). Se na
esparsa antecedente o poeta exalta seu sofrimento, na cantiga, a ambiguidade é usada
para definir a senhora e mostrar os danos que ela provoca. Contudo, há de se registrar
que ao “eu-lírico”, devido à impossibilidade de possuir seu objeto de desejo, interessa
mais o sofrimento: nos três últimos versos, declara que, para conseguir seus “danos” – e
o ponto fulcral deste sofrimento está no subjuntivo do verbo “conseguir” –, convém
trocar a amiga por inimiga e por senhora. Se se atentar para o início do mote da cantiga,
o advérbio “tal” remete a algo já dito anteriormente, e este “algo” está ligado a “troca”,
ou seja, algo teria sido trocado e o resultado foi estar todo o bem – o querer – fora. Da
mesma maneira enigmática que se encerra a esparsa antecedente, o poeta inicia a
cantiga, o que pode ter levado o Dr. Gonçalves Guimarães a ver uma conexão entre os
dois poemas. Registre-se, ainda, que uma das marcas do CGGR é a irregularidade –
manifesta desde as formas e os gêneros, até a temática; daí outro motivo de,
possivelmente, o estudioso sentir-se tentado a ver um só poema nessas duas
composições. No entanto, nem a temática amorosa nem a irregularidade parecem
justificar ver os dois poemas como um só.
Tudo isso levado em consideração, levantem-se algumas conclusões. Com relação ao
tema, apesar de ambos tratarem da questão amorosa, não existe ligação entre os dois. Na
esparsa, o sujeito do sofrimento de amor é o poeta, mas não se sabe quem é o objeto de
amor. O poeta confessa que aprendeu o que é a “dor mortal de Macias”, ao comparar
seu sofrimento de amor àquele do trovador galego do século XV – muito cultuado pelos
poetas palacianos de Espanha e Portugal, menos por sua produção poética que por seu
drama amoroso, Macias tornou-se símbolo do amor sofrido e exemplo para os
amantes18. Já na cantiga, o sujeito é ainda o poeta, mas o objeto é determinado: a dama
18
Aida Fernanda Dias (1998, p. 809) explica que Macias era representado no Cancionero de Baena e que
morrera pela lança do marido da mulher que amava. “Porque amou e serviu lealmente, tornou-se presença
obrigatória nos chamados Infernos de amor e o exemplo para todos os fiéis amadores, que ousam algumas
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
83
que ele ama tem personalidade ambígua, por isso é melhor tê-la como inimiga e como
senhora – como inimiga, porque ela destrói o bem que é seu amor por ela, e como
senhora porque quer amá-la e servi-la. Ante essa ambiguidade, vive o poeta em conflito.
Percebe-se, dessa forma, que a cantiga não justifica a esparsa, nem esta serve como
mote para a cantiga.
Na transcrição de textos antigos, mesmo que embasado em normas filológicas, a leitura
é sempre pessoal. De acordo com Lênia Márcia Mongelli (2009, p. XXIX-XXX), esta
leitura pessoal
pode concordar com ou corrigir edições anteriores, mas sempre com margem
variável de erros e de acertos que toda interpretação implica (na pontuação,
na atualização de sinais, na grafia das palavras, na reconstituição de versos,
na ordenação das estrofes, na atribuição do texto, na identificação de
topônimos e citações etc.).
Segismundo Spina (2001) esclarece que os instrumentos indispensáveis para a
investigação filológica de textos medievais são a codicologia, a paleografia e a
diplomática, áreas que um filólogo deve dominar para não incorrer em erros
inadmissíveis. Além desses, deve o estudioso ter noções da língua, da literatura e da
história da época em que apareceu o documento original. Esclarece, ainda, que:
a publicação, porém, do mesmo documento, tendo-se em vista a apuração do
seu texto, a busca da sua genuinidade [...], é objeto de uma disciplina
denominada Edótica, que, como a História, se fundamenta no método crítico.
Entretanto, se a investigação histórica opera com documentos de vária ordem,
inclusive os literários, apenas estes últimos constituem o objeto primordial da
ciência edótica (MONGELLI, 2001, p. 379).
vezes afirmar a força do seu bem-querer superior àquela que viveu e matou o próprio Macías”.. Quanto a
essa esparsa, Maria Isabel Morán Cabanas (1996, p. 198) comenta que “o nome de Macías faz parte de
uma construção perifrástica que, com valor hiperbólico, refere a doença de amor ou o chamado amor
hereos”.. Joaquín González Cuenca, no CGHC, informa que “Macías, ‘el Enamorado’, trovador gallego
al servicio de don Enrique de Villena (es su ‘doncel’), se convirtió pronto en continuo objeto de
referencia [...] como prototípico mártir de amor y víctima de un marido celoso. A medio camino entre la
realidad y la leyenda, antes que el Romanticismo lo consagrara como trágico enamorado, ya lo había
hecho la tardía Edad Media [...] no faltando su presencia en las enumeraciones de amantes célebres o
infiernos de enamorados, como el de Garci Sánchez de Badajoz. Cantigas suyas como Cativo de miña
tristura o Amor cruel e brioso, copiados en cancioneros como el de Baena, son objeto de citas y glosas”.
(CANCIONERO General, 2004, p. 19-20, Tomo II).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
84
Não há dúvida de que a leitura de Gonçalves Guimarães é pessoal, assim como a de
Fernanda Dias; não se duvida, também, que ambos os editores se valeram dos
instrumentos básicos necessários à investigação filológica, como alega Spina, para levar
a público suas leituras dos textos que houveram por bem editar. No entanto, creio que
Guimarães não levou em conta algo substancial que é a interpretação do texto: no caso
desses dois poemas, as divergências entre as consequências do amor, na esparsa, e a
ambiguidade da dama servida, na cantiga. No Prefácio da sua edição do CGGR,
Guimarães (1910-17, p. XVII) afirma que “por mais atenção que se queria prestar a um
trabalho longo, lá vem um momento em que o espírito dormita, dá a sua pendedela, e a
obra ressente-se”. Pelo que parece, as “pendedelas” não se restringiram a apenas dois
erros de interpretação, como alegava o estudioso e como exposto acima: junta-se aos
dois a questão da coerência entre os temas dos textos.
Não obstante, se se considerar a esparsa como um poema inacabado, há de se relevar
outro fator, ainda que inconclusivo. Uma das novidades do CGGR são esses poemas de
formas mistas, como já mencionado. Poderia ser o primeiro poema, a esparsa, parte de
um poema maior, e o tema vinculando o primeiro ao segundo poema estaria na parte
supostamente omitida? Como escreveu Jorge A. Osório (2005, p. 324) “trata-se
claramente de uma trova (sic) inacabada; mas o compilador nada diz sobre a condição
do texto”; sendo assim, pode-se pensar que, não tendo Garcia de Resende criado uma
didascália para a cantiga – nem mencionado na da esparsa algo como “poema
inacabado” 19 – a leitura do Dr. Guimarães talvez não tenha sido de todo injustificada.
Referências
CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Edição princeps digitalizada. Disponível
em: <http://purl.pt/12096>. Acesso em: 04 dez. 2011.
_____. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias. Maia: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1990-1993. Volume I.
19
Garcia de Resende primava por registrar nas didascálias, à moda das “razós” provençais, o maior
número de informações possível para cada poema compilado.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
85
_____. Nova edição preparada por A. J. Gonçalves Guimarães. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1910-1917. Tomo I.
_____. Texto estabelecido, prefaciado e anotado por Álvaro J. da Costa Pimpão e Aida
Fernanda Dias. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1973-74. Volume I.
CANCIONERO General de Hernando del Castillo. Ed. Joaquín González Cuenca.
Madri: Ed. Castalia, 2004, Tomo I-II.
DIAS, Aida Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – A Temática. Maia:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. Volume V.
_____. Dicionário (Comum, Onomástico e Toponímico). Maia: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 2003. Volume VI.
DIAS, Helena Marques; CASTRO, Ivo. A edição de 1516 do Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende. Revista da Faculdade de Letras de Lisboa. IV série, n. 1, Lisboa,
91-125, 1976-1977. Separata.
ENCINA, Juan del. Arte de poesía. In: Las poéticas castellanas de la edad media. Ed.
Francisco López Estrada. Madri: Taurus, 1984. p. 77-93.
LE GENTIL, Pierre. La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du Moyen âge:
les thèmes, les genres et les formes. 2 vol. Rennes: Plihon, 1949-52.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
MONGELLI, Lênia Márcia. Fremosos cantares. Antologia da lírica medieval galegoportuguesa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. XXIX-XXX.
MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Mitificação de Macias o Namorado no
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In: Mitos (Actas del VII Congreso
Internacional de la Asociación Española de Semiótica). Universidad de Zaragoza,
Zaragoza, 1996. vol. III, p. 195-201.
OBRAS de Álvaro de Brito. Edição, introdução e notas por Isabel Almeida. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
OSÓRIO, Jorge A. Do Cancioneiro “ordenado e emendado” por Garcia de Resende.
Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, Porto, Universidade do Porto, II
série, v. XXII, 2005. p. 291-355.
SPINA, Segismundo. Ecdótica ou Edótica? Edótica ou Crítica Textual. Em:_____.
Estudos de Literatura, Filologia e História. Osasco: FIEO, 2001. p. 379.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
86
Antropônimos e Topônimos
nas Cantigas de Santa Maria
Gladis Massini-Cagliari
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara); CNPq; FAPESP
Helena Maria Boschi da Silva
Pós-Graduação – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Resumo: Este trabalho realiza um levantamento das ocorrências de topônimos e antropônimos de
origem estrangeira nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X (1221-1284), utilizando como corpus
a edição de Mettmann (1986-1989). As ocorrências de antropônimos estrangeiros são analisadas de
acordo com o sistema fonológico do Português Arcaico delineado por Massini-Cagliari (2005), de
modo a verificar o seu grau de adaptação à fonologia da língua de chegada.
Palavras-chave: nomes próprios; Cantigas de Santa Maria; fonologia; antropônimos; topônimos.
Abstract: This works aims to make a survey of toponyms and anthroponyms of foreign origin in the
Alfonso X’s (1211-1284) Cantigas de Santa Maria, considering as corpus Mettmann’s edition
(1986-1989). The occurences of foreign anthroponyms are analysed in accordance to Archaic
Portuguese phonological system following Massini-Cagliari (2005), in order to verify their
adaptation degree to the phonology of the receiving language.
Keywords: proper nouns; Cantigas de Santa Maria; phonology; anthroponyms; toponyms.
1. Introdução
Este trabalho1 objetivou realizar um levantamento de dados de todas as ocorrências de
nomes próprios, dentro das categorias dos topônimos e antropônimos, nas Cantigas de
Santa Maria (de agora em diante, CSM), focalizando os nomes de origem estrangeira.
Utilizando como corpus de suporte a edição de Mettmann (1986-1989) das Cantigas de
1
Este estudo é resultado de um trabalho de iniciação científica realizado por Helena Maria Boschi da Silva
durante o ano de 2010, sob a orientação de Gladis Massini-Cagliari, com o apoio da FAPESP (processo
2010/07316-5).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
87
Santa Maria, bem como o Glossário do mesmo autor, contido na edição de 1972 (publicada
pela Universidade de Coimbra), analisamos as ocorrências de antropônimos de acordo com
o sistema fonológico do PA delineado por Massini-Cagliari (2005), de modo a verificar o
seu grau de adaptação à fonologia da língua de chegada na época.
Por narrarem milagres realizados em várias partes da Europa, as CSM possuem diversas
referências a lugares e pessoas de outras regiões do continente, configurando-se como um
corpus bastante interessante para a análise da realização dos nomes estrangeiros pelos
falantes, principalmente por ser metrificado. Sobre isso, Massini-Cagliari (2005, p.19)
afirma que
porque os textos poéticos metrificados levam em conta o número de sílabas e/ou
a localização dos acentos em cada verso, eles acabam por trazer muitas das
informações necessárias para uma pesquisa sobre a prosódia de línguas mortas,
uma vez que, a partir da observação de como o poeta conta as sílabas (poéticas),
pode-se inferir os limites entre as sílabas das palavras e, a partir daí, sua
estruturação interna.
A produção literária da época histórica aqui focalizada, conhecida como lírica galegoportuguesa, é constituída por cerca de 1680 textos profanos (GONÇALVES; RAMOS, 1985,
p.18), registrados em três cancioneiros manuscritos (Cancioneiro da Ajuda - A,
Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B e Cancioneiro da Vaticana - V), três fragmentos
(da Biblioteca Vaticana - Va, da Biblioteca Municipal do Porto - P e da Biblioteca Nacional
de Madri - M), um “rolo” (Pergaminho Vindel - R) e uma lista de nomes dos poetas dos
Cancioneiros (“Tavola Colocciana”). Segundo Tavani (1974, p. 46), o patrimônio poético
profano é composto de 1685 textos, dos quais 431 seriam cantigas de escárnio e maldizer
(cf. LAPA, 1995), 510 de amigo (cf. NUNES, 1973, vol. II) e 735 de amor (cf. NUNES,
1972)2, além das 420 Cantigas de Santa Maria de Afonso X (PARKINSON, 1998a, p.
2
Os números de Lapa e Nunes não correspondem exatamente à soma de Tavani, mas se aproximam dela. Por
sua vez, Lapa (1929) conta 2116 composições (a lírica medieval mais rica da Europa, na sua opinião).
Sánchez e Zas (2001, p. 12) contam 1680 cantigas de caráter profano e 426 de temática religiosa. Ao contrário
de Lapa(1929), Mongelli (2009, p. XXVII) considera “escasso” o corpus galego-português, em comparação
com o provençal: “mais ou menos 1664 cantigas”. Já segundo Oliveira (1994, p. 21), em termos numéricos, o
conjunto da lírica profana galego-portuguesa soma cerca de 160 autores, que teriam produzido mais de 1700
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
88
189). Já as CSM constituem uma parte representativa desta produção literária, sendo ao
todo 4303 poemas musicados de cunho religioso, que ora contam milagres realizados pela
Santa (cantigas narrativas, ou de miragre), ora louvam a virgem (cantigas líricas, de loor)
(PARKINSON, 1998, p.179). Sobreviveram em quatro códices manuscritos (Códice de
Toledo - To, Códice rico de El Escorial - T, Manuscrito de Florença - F e Códice de los
músicos de El Escorial – E; cf. Parkinson, 1998, p.180). Para Leão (2007, p. 21), as
Cantigas de Santa Maria são “de longe a maior e mais rica coleção produzida nos
vernáculos românicos da Idade Média”.
2. Nomes próprios nas CSM
Os nomes próprios encontram-se dentro do paradigma dos substantivos, cuja função
primordial é a de denominação das diferentes entidades do mundo (coisas, pessoas,
acontecimentos, etc.) (NEVES, 2000, p.67). A separação entre os substantivos comuns e os
substantivos próprios se dá pelo fato de aqueles terem um caráter mais geral, de
denominação de classes de referentes, enquanto os nomes próprios, por outro lado,
não são nomes que se aplicam, em geral, a qualquer elemento de uma classe.
Fazendo designação individual dos elementos a que se referem, isto é,
identificando um referente único com identidade distinta dos demais referentes,
eles não evidenciam traços ou marcas de caracterização de uma classe, e não
trazem, pois, uma descrição de seus referentes (NEVES, 2000, p.67).
Realizamos o levantamento a seguir a partir do glossário de Mettmann (1972). Para as
referências dos nomes próprios utilizamos as informações dadas pelo próprio glossário, que
complementamos, no caso dos antropônimos, com informações retiradas do Dicionário
etimológico de nomes e sobrenomes de Mansur Guérios (1981).
composições, entre cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer, entre o final do século XII até
meados do século XIV.
3
430 é o número indicado por Parkinson (1998, p.179). Gonçalves e Ramos (1985, p.18), diferentemente,
contabilizam 420 textos.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
89
Nome
Abdalla
Abel
Cantiga.Verso
95.53
4.104
Aben Mafon
183.6
Abiron
240.32
Aboyuçaf, Aboyoef
Abran
Adan, Adam
Adonay
Afonso
Agostin
Aleixi
Ali
Alis
Almançor
[Martin] Alvitez
Anania, Ananias
[Sant’] Andreu
Anna
Archetecrỹo
Arrendaffe
Artur
Azaria
Bartolomeu
Basilio, Basillo
169.53; 181.1;
215.7; 323.11
95.13, 86
3.8; 213.101;
240.22; 270.19, 22;
336,48; 363.48;
411.146; 420.8
270.35
2.10, 34; 2.1, 10;
18.80; 142.6; 209.1;
221.15, 21; 229.7;
235.1, 6; 243.13;
257.6, 25; 292.41;
328.31; 345.11;
358.8; 361.12, 16;
367.1; 371.10;
386.1, 10; 393.15,
36; 398.13; 401.1
(To); 413.2
288.2, 17
131.11
358.16, 25
135.136
63.27, 69
316.18, 37
4.84; 215.41
155.24
411.16
23.3
95.56
35.92; 419.132
4.86; 215.42
334.16
15.16, 27, 38, 59,
114, 123, 132
Referência4
Árabe: ʾAbdallah (p.45)
Hebraico: Habel (p.45)
IM, rei de Niebla (cerca de 1252)
*
Hebraico: Abirão (“meu (i) pai (ab) é excelso
(ram)” (p.46)
AbYsuf Ya’q, sultão de Marrocos
(1258-1286)
*
Hebraico: Abrão (p.46)
Glossário (pág)
3
3
Hebraico: Adam (p.47)
7
Hebraico: Adonai (p.48)
8
3
3
3
3
Alemão: Alfons, deriv. de *Adalfuns (p.49)
10
Latim: Augustinus, diminutivo de Augustus
(p.49)
Latim: Aléxis (p.52)
Árabe: Áli (p.53)
*
Árabe: Al Mansur (p.53)
*
Hebraico: “graça (hanan) de Javé (lah)” (p.57)
Grego: Andréas, deriv. de andreios (p.57)
Hebraico: Hanah, Hannah (p.57)
*
*
Céltico: Artur (p.63)
Hebraico: “Javé (lah) auxiliou (azar)” (p.66)
Arameu: “filho (bar) de Tolomeu (Tholmal ou
Talmai)” (p.69)
Grego: Basíleios, Basílios, deriv. de basileios
(p.69)
10
14
15
15
16
17
19
21
21
26
28
29
38
40
40
4
Cf. GUÉRIOS, 1981. As referências com marcadas com “*” são de nomes que não constam no dicionário
etimológico, tendo sido utilizadas as informações dadas pelo glossário, quando existentes.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
90
Beatriz
5.7; 256.1, 12;
292.38
[San] Beito
265.53; 304.11
Bernal, Bernalt,
Bernaldo
35.102; 35.30, 130,
55
Bonamio
375.25
Bondoudar
165.10
Bonifaz
105.68; 122.43;
236.13
Brutus
35.41
Catelinna
54.68
César
[Santa] Cezilla
[San] Clemente,
Cremente
Colistanus
Corrade
27.16, 30, 46
89.74
195.92; 115.157
35.40
136.19
Costantin
196.18; 231.15
Cristo, Cristus
51.35; 270.32
Daniel
4.4; 270.31
Datan
240.32
6.3; 14.27; 270.27;
318.7
292.23; 5.182;
115.143; 146.87;
238.62; 245.115;
246.38; 265.101;
404.47
282.13
204.1, 4, 12, 19, 34;
359.16, 43; 398.24
Davi
Denis, Dinis
Diago [Sanchez]
Domingo
[Don Gonçalvo] Eanes
[de Calatrava]
Ebron
Elbo
Elisabeth, Elisabet
Emanuel
205.47
254.26
13.7, 32
1.21, 69.88
4.41; 146.111; 415,7
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Latim: *Beatrix (p.70)
41
São Bento
Forma popular portuguesa de Benedito (lat.
Benedictus) (p.71)
Glossário: Lyon
Germânico, Alemão: Bernhard. (p.72)
*
Encontramos Bonamin: sobrenome italiano, do
francês: “bom (bon) amigo (ami)” (p.75)
sultão do Egipto e da Síria (1260-1277)
*
Bonifácio, Latim: Bonifatius, deriv. de
*Bonifatus (p.75)
bispo de Arrás; San Bonifaz; Pero Bonifaz
Latim: Brutus (p.79)
*
Talvez de Catilina, do latim (p.89)
Latim: Caesar (p.90)
Cecília, latim: Caecilia (p.89)
41
43
44
45
45
46
56
59
59
Latim: Clemens, Clementis (p.93)
63
*
Conrado, Alto-alemão antigo: Chuonnrado,
Chuonrat (p.95)
Latim: Constantinus, diminutivo de
Constante (p.95)
Latim: Christus, do grego Christós (p.97)
Hebraico: “meu (i) juiz (dan) é Deus (el)”
(p.100)
*
65
Hebraico: Daud, Dauid (p.100)
88
Sobrenome português arcaico, do francês
Denis.
Outra forma portuguesa: Dinis (p.101)
94
*
105, 274
Domingos, Latim: Dominicus (p.104)
108
77
79
84
86
88
Patronímico arcaico, do Latim: Iohannis
(p.107)
*
Étimo controverso.
Masculino de Elba, abreviatura de nome
germânico em alba, ou do Grego: Elbó, ilha da
costa do Egito? (p.109)
Hebraico: Elishabeh ou Elisheba (p.109)
Hebraico: “Deus (El) conosco (emmanu ou
imanu)” (p.110)
112
112
113
113
113
91
Erodes, Herodes
Eva
Faraon
Fernando
Ficela [Moysy]
Fiiz
Gabriel
337.33, 38, 46;
403.15; 424.31, 38
40.31; 49.13; 60.2;
180.39; 270.19;
320.3; 340.19;
380.11; 411.92, 152
14.9
122.17; 164.3;
221.1, 11, 31;
256.11; 292.1, 8;
292.61; 71.108;
345.11; 386.10
270.34
35.121; 125.124;
135.146; 353.81
1.15; 88.17; 90.5;
180.63; 210.3, 25;
324.4; 330.8; 349.4;
410.25; 415.1, 5
Garcia
63.21
Garin
41.6
German
[Don] Gonçalvo
[Eanes de Calatrava]
Gondianda
Içá
Ipocras, Yprocras
Ysaya
James, [San] James
Jeronimo
Jeso-Cristo, JhesoCristo, Jhesu-Cristo
Jesse
Joachin
Johan, Johane, Joan,
Yoan, Yoane
Jordana
Jorge, Gorge
Joseph
Grego: Heródes (p.142)
126
Hebraico: Hawah (p.114)
136
Faraó, Egípcio: Par-a, Per-o (p.118)
139
Espanhol antigo: *Fredenando, Fernando
(p.119)
144
Latim: fiscella
*
145
*
146
Hebraico: “homem, herói (gueber) de Deus
(El)” (p.127)
153
Étimo controverso. Sobrenome Português, de
provável origem ibérica. (p.128)
*
Germanos I, patriarca de Constantinopla
153
153
28.34, 113
205.47
81.20
165.61
88.82
25.181; 70.23;
180.34; 307.7;
415.5; 270.30
26.64; 164.16;
169.34; 253.29
87.34
1.28, 51; 2.58; 13.9;
70.20; 232.5
20.2; 31.8; 411.7
411.15, 20, 36, 52,
61, 100, 123
66.24; 94.121;
138.1, 15, 62, 72;
145.11; 265.1, 10,
87, 98, 107; 272.1;
295.25; 306.17;
381.11; 419.46, 50
131.13
292.2, 86, 96
414.12; 420.19
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
155
Procedência céltica (p.130)
Étimo controverso. Visigótico: *Gundisalvo.
Latim medieval: Gundisalvus (p.133)
*
Glossário: Jesus (ARAB. ʽIsâ)
*
*
155
155
161
162
Isaías, hebraico: Ishaiah (p.147)
164
James, forma inglesa de Jaime.
Jaime, deriv. do latim *Jácomus. (p.150)
Grego: Hierónymos (p.151)
Latim: Iesus, baseado no grego Iesoûs, e
Christus, do grego Christós (p.97)
Hebraico: Ishai (p.151)
164, 275
165
166
166
Joaquim, hebraico: Ioakhin, Ioaquim (p.151)
166
João, Hebraico Iehohanan, Iohanan (p.151)
166
*
Grego: Geórgios (p.152)
Hebraico: Iosseph, Iehussef (p.152)
166
166
167
92
Lazaro
Leon
22.23; 133.28;
401.21
15.2, 17, 23, 32, 47
61, 71, 97, 108, 156,
165, 183; 27.65
381.32
206.1, 6
Libano
15.160
Judas [Macabeus]
Juyão
Locaya
Locifer
Lois
Lourenço
Lucas
[Judas] Macabeus
Madalena
Mafomete, Mafomat,
Mafomet, Mofomete
[Simon] Magos
Manuel
[San] Marçal
Marcos
Maria, [Ave] Maria,
[Reỹa] Maria, [Virgen]
Maria
Mariame
[San] Martin, Martin
[Alvitez]
Marto
167
Forma portuguesa semi-erudita de Juliano
Juliano, latim: Julianus, deriv. de Júlio (p.153)
168
Hebraico: Lazar (p.159)
Leão, latim: Leo, Leonis. (p.159)
Libânius
170
172
174
2.33
27.6
193.7
377.41, 51
59.93; 264.22
22.23; 133.28;
401.21
1.45; 425.28
28.89, 119; 95.53;
169.64; 192.104;
292.33; 328.7;
329.20; 360.27
238.55
155.64; 165.6;
278.9; 366.2, 20, 51,
65; 371.47; 376.16,
26, 30, 56; 382.57
Manuhel
Latim: Judas, do grego Iouda(s) (p.153)
342.16
81.1; 91.3; 134.2;
259.33
133.38; 292.48;
295.25; 381.11;
426.18
16.1, 42; 27.55, 56;
40.4; 42.38; 54.52;
60.22; 62.11; 71.16;
89.54; 93.23, 30;
107.22; 121.30;
185.187; 195.66;
210.5; 321.56;
363.22; 420.3;
421.5; 425.2
169.51
17.70; 245.42;
316.18, 37; 332.58
316.30
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Libânio, latim: Libanius (p.161)
Glossário: Leocádia [padroeira de Toledo –
Santa Locay’]
Dicionário: Leocádio, -a, latim: Leocadius,
deriv. de Leucadia ou Leucas (p.160)
*
Luís, francês: Louis (p.165)
Latim: Laurentius (p.164)
Latim: abrev. de Lucanus (p.165)
Macabeu, hebraico: Makkab, Makkabai
(p.167)
Hebraico: Mágdala, de maghdal (p.167)
176
176
177
177
177
167, 178
179
Mafamede, derivado do árabe vulgar
Mahummádi, genitivo. O mesmo que Maomé.
(p.168)
180
*
180, 287
Forma aferesada de Emanuel. (p.170)
Emanuel, Hebraico: “Deus (El) conosco
(emmanu ou imanu)” (p.110)
185, 186
Manuel I, Imperador de Bizâncio (1143-80)
*
186
Latim: Martialis, *Martialus (p.170)
187
Latim: Marcus (p.171)
187
Étimo controverso.
Hebraico: Miryám; árabe e etíope: Maryam;
adaptação grega de Maryám, antiga forma
hebraica. (p.171)
187
Forma árabe de Maria
*
Forma apocopada de Martino, latim:
Martinus (p.172)
Martinho, latim: Martinus (p.172)
187
17, 187
187
93
Mateus, Mateu,
Matheus
[San] Mercuiro
Merlin
Messias
[Don Ponçe de]
Minerva
[San] Migael, [San]
Miguel
Misahel
Moysen
[Ficela] Moysy
Musa
Nero
[San] Nicolas
Nuno
Octavian
[San] Pedro, Pedro [de
Sigrar], Pedro de
Solarãa
22.13; 59.93; 97.24;
133.38; 144.37;
155.9; 223.15;
251.77; 282.33;
295.24; 313.32;
353.93; 401.16
15.96, 105, 126,
136, 152
108.2, 7, 22, 38, 68,
80
65.107; 71.17;
89.66; 347.3; 383.32
69.66
86.20; 86.16;
419.101; 420.44
4.86; 215.42
270.30
270.34
79.13, 22, 32, 38, 43
67.8; 145.52
345.27, 37
306.16
8.12; 14.2, 14 23,
31, 36; 26.63; 27.51;
66.37; 69.18, 68, 77,
82; 313.32; 359.17,
42; 369.4; 389.2, 17,
40; 401.17; 419.80,
90, 97, 140, 150;
425.53
236.13
Ponç’ / Ponçe
[San] Quireze
69.16, 66
289.2, 11, 15
Recessiundo
4.70, 77
2.29
382.61, 66
Reymon, Reimundo
57.39
[Don] Rodrigo
188
Mercúrio, latim: Mercurius (p.176)
193
Personagem da “Demanda do Santo Graal”,
alteração de Myrddhir (céltico?) (p.176)
194
Arameu: Meshiha (p.177)
194
Latim: Minerva (p.178)
196
Hebraico: “quem (mikha) é como Deus (El)?”
(p.177)
Hebraico: Mishael (p.178)
Glossário: Moisés
Moisés, hebraico: Moseh, proveniente do
egípcio ms(w), mesu, mos(e): “criança”
(p.179)
*
Grego: Mousa (p.181)
Latim: Nero (p.185)
Glossário: Nicolau
196
197
197
145, 198
202
205
313.32
Pero [Bonifaz]
Rachel
Hebraico: o mesmo que Matias ou Matatias,
de Mathathiah. (p.173)
234.16
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
205
Nicolau, grego: Nikólaos (p.186)
Latim: Nunnus (p.188)
Otaviano, latim: Octavianus (p.192)
208
209
Latim: Petrus (p.199)
227
Forma proclítica e arcaica de Pedro, latim:
Petrus. (p.201)
Latim: Pontie? (p.204)
*
*
Raquel, hebraico: Rahel (p.210)
Recesvinto, rei de Espanha (653-672)
*
Reymonde de Rocaful
personalidade da corte de Afonso X
*
Raimundo, alto-alemão antigo Raginmund.
Latim – português: Reimundus. (p.209)
Forma popular de Roderico, germânico:
Hrodrik (p.213)
45, 233
239
256
257
260
262
262
267
94
Ruben
411.33
Salome
15.40; 16.1; 425.26
Salamon, Salomon
4.14
Sancha
357.11; 381.15;
398.29
282.13
Sancho
235.58; 316.21
Santiago
26.34, 49, 83;
313.32; 401.17
Siagrio
Simeon, Simeon
[Pedro]
Simon, Simon [Magos]
[Santa] Soffia
268
Salomão, hebraico: Shalumun (p.220)
273
180.14; 237.79;
270.27; 382.4
Samuel
[Diago] Sanchez
Hebraico: “filho (ben) da visão (ru)” (p.216)
Hebraico: Shalamith, Shalomit, Salomith
(p.220)
2.59
273
Hebraico: “ouvido (shamuh) por Deus (El)”
(p.221)
Sancho, -a, português-espanhol, do latim:
sanctius (p.221)
Sobrenome português, em vez de Sânchez,
patronímico de Sancho. (p.221)
Sancho, -a, português-espanhol, do latim:
sanctius (p.221)
Português, composto de Santo Iago
(Sant’Iago) (p.221)
Siagrius, arcebispo de Toledo
*
274
274
274
274
275
287
138.75; 417.2, 6, 15
Simeão, hebraico: Shimeun (p.227)
287
238.55; 363.2, 6, 20
400.12
Simão, abrev. de Simeão, Shimeun (p.227)
Sofia, grego: Sophia (p.228)
Sobrenome português, em vez de Télez,
patronímico de Telo, germânico (p.235)
Teófilo, grego: Theóphilos (p.236)
Forma grecizada, Thomâs, de Tomé,
aramaico: To’ma, Ta’ma (p.238)
Tomé, aramaico: To’ma, Ta’ma (p.238)
287
290
[Affonso] Telez
205.20, 50
Theophilo
[Santo] Tomas,
Thomas
Tome
3.1, 17, 25, 43
419.63, 105, 110,
115, 130, 152
213.11
299
300
304
304
Quadro 1. Ocorrência de Antropônimos nas CSM.
Nome
Achelas
Acre
Africa
Aguadalffajara
Aguadalquivir
Aguadiana
Alanquer
Alapa
Albeza
Alcaçar
Alcalá
Alcanate
Cantiga.Verso
222.2, 21
5.40; 9.143; 33.16; 172.6,
23; 383.28, 34, 36
95.37; 265.86; 325.14;
366.10
142.27
143.14; 366.30
273 (I); 224.16; 275.28;
347.11
271.9; 316.1 (F); 310.6
165.11
146.2, 40, 72, 88
246.7
A.16; 124.43 (lugares
diferentes)
328.13, 43
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Origem
Chelas
Glossário (pág)
5
Palestina
7
África
10
Guadalajara
Guadalquivir
11
11
Guadiana
11
Alemquer (Lisboa) – um castelo
Alepo
Albesa (Lérida)
Alcázar de San Juan (Ciudad Real)
Alcalá de los Gazules (Cádiz)
Alcalá de Guadayra (Sevilla)
**
al-Qantir, antigo nome de Puerto de
12
12
13
13
13
13
95
Alcaraz
Alecante
Algarve
Algixira
Almaria
Alquivir
178.1
339.2, 15, 55
42.12; 95.8; 149.18; 175.6;
218.2, 10; 294.16; 386.58
65.72, 101; 145.1, 10; 155.1,
17
A.9; 183.7; 277.7, 11
323.12, 359.29
192.28
143 (14.3?); 292.02?
Alvaça
382.48, 63
Alemanna
Alexandria
Alvarrazin
Alverna
Andaluzia
Arabia
Aragon
Arcilla
Arcos
Armenia
191.1, 7
66.12
83.12; 221.13; 235.7;
348.11; 367.19; 398.10
424.18
A.4; 44.7; 64.7;
161.7;169.34; 173.10;
177.10; 382.34
169.66
393.12
115.183
Armenteira
22.10
Arraz
Arreixaca
Ayamonte
Azamor
Babilonna
68.22; 105.12; 259.1, 18
169.2, 15, etc.
273.7
271.7
215.41; 427.48
A.12; 199.15; 213.36;
319.24; 213.36; 107.13;
319.24
311.22
371.7
334.16
A.15
224.20, 45, 62
1.25; 111.24; 142.43;
420.27; 424.1, 7, 22, 47
4.7
37.11
25.99; 196.17
209.18; 235.65; 123.10;
209.1
167.6
146.43
35.41; 36.2, 6; 86.11;
226.11; 23.2; 386.3
Badallouce
Barçalona
Barrameda
Beger
Beja
Beleem
Beorges
Berria
Besanço
Bitoira, Bitoria
Bolonna
Borja
Bregonna
Bretanna
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Santa Maria
Alcarrás (Lérida)
Alicante (Espanha)
13
14
Alemanha
14
Alexandria
14
Algarve
Algeciras
Almeria
*
Albesa
**
Albarracin (Teruel)
Auvergne (França)
14
14
16
16
Espanha
20
Arábia
26
Aragão (Espanha)
26
Arcila (Marrocos)
Arcos de la Frontera (Cádiz)
Armênia
Armentières (França) ou Armenteira
(Pontevedra, Espanha)
**
Arras (França)
La arrijaca (bairro de Murcia)
(Huelva)
Azemmour
Babilônia
27
27
28
Badajoz
38
Barcelona
Sanlúcar de Barrameda
Vejer de la Frontera (Cádiz)
Beja (Alemtejo)
Belém (Palestina)
40
40
41
42
42
Bourges (França)
43
Viviers (França)
Bizâncio (atual Istambul, Turquia)
Vitoria
43
43
44
Bolonha (Itália)
44
(Zaragoza)
Borgonha
45
46
Bretanha (Inglaterra)
46
17
17
17
28
28
28
38
38
38
96
Bretanna
Briançon
Burgos
Burgos
Cadiz, Caliz
Calatrava
Caldas de Rey
Çalé
Camela
Campa
Canete
Cantaaria
Caorce
135.16; 386.3; 23.2
146.2, 16
122.27; 221.25; 274.5;
292.52; 303.1; 361.1
199.14
328.36, 75, 363.40, 47, 57
205.19, 47
104.41
169.53; 328.32
165.12
215.20
97.8; 162.14
288.12
343.15
Capela
256.11
Carriço
332.12
31.9; 218.36; 227.53;
229.13; 278.23; 301.2, 11
339.20
A.1; 63.26; 180.70; 209.1;
215.61; 221.15, 25; 229.8;
232.18; 235.6, 55, 71, 80;
253.36; 257.15; 361.12;
367.16; 368.16; 398.13
38.20
242.1, 12; 249.2, 7; 252.10;
266.1, 7
48.6; 154.11; 194.5; 235.52;
312.12
15.1, 26
19.43; 169.16; 307.2, 5, 10;
335.17
24.9; 117.3, 7, 32; 148.7, 10;
362.1, 7, 34; 379.21
Carron, Carrion
Cartagena
Castela
Castro Radolfo
Castroxeriz
Catalonna
Cesaira
Cezilla
Chartes
Chincoya
Cidad Rodrigo
Claraval
Clusa
Coira
Colliure
Colonna
[Os] Combres
Compostela
Conca
Consogra
185.1, 6, 18, 33, 40, 90
225.9
42.50; 88.11
73.6
323.10, 27; 366.41
112.13
7.30; 14.13
197.12
A.3; 26.64; 367.17
162.29; 256.13
192.1; 192.20
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Bretanha (França)
Briançon (França)
46
46
Espanha
47
Burguillos del Cerro (Badajoz)
Cádiz (Espanha)
Calatrava La Vieja (Ciudad Real)
Caldas de Reyes (Pontevedra)
Salé (Marrocos)
Monte Carmelo
**
Campina de Córdova
Cañete (Cuenca)
Canterbury (Inglaterra)
Cahors (França)
Capilla (perto de Puebla de Alcocer,
Badajoz)
**
Carrizo de la Ribera (León)
Carrión de los Condes (Palencia,
Espanha)
Espanha
47
49
50
50
50
Espanha
55
Châteauroux (França)
55
Castrojeriz (Burgos)
55
Catalunha (Espanha)
55
Caesarea (Capadócia)
59
Sicília (Itália)
59
Chartres (França)
60
51
51
51
51
52
52
54
54
54
Chincolla (Villanueva del Arzobispo,
Jaen)
Ciudad Rodrigo
Clairvaux (França)
S. Michael de Clusa (Mosteiro perto de
Mont Cenis - França)
Coria (Sevilla)
Collioure (Pyrén.-Orient., França)
Colonia (Alemanha)
Cumbres de San Bartolomé ou
Cumbres Mayores (Huelva)
Espanha
Cuenca
Consuegra (Toledo)
61
61
62
63
64
65
65
66
69
70
74
97
Conturbe
Cordova
Constantinoble,
Constantinobre,
Constantinopla
296.11; 82.6; 296.1
A.5; 321.1, 10; 368.11
9.112; 34.6; 28.1, 16; 131.1,
12; 231.1; 405.1, 12; 204.2,
14; 342.2, 15
Cudejo
263.14
Cunnegro
156.36
Daconada
351.1, 7
Damista
Darouca
Doiro
Domas
Doura (Dovra)
Egipto
Elche
Elvas
Engraterra, Englaterra,
Ingraterra
Escoça
Espanna
Estremadura
Estremos
Evora
Exarafe
Faaron
Fenares
Fita
Foja
Fontebrar
Fontefria
França
182.43
43.5, 26
245.15; 267.15
9.1, 7; 165.12
35.92, 116
14.9; 422.17, 23; 165.11;
403.11; 422.17, 23
126.1, 5; 133.1, 6; 211.2, 12
213.11, 32, 92; 344.44;
399.1, 13
6.8, 13; 35.37; 85.7; 221.20;
226.1
108.10
2.9, 23; 55.5; 69.10; 95.37;
119.7; 122.16; 169.66;
175.7; 191.28; 217.39;
267.35; 268.36; 348.5;
360.27; 385.11; 386.6.8;
406.41; 198.12; 225.23
18.11; 352.13; 364.39;
368.15; 383.9; 392.28
223.16; 346.1, 10
322.1, 15; 338.1, 10
366.42
183.1, 5; 183.17
142.11
83.65; 318.10
136.2, 13
59.2, 13
365.3, 8
9.27; 16.6; 24.7; 35.13, 35;
38.19; 51.8; 62.7; 91.13;
193.7; 217.1, 13; 253.1;
254.5; 267.100; 268.2, 10;
278.19; 281.5, 46; 362.5, 10;
386.57
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Canterbury
Espanha
76
77
Constantinopla (atual Istambul,
Turquia)
79
79
Cudón, Bárcena de Cudón
**
Cluny (França)
Talvez Arconada, perto de Carrión de
Los Andes
Damiette (Egipto)
Daroca (Zaragoza, Espanha)
**
Damasco (Síria)
Dover (Inglaterra)
86
88
108
108
110
Egito
112
84
85
85
cidade
**
vila
**
113
113
Inglaterra
120, 162
Escócia
127
Espanha
130
conceito geográfico que se foi
estendendo para sul, à medida que
progrediaa Reconquista
Alto Alentejo
Évora
o Aljarafe ou Ajarafe, região nas
imediações de Sevilha
Faro (Algarve)
Henares
Hita (Guadalajara, Espanha)
Foggia (Itália)
Fontevrault (Maine et Loire, França)
Fontfroide
136
136
136
136
136
143
147
148
149
149
França
150
98
Frandes
Galilea
Galiza
Gasconna
Geen, Jahen
Genua, Jenua
Gessemani
Gormaz
Grãada
Guimarães
Irrael
Jherusalen, Jerussalem
[Val de] Josaphas,
Josafas
Laredo
Leira 
Leon
Leon
Lerida
[San Johan de] Leteran
Lisbõa, Lixbõa
Lombardia
[Sam] Luchas
Luçẽa
Lugo
Madride
Manssella
Marrocos
Marsela, Marsella
Martos
Mayorgas
Meca
Meçinna
Medina
Mynno
Molina
Monpesler, Monpisler,
Monpiler
35.110; 128.12; 139.12;
267.31
425.47
104.11; 221.16; 317.6
153.1, 8; 221.22; 341.5;
343.41; 363.5
185.10; A.5
287.1, 7; 379.21
29.9
63.2, 18, 28
185.17, 25, 53, 60; 215.55,
58; 348.41; 366.7; 386.12
238.11; 291.1
4.6; 27.67; 251.106; 417.26
5.22
419.92, 98
244.1, 10; 248.1, 9
237.39
A.2; 180.70; 215.61; 229.7;
235.6; 332.1,12; 398.13
35.15; 255.19; 362.15
168.2, 17
272.1, 12; 306.15
55.18; 222.17; 277.10
293.10; 408.13
371.48
83.21
77.2, 6
289.5; 315.1,7,10,33
335.12; 355.15
169.66; 181.1, 6, 11, 117
236.12, 22; 389.2, 17
215.21
176.1, 6
192.134
69.72
A.15
245.15
179.1, 27
63.78; 98.15; 123.28;
135.130; 235.45; 256.17;
271.14; 318.38
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Flandres (Bélgica)
150
Galileia
Galiza
153
153
**
154
Jaen (Espanha)
Genova
Gethsemane (Jerusalém)
Soria
154, 164
154, 165
155
155
Granada
155
Guimarães, Portugal
Israel
159
164
Jerusalém
166
o vale de Josafath
167
Santander
Leiria
169
171
o reino de Leão (Espanha)
172
Lyon (França)
Lérida (Espanha)
S. João de Latrão
Lisboa (Portugal)
Itália
Sanlúcar de Barrameda (Cádiz)
Lucena (Córdova, Espanha)
Lugo (Espanha)
Madrid
Mansilla Mayor ou Mansilla de las
Mulas (Leon), (ou Mansilla de
Burgos)
**
Marrocos
Marselha (França)
Jaén
Maiorca
Meca
Messina (Itália)
Medina Sidonia (Espanha)
Minho (Portugal)
Molina de Aragón (Guadalajara)
172
172
172
175
177
177
177
177
179
Montpellier (França)
198
185
187
187
187
188
189
189
189
197
198
99
Monssarrad,
Monssarrat,
Montsarrat, Monsarrat
48.2; 48.11; 52.1; 52.10;
57.3, 23, 51; 113.1, 8, 34;
302.1, 7; 311.1, 12, 21, 31
Monssarraz
Moriella
Moura
223.1, 11
161.1, 7
275.11
A.7; 169.2; 9.36, 43, 56;
239.1, 9; 339.10
129.5
365.4, 9
245.37, 120
A.14, 372.1, 10
386.38
327.8
122.26, 67; 221.27; 303.1;
361.1, 11
344.44
419.42; 426.33
7.56; 221.1, 35, 48, 63
51.8
163.1, 7; 164.36
351.2, 8
35.110; 111.2, 29; 115.145;
134.1, 7; 202.1, 43
87.8
Murça
Murvedro
Narbona
Nevia
Nevla [Nevl’]
Ocanna
Odimira
[As] Olgas
Olivença
[Mont’] Olivete
Onna
Orlens
Osca
Palença
Paris
Pavia
Pedra Salze
171.1
Peiteus
Pena Cova
Perssia
Pisa
38.18; 51.9
233.18
15.51; 265.30, 65
105.65; 132.22
127.2, 8; 262.1,7; 341.1, 41,
47; 172.28; 271.42
328.2, 46; 356.1, 6; 357.1, 7;
348.5; 358.1, 7, 38; 359.1;
364.1, 6; 366.1, 52; 367.1,
54; 368.1, 32, 36, 57; 371.1,
3, 11, 37, 53; 372.2, 7;
375.1, 28; 376.37; 377.3, 7,
42; 378.4, 28, 43, 63; 379.1,
5; 381.1, 5, 22; 382.12, 52,
67; 385.1, 26, 38; 389.1, 26;
391.1, 5; 392.1, 10, 22, 41;
393.1, 10, 17; 398.9, 39
95.9; 222.2, 16; 224.1;
235.58; 237.1; 245.15;
267.1, 15; 271.26; 275.28;
316.5; 346.10
Poe, Poi
Porto
Portugal, Portogal
Prado
276.1, 7
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
o santuário de Monserrate (Portugal)
198
Alentejo
Morella
Alentejo
198
199
200
Múrcia (Espanha)
202
Murviedro (antigo nome de Sagunto)
Narbonne
Neiva (Viana do Castelo)
Niebla (Huelva, Espanha)
Ocaña (Toledo)
Odemira (Alentejo)
202
203
205
205
209
210
Las Huelgas (Burgos)
211
(Badajoz)
o Monte das Oliveiras
Oña (Burgos, Espanha)
Orleães (França)
Huesca
Palencia (Espanha)
212
212
214
216
217
220
Paris (França)
222
Pavia (Itália)
Pedraza
**
Poitiers (França)
Peñacoba
Pérsia
Itália
224
Le Puy en Velay (França)
238
Puerto de Santa Maria (Cádiz)
241
Portugal
241
Prado de la Virgen
**
242
226
227
228
233
234
100
Prazença
Proença
Pulla
Quintanela d’Osonna
Rara
144.1, 8
121.5; 241.11; 251.1, 5;
258.6
136.1, 9; 294.1, 7
227.10
308.7
Plasencia
243
a Provença (França)
248
Apúlia
Quintanilla de Onsoña (Palencia)
Chelles (Seine-et-Marne)
Arras (França)
**
(Valencia)
(Galiza)
**
(Galiza)
**
250
256
258
Rocamadour (França)
267
Ródenas, perto de Albarrazin (Teruel)
267
Roma
267
Província do império bizantino
Espanha
**
267
268
269
Seixon (Lugo, Espanha), Soissons
(França)
**
272, 281, 293
Espanha
272
Huesca (Espanha)
272
Saldaña (Palencia)
Salerno (Itália)
273
273
Santiago de Compostela (Espanha)
275
39.6; 86.53
Mont Saint Michel (França)
274
245.12, 21
183.17
distrito de Viana do Castelo
nome de Faro (Algarve)
274
275
Raz
122.63
Requena
235.36
Ribadulla
273.32
Ribela
304.1, 8
Rocamador
Roenas
Roma
Romania
Ronda
Saba
Saixon, Seixon,
Sansonna, Sosonna,
Salamanca
Salas
Saldanna
Salerna
San Jame, San James
de Compostela
San Miguel, San
Miguel de Tomba
San Salvador da Torre
Santa Maria
8.1, 8; 22.38; 147.4, 45;
153.2, 15; 157.1, 6, 27;
158.1, 23, 28; 159.2, 7;
175.8; 214.35; 217.39;
267.27, 102; 343.1, 41
191.1, 7
5.1, 13, 23, 42, 62, 146, 162;
17.2, 8, 10; 65.46; 67.9;
115.31, 137; 145.53; 206.6;
265.56; 272.1, 11; 306.1, 11;
309.1, 6, 10, 16, 20, 36
231.23
359.24
424.16
7.46; 53.1, 6, 17, 33, 42, 46;
41.6; 49.2, 65; 61.6; 91.22;
101.9; 106.25, 32; 298.1, 10,
17, 26; 308.9
116.2, 12, 39; 291.11
43.2, 12; 44.2, 21; 109.1, 20;
114.2, 7, 32, 52; 118.1, 41;
129(?).17, 28, 37; 161.2, 8,
40; 163.2, 18; 164.1, 6;
166.2, 11, 15; 167.1, 12, 20,
27, 32; 168.1, 44; 171.1, 2,
11, 20, 29, 51; 172.1, 13, 21,
28; 173.1, 17; 176.12; 177.2,
31; 178.3, 29; 179.2, 26;
189.1, 7, 27; 247.2, 6, 19;
408.11, 30
234.10
69.73
26.17, 64
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
258
264
266
266
101
Santander
Santaren
Sant’ Estevan de
Gormaz, Sant’ Estevão
[de Gormaz]
Santiago
Santo Domingo de
Silos
Saragoça
Sardonay
[Santa Maria de] Scala
Segonça, seguença
Segobia, Segovia
Sena
Sevilla
Sigrar [Pedro de]
[Santo Domingo de ]
Silos
Silve
263.13
237.1, 14, 95, 119; 277.38;
334.42; 369.1, 13
63.2, 18, 28
26.1, 21; 175.7, 45; 184.9;
218.21, 31, 35; 253.1, 24,
81; 268.21; 278.4, 20, 40,
44; 367.17; 386.17
233.25; 368.18, 26
118.1, 7
9.1
287.1, 8, 22
383.1, 11, 48
18.12; 31.1, 21; 107.2, 7;
215.65; 276.1; 282.1, 12;
314.1, 9
219.12
A.6; 127.17; 169.36; 227.13;
257.6, 16; 292.2, 33, 52;
323.2, 10, 12; 324.1, 10;
325.19; 328.1, 12; 344.11;
345.8, 33, 66; 347.10;
348.52; 366.6, 15, 20;
371.12, 30; 375.20; 376.11,
15; 378.2, 22, 29; 379.41,
45; 382.29; 385.6, 21; 386.2,
5, 15, 42, 62; 389.10, 15
8.12
233.25; 368.18, 26
325.52
Sopetran
83.11, 30, 65
Sur, Suria
5.107; 9.29; 15. 14, 161;
28.133; 115.176
Suz, Çuz
135.121; 329.77
Tablada
Tanjar
Tocha
366.40
325.14, 57
289.1, 6, 26; 315.7, 42
A.2; 2.1, 40; 12.1, 7; 65.101;
69.2; 116.54; 122.6; 212.1,
6, 11, 32; 292.76; 318.12;
382.38; 386.16
78.1, 11, 58; 158.23; 175.8,
15, 56, 80; 195.91; 208.1,
10; 253.16
Toledo
Tolosa
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
Espanha
275
Vila de Santarem (Portugal)
275
San Esteban de Gormaz (Soria,
Espanha)
275
Santiago de Compostela (Espanha)
275
(Burgos)
276
Zaragoza (Espanha)
Santuário da Virgem perto de
Damasco (Síria)
Itália
Sigüenza
276
Segóvia (Espanha)
281
Siena
283
Sevilha (Espanha)
286
Sieglar (Alemanha)
227, 287
(Burgos)
276, 287
Silves
Abadia perto de Hita (Guadalajara,
Espanha)
287
Síria
294
276
277
280
292
Sousse (Tunísia)
**
aldeia perto de Sevilha
Tânger
Atocha
85, 294
294
296
302
Toledo (Espanha)
303
Toulouse (França)
303
102
Tortosa
Toscana
Touro
Trevynno
[Serra de] Tudia, Todia
Tui
Tunez
Ucres
Valedolide
Valença
Valverde
Venexi
Vila-Real
Vila-Sirga
[Santa Maria] Viso
Xerez
Xerez de Badallouce
165.1, 17, 25
219.11
291.1, 13, 17; 352.35
232.11
325.1, 21, 42, 76, 90; 326.1,
12; 329.11; 344.1, 9, 12, 18;
347.1, 5, 16, 28, 36, 40
386.38
193.7
205.19
235.2, 87
189.6
98.1, 15
353.23
377.19
31.8, 71; 217.2, 12; 218.1, 5,
38, 62; 227.11, 17, 52;
229.1, 9; 232.3, 31; 234.1,
21; 243.3, 10, 26, 33; 253.2,
38, 41; 268.1, 3(8?), 22, 31,
37; 278.1, 4, 9, 14, 41, 46,
50; 301.1, 6, 32; 313.2, 17,
41, 47, 61, 82; 355.1, 21, 48,
56, 86, 110, 121
352.1, 33
A.14; 124.16; 143.1, 14;
328.12, 41; 345.3, 9, 17, 43,
69, 102, 107; 359.8; 371.7;
374.3, 9; 378.63; 381.2, 7;
382.12; 391.7; 398.10
197.13; 199.15; 319.24
Tartus (Síria)
Itália
Toro
Trevinno (Burgos)
305
306
306
308
Santuário na Serra de Tudia, na parte
ocidental da Serra Morena
302, 310
Túy (Pontevedra)
*
Uclés (Cuenca)
Valladolid
Valencia (Espanha)
Vauvert (Gard, França)
Venécia / Venasque (Vaucluse)
**
Ciudad Real
310
310
310
312
312
313
316
320
Villalcazar de Sirga (Palencia,
Espanha)
320
Santa Maria Viso, perto de Redondela
(Pontevedra)
321
Jerez de La Frontera (Cádiz, Espanha)
324
Jerez de los Caballeros (Badajoz)
324
Quadro 2. Ocorrência de topônimos nas CSM.
3. Análise dos dados
Como trabalharemos com a fonologia do PA dentro do contexto dos nomes próprios, nosso
estudo enfatizou os fenômenos fonológicos intravocabulares, em especial a silabação e a
acentuação lexical. Apresentamos nesta seção as “regras” essenciais destes fenômenos,
segundo as quais basearemos nossas análises.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
103
Pensando na distribuição dos segmentos na sílaba, temos, para o PA, dezessete
possibilidades de sílabas fonéticas, segundo estudo de Biagioni (2002, p.87-88):
V (a-mi-go); CV (a-mi-go); CCV (fre-mo-sa); VV (eu); CVV (foi); CVV (mha =
miá); CVV (somente ditongos com QU-/GU-: gua-rir); CCVV (prey-to); VC (veer); CVC (a-mor); CVVC (mais); CVVC (somente ditongos com QU-/GU-:
qual); CCVC (en-trar); VN (vi-ã); CVN (en-ten-di); CVVN (somente ditongos
com QU-/GU-: quan-do); CCVN (gran).
Dentre elas, a mais comum é a sílaba do tipo CV, e a sílaba mínima é do tipo V.
Partindo dessa distribuição básica, Massini-Cagliari (2005) delineia os padrões e as
restrições dentro da estrutura linguística do PA, nos quais se baseia o resumo esquemático
do comportamento fonológico intravocabular das sílabas dessa língua, apresentado no
quadro 3, abaixo.
Margens silábicas
Simples
Complexo
Onset
Observações
posição intervocálica
posição inicial de palavras
1ª posição
2ª posição
Restrições
- não há; todas as consoantes da língua podem
ocorrer
- não ocorrem /, e ;
- ocorrem somente /p, b, t, d, k, g, f, v/
- ocorrem somente /l, /5
- as sílabas que precedem / e são sempre leves, nunca ditongos; quando
esses sons estão no onset da sílaba final, a tônica nunca cai na antepenúltima
(ou seja, a palavra nunca é proparoxítona); 6
- a sequência vl não ocorre em início de palavras;
- as sequências tl e dl são impossíveis em PA;
- o PA não possui ataques silábicos supercomplexos.
5
Conforme observa Massini-Cagliari (2005, p.96), a ocorrência de /l/ na 2ª posição pode ser considerada um
“obsoletismo”, uma vez que “a substituição de /l/ por // em clusters era um processo já bastante avançado
nessa época do PA, mesmo em discursos mais formais e que se referiam ao universo religioso, como as
CSM”.
6
Massini-Cagliari (2006) explica este fato a partir da consideração de /ʎ/ e /ɲ/ como geminadas, na época;
desta forma, não poderia haver ditongos antes dessas consoantes uma vez que a posição da semivogal já
estaria ocupada pela consoante geminada (que, por definição, ocupa a coda de uma sílaba e o onset da
seguinte, ao mesmo tempo); além disso, essas palavras não poderiam ser paroxítonas, uma vez que a
penúltima sílaba é pesada (travada pela geminada).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
104
Coda
Observações:
Sequências vocálicas
Crescente
Decrescente
Ditongo
Observações:
vogal oral +
vogal (V+V)
Hiato
Acento lexical
vogal nasal +
vogal (N+V)
Simples
- somente /l/, /R/, /S/, /N/7
Complexa
- não é permitida em PA8
- predominância de sílabas abertas;
- podem ocorrer oclusivas em posição de coda em nomes próprios nãogalego-portugueses e latinismos; nesses casos, é necessário averiguar se elas
estão de fato sendo pronunciadas na coda, se ocorre a inserção de vogal
epentética, ou se ocorre o apagamento da consoante.
Restrições
- somente duas possibilidades: formados pela vogal i seguida de a ou o ou
formados pela vogal u precedida de consoante oclusiva velar (/k/ ou /g/),
seguida de a.
- nunca ocorrem em posições postônicas no PA;
- éu, eu e iu nunca ocorrem em posição pretônica.
- grande predominância de ditongos decrescentes;
- o ditongo crescente pode ocorrer em sílabas postônicas, ao contrário do
decrescente;
- “sílabas contendo ditongos decrescentes comportam-se indubitavelmente
como pesadas nessa língua (a exemplo do que ocorre com as sílabas travadas
por consoante), atraindo para si o acento lexical, quando localizadas na
última posição silábica da palavra” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.119).
- “quando a segunda vogal de uma seqüência é diferente de /i/ e /u/ e não
pode constituir um glide de ditongos decrescentes [...], um hiato é
obrigatoriamente formado” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.140);
- V (alta) + V forma hiato;
- V + V (alta) + C (≠ /S/, incluindo a nasal) forma hiato (Ex: ainda, envayr,
sair);
- V(alta) + V + V(alta) forma hiato (Ex: liey, enviou, destruyu).
Restrições
“o acento do PA nunca pode ultrapassar a barreira de três moras, contadas do final para o início
da palavra, caindo prioritariamente na segunda mora” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.217).
- os padrões canônicos do PA são paroxítonas terminadas em sílaba leve e
oxítonas terminadas em sílaba pesada;
Observações:
- são padrões marginais oxítonas terminadas em sílabas leves, paroxítonas
terminadas em sílabas pesadas e proparoxítonas.
Quadro 3. Resumo esquemático do comportamento fonológico intravocabular do PA, baseado em MassiniCagliari (2005)
7
Os grafemas correspondentes a essas consoantes são, respectivamente, <l>, <r>, <s, x, z> e <m, n, ~>
(MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.100).
8
Apesar de haver três ocorrências mapeadas por estudiosos, Massini-Cagliari (2005, p.101) mostra que
apenas uma seria, de fato, problemática, sendo uma evidência única e, portanto, insuficiente da existência de
codas complexas no PA.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
105
De acordo com os padrões fonológicos resumidos acima, pudemos concluir que a grande
maioria dos nomes próprios encontrados, apesar de estrangeiros, encaixa-se perfeitamente
no padrão fonológico do PA e, portanto, não precisa sofrer qualquer processo de adaptação
(cf. quadro 4).
Abel
Aben Mafon
Abiron
Abran
Adan, Adam
Afonso (e
variações)
Agostin
Alis
Nomes dentro do Padrão
Beatriz
Fernando
Ficela
Beito
Bernal, Bernalt,
Fiiz
Bernaldo
Bondoudar
Gabriel
Bonifaz
Garcia
Lois
Lourenço
Nero
Nuno
Macabeus
Pedro
Madalena
Mafomete
Pero
Ponçe
Catelinna
Garin
Manuel
Quireze
Cezilla
Clemente,
Cremente
German
Manuhel
Rachel
Gonçalvo
Marçal
Recessiundo
Almançor
Corrade
Gondianda
Maria
Alvitez
Costantin
Mariame
Anania, Ananias
Cristo9
Martin
Salomon
Andreu
Daniel
Ysaya
Jeso-Cristo e
variações
Jesse
Reymon,
Reymond,
Reymundo
Rodrigo
Samuel
Anna
Datan
Joachin
Marto
Mateus e
variações
Archetecro
Denis, Dinis
Mercuiro
Sancho
Arrendaffe
Artur
Azaria
Bartolomeu
Basillo10
Bonamio
Domingo
Ebron
Elbo
Emanuel
Eva
Faraon
Merlin
Minerva
Migael, Miguel
Misahel
Moysen
Musa
Santiago
Simeon
Simon
Soffia
Johan(e),
Yoan(e)
Jordana
Jorge
Joseph(e)
Juyão
Leon
Locaya
7
Sancha
TOTAL: 98
Quadro 4. Antropônimos de origem estrangeira que se encaixam no padrão fonológico do PA.
9
Notar que essa forma trata-se da adaptação portuguesa de Cristus, do latim, que também ocorre no córpus
(somente uma vez, assim como este).
10
Embora a forma Basillo varie com Basílio, proparoxítona (e, portanto, um padrão marginal do PA), houve
somente uma ocorrência desta, contra seis da outra; portanto, optamos por considerar o nome adaptado à
fonologia do PA.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
106
Entretanto, puderam ser mapeados alguns nomes cujo padrão fonológico, por um motivo ou
por outro, não se encaixa ao padrão do PA da época. Além disso, contrariando a tendência
padrão da época, não sofrem adaptações gráficas (e nem provavelmente fonológicas, uma
vez que a forma gráfica adotada não traz pistas nesse sentido).
Entre os nomes que “escapam” ao padrão acentual do PA, foram mapeados os seguintes
proparoxítonos: Basilio, Jeronimo, Lazaro, Locifer e Theophilo. Também não se
enquadram ao padrão acentual vigente na época os seguintes paroxítonos terminados em
sílaba pesada: Cesar, Cristus, Eanes, Erodes/Herodes, James, Judas, Lucas, Marcos,
Messias, Sanchez e Telez. A terceira pauta acentual marginal apresentada pelos
antropônimos estrangeiros mapeados corresponde aos oxítonos terminados em sílaba leve:
Aleixi, Ali, Davi, Içá, Moysy, Salome e Tome.
Outros antropônimos mapeados apresentam irregularidades, se vistos a partir da ótica dos
padrões mais recorrentes da fonologia do PA, na silabação: Abdalla, Aboyuçaf, Diag,
Elisabeth/Elisabet e Octavian. Todos esses nomes apresentam uma consoante oclusiva na
posição de travamento silábico – padrão não permitido em PA.
Foram mapeados, também, alguns casos sobre os quais não foi possível decidir com certeza
a sua realização fonética, principalmente em relação à sua pauta prosódica. Dentre eles,
podem ser citados: Abiron, Libano, Nicolas, Ruben, Siagrio e Yprocras, que, por ocorrerem
somente uma vez no corpus e fora da posição de rima, não conseguimos determinar a
localização do acento, de forma que a análise tornou-se inviável.
E, por fim, também houve casos que, embora bastante minoritários, levantam uma questão
importante para este trabalho: em que medida os usos estilísticos, próprios da literatura,
poderiam afetar as análises dos dados? Os casos mais expressivos desse dilema são os
nomes Brutus e Colistanus, que, por serem derivados do latim, esperaríamos encontrar uma
realização paroxítona no PA, mas aparecem rimando entre si como oxítonos na cantiga 35:
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
107
“Dun mercador que avia | per nome Colistanus,
que os levass’ a Bretanna, | a que pobrou rei Brutus;
e entrou y tanta gente | que non cabian y chus,” (CSM 35.40-2)
A escansão dos versos, todos heptassílabos, e o fato de rimarem com o monossílabo tônico
chus, não deixa dúvidas em relação ao acento na sílaba final. Mas não conseguimos afirmar
com certeza se se trata, realmente, de uma realização oxítona, que estaria dentro do padrão
fonológico do PA por ser a sílaba final de ambos os nomes pesada, ou se se trata somente
de um uso estilístico do trovador que compôs a cantiga, com a finalidade de manter a rima.
Conclusão
Este trabalho realizou um levantamento de todas as ocorrências de nomes próprios, dentro
das categorias dos topônimos e antropônimos, nas Cantigas de Santa Maria, a partir da
edição de Mettmann (1986-1989) e do seu Glossário de 1972. Partindo desses dados, foram
feitas análises de todas as ocorrências de antropônimos de acordo com o sistema fonológico
do PA delineado por Massini-Cagliari (2005).
O estudo contabilizou 98 nomes considerados adaptados à fonologia do PA, ou seja,
71,53% do total de dados analisados. Assim, como um resultado geral das análises
realizadas, pudemos perceber que a maior parte dos nomes encontra-se adaptada aos
padrões do sistema fonológico do PA.
Pelo que se pode depreender do pequeno recorte de material analisado neste artigo, pode-se
ver que o estudo de nomes próprios constitui-se em um domínio bastante promissor, em
termos da investigação da identidade fonológica de uma língua. Especificamente com
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
108
relação aos nomes analisados neste trabalho, percebe-se que o grau de adaptação de
antropônimos estrangeiros na época do PA pode ser considerado bastante acentuado. 11
Referências
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Lingüística)-Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, Araraquara, 2002.
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aumentada. São Paulo: Editora Ave Maria Ltda., 1981.
LAPA, M. R. Das origens da poesia lírica em Portugal na Idade-Média. Lisboa: edição do
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_____. Cantigas d'escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais portugueses. 3. ed.
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LEÃO, Â. V. Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio: aspectos culturais e
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MASSINI-CAGLIARI, G. A música da fala dos trovadores: Estudos de prosódia do
Português Arcaico, a partir das cantigas profanas e religiosas. (Tese de Livre Docência.
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11
Ao contrário do que acontece atualmente no Português Brasileiro (cf. MASSINI-CAGLIARI, 2010, 2011).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
109
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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
110
A estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra
ou Coronica do Condestabre
Maria do Amparo Tavares Maleval
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo: Nun’Álvares Pereira (1360-1431), pelo papel decisivo que desempenhou na fundação
da dinastia de Avis, é uma das figuras mais emblemáticas da história do Portugal tardomedievo. Da crônica que trata da sua vida e dos seus feitos, de autor anônimo, foi feita uma
edição crítica por Adelino de Almeida Calado, publicada em 1991, por ordem da Universidade
de Coimbra. Pretendemos, com base nessa edição e após acompanhar-lhe o processo de
editoração, estabelecer reflexões sobre a obra, analisando-a tendo em vista principalmente o
perfil de cavaleiro (quase) perfeito que nela é construído.
Palavras-chave: Crônica senhorial; Biografia; Baixa Idade Média; Edição crítica; Cavalaria
cristã.
Résumé: Nun´Álvares Pereira (1360-1431), grâce au rôle décisif qu´il joua dans la fondation de
la dinastie d´Avis, représente une des plus emblématiques figures de l´histoire du Portugal
tardo-médiéval. À partir d´une chronique anonyme qui dépeint la vie et les faits de
Nun´Álvares, Adelino Calado établit, en 1991, une édition critique publiée avec le concours de
l´Université de Coimbra. Ayant comme base cette même édition dont nous avons accompagné
les démarches du travail éditorial, nous en proposons une étude, surtout tout en reflechissant sur
les traits du profil de chevalier (quasiment) parfait y ébauchés.
Mots-clés : Chronique
seigneuriale; Biographie; Bas Moyen Age ; Edition critique ;
Chevalerie ; Héroïcité; Religiosité.
1. Introdução
Uma das mais importantes publicações de fontes primárias medievas nas últimas
décadas foi, sem dúvida, a Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra, título dado por
Adelino de Almeida Calado à cuidadosa edição crítica por ele preparada da Coronica do
Condestabre, acompanhada de elucidativas Introdução e Notas, além de Glossário, e
publicada em Coimbra, por ordem da Universidade de Coimbra, em 1991.
Já no Prefácio, também de sua autoria, o filólogo destaca a “singularidade e interesse da
Coronica no plano da historiografia medieval portuguesa” (CALADO, 1991, p. V).
Indubitavelmente, o fato de retratar a vida e os feitos do Condestável, sendo disto a
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
111
fonte mais recuada que chegou aos nossos dias, já por si justificaria tal avaliação. Isto
porque Nun’Álvares Pereira, que viveu de 1360 a 1431, foi o principal esteio do Mestre
de Avis na Revolução de 1383-1385, que livrou Portugal de um iminente domínio
castelhano e resultou no advento da fecunda Dinastia de Avis, sob a qual deu-se a
expansão ultramarina. E dele se originou a Casa de Bragança, cujos descendentes
ocupariam mais tarde o trono português e seriam titulares de outras prestigiosas coroas
européias – fato enaltecido no frontispício da edição princeps da obra (1526) pelo editor
e que, inclusive, justificaria a sua publicação.
As referências a ela feitas pelos cronistas quatrocentistas indicam ter a obra existido em
manuscrito provavelmente escrito não muito depois da morte do Condestável, ocorrida
em 1 de abril de 1431. Fernão Lopes aproveita-o, ao manuscrito original ou a uma sua
cópia imediata, quase que totalmente nas crônicas de D. Fernando e de D. João I –
mesmo que por vezes criticando essa fonte, dando-lhe uma redação diferente mas de
igual conteúdo, ou eliminando-lhe ou acrescenta-lhe algumas passagens; embora
indicando haver mais de uma versão dos feitos do Condestável, mostra, via de regra, a
sua preferência por esta. E Gomes Eanes de Zurara (1841, p. 4), na Cronica da
conquista de Guiné, a ela se refere como narrativa autônoma dos feitos de Nun’Álvares,
escrita “apartadamente” das “geeraaes cronicas dos rex”.
Mas nenhum manuscrito da obra perdurou, embora, pelo cotejo entre passagens da
edição princeps de 1526 e da Crônica de D. João I de Fernão Lopes, possamos aferir
que acréscimos foram feitos ao manuscrito original, concernentes aos títulos
nobiliárquicos concedidos aos descendentes de Nun’Álvares antes da sua escrita, em
1422, ou após esta, a partir de 1451. Foi elaborado, ao que tudo indica, na década de
1430; e nele teriam sido feitas interpolações entre 1461 e 1481, do que resultaria o
manuscrito usado por Germão Gualharde na edição de 1526. Calado aventa como
hipóteses para o seu desaparecimento o ter sido então suplantado em qualidade pela
edição especial pergaminácia ou haver-se degradado no processo de impressão, já que
na tipografia eram os manuscritos “desmembrados em cadernos ou conjuntos de folhas
distribuídos por vários oficiais para serem compostos simultaneamente” (CALADO,
1991, p. LXXI).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
112
Diversos especialistas tendem a situar a redação da obra no período que corre de 1431 a
1443, respectivamente o ano em que faleceu o Condestável e a data referida por Fernão
Lopes como sendo a da escrita do capítulo CLXIII da Crônica de D. João I, parte
primeira, na qual muitos trechos da biografia são transcritos. Este cronista é quem
testemunha, aliás, nada ter sido escrito sobre Nun’Álvares enquanto o mesmo vivia
(LOPES, p. 56). Já Calado, abandonando outras hipóteses relacionadas com um sermão
e com o processo de canonização de Nuno Álvares, observa, como já o fizera Salvador
Dias Arnault (1951, p. 150; nota), que já na Crônica de D. Fernando, escrita antes da de
D. João I, a partir de 1436, o cronista se aproveitara largamente de passagens da
biografia do condestável. Daí considerar 1436, e não 1443, como data finalizadora da
escrita da Estória de Nuno Álvares.
A obra é anônima, muito embora rios de tinta tenham corrido no passar dos tempos até
chegar-se a tal conclusão. A atribuição de autoria da obra a Fernão Lopes foi uma
hipótese derrubada por Hernâni Cidade (1931), seguido por outros especialistas como
Costa Pimpão (1959) e Machado de Faria (1972). Não apenas a superioridade estilística
de Fernão Lopes, defendida por Cidade, mas também a atitude diferente diante dos fatos
distanciam o cronista do anônimo escritor da biografia de Nuno Álvares, além de que D.
Duarte o encarregou de escrever a história dos reis, não de fidalgos. Também outras
hipóteses de autoria não têm consistência, como por exemplo a sua atribuição a Gil
Airas (escrivão da puridade do Condestável), a um outro seu servidor (talvez militar) e a
um frade carmelita.
A individualidade do autor anônimo – apesar de Fernão Lopes se referir a ele no plural,
mas fazendo-o também em relação a Pero López de Ayala – pode ser comprovada,
como defende Calado (1991, p. LXXXII), na uniformidade do estilo singelo,
desataviado de ornamentos retóricos, direto; nos processos narrativos e na obediência a
um plano baseado na lógica e na ordem cronológica dos acontecimentos, recolhidos das
fontes narrativas e documentais.
Tais características da obra, portadora ainda de
vocabulário rico e adequado, indicam que o seu autor possuía uma certa cultura literária,
embora não livresca, já que não há nela referências a fontes literárias bíblicas ou
clássicas.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
113
Essa individuação pode ser entrevista inclusive na autorreferência feita pelo autor
através da primeira pessoa do singular – pode-se considerar que, quando usa a primeira
pessoa do plural, busca associar autor / texto / leitor; e quando usa a terceira, objetiva a
impessoalidade.
O destaque que é dado na obra a feitos militares, no entanto, não prova ser o autor um
especialista na arte bélica. Nem muito menos um clérigo, sendo o lado religioso do
Condestável nela menos acentuado que o militar. Ao que tudo indica, não seria sequer
uma testemunha presencial dos acontecimentos que narra, que abrangem 58 anos, de
1373 a 1431, descritos com pormenores que o autor não poderia ter de todo
acompanhado. Foi sim, incontestavelmente, um profundo admirador do biografado,
destacando-lhe mais as virtudes de cavaleiro que as do santo cujo modelo é Galaaz, sem
no entanto deixar de assumir uma visão providencialista da história em que os sucessos
bélicos (e outros) se imputam à intervenção divina. Também é indiscutível o seu
exaltado nacionalismo, demonstrado na expressão recorrente “verdadeiros portugueses”,
em oposição aos partidários de Castela.
Acrescentaríamos que o autor não apenas elogia o Condestável, mas não perde nenhuma
oportunidade para colocá-lo como vítima da inveja e da maledicência dos seus pares,
ainda que parentes – o que, no campo das possibilidades, poderia fazer-nos acreditar ser
ele não nobre, ou pelo menos não pertencente à ala fidalga contrária ao seu herói. E, se
não é imparcial, devido ao seu nacionalismo, crença religiosa e veneração pelo
Condestável, no entanto, a raridade de cópias produzidas, cujo desaparecimento foi
inevitável, indica ter sido a elaboração da obra fruto mais de “um esforço pessoal digno
de admiração”, do que de engajamento partidário (CALADO, 1991, p. C).
Enfim, escrita imediatamente após a morte do fidalgo, o seu valor decorre também do
fato de, em versão impressa, ser a “única crónica biográfica senhorial chegada ao nosso
tempo”, como destaca Teresa Amado, ocupando “lugar excepcional” na literatura
portuguesa (AMADO, 1993, p. 187). Inclusive por ter servido de fonte ao genial
cronista-mor Fernão Lopes, que, nas crônicas de D. Fernando e de D. João I, “só não
usou oito dos oitenta capítulos que a compõem” (AMADO, 1993, p. 187); embora
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
114
Lopes indique a existência de outras fontes escritas sobre o Condestável, nenhuma seria
tão completa, “se acreditarmos que foi justo o critério que o levou a dar-lhe primazia”
(AMADO, 1993, p. 187).
Mas tal obra, cujo valor historiográfio e literário tem sido reconhecido pela crítica
especializada, careceu por muito tempo de uma edição crítica. Como acentua Calado
(1991, p. V), “continuava a não existir uma edição que em rigor pudesse chamar-se de
crítica, pelo que os estudiosos não dispunham de um texto seguro para utilização nas
suas vertentes de documento histórico e de peça literária e linguística”; daí ter-se ele
dedicado à fixação do texto, enfrentando os problemas relativos às edições conhecidas
da obra, bem como os suscitados pelo próprio texto, pois “a chamada Coronica do
Condestabre continuava a ser menos conhecida do que merecia” (CALADO, 1991, p.
V).
2. As edições quinhentistas
A primeira edição, de 1526, foi impressa pela oficina de Germão Gualharde, em Lisboa.
Mendes dos Remédios (1911) levantou a hipótese da existência de uma edição anterior
tendo por base a seguinte informação do (sub)título, relativa ao modo de
estabelecimento do texto: “sem mudar da antiguidade de suas palauras nem stillo”. Mas,
conforme demonstrou António Machado de Faria (1972), o desconhecimento do
manuscrito ou de outra edição anterior tornam inconsistente tal hipótese. E Calado
(1991) conclui ser a edição de 1526 a primeira, já que seria “extremamente improvável”
uma impressão anterior e na obra não ocorre nenhuma referência a tal possibilidade.
Observa, ainda, a “confusão entre redação e edição”, que teria levado Mendes dos
Remédios a nela pensar (CALADO, 1991, p. X-XI).
Calado, inclusive, após observar minúcias das características materiais dessa primeira
edição – como as concernentes à xilogravura, ao estilo caligráfico, à grafia, ao
caracteres góticos utilizados e ao formato harmonioso, que lhe imprimem sobriedade e
dignidade –,
passa a discutir as condições da imprensa e do mercado livreiro em
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
115
Portugal à época. Então, os livros mais vendidos eram os religiosos, os didáticos, os
jurídicos, as novelas de cavalaria, as hagiografias e a história clássica, de recente
aparição nesse mercado. Seria, pois, não lucrativa a edição da biografia de um herói
nacional, sendo de estranhar que, apesar disso, fosse elaborada e publicada não apenas
em papel, mas também em pergaminho, ao mesmo tempo. Além do mais, em 1554 o
próprio Germão Galharde faria uma segunda edição da obra, o que indica não ter tido
ele prejuízo com o empreendimento.
Uma das hipóteses levantadas é a de que o duque de Bragança à época (1526), D. Jaime
(1479-1532), fornecera subsídios ao editor para livrá-lo de prejuízo. Isto porque, como
se destaca no (sub)título, o Condestável Nuno Álvares Pereira foi o “principiador da
casa q agora he do Duque de Bragãça”; a este, logicamente, interessaria divulgar a
biografia com os grandes feitos do seu antepassado. E mesmo que não tivesse partido de
D. Jaime a iniciativa da publicação, uma outra hipótese é que poderia, pelo menos, ter
fornecido ao editor o manuscrito em que a edição se baseara, “eventualmente existente
nos arquivos” da casa ducal (CALADO, 1991, p. XXVII). O certo é que Galharde não
apenas publicou uma segunda edição da obra, mas, um ano após o primeiro
investimento, em 1527, a biografia de outro vulto nacional – a Cronica do sancto, e
virtuoso Iffante dom Fernando, filho de D. João I.
Da edição princeps de 1526 só se conhecem hoje dois volumes em Portugal: um
impresso em pergaminho, pertença da Biblioteca Nacional, e outro em papel, da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Ao que parece, Galharde ter-se-ia
baseado em um manuscrito bem conservado,
pois não se notam no texto impresso vestígios de lacunas nem truncagens de
capítulos, nem saltos na narrativa que denunciem falta de folhas ou folhas
rasgadas. Por outro lado, o manuscrito seria bastante legível para um vulgar
compositor tipográfico, pois as dificuldades de interpretação detectáveis
situam-se na área dos nomes de pessoas e de lugares, e podem atribuir-se
inclusivamente ao copista do próprio manuscrito (CALADO, 1991, p. XXX).
As características da edição indicam que Galharde, francês de origem e estabelecido
como impressor em Lisboa em 1519, teria tido um auxiliar acadêmico no processo de
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
116
editoração – alguém com competência linguística, cujo trabalho culminaria na revisão
das provas. Como observa Calado, essa presença
é possivelmente atestada pelo subtil equilíbrio entre a manutenção de formas
já então arcaicas e a modernização gráfica de algumas outras que poderão ter
parecido tão semelhantes no sentido e no uso ainda corrente, que pouco
sofreriam com uma ligeira ‘actualização’. Esse trabalho não seria fácil para
um estrangeiro fixado em Portugal cerca de sete anos antes (CALADO, 1991,
p. XXXI).
Portanto, o impressor, até hoje respeitado, diante desse êxito editorial e da permanência
do interesse pela figura do Condestável levaria a cabo a segunda edição da obra,
publicada em 1554. Sua semelhança material com a princeps é evidente no formato, no
número de fólios – cada um com duas colunas onde se busca a coincidência também do
texto –, na letra gótica de forma utilizada, nos títulos-ementas dos capítulos – iniciados
por capitais decoradas –, na utilização da gravura representativa do Condestável com
traje de
cavaleiro armado. Mas acrescenta outra gravura do Condestável, como
religioso carmelita em gesto de oração. Também a página do título é modificada ao
gosto da época e atualizada, com acréscimo da referência aos descendentes ilustres da
Casa de Bragança em 1554, como o rei D. João III de Portugal e o imperador Carlos V.
Observa ainda Calado (1991, p. XXXII-XLI), dentre outros aspectos, que esta segunda
edição não apresenta nenhum aperfeiçoamento no aspecto gráfico – antes, ao contrário,
parece ter utilizado caracteres já gastos; e as capitais são menos ornadas e de tamanho
irregular. Quanto ao texto, constatou que foram mantidos muitos dos erros e dúvidas da
primeira edição; e quando se buscou consertá-los, novas falhas foram por vezes
acrescentadas. Ao que tudo indica, não se procedeu à colação de textos, utilizando-se
tão somente a primeira edição. E a integralidade do texto relativamente à primeira
edição, bem como a ausência de rasuras, indicam que, embora publicado em plena
vigência da censura inquisitorial, não sofreu-lhe sanções, talvez pelo caráter
exemplarmente piedoso atribuído ao Condestável. Noticia ainda Calado (1991, p. XLI)
que dela poucos exemplares podem ser encontrados – são referidos dois na Biblioteca
Nacional, um no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, um na Biblioteca da Ajuda e
um em Estugarda.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
117
3. As edições posteriores
A terceira edição da obra surgiu em 1623, publicada em Lisboa por António Álvares,
impressor e comerciante de livros. Apresenta pequenas modificações em relação à de
1554, que lhe serviu de base, dentre elas a substituição dos caracteres góticos pelos
redondos, ligeiras alterações na grafia, um parecer do jesuíta Doutor Baltasar Álvares,
censor da Inquisição, bem como autorização para impressão, taxação, dedicatória
redundante e convencional ao Duque e colofon – em que fica claro inclusive que a
edição foi feita única e exclusivamente às espensas do editor. Escrita no período da
dominação filipina, inscreve-se no rol das obras que buscaram manter bem acesa a
chama do nacionalismo – por exemplo, também Francisco Rodrigues Lobo publicara, à
época, um poema épico sobre o Condestável, com segunda edição de 1627.
A quarta edição remonta a 1848, publicada no Porto pela Tipografia Constitucional com
características materiais típicas de meados do século XIX, bem diversas das edições
anteriores: formato 16cm X 23cm, mancha única por página, etc. Na Advertencia
apresenta, segundo Calado (1991, p. XLVIII), uma informação incorreta: a de que
apresentaria uma gravura do Condestável conforme a edição latina de 1723, elaborada
por António Rodrigues da Costa, mas inexistente nos exemplares consultados por
Calado (1991, p. XLVIII). 1
A quinta edição foi feita por Mendes dos Remédios em Coimbra, 1911. Ao que tudo
indica, tomou por base a edição de 1526, através do exemplar da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, inclusive reproduzindo desta a página do título e o retrato do
Condestável. Desconhecia a edição de 1554, pois se refere à de 1623 como a seguinte
àquela (CALADO, 1991, p. XLIX).
No Prefácio, levanta a inconsistente hipótese, já referida, da existência de uma edição
anterior à de 1526; e estabelece comparações entre a obra e a Choronica do Infante
Santo D. Fernando, também por ele editada anteriormente, concluíndo que a Coronica
1
Calado observa que foi esta quarta edição a declaradamente utilizada como fonte por Oliveira Martins
para A vida de Nun’Álvares Pereira (CALADO,1991, p. XLVIII).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
118
do Condestabre teria sido escrita à época do biografado ou imediatamente após a sua
morte. Para reforçar tal idéia, refere-se ao aproveitamento por Fernão Lopes de partes
da biografia. E, ainda, a obras posteriores que a tiveram por base.
Não possui notas, mas um “Vocabulário” anexo, “um misto de glossário e índice
toponímico” não aprofundado, mas útil e bem fundamentado, na avaliação de Calado
(1991, p. L); e fala da sua intenção de fidelidade ao texto da edição de base. Da mesma
forma que as edições anteriores, dela se conhecem raros exemplares.
Entre essa quinta edição e a próxima, em 1969, comemorando a inauguração das suas
novas instalações, a Biblioteca Nacional fez uma reimpressão fac-similada da primeira
edição em pergaminho de sua propriedade. Inclusive a cor e o desenho da encadernação
fazem-lhe jus.
A sexta edição foi efetivada em 1972 por António Machado de Faria, membro da
Academia Portuguesa de História. Contém introdução – em que se ocupa dos problemas
textuais e apresenta, de forma integral, as passagens da obra aproveitadas por Fernão
Lopes –, glossário, índice onomástico e índice toponímico. Segundo Calado (1991, p.
LII), o bom nível da Introdução contrasta sensivelmente com a, a seu ver, desastrosa
transcrição modernizada do texto de 1526, objetivando alcançar um público vasto, não
erudito. Nela procedeu-se à supressão de casos típicos da grafia do século XV, ao
acréscimo de outros omitidos sistematicamente pelo original, à acentuação exagerada ou
à pontuação equivocada, sem solucionar os erros e lacunas da edição princeps, mesmo
os indicados pela edição de 1554. Daí colocar-se “algures entre uma exigente edição
crítica e uma edição decididamente modernizada”, quedando-se “num ponto intermédio
para o qual não há nenhum público definido” (CALADO, 1991, p. LII).
4. A última edição
A sétima edição, efetivada por Adelino de Almeida Calado e publicada em 1991, como
ele próprio defende é a única edição crítica da obra no sentido em que esta é entendida
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
119
modernamente: busca respeitar as formas vocabulares arcaicas, proceder à transcrição
fidedigna do texto, facilitar a sua leitura e compreensão mas baseando-se em acurado
estudo visando a reconstituição e aperfeiçoamento do original, para o que concorre a
colação com outras edições.
Neste sentido, serviu-se Calado, à falta do manuscrito de base, da edição impressa mais
antiga, a princeps, de 1526, buscando sanar-lhe as gralhas e flutuações gráficas, a
coexistência de formas arcaicas e modernas, indicativas de falta de rigor filológico na
transcrição.
A edição princeps já desde o título indicava, como vimos, haver respeitado a
“antiguidade” das palavras e estilo da cópia manuscrita possivelmente do último quartel
do século XV, cujo original teria sido redigido entre 1431 e 1436 (CALADO, 1991). Se
a grafia de algumas palavras já se encontra modernizada, semelhante à da outra, já
referida, publicação coeva do mesmo editor, no geral o texto “conservou provas
genuínas do seu arcaísmo” (CALADO, 1991, p. CXLV) – exemplos: termos como
aadur, terminações –om e -ees, formas verbais como anojedes (d intervocálico) e
sabudo (terminação -udo). São detectadas principalmente nos discursos diretos, o que
aponta para a maior antiguidade das fontes dos mesmos.
Apresenta alguns castelhanismos, em termos que não eram comuns aos dois idiomas
(português e castelhano) à época da redação do texto. Dado que o autor da obra, no
correr da mesma, firma o seu nacionalismo extremado – por exemplo através da
recorrente expressão “verdadeiro português” –, é possível que se tratem de formas
espúrias, devidas ao compositor tipográfico ou ao revisor de provas. Por esse motivo, na
sua edição crítica Calado substituiu essas formas pelas correspondentes em português.
No geral, a linguagem utilizada apresenta pobreza de vocabulário, com repetições e
redundâncias para o alcance da clareza de expressão, com a finalidade de passar ao
leitor de forma mais precisa os acontecimentos. Calado testemunha que raramente teve
de intervir com um esclarecimento em nota para tornar o texto mais compreensível.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
120
Alguns processos recorrentes de construção e encadeamento de frases podem ser
encontrados em outros textos em prosa da época, como por exemplo os de Fernão Lopes
– exemplos: frases iniciadas pela copulativa E, anteposição dos complementos do
sujeito e do predicado, uso do gerúndio e do ablativo, etc. Ao fixar o texto, Calado
corrigiu, quando necessário para a compreensão, o discurso indireto, frequentemente
usado, e a sua combinação com o discurso direto, acrescentando aspas ou expressões
como “responderam que”.
Além dessa edição princeps, Calado também usou a segunda edição, de 1554, para
cotejo e eleição da melhor forma a ser adotada na fixação do texto e resolução de
passagens obscuras.
Enfim, frisa ter seguido o método proposto em síntese por Carolina Michaëlis de
Vasconcelos (CALADO, 1904, p. XII): inserir modificações ortográficas tendo em vista
facilitar a compreensão do leitor mas sem desfigurar o seu caráter arcaico. Para tanto,
adotou os seguintes critérios de transcrição: desenvolvimento de abreviaturas (por
exemplo o til); separação ou junção de palavras (por ex. afazer – a fazer; ja mais –
jamais, etc.); uso do ponto alto para separar (não se usava à época o hífen ou o
apóstrofo); conversão de u em v, i em j e vice-versa; conversão de u com valor de n em
n e vice-versa; uso de maiúsculas em nomes próprios (pessoas, lugares, instituições,
datas consagradas) e em início de período e de discurso direto; uso de minúsculas de
acordo com o sistema vigente de pontuação (por exemplo: delRey - del∙rei); etc. Quanto
à apresentação gráfica do texto, não foram usados sinais convencionais indicativos das
alterações feitas, quando estritamente necessárias, no texto-base. Nisto desenvolveu,
usando-o sem exceções, o critério já utilizado por Giuliano Macchi para alguns caso
(CALADO, 1991, p. CXCII). E a edição é enriquecida com minuciosa Introdução, além
de Glossário dos termos com particularidades gráficas ou semânticas e Índices
onomástico e toponímico.
Gostaríamos de comentar a modificação feita por Calado, respeitante ao título da obra.
No sentido de reconstituir e apurar a forma original, ao invés de ‘coronica’ ou crônica
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
121
chama à obra ‘estória’, divergindo de todas as edições anteriores. Na defesa de tal ato,
assinala que
1º. O texto não é, no âmbito das concepções historiográficas da sua época,
uma crónica, mas sim uma estória;
2º. O título de “crónica” é, no caso em questão, uma criação do seu editor
quinhentista;
3º. O próprio texto fornece elementos que justificam e sugerem o título que
ora lhe atribuímos (CALADO, 1991, p. LIV).
Observa que Fernão Lopes usou os dois termos para designar a sua obra, mas D. Duarte
utilizou o termo “poer em caronyca as estorias dos Reys ” quando encarregou-o desse
mister. Da expressão, Calado conclui pela abrangência maior do termo ‘crônica’ –
historiografia nacional, história geral do reino, crônica de reinados, reunindo vários
acontecimentos julgados relevantes, em oposição à restrição destes na ‘estória’,
subordinados que são à figura central.
Abandona o conceito derivado da etimologia de ‘crônica’, uma vez que a ordenação
cronológica é normalmente usada em quaisquer textos de história, inclusive no que se
denominava à época como ‘estória’. Esta, denominaria mais especificamente as
biografias ou acontecimentos em si próprios, textos autônomos à margem da
historiografia oficial, podendo por esta serem incorporados. Zurara (1915, p. 124; 1841,
p. 4) é autoridade da época evocada para o sustento da distinção entre os termos.
Para Calado, o que teria acontecido foi uma atualização feita pelo editor Germão
Galharde, da mesma forma que incluiu no título informações posteriores à época da
escrita da crônica, relativas à casa de Bragança e seus descendentes ilustres, mudando
esses dados na segunda edição, já que outros descendentes poderosos sobressaíram no
período corrente entre as duas edições. Lembra que esse editor também mudou,
comprobatoriamente, o título do manuscrito quatrocentista Trautado da vida e feitos do
muito vertuoso senhor ifante dom Fernando para Cronica do Sancto, e virtuoso Iffante
dom Fernando, que publicou em 1527 – o que indica ser tendência crescente no século
XVI nomear por ‘crônica’ aos diversos tipos de escrita historiográfica, inclusive as
biografias e outros textos monográficos.
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122
E demonstra que a própria obra se autorreferencia como ‘livro’, ‘estória’ ou ‘conto’,
nunca como ‘crônica’. Possivelmente não teria sequer um título (CALADO, 1991, p.
LX), que poderia ter-lhe sido acrescentado por Galharde de acordo com a tendência
terminológica da época. E o que ora apresenta Calado em seu intento de reconstituição,
embora para ele óbvio, como ele próprio considera “teve dificuldade em abrir caminho
perante a resistência de um título que se tornara tradicional desde o século XVI”
(CALADO, 1991, p. LXII). Daí especialistas como Teresa Amado optarem por chamar
à obra de uma “crônica biográfica” (AMADO, 1993, p. 187).
Por fim, vale ser destacada uma particularidade dessa “crônica biográfica”: a ausência
de datas, até mesmo das cartas que apresenta, que têm de ser reconstituídas com base
em informações externas sobre os acontecimentos relatados. Felizmente que esta sua
lacuna foi preenchida por Calado na sua edição crítica da obra, proporcionando um
maior entendimento dos fatos.
5. Características da composição
No que concerne à gênese e composição da obra, o seu anônimo autor teria procedido à
recolha
das
fontes
narrativas,
principalmente,
e
documentais;
ordenado
cronologicamente e harmonizado as versões, estruturando-a em capítulos. O resultado é
uma “biografia completa [focalizando o herói a partir dos 13 anos], ordenada numa
sequência cronológica, rica de pormenores, viva na sua maneira de relatar os
acontecimentos e de retratar as personagens” (CALADO, 1991, p. CVII).
Os capítulos são encabeçados por títulos, alguns dos quais verdadeiras ementas, outros
meramente indicativos e até desproporcionais em relação à importância da matéria de
que tratam, como ocorre relativamente às batalhas de Atoleiro, Aljubarrota e Valverde.
A ligação entre eles se estabelece também por expressões de orientação ou indicativas
de mudança de foco, do tipo “Mas ora leixa o conto de falar na dita batalha (...) e torna
em como [Nun’Avrez] foi buscar Martym Anes de Barvudo, que da batalha fugira, a
Monforte, honde lhe foy dito que estava” (Estoria, 1991, p. 69). Isto concorre para
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123
demonstrar que a obra obedece a um planejamento, é “subordinada a um plano coerente
que estabelece a solidariedade entre todas as suas partes”, não “um trabalho rudimentar,
primitivo e falho de qualidade, ou mesmo um simples extracto de outras obras
compostas com outros objectivos” (CALADO, 1991, p. CXI). Portanto, não é justa a
crítica depreciativa que lhe é feita por alguns estudiosos, que insistem em compará-la à
escrita do genial Fernão Lopes.
Por ser uma biografia, devendo em consequência tudo girar em torno do biografado, na
obra foi reduzido drasticamente o enfoque dos acontecimentos em que este não figura,
por vezes utilizados apenas como elos de ligação (CALADO, 1991, p. CXVII). E, se as
atitudes religiosas do Condestável são frequentemente destacadas, no entanto os
capítulos versam preponderantemente sobre os seus feitos militares.
Trata-se de uma biografia tipicamente medieval, não exaustivamente completa,
faltando-lhe a descrição física do herói – segundo Calado (1991, p. CXXI), Zurara teria
sido o primeiro a fazê-la, em relação ao Infante D. Henrique, na Crônica dos feitos de
Guiné; mas Fernão Lopes também já o fizera, mesmo que de forma não completa, por
exemplo com relação a D. João I, através da prosopopéia de Lisboa, que lhe indica a
altura, a harmoniosa composição dos membros, a graciosa e honrada presença, o lado
dos atributos morais, da coragem e engenhosidade na defesa da cidade (LOPES, 1977,
p. 302). Faltam ainda indicações de lugar e data do seu nascimento, etc. Por outro lado,
são destacados os dados genealógicos.
Quanto à concepção de historiografia adotada e explicitada no Prólogo, é a clássica (de
Tucídides, Tito Lívio, etc.), assimilada ao que parece indiretamente, sendo a corrente à
época, inclusive endossada na Crônica Geral de Espanha de 1344. Segundo ela, a
narrativa historiográfica tem característica especular, apresentando como modelos a
serem seguidos os nobres e heróicos feitos e evitados os maus. Através das frases
interrogivas, é na obra inclusive estabelecida uma exortação às futuras gerações para
seguirem o paradigma de heroicidade portuguesa apresentado.
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124
Apesar da ausência de datas, reconstituídas como vimos na edição crítica, a ordenação
objetiva, a linguagem clara, os dados numerosos, as fontes referidas como consultadas a
creditam como documento historiográfico. Bem como a sua construção apresenta valor
artístico: seu estilo é “simples, mas conciso e enérgico” (CINTRA, 1973, v.), sem
nenhuma filosofia ou teorização literária, o que “reverte a favor de uma alta densidade
factual” (CALADO, 1991, p. CXXIX); apresenta uma interpretação convincente do
perfil do biografado e realismo na representação dos acontecimentos, etc. Enfim, não
apenas a verossimilhança, mas a mimese atribuem qualidades retórico-poéticas à obra.
Aproveita elementos convencionais na elaboração e desenvolvimento do texto, sendo
que muitas vezes a economia narrativa se torna desproporcional à importância do
acontecimento, como por exemplo a descrição por demais sucinta da batalha de
Aljubarrota. Aliás, já desde o Prólogo nos dá uma prova da sobriedade do seu estilo,
demonstrando consciência da sua brevidade e da maior extensão dos prólogos
tradicionais.
Emprega muitos discursos diretos, procedimento literário então corrente, não
necessariamente aurido de fontes clássicas como Tito Lívio ou Salústio. Também da
tradição corrente aproveita o gosto pelas frases exclamativas e interrogativas, que
tornam o discurso mais impressivo, bem como as expressões ou frases de ligação, para
tornar mais clara ao leitor a interconexão dos acontecimentos, para o que concorrem
também os títulos dos capítulos.
Por vezes, apresenta um esboçar da ironia, que os autores da época já sabiam explorar –
como Fernão Lopes, que apresenta esse recurso retórico como marca significativa do
seu estilo. O uso da duplicação vocabular, do ablativo e do gerúndio são também outras
constantes herdadas da tradição corrente. Mas da metáfora, tão cara a Fernão Lopes, não
há exemplos, quando muito um símile – “asy bastos como som os feixes no rrestolho do
bõo trigo e bem basto” (Estória, 1991, p. 119). E, também diferindo-se do cronista-mor,
poucas vezes se introduz na narrativa – por exemplo, dirigindo-se ao leitor-ouvinte
através da expressão “ally veriades” (Estória, 1991, p. 131), no Prólogo através do uso
da primeira pessoa, e nas preces.
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125
Incorpora superstições correntes, nem que seja para serem contestadas pelo herói; bem
como sentenças ou provérbios por este endossados; sem falar em preces reconstituídas –
tudo convergindo para a visão providencialista da história que então imperava.
Enfim, conclui Calado (1991, p. CXLII) que, por todos esses elementos, “é uma obra
literária, caracterizada pela aplicação intencional de um conjunto de técnicas de
narração ao serviço de um estilo simples e directo enquadrado por uma capacidade de
concepção, planeamento e execução”. Conforme Manuel Rodrigues Lapa, soube lançar
mão de uma “linguagem correntia, popular, sem ser inculta, sem os arrebiques e
neologismos tão em voga no seu tempo” (LAPA, Miscelânea, p. 391).
6. Uma narrativa exemplar
Composta por oitenta capítulos e por um curto prólogo, este frisa o caráter de memória
exemplar da obra, herdado da historiografia antiga – os erros serão narrados para serem
evitados; e os “vallentes e nobres feytos” do Condestável, para serem copiados (Estoria,
1991, p. 1).
O último capítulo, a modo de peroratio, descreve-lhe as benfeitorias realizadas, que
deram sequência às do avô, e os atos piedosos, praticados ao lado dos feitos militares
durante a vida do Condestável.
A narratio, que focaliza o biografado a partir dos 13 anos (1373), como vimos, é
dividida, conforme já observara Calado (1991, p. CXII), em “três partes bem
individualizadas”: 1ª.) dos treze anos até à morte de D. Fernando em 22/10/1382,
período em que foi escudeiro da Rainha Leonor Teles – capítulos II a XIV; 2ª.) desse
acontecimento até à aclamação de D. João I nas Cortes de Coimbra em 6/4/1385,
quando foi nomeado Condestável, período em que foi cavaleiro do Mestre de Avis –
capitulos XV a XLII; 3ª. – dessa nomeação até à morte, em 1/4/1431, período em que
foi Condestável e monge – capítulos XLIII a LXXIX.
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126
O primeiro capítulo se refere à genealogia de Nuno Álvares Pereira, a começar pelo seu
bisavô, Dom Gonçalo Pereira, “grande cavaleyro muy fidalgo e de grande sangue”.
Este, não apenas possuía alta estirpe, mas também riquezas, sendo, pois, “nobre de
linhajem e de condiçam”, possuindo “grande casa e acompanhado de muytos bõos
parentes e criados” (Estoria, 1991, p. 1). Dentre as “muytas e muy boõas” qualidades
que possuia, destacava-se a prodigalidade: era “muy graado e dava de bõo coraçam o
que avia, assy aos que o serviam como aaquelles que o nom serviam”, a tal ponto que
era recriminado por alguns dos seus “chegados” (Estoria, 1991, p. 2).
Esse fidalgo teve filhos e filhas, dentre os quais um que lhe herdou o nome: D. Gonçalo
Pereira, que foi arcebispo de Braga e pai de Frei Álvaro Gonçalves Pereira. Este, apesar
de filho ilegítimo, “foy grande e honrrado e rico de muytas riquezas e de muytas
virtudes, ca era nobre de condiçam e bõo cavalleyro e muy entendido” (Estoria, 1991, p.
2). Foi Prior do Hospital, fazendo nesta Ordem “muytas obras e bõas cousas por
acrecentamento della”, dentre elas a edificação de uma igreja em honra de Santa Maria,
“em que deus faz muytos millagres” (Estoria, 1991, p. 2).
Dentre as suas virtudes, ao lado da lealdade e da honradez destacava-se a generosidade
herdada do avô: “foy em muytos bõos e grandes feytos, assy por servir seu rey como
por sua honrra. E partia grandemente o que avia, assy com seus parentes como com
outros muytos que o nom eram” (Estoria, 1991, p. 2). Daí ser por todos “bem servido e
amado e beem acompanhado”, alcançando ser privado de três reis de Portugal: D.
Afonso, D. Pedro e D. Fernando. Estes, pelos bons serviços e conselhos do fidalgo, por
seu “gram siso e bõa discriçam”, “o amarom e prezarom muyto, em especial el rey dom
Fernando” (Estoria, 1991, p. 3).
Esse Frei Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Hospital, viveu “longamente” e teve 32
filhos, homens e mulheres, dentre os quais, de mães diferentes, Pedro Álvares Pereira,
que o sucedeu no priorado da Ordem, e Nuno Álvares Pereira. Deste, a mãe foi Eirea
Gonçalves do Carvalhal, uma “muy boõa e muy nobre molher e estremada em vida
açerca de Deos”, que, após ter seus filhos, “viveo em grande castidade e abstinencia,
nom comendo carne nem bevendo vinho per espaço de quorenta annos, fazendo grandes
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127
esmolas e grandes jejuus e outros muytos bees” (Estoria, 1991, p. 3). Por sua “grande
bondade”, foi escolhida para “covilheyra” – isto é, camareira – da Infanta Dona Beatriz,
filha de D. Fernando e depois rainha de Castela, por casamento com D. João.
No segundo capítulo tem início a vida de Nuno Álvares, já com treze anos. Gostaríamos
de destacar a grande importância que é dada, no primeiro capítulo, à genealogia do
biografado: não apenas a sua nobre estirpe é apresentada, como também as virtudes de
seus genitores: do pai, a honradez, lealdade, prodigalidade, bons serviços, devoção
mariana, sensatez e discrição; da mãe, a religiosidade e práticas desta decorrentes, como
a castidade, a abstinência, o jejum e a caridade. Estas são as heranças do herói, que as
desenvolverá como veremos.
Trata-se, evidentemente, de uma obra laudatória; daí serem recorrentes as indicações
das virtudes do Condestável, já desde o Prólogo apresentado como “vallente e muy
virtuoso” (Estoria, 1991, p. 1). Procederemos a seguir à observação do retrato de
cavaleiro que vai sendo delineado, começando por destacar que desde jovem assumira
por modelo a Galaaz, o melhor e mais puro dos homens do rei Artur, cuja história era
sua leitura preferida. Como tal, fica evidente que o Condestável, apesar da sua ‘mesura’
– condição fundamental da cortesia –, era adepto fundamentalmente não da ‘cavalaria
cortês’, cujo paradigma bretão fora Lancelote e, na Península Ibérica, Amadis de Gaula;
mas, sim, da ‘cavalaria espiritual’, seguidora das virtudes cristãs encarnadas por Galaaz,
o ‘puro dos puros’, o melhor dos cavaleiros do rei Artur.
Da mesma forma que Galaaz o fora, é apresentado como um predestinado: o alfageme
de Santarem profetizara que, a serviço da terra e do Mestre, seria futuramente conde de
Ourém, quando só então aceitaria receber pelo trabalho de consertar-lhe a espada
(Estoria, 1991, p. 42). E, principalmente, como o mais exemplar dos cavaleiros da
Távola Redonda, que “per virtude de virgindade” “acabara muytos grandes e notavees
feytos que outros nom poderom acabar”, terminando por alcançar o Graal (Estoria,
1991, p. 8), Nuno Álvares também desejou permanecer virgem, recusando de início o
casamento que lhe arranjara o pai com Dona Leonor d’Alvim, senhora dotada de
“grande bondade e riqueza” (Estoria, 1991, p. 6). Mas, instado por parentes, diante da
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insistência acaba concordando com a proposta, “pois que a seu padre prazia e o elles
aviam por bem” (Estoria, 1991, p. 10). Foi um casamento sem festas (1376), por ser a
noiva viúva, embora também ainda virgem. Na nova situação, de homem casado,
“despendya seu tempo em tomar honestamente prazer com sua mulher” (Estoria, 1991,
p. 12), que “lhe dava bõos conselhos das maneiras que avia de teer em aquella terra
honde avia de viver” (Estoria, 1991, p. 12), isto é, nas terras de propriedade desta.
Dessa união resultaram três filhos, mas dois morreram ao nascer, restando apenas uma
mulher, D. Beatriz, que posteriormente foi condessa de Barcelos, casada com o filho
bastardo de D. João I.
Acrescente-se que, ao final da vida, o Condestável afastou-se da vida mundana,
fazendo-se recluso no mosteiro do Carmo – aliás, assemelhando-se a Boorz, outro dos
virtuosos cavaleiros arturianos, que se tornou ermitão após voltar para Camelot – até à
morte. Assim, teria alcançado o seu “Graal”, providenciando a Igreja o processo de
canonização pelos muitos milagres que eram obrados junto ao seu túmulo. E se
aproximaria mais ainda do ideal de monge-cavaleiro proposto por São Bernardo, até por
haver lutado numa guerra que foi apresentada como Santa, uma vez que o Mestre de
Avis apoiava o papa de Roma, ao lado passo que o rei de Castela se colocava ao lado da
França obediente ao papa cismático de Avinhão, inseridos no contexto da chamada
Guerra dos Cem Anos (1337-1453) que então dividia a Cristandade. Lembremos que
São Bernardo de Clairvaux, no século XII, justificava a violência bélica, afirmando que
“morrer ou matar por Cristo não implica criminalidade alguma e reporta a uma grande
glória” (BERNARDO, 1983, p. 503).
Portanto, a primeira insistência da obra vai para a filiação do cavaleiro biografado ao
paradigma representado por Galaaz, sendo que a virtude da castidade o levaria
futuramente a inclusive proibir a presença de mulheres nas suas hostes (Estoria, 1991,
p. 136). Essa virtude aparece ao lado do seu “bom gasalhado e doçes palavras”, e “gram
misura”, sendo “bem rrazoado e porem de pouca e branda pallavra”, que “a todos
prazia” (Estoria, 1991, p. 12). Assim, o autor o apresenta inicialmente como, além de
religiosamente casto, prestativo e generoso, mesurado, cordato e discreto; no entanto,
não se exime de indicar-lhe maus feitos, muito embora sem se deter em descrevê-los:
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“aas vezes fazia na terra das suas, segundo seus vezinhos” (Estoria, 1991, p. 12). Mas
busca justificar esses desmandos pela necessidade de cobrir a grande despesa que tinha
com os seus homens, pelos costumes locais e pela pouca idade (casara aos dezesseis
anos). E conclui observando que tais desmandos não o afastavam do “temor de Deos,
ouvindo suas missas e vivendo honestamente e bem com sua mulher” (Estoria, 1991, p.
12).
Antes desse episódio, sabemos que, ao ser levado, juntamente com o irmão Diego, para
a casa do rei D. Fernando, impressionara a rainha Leonor Teles por sua sagacidade e
valentia, ao narrar, a pedido desta, o que observara no caminho sobre as tropas
castelhanas: “muyta gente mal acaudellada, e que pouca gente com bõo capitam, bem
acaudellada, os poderia desbaratar’ (Estoria, 1991, p. 4). A rainha o toma por escudeiro
e o rei ao seu irmão. Era então “muy vergonhoso”, isto é, tímido, e “misurado”,
agradecendo e beijando-lhe a mão. Lembramos que, premonitoriamente talvez, por ser
muito jovem, com apenas treze anos, não havia arnês que lhe servisse, pelo que foi
solicitado o do Mestre de Avis, que fora armado cavaleiro ainda bem criança: “E assy
tomou dom Nun’Alvrez as primeyras armas, que foram do mestre d’Avis, e per maãos
da rraynha dona Lyanor, e de hy em diante a rraynha o ouve sempre por seu escudeiro”
(Estoria, 1991, p. 5).
A obediência era outra sua grande qualidade, observada em relação ao pai, como vimos
no episódio do casamento, e ao rei D. Fernando, a quem obedecia mesmo que
contrariando seu desejo: “nom sayriia do mandado delrey, ainda que fosse muyto contra
seu prazer” (Estoria, 1991, p. 22). Como também futuramente ao rei D. João I, cuja
entronização ajudara a construir. Não o afronta, mesmo quando lhe retira os vassalos –
“que outrem non tevesse vassallos senom elle” (Estoria, 1991, p. 153) – e as terras de
préstimos.
A sua ambição restringia-se à busca de notoriedade e honra: “avia gram vontade de
ganhar nome e honrra” (Estoria, 1991, p. 17); “muyto desejava de servir el rey dom
Fernando, que o criara, e de seer conhecido e aver nome de boom” (Estoria, 1991, p.
19). Daí que posteriormente, pela sua lealdade ao Mestre de Avis e à terra portuguesa,
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recusa as vantagens que lhe prometeu o rei de Castela, mesmo quando a sua própria mãe
a este serve de mensageira; ao contrário, acaba por fazê-la aderir à causa do Mestre:
ante contrariava a sua madre, dizendo que Deos nom quisesse que por
dadivas e largas promessas elle fosse contra a terra que o criara, mas que
ante despenderia seus dias e espargeria seu sangue por emparo della, de
guisa que, onde ella vinha pera reduzir seu filho pera serviço delrey de
Castella, Nun’Alvrez reduzeo ella pera serviço do mestre. (Estoria, 1991, p.
45)
Busca adesão ao Mestre junto a outros fidalgos, como por exemplo seus irmãos,
conseguindo a de Diego Álvares, mas não a do que era Prior do Hospital. Neste sentido,
logo no início do movimento contra a rainha Leonor Teles, após o assassinato do conde
de Andeiro, do bispo de Lisboa e do prior de Guimarães, argumentava que “esto era
obra de Deos, que se queria lembrar desta terra, que nom fosse subjeyta a Castella e
que, poys tal começo era feyto, que lhe pedia por mercee que todavia se tornasse a
serviço do meestre, como já outras vezes lhe dissera” (Estoria, 1991, p. 42). Aliás,
mesmo antes de tais acontecimentos, apresenta-se como o primeiro a desejar a morte do
Andeiro pelo Mestre de Avis, conseguindo a adesão do tio Rui Pereira (Estoria, 1991, p.
40).
Enfim, conclamava a “todollos
bõos portugueses”, os “verdadeiros portugueses”
(Estoria, 1991, p. 58; p. 76; p. 90; p. 93; p.104-105) – opostos dos cismáticos “maos
portugueses” (Estoria, 1991, p. 122) –
a “o seguirem e servirem atees mortes”, indo
contra os velhos fidalgos que relutaram em fazê-lo – como o conde Álvaro Pires
(Estoria, 1991, p. 54). Também colocou-se contra a arrogância do filho deste, D. Pedro,
que desejava privilégios quanto a receber primeiramente o soldo (Estoria, 1991, p. 5657). Dentre esses bons portugueses, a narrativa destaca os “miudos”, as “jentes miudas”,
que tomavam castelos para o Mestre (Estoria, 1991, p. 55).
À lealdade junta-se as suas qualidades de grande soldado, sempre desejoso de combate
– dizia, quando uma batalha ou um duelo se anunciava, que era “de taes novas muy
ledo” (Estoria, 1991, p. 60), “tam ledo que nom podia mais seer com outra cousa”
(Estoria, 1991, p. 20); ou, quando ela gorava, ficava “muy anojado” (Estoria, 1991, p.
19), “triste e muyto anojado’ (Estoria, 1991, p. 33); pelo que o narrador exclamaria:
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131
“Oo que vontade de servir seu senhor e, por emparo da terra, asy avia gana de pelejar!”
(Estoria, 1991, p. 66).
Sua coragem apresenta-se como incomparável – por exemplo: em Cacilhas, num
pequeno batel, com seis escudeiros, lança-se ao mar temerariamente revolto para
alcançar uma embarcação maior, objetivando lutar com a frota de Castela (Estoria,
1991, p. 57); sozinho enfrentara cerca de “duzentos e çinquoenta homens d’armas”
dessa frota que cercava Lisboa, sendo apenas posteriormente socorrido pelos seus, que
de início se recusavam ao combate por serem inferiores numericamente aos inimigos
(Estoria, 1991, p. 29-31); ironizava o inimigo poderoso, no caso Joam Rodrigues de
Castanheda, indo ao seu encontro “pollo escusar do trabalho” e que, recebendo deste
recado para aguardá-lo, que “lhe teeria bem feyto de jantar’ (Estoria, 1991, p. 76);
apenas com “dous moços da estribeira, se deu às lanças com os castellãos ante que
nenhum chegasse”, em uma barreira inimiga nas proximidades de Couna (Estoria, 1991,
p. 85-86).
Foi, enfim, grande estrategista (Estoria, 1991, p. 116-117) e animador de suas tropas,
como por exemplo se percebe na seguinte passagem, relativa à batalha de Atoleiros:
Começou d’andar pellas batalhas em cima de hu~ua mulla, esforçando
todollas jeentes com boõas pallavras e gesto ledo, e dizendo a todos que lhes
lembrassem bem, em seus coraçoões, quatro cousas: a primeira, que
encoemndassem a Deus e à Virgem Maria, sua madre, e o tevessem asy em
suas vontades; e a segunda, que eram ally por servir seu senhor e acalçar
honrra grande que a Deos prazeria de lhe dar; e a terceyra, como ally vinham
por defender sy e suas casas e a terra que possuiam e se tirar da sobjeiçam
em que el’rey de Castella queria poer; e a quarta, que sempre tevessem nos
entendimentos de soffrer todo trabalho e d’aperfiar em pellejar nom hu~ua
hora, mais h~uu dia todo e mais, se comprisse. (Estoria, 1991, p. 67)
Necessidade da proteção divina, honra que receberiam de Deus pelo serviço ao Mestre,
defesa das próprias vidas e haveres e disposição para lutar o tempo que fosse necessário,
tais eram, pois, os elementos indicados na sua conclamação. Sobretudo com o exemplo
ensinava aos seus homens, colocando-se sempre na vanguarda nas batalhas (Estoria,
1991, p. 67; p. 116; p. 124; p. 169) – na retaguarda, só quando esta se fazia mais
perigosa, ao voltar de Castela para Portugal (Estoria, 1991, p. 133) –, e lutando
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incansavelmente, mesmo quando já ferido (Estoria, 1991, p. 131). Daí tornar-se
invencível capitão, cuja fama por si só afastava os inimigos (Estoria, 1991, p. 52; p. 83;
p. 86; p. 125; p. 133; p. 178; p. 195).
Desprendido, o produto dos saques bélicos era totalmente repartido entre os seus
homens – por exemplo, após uma batalha, em Couna “mandou repartir ho esbulho que
assy traziam, sem avendo elle pera sy nenh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 87), após ter
sido a villa “toda roubada, e forom hy achados muytos e bõos cavallos e azemellas e
outras muytas boõas cousas” (Estoria, 1991, p. 87). Isto se repete nas outras batalhas
empreendidas, “sem avendo nem querendo aver pera sy n~enh~ua cousa” (Estoria,
1991, p. 146), “sem tomando pera sy n~enh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 161).
Enfrentava sem esmorecimento as privações (Estoria, 1991, p. 81) e era piedoso
inclusive para com o inimigo – diante da sua rendição não o matava, pelo que exclama o
narrador: “Oo viirtuoso e de gram piedade, sobre seu corpo seer posto em tam gram
trabalho e periigo, e, asy maçado, seer lembrado de tanta piedade!” (Estoria, 1991, p.
32). Para com os necessitados, a sua bondade pode ser entrevista no seguinte episódio:
quando se dirigia para as cortes de Coimbra com o Mestre de Avis, apiedou-se do cego
que queria acompanhá-los, levando-o consigo, na garupa da mula que o conduzia, o que
merece do narrador nova exclamação: “Oo, que humano e caridoso senhor! (Estoria,
1991, p. 98).
Mas era ao mesmo tempo arrebatado – por exemplo, vinga-se dos que não lhe deixam
lugar à mesa no casamento da filha de D. Fernando com o rei de Castela, tirando com a
perna o pé da mesa que caiu ao chão, escarnecendo dessa forma dos que “nos pouco
preçarom e de nos escarnecerom” e retirando-se em seguida “com grande assessego,
bem como se nom fezessem neh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 57).
Era avesso a superstições e agouros – como por exemplo em relação ao sonho agourento
do escudeiro, que previra a sua prisão, tentando dissuadi-lo de não partir para Lisboa
passando pela frota dos castelhanos que a cercavam; ao que ele não atendeu e respondeu
“que ficasse com o seu sonho e nom no quis levar” (Estoria, 1991, p. 89). Isto também
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133
se comprova no episódio da haste da bandeira que se quebrou quando pretendia ir tomar
Vila Viçosa, o que não o impediu de tentar fazê-lo, muito embora “toda gente ouve por
forte signal, e deziam a Nun’Alvrez que nom partisse” (Estoria, 1991, p. 93); ou quando
da morte da besta que conduzia a cama na romaria a Santiago de Compostela, que não
deixou de realizar, embora “todallas gentes ouverom por maravilha e grande sinal”
(Estoria, 1991, p. 101).
Por outro lado, era respeitador dos juramentos – por exemplo: diante da morte do irmão
na tentativa de tomada de Vila Viçosa, considerou “que nunca lhe atal aquecimento e
atam maao veeo senom polla cota e espada, que escondeu, de dom Garcia Fernandez em
Portel, contra seu juramento” (Estoria, 1991, p. 95).
Sempre eram atribuidas a Deus as vitórias (Estoria, 1991, p. 133; p. 120-121). Nas
batalhas, conclamava os seus soldados a se colocarem sob a proteção divina; por
exemplo, na de Atoleiros, como vimos, recomendava-lhes “que se encomendassem a
Deus e à Virgem Maria, sua madre, e o tevessem asy em suas vontades” (Estoria, 1991,
p. 67). E as práticas religiosas eram constantes em sua vida: se punha “em giolhos” “a
rezar e a louvar a Deos, como era seu costume” (Estoria, 1991, p. 132), ouvia missas,
acompanhava procissões, fazia romarias, cultuava a S. Jorge e a Santa Maria, em honra
dos quais mandou edificar igrejas e mosteiros, como o “gentill e fermoso” mosteiro de
Santa Maria do Carmo em Lisboa (Estoria, 1991, p. 148), onde terminaria os seus dias.
Aliás, mesmo a eleição do Mestre para rei, nas cortes de Coimbra, é atribuída pelo autor
a Deus, pelos seus merecimentos (Estoria, 1991, p. 99), não à hábil argumentação de
João das Regras, que Fernão Lopes destacou como decisiva na Crônica de D. João I
(LOPES, 1977, p. 345-370), embora também este apresente como profética a recepção
do Mestre como rei pelas crianças, na sua chegada a Coimbra para as cortes (Estoria,
1991, p. 98).
Apesar da fama alcançada, era humilde em relação aos seus – o que se percebe na
seguinte passagem, quando, após a vitória obtida na batalha de Atoleiros (1384), chega
à igreja de Santa Maria do Açumar, local deixado imundo pelos castelhanos, e não
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134
apenas a manda limpar, mas “foy o primeyro que ajudou tirar o esterco fora” (Estoria,
1991, p. 70).
Foi justiceiro rigoroso inclusive contra parentes, angariando-lhes inimizade: fazia
“dereito sem n~enh~uua afeyçom, em tal guisa que os grandes e bõos que com elle
acompanhavam em serviço del’rey se afastavam delle por a maneira que com elles
tiinha em feyto de justiça” (Estoria, 1991, p. 190). A sua justiça alcançara, por exemplo,
Antão Vasques, cavaleiro por ele muito estimado e que causara danos a um homem bom
no Porto, sendo por isto condenado a indenizá-lo; pelo que ficou muito descontente e
disse publicamente ao Condestável “pallavras muy soltas, as quaes lhe o conde soffreo
muy benignamente e com grande paciencia, ca desto usava elle muy muito” (Estoria,
1991, p. 135).
Sua humanização se observa, pois, na benevolência e paciência acima observadas.
Como também na compreensão diante das covardias dos seus homens (Estoria, 1991, p.
29; p. 49; p. 110) e da má vontade destes para o combate quando faltava pagamento
(Estoria, 1991, p. 150). E, ainda, na capacidade para perdoar, rindo-se dos que o
contradiziam por despeito ou inveja do seu prestígio junto ao Mestre – “começou de riir
porque sabia bem o por que o faziam” (Estoria, 1991, p. 48). Aliás, em muitas outras
passagens da obra ele se apresenta como vítima da intriga, da má vontade, da inveja dos
seus pares (Estoria, 1991, p. 72; p. 113; p. 135; p. 137; p. 143; p. 146-147; p. 151). Por
outro lado, era muito amado pelos seus comandados, que, “pollo grande amor que lhe
aviam”, “eram ledos de morrer e viver com elle” (Estoria, 1991, p. 20).
Mas era também dotado de fraquezas humanas, como vimos em exemplo anterior,
relativo à sua vida logo após o casamento, nas terras da esposa (Estoria, 1991, p. 12) –
fraquezas desculpadas, neste caso, pela pouca idade que então possuía, pelas despesas
que tinha com os seus homens e pelos costumes locais. Em passagem posterior, são
justificadas pela doença que o acometeu em 1938, de “h~ua dor que lhe durou três
meses”, acompanhada de “humor menenconico” (Estoria, 1991, p. 161-162). Essa
depressão, que o impedia de comer, o fazia avesso à convivência com outras pessoas,
culminando com a raiva inusitada e injusta contra Lourenço Eanes Cordovil, que o fora
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
135
visitar (Estoria, 1991, p. 163); do que em seguida se arrependeria, alegrando-se porque
seu escrivão da puridade, Gil Airas, não havia de fato efetivado a insana punição que
ordenara (Estoria, 1991, p. 164-167).
Enfim, fora esses raros episódios negativos, caracterizava-se por mostras de coragem,
lealdade, cortesia, generosidade, e, ainda, capacidade para suportar sofrimentos e
privações. A ética cavaleiresca medieval se vê por ele revitalizada, para exemplo. A
propósito, Duby (1987) observara como Guilherme Marechal, no século XII, retomara
os valores da Cavalaria já à sua época em crise. Estes eram principalmente a fidelidade
– o cavaleiro deveria sempre “manter a palavra, não trair a fé jurada” (DUBY, 1987, p.
118) –, a valerosidade – ser “intrépido até às raias da loucura” (DUBY, 1987, p. 119120) – e a largueza ou generosidade – “o cavaleiro tem o dever de nada reter em suas
mãos”, daí resultando a força, o poder, “o renome e a calorosa amizade que o cerca”
(DUBY, 1987, p. 120)2.
7. Epílogo
O capítulo oitenta, a modo de epílogo, retoma sobretudo as qualidades do cavaleiro
relativas à sua religiosidade, aproximando-o de Galaaz: a castidade – “foy muy casto de
vontade e ainda de feito, porque elle com outra molher nunca dormio senom com a
sua”, e mesmo com esta deixaria posteriormente de copular, embora “homem novo”
“por servir a Deus” (Estoria, 1991, p. 198); e a prática constante do culto – ouvia duas
missas por dia e três aos sábados e domingos; confessava-se amiudemente
e
comungava quatro vezes ao ano, no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e em Santa Maria
de Agosto (Estoria, 1991, p. 198). Além do mais, edificou e reformou igrejas, capelas e
mosteiros quase sempre em honra de Santa Maria, dentre “outras muytas obras
meritorias” que realizou (Estoria, 1991, p. 199).
2
Pretendemos desenvolver, em estudo posterior, uma comparação entre aquele que foi considerado “o
melhor cavaleiro do mundo” (DUBY, 1987, p. 210) e Nun’Álvares.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
136
Ia além do que se exigia de um religioso comum: rezava as horas, jejuava três dias na
semana enquanto a idade permitiu – nas quartas, sextas, sábados e datas indicadas pela
Igreja (Estoria, 1991, p. 199). Caridoso, dava o dízimo de todas as suas rendas “por
amor de Deos a pobres” (Estoria, 1991, p. 199); a estes, dava ainda vestimentas
periodicamente, bem como a cavaleiros e escudeiros e outras pessoas honradas (Estoria,
1991, p. 200). Distribuía as suas provisões de pão nos períodos de escassez, ficando por
vezes sem nenhum para si próprio; e o fazia não somente aos das suas terras, mas até
mesmo aos de Castela (Estoria, 1991, p. 20-201).
Nos últimos anos da sua vida, objetivando tornar-se monge, dividiu os bens imóveis
pelos parentes e os móveis – ouro, prata, dinheiro, jóias, armas, roupas e guarnimentos –
pelos seus servidores, dos quais quitou as dívidas que tinham com ele. Ao ordenar-se,
quis mesmo abdicar do sobrenome e do título e viver de esmola longe da sua terra, o
que a muito custo não realizou, a pedido do primogênito filho de D. João I, D. Duarte,
que o manteve e aos de sua Ordem no Convento do Carmo – “por lhe seer obediente
outorgou’lhe de o fazer asy como elle mandava, posto que fosse contra sua vontade”
(Estoria, 1991, p. 202).
Termina o narrador por falar da impossibilidade de “lembrar pera se poer em esta
estoria” as outras muitas virtudes e obras do Condestável (Estoria, 1991, p. 203). E que
muitos milagres foram e ainda são, à época da escrita da obra, feitos por Deus no lugar
em que foi enterrado, o que indica “que sua alma he com Deos em sua gloria” (Estoria,
1991, p. 203).
Enfim, através das qualidades evocadas, sobressaem como principais facetas da
personalidade do biografado: a do cavaleiro destemido, generoso, leal e incorruptível, e
a do religioso, cujo misticismo seria acentuado por Fernão Lopes, sendo-lhe a santidade
reconhecida pela Igreja, que logo após o seu falecimento dá início ao processo de
canonização (1437). Incorpora, pois, o ideal de cavaleiro cristão; como também o de
nobre necessário à consolidação da jovem Dinastia que ajudou a elevar ao poder.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
137
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139
O jugar de palabras nas rubricas explicativas
das cantigas de escárnio e maldizer
Paulo Roberto Sodré
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Resumo: Considera a importância da noção de jugar de palabras ou escarnecer (prescrito na Lei
XXX do Título IX da Segunda de Las siete partidas, de Afonso X) na leitura da sátira galegoportuguesa produzida, sobretudo, no século XIII. Examina filológica e crítico-literariamente
esse conceito nas rubricas atributivas e explicativas das cantigas de escárnio e maldizer.
Ademais, estuda a natureza autoral dessas rubricas e a compreensão que nela se registra do
jugar de palabras, de maneira a procurar relacionar o sentido do termo expresso tanto na Lei
XXX, como na Arte de trovar e nas rubricas.
Palavras-chave: Sátira galego-portuguesa; Jugar de palabras e cantigas satíricas; Rubricas
trovadorescas.
Abstract: It considers the importance of the jugar de palabras or ridicule (as a concept
presented in Law XXX of the Title IX from the Second of Las siete partidas, by Afonso X) to
read the XIII century Galician-Portuguese satire. It observes this concept, in terms of
philological and literary criticism, in the cantigas de escárnio e maldizer attributive and
explaining rubrics. Moreover, it studies the author nature of these rubrics and what they suggest
about the jugar de palabras. By these elements, it intends to relate the notion of ridicule express
in the Law XXX, as well as in Arte de trovar and the rubrics.
Keywords: Galician-Portuguese Satire; Jugar de palabras and satirical cantigas; Troubadour
rubrics.
Em Non serie juego onde omne non rrye: aspectos da sátira galego-portuguesa, ensaio
desenvolvido no estágio de pós-doutorado, na Unicamp, entre 2007 e 2008, procurei
demonstrar que as cantigas de escárnio e maldizer produzidas na Península Ibérica,
sobretudo no século XIII, poderiam ter sido elaboradas a partir do que se registrou como
jugar de palabras, conceito constante na Lei XXX do Título IX da Segunda de Las siete
partidas, de Afonso X (1991; 1992; 2004). Nessa lei estariam1, teoricamente – ou
utopicamente (LÓPEZ ESTRADA, 1992, p. 31) –, as normas de comportamento
palaciano junto ao rei e aos que freqüentam sua corte. Como “convém que não sejam aí
1
Os argumentos que aqui se expõem foram apresentados no ensaio mencionado e nos trabalhos
apresentados em eventos acadêmicos (SODRÉ, 2008; 2010).
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140
[palácio] ditas palavras senão verdadeiras, perfeitas e adequadas” –, Afonso X procurou
classificar as principais circunstâncias sociais e maneiras palacianas de entretenimento
ou, no dizer da época, o fablar en gasaiado: o departir (debater), retraer (contar ou
narrar fatos reais ou fictícios) e o jugar de palabra (escarnecer). Sobre este conceitochave para a compreensão do que aqui se pretende discutir, afirma o rei:
E en el juego deven catar que aquello que dixieren sea apuestamente dicho, e
non sobre aquella cosa que fuere en aquel lugar a quien jugaren, mas a
juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle de
cobardia; e esto debe ser dicho de manera que aquel a quien jugaren non se
tenga por denostado, mas quel ayan de plazer, e ayan de rreyr dello tan bien
el commo los otros que lo oyeren. E otrosy el que lo dixiere que lo sepa bien
rreyr en el lugar do conveniere, ca de otra guysa non serie juego onde omne
non rrye; ca sin falla el juego con alegria se deve fazer, e non con sanna nin
con tristeza. Onde quien se sabe guardar de palabras sobejanas e
desapuestas, e usa destas que dicho avemos en esta ley, es llamado
palaçiano, porque estas palabras usaron los omnes entendidos en los
palaçios de los Reyes mas que en otros lugares […].2 (ALFONSO X, 1991,
p. 101-102)
Como procurei expor no ensaio, o ponto de difícil leitura e fundamental do trecho está
nessa passagem: no jogo devem observar que aquilo que disserem seja
apropriadamente dito, não a respeito da coisa [defeito] que estiver naquele com quem
jogarem, mas a jogos dele, como se ele fosse covarde dizer-lhe que é esforçado, jogar
com sua covardia (“E en el juego deven catar que aquello que dixieren sea
apuestamente dicho, e non sobre aquella cosa que fuere en aquel lugar a quien jugaren,
mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle de
cobardia”). Jesús Montoya Martínez examinou esse trecho da “Segunda Partida”
(ALFONSO X, 1991), dando a entender que o exemplo dado pelo Sábio é negativo, ou
seja, ele deduz que não se deve brincar com o covarde, chamando-o, por equívoco, de
valente, nem vice-versa:
2
No jogo devem observar que aquilo que disserem seja apropriadamente dito, não a respeito do que for
defeituoso naquele com quem jogarem, mas a jogos dele, como no caso do covarde dizer-lhe que é
esforçado, jogar com sua covardia; e isto deve ser dito de maneira que aquele com quem jogarem não se
tenha por ofendido, mas que sinta prazer, e ria do jogo tanto quanto os outros que o ouvirem. E que
aquele que jogar saiba bem fazer rir no lugar conveniente, porque de outra maneira não seria jogo onde
homem não ri; pois sem falha o jogo se deve fazer com alegria e não com sanha nem com tristeza. De
modo que aquele que sabe se guardar de palavras excessivas e deselegantes, e usa as que estão nesta lei é
chamado palaciano, porque estas palavras usaram os homens entendidos nos palácios dos reis mais que
em outros lugares. Traduzo o trecho para evidenciar a base do que penso a seu respeito.
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141
Verdad y estética son por tanto las exigencias requeridas para este juego. Al
cobarde no se le puede jugar de esforzado, ni al esforzado y valiente de
cobarde, pero cualquiera de ellos puede tener unos rasgos morales que
pueden ser hábilmente deformados. La clave está en encontrarlos y
expresarlos convenientemente. (MONTOYA MARTÍNEZ, 1989, p. 438)
A leitura de Montoya Martínez parece resultar imprecisa, a partir do momento em que
se observa que o exemplo (covarde versus valente) dado pelo rei segue a norma
estabelecida (não se deve apontar o defeito do cortesão, mas deve-se jogar com seu
avesso): “mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle
de cobardia”. Martínez lê, portanto, o trecho do exemplo como o que não se deve fazer,
quando, talvez, seja o contrário, isto é: no jogo devem cuidar que aquilo que disserem
seja apropriadamente/bem compostamente dito, e não [diretamente] sobre aquela coisa
[o defeito do visado] que estiver naquele com quem jogarem, mas a jogos dele; ou seja,
se ele for covarde, [devem] jogar satiricamente com seu esforço; se esforçado, com sua
covardia. O jogo, o avesso, um tipo diferente de equívoco, estaria justamente na
surpresa de os ouvintes e o próprio visado perceberem a brincadeira dos contrários.
Nisso estariam a conveniência e a boa composição da cantiga: não dizer ao covarde que
é covarde, nem ao sodomita que é sodomita, mas jogar com seu avesso, se isso fosse
conveniente ao trovador, ao visado da sátira e à corte: um seria valente; o outro,
heterossexual. Esses exemplos – muito arriscados, no caso do covarde, como indica a
lei –, poderiam não ser exatamente os utilizados pelos jogadores de palabra. Mais
provável é que os trovadores, por meio do que Marta Madero chama de “injúria lúdica”3
e do que considero um jogo de contrários, tomassem eventualmente, para efeito de
broma e diversão cortesã, como alvo um funcionário heterossexual como sodomita, ou
um bom trovador como “plagiário” ou “jograrón”, ou um rico-homem generoso como
escasso, o que aparece com certa freqüência no cancioneiro de burla galego-português.
3
Marta Madero (1992) expõe os temas passíveis de injúria em tom de brincadeira: corpo (enfermidade,
sexualidade, estética, integridade, parentesco), religião (judeus e mouros) e comportamento (traição,
covardia, avareza etc.). Como resume Jacques Le Goff, no prefácio ao estudo de Madero: “Respecto del
hombre las mayores injurias son las que lo acusan de sodomía y de traición; respecto de la mujer, las que
ponen por delante la lujuria y la fealdad. Pero más en general, esta sociedad misógina ve en la feminidad
‘la inversión de todo lo alto, lo bello o lo puro’” (LE GOFF, 1992, p. 15).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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Examinar esse ponto da lei e cotejá-lo com as cantigas é producente, uma vez que dele
se pode depreender um dos traços principais da sátira galego-portuguesa, não
suficientemente desenhada na Arte de trovar. Qual seria o grau de “verdade” das
“acusações” e “denúncias”, já posto em relatividade por Menéndez Pidal (1991, p. 207208) – e retomado recentemente por Xoan Carlos Lagares (2000) – a propósito da
cantiga de Afonso X, “Pero da Pont’ á feito gran pecado”, em que o rei acusa Pero da
Ponte de homicida e plagiário? Se não deveria haver, a princípio, ira nem tristeza, no
entretenimento palaciano, e se a maior qualidade de um jugar de palabra estaria na
capacidade de seu autor fazer-se ouvir prazenteiramente, as cantigas escarninhas, então,
poderiam ser lidas como jogos de avessos, além de jogos de equívocos verbais?
Podemos supor que o jogo equívoco prescrito na lei e possivelmente utilizado pelos
trovadores estaria não apenas no plano retórico da palavra ambígua, mas também no
plano da deformação pelo contrário de uma dada circunstância, de um rasgo moral ou
de uma qualidade de um cortesão. Em outras palavras, o equívoco se manifestaria tanto
no plano do texto (jogo de palavras stricto sensu) como no plano do contexto (situação
posta pelo avesso).
Sendo assim, a poética fragmentária galego-portuguesa ganharia um matiz conceitual
importante: afirma-se que a cantiga de escárnio satiriza alguém por meio de equívocos
verbais, ao passo que a de maldizer, por meio de palavras claras. Complementando a
Arte de trovar, a Lei XXX do Título IX da “Partida Segunda” regula uma atividade
cortesã que coincide com a natureza do gênero satírico, considerando o que nele deve
prevalecer de equívocos de situação que propiciem o humor e o divertimento; tal
informação redimensionaria o alcance da definição da Arte de trovar.
Portanto, creio que não é apenas o recurso retórico da equivocatio, em sentido estrito,
que deve estar em pauta quando investigamos e interpretamos a produção satírica
peninsular medieval; além dos famosos equívocos verbais da “maeta descadeada” (com
o sentido duplo de maleta e de órgão sexual feminino, em “Maria Pérez, a nossa
cruzada”, de Pero da Ponte) ou da “midida de Espanha” (com o sentido ambíguo de
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
143
tamanho de madeira espanhola e tamanho do órgão sexual masculino, em “Joan
Rodríguiz foi osmar a Balteira”, de Afonso X), devemos sondar os equívocos
contextuais ou jogos de avesso como o dos “incompetentes” jograis Picandon e
Lourenço, entre outros.
É certo que a sátira ocupava um lugar destacado nos serões palacianos, seja pela grande
produção dos trovadores (cerca de 450 cantigas de 85 trovadores, entre 1170 e 1350
[OLIVEIRA, 2001, p. 163-165]), 4 seja pela própria produção do Sábio (40 cantigas),
seja ainda pelo destaque dado ao assunto em suas leis. Não menos evidente, no entanto,
é a natureza desestabilizadora do escárnio e maldizer, oscilante entre o jogo e o crime –
como se descreve na Lei 20 do Título IX da “Sétima Partida” (ALFONSO X, 1992, p.
386-387), o que requeria certo controle na produção de homens interessados em divertir
uma corte por meio de cantigas que contrabalançassem, talvez capciosamente, o desejo
de jogar/denunciar/divertir/ferir e a adequação palaciana exigida por lei, sim, mas, antes
ainda, e sobretudo, pelos costumes dos homens polidos, palacianos. Ambas as ações,
entretenimento e crime, dependiam da intenção do escarnecedor e da interpretação do
escarnecido. Lembre-se de que a concepção de diversão cortesã era amparada pela
noção de jogo que, segundo Marta Madero, era compartilhado e aceito unanimemente
pelos participantes, o que apagava, teoricamente, o efeito injurioso do jugar de palavra
(1992, p. 38).
Cotejando o que dizem as Partidas, o que sugere o verso das cantigas e o que afirmam
os pesquisadores (LAPA, 1981; LOPES, 1994; BELTRAN, 2005), deduz-se com certa
plausibilidade que provavelmente havia dois tipos de alvo para o jugar de palabra. Um
presumível rex facetus (LE GOFF, 1997, p. 452), Afonso X regia sua corte e o fablar en
gasaiado, levando em conta os rumos históricos (de que são testemunhos os cantares
sobre a traição dos vassalos na guerra contra Granada) e as relações políticas de seu
reino. Assim sendo, o tratamento satírico dado aos inimigos – certamente fora de sua
corte ou enrustidos em sua presença – implicaria na menção direta e na crítica explícita
dos defeitos dos visados, irrompendo aí saña e tristeza, além do riso. Por outro lado,
4
Para Manoel Rodrigues Lapa (1995), somam-se 431 cantigas satíricas; para Graça Videira Lopes
(2002), esse número sobe para 474.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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para o tratamento satírico dado aos amigos do rei o trovador dispunha do jogo do
avesso, do equívoco para surtir surpresa e gargalhada descontraída. Para o jugar de
palabra sobre os cortesãos leais é que a lei parece ajustar-se especialmente e para a qual
deviam adequar-se os trovadores, como o nobre João Soares Coelho em sua tenção “–
Vedes, Picandon, soo maravilhado” (LAPA, 1995, p.163), em que acusa de
“incompetente” Picandon, prestigiado jogral do famoso trovador provençal Sordello
(SODRÉ, 2010). A despeito da não coincidência entre a presumível data da tenção, que
teria ocorrido entre o final da década de 20 e início da de 30 (BELTRAN, 2005, p. 64),
e a data da produção das Partidas, entre 1256 e 1265 (D’AGOSTINO, 2001, p. 743),
evidencia-se que os trovadores que produziram suas cantigas, no período de Fernando
III (1217-1252), poderiam já dispor de certas regras e estratégias palacianas para a
produção satírica, herdeiras de tratados retóricos em que se evidencia a necessidade da
conveniência, com vistas a um fablar en gasaiado em companhia do rei ou de um
senhor poderoso.
Essa lei sobre o jugar de palabra seria a expressão jurídica de um costume anterior,
respeitado como norma e, por essa razão, presumivelmente lembrado na confecção de
Las siete partidas, que pretendeu ser uma recolha e uma súmula do Direito medieval
peninsular, eivado de fueros municipais, senhoriais e régio, como afirma Joseph
O’Callaghan (2001, p. xxxi). Assim sendo, e se estiver correta a hipótese, uma releitura
das cantigas de escárnio e maldizer a partir do conceito de jugar de palabras ou jogo de
avessos será, a despeito de seu teor polêmico, oportuna e producente.
2. Examinada a lei e identificada nela uma possível chave de leitura para algumas
cantigas satíricas galego-portuguesas (SODRÉ, 2008; 2010), a etapa seguinte será
investigar não ainda as cerca de quatrocentas e cinquenta cantigas propriamente ditas,
mas um tipo textual ainda pouco observado pela crítica: as setenta e quatro (74) rubricas
atributivas e explicativas que acompanham a compilação geral da lírica profana
medieval, provavelmente ocorrida entre 1325 e 1350 (OLIVEIRA, 1994).
Uma opção metodológica como essa, que conduz a investigação desde as leis afonsinas
até as cantigas satíricas, passando pela análise das rubricas, talvez soe estranho a
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
145
princípio. Entretanto, em E por esto fez este cantar: sobre as rubricas explicativas dos
cancioneiros profanos galego-portugueses, Xoan Carlos Lagares (2000), ao empreender
uma edição crítica das rubricas – mencionadas aqui e ali por Manoel Rodrigues Lapa,
em seu Cantigas d’escarnho e de maldizer dos cancioneiros medievais galegoportugueses (1995) e editadas preliminarmente por Graça Videira Lopes em Cantigas
de escárnio e maldizer dos trovadores e jograis galego-portugueses (2002) –, oferecenos não apenas um ponto de partida excelente para sua apreensão, como também uma
justificativa exata:
Pode parecer extravagante, no sentido etimolóxico do adxectivo, iniciar
unha aproximación á lírica galego-portuguesa medieval tomando como
ponto de partida o estudo das rubricas explicativas dos cancioneiros. Non
debe buscarse a raíz desta escolla nunha equívoca pretensión de
percorrermos as marxes do fenómeno trovadoresco ignorando precisamente
o máis importante, a súa produción artística, senón, contrariamente, na
vontade de abordarmos estes magníficos textos poéticos desde unha
perspectiva ampla e abranxente, tentando acharmos elementos que permitan
comprender as cantigas no seu contorno histórico e cultural, a súa relación
coa expresión escrita, os meios materiais que lles permitiron chegar até hoxe
e o modo en que manteñen, através dos séculos, a súa capacidade de diálogo
con novos leitores. (LAGARES, 2000, p. 3)
Como as leis afonsinas, as informações constantes das rubricas podem ser um
passaporte de leitura fundamental entre o contexto da produção poética galegoportuguesa, quando estavam ainda nítidos os subtextos e pressupostos das cantigas, e o
registro das cantigas nos cancioneiros, quando estariam provavelmente diluídos, devido
à transmissão oral e a sua movência, os dados subliminares para a compreensão delas.
Não obstante o cuidado que se deve ter na utilização desses textos, dados os descuidos e
incongruências dos copistas na transmissão dos cancioneiros, como adverte Pilar
Lorenzo Gradín, em seu artigo “Las razos gallego-portuguesas” (2003, p. 112-113), as
rubricas são, de toda maneira, como a Arte de trovar, testemunhos preciosos para a
compreensão da produção satírica galego-portuguesa e sua relação com as normas e
coerções poéticas e jurídicas da época. Confirma essa opinião o fato de que, “em
realidad, las didascalias son un complemento de la cantiga, una especie de filtro que
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
146
orienta el mensaje poético en textos construidos a menudo mediante la retórica de las
‘palavras cubertas’” (LORENZO GRADÍN, 2003, p. 113). Disso decorre, ademais, que
los textos no iban acompañados de razos en la primera fase de transmisión,
ya que las alusiones a hechos y personas eran lo suficientemente conocidas
en el ambiente de producción de la cantiga, por lo que no eran necesarias
referencias explícitas. Por eso parece lícito pensar que los textos en prosa
fuesen concebidos en un momento posterior al de una fase primitiva de
circulación de las cantigas, probablemente en alguno de los círculos en los
que se organizaba el material poético. Sigue siendo uma incógnita
determinar las razones que llevaron a dotar de texto exegético a poemas de
determinados autores y no a otros, si bien en este caso es lógico pensar que
los redactores de las razos no tenían las mismas noticias para todos los
trovadores y que no todos les interesaban de igual manera. (LORENZO
GRADÍN, 2003, p. 126)
As rubricas, segundo Elsa Gonçalves (1994), podem ser de três tipos: atributivas (com
indicações de autoria), explicativas ou razos (com informações sobre os motivos
contextuais da produção da cantiga, além de seu gênero)5 e codicológicas (com
exposição de dados sobre a constituição da tradição manuscrita). A investigação dos
dados feita pela professora portuguesa, no entanto, se restringiu ao último tipo que, para
efeito deste trabalho, não será considerado agora. Interessam-nos neste estudo as
rubricas explicativas, cuja definição Xoan Carlos Lagares (2000, p. 21-22) amplia:
aqueles breves textos en prosa que, situados próximos á cantiga a que se
referen, indican cal é o tema da composición ou oferecen información
adicional sobre ela. Pertencen por tanto a esta categoría todas aquelas que
mostran a (ou contra) que persoa está dirixida a cantiga, fundamentalmente
nas de escarnio que, como veremos, son as máis favorecidas pola presenza
deste tipo de rubricas. Tamén deben ser incluídas neste grupo as que, sen
ofereceren calquer información concreta sobre a cantiga que acompañan,
achegan dados sobre o seu contexto, sobre os motivos que están na base da
súa produción ou sobre o trovador en relación coa súa obra, e, finalmente,
as que xustifican a inclusión do texto nos cancioneiros.
Os primeiros exemplares de rubricas teriam sido elaborados provavelmente em torno de
1250 (LORENZO GRADÍN, 2003, p. 105). Ademais, a autora detalha alguns dados da
concepção e da função desse “texto complementario”:
5
Os detalhes descritivos da rubrica explicativa podem ser observados na edição crítica de Xoan Carlos
Lagares (2000, p. 21 ss.).
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
147
Las razos fueron seguramente concebidas por los compiladores de las
grandes antologías (y en época tardía no se puede descartar que incluso por
algún autor, como parece ser el caso de don Pedro de Barcelos). El motivo
para la introducción de estos textos “secundarios” se fundamentaría en la
necesidad de proporcionar una clave de lectura que orientase la recepción
de los textos poéticos por parte de un público que no compartia el horizon d’
attente del momento de producción de la cantiga. (LORENZO GRADÍN,
2003, p. 111-112)
Desse modo, os autores das rubricas foram os antologistas e copistas peninsulares que
compuseram o cancioneiro primitivo. Num segundo momento, Angelo Colocci atuou
como revisor das cópias italianas junto a seus amanuenses (GONÇALVES, 1994). O
resultado disso, porém, é o número lamentavelmente pequeno de rubricas (74) de vinte
e quatro trovadores de distintos períodos da produção galego-portuguesa. Dos
trovadores com cantigas rubricadas, os que apresentam o maior número de textos
atributivos e explicativos são Martin Soarez (13), dos mais antigos; Estevam da Guarda
(10), dos mais novos; Lopo Liáns (7), da geração do meio, e Pedro de Portugal, Conde
de Barcelos (7), dos últimos trovadores e, provavelmente, o compilador dos
cancioneiros. O conjunto de cantigas de Fernan Rodriguez de Calheiros (da primeira
metade do século XIII) e o de Johan de Gaia (1287-1330) apresentam três. Os outros
tem duas ou uma rubrica cada.
A garantia de uma chave de leitura e a orientação da recepção das cantigas, em especial
das satíricas, são os aspectos funcionais das rubricas que chamam a atenção. Por esse
motivo, pareceu-nos necessário analisá-las, mesmo que sua proporção seja mínima em
relação ao número de cantigas recolhidas nos três maiores cancioneiros profanos
conhecidos atualmente (Ajuda, Biblioteca Nacional e Vaticana): 74 rubricas para cerca
de 1.500 cantigas6.
Apesar do número reduzido desses textos, uma espécie de avaliador da primeira
recepção das cantigas – e igualmente um freio interpretativo das metáforas nelas
contidas (LAGARES, 2000, p. 51) –, seu exame pode nos ajudar a perceber até que
6
Cf. o capítulo “A situación das rubricas explicativas nos apógrafos quiñentistas” da edição de Lagares
(2000, p. 31ss.)
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148
ponto há indícios da relação entre o que prescrevem as leis afonsinas sobre o fablar en
gasaiado, a sátira e o trovar galego-português. O interesse está na averiguação de
ocorrência de termos como jogar e seu campo semântico; identificação, por meio de
glossários especializados, do sentido das palavras ou expressões, e comparação entre
essa terminologia e o alcance da lei afonsina. Os resultados desses objetivos,
infelizmente pouco expressivos, é o que aqui procuramos expor.
3. De todas as rubricas explicativas observadas na edição de Xoan Carlos Lagares,
apenas uma faz referência explícita a um jogo, na cantiga do trovador português Martin
Soarez, “Joan Fernándiz, um mour’ est’ aqui”, parte de um ciclo de textos que tem em
comum a chufa contra o ainda desconhecido – pela crítica – “mouro convertido” Joan
Fernándiz (PIZZORUSSO, 1992, p. 146).
Vejamos a cantiga e a rubrica:
Joan Fernándiz, un mour’ est’ aqui
fugid’, e dizen que vó-lo avedes;
e fazed’ ora [a]tanto por mi,
se Deus vos valha: que o mooredes7,
ca vo-lo iran da pousada filhar;
e se vós virdes no mouro travar,
sei eu de vós que vos assanharedes.
Levad’ o mour’ e ide-vos daqui,
poi-l’ a seu don’ entregar non queredes,
e jurarei eu que vo-lo non vi,
en tal que vós con o mour’ escapedes,
ca ei pavor d’ iren vosco travar;
e quero-m’ ant’ eu por vós perjurar
ca vós por mouro mao pelejedes.
Si quer meaçan-vos agor’ aqui
por este mouro que vosco tragedes,
e juran que, se vos achan assi
mour’ ascondudo, com’ est’ ascondedes,
se o quiserdes un pouqu’ emparar,
ca vo-lo iran sô o manto cortar,
de guisa que vos sempr’ en doeredes
(LAPA, 1995, p. 194-195)
7
Na edição de Valeria B. Pizzorusso (1992, p. 145), lê-se moveredes.
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(VII) -59B 1367 / V 975 - Martin Soarez
a “Esta outra cantiga fez d’escarnho a un que dizian Joan
b Fernandiz, e semelhava mouro e jogavan-lh’ende; e diss’assi”
Joan Fernandiz, un mour’ést’aqui
-59- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 975; Paxeco-Machado, Bib.
Nacional 1318; Braga, Vaticana 975; Lapa, Escarnho 297; Bertolucci,
Martin Soares XLII. (LAGARES, 2000, p. 144-145)
As considerações de Rodrigues Lapa sobre essa rubrica esclarecem alguns de seus
aspectos, como a insinuação de homossexualidade do visado:
Diz a rubrica: “Esta outra cantiga fez d’ escarnho a um que dizian Joan
Fernándiz, e semelhava mouro, e jogavan-lh’ ende”. O escarnho, contudo,
incide sobre práticas homossexuais que João Fernandes manteria com outro
mouro que tinha fugido para sua casa, e que ele mantinha contra o direito e a
moral. (LAPA, 1995, p. 194)
Como se sabe, a relação entre sodomia e Islã é muito comum nas cantigas satíricas.
Conforme aponta Marta Madero, “La lujuria y la homosexualidad son condenadas de
forma general, estén o no vinculadas a una identidad específica, pero en la ortodoxia de
las representaciones la homosexualidad está vinculada al Islam” (1992, p. 127). Um dos
pontos importantes da cantiga de Soares – e das que compõem o ciclo que tem Joan
Fernándiz como centro de atenção dos trovadores – implica justamente na ambiguidade
da relação deste seja com a etnia moura, seja com seus “hábitos” sodomitas.
Por sua vez, Graça Videira Lopes (2002, p. 318) comenta essa cantiga e outras do ciclo
de Joan Fernándiz – como a de João Soares Coelho, em que o trovador avisa o mouro
de que outro “fode já sua molher” –, considerando que o ponto dos equívocos ou do
jogo estaria justamente no fato de Joan Fernándiz se dizer cristão, mas ser, na verdade,
“mouro”, de forma que o outro mouro, o escondido em sua casa (na cantiga de Martin
Soares) e o amante de sua mulher (na de João S. Coelho), seria ele mesmo. A idéia
engenhosa de se brincar com o duplo de Joan Fernándiz acirra ainda mais a chave de
leitura da cantiga em termos de jogo de avesso.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
150
A propósito, Xoan Carlos Lagares sintetiza bem os motivos da sátira contra Fernándiz,
alvo de uma “broma colectiva”:
Advertimos, así, tres motivos de escarnio en torno á figura de Joan
Fernandiz, que ás veces se entrecruzan nun mesmo poema. Joan Soarez
Coelho (V 1013) chámalle mouro e mófase da súa intención de ir loitar a
Terra Santa, contra os seus proprios correlixionarios, relacionándoa
sarcasticamente co fin do mundo; tamén Afonso Eanes do Coton (B 1616 / V
1149) aponlle o apelativo ‘o mouro’ nunha cantiga en que o inclúe, xunto á
súa propria persoa e a Pero da Ponte, outro feo famoso da lírica medieval
galego-portuguesa, no grupo dos ‘mal talhados’. Este segundo motivo de
escarnio contra o personaxe é utilizado tamén por Martin Soarez (B 1370 / V
978) nunha cantiga en que o acusa de levar a saia demasiado curta. E
convive co terceiro motivo, o que fai referencia ao mouro oculto na súa casa,
na cantiga de Rui Gomez de Briteiros (B 1544) que adverte a Joan Fernandiz
de que un freire anda buscando un mouro que é cresp’e mal talhado (v.4). E
aínda noutra cantiga de Joan Soarez Coelho (V 1012) se conta como un
mouro (dando a entender que é o seu criado, pois é chamado “o vosso
mouro”) mantén relacións sexuais coa súa muller, e tamén aquí a
identificación co proprio Joan Fernandiz é evidente, pois o último verso
declara: fode-a [tal] como a fodedes vós (v.18).
Mais adiante, pondera o autor galego:
Sen dúbida, a chave para a comprensión deste amplo grupo de cantigas está
nas múltiplas connotacións que na altura debía de ter, e/ou nos valores
disfémicos que foi alcanzando no contexto satírico trovadoresco, o
substantivo ‘mouro’ e que hoxe descoñecemos. De calquer xeito, confiando
na información que nos oferece a rubrica podemos concluír, cando menos,
que Joan Fernandiz, que pasou á posteridade co sobrenome de ‘o mouro
renegado’, non era ‘mouro’ senón que simplesmente o parecía (fisicamente
ou no seu comportamento sexual), derivando de aí todo unha enfiada de
bromas máis ou menos crueis compartidas por un grupo de trovadores que o
escarneceron en cantigas dotadas de duplos e ás veces triplos sentidos.
(LAGARES, 2000, p. 55-57)
As observações de Lagares a respeito do parecer mouro de Fernándiz, seja no aspecto
étnico, seja no sexual, ajudam-nos a relacionar com certa segurança a cantiga de Soares
ao jogo de avesso, de que trataremos mais adiante.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
151
A editora do cancioneiro de Martin Soares,Valeria Bertolucci Pizzorusso (1992, p. 146.
grifos nosso), comenta que
O sentido da presente composición non é tan claro como podería parecer
nunha primeira lectura, da cal se deduce que o protagonista ten agochado un
mouro na casa, polo que se lle suxire que o afaste antes de que outras persoas
poidan facerlle dano. Sen embargo, a rúbrica insinúa que se fala
metaforicamente e que o mouro é o propio Johan Fernandiz, a quen tamén
chaman mouro Affons’Eanes do Coton [...] e Johan Soares Coelho, em V
1013, onde fala do mouro pelegrin (v. 10) e do mouro cruzado (v. 6)
Na leitura de Pizzorusso, hesitamos em compreender o advérbio metaforicamente:
estaria relacionado ao sentido do verbo semelhar (“e semelhava mouro”) ou ao jogar
(“e jogavan-lh’ende”)? Segundo o glossário de Rodrigues Lapa, semelhar significa
“parecer, ter o aspecto de” (1995, p. 377); por sua vez, jogar e derivados significam
motejar, brincar, zombar:
jogador: gracejador, motejador
jogar: motejar, zombar
jogo: brincadeira
(LAPA, 1995, p. 336)
Que dimensão jurídico-cultural podemos inferir, portanto, nessas acepções? Se o jugar
de palabras afonsino implica, como cremos, em jogo de avessos, em zombaria equívoca
para difamar ludicamente alguém a partir de seu contrário físico, moral ou
circunstancial, até que ponto será acertado afirmar que o fato de Joan Fernándiz
semelhar mouro, como indica Lagares (“podemos concluír, cando menos, que Joan
Fernandiz, que pasou á posteridade co sobrenome de ‘o mouro renegado’, non era
‘mouro’ senón que simplesmente o parecía (fisicamente ou no seu comportamento
sexual)” [2000, p. 57]), seria apenas um mote pelo avesso para que um ciclo de cantigas
fosse produzido a respeito de um presumível ariano sem semelhança alguma com
mouros? Não há dúvida, de toda maneira, de que seria um desprestígio, injuriante ou
lúdico, para alguém ser comparado à etnia moura, como afirma Marta Madero (1992, p.
117 ss.); a dúvida está, no entanto, na semelhança do visado com o mouro.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
152
As outras rubricas editadas por Lagares não mencionam o verbo jogar. Apresentam,
contudo, outros termos cujos sentidos poderiam se aproximar ou não de seu campo
semântico: apoer (“por defeito, difamar” [LAPA, 1995, p. 294]) e dizer (“declarar,
manifestar, citar pelo nome” [LAPA, 1995, p. 319]). Registram aquele verbo as rubricas
n. 30 (“que lhe apoinhan que era puto”) da cantiga de Estevam da Guarda, “Um
cavaleiro me diss’en baldon”, e n. 66 (“e apoinhan-lhe que se pagava do vinho”) da
cantiga de Joan de Gaia, escudeiro, “Eu convidei un prelado a jantar, se ben me venha”.
O verbo dizer aparece nas rubricas n. 19 (“porque dizian que era seu entendedor”) e 20
(“porque dizian que era entendedor da rainha”) das cantigas de Gonzalo Eanes do
Vinhal, “Amigas, eu oi dizer” e “Sei eu, donas, que deitad’ é aqui”.
A mesma dúvida ocorre nesse conjunto: a fama dos visados (“apoinhan” e “dizian”) que
os trovadores registram nas cantigas e que os copistas informam nas didascálias procede
de fatos ou de ficções e avessos? Voltemos à rubrica da cantiga de Martin Soarez: “Esta
outra cantiga fez d’escarnho a un que dizian Joan Fernandiz, e semelhava mouro e
jogavan-lh’ende; e diss’assi”.
A cantiga de Martin Soares não é facilmente entendida como um jogo de avessos, dada
a falta de dados sobre o visado Fernándiz. Ao contrário dessa, algumas cantigas satíricas
expõem nitidamente o jugar de palabras, tal como é possível entendê-lo, a princípio, na
Partida Segunda de Afonso X: a cantiga deste rei, em que se acusa Pero da Ponte de
latrocida e homicida, ou na de João Soares Coelho, em que se acusa Picandon de jogral
ruim. Nestas, como vimos, o jogo é nítido, já que Ponte, trovador da corte, não poderia
ser ladrão de cantigas, nem assassino de outro trovador impunemente, e Coelho não se
desculparia com Picandon nem o reconheceria como bom jogral numa cantiga satírica
não fosse um jogo sua acusação contundente, como se pode observar na finda da tenção:
Sinher, conhosco-mi-vos, Picandon,
e do que dixi peço-vos perdon
e gracir-vo-l’ey, se mi perdoardes.
Johan Soarez, mui de coraçon
vos perdoarei, que mi dedes don
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
153
e mi busquedes prol per u andardes
(GONÇALVES, 2000, p. 385-386)
Embora saibamos que a sátira galego-portuguesa tende “á insinceridade e a inventar
sucesos que non se corresponden coa realidade (que non teñen un referente real) co
único obxecto de satirizar actitudes e comportamentos” (LAGARES, 2000, p. 52),
conhecemos também cantigas em que eventos históricos entram no jogo poético dos
trovadores, como a traição dos vassalos de Sancho II e a covardia dos guerreiros de
Afonso X nas batalhas de Granada. Nessa fronteira da sátira, sempre devedora dos
sucessos cotidianos, é que se coloca o desafio de averiguar o por vezes incógnito jugar
de palabras.
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SODRÉ, P. João Soares Coelho, Picandon e um jogo de avessos: sobre “Vedes,
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TAVANI, Giuseppe. Trovadores e jograis. Introdução à poesia medieval galegoportuguesa. Lisboa: Caminho, 2002.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
156
Anexo:
Rubricas sobre cantigas satíricas
(I) -18V 977 - Martin Soarez
A “Esta cantiga que se aqui acaba fez Martin Soares a ũa sa
b irmãa, porque lhi fez ela querela dun cl[er]igo que a fodia, ca a
c firia; e o cl[er]igon non quis a ela tornar, ata que ela foi por el a
d sa casa e o trouxe pera [a] sua”
Ũa donzela jaz aqui
-18- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 977; Braga, Vaticana 977;
Paxeco-Machado, Índice 977; Lapa, Escarnho 299; Bertolucci, Martin
Soares XLIV.
(II) -19V. 999 - Gonzalo Eanes do Vinhal
a
“Esta cantiga fez Don Gonçal’Eanes do Vinhal a Don Anrique en
b
nome da rein[h]a Dona Joana, sa madrasta, porque dizian que
c era seu entendedor, quando lidou en Mouron con Don Nuno e
d con Don Rodrigo Afonso, que tragia[n] o poder d’el-rei”
Amigas, eu oí dizer
-19- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 999; Braga, Vaticana 999;
Paxeco-Machado, Indice 999; Nunes, Amigo CXLV.
(III) -20V 1008 - Goncalo Eanes do Vinhal
a “Esta cantiga fez Don Gonzalo ‘Anes do Vinhal ao Infante Don
b Anrique, porque dizian que era entendedor da rainha Dona
c Joana, sa madrasta; e esto foi quando o el-rei Don Alfonso pos
d fora da terra”
Sei eu, donas, que deitad’é d'aqui
-20- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 1008; Braga, Vaticana 1008;
Paxeco-Machado, Índice 1008; Nunes, Amigo CXLVI.
(IV) -22V 1037 - O Conde D. Pedro de Portugal
a “Esta cantiga foi feita a un [e]scudeiro que andou Alen-Mar, e
b dizia que fora alo mouro”
Alvar Rodriguez, monteiro-maior
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
157
-22- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 1037; Braga, Vaticana 1037;
Paxeco-Machado, Indice 1037; Lapa, Escarnho 324; Simões, D. Pedro V.
(V) -27B 935 / V 523 – Per’Eanes Marinho
a “Esta cantiga fez Per’Eanes Marinho, filho de Joan Rodrigues
b de Valadares, por salvar outra que fez Joan Airas de Santiago,
c que diz as[s]i [o] começo:
d
‘Dizen, amigo, que outra senhor
e
queredes vós sen meu grado filhar’”
Boa senhor, o que me foi miscrar
-27- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 523; Paxeco-Machado, Bib.
Nacional 879; Braga, Vaticana 523.
(VI) -30B 1304 / V 909 - Estevan da Guarda
a “Esta cantiga foi feita a un cavaleiro que lhe apoinhan que era
b puto”
Un cavaleiro me diss’en baldon
-30- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 909: Paxeco-Machado, Bib.
Nacional 1253; Braga, Vaticana 909; Lapa, Escarnho 104; Pagani, Estevan
da Guarda XIII.
(VII) -59B 1367 / V 975 - Martin Soarez
a “Esta outra cantiga fez d’escarnho a un que dizian Joan
b Fernandiz, e semelhava mouro e jogavan-lh’ende; e diss’assi”
Joan Fernandiz, un mour’ést’aqui
-59- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 975; Paxeco-Machado, Bib.
Nacional 1318; Braga, Vaticana 975; Lapa, Escarnho 297; Bertolucci,
Martin Soares XLII.
(VIII) -61B 1369 / V 977 - Martin Soarez
a “Esta outra cantiga fez d’escarnho a ũa donzela; e diz assi”
Ũa donzela jaz aqui
-61- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 977; Paxeco-Machado, Bib.
Nacional 1320; Braga, Vaticana 977; Bertolucci, Martin Soares XLIV.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
158
(IX) -66B 1452 / V 1062 - Joan de Gaia, escudeiro
a
“Esta
cantiga
foi
seguida
per
ũa
bailada
que
diz
b‘Vós
avede-los
olhos
verdes,
c e matar-m’-edes con eles’;
d e foi feita a ũu bispo de Viseu, natural d’Aragon, que era tan
e cardeo como cada ũa destas cousas que conta en esta cantiga,
f ou máis; e apoinhan-lhe que se pagava do vinho”
Eu convidei un prelado a jantar, se ben me venha
-66- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 1062; Paxeco-Machado, Bib.
Nacional 1364; Braga, Vaticana 1062; Lapa, Escarnho 199. Stegagno
Picchio, “Os alhos verdes (Uma cantiga de escarnho de Johan de Gaya)”, in
A Lição do Texto, p. 109.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
159
Fontes da misoginia medieval:
ressonâncias aristotélicas no pensamento
religioso medieval
Pedro Carlos Louzada Fonseca
Universidade Federal de Goiás (UFG)
Resumo: Este trabalho examina duas das principais ideias que podem ser consideradas como
fundamentais na formação da tradição antifeminista na cultura e literatura européias. A primeira
dessas ideias são os estudos de Aristóteles sobre a fisiologia da mulher, onde ele reduziu o seu
papel na procriação àquele de matéria prima, a esperar a agência formadora ou movimentadora
do sêmen do homem. Essa consideração aristotélica certamente substanciou uma desagradável
equação entre mulher e matéria, a qual encontrou apoio no pensamento religioso da Idade
Média. Esta é a segunda das ideias mencionadas acima. De maneira comparativa e crítica, o
trabalho aponta e discute aquelas ideias basilares da tradição antifeminista européia, por meio da
seleção e da citação de significantes partes da Geração dos animais, de Aristóteles e de autores
da escrita religiosa medieval.
Palavras-chave: Antifeminismo; História e cultura; Tradição européia.
Abstract: This work examines two of the main ideas which can be considered as fundamental to
the formation of the antifeminist tradition in European culture and literature. The first of these
ideas are Aristotle’s studies about the woman physiology, where he reduced her role in the
procreation to that of prime matter awaiting the forming and moving agency of the male semen.
This Aristotelian consideration certainly substantiated an unpleasing equation between woman
and matter, which found support in the religious thinking of the Middle Ages. This is the second
of the ideas above mentioned. In a comparative and critical manner, the work points out and it
discusses those two basilar ideas of the European antifeminist tradition by means of a selection
and quotation from significant parts of Aristotle’s Generation of Animals and from authors of
medieval religious writing.
Keywords: Antifeminism; History and culture; European tradition.
Os postulados de Aristóteles (384-322 a. C.) acerca da geração ou procriação das
espécies animais, incluindo o gênero humano, foram de fundamental influência na
formação do tradicional antifeminismo, não só na época em que foram elaborados, mas
também, posteriormente, no pensamento medieval e moderno. Tais postulados podem
ser encontrados, consistentemente, em De generatione animalium [Sobre a geração dos
animais], cujos princípios fisiológicos tiveram considerável impacto, principalmente a
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
160
partir do século XII, quando a obra de Aristóteles começou a ser estudada na
Universidade de Paris.
Na verdade, as fontes da misoginia medieval – desconsiderando-se a impressão que se
tem de que elas podem ser localizadas cada vez mais regressivamente na história das
ideias e da cultura ocidental – podem ser identificadas em duas direções: uma
conduzindo à antiga lei hebraica, e a outra, ao alvorecer da cultura grega, onde, por
exemplo, já em Hesíodo (c. 750 a. C.), aparecem certas imagens da mulher como
responsável pela introdução do mal no mundo (ALLEN, 1985, p. 14-15).
O legado dos pronunciamentos de Aristóteles sobre o gênero feminino, apesar do peso
da auctoritas que o filósofo havia adquirido na Idade Média, não foi, entretanto,
absolutamente incontestável.
Em mais de um momento, médicos e comentadores
discutiram acerca das mais derrogatórias deduções que a fisiologia de Aristóteles havia
estabelecido para o corpo feminino, principalmente aquelas que a ele se referiam como
uma espécie de corpo masculino deformado, ou cuja finalidade procriadora teria sido
distorcida.
É bastante conhecida a redução aristotélica da função da mulher na
procriação como responsável pela contribuição da matéria prima apenas, semente
inativa e informe, à espera do princípio formador e animador encontrado no sêmen do
homem.
A fim de se aquilatar a importância que os preceitos fisiologistas de Aristóteles tiveram
na construção linguística, retórica e imaginária da figura feminina – a partir da influente
obra enciclopedística de Isidoro de Sevilha (c. 570-636) denominada Etymologiae
[Etimologias] –, uma seleção antológica, ainda que sucinta, de pontos surgidos na
discussão de Aristóteles acerca do sêmen, da menstruação e da espécie de contribuição
da mulher na procriação torna-se necessária ser examinada. Para tal seleção, constante
de 726b, 727a, 727b, 728a, 729a, 737a, 738b e 775a, do De generatione animalium, foi
utilizada a tradução de A. L. Peck, Aristotle: Generation of Animals (1963), cujos
trechos selecionados do original correspondem às páginas 91-93, 97, 101-103, 109, 173175, 185 e 459-461.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
161
Aristóteles comenta sobre o sêmen masculino, uma espécie de resíduo nutricional em
forma de sangue, de grande potência, obtido graças a uma especial preparação calorífera
mais intensa no corpo do macho. Fala, em contrapartida, sobre o resíduo feminino,
menos preparado nutricionalmente, expelido do corpo feminino em maior quantidade
fluídica, como sangue, de valor potencial mais fraco por causa da menor quantidade de
calor produzido em criaturas inferiores, como as fêmeas:
Semen is pretty certainly a residue from that nourishment which is in the
form of blood and which, as being the final form of nourishment, is
distributed to the various parts of the body. This, of course, is the reason why
semen has great potency – the loss of it from the system is just as exhausting
as the loss of pure healthy blood […] Now (i) the weaker creature too must of
necessity produce a residue, greater in amount and less thoroughly
concocted; and (ii) this, if such is its character, must of necessity be a volume
of bloodlike fluid. (iii) That which by nature has a smaller share of heat is
weaker; and (iv) the female answers to this description.1 (ARISTOTLE,
1963, 726b)
Na sequência dos comentários sobre as secreções procriadoras produzidas pelo macho e
pela fêmea, Aristóteles chega aos seus famosos postulados binômicos sobre matéria /
corpo e forma / alma; realidades que, respectivamente, caracterizariam, na geração dos
descendentes, a contribuição da propriedade formativa e animadora do sêmen do
macho, altamente nutriente por causa da sua natureza calorífera, e a contribuição da
propriedade passiva e não-formativa do resíduo nutriente feminino, dada a frieza da sua
natureza:
Now it is impossible that any creature should produce two seminal secretions
at once, and as the secretion in females which answers to semen in males is
the menstrual fluid, it obviously follows that the female does not contribute
any semen to generation; for if there were semen, there would be no
1
O sêmen é muito certamente um resíduo daquele nutriente que está na forma de sangue e que, por ser a
forma final de nutriente, é distribuído às várias partes do corpo. Isso, claro, é a razão pela qual o sêmen
tem maior potência – a perda dele do sistema é tão exaustiva quanto é a perda do puro sangue saudável
[...] Agora, (i) a criatura mais fraca também deve, por necessidade, produzir um resíduo, maior em
quantidade e inteiramente menor em preparação nutricional de conversão sanguínea; e isso, (ii) se tal é a
sua característica, deve, por necessidade, ser um volume de fluido semelhante ao sangue. (iii) Aquilo que,
por natureza, tem uma menor porção de calor é mais fraco; e (iv) a fêmea corresponde a esta descrição.
1
Agora, é impossível que qualquer criatura deva produzir dois tipos de secreção seminal ao mesmo
tempo e, como a secreção nas fêmeas, que corresponde ao sêmen nos machos, é o fluido menstrual,
obviamente segue-se que a fêmea não contribui com nenhum sêmen na geração; porque, se ele fosse
sêmen, não existiria nenhum fluido menstrual, mas, como o fluido menstrual é de fato produzido, portanto
não existe nenhum sêmen.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
162
menstrual fluid; but as menstrual fluid is in fact formed, therefore there is no
semen.2 (ARISTOTLE, 1963, 727a).
By now it is plain that the contribution which the female makes to generation
is the matter used therein, that this is to be found in the substance constituting
the menstrual fluid, and finally that the menstrual fluid is a residue.3
(ARISTOTLE, 1963, 727b).
A woman is as it were an infertile male; the female, in fact, is female on
account of inability of a sort, viz., it lacks the power to concoct semen out of
the final state of nourishment […] because of the coldness of its nature.4
(ARISTOTLE, 1963, 728a)
The male provides the “form” and the “principle of the movement,” the
female provide the body, in other words, the material.5 (ARISTOTLE, 1963,
729a)
Na sequência dessas reflexões, Aristóteles dá a entender que a contribuição da fêmea na
geração, o seu fraco resíduo seminal, é responsável pela produção de machos
deformados, isto é, de descendentes do sexo feminino, pois lhes faltam o princípio da
alma, apenas encontrado, na sua inteireza, no sexo masculino. Portanto, a não produção
de machos parece ser devida, em princípio, à espécie de atuação da fêmea genitora:
When the semen has entered the uterus it “sets” the residue produced by the
female and imparts to it the same movement with which it is itself endowed.
The female’s contribution, of course, is a residue too, […] and contains all
the parts of the body potentially, though none in actuality; and “all” includes
those parts which distinguish the two sexes. Just as it sometimes happens
that deformed offspring are produced by deformed parents, and sometimes
not, so the offspring produced by a female are sometimes female, sometimes
not, but male. The reason is that the female is as it were a deformed male;
and the menstrual discharge is semen, though in an impure condition; i. e. it
lacks one constituent, and one only, the principle of Soul.6 (ARISTOTLE,
1963, 737a)
2
Agora, é impossível que qualquer criatura deva produzir dois tipos de secreção seminal ao mesmo
tempo e, como a secreção nas fêmeas, que corresponde ao sêmen nos machos, é o fluido menstrual,
obviamente segue-se que a fêmea não contribui com nenhum sêmen na geração; porque, se ele fosse
sêmen, não existiria nenhum fluido menstrual, mas, como o fluido menstrual é de fato produzido, portanto
não existe nenhum sêmen.
3
Por agora está claro que a contribuição que a fêmea faz para a geração é a matéria nela usada, que esta é
encontrada na substância que constitui o fluido menstrual, e finalmente, que o fluido menstrual é um
resíduo.
4
Uma mulher é como se fosse um homem infértil; a fêmea, de fato, é fêmea devido a uma espécie de
inabilidade, viz., falta-lhe o poder da preparação do sêmen num estado final de nutrição [...] por causa da
frieza da sua natureza.
5
O macho provê a “forma” e o “princípio do movimento”, a fêmea provê o corpo, em outras palavras, o
material.
6
Quando o sêmen entra no útero, ele “fixa” o resíduo produzido pela fêmea e imprime nele o mesmo
movimento com o qual ele próprio é dotado. A contribuição da fêmea, claro, é um resíduo também, [...] e
contém todas as partes do corpo potencialmente, embora nenhuma em atualidade; e “todas” inclui
aquelas partes que distinguem os dois sexos. Da mesma forma que, às vezes, acontece de descendentes
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
163
Aristóteles dá a entender, na passagem a seguir, que a alma de cada corpo vivo é uma
dotação do genitor, ao passo que o corpo, a parte física da criatura, vem da genitora,
pois somente o sêmen masculino possui a capacidade de carregar a alma, essência de
cada corpo em particular, a qual é impressa na matéria, dando-lhe forma:
An animal is a living body, a body with Soul in it. The female always
provides the material, the male provides that which fashions the material into
shape; this, in our view, is the specific characteristic of each of the sexes: that
is what it means to be male or female. Hence, necessity requires that the
female should provide the physical part, i. e., a quantity of material, but not
that the male should do so, since necessity does not require that the tools
should reside in the product that is being made, nor that the agent which uses
them should do so. Thus the physical part, the body, comes from the female,
and the Soul from the male, since the Soul is the essence of a particular
body.7 (ARISTOTLE, 1963, 738b)
No trecho a seguir, o filósofo, continuando a sua reflexão sobre a condição de
deformidade natural da fêmea, diz que, devido à frialdade da sua natureza, ela se
desenvolve de forma mais débil e mais rapidamente perecível, uma vez que as coisas
inferiores cumprem o seu fim mais rapidamente:
Once birth has taken place everything reaches its perfection sooner in
females than in males – e. g. puberty, maturity, old age – because females are
weaker and colder in their nature; and we should look upon the female state
as being as it were a deformity, though one which occurs in the ordinary
course of nature. While it is within the mother, then, it develops slowly on
account of its coldness, since development is a sort of concoction, concoction
is effect by heat, and if a thing is hotter its concoction is easy; when,
however, it is free from the mother, on account of its weakness is quickly
approaches its maturity and old age, since inferior things all reach their end
more quickly.8 (ARISTOTLE, 1963, 775a)
deformados serem produzidos por pais deformados e, às vezes, não, assim os descendentes produzidos
por uma fêmea são, às vezes, fêmeas, às vezes, não, mas machos. A razão é que a fêmea é como se fosse
um macho deformado, e a descarga menstrual é sêmen, embora numa condição impura; i. e., falta-lhe um
constituinte, e somente um, o princípio da Alma.
7
Um animal é um corpo vivo, um corpo com Alma dentro. A fêmea sempre provê o material, o macho
provê aquilo que molda o material numa forma; isto, em nossa opinião, é a característica específica de
cada um dos sexos: isto é o que significa ser macho ou fêmea. Daí que, a necessidade requer que a fêmea
deve prover a parte física, i. e., a quantidade de material, mas não que o macho deve fazer o mesmo, uma
vez que a necessidade não requer que os instrumentos devem residir no produto que está sendo feito, nem
que o agente que os usa deve fazer o mesmo. Então, a parte física, o corpo, vem da fêmea; e a Alma, do
macho, uma vez que a Alma é a essência de um corpo individual.
8
Uma vez ocorrido o nascimento, tudo alcança o seu acabamento mais cedo nas fêmeas do que nos
machos – e.g. puberdade, maturidade e velhice – porque as fêmeas são mais fracas e mais frias em sua
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
164
Nessa breve seleção de pronunciamentos de Aristóteles sobre a fêmea, percebe-se uma
maior derrogação da imagem feminina em relação à sua incapacidade em processar, de
forma mais depurada, o nutriente convertido especialmente em sangue, o qual não
atinge, de forma completa, o seu estado final de nutrição seminal por causa da
insuficiência de calor que caracteriza a sua natureza. É por essa razão que o fluido
menstrual é uma espécie de sêmen em condição impura, faltando-lhe um único
constituinte – o princípio da Alma. Uma vez que, desde a tradição aristotélica, tal
funcionamento do corpo feminino foi visto assim de forma tão negativa, a menstruação
tornou-se uma preocupação constante não só da medicina, mas também da religião
medieval.
A condição de impureza da menstruação indicava a sujidade feminina, refletida não só
no terreno da fisiologia, mas também no campo moral e religioso.
Dentre outras
superstições, o imaginário medieval conferia a ideia de que, se um homem tivesse sexo
com uma mulher em estado de menstruação, estaria arriscando contrair a lepra
(JACQUART e THOMASSET, 1988, p. 186). Esse aspecto fisiológico da mulher
reprimia o seu completo desenvolvimento humano, tornando-a incapaz de igualar-se ao
homem porque, diferente dele, o seu sistema corporal dava mostras da sua mais
anômala inoperância: ter que se manter limpando periodicamente de uma espécie de
água residual suja.
Entretanto, as crenças imaginárias, derivadas dos pronunciamentos da tradição
aristotélica sobre a fisiologia da menstruação, vão desde as mais ingênuas às mais
grotescas e sinistras. Num livro do século XIII, intitulado De secretis mulierum [Sobre
o segredo das mulheres], bastante popular e espuriamente atribuído a Alberto Magno,
encontram-se os mais bizarros comentários acerca da mulher em estado de menstruação:
normalmente poderia ser venenosa, mas, especialmente numa mulher menstruando-se
natureza; e nós devemos considerar o estado da fêmea como uma deformidade, embora uma deformidade
que ocorre no curso ordinário da natureza. Enquanto está dentro da mãe, então, a fêmea se desenvolve
mais devagar, devido a sua frieza, uma vez que o desenvolvimento é uma espécie de preparação
nutricional sanguínea e tal preparação é efetuada pelo calor, e se uma coisa é mais quente, a sua
preparação é fácil; quando, entretanto, a fêmea sai de dentro da mãe, devido à sua fraqueza, ela
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
165
irregularmente ou numa velha, cujo sistema menstrual era considerado em estado de
deterioração, os danosos fluidos, ao procurarem uma saída, poderiam ser transmitidos
pelos olhos, tendo a capacidade de envenenar crianças pequenas (JACQUART e
THOMASSET, 1988, p.75-76).
Esses perniciosos atributos da menstruação, ao lado de muitos outros constantes da
natureza feminina, criaram tradicionais crenças femifóbicas, indicando a ideação de
uma adversidade biológica, na atração e no exercício sexual, do poder da mulher sobre a
vida do homem. André Capelano (século XII) exemplifica isso, no comentário que faz
de, certa vez, ter lido num tratado de medicina que a atividade sexual faz o homem
envelhecer mais cedo. Em Andreas Capellanus On Love (1982) [De amore (c. 1185)],
comentando sobre o descontrole danoso causado ao homem pelo sexo com uma mulher,
diz o autor: “It does not matter how full of sound sense a man is. Once enticed to sexual
intercourse he cannot observe moderation, deploy his wisdom to control tendencies to
sexual indulgence, or curb his lethal activities” (ANDREAS CAPELLANUS, 1982, III.
62).9 Essa opinião, bastante corrente na literatura patrística da Idade Média, pode ser
bem representada por São Jerônimo (c. 342-420), no seu misógino livro Adversus
Jovinianum [Contra Joviniano] (c. 393), em passagens como aquela de I. 49: “The love
of a beauty buries reason and is close neighbour of madness” (JEROME, 1893, p.
416).10
Aristóteles e Galeno haviam comentado que o sêmen masculino era uma espécie de
resíduo de sangue altamente refinado. Consoante a essa opinião, havia a suposição,
entre os médicos e fisiologistas medievais, de que a atividade sexual, praticada com
muita frequência, poderia literalmente drenar a vitalidade do sangue do homem,
debilitando-lhe, talvez, o cérebro ou mesmo os olhos (ARISTOTLE, 1963, 726b;
ROUSSELLE, 1988, p. 12-20; JACQUART e THOMASSET, 1988, p. 55-56).
rapidamente se aproxima da sua maturidade e da sua velhice, uma vez que todas as coisas inferiores
alcançam o seu final mais rapidamente.
9
Não importa quão cheio de sadio senso o homem esteja. Uma vez atraído ao intercurso sexual, ele não
pode observar a moderação, organizar a sua sabedoria para controlar tendências à indulgência sexual, ou
refrear as suas atividades letais.
10
O amor por uma beldade enterra a razão e é vizinho próximo da loucura.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
166
É de se constatar que tais depoimentos antifeministas tenham decorrido da postulação
aristotélica de que a fêmea seria uma espécie de macho incompleto, deformado, cuja
geração não havia resultado satisfatória, principalmente devido ao corpo feminino ser,
por natureza, mais frio, não conseguindo, por essa razão, refinar os seus fluidos
seminais da mesma forma que o corpo masculino. Facilitado pelo calor natural do seu
corpo, o macho produz o seu sêmen, o qual difere do fluido feminino, cuja acumulação
em forma de mênstruos requer purgações periódicas.
Na esteira dessas ideias aristotélicas, ligadas à fisiologia dos sistemas sexuais do macho
e da fêmea, Galeno (131-201) desenvolve interessantes pontos de vista acerca da
anatomia da deformidade da genitália feminina. Galeno foi um médico da corte do
imperador Marco Aurélio e escreveu extensamente sobre medicina e sobre anatomia.
Durante a Idade Média, o que escreveu, originalmente em grego, foi transmitido por
escritos árabes.
Galeno confirmou a teoria hierárquica dos sexos cunhada por
Aristóteles. Ao comentar sobre a diferença de temperatura entre o sexo feminino e o
masculino, ele acreditava que o pouco calor do corpo feminino era a causa dos seus
órgãos generativos terem ficado internalizados, numa posição, portanto, inversa aos do
corpo masculino.
A fim de se poder avaliar a importância dos preceitos fisiologistas e anatomicistas de
Galeno, em relação ao que ele segue ou acrescenta ao que Aristóteles expõe em De
Generatione animalium, a seguinte seleção antológica, extraída do seu livro De usu
partium (final do século II) [Sobre as partes do corpo], serve para apresentar pontos
básicos da sua contribuição, no desenvolvimento da tradição aristotélica, à questão da
geração do sexo masculino e do sexo feminino. Para tal seleção, constante de II. 299,
II. 300 e II. 301, do De usu partium, foi utilizada a tradução de Margaret Tallmadge,
Galen: On the Usefulness of the Parts of the Body (1968) [Sobre a utilidade das partes
do corpo], cujos trechos selecionados do original correspondem às páginas 630-632.
Diferenciando-se de Aristóteles, Galeno apresenta alguns reconhecimentos mais
simpáticos a uma maior participação da fêmea na geração como, por exemplo, o fato da
presença da sua semente no coito, contribuindo, assim, o “sêmen” feminino na
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
167
concepção. No seu livro, Galeno aborda a questão da presença e da quantidade do calor,
instrumento primordial da Natureza, como a razão da perfeição do macho, tanto nos
animais quanto nos seres humanos. As fêmeas, segundo Galeno, são mais imperfeitas
do que os machos no seu aparelho genital que, por insuficiência do calor do seu corpo,
não adquiriu a plenitude de uma manifestação exterior. Galeno faz questão de frisar que
essa mutilação é vantajosa, pois convalida a necessidade da presença da fêmea no
processo da geração:
Now just as mankind is the most perfect of all animals, so within mankind
the man is more perfect than the woman, and the reason for this perfection is
his excess of heat, for heat is Nature’s primary instrument. Hence in those
animals that have less of it, her workmanship is necessarily more imperfect,
and so it is no wonder that the female is less perfect than the male by as much
as she is colder than he. In fact, just as the mole has imperfect eyes, though
certainly not so imperfect as they are in those animals that do not have any
trace of them at all, so too the woman is less perfect than the man in respect
to the generative parts. For the parts were formed within her when she was
still a foetus, but could not because of the defect in the heat emerge and
project on the outside, and this, though making the animal itself that was
being formed less perfect than one that is complete in all respects, provided
no small advantage for the race; for there needs must be a female. Indeed,
you ought not to think that our Creator would purposely make half the whole
race imperfect and, as it were, mutilated, unless there was to be some great
advantage in such a mutilation.11 (GALEN,1968, II. 299)
No que se segue, Galeno imprime ao sentido de “mutilação” da fêmea certa dignidade
natural e tenta racionalizar os fatos: se a fêmea é imperfeita por falta de calor suficiente,
não encontrado no seu corpo, essa mesma insuficiência calorífera, não favorecendo a
dispersão do nutriente, mantém-no em forma de material abundante para a vida uterina
do feto. Assim, naturalizando a constituição mais frígida da fêmea, comenta Galeno
11
Agora, do mesmo modo como a espécie humana é a mais perfeita de todos os animais, assim, dentro da
humanidade, o homem é mais perfeito do que a mulher, e a razão dessa sua perfeição é o seu excesso de
calor, porque o calor é o instrumento primordial da Natureza. Daí que, aqueles animais que o têm de
menos, a sua obra [i. e., da Natureza] é necessariamente mais imperfeita, e, assim, não é de se admirar
que a fêmea seja menos perfeita do que o macho, devido ao tanto que ela é mais fria do que ele. De fato,
assim como a toupeira tem olhos imperfeitos, embora certamente não tão imperfeitos como naqueles
animais que não tem, de forma alguma, nenhuma marca deles [dos olhos], assim também a mulher é
menos perfeita do que o homem com respeito às partes generativas. Porque as partes foram formadas
dentro dela, quando ela era ainda um feto, mas não puderam, por causa da insuficiência do calor, emergir
e se projetar para o lado de fora, e isto, embora fazendo o próprio animal que estava sendo formado
menos perfeito do que aquele que é completo em todos os aspectos, providenciou uma vantagem não
pequena para a raça; por causa da necessidade de uma fêmea. Na verdade, não se deve pensar que o
nosso Criador tenha propositadamente feito metade da raça inteira e, como se fosse, mutilada, a menos
que exista uma grande vantagem nessa mutilação.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
168
que a sua insuficiência de calor corporal manteve a genitália escrotal recolhida,
formando o útero para abrigar o feto, promovendo a geração e a continuidade da raça.
Nesse caso, a existência da fêmea decorre de uma simples necessidade natural
adjuntiva:
Let me tell what this is. The foetus needs abundant material both when it is
first constituted and for the entire period of growth that follows. […]
Accordingly, it was better for the female to be made enough colder so that
she cannot disperse all the nutriment which she concocts and elaborates. […]
This is the reason why the female was made cold, and the immediate
consequence of this is the imperfection of the parts, which cannot emerge on
the outside on account of the defect in the heat, another very great advantage
for the continuance of the race. For, remaining within, that which would
have become the scrotum if it had emerged on the outside was made into the
substance of the uteri, an instrument fitted to receive and retain the semen
and to nourish and perfect the foetus.12 (GALEN, 1968, II. 300)
Na sequência das suas reflexões sobre a imperfeição da mulher, enquanto necessidade
planejada pela sabedoria do Criador para a geração das criaturas, Galeno, ainda tocando
na questão da importância da quantidade de calor, em excesso no macho e deficiente na
fêmea, parece chegar a uma pacífica concordância relativamente à relevância que os
dois teriam na geração dos seus descendentes. Consoante a isso, preocupado com a
constituição anatômica das partes sexuais do macho e da fêmea, analogiza essas partes,
a ponto de dizer que a mulher tem testículos (ovários) como os homens, e que ambos
produzem sêmen, mais perfeitos nestes e imperfeitos naquelas. Entretanto, mesmo essa
imperfeição das partes sexuais da fêmea tem uma função compensatória, advinda da
necessidade da natureza, na geração dos animais:
Forthwith, of course, the female must have smaller, less perfect testes, and
the semen generated in them must be scantier, colder, and wetter (for these
things too follow of necessity from the deficient heat). Certainly such semen
would be incapable of generating an animal. […] The testes of the male are
as much larger as he is the warmer animal. The semen generated in them,
having received the peak of concoction, becomes the efficient principle of the
animal. Thus, from one principle devised by the Creator in his wisdom, that
principle in accordance with which the female has been made less perfect
12
Deixe-me contar o que é isto. O feto precisa de material abundante, tanto quando ele é primeiramente
constituído quanto para o período inteiro do crescimento que segue. [...] Conseqüentemente, foi melhor
para a fêmea ser feita suficientemente mais fria para que ela não possa dispersar todo o nutriente que ela
prepara e elabora. [...] Esta é a razão pela qual a fêmea foi feita fria, e a conseqüência imediata disto é a
imperfeição das partes, as quais não podem emergir para o lado de fora devido à deficiência de calor,
outra vantagem muito grande para a continuação da raça. Porque, permanecendo dentro, aquilo que teria
se transformado no escroto, se tivesse emergido para fora, foi transformado na substância do útero, um
instrumento apropriado para receber e reter o sêmen e para nutrir e aperfeiçoar o feto.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
169
than the male, have stemmed all these things useful for the generation of the
animal: that the parts of the female cannot escape to the outside; that she
accumulates an excess of useful nutriment and has imperfect semen and a
hollow instrument to receive the perfect semen; that since everything in the
male is the opposite [of what it is in the female], the male member has been
elongated to be most suitable for coitus and the excretion of semen; and that
his semen itself has been made thick, abundant, and warm.13 (GALEN, 1968,
II. 301).
Além de Galeno, dentre outros na Antiguidade, o fisiologismo de Aristóteles – relativo
à participação do macho e da fêmea na geração dos animais e, por analogia, do homem
e da mulher na geração da sua prole – deixou um influente legado no pensamento dos
mais importantes religiosos da Idade Média. Especialmente quando preocupados com a
questão da definição do gênero ligada às ideias aristotélicas de matéria e forma, as quais
foram respectivamente utilizadas para indicar as propriedades do feminino e do
masculino. Apesar da variada gama de escritos medievais que se basearam – quer de
forma mais direta e literal, quer de maneira mais metafórica, simbólica ou figurativa –
nos postulados aristotélicos fundamentados nessas ideias de qualificação genérica, os
escritos de Santo Anselmo e de São Tomás de Aquino servem para dar uma exemplar e
suficiente mostra do tratamento da questão no período medieval.
Santo Anselmo (1033-1109), um monge beneditino, que havia chegado a Arcebispo da
Cantuária, é uma figura curiosa, principalmente por seus escritos trazerem um
imaginário não muito ortodoxo relativamente à questão do gênero transferida para o
terreno do sagrado.
Compôs uma prece lírica a São Paulo, na qual as metáforas
simbólicas da geração e da nutrição de uma nova vida, muito apreciadas no
cristianismo, imaginaram a figura de Jesus Cristo como uma verdadeira mãe (ALLEN,
1985, p. 265-66). Mesmo em termos de análise filosófica, na sua principal obra,
13
Com isso, é claro, a fêmea deve ter testículos menores e menos perfeitos, e o sêmen gerado neles deve
ser mais escasso, mais frio e mais úmido (porque essas coisas também acontecem necessariamente devido
ao calor deficiente). Certamente, tal sêmen seria incapaz de gerar um animal. [...] Os testículos do macho
são maiores à medida que ele é um animal mais quente. O sêmen gerado neles, tendo recebido o máximo
de refinamento, torna-se o princípio eficiente do animal. Então, de um princípio planejado pelo Criador
em sua sabedoria, aquele princípio, de acordo com o qual a fêmea foi feita menos perfeita do que o
macho, derivaram todas estas coisas úteis para a geração do animal: que as partes da fêmea não podem
escapar para fora; que ela acumula um excesso de nutriente útil, e tem sêmen imperfeito e um instrumento
oco para receber o perfeito sêmen; que, uma vez que, tudo no macho é o oposto (daquilo que está na
fêmea), o membro do macho foi alongado para estar mais apropriado para o coito e para a excreção do
sêmen; e que este sêmen foi feito grosso, abundante e quente.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
170
Monologium, Santo Anselmo, desafiando preconceitos canônicos, discute sobre o
gênero do sagrado. Por meio de um curioso raciocínio, que joga com o gênero das
principais palavras-conceito, utilizadas para definir os atributos do Supremo Espírito
(Deus) e do seu filho Jesus, chega à seguinte conclusão: ambos podem ser,
indiferentemente, chamados de pai e filho ou de mãe e filha, visto que ambos têm
igualmente, no seu mais supremo teor, espírito (i. e., spiritus, no latim, uma palavra do
gênero masculino) e verdade e sabedoria (i. e., veritas e sapientia, palavras do gênero
feminino, no latim). Entretanto, após essa instigação, que lembra o método etimológico
de Santo Isidoro de Sevilha, Santo Anselmo retrocede na sua conclusão. Lembra-se,
para tanto, do conceito aristotélico da função paterna como causa principal da geração
(princípio esse bastante de acordo com o postulado bíblico da precedência de Adão
sobre Eva na Criação) e conclui, definitivamente, que o Supremo Espírito só poderia ser
mesmo masculino, o mesmo acontecendo com o seu Filho, ao Pai unido em Espírito.
O trecho a seguir, constante do capítulo 42 do Monologium, constitui uma derivação
figurada e ideológica das ideias fisiologistas de Aristóteles e das ideias etimologistas de
Santo Isidoro de Sevilha acerca das razões pelas quais o pai teria precedência como
causa primeira na geração, visto que é o princípio da Alma, responsável pela forma e
pelo movimento. A mãe vem em segundo plano, entrando com a matéria para a
composição corporal dos descendentes. Sobre essa questão do pai como causa primeira,
Santo Isidoro de Sevilha, em IX. v. 3, das Etymologiae, diz que o pai (pater) é a origem
e a cabeça da família (paterfamilias), sendo assim chamado porque ele procria um filho
para colocar em bom termo final uma capacidade (patratione). Para a apresentação do
assunto discutido por Santo Anselmo, foi utilizada a edição e tradução de Jasper
Hopkins e Herbert Richardson, Anselm of Canterbury (1974), cujo trecho selecionado
do original corresponde ao capítulo 42 do Monologium.
I should now like to infer, if I can, that the Supreme Spirit is most truly father
and the Word most truly son. Yet, I think I ought not to bypass the question
of which set of terms is more suitable for them – “father and son” or “mother
and daughter” – for there is no sexual distinction in the Supreme Spirit and
the Word. For if the Supreme Spirit is appropriately father and its offspring
appropriately son because each is spirit, then by parity of reasoning why is it
not appropriate for one to be mother and the other to be daughter on the
grounds that each is truth and wisdom? Is it [preferable to call them father
and son] because among those natures which have a difference of sex it is
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
171
characteristic of the better sex to be father and son and of the inferior sex to
be mother and daughter? Now, although such is naturally the case for many
beings, for others the reverse holds true. For example, in some species of
birds the female sex is always larger and stronger, the male sex smaller and
weaker. But surely, the Supreme Spirit is more suitably called father than
mother because the first and principal cause of offspring is always the father.
For, if the paternal cause always in some way precedes the maternal cause,
then it is exceedingly inappropriate for the name “mother” to be applied to
that parent whom no other cause either joins or precedes for the begetting of
offspring.14 (ANSELM, 1974, i. 55-56)
Os postulados aristotélicos, referentes à equivalência fisiologista da mulher à matéria,
chegaram ao século XIII e tiveram, no pensamento escolástico de São Tomás de Aquino
(1225-1274), uma significativa repercussão e interesse.
Talvez o que mais tenha
instigado o teólogo, na sua busca de explicação pragmática para os mistérios da
teologia, foi a questão de Cristo não ter contraído o Pecado Original, apesar de ter sido
concebido do ventre de uma mulher. A explicação encontraria o seu perfeito suporte no
princípio aristotélico de que sempre o macho é que transmite o sêmen encarregado de
dar formação e movimento anímico ao descendente. Como, segundo a Bíblia, Cristo
não teve pai humano, então ele esteve livre da transmissão do Pecado Original
(BORRESEN, 1981, p. 219-22; AQUINAS, Summa Theologiae, III. Q. 34, art. 4, onde
se discute se a Virgem teve alguma parte ativa na concepção do corpo de Cristo).
Algumas questões apresentadas na Summa Theologiae (1266-1272), relativamente à
visão tomista sobre a mulher, referem-se à sua responsabilidade na introdução do
Pecado Original no mundo, à isenção do mesmo em Cristo, e a assuntos que retomam a
tradicional e debatida inferioridade biológica, moral e espiritual da mulher. São Tomás
14
Eu gostaria agora de inferir, se eu puder, que o Supremo Espírito é mais verdadeiramente pai e que a
Palavra, mais verdadeiramente filho. Ainda, eu acho que eu não devia ignorar a questão sobre qual
conjunto de termos é mais apropriado para eles – “pai e filho” ou “mãe e filha” – porque não existe
diferença sexual entre o Supremo Espírito e a Palavra. Porque, se o Supremo Espírito é apropriadamente
pai e o seu descendente apropriadamente filho, porque cada um é espírito, então, por paridade de
raciocínio, por que não é apropriado para um ser mãe e para o outro ser filha, com base em que cada um é
verdade e sabedoria? É [preferível chamá-los pai e filho] porque, entre aquelas naturezas que têm uma
diferença de sexo, é característico do melhor sexo ser pai e filho, e do inferior sexo, ser mãe e filha?
Agora, embora tal seja naturalmente o caso para muitos seres, para outros o reverso mantém-se
verdadeiro. Por exemplo, em algumas espécies de aves, o sexo feminino é sempre maior e mais forte, o
sexo masculino, menor e mais fraco. Mas com certeza, o Supremo Espírito é mais apropriadamente
chamado de pai do que de mãe porque a primeira e principal causa da descendência é sempre o pai.
Porque, se a causa paternal sempre, de certa forma, precede a causa maternal, então é extremamente
inapropriado o nome “mãe” ser aplicado àquele genitor, ao qual nenhuma outra causa não se liga nem
precede para a produção da descendência.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
172
de Aquino compartilhou da ideia agostiniana de que o pecado de Eva foi realmente mais
grave do que o de Adão, devido à presunção que a fez acreditar na serpente
(AUGUSTINE, 1982, ii, 175-76). Ainda assim, o autor da Summa tentou conciliar os
virulentos
pronunciamentos
patrísticos
misóginos
com
os
pronunciamentos
antifeministas de Aristóteles, a fim de que, mesmo aceitando-se o fato de a mulher ser
um “macho defeituoso”, a Igreja devesse reconhecê-la como uma criação de Deus que,
apesar de mais imperfeita do que o homem, seria, ainda assim, indefectível, visto que o
Supremo Criador não cometera erro nenhum na Criação. Para a apresentação dessas e
de outras idéias tomistas sobre o sexo feminino, contrafrásico ao masculino, foram
utilizadas as traduções de R. J. Batten OP, para xxxiv da Summa Theologiae (1975) e de
Edmund Hill OP, para xiii (1963) da Summa Theologiae, cujos trechos selecionados dos
originais correspondem, respectivamente, às páginas 149 e 35-39.
Respondendo à questão se alguém deveria amar mais a mãe do que o pai, São Tomás de
Aquino adere nitidamente aos já anteriormente comentados postulados aristotélicos
sobre a primazia do macho, como causa primeira e mais eficiente na geração dos
animais. Não descartando o fato de que tanto o pai quanto a mãe são princípios
necessários à nossa origem, diz, entretanto, que a força anímica, a alma, vinda da
semente paterna e que dá forma ao ser, tem um papel superior a ser reconhecido e
valorizado pelos seus descendentes:
Reply) It is the father who ought to be loved more than the mother. For one’s
father and mother are loved as principles in our natural origin. But the father,
as the active partner, is a principle in a higher way than the mother, who
supplies the passive or material element. And so, speaking per se, the father
should be loved more. Hence: (I) In human generation, the mother provides
the matter of the body which, however, is still unformed, and receives its
form only by means of the power which is contained in the father’s seed.15
(AQUINAS, 1975, xxxiv. II. ii. 26. 10)
15
Resposta) É o pai que deve ser mais amado que a mãe. Porque o pai e a mãe de alguém são amados
como princípios na nossa origem natural. Mas o pai, como o parceiro ativo, é um princípio de modo
superior à mãe, que provê o elemento passivo ou material. E assim, falando por si mesmo, o pai deveria
ser amado mais. Daí: (I) Na geração humana, a mãe provê a matéria do corpo que, entretanto, está ainda
sem forma, e recebe a sua forma somente por meio do poder que está contido na semente do pai.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
173
Na seção da Summa, que se segue, São Tomás de Aquino retoma comentários feitos por
Aristóteles e por Santo Agostinho sobre o gênero feminino. Trata do conceito
aristotélico da mulher como homem fracassado e imperfeito (“manqué”) (ARISTOTLE,
1963, 737a). Também questiona sobre a sua participação na produção original das
coisas. Conclui que a mulher não poderia ter participado na criação original porque,
nela, tudo foi criado perfeito, segundo a onisciência e a onipotência divinas. Portanto, a
conclusão é óbvia: a mulher é inferior, em capacidade e em qualidade, ao homem, não
só por não ter participado na criação original das coisas, mas também por ter
promovido, presunçosamente, a introdução do pecado no mundo. Deve, portanto, ser
conservada em estado de submissão, porque a inferioridade é resultado daquele que
pecou primeiro (Genesis 3: 16).
Recordando Santo Agostinho, diz que a maior honra cabe à causa ativa, que é
prerrogativa do sexo masculino (AUGUSTINE, 1982, XII. 16; MIGNE, 1844-1864,
43.467). Essa é outra razão pela qual a mulher não deve ter sido produzida na criação
original das coisas, ocorrida antes do Pecado. Entretanto, São Tomás de Aquino,
conforme comentado anteriormente, não descarta a necessidade de a mulher ter sido
criada não só à semelhança do homem (Genesis 2: 18), mas também para o acompanhar
e para ajudá-lo na procriação dos seus descendentes (AUGUSTINE, 1982, IX. 5). Por
outro lado, explica, de acordo com Aristóteles, que o sexo feminino só é produzido quer
por uma debilidade do poder ativo da semente do homem, quer devido ao material
seminal da mulher ou por causa de fatores externos (ARISTOTLE, 1963, 766b). Diz
ainda que o defectivo do sexo feminino é uma questão individual apenas, não se
referindo à tendência da natureza da espécie humana como um todo, a qual, criada por
Deus, deve-lhe extrema obediência. Entretanto, São Tomás de Aquino não deixa de
insinuar a presença da participação da mulher na procriação, apesar de desempenhar um
expediente de segunda ordem, o que a coloca num plano visivelmente secundário e
discriminatório:
Should woman have been made in that original creation of things? THE
FIRST POINT: 1. It seems that woman ought not to have been produced in
the original production of things. For the Philosopher says that female is a
male manqué. But nothing manqué or defective should have been produced
in the first establishment of things; so woman ought not to have been
produced then. 2. Again, subjection and inferiority are a result of sin; for it
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
174
was after sin that woman was told, “Thou shalt be under the power of the
man”; and Gregory says that where we have done no wrong, we are equal.
Yet woman is by nature of lower capacity and quality than man; for the
active cause is always more honourable than the passive, as Augustine says.
So woman ought not to have been produced in the original production of
things before sin. […]. ON THE OTHER HAND, there is Genesis: “It is not
good for man to be alone; let us make him a help that is like himself.”
REPLY: It was absolutely necessary to make woman, for the reason
Scripture mentions, as a help for man; not indeed to help him in any other
work, as some have maintained, because, where most work is concerned man
can get help more conveniently from another man than from a woman; but to
help him in the work of procreation. […] HENCE: 1. Only as regards nature
individual is the female something defective and manqué. For the active
power in the seed of the male tends to produce something like itself, perfect
in masculinity; but the procreation of a female is the result either of the
debility of the active power, of some unsuitability of the material, or of some
change effected by external influences, like the south wind, for example,
which is damp, as we are told by Aristotle. But with reference to nature in the
species as a whole, the female is not something manqué, but is according to
the tendency of nature, and is directed to the work of procreation. Now the
tendency of the nature of a species as a whole derives from God, who is the
general author of nature. And therefore when He established a nature, He
brought into being not only the male but the female too.16 (AQUINAS, 1963,
xiii. 1a. 92. article 1)
A seguir, São Tomás de Aquino, discutindo sobre os tipos de sujeição lícitos ao
dirigente superior, comenta que a mulher não só é inferior e está sujeita ao homem em
virtude do pecado, mas também devido à ordem natural dos grupos humanos, nos quais,
mesmo antes do pecado, o mais inteligente, e que tem mais poder de discernimento,
16
Deve a mulher ter sido feita naquela criação original das coisas? O PRIMEIRO PONTO: 1. Parece
que a mulher não deve ter sido produzida na produção original das coisas. Porque o Filósofo diz que a
fêmea é um macho fracassado. Mas nada fracassado ou defectivo deve ter sido produzido no primeiro
estabelecimento das coisas; assim, a mulher não deve ter sido produzida então. 2. Novamente, sujeição e
inferioridade são um resultado do pecado; porque foi depois do pecado que foi dito à mulher, “Tu deverás
estar debaixo do poder do homem”; e Gregório diz que onde não fizemos nada de errado, nós somos
todos iguais. Ainda a mulher é, por natureza, de capacidade e qualidade mais baixas do que o homem;
porque a causa ativa é sempre mais ilustre do que a passiva, conforme diz Agostinho. Assim, a mulher
não deve ter sido produzida na produção original das coisas, antes do pecado. [...] POR OUTRO LADO,
existe o Genesis: “Não é bom para o homem estar só; vamos fazer uma ajudante para ele, a qual lhe seja
semelhante.” RESPOSTA: Foi absolutamente necessário fazer a mulher; porque a razão a Escritura
menciona, como uma ajudante para o homem; não, na verdade, para ajudá-lo em qualquer trabalho, como
alguns têm mantido, porque, no que se refere à maioria do trabalho, o homem pode obter ajuda mais
convenientemente de outro homem do que de uma mulher; mas para ajudá-lo no trabalho da procriação.
[...]. Daí: 1. Somente em relação à natureza no individual, a mulher é algo defectivo e fracassado.
Porque o poder ativo na semente do macho tende a produzir alguma coisa como ele, perfeita na
masculinidade; mas a procriação de uma fêmea é o resultado ou da debilidade do poder ativo, ou de
alguma impropriedade do material, ou de alguma mudança efetuada por influências externas, como o
vento sul, por exemplo, que é úmido, como nos diz Aristóteles.
Mas, com referência à natureza na espécie como um todo, a fêmea não é algo fracassado; mas está de
acordo com a tendência da natureza, e está direcionada ao trabalho da procriação. Agora, a tendência da
natureza de uma espécie como um todo deriva de Deus, que é o autor geral da natureza. E, portanto,
quando Ele estabeleceu a natureza, Ele deu existência não somente ao homem como também à mulher
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
175
comanda o menos apto (AUGUSTINE, 1982, XI. 37). Assim, de forma dupla, natural,
mental e teologicamente, a mulher encontra-se inferiorizada em relação ao homem,
devendo-lhe obediência e sujeição à sua vontade e ao seu comando:
2. Subjection is of two kinds: one is that of slavery, in which the ruler
manages the subject for his own advantage, and this sort of subjection came
in after sin. But the other kind of subjection is domestic or civil, in which the
ruler manages his subjects for their advantage and benefit. And this sort of
subjection would have obtained even before sin. For the human group would
have lacked the benefit of order had some of its members not been governed
by others who were wiser. Such is the subordination in which woman is by
nature subordinate to man, because the power of rational discernment is by
nature stronger in man.17 (AQUINAS, 1963, xiii. 1a. 92. article 1)
Continuando nas considerações sobre a origem da mulher, São Tomás de Aquino, ainda
no segundo artigo da Summa Theologiae, diante da pergunta sobre a origem da mulher,
defende o caso de Eva ter realmente nascido do homem, pois, sendo o homem feito à
imagem de Deus, nada mais digno e honroso que a mulher tenha dele nascido, sendo
ele, dessa forma, a sua cabeça. Assim, assegurando a condição secundária da mulher na
criação, apresenta o seguinte argumento:
REPLY: It was right for woman to be formed from man in the original
establishment of things, for reasons that do not apply to the other animals. In
the first place, this was desirable in order to maintain a certain style and
dignity for the first man, by making him, in virtue of his likeness to God, the
original of his whole kind, just as God is the original of the whole universe.
So Paul says that God “made the whole of mankind from one.” In the second
place, this was good in order to make the man love the woman more and stick
to her more inseparably, knowing that she had been brought forth from
himself. […] Thirdly, as Aristotle says, “with man male and female are not
only joined together for purposes of procreation, as with the other animals,
but to establish a home life, in which man and woman work together at some
things, and in which the man is head of the woman.” So the woman was
rightly formed from the man, as her origin and chief. 18 (AQUINAS, 1963
xiii. 1a. 92. article 2)
17
A sujeição é de duas espécies; uma é aquela da escravidão, na qual o dirigente controla o subjugado
para o seu próprio benefício, e esta espécie de sujeição veio depois do pecado. Mas o outro tipo de
sujeição é doméstica ou civil, na qual o dirigente controla os seus subjugados para vantagem e benefício
deles. E este tipo de sujeição seria obtido mesmo antes do pecado. Porque o grupo humano teria falta do
benefício da ordem se alguns dos seus membros não fossem governados por outros que eram mais
inteligentes. Tal é a sujeição em que a mulher é por natureza subordinada ao homem, porque o poder de
discernimento racional é por natureza mais forte no homem.
18
RESPOSTA: Foi certo para a mulher ser formada do homem no estabelecimento original das coisas,
devido a razões que não se aplicam a outros animais. Em primeiro lugar, isto foi desejável a fim de se
manter um certo estilo e dignidade para o primeiro homem, por fazê-lo, em virtude da sua semelhança
com Deus, o original [i. e., principium, o princípio] da sua espécie inteira, da mesma forma que Deus é o
original do universo inteiro. Assim, Paulo diz que Deus “fez a humanidade inteira de um.” Em segundo
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
176
Os comentários, até agora feitos, a respeito de alguns postulados aristotélicos referentes
a aspectos e à importância da fisiologia dos aparelhos genitores, tanto nos animais
quanto nos humanos, apresentam a imagem do sexo feminino em geral, e da mulher em
particular, numa posição de discriminada inferioridade em relação ao do masculino.
Tais comentários serviram de base para a formação de um antifeminismo tradicional,
cujas marcas mais profundas de ultraje misógino apareceram durante a Idade Média,
especialmente no pensamento religioso.
Na esteira dessas idéias acerca da derrogação do corpo e do sexo femininos, R. Howard
Bloch (1987, p. 20) tem razão em afirmar que “in the misogynistic thinking of the
Middle Ages, there can, in fact, be no distinction between the theological and the
gynaecological” [no pensamento misógino da Idade Média, não pode haver, de fato,
nenhuma distinção entre o teológico e o ginecológico.] . E a ginecologia do feminino
medieval materializava a mulher como uma realidade orientada principalmente pelo
corpóreo. Esse tipo de reducionismo medieval da mulher ao domínio da matéria e dos
sentidos, principalmente na esfera do teológico, foi concebido alegoricamente por Santo
Ambrósio, na sua conhecida representação alegórica da Queda, onde a serpente é “a
type of pleasures of the body” [um tipo de prazeres do corpo], a mulher “stands for our
senses” [representa os nossos sentidos] e o homem “for our minds” [representa as
nossas mentes] (AMBROSE, Paradise, 1961, XV. 73, 1961, p. 351).
É nesse sentido de influência disseminadora do pensamento misógino medieval que –
aparentemente inocente em termos de uma afiliação antifeminista – surgem, no século
VII, as Etymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha, um estudo enciclopedista dos mais
completos jamais escritos na Idade Média. Santo Isidoro de Sevilha cresceu na Espanha
durante o domínio dos visigodos, foi educado num monastério, ordenando-se e, mais
tarde, tornou-se Arcebispo de Sevilha. As suas Etymologiae tornaram-se conhecidas,
lugar, isto foi bom a fim de fazer o homem amar mais a mulher e ligar-se a ela mais inseparavelmente,
sabendo que ela saiu dele próprio. [...] Em terceiro lugar, conforme Aristóteles diz, “no homem, o macho
e a fêmea não só estão ligados para as finalidades da procriação, como acontece com os outros animais,
mas para estabelecerem uma vida de lar, na qual o homem e a mulher trabalham juntos em certas coisas, e
na qual o homem é a cabeça da mulher.” Assim, a mulher foi acertadamente formada do homem, origem
e chefe dela.
Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições
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com essa nomenclatura, devido à maciça ênfase que o livro dá às derivações de
palavras-chave que aparecem sob cada assunto encabeçado para tratamento. A
enciclopédia de Santo Isidoro – devido à enorme valoração filosófica e teológica dada à
palavra (verba) como portadora, na sua raíz ou no seu étimo, do sentido da substância e
da realidade da coisa (res) – alcançou enorme influência e popularidade em toda a
Europa medieval, sendo, inclusive, citada por muitos séculos depois.
A questão medieval do conhecimento e da identificação do sentido da realidade das
coisas criadas por Deus, a partir da palavra designada para nomeá-las, tem procedência
na própria Bíblia, no episódio em que o Criador delega a Adão a função de nomeação
dos animais. Atesta esse procedimento epistemológico de conhecimento da coisa a
partir do seu nome, a significativa presença do método etimológico de Santo Isidoro de
Sevilha no bestiário medieval, uma das mais importantes produções literárias da Idade
Média. Para o caso da verificação do antifeminismo de Aristóteles na De generatione
animalium, cuja influência transladou-se da fisiologia para o domínio da linguagem nas
Etymologiae de Isidoro de Sevilha, um exemplo característico desse procedimento
interdisciplinar aparece no chamado Bestiário de Cambridge, que se encontra
atualmente na biblioteca da Universidade de Cambridge (Inglaterra), listado como MS.
II. 4. 26.
O seguinte trecho desse bestiário, tendenciosamene misógino, compara,
utilizando-se do método etimológico, a natureza e as qualidades do homem com as da
mulher, transcrevendo e ampliando com prédicas moralizantes, o seguimento das
Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha, que trata do mesmo assunto:
A man is called Vir because there is more worth (virtus) in him than there is
in women. Hence also he gets the name of courage, or else because he
governs this women by force (vi). Mulier the Woman is derived from
‘weakness’, since ‘mollior’ (weaker), with a letter taken away or changed,
becomes ‘mulier’. They are differentiated from man both in courage and in
imbecility of body. Man has the greater capacity, woman the lesser, on
purpose that she should give in to him: i. e., lest, with women being difficult
about it, lust should compel men to look elsewhere and to go awhoring after
another sex. She is called ´mulier’ from her femininity and not because of
her weakness in having her chastity corrupted, for the language of Holy Writ
is: ‘And Eve was suddenly made out of the side of her man’. Not by contact
with man is she called ‘mulier’. The scriptures say: ‘And he (God) formed
her into a woman.’ […] Actually, ‘femina’, a woman, comes from ‘femur’
the upper part of the thigh, where the appearance of sex is different from
man’s. Others, by using a Greek derivation say that it is because of the fiery
force with which a woman vehemently lusts, and that females are more
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longing than males, both in humans and in animals. Too much love was
therefore thought to be effeminate among the ancients.19 (BOOK OF
BEASTS, 1984, p. 222-223)
Os pronunciamentos acima, evidentemente extraídos das Etymologias de Isidoro de
Sevilha, ressoando as ideias de Aristóteles e de outros pensadores da Idade Média,
indicam claramente uma ampliação figurada e ideológica de postulados fisiologistas
para o terreno moral, com características edificantes em termos patriarcais, respaldados
pela doutrina religiosa acerca da representação do gênero. Isso pode ser ratificado pelo
fato de o bestiário – obra ideologicamente comprometida com a edificação moral e a
salvação do homem, simbolicamente auxiliadas pelo enaltecimento exemplar das
virtudes dos animais e pela condenação dos seus vícios – tratar da questão do gênero,
apontando excelências no homem em detrimento das qualidades da mulher. Graciano
(século XII), por exemplo, dentre outros, sintonizando os pronunciamentos de Santo
Isidoro de Sevilha e do bestiarista acerca da superioridade do homem, mantém que
homem (vir) não deriva apenas de força (vi), mas de uma força especial, a da mente
(virtus animi). Quanto à mulher (mulier), comenta que a palavra veio de amolecimento
da mente (mollities mentis) (FRIEDBERG, 1955, i, col. 1145).
O fato de Santo Isidoro de Sevilha aventar a hipótese de que femina (mulher) possa ser
suposto por alguns como proveniente da etimologia grega para significar força que
queima (i. e., da palavra grega fos), por causa da maior intensidade do desejo sexual
encontrada no sexo feminino, levou os defensores da mulher a preferirem ligar o
significado etimológico da palavra mulier a mollities (i. e., apenas mais fraca,
19
Um homem é chamado de Vir porque existe mais valor (virtus) nele do que nas mulheres. Por essa
razão, ele também obtém o nome de coragem, ou outro, porque ele governa as suas mulheres por força
(vi). Mulier, a mulher, é derivada de ‘fraqueza’, uma vez que ‘mollior’ (mais fraco), com uma letra
retirada ou mudada, torna-se ‘mulier’. Elas são diferenciadas do homem tanto em coragem como em
imbecilidade do corpo. O homem tem a maior capacidade, a mulher, a menor, com a finalidade de que
ela deve ceder a ele: i.e., para que, com a mulher sendo difícil nisso, o desejo sexual não compila os
homens a irem buscá-lo em outro lugar e a se prostituírem com outro sexo. Ela é chamada de ‘mulier’
devido à sua feminilidade e não por causa da sua fraqueza em ter a sua castidade corrompida, porque as
palavras do Espírito Santo são: ‘E Eva foi subitamente feita de uma parte do lado do corpo do seu
homem’. Não por contato com o homem ela é chamada ‘mulier’. As Escrituras dizem: ‘E ele (Deus)
formou-a numa mulher’[...] Na verdade, ‘femina’, uma mulher, vem de ‘femur’, a parte superior da coxa,
onde a aparência do sexo é diferente da do homem. Outros, usando uma derivação grega, dizem que é
por causa da ardente força com a qual uma mulher veementemente deseja, e que as fêmeas são mais
desejosas do que os machos, tanto nos humanos quanto nos animais. Também, os antigos pensavam que
muito amor efeminava
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amolecida). Também aquela noção de que femina recebeu esse nome em razão da
fêmea, não só entre os animais, mas também entre os humanos, ser mais libidinosa,
derivou o uso da palavra efeminado (femineus) ser, entre os antigos, aplicada àqueles
que manifestassem um excesso de amor. Essa noção encontrou larga difusão na Idade
Média, a ponto de Andreas Capellanus aconselhar os seus protegidos a reprimirem o
prazer físico (voluptatem), procedendo como homens verdadeiros (viriliter) (ISIDORE
OF SEVILLE, 1982, III. 50).
A seleção de trechos abaixo, extraída das Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha,
serve para identificar, nessa obra, a influência da tradicional visão de inferioridade
constitutiva da natureza feminina que, elaborada pela fisiologia de Aristóteles,
encontrou respaldo e transmissão, de forma ideologicamente simpática, por padres e
pensadores religiosos, na sua maioria, misóginos e antifeministas da Igreja e da
sociedade laica medieval. Nesse sentido, Santo Isidoro de Sevilha, sendo um deles,
traduz para o domínio do conhecimento da língua, o que Aristóteles havia feito no
domínio da fisiologia e da ciência:
Vir nuncupatus, quia maior in eo vis est quam in feminis: unde et virtus
nomen accepit; sive quod vi agat feminam. 18 – Mulier vero a mollitie,
tamquam mollier, detracta littera vel mutata, appelata est mulier. 19 – Vtrique
enim fortitudine et inbecillitate corporum separantur, Sed ideo virtus maxima
viri, mulieris minor, ut patiens viri esset; scilicet, ne feminis repugnantibus
libido cogeret viros aliud appetere aut in alium sexum proruere.20 (ISIDORE
OF SEVILLE, 1982-1983, XI. ii. 17)
Quae vero nunc femina, antiquitus vira vocabatur . . . 24 – Femina vero a
partibus femorum dicta, ubi sexus species a viro distinguitur. Alii Graeca
etymologia feminam ab ignea vi dictam putant, quia vehementer
concupiscit.Libidinosiores enim viris feminas tam in mulieribus quam in
animalibus. Vnde nimius amor apud antiquos vocabatur.21 (ISIDORE OF
SEVILLHE, 1982-1983, XI.ii.23).
20
O nome de varão (vir) se explica porque nele há maior força (vis) que na mulher; daqui deriva também
o nome de virtude; ou talvez porque obriga a mulher pela força. 18 – A mulher, mulier, deriva a sua
denominação de mollities, moleza, como se disséssemos mollier; suprimindo ou alterando letras resulta o
nome de mulier. 19 – A diferença entre o homem e a mulher localiza-se na força e na debilidade do
corpo. A força é maior no varão e menor na mulher, para que a mulher possa suportá-lo, e ainda, não
fosse que, ao ver-se rechaçado pela mulher, o marido se visse empurrado por sua concupiscência a buscar
outra coisa ou desejar o prazer homossexual.
21
Hoje em dia se emprega a palavra femina, enquanto que na antigüidade se usava a palavra vira (i. e. a
fêmea de vir, homem). . . 24 – Femina deriva a sua denominação das partes dos músculos, femur, pelas
quais seu sexo se distingue do do homem. Outros crêem que a etimologia é grega, fazendo derivar o
nome de femina da força do fogo, porque a sua concupiscência é muito apaixonada. Afirma-se que as
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Entretanto, tanto no fisiologismo de Aristóteles quanto no etimologismo de Santo
Isidoro de Sevilha, a tônica comum é a da derrogação do feminino, a qual atinge o seu
mais alto grau quando, a exemplo das Etymologiae, o fluido menstrual que – de
simplesmente sujo e improfícuo, descarga seminal de um organismo naturalmente
menos perfeito para Aristóteles – passa a ser diabolicamente destruidor das coisas, do
homem e da natureza:
Menstrua supervacuus mulierum sanguis. Dicta autem menstrua a circuitu
lunaris luminis, quo solet hoc venire profluvium; luna enim Graece mene
dicitur. Haec et muliebria nuncupantur; nam mulier solum animal menstruale
est. 141 – Cuius cruoris contactu fruges non germinant, acescunt musta,
moriuntur herbae, amittunt arbores fetus, ferrum rubigo corripit, nigrescunt
aera. Si qui canes inde ederint, in rabiem efferuntur. Glutinum asphalti,
quod nec ferris nec aquis dissolvitur, cruore ipso pollutum sponte
dispergitut.22 (ISIDORE OF SEVILLHE, 1982-1983, XI. i. 140).
Apesar de ter sido originariamente abordada por Plínio, foi, a partir de Santo Isidoro de
Sevilha, que essa verdadeira litania da desgraça do sangue menstrual entrou no
imaginário das superstições medievais, adquirindo recrudescida virulência no final da
Idade Média, quando a mulher passa a ser objeto de um obsessivo processo de
demonologização.
Essa sucinta coletânea, de feitio comparado, examinou a influência disseminadora da
fisiologia de Aristóteles em alguns seguidores seus, que se tornaram pilares
fundamentais da tradição antifeminista medieval não só no campo da filosofia religiosa
(Santo Anselmo e São Tomás de Aquino), mas também no interessante domínio do
conhecimento etimológico, tal qual exposto, de forma ímpar, nas Etymologiae de Santo
Isidoro de Sevilha. Assim, o fisiologismo de Aristóteles e o etimologismo de Santo
fêmeas são mais libidinosas do que os homens, tanto entre as mulheres como entre os animais. Devido a
isso, entre os antigos, um amor ardente se chamava amor feminino.
22
X. i. 140 – Menstrua é o sangue supérfluo das mulheres. Denomina-se menstrua devido ao ciclo lunar,
tempo que costuma mediar na repetição do fluxo; pois em grego a palavra lua é chamada mene. É
conhecida também com o nome de muliebria, pois a mulher é o único animal que tem menstruação. 141 –
Ao contato com este sangue, os frutos não germinam; os sumos das uvas azedam; as ervas morrem; as
árvores perdem seu fruto; o ferro fica corroído com ferrugem; os bronzes se tornam negros. Se os cães
comerem algo que tenha estado em contato com ele (o sangue menstrual), tornam-se loucos. E o betume
asfáltico, que não se dissolve nem com ferro nem com água, dissolve-se espontaneamente quando
salpicado por esse sangue.
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Isidoro de Sevilha, ambos sintonizados em postulados que definiram o tradicional
antifeminismo, são duas das muitas ideias fundadoras dessa tendência discriminatória
da mulher no pensamento e na cultua do homem ocidental.
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