Livro Fontes e Edições - Completo
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Livro Fontes e Edições - Completo
FONTES E EDIÇÕES Gladis Massini-Cagliari Márcio Ricardo Coelho Muniz Paulo Roberto Sodré organizadores Araraquara GT de Estudos Medievais - ANPOLL 2012 Série Estudos Medievais n. 3 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL) – Grupo de Trabalho Estudos Medievais Comissão Científica: Célia Marques Telles (Universidade Federal da Bahia/UFBA) Lênia Márcia Mongelli (Universidade de São Paulo/USP) Maria do Amparo Tavares Maleval (Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ) Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela/USC) Rip Cohen (The Johns Hopkins University [USA]) Stephen R. Parkinson (University of Oxford [U.K.]) Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp) Catalogação: Ana Maria de Matos, CRB 6/ES, n. 425. Programador visual do e-book: Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) F683 Fontes e edições [recurso eletrônico] / Gladis Massini-Cagliari, Márcio Ricardo Coelho Muniz, Paulo Roberto Sodré, organizadores. – Araraquara : ANPOLL, 2012. (Série Estudos Medievais ; n. 3) Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader. Modo de acesso: World Wide Web: <http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/gtmedieval/interno.php?secao=publicacoes>. ISBN 978-85-89760-04-1 1. Literatura medieval – História e crítica. 2. Liturgia – Espanha – Canções e música. 3. Literatura portuguesa – até 1500 – História e crítica. 4. Poesia satírica portuguesa – Crítica e interpretação. 5. Amor na literatura. 6. Pensamento religioso – Influências gregas. 7. Idade Média. I. Massini-Cagliari, Gladis. II. Muniz, Márcio Ricardo Coelho. III. Sodré, Paulo Roberto. IV. Série. CDD: 809.8940902 CDU: 82(091)“04/14” Sumário Prefácio Sobre a liturgia moçarábica 1 Célia Marques Telles Risonete Batista de Souza Universidade Federal da Bahia (UFBA); CNPq A configuração do amor nas cantigas pastorelas 21 Clarice Zamonaro Cortez Marciléia de Souza Apolinário Universidade Estadual de Maringá (UEM) Uma intrincada rede de fontes e de influências no Decameron, de Giovanni Boccaccio 55 Delia Cambeiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Duas leituras dos poemas 55 e 56 de Fernão da Silveira no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende 72 Geraldo Augusto Fernandes Universidade de São Paulo (USP); Universidade Nove de Julho Antropônimos e Topônimos nas Cantigas de Santa Maria 87 Gladis Massini-Cagliari Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara); CNPq; FAPESP Helena Maria Boschi da Silva Pós-Graduação – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) A estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra ou Coronica do Condestabre 111 Maria do Amparo Tavares Maleval Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) O jugar de palabras nas rubricas explicativas das cantigas de escárnio e maldizer 140 Paulo Roberto Sodré Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Fontes da misoginia medieval: ressonâncias aristotélicas no pensamento religioso medieval Pedro Carlos Louzada Fonseca Universidade Federal de Goiás (UFG) 160 Apresentação Este e-book, Fontes e edições, que ora apresentamos, é o terceiro livro da Série Estudos Medievais, série oficial de obras publicadas pelo Grupo de Trabalho de Estudos Medievais (GTEM) da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll). A coleção que se iniciou em 2008 e que, neste, tem seu terceiro número, pretende dar a conhecer, a um público especializado e diversificado, trabalhos que refletem sobre aspectos fundamentais da pesquisa sobre Língua e Literatura da Idade Média: seus métodos, suas fontes, seus corpora, seus objetivos, seu alcance. Mais especificamente, a Série Estudos Medievais se dedica a trazer à luz as pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do GTEM, a partir do tema focalizado ao longo do biênio, recortado dos objetivos gerais de pesquisa do Grupo. Em Julho de 2008, veio à luz o primeiro e-book temático, com o objetivo de publicar os trabalhos que vinham sendo até então produzidos no GTEM, nos seus dois primeiros biênios de atuação. O tema do primeiro livro “virtual” organizado pelo Grupo era Metodologias; desta forma, a obra reuniu trabalhos que focalizam procedimentos metodológicos adotados no desenvolvimento das pesquisas em andamento no contexto dos Estudos Medievais brasileiros nas áreas de Letras e Linguística. Resultado dos encontros inaugurais do GTEM, o primeiro volume da Série Estudos Medievais visou mostrar, sobretudo a estudantes e estudiosos brasileiros, a importância da metodologia na discussão dos temas medievais, seja na área dos estudos linguísticos, seja na dos literários. Prosseguindo com a importante discussão metodológica iniciada no número 1 da Série, o número 2, publicado em 2009 e dedicado às Fontes, objetivou a investigação dos documentos, das obras, da fortuna crítica e dos materiais imprescindíveis à constituição de corpora e à fundamentação teórica das pesquisas do Grupo. Este terceiro número da série continua e aprofunda a reflexão iniciada no volume anterior, estendendo a discussão sobre as fontes dos estudos medievais (documentais, críticas e materiais) às suas edições, ou seja, à forma como os textos medievais remanescentes encontram-se disponibilizados ao leitor atual, às leituras e interpretações que receberam e às possibilidades de seu aproveitamento para os estudos linguísticos e literários. A maior parte dos trabalhos reunidos neste volume foi apresentada no terceiro encontro temático do GTEM, ocorrido em Belo Horizonte, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de 1 a 3 de julho de 2010; como de praxe, o encontro interno do Grupo realizou-se como uma das atividades do XXV Encontro Nacional da Anpoll, associação maior que o abriga. Este volume reúne oito artigos, que ilustram as linhas de trabalho que o Grupo vem desenvolvendo e que se pretendem como um pequeno conjunto representativo de publicações voltadas para a pesquisa brasileira em Estudos Medievais. Seguindo o costume dos volumes anteriores, os artigos foram ordenados a partir da ordem alfabética do prenome do primeiro autor. No primeiro capítulo do volume, Célia Marques Telles e Risonete Batista de Souza exploram o Missale mixtum e o Breviarium Gothicum, textos da Liturgia moçarábica. O primeiro dá conta do conteúdo do missal e resume a história da liturgia cristã no mundo hispano-godo-moçárabe, enquanto que, no segundo, figuram os Hymni mozarabici. Neste texto, as autoras exploram a dimensão tanto das fontes como das edições, uma vez que, acreditando que nos textos da liturgia moçarábica, além da consolidação da liturgia hispano-goda-moçarábica na Península Ibérica, podem ser encontrados outros elementos da língua usada na Hispânia visigoda, as autoras buscam os elementos linguísticos desse romance nos textos dos hinos. O segundo capítulo, de Clarice Zamonaro Cortez e Marciléia de Souza Apolinário, centra-se na configuração do amor nas cantigas de amigo com motivos das pastorelas, um gênero em que ocorre o encontro amoroso entre cavaleiros e pastoras. A este respeito, as autoras visam o papel das cantigas de amigo galego-portuguesas como fonte para a compreensão de uma das concepções medievais de amor, que, nas pastorelas, carrega consigo a ampla tradição poética e cultural do Trovadorismo: o ambiente guerreiro, a religiosidade, a musicalidade e a paisagem ideal da poesia. Todos estes elementos convergem para colocar em destaque um personagem específico e crucial para a representação dessa concepção amorosa: a jovem pastora enamorada. Saindo do contexto do medievo ibérico, Delia Cambeiro, no terceiro capítulo, se dedica a destrinchar a intrincada rede de fontes e de influências no Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375). A autora analisa a vasta rede de interferências de ordem intertextual e polifônica, que leva os leitores a buscar as diferentes fontes de influências desta primeira obra urbana moderna, ao mesmo tempo em que discute, com base nas novelas boccaccianas, as possíveis marcas recebidas e as deixadas pelo Decameron na literatura europeia. No quarto capítulo, de retorno ao cenário ibérico, Geraldo Augusto Fernandes explora diferentes edições de duas cantigas do Cancioneiro geral de Garcia de Resende, com base nas divergentes leituras que receberam dos dois últimos editores do compêndio: António José Gonçalves Guimarães (1910-1917) e Aida Fernanda Dias (1973-1974 e 1990-1993). A tarefa do autor é hipotetizar sobre os motivos de tais visões divergentes. O texto de Gladis Massini-Cagliari e Helena Maria Boschi da Silva, que constitui o quinto capítulo deste livro, focaliza os antropônimos e topônimos no ancestral medieval do português contemporâneo, abordando a questão das Cantigas de Santa Maria de Afonso X (1221-1284) como fonte fidedigna e rica para o estudo dos nomes próprios. A partir do levantamento geral de todos os nomes de pessoas e lugares que ocorrem nas cantigas religiosas galego-portuguesas, as autoras examinam as ocorrências de antropônimos de origem estrangeira, que são analisadas de acordo com o sistema fonológico vigente no galego-português da época, de modo a verificar o seu grau de adaptação em termos de pronúncia, a partir das pistas deixadas pela escrita. Já o sexto capítulo, de autoria de Maria do Amparo Tavares Maleval, investiga A estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra (1360-1431) ou Coronica do Condestabre. A autora trata da importante questão da disponibilização e das edições das fontes primárias do medievo, exemplificando com a crônica, de autor anônimo, que trata da vida e dos feitos do nobre acima referido. A obra recebeu uma edição crítica por Adelino de Almeida Calado (1991). Com base nessa edição e após acompanhar-lhe o processo de editoração, a autora reflete sobre a obra, analisando-a, tendo em vista principalmente o perfil de cavaleiro (quase) perfeito que nela é construído. Para tal, a autora acompanha todo o percurso de edições que a obra recebeu até o momento. O foco do capítulo seguinte, de Paulo Roberto Sodré, é o jugar de palabras nas rubricas explicativas das cantigas de escárnio e maldizer. Como mostra o autor, o jugar de palabras é um conceito constante na Lei XXX do Título IX da Segunda de Las siete partidas, de Afonso X, nas quais constariam as normas de comportamento palaciano junto ao rei e aos que frequentam sua corte. A proposta do artigo é explorar o potencial das setenta e quatro rubricas atributivas e explicativas que acompanham a compilação geral da lírica profana medieval como fonte para o estudo da natureza do gênero satírico. Fechando o volume, o artigo de Pedro Carlos Louzada Fonseca concentra-se nas fontes da misoginia medieval, investigando as ressonâncias aristotélicas no pensamento religioso da época. De maneira comparativa e crítica, o capítulo examina duas das principais ideias que podem ser consideradas como fundamentais na formação da tradição antifeminista na cultura e literatura europeias: 1) os estudos de Aristóteles sobre a fisiologia da mulher, nos quais o papel feminino na procriação foi reduzido àquele de matéria prima, a esperar a agência formadora ou movimentadora do sêmen do homem; 2) a desagradável equação entre mulher e matéria, que encontrou apoio no pensamento religioso da Idade Média. Não se restringindo apenas aos textos trovadorescos galego-portugueses e sendo válida para os textos medievais europeus em geral, a afirmação de Lênia Márcia Mongelli, ao final da “Introdução” aos Fremosos cantares da “nossa” lírica medieval, aplica-se ao espírito básico dos textos aqui analisados por todos os membros do GTEM1: Não é necessário enfatizar, em solo ibérico e até fora dele, a longevidade das lições trovadorescas – ainda muito vivas nos séculos XVI e XVII, distorcidas no século XIX, desmaiadas mas perfeitamente audíveis na modernidade e plenas de pujança das “redescobertas” no século XXI. Da mesma forma como ocorreu nos números anteriores desta Série, os capítulos aqui resumidos, sobre múltiplos aspectos e sentidos relativos às “fontes” dos projetos voltados para as línguas e as literaturas do Medievo românico e à utilização das edições preparadas a partir delas para os Estudos Medievais, constituem um pequeno contributo no sentido de participar ativamente dessas “redescobertas”, que renovam o interesse na 1 MONGELLI, L. M. Fremosos cantares: antologia da lírica medieval galego-portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. xlvi. produção desse período e demonstram a importância dos a(u)tores medievais para a compreensão da construção da nossa identidade linguística e cultural, tanto no nível individual de usuários da língua como no de agentes da cultura e da literatura. Comissão Editorial (organizadores) Gladis Massini-Cagliari Márcio Ricardo Coelho Muniz Paulo Roberto Sodré Maio de 2012 Sobre a liturgia moçarábica Célia Marques Telles Risonete Batista de Souza Universidade Federal da Bahia (UFBA); CNPq Resumo: Os volumes 85 e 86 da Patrologia Latina, editada por J.-P. Migne, em 1862, trazem os textos da chamada Liturgia Moçarábica: O Missale mixtum e o Breviarium Gothicum. O Missale mixtum compreende duas partes que integram o volume 85, antecedidas de um Praefatio de Alexandro Lesleo, S. J.. que dá conta do conteúdo do missal e resume a história da liturgia cristã no mundo hispano-godo-moçárabe. O volume 86 contem o Breviarium Gothicum, que é antecedido de uma saudação ao leitor de Francisco Antonio Lorenzana, arcebispo de Toledo. No Breviarium Gothicum destacam-se os Hymni mozarabici. Ora, como é sabido, o romance moçarábico é documentado pela lírica moçarábica e pelos glossários. Espera-se poder encontrar algum elemento lingüístico desse romance nos textos dos hinos. Palavras-chave: Moçárabe; Liturgia hispano-goda; Hinos moçarábicos. Abstract: The 85th and the 86th volumes of the Patrologia Latina, edited by J.-P. Migne, in 1862, bring the texts of the so called Mozarabic Liturgy: the Missale mixtum and the Breviarium Gothicum. The Missale mixtum includes two parts that integrate the 85th volume, preceded by a Praefatio of Alexandro Lesleo, S. J. This one presents the missal contents and summarizes the Christian liturgy history in the Hispano-gothico mozarabic world. The 86th volume brings the Breviarium Gothicum, that is preceded of a reader salutation by Francisco Antonio Lorenzana, archbishop of Toledo. In the Breviarium Gothicum one can notice the Hymni mozarabici. And, as it is very well known the Mozarabic romance is documented by the mozarabic lyric and by the glossaries. We expect can find some linguistic elements of this Romance in the texts of the hymns. Keywords: Mozarab; Hispano-gothica Liturgy; Mozarabic hymns. 1. Introdução Este trabalho é a continuação do estudo das fontes medievais no Mosteiro de São Bento da Bahia (TELLES, 2008). Acreditava-se que nos textos da liturgia moçarábica, além da consolidação da liturgia hispano-goda-moçarábica na Península Ibérica, se pudesse encontrar outros elementos da língua usada durante a Hispânia visigoda. Os textos em latim cristão, no que tange às interferências dos editores, não oferecem senão alguns traços, à luz da métrica rítmica, que podem ser atribuídos a esses falantes. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 1 1.1. O rito no medievo Os historiadores destacam que a Idade Média ocidental é essencialmente um período do domínio do gesto. Isto se deve, sobretudo, ao fato de ser uma sociedade ágrafa. Por esta razão, o gesto, os sons (fórmulas orais, músicas) e o uso de objetos simbólicos se sobrepunham à escrita, acessível a poucos. Claude Schmitt (2002, p. 415) observa que o rito é pluridimensional e engloba os gestos, os aspectos vocais, as vestimentas, além da manipulação de objetos simbólicos, por exemplo, a coroa e o cetro na consagração régia e o pão e o vinho no rito eucarístico. A repetição ordenada dos gestos e das expressões orais por um grupo social com finalidades simbólicas termina por constituir-se em rituais que foram transmitidos por séculos e, muitas vezes, chegaram às sociedades atuais. O rito é, pois, uma categoria da sociedade e da cultura medievais e os homens daquele tempo não desconheciam os aspectos que o compunha. Embora os romances de cavalaria, por exemplo, tenham legado descrições bastante satisfatórias de rituais profanos como a sagração do cavaleiro, foram as liturgias eclesiásticas que formaram um corpo mais abundante do legado medieval. Aliás, alguns antropólogos defendem que o rito está associado ao sagrado, funcionando num eixo vertical, que liga os homens ao divino. Por outro lado, os rituais laicos refletem as relações humanas e constituem as cerimônias. Interessa-nos, neste trabalho, justamente o aspecto do sagrado e, portanto, o que se constitui o rito propriamente dito. Mas antes convém destacar outro aspecto do rito extremamente importante para nosso objeto de estudo, que é o fato de ele ter uma dimensão histórica. Ou seja, o rito nasce progressivamente, aos poucos, e passa por transformações antes e mesmo depois de ser adotado por toda a Igreja. Considerar estes aspectos é essencial quando se pretende investigar o rito moçárabe. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 2 1.2. O rito moçarábico Rito visigótico-moçárabe, hispânico ou moçarábico são denominações para o conjunto mais ou menos coeso de rituais litúrgicos praticados pela Igreja cristã no território ibérico sob o domínio árabe. Entretanto, historicamente, a gênese desse rito é muito mais complexa do que sugere tal denominação. Primeiro, considerando o fato de que um rito é construído ao longo de tempo, ele não surgiu propriamente no período em que floresceu a chamada cultura moçarábica. É preciso lembrar que a Igreja construiu seu corpo doutrinário, sobretudo, ao longo da Idade Média, portanto, não se pode considerar, neste período, que havia um rito acabado, pronto. Embora o problema das origens do rito moçarábico esteja parcialmente em aberto, é possível identificar alguns aspectos relevantes, a partir dos elementos de que dispomos até então. As primeiras referências a ele são do período visigótico (PRADO, 1928, p. 8). Sabe-se que alguns de seus elementos devem derivar do antigo rito gálico, associado ao ambrosiano e ao irlandês, assim como do rito bizantino, além do monacal ou beneditino. Ele foi codificado ao longo de vários concílios1 e graças ao esforço de liturgistas como Santo Isidoro de Sevilha, sobretudo no Ecclesiasticis Officiis, e Santo Ildefonso de Toledo. A rigor, a liturgia hispânica tem sua origem na romana dos primeiros tempos da Igreja e vai amalgamando influências dos mais diversos grupos sociais formadores da sociedade medieval peninsular. O fato de grande parte do território hispânico ter ficado sob domínio dos árabes, a partir dos princípios do século VIII, contribuiu para acentuar a situação de isolamento do centro e sul da Península, que de resto já se constituía um território pouco acessível graças a seu distanciamento geográfico, desde a época dos romanos. É de se esperar que, tal como a língua, a Península Ibérica fosse fonte de arcaísmos culturais e, consequentemente, litúrgicos. Mas a condição arcaizante de seus ritos litúrgicos vai ser percebida mais agudamente após a introdução do rito romano 1 Prado (1928, p. 27-28) enumera uma série de concílios espanhóis que vão desde cerca o início do século IV em Elvira ou Iliberis até o século IX em Córdoba, destacando que são fontes preciosas para a história da liturgia moçarábica. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 3 renovado, trazido ao território peninsular, sobretudo, pelos monges cluniacenses, no século XI, empenhados divulgadores da Reforma Gregoriana, cujo maior protagonista foi o papa Gregório VII (1073-1085). O rito romano penetrou na Espanha através de Aragão e Catalunha e foi, aos poucos, ganhando terreno frente ao rito moçarábico, “resignáronse al fin los pueblos de España a perder su antiguo Rito, Rito querido y venerado em que habían sido bautizados, em que oyeron cantar sus padres las alabanzas divinas” (PRADO, 1928, p. 78). Aos poucos, o rito moçarábico, assim como a própria cultura dos povos submetidos ao domínio árabe foi retrocedendo tal como a fronteira muçulmana redesenhada pelas investidas dos cristãos nas guerras de reconquista. O resgate dos elementos deste rito poderá contribuir para entender melhor a língua e a cultura dos moçárabes, obliteradas pela política centralizadora dos cristãos do norte, que impuseram sua língua, sua cultura e, por conseguinte, a ortodoxia dos ritos eclesiásticos romanos. Felizmente, o acesso ao rito moçarábico, graças às muitas fontes canônicas, é mais fácil do que ao romance moçarábico2, substituído paulatinamente pelo que hoje designamos como dialeto andaluz. Dentre elas, destacamos as reunidas nos volumes 85 e 86 da Patrologia Latina, editada por J.-P. Migne, em 1862, trazem os textos da chamada Liturgia Moçarábica: O Missale mixtum e o Breviarium Gothicum, objeto de nosso estudo neste trabalho. 2. A patrologia latina Em trabalho anterior (TELLES, 2008) retoma-se o que informa o verbete patrologia do Diccionario literario de obras y personajes de todos los tiempos y de todos los países (CORTÌ, 1959, v. 7, p. 945a-946a) oferece informações sobre a obra: 2 A língua moçárabe é conhecida através dos glossários latino-árabes, as citações em aljamia de vários escritores árabes, as inscrições, os topônimos e os textos curtos das cantigas tradicionais contidas nas jarchas ou no Cancioneiro de Bem Cuzmán. (ZAMORA VICENTE, 1996). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 4 PATROLOGÍA GRIEGA Y LATINA [Patrologiae cursus completus]. Al ingenio poderoso y a la actividad incansable del abate Jacques-Paul Migne (1800-1875), teólogo francés, debemos la existencia de esta obra colosal, que ideó y realizó entre 1844 y 1866, con objeto de recoger en una colección única todos los textos cristianos, griegos y latinos, compuestos desde la época de // los Apóstoles hasta los umbrales de la Edad Moderna. La colección se subdivide en dos partes: la patrología griega y la latina. La griega comprende todos los textos cristianos compuestos desde la época de los Apóstoles al Concilio de Florencia (1459); en 161 tomos (más 2 vols. de índices), publicados en dos series, la una de 108, la otra de 55 volúmenes, en los que al lado del texto griego va la traducción latina; existe adermás una tercera serie de 84 volúmenes, que contiene solamente las traducciones latinas de los textos. La obra comienza con Clemente de Roma, Bernabé Apóstol, Mateo Apóstol, // Hermas, para llegar hasta Teodoro de Gaza, Juan Paleólogo, Constantino Paleólogo, etc. La patrología latina, en 221 volúmenes (más cuatro de índices), se extiende desde los orígenes de la literatura cristiana, es decir, desde Tertuliano y Cipriano, hasta Inocencio III (1216). Después de la muerte de Migne, en 1880, Horoy añadió a esta serie un apéndice de 6 volúmenes con el título Patrologia Latina Medii Aevi, la cual parte del “Ordo Romanus”, de la “Quinta Compilatio decretalium”, para llegar con el sexto volumen a los escritos de San Francisco de Asis y de San Antonio de Padua. El mayor mérito de esta obra consiste en ofrecer la primera edición de bastantes textos griegos y latinos, y la primera traducción latina de algunos textos griegos: se trata sin embargo de ediciones que tienen muchos defectos desde el punto de vista crítico. Migne, en efecto, tuvo que recurrir a ediciones preexistentes y, por consejo de Pitra, sobretudo a las de los benedictinos. Tales ediciones, hechas con método menos riguroso que el actual, no pueden ser aceptadas como base para trabajos filológicos. Sin embargo, son muy útiles las noticias eruditas sobre la vida de los autores y sobre la historia literaria y religiosa de varios textos, que se anteponen a la edición de cada uno de ellos3. 3 Traduzindo: “PATROLOGIA GREGA E LATINA [Patrologiae cursus completus]. Ao engenho poderoso e à atividade incansável do abade Jacques-Paul Migne (1800-1875), teólogo francês, devemos a existência desta obra colossal, que foi idealizada e realizada entre 1844 e 1866, com o objetivo de recolher em uma coleção única todos os textos cristãos, gregos e latinos, compostos desde a época dos // Apóstolos até os umbrais da Idade Moderna. A coleção se subdivide em duas partes: a patrologia grega e a latina. A grega compreende todos os textos cristãos compostos desde a época dos Apóstolos ao Concílio de Florença (1459); em 161 tomos (mais 2 vols. de índices), publicados em duas séries, uma de 108, a outra de 55 volumes, nos quais ao lado do texto grego vai a tradução latina; existe, além disso, uma terceira série de 84 volumes, que contém somente as traduções latinas dos textos. A obra começa com Clemente de Roma, Barnabé Apóstolo, Mateu Apóstolo, // Hermas, para chegar até Teodoro de Gaza, João Paleólogo, Constantino Paleólogo etc. A patrología latina, em 221 volumes (mais quatro de índices), se extende desde as origens da literatura cristã, isto é, desde Tertuliano e Cipriano, até Inocêncio III (1216). Depois da morte de Migne, em 1880, Horoy acrecentou a esta série um apêndice de 6 volumes com o título Patrologia Latina Medii Aevi, que parte do “Ordo Romanus”, da “Quinta Compilatio decretalium”, para chegar com o sexto volume aos escritos de São Francisco de Assis e de Santo Antônio de Pádua. O maior mérito desta obra consiste em oferecer a primeira edição de bastante textos gregos e latinos, e a primeira tradução latina de alguns textos gregos: trata- se, sem dúvida, de edições que têm muitos defeitos do ponto de vista crítico. Migne, com efeito, tevo que recorrer a edições preexistentes e, por conselho de Pitra, sobretudo às dos beneditinos. Tais edições, feitas com método menos rigoroso do que o atual, não podem ser aceitas como base para trabalhos filológicos. Entretanto, são muito úteis as notícias eruditas sobre a vida dos autores e sobre a história literária e religiosa de vários textos, que se antepõem à edição de cada um deles”. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 5 A publicação da Patrologia Latina (migne, 1844, 221t.), iniciada em 1844, compreende 221 tomos, 217 relativos à coletânea de textos patrísticos latinos e 4 volumes de índices, contrariamente à informação de M. Cortì. São dez séculos de literatura patrística habilmente recolhidos. O primeiro autor da seleção é Tertuliano (séc. III) e o último é Inocêncio III (séc. XIII). Do séc. III ao séc. XIII, recolheu-se a obra de 130 Padres da Igreja, como vai indicado no Quadro 1 abaixo: Período séc. III séc. IV séc. V séc. VI séc. VII séc. VIII séc. IX séc. X séc. XI séc. XII séc. XIII Total de Padres 3 9 16 10 5 4 22 8 11 36 6 Quadro 1. Total de autores da Patrologia latina. O quadro 2 mostra a relação de todos os autores da coletânea. Tomos 1-4 Período séc. III 5-19 séc. IV 20-61 séc. V 62-74 séc. VI 75-87 séc. VII 88-96 séc. VIII Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Autores Tertulianus; Minucius, S. Ciprianus Arnóbio; Lactantius; Constantinus Magnus; S. Hilarius; S. Zeno; S. Damasius; S. Ambrosius; Ulfila; Poetarum Christianorum Scriptores Ecclesiastici; Rufinus; S. Hyeronimus; Orosio; S.Agustinus; Mercator; Cassianus; S. Prosper; S. Petrus Chrysl; Salvianus; Leo Magnus; S. Maximus; Sidonius Apolinarius; S. Gelasius; Aurelianus Prudentius; S. Paulinus Eugippirtus; Boetius; S. Fulgentius; S. Benedictus; Dionysius Exigus; Primasius; Cassiodorus; S. Gregorius Turonensis; S. Germanus; Vitor Patrum S. Gregorius Magnus; Scriptores Ecclesiastici; S. Isidorus; Liturgia Moçarábica; Missal Mixtus Lemantus; Scriptores Ecclesiastici; Venerabilis Beda; S. Hildephonsus 6 97-130 séc. IX 131-138 séc. X 139-151 séc. XI 152-207 208-217 séc. XII séc. XIII 218-221 Carolus Magnus; S. Paulinus; B. Alcuinus; Smaragdus; S. Benedicti; Abbatis Amanensis; S. Agsbardus; Theodulfus; Gregorius IV; B. Rabanus Maur.; Walofrid Strasburgensis; Leo IV; Haymonis; Nicolau I; S. Radbertus; Batramnus; Joanes Scotus; Usuantus; Carol Calvus; Hinamarus; Enastasius Abb.; Isidorus Mercator Remigius; Regino; S. Odo; Alto; Floduardo; Ratherius; Hrotsuithe; Richerus Silvester II; Burchandus; S. Fulbertus; Herman Contredo; S. Petrus Damianus; Othlonus; Joannes; S. Gregorius VI; Victor III; B. Lanfrancus; B. Urbanus I S. Bruno; Hugo Olbas; Godefridus Bullonis; Venerabilis Guibertus; Goffridus; Sanctisivo; Paschalis III; S. Bruno Astenus; Baldricus; S. Ruppertus Abbas; Venerabilis Hildebertus; Leo Petrus Daconi; Venerabilis Godefridus; Hugo de S.Victore; Petrus Abaelardus; Willelmus; Ergenius I; Venerabilis Herbeius; S. Bernardus; Sugerius; Gratianus; Ordericus Vitalis; Petrus Venerabilis; S. Thomas Cantias; Petrus Lombardus; Venerabilis Gerhohus; Richard A. S.Victore; S. Hildegardis; Adamus Scotus; Joannes Saresberri; Alesandre III; Arnulfus; Petrus Cellensis; D. Philippus; Clementis III; Petrus Blasensis S. Martini Legion; Alanus; Hellimondus; Stephanus Abbas; Sicardus; Inocentius III 4 tomos de índices Quadro 2. Resumo do conteúdo da Patrologia latina Entre os trabalhos datados do século VII estão a Liturgia Moçarábica e o Missal Mixtus (volumes 85 e 86). 2.1. Descrição intrínseca dos volumes 85 e 86 De modo sucinto podem fazer-se a descrição intrínseca dos dois volumes que ínteressam à liturgia moçarábica. O volume 85 tem como conteúdo: o Praefatio in MissaleMixtam de Fr. Ant. Lorenzana, seguido de: Missalis mixti pars prima, Missalis mixti pars prima, de um Appendix , da Missa S. Pelagii martyris , do Kalendarium vetus e do Kalendarium Gotho-Hispanum. A que seguem uma Advertência dos editores e o Missale mixtum sive Mozarabum et Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 7 Breviarioum Gothicum, redigido segundo a Regra da Liturgia Moçarábica e uma Dedicatória a Benedicto XIV. O Praefatio é impresso em duas colunas (de 1 a 94), com parágrafos numerados de 1 a 306, achando-se dividido em 17 partes: Epistola dedicatória editione toletanae praemissa: ao arcebispo Franciscum Ximenem, ao “júris doctoris” Alfonsi Ortis e aos cônegos toledanos Calendarum mozarabicum, saepius auctem Benedictio aque MISSALE MIXTUM SECUNDUM REGULAM B. ISIDORI DICTUM MOZARABES; pars prima (Impresso em duas colunas (de 109 a 655) MISSALE MIXTUM SECUNDUM REGULAM B. ISIDORI DICTUM MOZARABES; pars posterior (Impresso em duas colunas (de 655 a 1036) Tabula ad inveniendu, que continetur in isto missali et primo tabella adominicarum cum singulis feriis sequentibus Appendix prima – Missa S. pelagii Martyris a Mozarabicus circa annum DCCCCXXX compósita Appendix secunda – Fragmentum vetusti kalendarii a Francisco de Pisa editi Index rerum analyticus Ordo rerum quae in hoc tomo continentur O volume 86 consta de um Prefácio de Antonio Lorenzana, arcebispo de Toledo, Franciscus Antonius Lorenzana. Archiepiscopus Toletanus, hispaniarum primus, Lectori salutem, com explicações sobre a edição; de Cantus Eugeniani seu melodici explanatio facta a Divo Hieronymo Romero, sanctae ecclesiae toletanae hjispaniarum primatis portionario, et cantus melodici magistro; de uma Regula; do Breviarium ad Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 8 debite persolvendum divinum officium secundum B. Isidori regulam; de uma Descriptio divini Officii per totum circulum anni; de um Psalterium; de Cantica; de Hymni mozarabici; de Horae canonicae; além de Commune e Sanctorale; seguidos de um Appendix e da Festa breviário Gothico-Hispano addita in editione cardinalis Ximenii. Traz ainda um Index rerum analyticus e uma Ordo rerum quae in hoc tomo continentur. O Praefatio de Alexandro Lesleo, S. J., consta de: Pars prima Missalis Mozarabici (col. 11 § 1); Pars secunda Missalis Mozarabici (col. 17 § 2); An Missa Missale Mozarabum vetustum sir sacramentarium (col. 20 § 3); An liturgia Missalis Mozarabici sit Gotho-Hispana (col. 20 § 4); An liturgia Missalis Ximenii eadem sit atque Gallicana? (col. 24 § 5); Satis fit eorum difficultatibus qui opinantur liturgiam Missalis Ximenii diversam esse a Gallicana (col. 26 § 6); Respondetur iis qui aiunt liturgiam Missalis Ximenii vitiatam esse (col. 29 § 7); An Missale Mozarabum immune sit ab erroribus Felicis et Elipandi (col. 41 § 8); An liturgia Missalis Ximenii apostolic sit (col. 46 § 9); An primaeva Hispanorum liturgia eadem fuerit atque Romana (col. 48 § 10); An sanctus Leander Auctor habendus sit liturgiae Gotho-Hiapanae (col. 55 § 11); An sanctus Isidorus auctor fuerit liturgiae Gotho-Hispanae (col. 61 § 12); An liturgia Gotho-Hispana ab apostolarum aevo ad excidium regni Visigothotum in Hispania constanter obtinuerit (col. 63 § 13); An liturgia Romana ab ecclesius provintiae Bracarensis in concilio primo Bracarensi suscepta fuit; (col. 73 § 14); De primaeva origine liturgiae Gallicanae inquiritur. Et an ex Hispania in Galliam, an potius e Gallia in Hispaniam propagata fuerit (col. 78 § 15); An sanctus Leander, aut sanctus Isidorus, aut sanctus Iulianus auctor fuerit Missalis Mozarabici (col. 82 § 16); Missale Mozarabum cum libris liturgicis Gallicanis comparator (col. 86 § 16 [bis]). As figuras 1-2 reproduzem o dorso, o corte e as capas do volume 85, Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 9 Figura 1. Aspecto externo do volume 85 (dorso e corte) Figura 2. Aspecto externo do volume 85 (frente e verso) enquanto as figuras 3-4 reproduzem o dorso, o corte e as capas do volume 86 da Patrologia latina. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 10 Figura 3. Aspecto externo do volume 86 (dorso e corte) Figura 4. Aspecto externo do volume 86 (frente e verso) Por sua vez, as figuras 5 e 6 reproduzem as folhas de rosto, respectivamente dos volumes 85 e 85 da Patrologia latina. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 11 Figura 5. Folhas de rosto do volume 85 Figura 6. Folhas de rosto do volume 86 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 12 No volume 85, no Missale mixtum, acham-se publicados o Calendarium mozarabicum (col. 95-96) e uma versão do Kalendarium gotho hispanum (em appendix secunda, col. 1051), enquanto no volume 86 acha-se publicada outra versão do Kalendarium gothicum (col. 37-38). Figura 7. CALENDARIUM MOZARABICUM (Missale mixtum, col. 95-96 (v. 85) e Missale mixtum, appendix secunda, Kalendarium gotho hispanum, col. 1051 (v. 85) Figura 8. CALENDARIUM MOZARABICUM (Missale mixtum, col. 95-96 (v. 85) e Breviarium Gothicum, col. 37-38 (v. 86) Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 13 As Figuras 7 e 8, acima, mostram uma comparação entre o Calendarium mozarabicum e cada uma dessas versões do calendário godo. Assinalam-se em todos eles as indicações dos dias das kalendas, das nonas e dos idos. 2.2 A edição É bom lembrar que, originalmente, trata-se de textos latinos anteriores à invasão árabe (711), editados no séc. XVI pelo Cardeal Ximeno. No Praefatio (col. 9, L. 46-52), lê-se: Zelo fidei accensus eximius ille cardinalis Xime- / nius, Christianus et politicus heros, sparsos undique / Gothicos, Isidorianos, seu Mozarabicus Codices in / unum collegit; viros doctissimos undequaque accivit; / peritiores in Mozarabico ritu sacerdotes selegit; / iisque divitiis onustus. Breviarium secundum regulam / sancti Isidori tandem, anni 1502 prelo commisit4. Ainda no Praefatio (col. 25, L. 42-59) pode ler-se: imo quidam post multa saecula floruerunt; nunc autem ex pervetustis nostris Codicibus manu- / scriptis secernuntur festivitates, de quibus tempore / Gothorum, seu Paulo ante Maurorum invasionem age- / batur facilique negotio pereallebunt id quod opta- / bant: nam hymni in corpore Breviarii et post cantica / appositi vetustati ritus omnes congrunt; nec ullus, / fastidium generet, quando hymni sunt in corpore / Breviarii, fit remissio ad propriam festivitatem; nam / licet in quibusdam verbis discrepet Editio card. Xi- / menii a nostro Codice ms., cum in módico appareat / discrimen, non est justa causa praefatos hymnos cor- / rigendi. Non leve ad asserendam nostri Codicis vetustatem / argumentum insurgit ex numero et 4 Traduzindo: “O Cardeal Ximeno, cidadão cristão e político, foi o escolhido, pelo zelo da fé, para coletar em um único volume os códices godos, isidorianos e moçarábicos esparsos por toda parte. Para tanto, chamou, de todos os lugares, homens doutíssimos e escolheu os mais doutos sacerdotes acerca do ritual moçarábico. Pleno daquelas riquezas, o Breviarium secundum regulam / sancti Isidori foi, enfim, mandado ao prelo no ano de 1502”. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 14 ordine horarum / canonicarum ad quas aptatur hymnus, et priorum / Ecclesiae saeculorum nobis speciem referunt; [...]5”. Ressalta-se na edição a Lectori Salutem de Franciscus Antonius Lorenzana, na qual chama-se a atenção para o uso de alguns sinais abreviativos, como vão indicados nas figuras 9 e 10 a seguir. = idem ac repetitio = paragraphum = solicitudinem ubi aliquid obscuritatis est = matutinum Figura 9. Sinais abreviativos e suas equivalências, segundo Lorenzana 5 Traduzindo: “[...] mas alguma coisa floresceu depois de muitos séculos; agora, ao contrário, as festividades são separadas a partir dos nossos códices manuscritos postos às avessas, sendo conduzidos desde o tempo dos godos ou de Paulo antes da invasão dos mouros e conhecem de modo fácil o que escolhem. Com efeito, todos os ritos antigos adicionados reúnem, no corpo do Breviário, os hinos e depois os cânticos. Nem mesmo se gerou aversão quando os hinos foram colocados no corpo do Breviário, sendo feita remissão à própria festividade. De algum modo é permitido que a edição de nosso códice feita pelo cardeal Ximeno discrepe em palavras, quando são de pequena monta, não é justo que se corrijam os citados hinos. Não é pouco levantarem-se argumentos antigos que atribuam a nossos códices, pelo número e ordem das horas canônicas, hino a elas adaptado, restituído pela Igreja antiga, por todos os séculos”. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 15 = ymnum Figura 10. Sinal abreviativo para ‘hino’, segundo Lorenzana A Patrologia latina foi editada por Jacques-Paul Migne, no século XIX (1862), momento em que, no Praefatio (col. 25, L. 20-32), foram apontados alguns problemas de grafia. In praefato Psalterio mici pro mihi, macina pro machina / semper scribitur; aliquoties b pro v, vel e contra, / Josep pro Joseph; Asap pro Asaph, tropeum pro tro- / pheum, et alia his simillima, praetermittendo aspira- / tionem litterae h, reperies; et hoc evidens est si- / gnum Gothicae pronuntiationis et scripturae; lingua / etenim vernacula illorum gutturalis magna cum diffi- / cultate Latino ingenuo sermoni assuefiebat; et ob / hec rudes exscriptores pervetusti ritus memorat /a verba apposuerunt, ut videre est in aliis ejusdem ae- / tatis Codicibus; et ne offendiculum sacerdotibus Moza- / rabicis remaneret, correcta sunt in Psalterio praefata / verba6. 6 Traduzindo: No Psalterio citado está sempre escrito mici por mihi, macina por machina; algumas vezes b por v, e vice versa, Josep por Joseph; Asap por Asaph, tropeum por tropheum, encontras, ainda, outros semelhantes, negligenciando a aspiração da letra h. E isto é sinal evidente da pronúncia e da escrita dos godos, pois a língua vernácula deles, fortemente gutural, acostumava-se com dificuldade ao modo de expressão do latim comum. Diante dessa palavras lembradas, os escritores rudes acrescentaram rituais Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 16 A propósito dessa edição, Ernst Robert Curtius (1957, p. 267) declara que Jacques-Paul Migne é “o mais emérito patrólogo do século XIX, notável menos pela pesquisa, do que pelos seus trabalhos difundindo as obras dos Padres”. Entretanto, não deixa de falar nos “muitos defeitos” da obra, mas ressalta a união da ciência eclesiástica e a iniciativa de uma empresa capitalista privada (CURTIUS, 1957, p. 268). Lembra, por fim, que, no século IX, por necessidades do culto, teve origem a poesia dos hinos (CURTIUS, 1957, p. 268). A propósito dos hinos moçárabes, ressalta Roger Wright que se conservaram cerca de trinta ou quarenta hinos moçárabes da Espanha muçulmana (WRIGHT, 1982, p. 235). Alguns deles foram atribuídos a Álvaro ou a Eulógio. Foram pensados intrinsecamente para sua reprodução oral, sendo, portanto, rítmicos e não métricos (WRIGHT, 1982, p. 236). Assinala R. WRIGHT que tanto o latim híbrido dos documentos notariais como o “latim” mais respeitável dos hinos, histórias e poemas podem ser explicados pela teoria da existência de um único nível falado, em lugar de três ou de dois. Assim, a língua de Leão é uma “só língua vernácula, com um tipo de escritura complexo associado a ela, utilizado com um maior ou menor grau de perfeição pelos diferentes escritores” (WRIGHT, 1982, p. 264). O hino segue o modelo normal dos trímetros jâmbicos rítmicos: doze vogais escritas (ou ditongos clássicos) em cada verso. Dentro dessa tradição, a sílaba portanto continua sendo definida mediante a ortografia original (WRIGHT, 1982, p. 265). Nos hinos moçarábicos é comum a vacilação entre as formas secla, seclum, seclis, carbunclus e as correspondentes proparoxítonas, de acordo com a necessidade do ritmo. Quanto ao Missale mixtum, Alexandro Lesleo afirma no Praefatio: invertidos, que podem ser vistos em códices de outras épocas e, para que não se tornem obstáculos para os sacerdotes moçárabicos, tais palavras foram corrigidas no Psalterio. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 17 Haec sunt argumenta quibus demonstrare ca- / nali sunt Hispanos a viris apostolicis liturgiam Ro- / manam una cum fide Christi accepi se, quorum alia / incerta, alia levia, alia sunt quae in contrariam par- / tem facile deducuntur. Nunc ad eas rationes exami- / nandas transeo, quibus persuadere volunt liturgiam / Gotho-Hispanam, seu Mozarabicam, saeculo vii ex- / cogitatum fuisse, et a viris sanctis Leandro et Isidoro / in cum quem postea ordinem retinuit digestam fuisse / atque dispositiam (Parte X, § 171, col. 55, L. 39-48)7. Liturgiam Gotho-Hispanam apud catholicos / Hispanos solam obtinuisse, praeter hactenus dicta, / persuadet scriptorum Hispanorum, et maxime sancti / Isidori, silentium de alia quacunque liturgia quae in / illis regionibus aliquando in usu fuerit. Si enim unus / excipiatur canon, quem mox examinabo, nihil in / scriptoribus, nihil in conciliis Hispaniensibus inve- / nire est quod suspicionem moveat aliam liturgiam eos unquam suscepisse praeter hanc unam quam GothoHispanam et postea Mozarabicam appelarunt (Parte XIV, § 227, col. 73, L. 44col. 74, L. 10)8. 3. O latim no reino visigodo R. Menéndez Pidal, no clássico Orígenes del español (1968, p. 503), data a época visigoda de 414 a 711, afirmando que na corte visigoda os mais doutos falavam um latim, escolástico, como o que era escrito por São Julião, Santo Ildefonso ou Santo Isidoro. Quanto à fala dos que não tinham esses estudos especiais, seria, sem dúvida, “um latim muito romanceado”. Os rústicos não se serviam do latim para nada, nem mesmo as damas hispano-godas mais distintas. A língua familiar seria um “romance plano” (MENÉNDEZ PIDAL, 1968, p. 503). 7 Traduzindo: “Estes são argumentos unos que demonstram os canais que são hispanos e cujos varões apostólicos aceitam a liturgia romana com a fé de Cristo, de que alguns são contrárias, outras fracas e outras são as que são conduzidas facilmente pela parte contrária. Agora passo àquelas razões examinadas, pelo que querem convencer que a liturgia godo-hispana, ou moçarábica, fosse descoberta no século VII, e, a partir de homens como Leandro e Isidoro, quando, em seguida, conservou a ordem para que fosse aceita e ordenada”. 8 Traduzindo: “Para os católicos hispanos, ao longo do que até aqui foi dito, apenas a liturgia godohispana prevaleceu e convenceu os escritores hispânicos, em especial Santo Isidoro, havendo silêncio de todos para outra liturgia que estivesse em uso naquelas regiões. Se, na realidade, outro cânone existisse, era de imediato avaliado. Nada nos escritores, nada nos Concílios Hispanienses, é encontrado que provoque suspeita de que algum dia outra liturgia fosse sustentada ao lado da que chamaram GodoHispana e depois Moçarábica”. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 18 Nesse período primitivo (séc.V ao VIII) o latim era a única língua falada em público: era a língua da comunicação distinta entre todas as pessoas cultas. O romance, reservado ao uso familiar, era a única língua comum dos incultos (MENÉNDEZ PIDAL, 1968, p. 503). No século X, assinala R. Menéndez Pidal (1968, p. 527), o romance falado (que se manifestava fora dos moldes do latim escolástico, que oprimiam a língua escrita) podia, comumente, ter maior estabilidade do que o latim escrito vulgarmente. O latim dos notários corria em paralelo a esse latim escolástico. A propósito das relações entre o latim e o romance na Idade Média, Roger Wright (1982, p. 79) assinala que existem diferenças de atitudes referentes à natureza desse latim e do romance. Que latim era esse? É, ainda, Roger Wright que, lembrando o De orthographia de Alcuino, lembra que “os que pronunciavam da maneira ali prescrita falariam como os Padres, que haviam escrito as homilias (WRIGHT, 1982, p. 184). 4. Considerações finais A busca de dados que corroborassem a língua dos hispano-godos ou moçárabes sobretudo nos hinos moçarábicos não foi de todo infrutífera. Se, por um lado, a interferência do editor novecentista no texto não permite que sejam oferecidos dados seguros, registraram-se nos textos latino-cristãos hispano-godos ou moçarábicos resquícios de uma língua falada, inúmeros traços da fala puderam ser vistos aqui e ali, de acordo com as necessidades rítmicas. Destacam-se, desse modo: a grafia de formas sem a vogal postônica ou a grafia das vogais átonas pretônicas. Ainda aparecem formas lexicais, que necessitam de um exame Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 19 mais acurado para que se possa determinar se são do texto original, ou se foram introduzidas pelos editores dos textos no século XVI ou no século XIX. Referências CORTÌ, M. Patrología griega y latina. In: PORTO-BOMPIANI, González. Diccionario literario de obras y personajes de todos los tiempos y de todos los países. Barcelona: Montaner y Simón. v. 7, 1959. p. 945a-946a. CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e idade média latina. Trad. Teodoro Cabral, com a colab de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: MEC; INL, 1957. MENÉNDEZ PIDAL, R. Orígenes del español: estado lingüístico de La Península ibérica hasta el siglo XI. 6. ed., segúnlLa tercera muy correg. y adic. Madrid: EspasaCalpe, 1968. MIGNE, J.-P. Patrologiae: cursus completus sive bibliotheca universalis, integra, uniformis, commoda, oeconomica, omnium SS. Patrum, Doctorum Scriptorumque ecclesiasticorum qui ab aevo apostolico ad usque Inocentii III tempora floruerunt... Parisiis: Excudebat Migne, 1862. t. 85 e 86. MIGNE, J.-P. Patrologiae; cursus completus sive bibliotheca universalis, integra, uniformis, commoda, oeconomica, omnium SS. Patrum, Doctorum Scriptorumque ecclesiasticorum qui ab aevo apostolico ad usque Inocentii III tempora floruerunt... Parisiis: Excudebat Migne. 1844. 221 t. PRADO, Germán. Historia del rito mozárabe y toledano. Burgos: Abadía de Santo Domingo de Silos,1928. SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Coord. da tradução de Hilário Franco Junior. São Paulo: EDUSC. v. 2, 2002. p. 415-430. TELLES, Célia Marques. Fontes medievais no Mosteiro de São Bento da Bahia. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, 24. Brasília: ANPOLL. Comunicação no GT de Estudos Medievais, 2008. WRIGHT, Roger. Latín tardio y romance temprano: en España y la Francia carolingia. Vers. esp. de Rosa Lalor. Madrid: Gredos, 1982. ZAMORA VICENTE, Alonso. Dialectología española. 2. ed. aum. Madrid: Gredos, 1996. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 20 A configuração do amor nas cantigas pastorelas Clarice Zamonaro Cortez Marciléia de Souza Apolinário Universidade Estadual de Maringá (UEM) 1. Introdução Grande parte das cantigas de amigo passou por diversas classificações sociológicas e estéticas, tendo alcançado várias possibilidades de abordagem. Quanto à temática do amor, Spina (1996) lhes confere um saudosismo culturalmente típico, capaz de atingir uma confidência lírica de retoques muito mais realísticos do que as cantigas de amor. Nas cantigas de amigo, a importância da mulher é indiscutível. A expressão dos sentimentos, fora do convencionalismo cortês marca, segundo Ferreira (s/d [19??], p. 21), “as reações femininas suscitadas pelo amor por meio de um realismo psicológico singular”, pelo qual se pode vislumbrar o encanto do namoro, a ira (sanha) diante da traição, o esquecimento e o abandono. Sob tais ponderações, o amor é o motivo constante dessa poesia, cuja tendência foi a de ornamentar e doutrinar tal sentimento nas suas mais variadas formas de composição. Se às cantigas de amor foram impostos os preceitos exigidos pela ideologia do amor cortês, às cantigas de amigo, com sua diversidade, coube revelar poética e expressamente os sentimentos da mulher pelo seu amado em uma poesia feminina, que se distingue da poesia de inspiração, visto que todas as composições desta espécie são atribuídas a poetas e não poetisas1. Acerca das pastorelas, fica evidente que possuem uma unidade narrativa capaz de informar, estilisticamente, que os estados sentimentais de seus personagens explicam-se em razões para as quais os trovadores dispensam a ornamentação excessiva, preferindo a predominância dos valores sensoriais e o registro do cenário lírico. Quanto ao tema 1 Cf . PIMPÃO, 1947, p.99. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 21 pastoril, são de exclusiva influência provençal as cantigas que registram o encontro de um cavaleiro com uma pastora num ambiente bucólico. A Provença, antiga província romana, possivelmente adaptou e desenvolveu esse gênero de poesia cujas “raízes encontram-se com os poemas pastorais de Teócrito que, cerca de 200 anos antes de Cristo, demonstrou inigualável naturalidade ao pintar a vida camponesa, principalmente a antiga vida campestre da Sicília” (FERREIRA, s/d [19??], p. 44). Tal variedade temática, doze séculos mais tarde, teve grande voga entre os provençais e no gosto de alguns poetas mais cultos do lirismo galego-português. Muito discutidas são as suas origens e a sua inclusão entre os cantares de amigo. É o cavaleiro que, ao iniciar o poema declarando sua admiração e o seu amor à pastora, contraria o que preceitua a poética fragmentada do trovadorismo medieval. Há, todavia, um recato e uma simplicidade por parte da moça, um realismo das situações apresentadas, um ambiente rústico, uma descrição da natureza que, por vezes, expressa a relação do homem com o meio de uma forma que muito difere dos modelos occitânicos. Nas pastorelas galego-portuguesas a narração dos acontecimentos é feita com base, unicamente, na experiência visual do eu-narrante, que pode se revelar ou não como o cavaleiro, que compõe a situação ideal do flagrante campesino. Nas pastorelas dos trovadores goliardos2, compostas em língua latina nos séculos XI e XII, sobretudo, na França e na Alemanha, a poesia é carregada de uma atmosfera sensual, na qual a conquista realiza-se por meio da posse física insistentemente requestada pelo cavaleiro. Nota-se que, na mesma temática, foi possível colocar em perspectiva tanto os sentimentos femininos quanto os masculinos. Todavia, o encanto e a inovação maior se realizaram em solo lusitano, cujas pastorelas apresentam um desfecho amoroso mais recatado, principalmente nos exemplares dialogados. Foram selecionados oito textos definidos, geralmente, como pastorelas (cf. LANCIANI;TAVANI, 2002, p. 285), dos quais três são de autoria do rei trovador D. Dinis (Ua pastor se queixava,/ Ua pastor ben talhada, e Vi ojeu ua pastor cantar), e os demais, respectivamente, foram compostos por D. Joan D’Avoin (Cavalgava noutro dia), Airas Nunes (Oi oj’eu ua 2 De acordo com Spina (1996, p. 27), a poesia dos goliardos floresceu em língua latina com um ritmo acentual, satírico, lírico e confessional. Seus principais trovadores eram clérigos com uma imensa carga cultural resultante do contato com a cultura letrística, clássica e escolástica. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 22 pastor cantar), Pedr’Amigo de Sevilha (Quand’eu un dia fui em Compostela), João Airas Burgalês de Santiago (Pelo souto do Crexente) e Lourenço Jograr (Três moças cantavam d'amor). Cronologicamente, o primeiro texto de natureza pastoril entre as cantigas de amigo é o texto atribuído a D. Johan d'Avoin: Cavalgava noutro dia. De acordo com Ventura (apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p.355) Johan Perez d'Avoin nasceu em uma família nobre portuguesa no início do século XIII. Conquistou poder e influência junto ao rei D. Afonso III, do qual passou a ser servo particular. Ainda na juventude esteve na França em companhia do rei onde testemunhou as mais ricas formas de compor a poesia de seu tempo. O seu refinado modo de compor reflete imenso repertório lírico desenvolvido em terras lusitanas e fortalecido pelas influências diretas da poesia francesa, pois, de acordo com Spina (1996), os trovadores provençais, antes de irradiar para toda a Europa boa parte de sua tradição, conviveram no início do século XI com personalidades únicas como os clérigos vagantes, cuja cultura lírica prestigiava os nomes de Virgílio, Ovídio e Horácio. A cantiga de D. Johan d'Avoin, constituída por duas estrofes de 10 versos, na opinião de D. Carolina de Michaelis (1904 apud FERREIRA, 1968, p. 105) há a possibilidade de ter possuído originalmente mais duas estrofes das quais participariam as demais pastoras. No entanto, nos cancioneiros consultados constam apenas duas estrofes: na primeira há o registro do flagrante campesino, momento em que o cavaleiro/trovador ouve e observa o canto triste e saudosista de uma das pastoras e na segunda, outra pastora responde e aconselha paciência à amiga para ouvir os argumentos do cavaleiro. Cavalgava noutro dia per o caminho francês, e ua pastor siia cantando com outras três pastores, e, non vos pês, e direi-vos toda via o que a pastor dizia aas outras em castigo: “Nunca molher crea per amigo 3, pois s'o meu foi e non falou migo.” 3 Grifo nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 23 “Pastor, non dizedes nada.” diz ua d'elas enton, “se se foi esta vegada, ar verrás' outra sazon e dirá-vos por que non falou vosc', ai ben talhada; e é cousa mais guisada de dizerdes, com' eu digo: “Deus, ora vees' o meu amigo e averia gran prazer migo.” Na primeira estrofe, o trovador confere ao cenário a referência ao espaço físico, presente também nas estruturas do imaginário literário: o caminho francês. Segundo Bédier (apud FERREIRA, 1986, p.106), esse caminho corresponde à estrada real da cidade de Bordeaux, na França, a Santiago de Compostela, pelo qual passavam inúmeros peregrinos destinados ao Santuário. O histórico trajeto de origem romana também liga a cidade de Pamplona a Compostela e encontra na pastorela de Guiraut Riquier, trovador provençal, semelhante referência nos seguintes versos: D'Astarac vênia/ l'autrier vas la Ylla/ pel camin romieu (RIQUIER apud CUNHA, 2006, p.89). De acordo com Pimpão (1947), a escolha de Santiago de Compostela expressa a atmosfera religiosa da sociedade da época e as influências literárias advindas da Provença. Em conformidade com as regras gerais que se aplicavam às cantigas de caráter pastoril, dentre as quais se sobressaíam o elemento narrativo e a abordagem por parte do cavaleiro, D. Johan d'Avoin, estilisticamente, identifica seu narrador como um cavaleiro pelo primeiro verso: Cavalgava noutro dia. No entanto, sua participação restringe-se à função expositiva inicial dos fatos e dos diálogos existentes na estrofe. A hipótese de se ter perdido outras duas estrofes dessa pastorela, leva-nos à possibilidade de imaginar uma participação mais efetiva do eu-narrante personificado por um cavaleiro, nas palavras de julgamento e afetividade, denunciados pela caracterização das pastoras. O traço estilístico que permite atribuir uma moldura descritiva ou um cenário ao desenvolvimento temático das pastorelas é recorrente em sete dos oito exemplares galego-portugueses. Somente o trovador Lourenço Jograr omite em sua cantiga Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 24 qualquer descrição paisagística em função do encantamento do trovador no momento em que se depara com a pastora cantando uma canção ou revelando suas desventuras amorosas. D. Johan d'Avoin não desenvolve um extenso “prelúdio naturístico” em sua cantiga, mas, implicitamente, que se trata de uma estação propícia às peregrinações e aos flagrantes sentimentais dos trovadores. Dos versos que revelam o canto das pastoras, verificamos que toda composição se inspira na esperança fundada no amor que se presentifica nos versos (em negrito) da segunda estrofe. A desilusão cantada pela primeira pastora em forma de conselho (castigo) nunca molher crea per amigo,/ pois s'o meu foi e non falou migo, inspira a tonalidade emotiva que se configura nas palavras da segunda, que devota uma fiel e incansável credibilidade às razões do amigo que deixa de dar notícias à jovem enamorada. D. Johan d'Avoin retrata as jovens como mulheres entregues às suas sentimentalidades em seu cotidiano, uma peregrinação ou um pastorear pelos campos. Embora as descrições paisagísticas sejam mínimas (caminho francês), percebemos que as ações e os diálogos acontecem em meio à dinâmica dos quadros que nos sugerem a presença de um cavaleiro e de jovens pastoras num mesmo cenário. Em um ambiente cultural pleno de efervescência, o trovador se destaca pela requintada observação da tradição lírica occitânica e provençal, que irá se desenvolver efetivamente no reinado de Dom Dinis. A confidência amorosa entre as mulheres (apresentadas em grupo) na cantiga de D. Johan d'Avoin, ua pastor siia/ cantando com outras três, repete-se na cantiga de Lourenço Jograr: Três moças cantavam d'amor. Lourenço Jograr, de acordo com Tavani (2002), é um poeta singular do período alfonsino e servo do trovador Johan Garcia de Guilhade, com o qual frequentou a Corte portuguesa de Afonso III e a castelhana de Alfonso X. Tanto os quartetos quanto o refrão revelam o caráter popular e folclórico da cantiga, conferindo-lhe um caráter popular e folclórico. A predominância da redondilha maior também contribui à natureza musical dos versos: Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 25 Três moças cantauam d'amor, mui fremosinhas pastores, mui coytadas dos amores, e diss'end ua, mha senhor; “dized', amigas, comigo o cantar do meu amigo”. Todas três cantauam mui ben, come moças namoradas e dos amores coytadas, e diss' a por que perco o sen: “dized', amigas, comigo o cantar do meu amigo”. Que gram sabor eu auya de as oyr cantar enton, e prougue-mi de coraçon quanto mha senhor dizia: “dized', amigas, comigo o cantar do meu amigo”. E, sse as eu mays oysse, a que gran sabor estaua e que muyto me pagaua de como mha senhor disse: “dized', amigas, comigo o cantar do meu amigo”. Além do refrão e da opção pelo uso da redondilha (traço de musicalidade) é a alusão ao canto de três jovens que se individualiza na cantiga. Ela se encontra nos limites de classificação entre as pastorelas, porque não retrata especificamente o flagrante campesino mais evidente que caracteriza as demais composições, mas apresenta três jovens como pastoras, aproximando-se (semanticamente) do relacionamento amoroso e da atividade pastoril existente no universo literário das pastorelas. De acordo com Spina (1996), a espionagem de amor que faz o poeta demonstra ser a composição de uma cantiga que privilegia a exaltação do tema amoroso e saudosista em detrimento da identificação alegórica da poesia com as normas convencionais das pastorelas. Lourenço Jograr, inspirado nos recursos líricos oferecidos pela temática pastoril e pelas cantigas de amor, cria o cantar de seus personagens (o cavaleiro e as pastoras). Numa mesma cantiga temos o arrebatamento amoroso com tons de uma sondagem do sentimento por parte do amigo, e os suspiros alegres e a vivacidade do Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 26 canto da donzela expressos no refrão. Na primeira estrofe uma das jovens enamoradas faz o convite para iniciar o canto do amado (“dized', amigas, comigo/ o cantar do meu amigo”). Diferentemente dos códigos do amor cortês, que exigiam do trovador absoluto sigilo da identidade da senhora da corte (comprometida, casada), na cantiga em questão há um jogo aberto de palavras nos versos três moças cantavan d’amor/ mui fremosinhas pastores/ mui coytadas dos amores [...], que permitem ao trovador resgatar o vocabulário das cantigas de amor, incluindo-se a expressão mha senhor para indicar a sua preferida entre as três jovens. Do mesmo modo, o uso do adjetivo fremosinhas refere-se à beleza singular das moças, provocando a perda do juízo (e diss’ a por que perco o sen). Nas cantigas ocorre sempre uma confissão amorosa da jovem que, com a partida de seu amigo, sofre e canta a saudade e as dores da separação: Ali ouv'eu de mia morte pavor/ u eu fiquei mui coitada pastor,/ pequena e d'el namorada. Nos textos de Lourenço Jograr e Pero de Veer, o retrato da mulher apresentado como pastora é a reprodução de um modelo de beleza e ingenuidade, expressão considerada como tópica das pastorelas. No plano lexical, tanto a expressão senhor quanto pastor apresenta uma mesma função – a de acentuar as qualidades da mulher que provocam no trovador o gran sabor de a oir (grande prazer de ouvi-la). Tavani (2002) explica que um dos tópicos da cantiga de amor, também presente na cantiga de amigo, é a equação de que o (a) amado (a) equivale à chama dos olhos daquele que ama. Sendo assim, nada interrompe esse êxtase de sentimento que perdurará por toda composição. Quanto ao amor, os personagens apresentam-se sempre envolvidos em sua coita amorosa que, neste caso, pode ser traduzida como desejo e paixão4, conectados a uma aspiração natural de cada um que os impele a querer aproximar-se de uma felicidade total encontrada no outro. O drama passional sugerido pelo termo coita, que em outras composições alcança o extremismo do tormento amoroso que pode resultar na morte como solução, não se aplica à cantiga de Lourenço Jograr por não se tratar da exposição de um drama amoroso com todas suas tonalidades marcantes e expressões trágicas 4 Cf. Nunes (1928, p.597). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 27 como o abandono, o desprezo, a mentira e a morte. Por outro lado, a pastorela Três moças cantavam d'amor reflete a sinceridade amorosa presente no espírito dos amantes que encontram no canto o meio mais expressivo para comunicar as notas mais típicas de sua emoção. Misto de pastorela e reminiscência de cantiga de amor, a canção de Lourenço Jograr denuncia seu empenho e esforço ao trabalhar com tantos elementos diferentes que provinham de um rígido sistema poético. O trovador, como tantos outros galegoportugueses, conferiu à sua produção a organização retórica e estilística dos trovadores de seu tempo que criavam e recriavam a partir do rígido sistema poético provençal. O poeta se refere às jovens mui fremosinhas pastores, o que nos remete a imagens semelhantes como a bailia de Airas Nunes Bailemos nós, já, todas três, ai amigas e a pastorela de D. Joan D’Avoin, Cavalgava noutro dia/ [...] e ua pastor siia/ cantando com outras três, que destacam o baile das moças em grupos de três, levando-nos a refletir sobre o simbolismo do número três que corresponde à perfeição. Na concepção cristã5, de acordo com São Cesário de Arles (s/d), Fides omnium christianorum in Trinitate consistit – A fé de todos os cristãos consiste na Trindade, pois se Deus cria tudo com sabedoria, e sendo a Unidade divina dogmaticamente Trina, logo podemos relacionar sua bondade e perfeição a sua existência Trina no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Curtius (1996) explica que a Antiguidade recebeu de Pitágoras e sua escola um simbolismo e um misticismo numérico que confluíram com o cristão. Se o número sete representa a criação, o três relaciona-se à Trindade (harmonia e perfeição). Antes mesmo do simbolismo cristão, o número três remete às imagens da mitologia grega como as Cárites representando harmonia e beleza, ou ainda, as Três Graças, filhas de Zeus, sensivelmente interpretadas por pintores renascentistas como Sandro Botticelli (1445-1510) em A Primavera (1478) e Peter Paul Rubens (1577-1640), na tela As Três Graças (1639). 5 Cf. Chevalier; Gheerbrant (2006). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 28 Em continuidade à nossa leitura, a pastorela Oi oj’eu ua pastor cantar, / du cavalgada per ua ribeira, de autoria de Airas Nunes, coloca-nos diante de um estado sentimental que se difere das anteriores. O eu-lírico (na figura do cavaleiro) num tom narrativo, ao passar por uma ribeira, depara-se com uma pastora de muito boa aparência (parecia mui bem) que cantava sozinha (senlheira) e resolve aproximar-se para ouvir (ascuitar) suas queixas de amor, enquanto confeccionava ua guirlanda de flores, conforme registram os versos: Oi oj’eu hũa pastor cantar, du cavalgava per hũa ribeira, e a pastor estava [i] senlheyra, e ascondi-me pola ascuytar e dizia muy ben este cantar: “So lo ramo verde frolido 6 vodas fazen a meu amigo [e] choran olhos d’amor.” E a pastor parecia muy ben e chorava e estava cantando e eu muy passo fuy-mh-achegando pola oyr e sol non faley ren, e dizia este cantar muy ben: “Ay estorninho do avelanedo cantades vós e moyr[o] eu e pen[o]: e d’amores ey mal,” E eu oí-a sospirar enton, e queixava-s’estando com amores e fazi’ [ũ]a guirlanda de flores, des y chorava muy de coraçon e dizia este cantar enton: ‘Que coyta ey tan grande de sofrer! amar amigu’e non [o] ousar veer! e pousarey so l’avelanal.” Poys que a guirlanda fez a pastor, foy-se cantand’, indo-ss’en manselinho, e torney-m’eu logo a meu caminho, ca de a noiar non ouvi sabor; e dizia este cantar ben a pastor: “Pela ribeyra do ryo cantando ya la virgo d’amor: quem amores á como dormirá, ay bela frol !” 6 O grifo é nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 29 Estrutura-se a cantiga em quatro oitavas, dividindo-se cada uma em duas partes, uma quintilha seguida do refrão de três versos. O caráter narrativo e o esquema rítmico contam com o dobre, figura retórica galego-portuguesa baseada na repetição de palavras em diferentes pontos da cantiga (versos 1,5/ 9,13/ 17,21/ 25,29). Muito apreciada entre os trovadores, uma de suas funcionalidades consiste em uma repetição léxica sem flexão, seja qual for sua posição, contribuindo para a harmonia rítmica em sua execução. Uma profunda comunhão da jovem donzela com a natureza na criação de um quadro bucólico comum às pastorelas pode ser observada nos fatos sensivelmente trabalhados pelo trovador. Na primeira estrofe, após a apresentação do cavaleiro (espécie de exórdio), o cantar da pastora revela que sob os ramos verdes da primavera, (considerados sagrados) acontece o casamento de seu amigo. Na estrofe seguinte, há a presença do estorninho no avelanedo (ou avelaneira), pássaro nativo de Trás-os-Montes, encontrado sempre aos bandos, conhecido como um hábil imitador. Exerce o papel de confidente da donzela, pedindo-lhe que cante (cantades vós), enquanto ela sofre pelos amores mal sucedidos (d’amores ey mal). O cavaleiro ressalta, em seguida, a veracidade dos sentimentos da jovem pela expressão chorava mui de coraçon e a transcrição do canto aponta para sua coita amorosa num enquadramento paisagístico no qual se verifica a presença das aveleiras. Na última estrofe, completa-se a beleza e graciosidade da cantiga no momento em que, terminada a grinalda de flores, a pastora segue Pela ribeira do rio como la virgo d’amor, enquanto o cavaleiro, respeitando as regras da cortesia, prossegue seu caminho sem incomodá-la. Tais imagens levam-nos a constatar a existência de um clima místico e religioso, comum às cantigas de Airas Nunes. A influência da religiosidade revela-se pelo o que representa simbolicamente a guirlanda de flores confeccionada pela donzela. Na concepção cristã, de acordo com Biedermann (1993), a guirlanda (ou grinalda) significa a vitória sobre as trevas do pecado, daí a íntima associação da Virgem Maria com as rosas, perfeitamente justificável pelo estado de virgo em que se revela a pastora. A ternura do desfecho também é de certa forma comovente, considerando-se a presença do Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 30 rio e da virgem em um mesmo quadro. O transcurso irreversível do rio, tal como a cortesia passageira do cavaleiro, remete ao abandono e ao esquecimento da jovem que ficou à margem de seus sentimentos. A cantiga ilustra bem a característica espiritual das descrições da natureza unidas ao estado de espírito da pastora, tendo em vista que o pousar, ou seja, a atitude de espera sob os ramos das aveleiras indicia a fidelidade pelo amado. Vale acrescentar que a “aveleira representa a fertilidade e a pureza feminina” (BIEDERMANN, 1993, p. 35). Há, portanto, nos versos de Airas Nunes uma recuperação da concepção de religiosidade que aponta para a natureza como uma forma de reconhecimento do sagrado, idéia sustentada por Eliade (2001) que se trata de uma forma de se divisar a presença do Criador nos múltiplos seres divinizados com os quais o eu-lírico estabelece uma íntima relação. Na pastorela em questão, os elementos que protagonizam a interação eu-lírico / cenário correspondem ao rio (ribeira), aos ramos verdes da primavera (ramo verde frolido), ao estorninho, à guirlanda de flores, às aveleiras (avelanal) e às flores (frol). Sobre o cenário das pastorelas há duas vertentes interpretativas. A primeira se refere ao cenário natural que, coerentemente, nos fornece dados significativos sobre a cultura portuguesa na Idade Média e o forte domínio da religiosidade no período; os estratos culturais representados pelas pastoras (os camponeses) e pelos cavaleiros (nobreza), além do universo musical baseado na transmissão oral, envolvendo as camadas sociais e populares da época. Em segundo lugar, o grande campo simbólico oferecido por essa modalidade poética que, por sua vez, carrega uma tradição ideológica intimamente ligada à religiosidade. Sob tal perspectiva, os elementos compositivos do cenário pastoril galego-português apresentam intensa carga simbólica ligada aos períodos que antecedem o medieval; entretanto, a crescente religiosidade desse período esteve presente no cotidiano e também no imaginário. A cantiga de Airas Nunes, singular na poesia medieval portuguesa, revela-se como parte de um lirismo que apresentava um perfil feminino mais dinâmico comparado ao das mulheres das cantigas de amor. Embora considerada Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 31 como parte de uma lírica profana, a pastorela Oi oj’eu hũa pastor cantar corresponde a um texto poético cuja ligação entre o homem e a natureza contempla uma experiência sacralizante do sentimento amoroso. De acordo com Eliade (2001), o homem desde sempre vivenciou a oposição entre o sagrado e o profano, relação direta entre o Céu e a Terra. Ao atribuir à natureza o significado de um lugar sagrado, o homem comunica seus sentimentos com o divino pela intermediação de elementos como as árvores, as flores, os pássaros etc. Se recorrermos às artes pictóricas fica evidente a influência da natureza na ornamentação dos impressionantes edifícios medievais e das catedrais góticas. A descrição da natureza na pastorela busca a exaltação de Deus em todos os aspectos da vida do homem medieval. Entre os elementos da natureza, as flores são as que mais traduzem os sentimentos da amiga. Simbolicamente representam a beleza física, muito bem marcada pelo trovador na caracterização da jovem donzela, por meio de uma adjetivação expressiva (parecia muy ben), e da fugacidade das coisas representadas pelas juras de amor (preito) passageiras feitas pelo amigo. A cortesia efêmera que ilude a jovem liga-se à honra temporária representada pela guirlanda de flores que se desgastará com o tempo, ao contrário das alianças que simbolizam o enlace matrimonial duradouro. Por outro lado, a guirlanda também sugere a vitória sobre o pecado, outro conceito muito frequente na literatura medieval. Quanto à aveleira, de acordo com Biedermann (1993), a sua significação simbólica está relacionada à fertilidade, além do caráter sagrado, local de reuniões e de julgamentos. Na Idade Média, o avelanal continuou representando a fertilidade por se tornar um ponto de frequentes encontros dos namorados que tentavam fugir da vigilância constante das famílias. Ir para as aveleiras ou repousar sob elas significa, em muitas cantigas, encontrar-se com o amigo ou esperar por ele. Os pássaros exercem o papel de mediadores da vontade divina, o que explica a invocação do estorninho para cantar os sofrimentos da jovem, aliviando sua dor e sugerindo piedade. A presença do cavaleiro poderia comprometer a pureza da imagem de uma jovem donzela que canta pelos campos enquanto pastoreia. Por outro lado, o flagrante Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 32 campesino decorrente desse encontro ocorre singularmente sob os preceitos de mesura e de cortesia, enquanto “os outros autores de pastorelas introduzem na cena, seguindo o exemplo dos modelos além-pirenaicos, o diálogo entre o cavaleiro que oferece o seu amor e a pastorinha que o recusa desdenhosamente ou que acaba por aceitá-lo” (TAVANI, 1988, p. 212). Airas Nunes reelabora o esquema do gênero com criatividade e técnica original, e o eu-narrante (cavaleiro) não aborda a pastora a fim de seduzi-la. Historicamente, na tradição literária medieval os encontros entre cavaleiros e pastoras ocorriam com mais frequência por ocasião das festividades ligadas ao mês de maio. Segundo a tese folclórica, toda a poesia trovadoresca se reduzia à natural transformação literária de antigos temas populares ligados a um culto pagão específico do primeiro dia de maio7, no qual moços e moças viviam na natureza celebrações do amor decorrentes da chegada da Primavera. Com o cristianismo, essas festividades passaram a necessitar de uma justificativa doutrinária. Aos olhos da fé católica, tais festividades eram formas de prostituição justificada por rituais pagãos. Em outras palavras, inserem-se em um mesmo cenário a manifestação de vestígios de um folclore tradicional, ligado a um lirismo primaveril representado pela menina num quadro bucólico, aspectos de uma situação cotidiana como a ação de um cavaleiro e as expressões de religiosidade. Diante do exposto, esse lirismo ligado ao universo musical, essencialmente baseado na transmissão oral, deixou-nos registros escritos de uma poesia que contempla uma profunda interpenetração do sagrado e do profano, espécie de um hino ao estado de virgo de uma jovem donzela, ao mesmo tempo em que, culturalmente enraizada, expõe “um feixe de observações do mais alto valor sobre o feito psicológico da mulher” (Lapa, 1973, p.159). Dentro desse contexto, a literatura galego-portuguesa soube representar os dramas da vida amorosa feminina, revelados nas pastorelas, documentos vivos do cotidiano da época. Nos versos da cantiga Oi oj' eu hua pastor cantar/ du cavalgava per hua ribeyra, o amor não é apenas um sentimento com características de ir e vir, capaz de inebriar os amantes e trazê-los bruscamente à realidade, mas, corresponde a uma totalidade na vida do homem que, no amadurecimento do Eros, relaciona-se em diferentes situações no amor conjugal. Por outras palavras, o eu-lírico 7 Cf. Tavani (2002, p.36). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 33 feminino da cantiga de Airas Nunes, representado pela jovem e bela pastora (de bon parecer), bem como sua íntima relação com a natureza sacralizada, assume seu sofrimento diante do abandono, vislumbrando uma esperança de renascer para o amor e permanecer como la virgo do amor. Além da habilidade do poeta de corte capaz de tratar com desenvoltura e com soluções originais os assuntos de interesse do príncipe, o clérigo-trovador revela assim um domínio invulgar da forma e a disposição de tratá-la com a maior liberdade, dentro e fora dos cânones da tradição. O mesmo anti-convencionalismo manifesta-se também na pastorela: o cavaleiro, em vez de a importunar com a sua oferta de amor, limita-se a escutar, sem ser visto, a pastora que “chorava e estava cantando”. [...] Poeta de corte, mas vivo e original – na medida, evidentemente, em que isto era admitido na Idade Média -, homem de letras bom conhecedor e apreciador da poesia trovadoresca galego-portuguesa e provençal, Airas Nunes manifesta-se possuidor duma técnica e duma cultura tradicional que ele sabia modificar e adaptar às exigências da expressão poética. (TAVANI, 2002 apud LANCIANI; TAVANI, 2002, p.27-28) Como clérigo, Airas Nunes não se deixaria seduzir pela polêmica da maledicência e nem pelos defeitos morais que poderiam ser atribuídos aos seus personagens. Consciente da concepção cristã de amor, considerando sua pureza e gratuidade presentificadas em uma aliança matrimonial, o trovador demonstra respeito pela função catártica da poesia por desenvolver motivos morais e estéticos em vez de simplesmente exercitar as modalidades líricas do trovadorismo. A mesura observada pelo cavaleiro na pastorela de Airas Nunes aparece nitidamente na fala da pastora da cantiga de Johan Airas de Santiago, que, ao lado de D. Dinis, foi um dos mais fecundos trovadores pelo número de cantigas registradas em sua autoria. O ambiente harmônico a que nos referimos na cantiga anterior, agora é quebrado pela insubordinação do cavaleiro diante dos riscos de difamar a jovem donzela: Pelo Souto de Crexente hua pastor vi andar muyt’alongada de gente, alçando voz a cantar, apertando-sse na ssaya, Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 34 quando saya la rraia do ssol nas rribas do Sar. E as aves que voavan, quando saya l’alvor, todas d’amores cantavan pelos rramos d’arredor, mays non sey tal qu’ i’ stevesse que en al cuidar podesse senon todo en amor. Aly ‘stivi eu muy quedo, quis falar e non ousey, empero dix’a gran medo: — Mia senhor, falar-vos-ey8 hun pouco, se mh — ascuytardes e ir-m’ey, quando mandardes, mais aqui non [s] starey. — Senhor, por Sancta Maria, non estedes mais aqui, "mais ide-vos vossa via;" faredes mesura y, ca os que aqui chegaren, pois que vos aqui acharen, ben dirán que mais ouv’i. Apresenta a cantiga um cenário lírico que reflete o estado de espírito da donzela, nas duas primeiras estrofes. Pizzorusso (apud LANCIANI; TAVANI, 2002, p. 343) explica que as estrofes são dedicadas à orquestração musical, nas quais o canto dos pássaros acompanha o canto da mulher. O trovador empregou um forte realismo nas demais estrofes no diálogo entre a pastora e o cavaleiro, que não se identifica como tal, mas como o próprio poeta. Embora a pastorela seja identificada como uma cantiga de amor nos manuscritos, a cantiga de Johan Airas remete à concepção provençal de pastorela pela presença da natureza e abordagem de um cavaleiro. Por outro lado, a conquista amorosa não se concretiza e nem ao menos prolonga o debate. Para Spina (1996), a pastora da cantiga representa a mulher de postura mais elevada, digna da cortesia do trovador ao aconselhar, em defesa do pudor, que o cavaleiro se retire do lugar (última estrofe). É importante observar que o enquadramento narrativo recebe um alargamento de seus 8 O grifo é nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 35 elementos. Os primeiros raios do sol que aquecem as águas do rio Sar9 no alvorecer, podem ser identificados com o amor que surge no coração do cavaleiro, ao vislumbrar a bela pastora digna de ser chamada de senhor. A cantiga é extraordinária pela dinâmica dos quadros e pelas riquezas das notas na descrição da paisagem matutina: o souto do Crescente, os primeiros raios do sol nas margens do rio Sar, as aves a entoarem hinos de louvor à madrugada, cantando melodias amorosas por entre os ramos das árvores vizinhas. A pastorela de Airas Nunes é tida por todos e críticos e comentadores que a editaram como um das raras jóias da lírica trovadoresca. (SPINA, 1996, p.344) Na abordagem de quatro das oito pastorelas do cancioneiro galego-português configurou-se a forte presença da dimensão religiosa na concepção de amor nas cantigas trovadorescas. A diversidade de traços estilísticos que denunciam o hibridismo do gênero nos forneceu indícios que, desde cedo, os trovadores galego-portugueses assumiram uma grande cumplicidade com a atmosfera poética que tomava conta de toda Europa dos séculos XII e XIII. As reflexões registradas até aqui tiveram como subsídio informações históricas e culturais do período medieval, bem como as características do gênero lírico, sua conceituação e seus primeiros registros indicadores de manifestação poética. Considerado um dos mais fecundos trovadores, responsável por uma política cultural singular na literatura medieval portuguesa, Dom Dinis viveu entre 1261 e 1325, tendo reinado de 1267 até 1325. Com o cancioneiro composto por 137 cantigas, sua produção lírica revela a influência provençal, estímulo à leitura de seus textos. Na opinião de Gonçalves (2000), as sutilezas das composições do rei trovador correspondem claramente aos motivos e temas trovadorescos que, associando-se às suas expressões de rei poeta, representam a síntese de suas experiências desenvolvidas, por exemplo, pela: 9 Rio da Galiza que nasce na freguesia de Bando (Santiago de Compostela) e corre pelas freguesias de Sar, Conxo e Laranho. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 36 concepção do amor como um serviço feudal (Praz-mi a min, senhor, de morrer) e o conceito de justiça dentro das regras do código vassálico (Non sei como me salv'a mia senhor), a ideia de considerar a dona amada como digna de um rei (Pois vos Deus fez, mia senhor) ou a afirmação de que vale mais viver perto da senhor do que ser um rei ou infante (Senhor, que de grad'oj'eu querria) são convenções da poesia cortês, mas, quando o trovador é rei, podemos supor que, que ao dirigir-se à senhor para lhe dizer erades boa pera rei, a declaração assumiria o tom de invenção irônica. [...] Poeta em maneira proençal, D. Denis distingue-se também entre os outros trovadores por algumas características do seu provençalismo, já por outros assinalados com base em minuciosos confrontos. [...] Mas acerca de seu caráter indígeno, ou mesmo popular destas cantigas de estrutura paralelística, convirá ter em conta que, sendo D. Denis um poeta-rei ostensivamente provençalizante, cuja atividade se situa numa época de síntese das experiências trovadorescas na área galego-portuguesa, algumas destas características, aparentemente populares, partem de sugestões cultas: tal é, quanto a nós, o caso das cantigas Ai flores, ai flores do verde pino. (GONÇALVES apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p. 208-209) De acordo com a teoria da Arte de Trovar, as três pastorelas de D. Dinis foram inseridas entre as cantigas de amor. Dentre elas, apenas a cantiga Vi oj'eu cantar d'amor, apresenta o elemento chave do gênero entre os provençais: o diálogo entre o cavaleiro e a pastora. Nessa cantiga a proposta amorosa desenrola-se logo nos primeiros versos, suprimindo qualquer outra descrição pictórica do cenário e da relação da pastora com o mesmo: Vi oj’eu cantar d’amor en um fremoso virgeu ũa fremosa pastor, que ao parecer seu jamais nunca lhi par vi, e por en dixi-lh’assi. “Senhor, por vosso vou eu”10. Tornou sanhuda enton, quando m’est’oíu dizer, e diss’: “Ide-vos, varon! Quem vos foi aqui trager, pera m,’irdes destorvar, du dig’aqueste cantar 10 Grifo nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 37 que fez quen sei ben querer?” “Pois que me mandades ir,” dixi-lh’eu, “senhor, ir-m’ei, mais já vos ei de servir sempr’e por voss’andarei, ca voss’amor me forçou assi que por vosso vou, cujo sempr’eu já serei.” Dix’ela: “Non vos ten prol esso que dizedes, nen mi praz de o oír sol, ant’ei noj’e pesar en, ca meu coraçon non é, nen será, per bõa fé, se non do [que] quero ben.” O texto destaca o flagrante campesino apresentado em circunstâncias que envolvem o canto de amor de uma pastora em um belo jardim, no qual se insere o cavaleiro, encantado pela beleza da jovem, provocando a quebra da harmonia do quadro que se observa. A beleza da mulher é colocada em relevo pelo cavaleiro. Ao referir-se aos seus atributos físicos nos versos [...] que ao parecer seu/ Jamais nunca lhi par vi, ele a destaca como uma mulher digna de cortesia, pois nenhuma outra no mundo assemelhase a ela. O cenário referente a este encontro concentra-se apenas na menção de um espaço correspondente ao belo jardim, fremoso virgeu, deixando subentendido uma atmosfera clara e límpida, a qual certamente se enquadra, coerentemente, à ternura e aos sentimentos despertados pela visão do cavaleiro. A reação instantânea da pastora é de ira (Ide-vos varon!) pelo empecilho causado pelo cavaleiro que interrompe o seu cantar e também pelo cuidado que ela demonstra em não desejar ser vista na companhia de um homem. Mesmo com a insistência do cavaleiro na terceira estrofe, quando declara sua incapacidade de resistir aos encantos e ao amor despertados pela beleza da pastora, irredutivelmente, ela confessa estar enamorada de outro que possui seu coração e todo o seu amor. O breve desfecho da pastorela não apresenta nenhuma satisfação por parte do cavaleiro, que segue seu caminho sem ao menos lamentar, como de regra, pela indiferença da pastora e do sentimento não correspondido. Quanto aos anseios femininos, a pastora segue sozinha em seu formoso Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 38 jardim cantando versos de amor pelo namorado, sem demonstrar nenhum tipo de mudança no seu espírito pela presença perturbadora do cavaleiro. A prática de um modelo provençal de composição se sobrepõe a qualquer intensidade lírica que buscasse expressar maiores indícios amorosos, tanto por parte do cavaleiro quanto por parte da donzela. O mais evidente na cantiga é a reação irada (sanha) expressa pela jovem ao perceber a presença de um homem estranho, num lugar que poderia ser vista por outras pessoas, podendo, assim, atrair comentários impróprios à sua reputação. Outro ponto que pode ser associado é a conotação amorosa que o jardim adquire na pastorela e em grande parte da lírica medieval. O destaque para o fremoso virgeu possibilita a convergência para duas leituras. A primeira é alegórica, fornecendo-nos indícios da pureza do quadro bucólico em que se encontra a pastora que, além de bela, também assume o papel de observadora (e cumpridora) dos preceitos morais e religiosos de sua sociedade, devido ao desconforto sentido com a presença de um galanteador. A segunda é naturalista, ao oferecer nos primeiros versos um cenário propício ao exercício da conquista amorosa, a qual entre os provençais poderia resultar também na posse física. O formoso jardim para o cavaleiro pode, facilmente, representar o próprio corpo da pastora devido a sua beleza e singularidade. Acerca do locus amoenus desse tipo de composição, Brea (apud BILLY; CLEMENT; COMBIES, 2006, p.103) esclarece que “Ce type de description contient presque tous les éléments distinctifs, destinés à procurer du plaisir aux cinq sens”.11 No que se refere às pastorelas de D. Dinis: Il semble évident que nous sommes em présence d'une de ces évocations des troubadours gallo-romans (em langue d'oc ou d'oil) que D. Denis aimait beaucoup, bien qu'on ne puisse pas toujours proposer une source directe pour celles-ci. Em tout cas, cette composition présente un schema métrique particulier, dont la combinaison des rimes (ababccb) est assez commune, mais pas 11 Este tipo de descrição contém todos os elementos distintivos, destinados a proporcionar o prazer aos cinco sentidos. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 39 avec des vers heptasyllabes; il est du mois curieux de constater que seuls Gonçalo Garcia, marié avec une fille illégitime du roi lui-même, et Johan Airas de Santiago (un des troubadours galégoportugais qui connaissaient le mieux la lyrique gallo-romane), dans une autre pastourelle (où la bergére allait “pelo souto de Crecente”), font usage de ce type de vers avec cette disposition des rimes; et tous les deux de D. Dinis, les rimes masculines et féminines (dans le texte de D. Denis, les rimes sont toujours masculines). Nous n'avons pas trouvé ce schéma chez les troubadours occitans et, em langue d'oil, les seuls exemples connus concernet Gace Brulé et une chanson anonyme. La pastourelle de D. Denis présente un três grand intérêt pour nous: elle montre qui'il connaî bien l'importance du verger comme lieu de rencontre amoureuse, surtout dans ce genre poétique.12 (BREA, apud BILLY; CLEMENT.; COMBIES, 2006, p. 113114) Compreendemos que a imagem do jardim corresponde em parte à alegoria do hortus conclusus, o jardim fechado, ou o jardim das delícias. Com o advento do culto mariano, esse jardim adquire novas concepções relacionadas à figura da Virgem Maria na representação de sua pureza, castidade, obediência e inviolável humildade. A ideia de um jardim particular também se encontra em monastérios, que designam o local particular e tranquilo para o exercício de orações e meditações. O jardim perfeito e recluso pode ser personificado em Maria, que espera o lírio (o próprio Cristo) sem a perda da virgindade. Assim, o fremoso virgeu presente na cantiga compartilha da referência cristã que se justifica na presença da pastora (de beleza única) à espera do amado. Não apontamos uma relação direta entre os cenários, bem como não foi verificada uma diferença entre as concepções que ambos suportam, ao serem colocados em paralelo. A escolha do trovador, ao apresentar o cenário da disputa verbal 12 Parece evidente que nós estamos em presença de uma dessas evocações dos trovadores galaicoromânicos (na língua d’oc ou d’oil) que D. Dinis valorizava muito, mesmo que jamais se pudesse apresentar uma fonte direta para elas. Em todo caso, essa composição apresenta um esquema métrico particular, cuja combinação das rimas (ababccb) é muito comum, menos com os versos heptassílabos; é pelo menos interessante constatar que somente Gonçalo Garcia, casado com uma filha ilegítima do próprio rei, e Johan Airas de Santiago (um dos trovadores galego-português que conhecia melhor a lírica galaico-românica), em outra pastorela, na qual a pastora caminha “pelo souto de Crecente”), empregam esse tipo de verso com essa disposição das rimas; e nos dois exemplares de D. Dinis, as rimas são masculinas e femininas (no texto de D. Dinis são rimas sempre masculinas). Não encontramos esse esquema com os trovadores occitanos e, na língua d’oil, os únicos exemplos conhecidos um refere-se a Gace Brulé e uma canção anônima. A pastorela de D. Dinis é muito interessante por nos mostrar que ele conhecia bem a importância do pomar como lugar de encontro amoroso, sobretudo, neste gênero poético. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 40 entre seus personagens, não só atende aos requisitos estilísticos e retóricos das pastorelas provençais, como também confere à sua cantiga um tom religioso com evocações paradisíacas sugeridas pelo perfil sentimental feminino e pela mesura atendida pelo cavaleiro. Na pastorela Ua pastor se queixava, também de autoria de D. Dinis, o trovador também apresenta lugares comuns do gênero, como o cenário natural e a pastora, o flagrante campesino, no qual o trovador surpreende as queixas de amor (a coita amorosa) de uma jovem que vive na zona rural. Ũa pastor se queixava muit’estando noutro dia, e sigo medês falava e chorava e dizia com amor que a forçava: “par Deus, vi-t’en grave dia13, ai amor!” Ela s’ estava queixando, come molher con gram coita e que a pesar, des quando nacera, non fôra doita, por en dezia chorando! “Tu non és se non mia coita, ai, amor! Coitas lhi davam amores, que non lh’eran se non morte, e deitou-s’antr’ũas flores e disse con coita forte: “Mal ti venha per u fores, ca non és se non mia morte, ai, amor! O recurso do dobre, novamente registrado nas pastorelas, indicia um repertório composto por D. Dinis envolvendo influências cultas e populares. Como excelente trovador que era, segundo Gonçalves (2000 apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p. 211), teria composto os versos e também a música de suas cantigas, observando as expressões melódicas e os recursos estilísticos de metrificação, possibilitando a singular dinamização dos valores poético-expressivos das imagens e dos conteúdos da poesia 13 Grifo nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 41 pastoril. A pastorela Ũa pastor se queixava apresenta o contínuo solilóquio feminino introduzido a cada estrofe pela narração do trovador que a observa. Não se trata de uma abordagem ou encantamento do trovador pela pastora, mas uma descrição cuidadosa dos fatos que ele observa. Na primeira estrofe, refere-se a uma mulher muito chorosa de seus sentimentos, a qual ele nomeia de pastor. Spina (1996) acredita não se tratar realmente de uma pastora, mas de uma mulher da cidade devido ao seu tom extremamente triste e queixoso. Pode-se dizer que D. Dinis condensa elementos básicos da poesia popular, como a repetição e as lamentações amorosas. A intensidade de seus sentimentos é explicitamente denunciada pela ocorrência dos verbos queixar e chorar, e pelos versos chorava e dizia /con amor que a forçava, os quais podem ser compreendidos como a síntese de um amplo sofrimento, resultado de um amor que a domina completamente. Outro fator que nos leva a constatar o seu pesar é a insistente caracterização do estado de espírito observado e narrado pelo trovador na segunda estrofe, nos versos: Ela s'estav quexando/ como molher com gran coita. A protagonista move-se num ambiente de murmúrios e lamentações, no qual tudo e todos são testemunhas de seus infortúnios, traduzidos pela palavra coita que, neste contexto, carrega o significado de intenso e terrível sofrimento. Tematicamente, sua conotação, vai além de uma simples adjetivação que qualifica uma jovem enamorada, tal como ocorre na cantiga de Lourenço Jograr (Três moças cantavan d'amor/ muy coytadas dos amores) acima comentada. A palavra coita na pastorela de Dom Dinis se refere a um tormento amoroso de profunda complexidade, capaz de designar a identificação da mulher com uma desilusão que a priva de qualquer outra perspectiva, não incluindo a morte como resultado ou fim desejado. A ocorrência do vocábulo no plural (Coitas, verso 15) sugere a intensidade do sentimento de desgosto por ocasião de sua infelicidade amorosa. Saliente-se que o termo ganha especial relevo devido à inversão da frase que, na ordem direta, na opinião de Ferreira (s/d), resumir-se-ia a Amores lhe davan coitas, ao passo que na cantiga a ordem registrada é Coitas lhe davan amores. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 42 De acordo com Spina (1996), os versos [...] des quando nacera,/ non fora doita indicam um amor à primeira vista, pois a mulher declara que, desde o seu nascimento, não tem conhecimento, ou experiência nenhuma do amor. A tradução do termo doita14 refere-se a algo já experimentado. No contexto da cantiga, há um sentimento não experimentado pela donzela, mas que a faz ultrapassar os estágios suspirantes da paixão, para desejar a morte ao seu objeto de sofrimento. Outra indicação do drama feminino pode ser observada no emprego dos termos coita e morte os quais, além de auxiliar nos arranjos da musicalidade, retoricamente, intensificam a repetição da dramaticidade da situação. A grande habilidade técnica do Rei Trovador ainda contribui para que a parte narrativa da pastorela retome um de seus elementos essenciais: a referência a um dos elementos do locus amoenus no verso: e deitou-s antr'uasflores. Como parte da ornamentação do discurso, a referência ao cenário adquire grande carga simbólica ao considerar a natureza testemunha do amor não correspondido, porquanto o divino (Par Deus, vi-ti en grave dia) e a natureza (e deitou-s antr'uasflores) são dignos de conhecer a tristeza e os anseios da pastora. Nesse sentido, Deus e as flores representam a continuidade de uma eterna perfeição e beleza, respectivamente, comparada à efemeridade de uma felicidade que se inicia e, ao mesmo tempo, termina no dia em que conheceu o seu amado. As descrições da natureza presentes nas cantigas de amigo, principalmente nas pastorelas, exemplificam e consolidam os recursos que a retórica elaborou a paisagem ideal dessa modalidade poética. Compreendemos que o fremoso virgeu, o antr'uas flores e a ribeira das pastorelas comentadas neste trabalho não traduzem a realidade, mas servem de veículo e revestimento à uma paisagem ideal que participa do divino e forma um microcosmo social que unifica a Natureza e o Amor. O caráter intelectual das cantigas de D. Dinis evidencia-se pelo perfeito desenvolvimento temático e adequação de todos os elementos típicos de cada gênero, mas, principalmente, pelo aproveitamento pessoal do material retórico existente na criação de um cancioneiro capaz de expressar uma síntese das experiências 14 Cf. Nunes (1928, p.611). Doito (a): adj. Ensinado, acostumado, experimentado, prático. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 43 trovadorescas de seu tempo. Entre as cantigas mais representativas do cancioneiro dionisino encontra-se a pastorela Ũa pastor ben talhada, caracterizando verdadeiramente a versatilidade do trovador na apresentação de um diálogo cortês (e por que não dizer dramático) entre a pastora e um formoso confidente, ao envolver adequadas referências espaço-temporais e indicações sobre os personagens e seus gestos: Ũa pastor ben talhada cuidava en seu amigo e estava, ben vos digo, per quant’eu vi, mui coitada, diss’: “Oimais non é nada15 de fiar per namorado nunca molher namorada, poisque mi o meu á errado.” Ela tragia na mão um papagai mui fremoso, cantando mui saboroso, ca entrava o verão, e diss’: “Amigo loução, que faria per amores, pois m’errastes tan en vão? E caeu antr’ũas flores. Ũa gran peça do dia jouv’ali, que non falava, e a vezes acordava, e a vezes esmorecia, e diss’: “Ai Santa Maria, que será de min agora?” E o papagai dizia: “Bem, por quant’eu sei, senhora.” “Se me queres dar guarida” diss’a pastor, “di verdade, papagai, por caridade, ca morte m’é esta vida” Diss’el: “Senhor [mui] comprida de ben, e non vos queixedes, ca o que vos á servida erged’olho e vee-lo-edes.” 15 O grifo é nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 44 Na primeira estrofe ocorre a apresentação da mulher: Ua pastor ben talhada, com uma adjetivação típica de uma pastorela e digna de uma donzela cuja beleza é singular. Sua juventude anunciada pelo adjetivo pastor une-se à expressão ben talhada que a caracteriza fisicamente como uma mulher, cujo corpo é formoso aos olhos do trovadorobservador. No que se refere ao seu estado de espírito, a expressão adjetiva mui coitada finaliza sua descrição, introduzindo o saudosismo e o sofrimento amoroso. Os primeiros versos do canto da pastora denunciam a decepção frente aos versos em que afirma não devotar mais confiança ao seu amado: Oimais – daqui em diante16, já que sofre intensamente com sua ausência. A segunda estrofe apresenta estrutura semelhante, seguindo a fórmula de uma introdução narrativa que antecede o canto feminino. Na mesma introdução há o registro da participação de um personagem inteiramente novo nas pastorelas galego-portuguesas: o papagaio. Diferentemente do estorninho invocado na cantiga de Airas Nunes, o papagaio nesta composição não só estabelece um diálogo com a pastora, como também garante os aspectos da encenação dramática na cantiga. Vale ressaltar que a descrição do pássaro garante ao texto a formação da imagem que corresponde ao cenário primaveril, presença constante nas cantigas de amigo. Em uma primeira leitura, o papagaio pode ser interpretado como elemento da natureza, ou seja, um belo pássaro (formoso), cujo canto suave (mui saboroso) é resultado da Primavera, período propício aos encontros e relacionamentos amorosos. Por outro lado, a chegada do verão representa simbolicamente o encerramento desse período, no qual suspiram jovens pastoras enamoradas pelos campos. Daí o descontentamento da mulher ao cantar Amigo loução,/ que faria per amores,/ pois m’errastes tan en vão? O verbo errar neste contexto refere-se à falta aos deveres de uma pessoa para com outra, ou seja, indica a falta de comprometimento que o amigo não apresentou ao não cumprir com suas promessas. Voltando às informações que compõem a segunda estrofe, ao referir-se ao amado como amigo loução, belo em relação à aparência, a pastora nos fornece argumentos que justificam os sentimentos que a faz esmorecer de amor (desmaiar). Na mesma estrofe 16 Cf. Nunes (1928, p.611). Oimais: Adv. Desde hoje, daqui em diante, doravante. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 45 verificamos o locus amoenus das pastorelas representado pelo antr’ũas flores, local em que a pastora expressa profunda comunhão com a natureza. A religiosidade das cantigas de amigo e, especialmente, da pastorela de D. Dinis (terceira estrofe, uma invocação à Santa Maria: Ai Santa Maria/ que será de min agora?) pode ser interpretada como uma Providência divina, um anseio da pastora para solucionar o problema trágico do abandono do namorado. O pensamento cristão sustentava já no século XIII que o ser humano seguiria sua aspiração natural pelo divino, encontrando plena felicidade no amor. Na estrofe final, a jovem se sente desprovida de qualquer halo de idealidade, ou expectativas ilusórias que possam ser suscitadas por sua paixão. Ela é muito mais humana do que no início da composição, cujo motivo é a exposição de seu pesar quando pede ao papagaio que a console somente com palavras de verdade, pois a ausência do amigo a faz pensar na morte como solução para os infortúnios. São apresentadas as palavras finais do papagaio que, ao elevar as qualidades da mulher, considerando-a possuidora de todas as boas qualidades (Senhor mui comprida de ben)17, pede-lhe que erga os olhos e veja a implícita chegada (ou presença) do seu amado. O encadeamento das idéias elaborado por D.Dinis, o tom dramático da composição e a escolha minuciosa do vocabulário, permitem-nos visualizar a ambiguidade da personagem papagaio. A disposição dos diálogos e a sua elocução criativa nos remetem a uma encenação teatral, na qual o amigo loução poderia facilmente ser identificado com o próprio pássaro, tal como um disfarce a ser revelado na execução da pastorela. Em outra leitura, a participação do papagaio ainda completa os elementos identificadores da poesia pastoril. As pastorelas de D. Dinis lembram-nos a delicadeza das descrições que Teócrito apresentava. O trovador expressou as paisagens líricas e seus componentes da poesia galego-portuguesa (antr'as as flores, fremoso virgeu, estorninho, papagai, Souto do Crexente), colocando em evidência a vivacidade dos diálogos entre os personagens (17 Cf. Nunes (1928, p.589). Comprido (a) de ben: feliz ou dotado de todas as boas qualidades. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 46 Mia Senhor, falar-vos-ei/, Senhor, por Santa Maria/ não estedes mais aqui) assim como o impulso de sentimentos comunicados ao mundo exterior por meio de reflexões (ca os que aqui chegaren,/ pois que vos aqui acharen,/ bem diran que mais ouv'i.), emoções (Mal ti venha per u fores,/ ca non és se non mha morte) e opiniões (Eu non vos queria por entendedor/ ca nunca vos vi se non agora/ nen vos filharia). O que foi destacado nesta exposição contribuiu para a observação do modo como a retórica determinou entre os poetas galego-portugueses a paisagem ideal da poesia, tal como ocorreu com os seus predecessores gregos e latinos. Se a imagem do homem ideal correspondia a sua virtuosidade, lealdade e beleza, a natureza encontrará entre os poetas a correlação direta com o divino, servindo-os de uma rica variedade de possíveis descrições. Nas pastorelas, é entre as flores de um formoso jardim ou com a companhia das aves que a mulher encontra a paisagem agradável aos seus sentimentos e anseios, mesmo que esteja no auge de seu sofrimento amoroso. É na campina de flores que a jovem espera por bem-aventuranças. De acordo com Curtius (1996), a natureza participa do divino entre os poetas da Antiguidade e da Idade Média, transforma-se em um motivo poético indispensável aos adeptos de tais composições, os quais seguiram os passos de Teócrito – o verdadeiro criador da poesia pastoril. Foi o gênero poético que, depois da epopéia, maior influência exerceu, por várias razões. Em todas as épocas encontramos vida pastoril. É um modo fundamental da existência humana, representado também no cristianismo pela história do nascimento de Jesus, conforme o Evangelho segundo São Lucas. Aos pastores corresponde – e isto é muito importante – um cenário especial, uma região própria, que veio a ser a Sicília e mais tarde a Arcádia. Conta igualmente com pessoal próprio, formando um microcosmo social: pastores de gado bovino (de onde vem o nome bucólica), pastores de cabra, pastoras etc. Enfim, a vida pastoril está ligada à Natureza e ao amor. [...] A elegia amorosa dos romanos sobreviveu poucas décadas. Não havia para ela continuação nem renovação possíveis. Mas a Arcádia revela-se sem cessar. Isso foi possível porque a temática pastoril não estava ligada a nenhum gênero e tampouco a alguma forma poética. Encontrou acesso ao romance grego (Longo), daí passando à Renascença. Do romance, a poesia Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 47 pastoral podia voltar à écloga ou passar ao drama. O mundo dos pastores é tão vasto quanto o da cavalaria. Na Idade Média ambos os mundos se encontram. Sim, no mundo dos pastores “enlaçamse” todos os mundos. (CURTIUS, 1996, p. 246-247) Acerca desse enlace referido por Curtius é que a poesia lírica inspira o tema do amor e passa a ocupar o primeiro plano, tornando-se o princípio de uma busca divina, despertada em nós pelos aspectos da beleza do outro como um ímpeto inerente ao ser humano. Se o amor torna-se a medida das coisas na poesia lírica, é oportuno salientarmos que ele é também o princípio de qualquer outro sentimento. No que diz respeito às pastorelas, o amor justifica o temor, a tristeza, o penar e o sofrer que diversas vezes atinge as jovens pastoras. Por conseguinte, é pertinente considerar que no século XII a poesia dos trovadores, em sentido lato, desfrutava de um amadurecimento retórico e estilístico capaz de construir quadros picturais, nos quais o amor consagravase como princípio motor de tudo e de todos. Outro bom exemplo desse aspecto foi-nos dado por Pedro Amigo de Sevilha ao compor a pastorela Quand'eu un dia fui en Compostela. Quand’eu un dia fui en Compostela en romaria, vi ũa pastor que, pois fui nado, nunca vi tan bela, nen vi outra que falasse milhor e demandei-lhi logo seu amor e fiz por ela esta pastorela. Dix[i-lh]’eu logo: “Fremosa poncela18, queredes vós min por entendedor, que vos darei boas toucas d’Estela e boas cintas de Rocamador e d’outras dõas, a vosso sabor e fremoso pano pera gonela?” E ela disse: “Eu non vos queria por entendedor, ca nunca vos vi, se non agora, nen vos filharia dõas, que sei que non som pera mi, pero cuid’eu, se as filhass’assi, 18 O grifo é nosso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 48 que tal á no mundo a que pesaria. E, se veess’outra, que lhi diria, se me dissesse “ca per vós perdi meu amigu’e dõas que me tragia”? "Eu non sei rem que lhi dissess’ali;" se non foss’esto de que me temi, non vos dig’ora que o non faria.” "Dix’eu; “Pastor, sodes bem razoada," e pero creede, se vos non pesar, que non est oj’outra no mundo nada, se vós non sodes, que eu sábia amar, e por aquesto vos venho rogar que eu seja voss’ome esta vegada.” E diss’ela, come bem ensinada: “Por entendedor vos quero filhar e, pois fôr a romaria acabada, aqui, du sõo natural, do Sar, cuido-[m’eu], se me queredes levar, ir m’ei vosqu’e fico vossa pagada.” Pedro Amigo de Sevilha foi um Jogral ligado à corte de Alfonso X, o Sábio. Juntamente com D. Dinis, figura entre os trovadores como um dos mais fecundos, pois seu cancioneiro constitui-se de trinta e seis cantigas. De acordo com Beltran (apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p. 520) o trovador manifestou em seus textos uma forte influência dos modelos provençais, privilegiando o tom cortês entre seus personagens. Vale ressaltar que sua condição de jogral atribui-lhe a qualidade de pertencer a um grupo de pessoas consideradas agentes da cultura, cuja atividade já havia se diversificado na Península Ibérica, nos séculos XII e XIII. O jogral, de acordo com as informações dos cancioneiros, desdobrou-se em múltiplas funções entre os galegoportugueses, as quais compreendiam o acompanhamento instrumental, a interpretação vocal, a interpretação teatral e a produção de novas composições. Pedro Amigo de Sevilha, embora não possua uma biografia mais detalhada e objetiva, encaixa-se entre esse grupo de artistas que elevaram a cultura dos trovadores por onde passavam e viviam. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 49 A pastorela em análise apresenta traços específicos das cantigas de amor por conduzir em um tom cortês o diálogo que se estabelece entre a pastora e seu admirador. Spina (1996) menciona a ausência de traços populares na técnica de composição desta cantiga, devido a perfeita unidade narrativa que a domina. Por outro lado, a informação da romaria e o arrebatamento sentimental referidos pelo cavaleiro muito se assemelham aos traços estilísticos das pastorelas com elementos mais populares, que elevam o sentimento amoroso aos extremos da vida de seus personagens. Como exemplo, podemos citar o choro e o sofrimento diante da impossibilidade de viver ao lado do ser amado. O trovador constrói inicialmente uma narração perfeita de todo o quadro pictórico e das emoções que lhe afetam os sentidos. Trata-se de um evento ocorrido no passado, conforme o primeiro verso Quand'eu un dia fui en Compostela, durante uma atividade de peregrinação a que se dedicava o cavaleiro. Nesta romaria ele conhece uma jovem de beleza incomparável com qualquer outra no mundo, a qual lhe arrebata o coração, um amor à primeira vista. Os versos “demandei-lhe logo seu amor” (pedi imediatamente o seu amor) e “e fiz por ela esta pastorela” demonstram que o amor referido pelo cavaleiro converte-se em “princípio motor” de sua vida e, consequentemente, de sua poesia, motivo pelo qual ele empreenderá uma árdua ação de conquista. Visualizamos a abordagem do cavaleiro, momento em que oferece à formosa donzela (Fremosa poncela) os mais belos presentes (dõas), que toda mulher desejaria: as bonitas toucas Estela (cidade espanhola), as cintas de Rocamador localizada ao sul da França, os bons tecidos para as túnicas (gonela) e tudo o mais que ela viesse a desejar, se concedesse a ele a possibilidade de se tornar o seu entendedor (namorado). As estrofes seguintes apresentam a resposta da pastora à cortesia oferecida. Seus argumentos são reflexivos e apresentam desenvoltura no falar. A jovem se coloca em uma posição que a priva do amor oferecido e enfatiza o desejo de não prejudicar outra mulher, que, possivelmente, pudesse ter compromisso com cavaleiro. Spina (1996) ressalta que a ponderação e o retraimento reflexivo da pastora devem-se ao fato de que o cavaleiro já possuísse as doas consigo e se destinassem para outra donzela. Caso aceitasse, estaria causando grande desgosto a alguém no mundo: dõas, que sei que non Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 50 som pera mi,/ pero cuid’eu, se as filhass’assi,/ que tal á no mundo a que pesaria. Tal atitude significa o bom senso e a cautela da jovem em não aceitar objetos de pessoas desconhecidas. O cavaleiro, no final, intensifica o seu apelo, afirmando não haver no mundo outra que mereça o seu amor. Mais uma vez ressalta a sabedoria e a prudência de sua amada, ao se referir a ela como Pastor, sodes ben razoada. O adjetivo autentica a atitude e a ponderação das palavras da pastora. Somente após intenso debate, no qual aflora no texto a consciência religiosa da mulher, é que ela se prontifica a aceitar a proposta do cavaleiro no término da romaria. Registra-se a ausência dos motivos chorar e cantar, recorrentes nas outras composições comentadas. Por outro lado, se a cantiga se reveste de exemplos que anunciam sua aproximação com gêneros mais cultos, é inegável a presença de elementos simbólicos que nos remetem às características autóctones. Um deles é a comunhão com a natureza, muito comum na poesia pastoril, na última estrofe, justamente no momento em que a pastora, após expressar seu recato, decide aceitar a cortesia do cavaleiro e assumi-lo como pretendente (namorado), assim que a romaria terminasse, num encontro marcado às margens do rio Sar. De acordo com Curtius (1996), o lugar ameno (locus amoenus) na poesia também compreende a presença e o simbolismo que a imagem ou descrição de um rio pode comportar. O curso tranquilo de um rio configura a perfeição do cenário, no qual se concretizaria a aceitação do amor do cavaleiro. A pastorela de Pedro Amigo de Sevilha, impulsionada pelo motivo amoroso e com todas as suas influências provençais, reflete todo o trajeto descritivo da configuração dos lugares, os quais abordam o percurso dos rios, a situação das cidades e os costumes dos povos. Quanto à menção ao rio Sar, lhe é atribuída a função de testemunha do comprometimento que o cavaleiro se propôs a fazer. Da situação das cidades, destacamos a dinâmica da vida em sociedade que nos sugere o comércio das dõas oferecidas pelo cavaleiro. No que se refere aos costumes dos povos, nada mais Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 51 representativo do que as romarias que se destinavam à Santiago de Compostela. Com base na leitura que realizamos das pastorelas selecionadas, resulta que os trovadores galego-portugueses que se dedicaram a expressar suas intenções artísticas por meio dos versos pastoris, concebiam a multiplicidade de recursos retóricos como instrumentos na expressão de sua arte, a qual, por sua vez, identificava no homem a ânsia por uma completude espiritual que via no amor do outro a possibilidade de elevarse. O amor nas pastorelas torna-se a principal medida das coisas, carregando consigo a ampla tradição poética e cultural do trovadorismo que envolve: o ambiente guerreiro, a religiosidade, a musicalidade e a paisagem ideal da poesia. Explica-se assim a presença do cavaleiro, as invocações a Deus e a Santa Maria, os recursos líricos de composição como o dobre e as férteis descrições da natureza que carregam uma imensa carga simbólica. Em sentido lato, todos estes elementos convergem para um personagem específico das pastorelas: a jovem pastora enamorada. É a ela a quem a natureza serve de confidente, é a ela a quem se dirige o serviço cavalheiresco e é à mulher que o amor causa uma imensa exaltação sentimental capaz de atingir um valor fundamentalmente transcendente (amor espiritual), e ao mesmo tempo, com impregnações de valores humanos (amor físico). Referências BIEDERMANN, H. Dicionário Ilustrado de símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1993. BILLY, D.; CLEMENT, F.; COMBIES,A. L'espace lyrique méditerranéen au Moyuen Age. Toulouse: Universitaires du Mirail. 2006. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. CUNHA, A. Dicionário Etimológico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 52 CUNHA, V. (Org.). As pastorelas de Guiraut Riquier. Belo Horizonte: FALE;UFMG, 2006. CURTIUS, E. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: EDUSP, 1996. ELIADE, M. O Sagrado e Profano. Trad: Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FERREIRA, M. 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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 53 Uma intrincada rede de fontes e de influências no Decameron, de Giovanni Boccaccio Delia Cambeiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Resumo: Boccaccio (1313-1375) foi o grande irradiador da cultura humanista. Ele levou para as páginas de suas novelas inúmeras figuras humanas que, por influência do pai, alto funcionário do famoso Banca dei Bardi, conheceu no meio do comércio, das finanças, dos salões nobres e burgueses, também nas ruas de Florença e de Nápolis, entretanto, maravilhosamente disfarçadas por sua incomparável arte de narrar. Ao longo desta obra prima transgressora, crítica e inovadora – tantas vezes classificada de pornográfica – desfila a realidade de personagens emblemáticas, ainda que, às vezes, mal compreendidas. Tais figuras, sem dúvida, tiveram origem no mundo quotidiano do escritor, porém, o contexto ficcional certamente teve suas raízes no passado da tradição literária da qual Boccaccio foi um ilustre herdeiro. O Decameron aparece, enfim, como vasta rede de interferências de ordem intertextual e polifônica, o que leva os leitores a buscar as diferentes fontes de influências desta primeira obra urbana moderna. Nosso trabalho visa a discutir, com base nas novelas boccaccianas, as possíveis marcas recebidas e as exercidas pelo Decameron na literatura europeia. Palavras-chave: Boccaccio; Cinzio; Straparola; Pentameron; Heptameron. Résumé : Boccace (1313-1375) fut le grand irradiateur de la culture humaniste. Il transporta dans les pages de ses nouvelles plusieurs figures humaines qu´il connut influencé par son père – haut fonctionnaire de l´importante Banque dei Bardi – dans le milieu du commerce, des finances, des sallons nobles et bourgeois, encore dans les rues de Florence et Naples, néanmoins merveilleusement truquées par le moyen de son incomparable art narratif. Tout au long de ce chef-d´oeuvre transgresseur, critique et inovateur – parfois classifié de pornographique – défile la realité de personnages emblématiques bien que souvent mal compris. Sans doute ils eurent leurs origines dans le monde quotidien de l´écrivain, en revange, le contexte fictionnel s´enracine certes dans le passé de la tradition littéraire dont Boccace fut son illustre héritier. Le Decaméron se montre finalement comme un vaste réseau d´interférences d´ordre intertextuel et polifonique, ce qui incite les lecteurs à rechercher les différentes sources d´influences de cette première oeuvre urbaine moderne. Notre travail a pour but discuter à l´aide des nouvelles boccaciennes les possibles empreintes reçues et celles exercées par le Decaméron sur la littérature européenne. Mots-clés: Decaméron; Heptaméron; Pentaméron; Basile; Marguerite De Navarre; Straparola. 1. Observações iniciais Muito se diz sobre Il Decameron, de Giovanni Boccaccio (Certaldo ou Florença 1313Certaldo 1375), principalmente tratar-se de uma coletânea (apenas) de histórias eróticas, Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 55 que, pior ainda, alguns já afirmam pornográficas. É necessário, então, reverem-se tais conceitos para melhor compreendermos a obra. Antes, porém, assinalamos sua visão já pré-renascentista, apontada, dentre outros críticos, por Carlo Grabher (1951, p.198-199): Nei riguardi della cultura egli rappresenta uno dei più stretti legami tra Medio Evo e Rinascimento; infatti se da una parte si riallaccia per vari aspetti ai preumanisti e mostra già la tendenza a sentire il mondo classico come qualcosa di conchiuso e di distaccato dal mondo medievale, [...] sente il mondo classico anche in chel suo vivo fluire nel mondo medievale, onde il medioevo lo aveva quasi in sé fuso e assorbito. [...] Insieme al Petrarca, e più del Petrarca ha il merito di aver compreso l´importanza del mondo greco e di essersi adoperato a ridestarne gli studi, sia cercando egli stesso di apprendere il greco, sia con la protezione accordata a Leonzio Pilato, dal quale riuscì ad ottenere una versione di Omero. Já para De Sanctis (1960), um dos famosos críticos do XIX, no Decameron, a vida vem à superfície, mostrando o mundo da natureza e uma emblemática “comédia humana” a se organizar nesta obra exemplar, única e sem precedentes, até então, na narrativa italiana e europeia, inspirando outros autores, trazendo marcas de outras criações, que deram motivos a serem desenvolvidos pelo autor. Boccaccio foi, portanto, a voz literária de um mundo, já tocado pela consciência dos valores do homem e em plena dinâmica de questionamento sobre a condição humana. Entre as novelas de temática erótica e de outras, Boccaccio não propõe nenhuma finalidade moral ou edificante, como acontecia na tradição medieval dos Exempla, e que Dante, na Comédia, deixa-nos entrever de forma sutil. Boccaccio adotou uma visão realística do mundo e das ações dos homens, restituindo, recriando, mostrando e fazendo aparecer múltipla e concreta totalidade da existência quotidiana. Para seu maior estudioso, Vittore Branca, no Decameron, Dalla prima all´ultima giornata si svolge in ideale itinerario che va dalla riprensione aspra ed amara dei vizi dei grandi (I giornata) allo splendore e architettato elogio della magnanimità e della cortesia nella decima giornata e i punto di passaggio obbligato sono i larghi affreschi che attraverso le varie giornate svolgono canonicamente la “commedia dell´uomo” [...] [grifo do autor]. (BRANCA, 1956, p.222223) Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 56 É inegável o persuasivo papel exercido pela extensa e larga galeria de virtudes e de vícios das personagens que nos suscitam risos, porém, sempre acompanhados de algum toque reflexivo sobre a condição humana. Por toda obra percorre o olhar agudo e condescendente do escritor para com os tolos como Andreuccio da Perugia, com os astutos como Chichibio, com os embrulhões como Frate Cipolla e Ser Ciappelletto, dentre muitos outros. Já quanto às novelas de tema erótico-amoroso, envolvendo figuras femininas, os detratores de Boccaccio, originários de meio católico e sexófobo, trataram-nas com suspeita e com firmes censuras por considerá-las licenciosas, imorais. Um fato curioso a ser lembrado é a lenda que corre de um frade, que, em visita a Boccaccio, conta-lhe a parição em sonho de um irmão de Ordem já falecido, advertindo-o sobre a morte e a danação que recairia sobre o escritor por sua obra libertina. Presa dramática de profunda crise ético-moral, Boccaccio procura o amigo Petrarca que o demove da ideia de destruir o Decameron. De fato, mesmo que algumas das novelas evidenciem um ludismo espirituoso e/ou licencioso para a ascética Idade Média, a literariedade da obra, impregnada do que chamaríamos de dionisíaca irreverência, não as deixou nem deixará cair na vulgaridade. Assim se expressou o conhecido estudioso Asor Rosa, quanto às censuras ao Decameron, na época da Inquisição: Vale a pena observarmos que a verdadeira censura do texto decameroniano, entretanto, não era realizado em Florença, mas em Roma, onde [...] o dominicano Maso Manrique apostilava, apagava e corrigia as partes que fossem moralmente suspeitas. Como escreve a propósito Raul Mordente: ‘A divisão dos papéis era claramente traçada: a Manrique e à Inquisição romana competia diretamente uma censura verdadeira, a especialização (no caso linguística e filológica)’. È interessante observarmos que em ambos os casos a censura apontou , mais do que aspectos eróticos e licenciosos do livro, aspectos de declarada polêmica antieclesiástica [...]. Desse modo, o Decameron, reduzido a um livro de agradável e inocente entretenimento, tornou-se conhecido a tantas e tantas gerações de leitores [...]. (ROSA, 1992, p.21-22) Do poeta – e aqui utilizamos a palavra no sentido de criador – receberam os desavisados juízes da Igreja pronta e criativa resposta, tanto no Proêmio, como no início da Quarta jornada e também na Conclusão. Tais passagens – em que usou a tática metalinguística com singulares intromissões do autor – são momentos em que se dirige tanto àqueles Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 57 que o acusavam, quanto a um público especial: suas “belíssimas”, “lindas”, “doces”, “gentis”, “caríssimas” e “queridas” mulheres. Defende-se simulando uma confissão a seu público feminino, porém, atinge aqueles que o atacavam. Na Introdução à Quarta Jornada, Boccaccio (1971, p.10-11), como uma voz pertencente à obra, diz ter um “corpo que Deus fez todo aparelhado para amar as mulheres [e quem não o fizer] desconhece os prazeres do amor e a virtude da afeição natural”, por isto, sim, o censuravam. Ele garante em tom irônico que, de fato, como dizem seus censores, ele mais “parece um [alho-poró] de cabeça branca, porém de cauda verde” (BOCCACCIO, 1971, p.207-211); acrescenta que as “Musas são mulheres, entretanto, elas nunca foram motivo de [suas] composições... e, sim, só as mulheres” (BOCCACCIO, 1971, p.207-211). Finalmente exclama mais irônico ainda: calem-se os detratores; se não conseguem eles aquecer-se, que vivam atormentados pelo frio, e fiquem com os seus prazeres, ou, antes, com seus apetites corruptos. Deixem-me ficar, contudo, no meu prazer [...]. Sempre estive disposto a agradar todas vocês, lindas mulheres, agora, mais do que nunca [...]. (BOCCACCIO, 1971, p.207-211 ) Boccaccio exclamava proceder de conformidade com as leis da Natureza e escrever em socorro e refúgio das mulheres que amam, pois, para as demais, são suficientes as agulhas, o fuso e a roca. Lembrando-nos preceitos poéticos horacianos, ele afirmava que, “ao lerem a obra, as mulheres poderão obter prazer e útil conselho das coisas reconfortantes que as narrativas mostram. [...] [porque] hoje são limitadas as leis sobre o prazer” (BOCCACCIO, 1971, p.10-11 ) . Notamos, assim, a intenção do autor em dar à obra um caráter agradável e útil, sublinhando seu envolvimento direto com o mundo e com a realidade do público leitor feminino, para ele, bastante especial, pois o considerava carente de prazer e de atenção. As novelas trazem a marca de lúdico e prazeroso propósito, encontrada na Conclusão do Autor, ao fechar literalmente as últimas linhas do Decameron. Aqui ouvimos essa voz de um Boccaccio narrador que se intromete na obra, mais uma vez dirigida às mulheres: Jovens nobilíssimas, para cujo consolo meti eu mãos à obra tão longa: creio que, tendo-me auxiliado a graça divina, [...] pude levar [...] a Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 58 cabo o que [...], prometi fazer. [...] Deixando, desde agora, que cada uma, dentre as mulheres, afirme e acredite o que lhe parecer melhor, é tempo de colocar fim às palavras. Agradeço, com humildade, àquele que, após tão longo esforço, me levou, com seu auxílio, ao fim almejado. E vocês, agradáveis mulheres, vivam na paz de Deus; e lembrem-se de mim, se, por alguma coisa, alguma de minhas novelas lhes deu a recompensa de a terem lido. (BOCCACCIO, 1971, p. 581582 ) Com relação ao tão discutido “realismo” do Decameron, portanto, notamos representar uma atitude pessoal do escritor preocupado em retratar, sem medo do pecado, penas e prazeres do homem delineados em seu ângulo luminoso e/ou sombrio da psiquê. Tais fotografias representam uma espécie de biografia cultural e espiritual de Boccaccio, criado no meio de mercadores e de banqueiros. A obra comporta detalhes, descrições de ambientes, referências históricas a lugares ou a pessoas de marcas históricas como o pintor Giotto, o poeta Guinizzelli, dentre tantas outras famosas personagens pertencentes ao universo cultural. A biografia de Giovanni Boccaccio atesta que, por influência do pai, frequentou, para se habituar nas artes financeiras e mercantis, que abandonaria pela literatura, o famoso banco Casa dei Bardi, depois falida. Sua vivência em Florença e em Nápoli foi circulando nos ambientes nobres, com as gentes da corte, com burgueses ricos e com mercadores, comerciantes, afinal, homens de finanças e o povo da rua. Todo aquele contexto social enriqueceu certamente a imaginação e o dom de observar os seres que desfilavam pelas câmaras e antecâmaras dos palácios e pela múltipla cena de lugares públicos e interiores, tudo magistralmente eternizado na obra. Só com isto, já poderíamos afirmar que, inegavelmente, o Decameron é, sem dúvida, uma das grandes literaturas modernas de tema urbano. Além de delinear vícios, paixões, também qualidades humanas, o livro integra uma chamada “literatura da peste”, que encontra raízes em outros momentos da invenção literária. Desde a Antiguidade registraram-se epidemias e catástrofes, vistas como punição divina. Nos textos sagrados, inclusive, encontramos um primeiro exemplo, já que o Êxodo (7-11) descreve as pragas mandadas por Deus aos egípcios. Dentre as fontes profanas literárias antigas ligadas ao tema, em obras anteriores à de Boccaccio, Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 59 citamos Virgilio, ao descrever nas Geórgias a peste que atacou os animais na região do Nórico, província romana, hoje equivalente à Austria e à Hungria; mencionamos o historiador Tucídides por descrever a peste de Atenas de 431-430 a.C.; apontamos o poeta latino Lucrécio, que, no último livro de Rerum natura, também narra a peste ocorrida em Atenas. Entre os século XIX e XX, a peste, que deflagrou poeticamente o Decameron, veio a ser destaque em meio aos tormentosos momentos de Os noivos, de Alessandro Manzoni; também em A máscara da morte vermelha, de Edgard Allan Poe; Daniel Defoe, relata a peste de Londres em seu Diário do ano da peste; chegamos a Albert Camus, que, em A peste, coloca as personagens frente ao absurdo da falta de sentido e justificativa para a dor humana; e, para finalizar, lembramos Antonin Artaud, que, em outro campo artístico, o teatro, compara a peste a uma forma de expulsão de demônios. Artaud vê, em O teatro e seu duplo, a cena teatral em analogia com a peste, sugerindo-a como um instante psíquico em que se desatam conflitos interiores, liberam-se choques. Vale refletir com o criador do conceito Teatro da crueldade que O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é benfazeja, pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma atitude heróica e superior que, sem isso, nunca assumiriam. [...] Santo Agostinho em A Cidade de Deus acusa essa semelhança de ação entre a peste que mata sem destruir órgãos e o teatro que, sem matar, provoca no espírito não apenas de um indivíduo, mas de um povo, as mais misteriosas alterações. (ARTAUD, 2006, p.29-30) Assim, a vasta rede temática da Antiguidade até nossos dias, leva-nos à observação da força desconstrutora da peste na narrativa boccacciana, mas, ao invés de escatológico fim do mundo, o Decameron nos sugere uma eterna transformação das coisas, ou seja, propõe a luta, o conflito, a tensão contínua como princípio de tudo, segundo Artaud (2006, p29-30) “uma extrema purificação”. Apenas o trabalho da linguagem dado à Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 60 peste e a simbologia aí implicada já encerrariam a iníqua discussão sobre a questão de ser o Decameron uma série de novelas de cunho licencioso. Não podemos negar que ler a exposição minuciosa do que acontece na cidade, durante o flagelo, é percorrer verdadeiro material fotográfico e cinematográfico. O pressentimento da força da imagem, o aguçado cuidado em surpreender o homem em situação se reforçam no fato de Boccaccio ter acrescentado à obra uma série de desenhos, para narrar também visualmente a realidade da trama imaginada e desenvolvida nas palavras do Decameron , abaixo transcritas: Afirmo [...] que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra na Itália, sobreveio a mortífera pestilência. [...] Esta peste foi de extrema violência [...] mesmo o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa [...] tocada, ou utilizada por [...] enfermos, parecia transferir, ao que bulisse, a doença referida. É de causar espanto o ouvir aquilo que preciso dizer. [...] Era como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenças e dos remédios. [...] [T]iveram os meus olhos [...] certo dia, entre outras vezes, a seguinte experiência: as vestes rotas de um pobre sujeito, morto por essa doença, foram jogadas à rua. Dois porcos, de início, segundo costumam fazer, sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na própria cara. Apenas uma hora depois, após umas convulsões, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caíram mortos por terra, sobre os trapos em tão má hora jogados à rua. (BOCCACCIO, 1971, p14-15) Com relação à força descritiva de Boccaccio, anteriormente assinalada, em 1999, jornais italianos, tais como, Il Corriere della Sera, Il Giorno, entre outros, destacaram a publicação de um volume do Decameron, pela Casa Editrice Le Lettere, ilustrado com 30 desenhos autografados pelo escritor, sob orientação de Vittorio Branca, o grande estudioso de Boccaccio. Sem dúvida, este é um Boccaccio duplamente pioneiro, não só pelo teor das novelas, mas por ilustrar, com figuras, a sociedade nobre, burguesa, trabalhadora e popular em sua plena realidade e efervescência. Sensibilizado com a inegável carga e a essência pictóricas de sua narrativa – particularidade demonstradas nas breves linhas em que fala da peste – Boccaccio sentiu-se certamente provocado pelo desejo de oferecer aos leitores seu texto visualizado. Mais uma prova, portanto, de que a proposta da obra era estimular a observação, instigar o questionamento da sociedade Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 61 desenhada pelo escritor e artista de Certaldo, era passar por meio de uma situação histórica trabalhada ficcionalmente um ponto de reflexão da existência. 2. Algumas fontes do Decameron Conhecido apenas como Decameron, as famosas jornadas, porém, têm como subtítulo “Commincia il libro chiamato Decameron, cognominado Prencipe Galeotto”, que traduzimos para “Começa o livro chamado Decameron, cognominado Príncipe Galehaut”. Desde o subtítulo, já ficou estabelecida interessante intertextualidade entre o Decameron e a Commedia de Dante Alighieri, que retrata Francesca da Rimini e seu cunhado, Paolo Malatesta, induzidos ao adultério pela leitura da história de amor de Guinevere e Lancelote, que, para se aproximarem, foram auxiliados pelo cavaleiro Galehaut, o Senhor das Ilhas Distantes ou Estranhas Ilhas. Flagrados em adultério, sofrem as consequências da vendetta de Giovanni Malatesta, marido de Francesca, que mata o irmão e a mulher. Tal citação, bastante conhecida, foi tomada de Dante Alighieri, que, no Inferno, canto V, versos 5-138, no círculo dos luxuriosos, lançou as figuras de Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, pertencentes à história e, a partir da Commedia, à literatura. A obra de Dante abrigou a história da paixão irrompida entre os dois, no instante em que liam, per diletto, ou seja, como prazer, por divertimento, em um momento agradável de ócio, a passagem de um romance cavaleiresco, em que a Rainha Guinever, mulher de Artur, é beijada pelo cavaleiro Lancelote. O beijo dos amantes fictícios estimulou Francesca e Paolo a imitar as personagens da Demanda. Na Comédia, a Francesca-personagem, em lugar do amante e de forma apaixonada, explica a Dante-personagem que, da mesma forma que Galehaut favoreceu o cavaleiro e a rainha, o livro que liam fora o intermediário dos amores entre ela e o cunhado: amor que os levou à morte, como já aludimos, pelas mãos do marido Giovanni Malatesta. Boccaccio concebeu para a obra o subtítulo de Principe Galeotto, certamente entendendo que o Decameron poderia ajudar, favorecer seus leitores/leitoras em suas Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 62 penas de amor, da mesma forma que Galeotto – Galehaut – fez com Lancelote. Em verdade, Boccaccio desejava favorecer suas adoráveis, encantadoras leitoras, pois, como já assinalamos, no Proêmio do Decameron, o autor indica o público novo a que é destinada a obra, evidentemente ao público feminino, que se deleitava com suas novelas e personagens: E haverá quem negue, [...] que é conveniente ofertar este alívio, este conforto, mais às mulheres do que aos homens? [...] [Às] mulheres [que] constrangidas pelos desejos, pelos caprichos e pelas ordens paternas e maternas, fraternas e dos maridos, conservam-se a maior parte do tempo encerradas em seus aposentos; mantêm-se ali, sem nada fazer, sentadas, querendo e não querendo; numa hora só, nutrem pensamentos vários, e não é possível que sejam sempre alegres esses pensamentos. [...] Assim sendo, para que se corrija, para mim, o pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fábulas, ou parábolas, ou estórias, sejam lá o que forem. A sorte mostrou-se menos propícia, como vemos, para as frágeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo. Em socorro e refúgio das que amam, é que escrevo (pois, para as demais, são suficientes a agulha, o fuso e a roca). (BOCCACCIO, 1971, p.10) Compreendemos que, após tantas alusões às mulheres e às histórias sobre amantes, o autor passaria a ser alvo de ataques, que não enfraqueceram, mas que aguçaram a preocupação de Boccaccio, que sentia o valor do diálogo obra-leitor, já atinava para “o experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores” (JAUSS, 1994, 25). Nos anos de florescimento do Humanismo, o ilustre certaldense intuiu “[e]ssa relação dialógica” (JAUSS, 1994, 25), portanto, concentrou o espírito fortemente aguçado para a recepção e o efeito de sua obra no público de então: teses que, nos anos 60, foram sublinhadas nas reflexões de Hans Robert Jauss. As várias sinalações de a obra ser direcionada às mulheres, que só tinham como passatempo o fio e a roca, sem um hiato de sonho, longe de se referir a uma coleção de histórias pornográficas ou para rir, reforçam o sentido e o valor da obra, pois, “[...] a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social”. (JAUSS, 1994, p.51). Quanto a outros fios intertextuais, além das citações tomadas em Dante, convém assinalar o fato de entre os 10 narradores que se intercalam ao longo das 10 jornadas para contarem as 100 histórias – os reis Panfilo, Filostrato, Dioneo e as rainhas Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 63 Pampinea, Elisa, Lauretta, Neifile, Fiammetta, Filomena, Emilia – encontrarem-se nomes saídos de obras do próprio Boccaccio. Dentre as personagens nascidas de suas páginas para ingressarem no Decameron citamos Panfilo e Fiammetta, que participam da Elegia de Madona Fiametta; Emilia, da Teseida; Dioneu, do Ameto e Filostrato, de obra homônima. Ao penetrarmos nessa intrincada rede, atestamos que, o grande narrador literário do mundo urbano lançaria seu olhar agudo, não apenas à Idade Média de Dante, para colher subsídios para suas novelas, fiando e desfiando material próprio e de outros autores, recebendo e passando, assim, a tradição literária não apenas da Itália, mas do Ocidente. Em sua rede de textos, Boccaccio trouxe da Antiguidade a história dos infelizes amantes da obra ovidiana Metamorfoses, Tisbe e Píramo, trabalhadas em De mulieribus claris. Tisbe e Píramo têm conhecidos ecos no Decameron, na novela de Girolano e Silvestra (IV, 2). O fenômeno de uma dialogada construção no Decameron de/com outras vozes leva-nos à célebre afirmação de Julia Kristeva: “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64). Também a palavra de Antoine Compagnon nos chama a atenção para assunto tão vasto, ao dizer que “escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação” (COMPAGNON, 1996, p.31). Devemos colocar em relação tanto as figuras ovidianas retomadas em De mulieribus claris quanto as da novela decameroniana Girolano e Silvestra. Este caso de relação entre as fontes ovidianas e a novela boccacciana é apenas mais um de tantos exemplos de intertextualidade encontrada na leitura do Decameron. Bastaria acrescentarmos o notório exemplo de “Paulina romana femina”, retomada em Lisetta da Ca’Quirino (IV, 2), ou ainda o capitão dedicado a Lucrezia, novela com o mesmo preâmbulo da novela de Madama Zinevra (II, 9.), todos de Boccaccio. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 64 É interessante lembrar algo quanto ao número de 100 novelas. Poderíamos pensar na influência da obra de Dante na estrutura do Decameron, entretanto, este número passa, de fato, a 101 novelas, pois não podemos omitir aquela em que o autor toma o cargo de narrador na Introdução da Quarta jornada, texto de autodefesa e à qual já nos referimos. Desta forma, pela divisão quantitativa dos relatos, Boccaccio sai da divisão do número perfeito, 100, encontrada na emblemática obra de seu tão admirado mestre. A divisão interna e o título firmados no Decameron leva-nos, agora, ao Hexameron, de Santo Ambrósio, um texto sacro do século 4, constituído de homilias celebrativas dos seis dias da criação, um provável modelo para seus 10 dias decameronianos da variada experiência humana. Lembramos que, pela divisão quantitativa dos relatos, o título escolhido por Boccaccio é também elucidativo: ao invés de hexa correspondente a 6, temos Deca+meron, em grego lemos com o “livro dos dez dias”. Se em sua obra Santo Ambrósio laudava a formação da vida pela força divina, Boccaccio celebra, de outra forma, também a vitória da vida sobre a degradação do mundo dominado pela peste. 3. Herdeiros de Boccaccio Como temos apontado, o Decameron reuniu ecos reveladores de fontes, intertextos, influências certamente emblemáticos, também serviu de fonte para outros textos, que eternizariam os nomes de Marguerite de Navarre, em L’Heptaméron, e Giambattista Basili, em o Pentámeron. Aludimos ainda ao Ecatommici, de Giraldi Cinzio, e às Novelas de Matteo Bandello, dois autores que se inspiraram na estrutura do Decameron sugerindo-nos aplicá-la em seus contos. E não esqueçamos de que rastros, fontes destes dois novelistas estão em Sheakspeare, que se inspitou, certamente, em Cinzio para compor o seu Otelo. Em Bandello, o mesmo mestre inglês encontrou material para Romeu e Julieta, enovelada história de dois amantes infelizes, também oriunda de um conto do século XV, desenvolvido por Luigi Da Porto. Bandello traçou os perfis de suas personagens de maneira bastante pessoal, já modificadas por possíveis modelos herdados de alguma outra cultura e que lhe valeu traduções em vários países colocando em evidência a obra. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 65 Neste ponto, vale ressaltar algo - mesmo que não se refira especificamente ao Decameron - sobre os rastros literários dos famosos e desafortunados amantes, personagens da não menos consagrada tragédia de Sheakspeare, escrita entre 1591 e 1595. Dante Alighieri, na Commedia, referiu-se, no canto do Purgatório (VI, 105) a duas famílias – os Montecchi e os Capuleti – como inimigos, mas sem se referir a Romeu nem a Julieta. Quanto às duas famílias, através da narrativa de Masuccio Salernitano, em 1472, a história ganhou a primeira estrutura da já conhecida trama, entetanto, os namorados se chamavam Mariotto e Giannozza, o espaço, ao invés de ser Verona era Siena e a psicologia das personagens diferia bastante. Foi Luigi Da Porto que, em sua Istoria novellamente ritrovata di due nobili amanti, História de novela encontrada sobre dois nobres amantes, aproximadamente de 1530, apresentou-os em versão moderna, transportando a cena para Verona e nomeando-os da forma que os conhecemos: Romeu e Julieta. Daí em diante, vários foram os momentos em que se retomou e se enriqueceu a ação e os fatos. Em sequência a nosso estudo, citamos agora a influência de Boccaccio em Giovan Francesco Straparola, que, em Noites prazerosas, ao longo de 13 noites, encadeou 75 novelas contadas por 13 mulheres. As 75 novelas estão acompanhadas de enigmas, em versos de oitava rima, em geral enigmas licenciosos. Uma delas intitulada “Costantino Fortunato”, comumente conhecida como O gato de botas, tornou-se fonte para outros escritores, sendo retomada pelo francês Charles Perrault, no século XVII, nos famosos Les contes de ma mère l'Oye, em português, As histórias da mamãe gansa. Apontamos outra influência do Decameron, em L´Heptaméron, de Marguerite de Navarre, irmã de François I, também chamada Marguerite d’Angoulême, d’Alençon e de Valois, nascida em 1492, protetora de Rabelais e de Marot. O Heptaméron, ou o “livro dos sete dias”, sua mais importante criação literária, de forte sugestão boccacciana, é obra inacabada, só publicada após sua morte. Composta de contos em que se alternam temas cômicos e trágicos, nela se evidencia mais o desejo de instruir do que agradar e distrair, dela se extrai uma moral, uma pedagogia, ao mesmo tempo cristã e mundana, que, claramente prefigura a vida de salão levada na corte. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 66 Nicole Cazauran (1991, p.17-28), em estudo sobre o texto de Marguerite de Navarre, observa a existência do recurso da superposição de diferentes registros, tais como, metafísico, cômico, satírico, moral. Ao longo da obra, desfilam toda sorte de representantes sociais, desde a burguesia e a nobreza, em maior número, como também gente do povo. Da estrutura fazem parte dez viajantes que se abrigam de uma violenta tempestade numa abadia e, impossibilitados de se comunicar com o exterior, todos os dias, cada um conta uma história, real ou inventada. Em forma de epílogo, a história é concluída e comentada pelos participantes, em ameno diálogo. Era intenção da autora que, à semelhança do Decameron, a obra compreendesse cem histórias, porém a morte impediu-a de realizar seu intento, não indo além da segunda história do oitavo dia, perfazendo 72 novelas. A obra se movimenta da reflexão séria à despretensiosa; das histórias mais simples aos questionamentos filosóficos e teológicos. A atmosfera das novelas com os debates finais suscitados pela trama encerram a busca da verdade ao longo de uma conversação apoiada por máximas, por citações importantes de passagens conhecidas à época, dando apoio ao que chamaríamos de verdades essenciais. No fundo de toda comicidade e tragicidade, em meio a contos “negros”, a intrigas galantes, a homens valentes, viris, a histórias de mulheres virtuosas ou devassas, encontramos uma lição, um exemplo a ser notado, o que em Boccaccio ficou velar, sem nada deixar transparecer. Para sintetizarmos o pensamento de Nicole Cazauran (1991, p.17-28), em L´Heptaméron, está a imagem do homem em momentos de furiosos desejos, ou como vítima de uma glória vã, sem consistência, perseverante no mal e incapaz do bem, culpado ou vítima de desordens que apenas Deus pode acabar. Outro nome da literatura italiana, Giambattista Basile, certamente, foi outro herdeiro de Boccaccio. Após várias viagens pela Itália, Basile voltou a Nápoli, sua cidade natal, e em 1621, aproximadamente, inicia o Pentameron, uma coletânea de narrativas, plenas de elementos que nos sugerem a atmosfera de fábulas, cujas personagens falam o dialeto napolitano, em oposição ao uso do florentino do Decameron. Não devemos, entretanto, falar de Basile como um autor meridional, nem colocá-lo em oposição a autores do setentrião, posicionamento crítico bastante encontrado na história da literatura italiana. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 67 Ao contrário, Basile deve ser interpretado como o nome que tornou vivas as expressões dialetais de sua própria gente. Foi através do vulgar napolitano que manifestou a substância de sua arte narrativa, a vida de uma cidade com múltiplas contradições e particularidades, antes mostrada por Boccaccio em florentino, pouco a pouco convertido em língua de prestígio. Em verdade, Basile deu o título de “O conto dos contos”, ao conhecido Pentameron, assim chamado por seu editor e não por escolha inicial de Basile. Mesmo que o autor não tenha dado à obra originalmente um título análogo ao escolhido por Boccaccio, a estrutura se inspirou, sem dúvida, na do certaldense. As jornadas são em número de 5 e o número de novelas também ficou reduzido a 50. Elas são narradas por velhinhas caracterizadas por seus defeitos físicos, portanto, temos Zeza a manca; Cecca a torta, Meneca a papuda; Tolla a nariguda; Popa a corcunda; Antonella a babona, um verdadeiro desfile de bruxas, de lâmias efabuladoras. Com relação à obra, na Apresentação do Pentameron na edição de 1925, Benedetto Croce nos diz que: “a Itália possui nos Contos dos contos ou o Pentameron, de Basile, o mais antigo, o mais rico e o mais artístico entre todos os livros de fábulas populares (CROCE, 1925, p.98)”. As histórias narradas na obra são do estilo fábulas, como frizou B. Croce, geralmente retiradas da tradição popular e reelaboradas literariamente por Basile, em registro culto, bem diverso do napolitano efetivamente falado. Às novelas acrescentou anotações irônicas e comentários, às vezes, de cunho moral. A obra de Basile, por sua vez, serviu também de fonte para outros autores de fábulas e contos, tais como, Charles Perrault e os irmãos Grimm. Isto porque nos Contos dos contos encontra-se, entre outras bem conhecidas, a história da Gata borralheira, também chamada de Cinderela. Vimos, portanto, que anteriormente e a partir do Decameron formou-se uma intrincada rede de fontes e de influências, além de inesgotável série de intertextos. É inegável a relação entre tais narrativas, a criar entre si um visível rastro polifônico conectando-nos de um texto ao outro: de Dante a Boccaccio, deste até Bandello e Cinzio e outros. Às vezes, parece-nos impossível estabelecer se um textos seria escrito sem a influência de um outro composto anteriormente e pertencente também a um conjunto de fios e de Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 68 interações literárias, mais ou menos visíveis, que os une sob o signo da criação/recriação. É preciso observar, porém, que da mesma forma que Boccaccio recebera e utilizara o material literário reinante na cultura até seu tempo e o transformou de maneira magistral, também seus herdeiros, na posse efetiva de tal herança, souberam burilar artisticamente os valores recebidos. Quem nos certifica do valor e da dinâmica desse inventário de fontes e influências é Jauss (1986, p.54-55): La forme d´un genre nouveau peut également sortir des modifications structurelles qui font qu´un groupe de genres simples déjà existants s´insère dans un principe d´organisationsupérieure. L´exemple classique est ici la nouvella toscane créée par Boccacio, qui imposa ses normes à toute l´évolution ultérieure de la nouvelle comme genre moderne. D´un point de vue génétique, le Decameron de Boccace a intégré une variété étonnante de genres narratifs ou didactiques plus anciens. [...] Les caractéristiques que retiendra la théorie ultérieure de la nouvelle [...] ne suffisent pas, prises isolément, à fixer le genre : elles atteignent leur fonction spécifique et, par là, leur efficacité historique dans la structure de genre créée par Boccace. Cela ne veut pas naturellement pas dire que, dès lors, tous les éléments de cette structure devront se retrouver dans toutes les nouvelles ultérieures. Les successeurs de Boccace ne se contantent pas de reprendre simplement sa structure initiale [...]. Antes de fechar nosso ensaio, baseado em vasto mosaico textual composto pelas obras nele comentadas, devemos acrescentar alguns breves comentários sobre um escritor galego, Manuel Forcadela, sensível poeta e romancista, professor de literatura galega, na Universidade de Vigo1. Ao lado dos policiais Sangue sobre a neve, Fóra de xogo, acrescentamos o sensível romance Paisaxe con muller e barco, e A equipaxe do azar. Sua poesia está marcada por Música de cinza, Lámpada e Medusa. A produção de Forcadela estende-se por outros títulos, entretanto, focalizamos nossa atenção no sugestivo romance de 1990, A armada invencível, que, pela temática irreverente, a estrutura linguística, a escolha do vocabulário utilizado e as contínuas inversões frasais, regadas com ironias e com explicações redundantes, sugeriu-nos, a 1 Conhecemos Manuel Forcadela durante nossa estada na Universidade da Coruña, para o Pós-Doutorado em Literatura Comparada, com bolsa CAPES, fruto do convênio entre UERJ e UDC coordenado pela Profª Drª Maria do Amparo Tavares Maleval e pela Profª Drª Laura Tato. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 69 partir das analogias encontradas, um futuro estudo comparado em diálogo com Giovanni Boccaccio. A futura pesquisa, na tentativa de refletir sobre a influência do estilo de Boccaccio em A armada invencível, seria desenvolvida, então, a partir da hipótese de que tal obra de Forcadela nos sugere uma vertente que atualizaria a narrativa boccaccesca. Deste modo, demonstraríamos uma atualização de temas medievais retomados na Galiza no século XX, porém, em nosso caso específico, entre as literaturas de língua italiana e galega. Referências ARTAUD, Antonin. O homem e seu duplo. 2.ed. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo : Editora Martins Fontes, 1999. ASOR ROSA, Alberto. “Decameron” di Giovanni Boccaccio. Em: Literatura italiana. Torino: Einaudi, vol.I, 1992. BOCCACCIO, Giovanni. DecameronouPríncipe Galeotto. Trad. Urbano Tavares Rodrigues. Belo Horizonte: Crisálida, 2008. BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Abril, 1971. BRANCA,Vittore. Giovanni Boccaccio. In: Letteratura italiana. I maggiori. Milano: Marzorati, 1956. CAZAURAN, Nicole. L´Heptaméron de Marguerite de Navarre. 2.ed. Paris: Editions SEDES, 1991. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. CROCE, Benedetto. Premessa. Em: Lo cunto de li cunti. Bari: Laterza, 1925. DE SANCTIS, Francesco. Storia della Letteratura italiana. Firenze: Sansoni, 1960. FORCADELA, Manuel. A armada invencible. Vigo: Edicións de Cumio, GRABHER, Carlo. Boccaccio. Torino: UTET, 1951. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 70 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994 JAUSS, H. R. et al. Littérature médiévale et théorie des genres. In: Théorie des genres. Paris: Éditions du Seuil, 1986. KRISTEVA, Júlia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 71 Duas leituras dos poemas 55 e 56 de Fernão da Silveira no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende Geraldo Augusto Fernandes Universidade de São Paulo (USP); Universidade Nove de Julho Resumo: Na transcrição dos poemas 55, uma esparsa, e 56, uma cantiga, do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), percebe-se uma divergência na visão dos dois últimos editores do Compêndio. Em 1910-1917, António José Gonçalves Guimarães considera os dois poemas uma só composição, motivado que foi pela ausência de alguns dados característicos da “ordenação” do Cancioneiro. Já Aida Fernanda Dias, em suas duas edições (1973-1974 e 1990-1993), separa os dois poemas, atendo-se, parece, à forma e à temática das duas peças. Neste estudo, levantamse algumas considerações sobre os motivos de tais visões divergentes. Palavras-chave: Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; Transcrição de textos antigos; Leitura de originais; Opções de editores. Abstract: In the transcription of two poems taken from the Cancioneiro Geral, a songbook compiled by Garcia de Resende in 1516, there is a disagreement in vision of two editors of the most recent editions of the Compilation. In 1910-1917, António José Gonçalves Guimarães considers one sole composition the poems nr. 55, an esparsa, and nr. 56, a cantiga, maybe because some characteristics data of the songbook are not evident. In her editions of 1973-1974 and 1990-1993, Aida Fernanda Dias separates both poems, sticking to the form and theme of the compositions, as it seems. In this study, some considerations on the reasons of those divergences are analyzed. Keywords: Garcia de Resende’s Cancioneiro Geral; Transcription of ancient texts; Reading of originals; Options of editors. O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende foi editado nove vezes, entrando nesse cômputo a primeira aparição, em 1516, ano de sua publicação1. Diferentemente de seu congênere castelhano, o Cancionero General de Hernando del Castillo, publicado em 1511, no qual Garcia de Resende se inspirou para publicar o seu Cancioneiro, a Compilação portuguesa teve apenas a primeira edição. Castillo publicou outras em 1514, 1517, 1520, 1527, 1535, 1540, 1557 e 1573, tendo adicionado e excluído poemas 1 Cf. o volume V, do CANCIONEIRO, 1998, p. 441-443, “A Temática”, para uma relação de todas essas edições. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 72 até a edição de 1527, enquanto ainda estava vivo; as demais aparições foram compostas por outros editores e compiladores, sempre mantendo a “identidade” do original 2. Se o compêndio castelhano avançou, o português não progrediu, talvez “porque a natural condiçam dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dinas de grande memoria, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e vertudes, de ciencia, manhas e gentileza sam esquecidos” (CANCIONEIRO, 1990-93, p.9), como escreve Garcia de Resende em seu Prólogo. Duas das edições que seguiram o Cancioneiro de Resende são fac-símiles e duas são edições anastáticas. Para a análise que empreendo de leituras diferentes dos dois poemas do Compêndio, valho-me da edição de 1910-17, de António José Gonçalves Guimarães, e da edição de 1990-93, de Aida Fernanda Dias, a mais completa até agora: são quatro volumes contendo os 880 poemas, adicionando, em 1998, uma edição crítica, “A Temática”, além de um Dicionário (Comum, Onomástico e Toponímico), de 2003, trabalho de anos de pesquisa sobre os termos usuais dos poetas palacianos.3 À parte esta edição, a mesma autora lançara em 1973-74 dois volumes do CGGR4 juntamente com Álvaro J. da Costa Pimpão. A edição de 1516 do CGGR apresenta-se em letras góticas e foi um dos primeiros textos impressos em Portugal, depois da Bíblia; nele, Resende reúne poemas compilados desde 1449 até o ano de sua publicação. Resumo de meio século de poesia portuguesa, o CGGR caracteriza-se pelo culto à forma, adicionando gêneros e temas que prenunciam o Pré-Renascimento, o próprio Renascimento, o Barroco e mesmo outras tendências literárias vindouras. As formas poéticas cultivadas pelos poetas palacianos podem ser identificadas por seis grupos – baladas, cantigas, esparsas, trovas, vilancetes e poemas de formas mistas, estes a grande novidade dos Quatrocentos e Quinhentos peninsulares.5 Quanto aos muitos e diversificados gêneros, destacam-se as epístolas, as glosas, e a 2 Cf. CANCIONERO General, 2004. Na Introdução, o editor Joaquín González Cuenca, estuda o aparecimento de todas as edições, fazendo uma análise crítica delas. 3 Antes do surgimento desse Dicionário, Aida Fernanda Dias lançou o Contributo para um dicionário do “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1978, prévia da extensa edição de 2003. 4 A partir daqui, usarei a sigla CGGR para referências ao Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. 5 A característica original desse grupo é a mescla de várias formas numa só composição. Tome-se como exemplo o texto que abre o CGGR, conhecido por “O cuidar e sospirar”. Trata-se de 146 poemas de formas mistas numa só composição, desenvolvendo um único tema, o amor: 116 trovas, uma sextilha, cinco quadras, uma quintilha, 22 cantigas e um vilancete. Registram-se no Cancioneiro 96 poemas cuja forma é mista. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 73 disputatio, representada pelos subgêneros perguntas, respostas e ajudas6. Relativo aos temas, ainda prevalece o amor, pervivência de uma tradição de longa duração medieval; no entanto, mesmo que ainda “cortês”, esse amor mostra-se eivado de sensualidade, que será mais explorada no Renascimento e no Romantismo, deixando de lado o “fingimento de amor” das cantigas de amor e de amigo trovadorescas. Em muitos poemas, o poeta revela um sentimento que vem aliado a certo desconcerto do mundo, resultado das Conquistas portuguesas. Esse desconcerto, aliás, não se prende apenas ao tema amoroso, pois se estende a qualquer outro sentimento em que o poeta se vê “perdido” ou “desavindo” ante um mundo em transformação, característico do fim da Idade Média. Destacam-se, ainda, numerosos poemas denominados por Resende “cousas de folgar”, os correspondentes às cantigas de escárnio e de maldizer trovadorescas, cujo tema concorre de perto com os poemas amatórios. Quanto aos exemplares da edição príncipe do CGGR, Ivo Castro e Helena Marques Dias citam onze, localizados em Lisboa, Coimbra, Évora, Vila Viçosa, Paris, Londres e Nova York. Em artigo divulgado em separata na Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, IV série, n. 1, 1976-77, os dois estudiosos comentam que, apesar de ter sido editado uma única vez, o Cancioneiro (1977, p. 117) teve duas impressões, feitas por dois compositores7 diferentes em dois momentos também distintos, haja vista as divergências apresentadas em alguns poemas. Castro e Marques Dias chegaram a essa conclusão, porque as divergências eram muito evidentes, confrontados dois exemplares. Quanto a essas divergências, os autores supõem que Hermão de Campos, o impressor, se viu instigado a reimprimir algumas folhas dos exemplares porque, como uma parte foi impressa em Almeirim e outra em Lisboa, teria sido possível que se perdessem algumas folhas durante a viagem. Outra possibilidade é que o sucesso do Cancioneiro 6 As ajudas surgem quando se solicita a outro poeta sua opinião em relação a um questionamento feito pelo proponente; as perguntas são dúvidas propostas por um poeta em forma de pergunta, pedindo a outro que responda de acordo com sua sabedoria ou conhecimento sobre o lema, e as respostas, esclarecimentos da dúvida trazida no mote pelo poeta proponente. A origem desses subgêneros é a tensó provençal. Registre-se que as ajudas são, entre outras, a grande novidade do CGGR, subgênero não registrado, por exemplo, no Cancionero de Hernando del Castillo. 7 Seriam, de acordo com os dois estudiosos os Compositores A, do Reservado 110, e B, do Reservado 112, ambos exemplares da Biblioteca Nacional de Lisboa. Castro e Marques Dias entendem por “compositores” os oficiais responsáveis pela impressão. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 74 teria sido tal que Resende decidiu aumentar a tiragem (1977, p. 123). 8 Para chegar a essa conclusão, os estudiosos valem-se de vários textos do CGGR, mas principalmente do poema “Senhora, graciosa, discreta, eicelente”, intitulado “Outra sua.”, de Fernão da Silveira, o Coudel-mor.9 Numa das impressões, fica evidente a separação por colunas da esparsa labiríntica de palavras a que se dedicou o poeta; noutra, o mesmo poema aparece com tal evidência somente nos quatro primeiros versos. Nas edições modernas, a de 1910-17, de António José Gonçalves Guimarães, e nas de 1973-74 e 1990-93, ambas de Aida Fernanda Dias, o que se percebe é a fidelidade do primeiro, Gonçalves Guimarães, quanto à separação das palavras que caracterizam o labirinto e a opção divergente da segunda. Dias junta as palavras, descaracterizando a intenção original do Coudel-mor, de construir um labirinto de palavras cuja leitura pode ser feita da maneira que aprouver ao leitor. Uma vez que a editora havia consultado alguns exemplares da edição príncipe, em comunicação que apresentei recentemente questionei o quê teria levado Dias a se “desvirtuar” tanto do original10. Ao que parece, a estudiosa não seguiu a intenção primeira do poeta, que era justamente criar um labirinto. No entanto, essa questão de “seguir o original” inverte-se quando se observa a publicação dos poemas 55 e 56,11 do mesmo Coudel-mor, como pretendo mostrar em seguida, valendo-me das edições de Gonçalves Guimarães e de Fernanda Dias. Antes disso, é necessário fazer algumas considerações quanto à questão das diferenças entre dois exemplares de uma mesma edição. Castro e Marques Dias (1977, p. 105) explicam que, num texto antigo, as variantes são binárias: “para cada passo em que os exemplares não estão de acordo entre si, apresentam-se duas lições variantes, e nunca mais de duas”. De acordo com os dois estudiosos, as variantes podem ser acidentais, quando as diferenças se apresentam na ortografia, pontuação e apresentação tipográfica; 8 Aida Fernanda Dias concorda em parte com essas suposições: “Estamos convictos de que a deslocação da tipografia de Hermão de Campos de Almeirim para Lisboa está na raiz destas divergências [mas] a ideia de que esta operação foi pedida pela necessidade de ampliar a edição está afastada do nosso espírito, pois, [...] pensamos que uma tiragem grande se impôs desde logo à mente de Resende” (1998, p. 93). 9 Esse “oficial da casa real” cuidava “da criação dos cavalos castiços e de marca. Também provia e determinava as dúvidas sobre os acontecimentos e lançamentos dos cavalos aos que tinham contia [quantia] ou fazenda a que fossem obrigados a manter cavalo, para com ele servirem na guerra” (DIAS, 2003, p. 645). Fernão da Silveira, à parte o cargo, foi uma espécie de líder ou coordenador dos poetas cortesãos. 10 A comunicação foi apresentada no I Encontro Regional da ABREM, Associação Brasileira de Estudos Medievais, Centro-Oeste, em agosto de 2010 (anais no prelo). 11 Sigo a numeração da edição de 1990-93, de Aida Fernanda Dias. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 75 ou substantivas, quando incide em erro tipográfico (de impressão ou de composição), como nos exemplos: “soes tam namorado” contra “soys tã mao namorado” , “Cãgua” contra “Cãtigua” ou, ainda, “cuydado” contra “coytado” (CASTRO; DIAS, 1977, p. 105-106). Além desse tipo de erro, elencam-se falta de palavras, de sílabas ou de tipos, troca de tipos ou de posição de palavras e/ou utilização de tipo errado (p. 106). Todas essas variantes, ao que tudo indica, não valem para o caso aqui estudado, uma vez que não foi possível o confronto entre os outros exemplares. No entanto, mesmo que elas existam, creio que, no caso dos poemas 55 e 56, o editor Gonçalves Guimarães foi levado a outro tipo de erro – a não observação da questão temática, uma vez que, como se verá, não há ligação entre a esparsa e a cantiga, mesmo que ambas tratem do tema amatório. Na introdução de sua edição do CGGR, Guimarães elenca os vários desafios com que se deparou ao decidir lançar a Compilação. Registra que a grafia da edição princeps foi mantida com o maior escrúpulo e, a não serem manifestos erros tipográficos de caráter meramente esporádico ou que evidentemente acusam lapsos, nada absolutamente modificaríamos sem uma razão de conveniência. Mas é preciso que essa conveniência seja real e não vá de encontro a algum facto, a alguma lei filológica ou alguma regra de gramática. As reproduções de textos antigos feitas sem este critério carecem de valor documental e degeneram em falsificações. (CANCIONEIRO, 191017, p. XII) Alude, então, estritamente às questões das variantes acidentais e substantivas, pois “a leitura de livros antigos tem dificuldades especiais, que se não encontram nos modernos, avultando entre elas as de grafia, que era muito diversa e menos regular que a de hoje. Eram também mais frequentes as imperfeições e gralhas tipográficas”. Para o editor, as causas gerais sobre esses erros podem estar na “variedade dos copistas, que nem sempre compreendiam bem o que copiavam”. (CANCIONEIRO, 1910-17, p. XV). Guimarães não faz referência a outro problema que se apresenta ao editor – o da interpretação desses textos relativamente à temática. Sobre “erros de interpretação”, a única ressalva que faz é à palavra “bacho”, no original, que, depois de várias pesquisas e relação dela com outros termos no poema, deduziu ser Baco; outra teria a ver com o verso “& bem sabeys donde vʃaão”, emendado por “& bem sabeys dondeu ʃãoo” (i.e. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 76 “donde eu sou”). Guimarães confessa que foram estes os dois erros de interpretação que cometeu ao editar o Cancioneiro. Mas, como se verá adiante, registra-se outro engano. Na edição princeps, o poema 55, uma esparsa, aparece no Cancioneiro individual de Fernão da Silveira, poeta identificado no topo das páginas por “Do coudel moor.”. Na folha XXIIII, no canto inferior esquerdo, aparece a esparsa intitulada “Memorial do coudel moor” e, em seguida, na coluna do meio, vem uma cantiga do mesmo poeta, à qual Aida Fernanda Dias apôs o número 56. É o último poema do Coudel-mor, antes de se iniciar o Cancioneiro individual de Álvaro de Brito Pestana. Leiam-se os poemas12: 12 Note-se que estão riscados um poema e o mote de outro, marcas da censura ordenada pela Real Mesa Censória, como consta no Index Avctorvm dãnatae memoriae (1624). De acordo com Aida Fernanda Dias (1998, p. 104-105), os poemas ou versos só puderam ser recuperados devido a restaurações empreendidas ainda à época da censura. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 77 Figura 1. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, edição princeps, folha XXIIII. Disponível em <http://purl.pt/12096> Acesso 10 nov. 2011 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 78 A leitura do Dr. Guimarães diverge do original, já que ele considera os dois poemas um só. Como se pode observar, o título da esparsa mostra-se evidente; a ele, segue-se o poema, fechado pelo pé quebrado13 “que ousadas”. Na cantiga que segue a esparsa, não há título; daí ter o Dr. Guimarães, provavelmente, deduzido ser o poema uma sequência da esparsa, como se pode ver abaixo: Figura 2. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, 1910-17, p. 212 13 Juan del Encina assim define o pé quebrado: “ay outro género de trovar que resulta de los sobredichos [i.e., ‘De lo principal que se requiere para aprender a trovar’, capítulo iiij de sua Arte D’Poesía], que se llama pie quebrado, que es medio pie, así de arte real como de mayor; del arte real son cuatro sílabas o su equivalencia, y este suélese trovar el pie quebrado mezclado con los enteros, y a las veces pasan cinco sílabas por medio pie, y entonces dezimos que va la vna perdida, assí como dixo don Jorge [Manrique?]: como debemos. En el arte mayor quando se parten los pies y van quebrados, nunca suelen mezclarse con los enteros, mas antes todos son quebrados, según parece por muchos villancicos que ay de aquesta arte trovados” (ENCINA, 1984, p. 88). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 79 Parece, então, que o editor foi “ludibriado” pela falta de um título para a cantiga. Mas não somente por esse motivo. Garcia de Resende valeu-se do “caldeirão” – marca de meia-lua que antecedia a primeira linha das didascálias, espécie de título dado ao poema pelo próprio Resende, e dos primeiros versos de cada estrofe. Este fato pode ter contribuído para o engano do estudioso, já que cada caldeirão pode indicar qualquer um dos usos – anteceder um título ou uma estrofe. Além do mais, a repetição do termo “que” no primeiro verso da cantiga, em sequência do pé quebrado, e do advérbio “tal”, talvez tenha contribuído, uma vez mais, para a confusão do Dr. Guimarães. No entanto, o que mais instiga nessa decisão de se juntarem os dois poemas é a questão da temática. Para isso, reproduzo os dois poemas da maneira como fez Aida Fernanda Dias nas suas duas edições. Registre-se que a estudiosa optou por uma modernização da língua, caso não seguido pelo Dr. Guimarães, que declara: “transcrevemos o texto literalmente” (CANCIONEIRO, 1910-17, p. XV), reproduzindo o gótico do original. Essa transcrição literal pode-se observar, por exemplo, na justaposição da preposição “de” ao substantivo “abril” que inicia o poema; a manutenção do “y” e do “j” em vez do “i”; a prevalência do “u” equivalente ao “v”, no interior das palavras 14; a transcrição do “s” longo; a nasalização de “an", representado pelo til sobre o “a”, como na palavra “tãta"; a abreviatura de “vos” (v’) e “que” (com til sobre “q”); entre outros. Leia-se, primeiramente, a esparsa, nas edições de 1970-74 e 1990-93 de Dias: 5 10 D'Abril aos onze dias, cinquenta e oito a era, senti eu quanto é fera a mortal dor de Mancias. Porem quero que saibaes que com suas mortaes dores, nam de jogo aficadas, passei polos Carregaes tam carregado d'amores que ousadas... 14 Com relação a esses dois casos (o “j” e o “u”), observe-se que são resquícios do latim na língua portuguesa em fase de consolidação. António José G. Guimarães (Cancioneiro, 1910-17, p. XIII) assim se manifesta quanto a esse uso: “Vemos assim, por exemplo, a promiscuidade com que se escrevia v ou u, e por outro lado, i, j ou y; mas o arbítrio não ia tão longe como à primeira vista se nos antolha”.. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 80 O poema vem em décima e classifica-se por “esparsa”. Esta forma estrófica caracterizase por ser monostrófica, variando de oito a dezesseis versos, e não apresenta motes – próprios das cantigas e dos vilancetes –, nem “fim”15 – próprio das trovas e das baladas. As esparsas originam-se das coblas esparsas das Leys d’Amors, conforme estudo de Pierre Le Gentil (1949, p. 218-218),16 ou dos madrigais e epigramas, como supõe Massaud Moisés (2004, p. 165), pois nestes e nas esparsas “se condensa um pensamento artisticamente empregado”. Registre-se que, em Portugal, essa forma estrófica nunca ultrapassou treze versos, ao contrário de seu congênere francês, que apresentava até dezesseis versos. Quanto aos temas, servem tanto para a expressão de sentimentos nobres como o amor, quanto para as expressões satíricas. Assim como a cantiga, a esparsa volta a ser cultivada numa época em que os poemas de arte maior despontavam como grande novidade. É possível que isso se explique pelo fato de os poemas de curta extensão serem apropriados ao improviso e à sociabilidade paçã, mas também porque as esparsas trazem em seu bojo, mais especificamente em sua forma, a abertura para expressão de máximas, ditos, exempla etc. A esparsa 55 aqui estudada apresenta um esquema rimático clássico nos quatro primeiros versos - abba; nos outros, o esquema é de rimas misturadas cdecde e parece ter a ver com a intensidade das dores que transporta o enamorado para os Carregaes, topônimo no plural usado não somente para adequar a rima, mas para criar uma paronomásia com o verbo “carregar”, que segue no verso seguinte: tem sentido não de “trazer”, “levar”, mas de “pleno”, “cheio” de amores. É, no entanto, um amor que o faz perder-se. O Coudel-Mor parece ousar, ainda, ao deixar o último verso incompleto: usa um pé quebrado, e a incompletude é marcada pelas reticências.17Ainda quanto ao sistema rimático, Silveira adota a rima interna nos versos cinco e seis, “saibaes/mortaes”, o que parece enfatizar sua vontade de mostrar a intensidade da dor de amar. 15 O “fim” ou “cabo” encerrava uma composição poética com número menor de versos em relação às estrofes anteriores. 16 O estudioso considerava as esparsas “genres mineurs” e aventa a possibilidade de os poetas palacianos terem se inspirado no strambotto italiano (LE GENTIL, 1949, p. 221-222). 17 Registre-se que as reticências, na edição princeps, não são explícitas. Quanto a essa esparsa, escreve Jorge A. Osório (2005, p. 324): “O jogo entre o topónimo conhecido de toda a gente, ‘Carregaes’, e o sintagma ‘carregado d’amores’ pertence ao exercício retórico desta poesia, que trabalhava, no fundo, com um espectro relativamente pequeno de figuras e de vocabulário; por exemplo não avançava para o enriquecimento expressivo da metáfora”. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 81 Classificada como composição de forma fixa, a cantiga constitui-se de mote, de quatro ou cinco versos, e glosa de oito ou dez. Em ambos os casos, a glosa retoma e desenvolve o mote no início, ao longo do poema ou no “fim” (poucos casos). No Compêndio de Garcia de Resende, entretanto, como acontece com a maioria dos poemas selecionados pelo eborense, a variação entre extensão e conteúdo não segue qualquer regra, apesar de a cantiga ser a que mais se aproxima da regularidade. Ao se referir a várias formas poemáticas, à cantiga inclusive, Pierre Le Gentil (1949, p. 75) declara que “dans la Péninsule au XVe. siècle, les classifications ne sont pas toujours aisées à établir”. É assim que, conforme constata o estudioso, a cantiga foi-se alterando de significado entre música e forma poética até atingir a estrutura desenvolvida pelos poetas castelhanos e portugueses do fim da Idade Média, ou, como constata o mesmo estudioso: “on sait que la chanson primitive est définie à la fois par les thèmes qu’elle développe et par les règles téchniques qui determinent ses formes” (LE GENTIL, 1949, p. 75). A origem da cantiga quatrocentista e quinhentista é a poesia trovadoresca provençal e galego-portuguesa, mas apresenta uma curiosidade que a distingue de suas antecessoras: a inversão do fim/cabo para a cabeça do poema, denominado agora “mote”, em que o poeta lança a ideia a ser desenvolvida na glosa. Na cantiga 56, que segue a esparsa, o tema amatório persiste, em forma irregular – um mote com cinco versos, seguido de uma glosa em nona. Nela, Fernão da Silveira vale-se da annominatio, com função antitética, para mostrar a ambiguidade da dama servida: 5 10 Que de tal troca se siga ser de todo meu bem fora, pois me vejo em tanta briga quero vos trocar d’amiga por immiga e por senhora. Immiga pera poder todo meu bem destroir; senhora pera querer, pera amar, pera servir, pera me dar nova briga, pois que vos vi em tal hora. Mas que meus danos consiga, convem trocar-vos d’amiga por immiga e por senhora. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 82 Afora a retórica conceptista, pois quer o poeta ao mesmo tempo ter sua dama por senhora e por amiga, quer tê-la também por inimiga, para poder ver destruído todo o seu bem, ou seja, o seu amor: o “eu-lírico” não encontrará harmonia na amada, que para ele é ambígua, “amiga e immiga”. Usando a enumeratio, enfatizada pela preposição “pera”, define uma senhora tal como a tradição cortesã: aquela que o poeta quer possuir, amar, servir e, para marcar a “coita de amor”, para lhe dar novo desassossego (“briga”). Se na esparsa antecedente o poeta exalta seu sofrimento, na cantiga, a ambiguidade é usada para definir a senhora e mostrar os danos que ela provoca. Contudo, há de se registrar que ao “eu-lírico”, devido à impossibilidade de possuir seu objeto de desejo, interessa mais o sofrimento: nos três últimos versos, declara que, para conseguir seus “danos” – e o ponto fulcral deste sofrimento está no subjuntivo do verbo “conseguir” –, convém trocar a amiga por inimiga e por senhora. Se se atentar para o início do mote da cantiga, o advérbio “tal” remete a algo já dito anteriormente, e este “algo” está ligado a “troca”, ou seja, algo teria sido trocado e o resultado foi estar todo o bem – o querer – fora. Da mesma maneira enigmática que se encerra a esparsa antecedente, o poeta inicia a cantiga, o que pode ter levado o Dr. Gonçalves Guimarães a ver uma conexão entre os dois poemas. Registre-se, ainda, que uma das marcas do CGGR é a irregularidade – manifesta desde as formas e os gêneros, até a temática; daí outro motivo de, possivelmente, o estudioso sentir-se tentado a ver um só poema nessas duas composições. No entanto, nem a temática amorosa nem a irregularidade parecem justificar ver os dois poemas como um só. Tudo isso levado em consideração, levantem-se algumas conclusões. Com relação ao tema, apesar de ambos tratarem da questão amorosa, não existe ligação entre os dois. Na esparsa, o sujeito do sofrimento de amor é o poeta, mas não se sabe quem é o objeto de amor. O poeta confessa que aprendeu o que é a “dor mortal de Macias”, ao comparar seu sofrimento de amor àquele do trovador galego do século XV – muito cultuado pelos poetas palacianos de Espanha e Portugal, menos por sua produção poética que por seu drama amoroso, Macias tornou-se símbolo do amor sofrido e exemplo para os amantes18. Já na cantiga, o sujeito é ainda o poeta, mas o objeto é determinado: a dama 18 Aida Fernanda Dias (1998, p. 809) explica que Macias era representado no Cancionero de Baena e que morrera pela lança do marido da mulher que amava. “Porque amou e serviu lealmente, tornou-se presença obrigatória nos chamados Infernos de amor e o exemplo para todos os fiéis amadores, que ousam algumas Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 83 que ele ama tem personalidade ambígua, por isso é melhor tê-la como inimiga e como senhora – como inimiga, porque ela destrói o bem que é seu amor por ela, e como senhora porque quer amá-la e servi-la. Ante essa ambiguidade, vive o poeta em conflito. Percebe-se, dessa forma, que a cantiga não justifica a esparsa, nem esta serve como mote para a cantiga. Na transcrição de textos antigos, mesmo que embasado em normas filológicas, a leitura é sempre pessoal. De acordo com Lênia Márcia Mongelli (2009, p. XXIX-XXX), esta leitura pessoal pode concordar com ou corrigir edições anteriores, mas sempre com margem variável de erros e de acertos que toda interpretação implica (na pontuação, na atualização de sinais, na grafia das palavras, na reconstituição de versos, na ordenação das estrofes, na atribuição do texto, na identificação de topônimos e citações etc.). Segismundo Spina (2001) esclarece que os instrumentos indispensáveis para a investigação filológica de textos medievais são a codicologia, a paleografia e a diplomática, áreas que um filólogo deve dominar para não incorrer em erros inadmissíveis. Além desses, deve o estudioso ter noções da língua, da literatura e da história da época em que apareceu o documento original. Esclarece, ainda, que: a publicação, porém, do mesmo documento, tendo-se em vista a apuração do seu texto, a busca da sua genuinidade [...], é objeto de uma disciplina denominada Edótica, que, como a História, se fundamenta no método crítico. Entretanto, se a investigação histórica opera com documentos de vária ordem, inclusive os literários, apenas estes últimos constituem o objeto primordial da ciência edótica (MONGELLI, 2001, p. 379). vezes afirmar a força do seu bem-querer superior àquela que viveu e matou o próprio Macías”.. Quanto a essa esparsa, Maria Isabel Morán Cabanas (1996, p. 198) comenta que “o nome de Macías faz parte de uma construção perifrástica que, com valor hiperbólico, refere a doença de amor ou o chamado amor hereos”.. Joaquín González Cuenca, no CGHC, informa que “Macías, ‘el Enamorado’, trovador gallego al servicio de don Enrique de Villena (es su ‘doncel’), se convirtió pronto en continuo objeto de referencia [...] como prototípico mártir de amor y víctima de un marido celoso. A medio camino entre la realidad y la leyenda, antes que el Romanticismo lo consagrara como trágico enamorado, ya lo había hecho la tardía Edad Media [...] no faltando su presencia en las enumeraciones de amantes célebres o infiernos de enamorados, como el de Garci Sánchez de Badajoz. Cantigas suyas como Cativo de miña tristura o Amor cruel e brioso, copiados en cancioneros como el de Baena, son objeto de citas y glosas”. (CANCIONERO General, 2004, p. 19-20, Tomo II). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 84 Não há dúvida de que a leitura de Gonçalves Guimarães é pessoal, assim como a de Fernanda Dias; não se duvida, também, que ambos os editores se valeram dos instrumentos básicos necessários à investigação filológica, como alega Spina, para levar a público suas leituras dos textos que houveram por bem editar. No entanto, creio que Guimarães não levou em conta algo substancial que é a interpretação do texto: no caso desses dois poemas, as divergências entre as consequências do amor, na esparsa, e a ambiguidade da dama servida, na cantiga. No Prefácio da sua edição do CGGR, Guimarães (1910-17, p. XVII) afirma que “por mais atenção que se queria prestar a um trabalho longo, lá vem um momento em que o espírito dormita, dá a sua pendedela, e a obra ressente-se”. Pelo que parece, as “pendedelas” não se restringiram a apenas dois erros de interpretação, como alegava o estudioso e como exposto acima: junta-se aos dois a questão da coerência entre os temas dos textos. Não obstante, se se considerar a esparsa como um poema inacabado, há de se relevar outro fator, ainda que inconclusivo. Uma das novidades do CGGR são esses poemas de formas mistas, como já mencionado. Poderia ser o primeiro poema, a esparsa, parte de um poema maior, e o tema vinculando o primeiro ao segundo poema estaria na parte supostamente omitida? Como escreveu Jorge A. Osório (2005, p. 324) “trata-se claramente de uma trova (sic) inacabada; mas o compilador nada diz sobre a condição do texto”; sendo assim, pode-se pensar que, não tendo Garcia de Resende criado uma didascália para a cantiga – nem mencionado na da esparsa algo como “poema inacabado” 19 – a leitura do Dr. Guimarães talvez não tenha sido de todo injustificada. Referências CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Edição princeps digitalizada. Disponível em: <http://purl.pt/12096>. Acesso em: 04 dez. 2011. _____. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias. Maia: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1990-1993. Volume I. 19 Garcia de Resende primava por registrar nas didascálias, à moda das “razós” provençais, o maior número de informações possível para cada poema compilado. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 85 _____. Nova edição preparada por A. J. Gonçalves Guimarães. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1910-1917. Tomo I. _____. Texto estabelecido, prefaciado e anotado por Álvaro J. da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1973-74. Volume I. CANCIONERO General de Hernando del Castillo. Ed. Joaquín González Cuenca. Madri: Ed. Castalia, 2004, Tomo I-II. DIAS, Aida Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – A Temática. Maia: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. Volume V. _____. Dicionário (Comum, Onomástico e Toponímico). Maia: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. Volume VI. DIAS, Helena Marques; CASTRO, Ivo. A edição de 1516 do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Revista da Faculdade de Letras de Lisboa. IV série, n. 1, Lisboa, 91-125, 1976-1977. Separata. ENCINA, Juan del. Arte de poesía. In: Las poéticas castellanas de la edad media. Ed. Francisco López Estrada. Madri: Taurus, 1984. p. 77-93. LE GENTIL, Pierre. La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du Moyen âge: les thèmes, les genres et les formes. 2 vol. Rennes: Plihon, 1949-52. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004. MONGELLI, Lênia Márcia. Fremosos cantares. Antologia da lírica medieval galegoportuguesa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. XXIX-XXX. MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Mitificação de Macias o Namorado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In: Mitos (Actas del VII Congreso Internacional de la Asociación Española de Semiótica). Universidad de Zaragoza, Zaragoza, 1996. vol. III, p. 195-201. OBRAS de Álvaro de Brito. Edição, introdução e notas por Isabel Almeida. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997. OSÓRIO, Jorge A. Do Cancioneiro “ordenado e emendado” por Garcia de Resende. Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, Porto, Universidade do Porto, II série, v. XXII, 2005. p. 291-355. SPINA, Segismundo. Ecdótica ou Edótica? Edótica ou Crítica Textual. Em:_____. Estudos de Literatura, Filologia e História. Osasco: FIEO, 2001. p. 379. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 86 Antropônimos e Topônimos nas Cantigas de Santa Maria Gladis Massini-Cagliari Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara); CNPq; FAPESP Helena Maria Boschi da Silva Pós-Graduação – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Resumo: Este trabalho realiza um levantamento das ocorrências de topônimos e antropônimos de origem estrangeira nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X (1221-1284), utilizando como corpus a edição de Mettmann (1986-1989). As ocorrências de antropônimos estrangeiros são analisadas de acordo com o sistema fonológico do Português Arcaico delineado por Massini-Cagliari (2005), de modo a verificar o seu grau de adaptação à fonologia da língua de chegada. Palavras-chave: nomes próprios; Cantigas de Santa Maria; fonologia; antropônimos; topônimos. Abstract: This works aims to make a survey of toponyms and anthroponyms of foreign origin in the Alfonso X’s (1211-1284) Cantigas de Santa Maria, considering as corpus Mettmann’s edition (1986-1989). The occurences of foreign anthroponyms are analysed in accordance to Archaic Portuguese phonological system following Massini-Cagliari (2005), in order to verify their adaptation degree to the phonology of the receiving language. Keywords: proper nouns; Cantigas de Santa Maria; phonology; anthroponyms; toponyms. 1. Introdução Este trabalho1 objetivou realizar um levantamento de dados de todas as ocorrências de nomes próprios, dentro das categorias dos topônimos e antropônimos, nas Cantigas de Santa Maria (de agora em diante, CSM), focalizando os nomes de origem estrangeira. Utilizando como corpus de suporte a edição de Mettmann (1986-1989) das Cantigas de 1 Este estudo é resultado de um trabalho de iniciação científica realizado por Helena Maria Boschi da Silva durante o ano de 2010, sob a orientação de Gladis Massini-Cagliari, com o apoio da FAPESP (processo 2010/07316-5). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 87 Santa Maria, bem como o Glossário do mesmo autor, contido na edição de 1972 (publicada pela Universidade de Coimbra), analisamos as ocorrências de antropônimos de acordo com o sistema fonológico do PA delineado por Massini-Cagliari (2005), de modo a verificar o seu grau de adaptação à fonologia da língua de chegada na época. Por narrarem milagres realizados em várias partes da Europa, as CSM possuem diversas referências a lugares e pessoas de outras regiões do continente, configurando-se como um corpus bastante interessante para a análise da realização dos nomes estrangeiros pelos falantes, principalmente por ser metrificado. Sobre isso, Massini-Cagliari (2005, p.19) afirma que porque os textos poéticos metrificados levam em conta o número de sílabas e/ou a localização dos acentos em cada verso, eles acabam por trazer muitas das informações necessárias para uma pesquisa sobre a prosódia de línguas mortas, uma vez que, a partir da observação de como o poeta conta as sílabas (poéticas), pode-se inferir os limites entre as sílabas das palavras e, a partir daí, sua estruturação interna. A produção literária da época histórica aqui focalizada, conhecida como lírica galegoportuguesa, é constituída por cerca de 1680 textos profanos (GONÇALVES; RAMOS, 1985, p.18), registrados em três cancioneiros manuscritos (Cancioneiro da Ajuda - A, Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B e Cancioneiro da Vaticana - V), três fragmentos (da Biblioteca Vaticana - Va, da Biblioteca Municipal do Porto - P e da Biblioteca Nacional de Madri - M), um “rolo” (Pergaminho Vindel - R) e uma lista de nomes dos poetas dos Cancioneiros (“Tavola Colocciana”). Segundo Tavani (1974, p. 46), o patrimônio poético profano é composto de 1685 textos, dos quais 431 seriam cantigas de escárnio e maldizer (cf. LAPA, 1995), 510 de amigo (cf. NUNES, 1973, vol. II) e 735 de amor (cf. NUNES, 1972)2, além das 420 Cantigas de Santa Maria de Afonso X (PARKINSON, 1998a, p. 2 Os números de Lapa e Nunes não correspondem exatamente à soma de Tavani, mas se aproximam dela. Por sua vez, Lapa (1929) conta 2116 composições (a lírica medieval mais rica da Europa, na sua opinião). Sánchez e Zas (2001, p. 12) contam 1680 cantigas de caráter profano e 426 de temática religiosa. Ao contrário de Lapa(1929), Mongelli (2009, p. XXVII) considera “escasso” o corpus galego-português, em comparação com o provençal: “mais ou menos 1664 cantigas”. Já segundo Oliveira (1994, p. 21), em termos numéricos, o conjunto da lírica profana galego-portuguesa soma cerca de 160 autores, que teriam produzido mais de 1700 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 88 189). Já as CSM constituem uma parte representativa desta produção literária, sendo ao todo 4303 poemas musicados de cunho religioso, que ora contam milagres realizados pela Santa (cantigas narrativas, ou de miragre), ora louvam a virgem (cantigas líricas, de loor) (PARKINSON, 1998, p.179). Sobreviveram em quatro códices manuscritos (Códice de Toledo - To, Códice rico de El Escorial - T, Manuscrito de Florença - F e Códice de los músicos de El Escorial – E; cf. Parkinson, 1998, p.180). Para Leão (2007, p. 21), as Cantigas de Santa Maria são “de longe a maior e mais rica coleção produzida nos vernáculos românicos da Idade Média”. 2. Nomes próprios nas CSM Os nomes próprios encontram-se dentro do paradigma dos substantivos, cuja função primordial é a de denominação das diferentes entidades do mundo (coisas, pessoas, acontecimentos, etc.) (NEVES, 2000, p.67). A separação entre os substantivos comuns e os substantivos próprios se dá pelo fato de aqueles terem um caráter mais geral, de denominação de classes de referentes, enquanto os nomes próprios, por outro lado, não são nomes que se aplicam, em geral, a qualquer elemento de uma classe. Fazendo designação individual dos elementos a que se referem, isto é, identificando um referente único com identidade distinta dos demais referentes, eles não evidenciam traços ou marcas de caracterização de uma classe, e não trazem, pois, uma descrição de seus referentes (NEVES, 2000, p.67). Realizamos o levantamento a seguir a partir do glossário de Mettmann (1972). Para as referências dos nomes próprios utilizamos as informações dadas pelo próprio glossário, que complementamos, no caso dos antropônimos, com informações retiradas do Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes de Mansur Guérios (1981). composições, entre cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer, entre o final do século XII até meados do século XIV. 3 430 é o número indicado por Parkinson (1998, p.179). Gonçalves e Ramos (1985, p.18), diferentemente, contabilizam 420 textos. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 89 Nome Abdalla Abel Cantiga.Verso 95.53 4.104 Aben Mafon 183.6 Abiron 240.32 Aboyuçaf, Aboyoef Abran Adan, Adam Adonay Afonso Agostin Aleixi Ali Alis Almançor [Martin] Alvitez Anania, Ananias [Sant’] Andreu Anna Archetecrỹo Arrendaffe Artur Azaria Bartolomeu Basilio, Basillo 169.53; 181.1; 215.7; 323.11 95.13, 86 3.8; 213.101; 240.22; 270.19, 22; 336,48; 363.48; 411.146; 420.8 270.35 2.10, 34; 2.1, 10; 18.80; 142.6; 209.1; 221.15, 21; 229.7; 235.1, 6; 243.13; 257.6, 25; 292.41; 328.31; 345.11; 358.8; 361.12, 16; 367.1; 371.10; 386.1, 10; 393.15, 36; 398.13; 401.1 (To); 413.2 288.2, 17 131.11 358.16, 25 135.136 63.27, 69 316.18, 37 4.84; 215.41 155.24 411.16 23.3 95.56 35.92; 419.132 4.86; 215.42 334.16 15.16, 27, 38, 59, 114, 123, 132 Referência4 Árabe: ʾAbdallah (p.45) Hebraico: Habel (p.45) IM, rei de Niebla (cerca de 1252) * Hebraico: Abirão (“meu (i) pai (ab) é excelso (ram)” (p.46) AbYsuf Ya’q, sultão de Marrocos (1258-1286) * Hebraico: Abrão (p.46) Glossário (pág) 3 3 Hebraico: Adam (p.47) 7 Hebraico: Adonai (p.48) 8 3 3 3 3 Alemão: Alfons, deriv. de *Adalfuns (p.49) 10 Latim: Augustinus, diminutivo de Augustus (p.49) Latim: Aléxis (p.52) Árabe: Áli (p.53) * Árabe: Al Mansur (p.53) * Hebraico: “graça (hanan) de Javé (lah)” (p.57) Grego: Andréas, deriv. de andreios (p.57) Hebraico: Hanah, Hannah (p.57) * * Céltico: Artur (p.63) Hebraico: “Javé (lah) auxiliou (azar)” (p.66) Arameu: “filho (bar) de Tolomeu (Tholmal ou Talmai)” (p.69) Grego: Basíleios, Basílios, deriv. de basileios (p.69) 10 14 15 15 16 17 19 21 21 26 28 29 38 40 40 4 Cf. GUÉRIOS, 1981. As referências com marcadas com “*” são de nomes que não constam no dicionário etimológico, tendo sido utilizadas as informações dadas pelo glossário, quando existentes. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 90 Beatriz 5.7; 256.1, 12; 292.38 [San] Beito 265.53; 304.11 Bernal, Bernalt, Bernaldo 35.102; 35.30, 130, 55 Bonamio 375.25 Bondoudar 165.10 Bonifaz 105.68; 122.43; 236.13 Brutus 35.41 Catelinna 54.68 César [Santa] Cezilla [San] Clemente, Cremente Colistanus Corrade 27.16, 30, 46 89.74 195.92; 115.157 35.40 136.19 Costantin 196.18; 231.15 Cristo, Cristus 51.35; 270.32 Daniel 4.4; 270.31 Datan 240.32 6.3; 14.27; 270.27; 318.7 292.23; 5.182; 115.143; 146.87; 238.62; 245.115; 246.38; 265.101; 404.47 282.13 204.1, 4, 12, 19, 34; 359.16, 43; 398.24 Davi Denis, Dinis Diago [Sanchez] Domingo [Don Gonçalvo] Eanes [de Calatrava] Ebron Elbo Elisabeth, Elisabet Emanuel 205.47 254.26 13.7, 32 1.21, 69.88 4.41; 146.111; 415,7 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Latim: *Beatrix (p.70) 41 São Bento Forma popular portuguesa de Benedito (lat. Benedictus) (p.71) Glossário: Lyon Germânico, Alemão: Bernhard. (p.72) * Encontramos Bonamin: sobrenome italiano, do francês: “bom (bon) amigo (ami)” (p.75) sultão do Egipto e da Síria (1260-1277) * Bonifácio, Latim: Bonifatius, deriv. de *Bonifatus (p.75) bispo de Arrás; San Bonifaz; Pero Bonifaz Latim: Brutus (p.79) * Talvez de Catilina, do latim (p.89) Latim: Caesar (p.90) Cecília, latim: Caecilia (p.89) 41 43 44 45 45 46 56 59 59 Latim: Clemens, Clementis (p.93) 63 * Conrado, Alto-alemão antigo: Chuonnrado, Chuonrat (p.95) Latim: Constantinus, diminutivo de Constante (p.95) Latim: Christus, do grego Christós (p.97) Hebraico: “meu (i) juiz (dan) é Deus (el)” (p.100) * 65 Hebraico: Daud, Dauid (p.100) 88 Sobrenome português arcaico, do francês Denis. Outra forma portuguesa: Dinis (p.101) 94 * 105, 274 Domingos, Latim: Dominicus (p.104) 108 77 79 84 86 88 Patronímico arcaico, do Latim: Iohannis (p.107) * Étimo controverso. Masculino de Elba, abreviatura de nome germânico em alba, ou do Grego: Elbó, ilha da costa do Egito? (p.109) Hebraico: Elishabeh ou Elisheba (p.109) Hebraico: “Deus (El) conosco (emmanu ou imanu)” (p.110) 112 112 113 113 113 91 Erodes, Herodes Eva Faraon Fernando Ficela [Moysy] Fiiz Gabriel 337.33, 38, 46; 403.15; 424.31, 38 40.31; 49.13; 60.2; 180.39; 270.19; 320.3; 340.19; 380.11; 411.92, 152 14.9 122.17; 164.3; 221.1, 11, 31; 256.11; 292.1, 8; 292.61; 71.108; 345.11; 386.10 270.34 35.121; 125.124; 135.146; 353.81 1.15; 88.17; 90.5; 180.63; 210.3, 25; 324.4; 330.8; 349.4; 410.25; 415.1, 5 Garcia 63.21 Garin 41.6 German [Don] Gonçalvo [Eanes de Calatrava] Gondianda Içá Ipocras, Yprocras Ysaya James, [San] James Jeronimo Jeso-Cristo, JhesoCristo, Jhesu-Cristo Jesse Joachin Johan, Johane, Joan, Yoan, Yoane Jordana Jorge, Gorge Joseph Grego: Heródes (p.142) 126 Hebraico: Hawah (p.114) 136 Faraó, Egípcio: Par-a, Per-o (p.118) 139 Espanhol antigo: *Fredenando, Fernando (p.119) 144 Latim: fiscella * 145 * 146 Hebraico: “homem, herói (gueber) de Deus (El)” (p.127) 153 Étimo controverso. Sobrenome Português, de provável origem ibérica. (p.128) * Germanos I, patriarca de Constantinopla 153 153 28.34, 113 205.47 81.20 165.61 88.82 25.181; 70.23; 180.34; 307.7; 415.5; 270.30 26.64; 164.16; 169.34; 253.29 87.34 1.28, 51; 2.58; 13.9; 70.20; 232.5 20.2; 31.8; 411.7 411.15, 20, 36, 52, 61, 100, 123 66.24; 94.121; 138.1, 15, 62, 72; 145.11; 265.1, 10, 87, 98, 107; 272.1; 295.25; 306.17; 381.11; 419.46, 50 131.13 292.2, 86, 96 414.12; 420.19 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 155 Procedência céltica (p.130) Étimo controverso. Visigótico: *Gundisalvo. Latim medieval: Gundisalvus (p.133) * Glossário: Jesus (ARAB. ʽIsâ) * * 155 155 161 162 Isaías, hebraico: Ishaiah (p.147) 164 James, forma inglesa de Jaime. Jaime, deriv. do latim *Jácomus. (p.150) Grego: Hierónymos (p.151) Latim: Iesus, baseado no grego Iesoûs, e Christus, do grego Christós (p.97) Hebraico: Ishai (p.151) 164, 275 165 166 166 Joaquim, hebraico: Ioakhin, Ioaquim (p.151) 166 João, Hebraico Iehohanan, Iohanan (p.151) 166 * Grego: Geórgios (p.152) Hebraico: Iosseph, Iehussef (p.152) 166 166 167 92 Lazaro Leon 22.23; 133.28; 401.21 15.2, 17, 23, 32, 47 61, 71, 97, 108, 156, 165, 183; 27.65 381.32 206.1, 6 Libano 15.160 Judas [Macabeus] Juyão Locaya Locifer Lois Lourenço Lucas [Judas] Macabeus Madalena Mafomete, Mafomat, Mafomet, Mofomete [Simon] Magos Manuel [San] Marçal Marcos Maria, [Ave] Maria, [Reỹa] Maria, [Virgen] Maria Mariame [San] Martin, Martin [Alvitez] Marto 167 Forma portuguesa semi-erudita de Juliano Juliano, latim: Julianus, deriv. de Júlio (p.153) 168 Hebraico: Lazar (p.159) Leão, latim: Leo, Leonis. (p.159) Libânius 170 172 174 2.33 27.6 193.7 377.41, 51 59.93; 264.22 22.23; 133.28; 401.21 1.45; 425.28 28.89, 119; 95.53; 169.64; 192.104; 292.33; 328.7; 329.20; 360.27 238.55 155.64; 165.6; 278.9; 366.2, 20, 51, 65; 371.47; 376.16, 26, 30, 56; 382.57 Manuhel Latim: Judas, do grego Iouda(s) (p.153) 342.16 81.1; 91.3; 134.2; 259.33 133.38; 292.48; 295.25; 381.11; 426.18 16.1, 42; 27.55, 56; 40.4; 42.38; 54.52; 60.22; 62.11; 71.16; 89.54; 93.23, 30; 107.22; 121.30; 185.187; 195.66; 210.5; 321.56; 363.22; 420.3; 421.5; 425.2 169.51 17.70; 245.42; 316.18, 37; 332.58 316.30 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Libânio, latim: Libanius (p.161) Glossário: Leocádia [padroeira de Toledo – Santa Locay’] Dicionário: Leocádio, -a, latim: Leocadius, deriv. de Leucadia ou Leucas (p.160) * Luís, francês: Louis (p.165) Latim: Laurentius (p.164) Latim: abrev. de Lucanus (p.165) Macabeu, hebraico: Makkab, Makkabai (p.167) Hebraico: Mágdala, de maghdal (p.167) 176 176 177 177 177 167, 178 179 Mafamede, derivado do árabe vulgar Mahummádi, genitivo. O mesmo que Maomé. (p.168) 180 * 180, 287 Forma aferesada de Emanuel. (p.170) Emanuel, Hebraico: “Deus (El) conosco (emmanu ou imanu)” (p.110) 185, 186 Manuel I, Imperador de Bizâncio (1143-80) * 186 Latim: Martialis, *Martialus (p.170) 187 Latim: Marcus (p.171) 187 Étimo controverso. Hebraico: Miryám; árabe e etíope: Maryam; adaptação grega de Maryám, antiga forma hebraica. (p.171) 187 Forma árabe de Maria * Forma apocopada de Martino, latim: Martinus (p.172) Martinho, latim: Martinus (p.172) 187 17, 187 187 93 Mateus, Mateu, Matheus [San] Mercuiro Merlin Messias [Don Ponçe de] Minerva [San] Migael, [San] Miguel Misahel Moysen [Ficela] Moysy Musa Nero [San] Nicolas Nuno Octavian [San] Pedro, Pedro [de Sigrar], Pedro de Solarãa 22.13; 59.93; 97.24; 133.38; 144.37; 155.9; 223.15; 251.77; 282.33; 295.24; 313.32; 353.93; 401.16 15.96, 105, 126, 136, 152 108.2, 7, 22, 38, 68, 80 65.107; 71.17; 89.66; 347.3; 383.32 69.66 86.20; 86.16; 419.101; 420.44 4.86; 215.42 270.30 270.34 79.13, 22, 32, 38, 43 67.8; 145.52 345.27, 37 306.16 8.12; 14.2, 14 23, 31, 36; 26.63; 27.51; 66.37; 69.18, 68, 77, 82; 313.32; 359.17, 42; 369.4; 389.2, 17, 40; 401.17; 419.80, 90, 97, 140, 150; 425.53 236.13 Ponç’ / Ponçe [San] Quireze 69.16, 66 289.2, 11, 15 Recessiundo 4.70, 77 2.29 382.61, 66 Reymon, Reimundo 57.39 [Don] Rodrigo 188 Mercúrio, latim: Mercurius (p.176) 193 Personagem da “Demanda do Santo Graal”, alteração de Myrddhir (céltico?) (p.176) 194 Arameu: Meshiha (p.177) 194 Latim: Minerva (p.178) 196 Hebraico: “quem (mikha) é como Deus (El)?” (p.177) Hebraico: Mishael (p.178) Glossário: Moisés Moisés, hebraico: Moseh, proveniente do egípcio ms(w), mesu, mos(e): “criança” (p.179) * Grego: Mousa (p.181) Latim: Nero (p.185) Glossário: Nicolau 196 197 197 145, 198 202 205 313.32 Pero [Bonifaz] Rachel Hebraico: o mesmo que Matias ou Matatias, de Mathathiah. (p.173) 234.16 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 205 Nicolau, grego: Nikólaos (p.186) Latim: Nunnus (p.188) Otaviano, latim: Octavianus (p.192) 208 209 Latim: Petrus (p.199) 227 Forma proclítica e arcaica de Pedro, latim: Petrus. (p.201) Latim: Pontie? (p.204) * * Raquel, hebraico: Rahel (p.210) Recesvinto, rei de Espanha (653-672) * Reymonde de Rocaful personalidade da corte de Afonso X * Raimundo, alto-alemão antigo Raginmund. Latim – português: Reimundus. (p.209) Forma popular de Roderico, germânico: Hrodrik (p.213) 45, 233 239 256 257 260 262 262 267 94 Ruben 411.33 Salome 15.40; 16.1; 425.26 Salamon, Salomon 4.14 Sancha 357.11; 381.15; 398.29 282.13 Sancho 235.58; 316.21 Santiago 26.34, 49, 83; 313.32; 401.17 Siagrio Simeon, Simeon [Pedro] Simon, Simon [Magos] [Santa] Soffia 268 Salomão, hebraico: Shalumun (p.220) 273 180.14; 237.79; 270.27; 382.4 Samuel [Diago] Sanchez Hebraico: “filho (ben) da visão (ru)” (p.216) Hebraico: Shalamith, Shalomit, Salomith (p.220) 2.59 273 Hebraico: “ouvido (shamuh) por Deus (El)” (p.221) Sancho, -a, português-espanhol, do latim: sanctius (p.221) Sobrenome português, em vez de Sânchez, patronímico de Sancho. (p.221) Sancho, -a, português-espanhol, do latim: sanctius (p.221) Português, composto de Santo Iago (Sant’Iago) (p.221) Siagrius, arcebispo de Toledo * 274 274 274 274 275 287 138.75; 417.2, 6, 15 Simeão, hebraico: Shimeun (p.227) 287 238.55; 363.2, 6, 20 400.12 Simão, abrev. de Simeão, Shimeun (p.227) Sofia, grego: Sophia (p.228) Sobrenome português, em vez de Télez, patronímico de Telo, germânico (p.235) Teófilo, grego: Theóphilos (p.236) Forma grecizada, Thomâs, de Tomé, aramaico: To’ma, Ta’ma (p.238) Tomé, aramaico: To’ma, Ta’ma (p.238) 287 290 [Affonso] Telez 205.20, 50 Theophilo [Santo] Tomas, Thomas Tome 3.1, 17, 25, 43 419.63, 105, 110, 115, 130, 152 213.11 299 300 304 304 Quadro 1. Ocorrência de Antropônimos nas CSM. Nome Achelas Acre Africa Aguadalffajara Aguadalquivir Aguadiana Alanquer Alapa Albeza Alcaçar Alcalá Alcanate Cantiga.Verso 222.2, 21 5.40; 9.143; 33.16; 172.6, 23; 383.28, 34, 36 95.37; 265.86; 325.14; 366.10 142.27 143.14; 366.30 273 (I); 224.16; 275.28; 347.11 271.9; 316.1 (F); 310.6 165.11 146.2, 40, 72, 88 246.7 A.16; 124.43 (lugares diferentes) 328.13, 43 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Origem Chelas Glossário (pág) 5 Palestina 7 África 10 Guadalajara Guadalquivir 11 11 Guadiana 11 Alemquer (Lisboa) – um castelo Alepo Albesa (Lérida) Alcázar de San Juan (Ciudad Real) Alcalá de los Gazules (Cádiz) Alcalá de Guadayra (Sevilla) ** al-Qantir, antigo nome de Puerto de 12 12 13 13 13 13 95 Alcaraz Alecante Algarve Algixira Almaria Alquivir 178.1 339.2, 15, 55 42.12; 95.8; 149.18; 175.6; 218.2, 10; 294.16; 386.58 65.72, 101; 145.1, 10; 155.1, 17 A.9; 183.7; 277.7, 11 323.12, 359.29 192.28 143 (14.3?); 292.02? Alvaça 382.48, 63 Alemanna Alexandria Alvarrazin Alverna Andaluzia Arabia Aragon Arcilla Arcos Armenia 191.1, 7 66.12 83.12; 221.13; 235.7; 348.11; 367.19; 398.10 424.18 A.4; 44.7; 64.7; 161.7;169.34; 173.10; 177.10; 382.34 169.66 393.12 115.183 Armenteira 22.10 Arraz Arreixaca Ayamonte Azamor Babilonna 68.22; 105.12; 259.1, 18 169.2, 15, etc. 273.7 271.7 215.41; 427.48 A.12; 199.15; 213.36; 319.24; 213.36; 107.13; 319.24 311.22 371.7 334.16 A.15 224.20, 45, 62 1.25; 111.24; 142.43; 420.27; 424.1, 7, 22, 47 4.7 37.11 25.99; 196.17 209.18; 235.65; 123.10; 209.1 167.6 146.43 35.41; 36.2, 6; 86.11; 226.11; 23.2; 386.3 Badallouce Barçalona Barrameda Beger Beja Beleem Beorges Berria Besanço Bitoira, Bitoria Bolonna Borja Bregonna Bretanna Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Santa Maria Alcarrás (Lérida) Alicante (Espanha) 13 14 Alemanha 14 Alexandria 14 Algarve Algeciras Almeria * Albesa ** Albarracin (Teruel) Auvergne (França) 14 14 16 16 Espanha 20 Arábia 26 Aragão (Espanha) 26 Arcila (Marrocos) Arcos de la Frontera (Cádiz) Armênia Armentières (França) ou Armenteira (Pontevedra, Espanha) ** Arras (França) La arrijaca (bairro de Murcia) (Huelva) Azemmour Babilônia 27 27 28 Badajoz 38 Barcelona Sanlúcar de Barrameda Vejer de la Frontera (Cádiz) Beja (Alemtejo) Belém (Palestina) 40 40 41 42 42 Bourges (França) 43 Viviers (França) Bizâncio (atual Istambul, Turquia) Vitoria 43 43 44 Bolonha (Itália) 44 (Zaragoza) Borgonha 45 46 Bretanha (Inglaterra) 46 17 17 17 28 28 28 38 38 38 96 Bretanna Briançon Burgos Burgos Cadiz, Caliz Calatrava Caldas de Rey Çalé Camela Campa Canete Cantaaria Caorce 135.16; 386.3; 23.2 146.2, 16 122.27; 221.25; 274.5; 292.52; 303.1; 361.1 199.14 328.36, 75, 363.40, 47, 57 205.19, 47 104.41 169.53; 328.32 165.12 215.20 97.8; 162.14 288.12 343.15 Capela 256.11 Carriço 332.12 31.9; 218.36; 227.53; 229.13; 278.23; 301.2, 11 339.20 A.1; 63.26; 180.70; 209.1; 215.61; 221.15, 25; 229.8; 232.18; 235.6, 55, 71, 80; 253.36; 257.15; 361.12; 367.16; 368.16; 398.13 38.20 242.1, 12; 249.2, 7; 252.10; 266.1, 7 48.6; 154.11; 194.5; 235.52; 312.12 15.1, 26 19.43; 169.16; 307.2, 5, 10; 335.17 24.9; 117.3, 7, 32; 148.7, 10; 362.1, 7, 34; 379.21 Carron, Carrion Cartagena Castela Castro Radolfo Castroxeriz Catalonna Cesaira Cezilla Chartes Chincoya Cidad Rodrigo Claraval Clusa Coira Colliure Colonna [Os] Combres Compostela Conca Consogra 185.1, 6, 18, 33, 40, 90 225.9 42.50; 88.11 73.6 323.10, 27; 366.41 112.13 7.30; 14.13 197.12 A.3; 26.64; 367.17 162.29; 256.13 192.1; 192.20 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Bretanha (França) Briançon (França) 46 46 Espanha 47 Burguillos del Cerro (Badajoz) Cádiz (Espanha) Calatrava La Vieja (Ciudad Real) Caldas de Reyes (Pontevedra) Salé (Marrocos) Monte Carmelo ** Campina de Córdova Cañete (Cuenca) Canterbury (Inglaterra) Cahors (França) Capilla (perto de Puebla de Alcocer, Badajoz) ** Carrizo de la Ribera (León) Carrión de los Condes (Palencia, Espanha) Espanha 47 49 50 50 50 Espanha 55 Châteauroux (França) 55 Castrojeriz (Burgos) 55 Catalunha (Espanha) 55 Caesarea (Capadócia) 59 Sicília (Itália) 59 Chartres (França) 60 51 51 51 51 52 52 54 54 54 Chincolla (Villanueva del Arzobispo, Jaen) Ciudad Rodrigo Clairvaux (França) S. Michael de Clusa (Mosteiro perto de Mont Cenis - França) Coria (Sevilla) Collioure (Pyrén.-Orient., França) Colonia (Alemanha) Cumbres de San Bartolomé ou Cumbres Mayores (Huelva) Espanha Cuenca Consuegra (Toledo) 61 61 62 63 64 65 65 66 69 70 74 97 Conturbe Cordova Constantinoble, Constantinobre, Constantinopla 296.11; 82.6; 296.1 A.5; 321.1, 10; 368.11 9.112; 34.6; 28.1, 16; 131.1, 12; 231.1; 405.1, 12; 204.2, 14; 342.2, 15 Cudejo 263.14 Cunnegro 156.36 Daconada 351.1, 7 Damista Darouca Doiro Domas Doura (Dovra) Egipto Elche Elvas Engraterra, Englaterra, Ingraterra Escoça Espanna Estremadura Estremos Evora Exarafe Faaron Fenares Fita Foja Fontebrar Fontefria França 182.43 43.5, 26 245.15; 267.15 9.1, 7; 165.12 35.92, 116 14.9; 422.17, 23; 165.11; 403.11; 422.17, 23 126.1, 5; 133.1, 6; 211.2, 12 213.11, 32, 92; 344.44; 399.1, 13 6.8, 13; 35.37; 85.7; 221.20; 226.1 108.10 2.9, 23; 55.5; 69.10; 95.37; 119.7; 122.16; 169.66; 175.7; 191.28; 217.39; 267.35; 268.36; 348.5; 360.27; 385.11; 386.6.8; 406.41; 198.12; 225.23 18.11; 352.13; 364.39; 368.15; 383.9; 392.28 223.16; 346.1, 10 322.1, 15; 338.1, 10 366.42 183.1, 5; 183.17 142.11 83.65; 318.10 136.2, 13 59.2, 13 365.3, 8 9.27; 16.6; 24.7; 35.13, 35; 38.19; 51.8; 62.7; 91.13; 193.7; 217.1, 13; 253.1; 254.5; 267.100; 268.2, 10; 278.19; 281.5, 46; 362.5, 10; 386.57 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Canterbury Espanha 76 77 Constantinopla (atual Istambul, Turquia) 79 79 Cudón, Bárcena de Cudón ** Cluny (França) Talvez Arconada, perto de Carrión de Los Andes Damiette (Egipto) Daroca (Zaragoza, Espanha) ** Damasco (Síria) Dover (Inglaterra) 86 88 108 108 110 Egito 112 84 85 85 cidade ** vila ** 113 113 Inglaterra 120, 162 Escócia 127 Espanha 130 conceito geográfico que se foi estendendo para sul, à medida que progrediaa Reconquista Alto Alentejo Évora o Aljarafe ou Ajarafe, região nas imediações de Sevilha Faro (Algarve) Henares Hita (Guadalajara, Espanha) Foggia (Itália) Fontevrault (Maine et Loire, França) Fontfroide 136 136 136 136 136 143 147 148 149 149 França 150 98 Frandes Galilea Galiza Gasconna Geen, Jahen Genua, Jenua Gessemani Gormaz Grãada Guimarães Irrael Jherusalen, Jerussalem [Val de] Josaphas, Josafas Laredo Leira Leon Leon Lerida [San Johan de] Leteran Lisbõa, Lixbõa Lombardia [Sam] Luchas Luçẽa Lugo Madride Manssella Marrocos Marsela, Marsella Martos Mayorgas Meca Meçinna Medina Mynno Molina Monpesler, Monpisler, Monpiler 35.110; 128.12; 139.12; 267.31 425.47 104.11; 221.16; 317.6 153.1, 8; 221.22; 341.5; 343.41; 363.5 185.10; A.5 287.1, 7; 379.21 29.9 63.2, 18, 28 185.17, 25, 53, 60; 215.55, 58; 348.41; 366.7; 386.12 238.11; 291.1 4.6; 27.67; 251.106; 417.26 5.22 419.92, 98 244.1, 10; 248.1, 9 237.39 A.2; 180.70; 215.61; 229.7; 235.6; 332.1,12; 398.13 35.15; 255.19; 362.15 168.2, 17 272.1, 12; 306.15 55.18; 222.17; 277.10 293.10; 408.13 371.48 83.21 77.2, 6 289.5; 315.1,7,10,33 335.12; 355.15 169.66; 181.1, 6, 11, 117 236.12, 22; 389.2, 17 215.21 176.1, 6 192.134 69.72 A.15 245.15 179.1, 27 63.78; 98.15; 123.28; 135.130; 235.45; 256.17; 271.14; 318.38 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Flandres (Bélgica) 150 Galileia Galiza 153 153 ** 154 Jaen (Espanha) Genova Gethsemane (Jerusalém) Soria 154, 164 154, 165 155 155 Granada 155 Guimarães, Portugal Israel 159 164 Jerusalém 166 o vale de Josafath 167 Santander Leiria 169 171 o reino de Leão (Espanha) 172 Lyon (França) Lérida (Espanha) S. João de Latrão Lisboa (Portugal) Itália Sanlúcar de Barrameda (Cádiz) Lucena (Córdova, Espanha) Lugo (Espanha) Madrid Mansilla Mayor ou Mansilla de las Mulas (Leon), (ou Mansilla de Burgos) ** Marrocos Marselha (França) Jaén Maiorca Meca Messina (Itália) Medina Sidonia (Espanha) Minho (Portugal) Molina de Aragón (Guadalajara) 172 172 172 175 177 177 177 177 179 Montpellier (França) 198 185 187 187 187 188 189 189 189 197 198 99 Monssarrad, Monssarrat, Montsarrat, Monsarrat 48.2; 48.11; 52.1; 52.10; 57.3, 23, 51; 113.1, 8, 34; 302.1, 7; 311.1, 12, 21, 31 Monssarraz Moriella Moura 223.1, 11 161.1, 7 275.11 A.7; 169.2; 9.36, 43, 56; 239.1, 9; 339.10 129.5 365.4, 9 245.37, 120 A.14, 372.1, 10 386.38 327.8 122.26, 67; 221.27; 303.1; 361.1, 11 344.44 419.42; 426.33 7.56; 221.1, 35, 48, 63 51.8 163.1, 7; 164.36 351.2, 8 35.110; 111.2, 29; 115.145; 134.1, 7; 202.1, 43 87.8 Murça Murvedro Narbona Nevia Nevla [Nevl’] Ocanna Odimira [As] Olgas Olivença [Mont’] Olivete Onna Orlens Osca Palença Paris Pavia Pedra Salze 171.1 Peiteus Pena Cova Perssia Pisa 38.18; 51.9 233.18 15.51; 265.30, 65 105.65; 132.22 127.2, 8; 262.1,7; 341.1, 41, 47; 172.28; 271.42 328.2, 46; 356.1, 6; 357.1, 7; 348.5; 358.1, 7, 38; 359.1; 364.1, 6; 366.1, 52; 367.1, 54; 368.1, 32, 36, 57; 371.1, 3, 11, 37, 53; 372.2, 7; 375.1, 28; 376.37; 377.3, 7, 42; 378.4, 28, 43, 63; 379.1, 5; 381.1, 5, 22; 382.12, 52, 67; 385.1, 26, 38; 389.1, 26; 391.1, 5; 392.1, 10, 22, 41; 393.1, 10, 17; 398.9, 39 95.9; 222.2, 16; 224.1; 235.58; 237.1; 245.15; 267.1, 15; 271.26; 275.28; 316.5; 346.10 Poe, Poi Porto Portugal, Portogal Prado 276.1, 7 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições o santuário de Monserrate (Portugal) 198 Alentejo Morella Alentejo 198 199 200 Múrcia (Espanha) 202 Murviedro (antigo nome de Sagunto) Narbonne Neiva (Viana do Castelo) Niebla (Huelva, Espanha) Ocaña (Toledo) Odemira (Alentejo) 202 203 205 205 209 210 Las Huelgas (Burgos) 211 (Badajoz) o Monte das Oliveiras Oña (Burgos, Espanha) Orleães (França) Huesca Palencia (Espanha) 212 212 214 216 217 220 Paris (França) 222 Pavia (Itália) Pedraza ** Poitiers (França) Peñacoba Pérsia Itália 224 Le Puy en Velay (França) 238 Puerto de Santa Maria (Cádiz) 241 Portugal 241 Prado de la Virgen ** 242 226 227 228 233 234 100 Prazença Proença Pulla Quintanela d’Osonna Rara 144.1, 8 121.5; 241.11; 251.1, 5; 258.6 136.1, 9; 294.1, 7 227.10 308.7 Plasencia 243 a Provença (França) 248 Apúlia Quintanilla de Onsoña (Palencia) Chelles (Seine-et-Marne) Arras (França) ** (Valencia) (Galiza) ** (Galiza) ** 250 256 258 Rocamadour (França) 267 Ródenas, perto de Albarrazin (Teruel) 267 Roma 267 Província do império bizantino Espanha ** 267 268 269 Seixon (Lugo, Espanha), Soissons (França) ** 272, 281, 293 Espanha 272 Huesca (Espanha) 272 Saldaña (Palencia) Salerno (Itália) 273 273 Santiago de Compostela (Espanha) 275 39.6; 86.53 Mont Saint Michel (França) 274 245.12, 21 183.17 distrito de Viana do Castelo nome de Faro (Algarve) 274 275 Raz 122.63 Requena 235.36 Ribadulla 273.32 Ribela 304.1, 8 Rocamador Roenas Roma Romania Ronda Saba Saixon, Seixon, Sansonna, Sosonna, Salamanca Salas Saldanna Salerna San Jame, San James de Compostela San Miguel, San Miguel de Tomba San Salvador da Torre Santa Maria 8.1, 8; 22.38; 147.4, 45; 153.2, 15; 157.1, 6, 27; 158.1, 23, 28; 159.2, 7; 175.8; 214.35; 217.39; 267.27, 102; 343.1, 41 191.1, 7 5.1, 13, 23, 42, 62, 146, 162; 17.2, 8, 10; 65.46; 67.9; 115.31, 137; 145.53; 206.6; 265.56; 272.1, 11; 306.1, 11; 309.1, 6, 10, 16, 20, 36 231.23 359.24 424.16 7.46; 53.1, 6, 17, 33, 42, 46; 41.6; 49.2, 65; 61.6; 91.22; 101.9; 106.25, 32; 298.1, 10, 17, 26; 308.9 116.2, 12, 39; 291.11 43.2, 12; 44.2, 21; 109.1, 20; 114.2, 7, 32, 52; 118.1, 41; 129(?).17, 28, 37; 161.2, 8, 40; 163.2, 18; 164.1, 6; 166.2, 11, 15; 167.1, 12, 20, 27, 32; 168.1, 44; 171.1, 2, 11, 20, 29, 51; 172.1, 13, 21, 28; 173.1, 17; 176.12; 177.2, 31; 178.3, 29; 179.2, 26; 189.1, 7, 27; 247.2, 6, 19; 408.11, 30 234.10 69.73 26.17, 64 Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 258 264 266 266 101 Santander Santaren Sant’ Estevan de Gormaz, Sant’ Estevão [de Gormaz] Santiago Santo Domingo de Silos Saragoça Sardonay [Santa Maria de] Scala Segonça, seguença Segobia, Segovia Sena Sevilla Sigrar [Pedro de] [Santo Domingo de ] Silos Silve 263.13 237.1, 14, 95, 119; 277.38; 334.42; 369.1, 13 63.2, 18, 28 26.1, 21; 175.7, 45; 184.9; 218.21, 31, 35; 253.1, 24, 81; 268.21; 278.4, 20, 40, 44; 367.17; 386.17 233.25; 368.18, 26 118.1, 7 9.1 287.1, 8, 22 383.1, 11, 48 18.12; 31.1, 21; 107.2, 7; 215.65; 276.1; 282.1, 12; 314.1, 9 219.12 A.6; 127.17; 169.36; 227.13; 257.6, 16; 292.2, 33, 52; 323.2, 10, 12; 324.1, 10; 325.19; 328.1, 12; 344.11; 345.8, 33, 66; 347.10; 348.52; 366.6, 15, 20; 371.12, 30; 375.20; 376.11, 15; 378.2, 22, 29; 379.41, 45; 382.29; 385.6, 21; 386.2, 5, 15, 42, 62; 389.10, 15 8.12 233.25; 368.18, 26 325.52 Sopetran 83.11, 30, 65 Sur, Suria 5.107; 9.29; 15. 14, 161; 28.133; 115.176 Suz, Çuz 135.121; 329.77 Tablada Tanjar Tocha 366.40 325.14, 57 289.1, 6, 26; 315.7, 42 A.2; 2.1, 40; 12.1, 7; 65.101; 69.2; 116.54; 122.6; 212.1, 6, 11, 32; 292.76; 318.12; 382.38; 386.16 78.1, 11, 58; 158.23; 175.8, 15, 56, 80; 195.91; 208.1, 10; 253.16 Toledo Tolosa Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições Espanha 275 Vila de Santarem (Portugal) 275 San Esteban de Gormaz (Soria, Espanha) 275 Santiago de Compostela (Espanha) 275 (Burgos) 276 Zaragoza (Espanha) Santuário da Virgem perto de Damasco (Síria) Itália Sigüenza 276 Segóvia (Espanha) 281 Siena 283 Sevilha (Espanha) 286 Sieglar (Alemanha) 227, 287 (Burgos) 276, 287 Silves Abadia perto de Hita (Guadalajara, Espanha) 287 Síria 294 276 277 280 292 Sousse (Tunísia) ** aldeia perto de Sevilha Tânger Atocha 85, 294 294 296 302 Toledo (Espanha) 303 Toulouse (França) 303 102 Tortosa Toscana Touro Trevynno [Serra de] Tudia, Todia Tui Tunez Ucres Valedolide Valença Valverde Venexi Vila-Real Vila-Sirga [Santa Maria] Viso Xerez Xerez de Badallouce 165.1, 17, 25 219.11 291.1, 13, 17; 352.35 232.11 325.1, 21, 42, 76, 90; 326.1, 12; 329.11; 344.1, 9, 12, 18; 347.1, 5, 16, 28, 36, 40 386.38 193.7 205.19 235.2, 87 189.6 98.1, 15 353.23 377.19 31.8, 71; 217.2, 12; 218.1, 5, 38, 62; 227.11, 17, 52; 229.1, 9; 232.3, 31; 234.1, 21; 243.3, 10, 26, 33; 253.2, 38, 41; 268.1, 3(8?), 22, 31, 37; 278.1, 4, 9, 14, 41, 46, 50; 301.1, 6, 32; 313.2, 17, 41, 47, 61, 82; 355.1, 21, 48, 56, 86, 110, 121 352.1, 33 A.14; 124.16; 143.1, 14; 328.12, 41; 345.3, 9, 17, 43, 69, 102, 107; 359.8; 371.7; 374.3, 9; 378.63; 381.2, 7; 382.12; 391.7; 398.10 197.13; 199.15; 319.24 Tartus (Síria) Itália Toro Trevinno (Burgos) 305 306 306 308 Santuário na Serra de Tudia, na parte ocidental da Serra Morena 302, 310 Túy (Pontevedra) * Uclés (Cuenca) Valladolid Valencia (Espanha) Vauvert (Gard, França) Venécia / Venasque (Vaucluse) ** Ciudad Real 310 310 310 312 312 313 316 320 Villalcazar de Sirga (Palencia, Espanha) 320 Santa Maria Viso, perto de Redondela (Pontevedra) 321 Jerez de La Frontera (Cádiz, Espanha) 324 Jerez de los Caballeros (Badajoz) 324 Quadro 2. Ocorrência de topônimos nas CSM. 3. Análise dos dados Como trabalharemos com a fonologia do PA dentro do contexto dos nomes próprios, nosso estudo enfatizou os fenômenos fonológicos intravocabulares, em especial a silabação e a acentuação lexical. Apresentamos nesta seção as “regras” essenciais destes fenômenos, segundo as quais basearemos nossas análises. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 103 Pensando na distribuição dos segmentos na sílaba, temos, para o PA, dezessete possibilidades de sílabas fonéticas, segundo estudo de Biagioni (2002, p.87-88): V (a-mi-go); CV (a-mi-go); CCV (fre-mo-sa); VV (eu); CVV (foi); CVV (mha = miá); CVV (somente ditongos com QU-/GU-: gua-rir); CCVV (prey-to); VC (veer); CVC (a-mor); CVVC (mais); CVVC (somente ditongos com QU-/GU-: qual); CCVC (en-trar); VN (vi-ã); CVN (en-ten-di); CVVN (somente ditongos com QU-/GU-: quan-do); CCVN (gran). Dentre elas, a mais comum é a sílaba do tipo CV, e a sílaba mínima é do tipo V. Partindo dessa distribuição básica, Massini-Cagliari (2005) delineia os padrões e as restrições dentro da estrutura linguística do PA, nos quais se baseia o resumo esquemático do comportamento fonológico intravocabular das sílabas dessa língua, apresentado no quadro 3, abaixo. Margens silábicas Simples Complexo Onset Observações posição intervocálica posição inicial de palavras 1ª posição 2ª posição Restrições - não há; todas as consoantes da língua podem ocorrer - não ocorrem /, e ; - ocorrem somente /p, b, t, d, k, g, f, v/ - ocorrem somente /l, /5 - as sílabas que precedem / e são sempre leves, nunca ditongos; quando esses sons estão no onset da sílaba final, a tônica nunca cai na antepenúltima (ou seja, a palavra nunca é proparoxítona); 6 - a sequência vl não ocorre em início de palavras; - as sequências tl e dl são impossíveis em PA; - o PA não possui ataques silábicos supercomplexos. 5 Conforme observa Massini-Cagliari (2005, p.96), a ocorrência de /l/ na 2ª posição pode ser considerada um “obsoletismo”, uma vez que “a substituição de /l/ por // em clusters era um processo já bastante avançado nessa época do PA, mesmo em discursos mais formais e que se referiam ao universo religioso, como as CSM”. 6 Massini-Cagliari (2006) explica este fato a partir da consideração de /ʎ/ e /ɲ/ como geminadas, na época; desta forma, não poderia haver ditongos antes dessas consoantes uma vez que a posição da semivogal já estaria ocupada pela consoante geminada (que, por definição, ocupa a coda de uma sílaba e o onset da seguinte, ao mesmo tempo); além disso, essas palavras não poderiam ser paroxítonas, uma vez que a penúltima sílaba é pesada (travada pela geminada). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 104 Coda Observações: Sequências vocálicas Crescente Decrescente Ditongo Observações: vogal oral + vogal (V+V) Hiato Acento lexical vogal nasal + vogal (N+V) Simples - somente /l/, /R/, /S/, /N/7 Complexa - não é permitida em PA8 - predominância de sílabas abertas; - podem ocorrer oclusivas em posição de coda em nomes próprios nãogalego-portugueses e latinismos; nesses casos, é necessário averiguar se elas estão de fato sendo pronunciadas na coda, se ocorre a inserção de vogal epentética, ou se ocorre o apagamento da consoante. Restrições - somente duas possibilidades: formados pela vogal i seguida de a ou o ou formados pela vogal u precedida de consoante oclusiva velar (/k/ ou /g/), seguida de a. - nunca ocorrem em posições postônicas no PA; - éu, eu e iu nunca ocorrem em posição pretônica. - grande predominância de ditongos decrescentes; - o ditongo crescente pode ocorrer em sílabas postônicas, ao contrário do decrescente; - “sílabas contendo ditongos decrescentes comportam-se indubitavelmente como pesadas nessa língua (a exemplo do que ocorre com as sílabas travadas por consoante), atraindo para si o acento lexical, quando localizadas na última posição silábica da palavra” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.119). - “quando a segunda vogal de uma seqüência é diferente de /i/ e /u/ e não pode constituir um glide de ditongos decrescentes [...], um hiato é obrigatoriamente formado” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.140); - V (alta) + V forma hiato; - V + V (alta) + C (≠ /S/, incluindo a nasal) forma hiato (Ex: ainda, envayr, sair); - V(alta) + V + V(alta) forma hiato (Ex: liey, enviou, destruyu). Restrições “o acento do PA nunca pode ultrapassar a barreira de três moras, contadas do final para o início da palavra, caindo prioritariamente na segunda mora” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.217). - os padrões canônicos do PA são paroxítonas terminadas em sílaba leve e oxítonas terminadas em sílaba pesada; Observações: - são padrões marginais oxítonas terminadas em sílabas leves, paroxítonas terminadas em sílabas pesadas e proparoxítonas. Quadro 3. Resumo esquemático do comportamento fonológico intravocabular do PA, baseado em MassiniCagliari (2005) 7 Os grafemas correspondentes a essas consoantes são, respectivamente, <l>, <r>, <s, x, z> e <m, n, ~> (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p.100). 8 Apesar de haver três ocorrências mapeadas por estudiosos, Massini-Cagliari (2005, p.101) mostra que apenas uma seria, de fato, problemática, sendo uma evidência única e, portanto, insuficiente da existência de codas complexas no PA. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 105 De acordo com os padrões fonológicos resumidos acima, pudemos concluir que a grande maioria dos nomes próprios encontrados, apesar de estrangeiros, encaixa-se perfeitamente no padrão fonológico do PA e, portanto, não precisa sofrer qualquer processo de adaptação (cf. quadro 4). Abel Aben Mafon Abiron Abran Adan, Adam Afonso (e variações) Agostin Alis Nomes dentro do Padrão Beatriz Fernando Ficela Beito Bernal, Bernalt, Fiiz Bernaldo Bondoudar Gabriel Bonifaz Garcia Lois Lourenço Nero Nuno Macabeus Pedro Madalena Mafomete Pero Ponçe Catelinna Garin Manuel Quireze Cezilla Clemente, Cremente German Manuhel Rachel Gonçalvo Marçal Recessiundo Almançor Corrade Gondianda Maria Alvitez Costantin Mariame Anania, Ananias Cristo9 Martin Salomon Andreu Daniel Ysaya Jeso-Cristo e variações Jesse Reymon, Reymond, Reymundo Rodrigo Samuel Anna Datan Joachin Marto Mateus e variações Archetecro Denis, Dinis Mercuiro Sancho Arrendaffe Artur Azaria Bartolomeu Basillo10 Bonamio Domingo Ebron Elbo Emanuel Eva Faraon Merlin Minerva Migael, Miguel Misahel Moysen Musa Santiago Simeon Simon Soffia Johan(e), Yoan(e) Jordana Jorge Joseph(e) Juyão Leon Locaya 7 Sancha TOTAL: 98 Quadro 4. Antropônimos de origem estrangeira que se encaixam no padrão fonológico do PA. 9 Notar que essa forma trata-se da adaptação portuguesa de Cristus, do latim, que também ocorre no córpus (somente uma vez, assim como este). 10 Embora a forma Basillo varie com Basílio, proparoxítona (e, portanto, um padrão marginal do PA), houve somente uma ocorrência desta, contra seis da outra; portanto, optamos por considerar o nome adaptado à fonologia do PA. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 106 Entretanto, puderam ser mapeados alguns nomes cujo padrão fonológico, por um motivo ou por outro, não se encaixa ao padrão do PA da época. Além disso, contrariando a tendência padrão da época, não sofrem adaptações gráficas (e nem provavelmente fonológicas, uma vez que a forma gráfica adotada não traz pistas nesse sentido). Entre os nomes que “escapam” ao padrão acentual do PA, foram mapeados os seguintes proparoxítonos: Basilio, Jeronimo, Lazaro, Locifer e Theophilo. Também não se enquadram ao padrão acentual vigente na época os seguintes paroxítonos terminados em sílaba pesada: Cesar, Cristus, Eanes, Erodes/Herodes, James, Judas, Lucas, Marcos, Messias, Sanchez e Telez. A terceira pauta acentual marginal apresentada pelos antropônimos estrangeiros mapeados corresponde aos oxítonos terminados em sílaba leve: Aleixi, Ali, Davi, Içá, Moysy, Salome e Tome. Outros antropônimos mapeados apresentam irregularidades, se vistos a partir da ótica dos padrões mais recorrentes da fonologia do PA, na silabação: Abdalla, Aboyuçaf, Diag, Elisabeth/Elisabet e Octavian. Todos esses nomes apresentam uma consoante oclusiva na posição de travamento silábico – padrão não permitido em PA. Foram mapeados, também, alguns casos sobre os quais não foi possível decidir com certeza a sua realização fonética, principalmente em relação à sua pauta prosódica. Dentre eles, podem ser citados: Abiron, Libano, Nicolas, Ruben, Siagrio e Yprocras, que, por ocorrerem somente uma vez no corpus e fora da posição de rima, não conseguimos determinar a localização do acento, de forma que a análise tornou-se inviável. E, por fim, também houve casos que, embora bastante minoritários, levantam uma questão importante para este trabalho: em que medida os usos estilísticos, próprios da literatura, poderiam afetar as análises dos dados? Os casos mais expressivos desse dilema são os nomes Brutus e Colistanus, que, por serem derivados do latim, esperaríamos encontrar uma realização paroxítona no PA, mas aparecem rimando entre si como oxítonos na cantiga 35: Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 107 “Dun mercador que avia | per nome Colistanus, que os levass’ a Bretanna, | a que pobrou rei Brutus; e entrou y tanta gente | que non cabian y chus,” (CSM 35.40-2) A escansão dos versos, todos heptassílabos, e o fato de rimarem com o monossílabo tônico chus, não deixa dúvidas em relação ao acento na sílaba final. Mas não conseguimos afirmar com certeza se se trata, realmente, de uma realização oxítona, que estaria dentro do padrão fonológico do PA por ser a sílaba final de ambos os nomes pesada, ou se se trata somente de um uso estilístico do trovador que compôs a cantiga, com a finalidade de manter a rima. Conclusão Este trabalho realizou um levantamento de todas as ocorrências de nomes próprios, dentro das categorias dos topônimos e antropônimos, nas Cantigas de Santa Maria, a partir da edição de Mettmann (1986-1989) e do seu Glossário de 1972. Partindo desses dados, foram feitas análises de todas as ocorrências de antropônimos de acordo com o sistema fonológico do PA delineado por Massini-Cagliari (2005). O estudo contabilizou 98 nomes considerados adaptados à fonologia do PA, ou seja, 71,53% do total de dados analisados. Assim, como um resultado geral das análises realizadas, pudemos perceber que a maior parte dos nomes encontra-se adaptada aos padrões do sistema fonológico do PA. Pelo que se pode depreender do pequeno recorte de material analisado neste artigo, pode-se ver que o estudo de nomes próprios constitui-se em um domínio bastante promissor, em termos da investigação da identidade fonológica de uma língua. Especificamente com Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 108 relação aos nomes analisados neste trabalho, percebe-se que o grau de adaptação de antropônimos estrangeiros na época do PA pode ser considerado bastante acentuado. 11 Referências BIAGIONI, A. B. A sílaba em português arcaico. 2002. Dissertação (Mestrado em Lingüística)-Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, Araraquara, 2002. GONÇALVES, E.; RAMOS, M. A. A lírica galego-portuguesa (textos escolhidos). 2. ed. Lisboa: Editorial Comunicação, 1985. GUÉRIOS, R. F. M. Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes. 3ª edição, revista e aumentada. São Paulo: Editora Ave Maria Ltda., 1981. LAPA, M. R. Das origens da poesia lírica em Portugal na Idade-Média. Lisboa: edição do autor, 1929. _____. Cantigas d'escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais portugueses. 3. ed. ilustrada. Lisboa: João Sá da Costa, 1995. 1. ed.: 1965. LEÃO, Â. V. Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio: aspectos culturais e literários. 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Loans and foreign first names as clues to Phonological Identity in Brazilian Portuguese. In: HORNSBY, D. (ed.) Interfaces in language 2. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars, 2011. p. 53-67. METTMANN, W. Glossário. In: AFONSO X, O SÁBIO. Cantigas de Santa Maria. Coimbra: Universidade, 1972. v. IV: Glossário. _____. (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 1 a 100): Alfonso X, el Sabio. Madrid: Castalia, 1986. _____. (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 101 a 260): Alfonso X, el Sabio. Madrid: Castalia, 1988. _____. (Ed.). Cantigas de Santa María (cantigas 261 a 427): Alfonso X, el Sabio. Madrid: Castalia, 1989. MONGELLI, L. M. Fremosos Cantares. Antologia da Lírica Medieval Galego-Portuguesa. São Paulo: Mortins Fontes, 2009. NEVES, M. H. de M. Gramática de usos do Português. 5ª reimpressão. São Paulo: Editora UNESP, 2000. NUNES, J. J. Cantigas de amor dos trovadores galego-portugueses: Nova edição. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972. 1. ed. 1932. _____. 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Da crônica que trata da sua vida e dos seus feitos, de autor anônimo, foi feita uma edição crítica por Adelino de Almeida Calado, publicada em 1991, por ordem da Universidade de Coimbra. Pretendemos, com base nessa edição e após acompanhar-lhe o processo de editoração, estabelecer reflexões sobre a obra, analisando-a tendo em vista principalmente o perfil de cavaleiro (quase) perfeito que nela é construído. Palavras-chave: Crônica senhorial; Biografia; Baixa Idade Média; Edição crítica; Cavalaria cristã. Résumé: Nun´Álvares Pereira (1360-1431), grâce au rôle décisif qu´il joua dans la fondation de la dinastie d´Avis, représente une des plus emblématiques figures de l´histoire du Portugal tardo-médiéval. À partir d´une chronique anonyme qui dépeint la vie et les faits de Nun´Álvares, Adelino Calado établit, en 1991, une édition critique publiée avec le concours de l´Université de Coimbra. Ayant comme base cette même édition dont nous avons accompagné les démarches du travail éditorial, nous en proposons une étude, surtout tout en reflechissant sur les traits du profil de chevalier (quasiment) parfait y ébauchés. Mots-clés : Chronique seigneuriale; Biographie; Bas Moyen Age ; Edition critique ; Chevalerie ; Héroïcité; Religiosité. 1. Introdução Uma das mais importantes publicações de fontes primárias medievas nas últimas décadas foi, sem dúvida, a Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra, título dado por Adelino de Almeida Calado à cuidadosa edição crítica por ele preparada da Coronica do Condestabre, acompanhada de elucidativas Introdução e Notas, além de Glossário, e publicada em Coimbra, por ordem da Universidade de Coimbra, em 1991. Já no Prefácio, também de sua autoria, o filólogo destaca a “singularidade e interesse da Coronica no plano da historiografia medieval portuguesa” (CALADO, 1991, p. V). Indubitavelmente, o fato de retratar a vida e os feitos do Condestável, sendo disto a Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 111 fonte mais recuada que chegou aos nossos dias, já por si justificaria tal avaliação. Isto porque Nun’Álvares Pereira, que viveu de 1360 a 1431, foi o principal esteio do Mestre de Avis na Revolução de 1383-1385, que livrou Portugal de um iminente domínio castelhano e resultou no advento da fecunda Dinastia de Avis, sob a qual deu-se a expansão ultramarina. E dele se originou a Casa de Bragança, cujos descendentes ocupariam mais tarde o trono português e seriam titulares de outras prestigiosas coroas européias – fato enaltecido no frontispício da edição princeps da obra (1526) pelo editor e que, inclusive, justificaria a sua publicação. As referências a ela feitas pelos cronistas quatrocentistas indicam ter a obra existido em manuscrito provavelmente escrito não muito depois da morte do Condestável, ocorrida em 1 de abril de 1431. Fernão Lopes aproveita-o, ao manuscrito original ou a uma sua cópia imediata, quase que totalmente nas crônicas de D. Fernando e de D. João I – mesmo que por vezes criticando essa fonte, dando-lhe uma redação diferente mas de igual conteúdo, ou eliminando-lhe ou acrescenta-lhe algumas passagens; embora indicando haver mais de uma versão dos feitos do Condestável, mostra, via de regra, a sua preferência por esta. E Gomes Eanes de Zurara (1841, p. 4), na Cronica da conquista de Guiné, a ela se refere como narrativa autônoma dos feitos de Nun’Álvares, escrita “apartadamente” das “geeraaes cronicas dos rex”. Mas nenhum manuscrito da obra perdurou, embora, pelo cotejo entre passagens da edição princeps de 1526 e da Crônica de D. João I de Fernão Lopes, possamos aferir que acréscimos foram feitos ao manuscrito original, concernentes aos títulos nobiliárquicos concedidos aos descendentes de Nun’Álvares antes da sua escrita, em 1422, ou após esta, a partir de 1451. Foi elaborado, ao que tudo indica, na década de 1430; e nele teriam sido feitas interpolações entre 1461 e 1481, do que resultaria o manuscrito usado por Germão Gualharde na edição de 1526. Calado aventa como hipóteses para o seu desaparecimento o ter sido então suplantado em qualidade pela edição especial pergaminácia ou haver-se degradado no processo de impressão, já que na tipografia eram os manuscritos “desmembrados em cadernos ou conjuntos de folhas distribuídos por vários oficiais para serem compostos simultaneamente” (CALADO, 1991, p. LXXI). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 112 Diversos especialistas tendem a situar a redação da obra no período que corre de 1431 a 1443, respectivamente o ano em que faleceu o Condestável e a data referida por Fernão Lopes como sendo a da escrita do capítulo CLXIII da Crônica de D. João I, parte primeira, na qual muitos trechos da biografia são transcritos. Este cronista é quem testemunha, aliás, nada ter sido escrito sobre Nun’Álvares enquanto o mesmo vivia (LOPES, p. 56). Já Calado, abandonando outras hipóteses relacionadas com um sermão e com o processo de canonização de Nuno Álvares, observa, como já o fizera Salvador Dias Arnault (1951, p. 150; nota), que já na Crônica de D. Fernando, escrita antes da de D. João I, a partir de 1436, o cronista se aproveitara largamente de passagens da biografia do condestável. Daí considerar 1436, e não 1443, como data finalizadora da escrita da Estória de Nuno Álvares. A obra é anônima, muito embora rios de tinta tenham corrido no passar dos tempos até chegar-se a tal conclusão. A atribuição de autoria da obra a Fernão Lopes foi uma hipótese derrubada por Hernâni Cidade (1931), seguido por outros especialistas como Costa Pimpão (1959) e Machado de Faria (1972). Não apenas a superioridade estilística de Fernão Lopes, defendida por Cidade, mas também a atitude diferente diante dos fatos distanciam o cronista do anônimo escritor da biografia de Nuno Álvares, além de que D. Duarte o encarregou de escrever a história dos reis, não de fidalgos. Também outras hipóteses de autoria não têm consistência, como por exemplo a sua atribuição a Gil Airas (escrivão da puridade do Condestável), a um outro seu servidor (talvez militar) e a um frade carmelita. A individualidade do autor anônimo – apesar de Fernão Lopes se referir a ele no plural, mas fazendo-o também em relação a Pero López de Ayala – pode ser comprovada, como defende Calado (1991, p. LXXXII), na uniformidade do estilo singelo, desataviado de ornamentos retóricos, direto; nos processos narrativos e na obediência a um plano baseado na lógica e na ordem cronológica dos acontecimentos, recolhidos das fontes narrativas e documentais. Tais características da obra, portadora ainda de vocabulário rico e adequado, indicam que o seu autor possuía uma certa cultura literária, embora não livresca, já que não há nela referências a fontes literárias bíblicas ou clássicas. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 113 Essa individuação pode ser entrevista inclusive na autorreferência feita pelo autor através da primeira pessoa do singular – pode-se considerar que, quando usa a primeira pessoa do plural, busca associar autor / texto / leitor; e quando usa a terceira, objetiva a impessoalidade. O destaque que é dado na obra a feitos militares, no entanto, não prova ser o autor um especialista na arte bélica. Nem muito menos um clérigo, sendo o lado religioso do Condestável nela menos acentuado que o militar. Ao que tudo indica, não seria sequer uma testemunha presencial dos acontecimentos que narra, que abrangem 58 anos, de 1373 a 1431, descritos com pormenores que o autor não poderia ter de todo acompanhado. Foi sim, incontestavelmente, um profundo admirador do biografado, destacando-lhe mais as virtudes de cavaleiro que as do santo cujo modelo é Galaaz, sem no entanto deixar de assumir uma visão providencialista da história em que os sucessos bélicos (e outros) se imputam à intervenção divina. Também é indiscutível o seu exaltado nacionalismo, demonstrado na expressão recorrente “verdadeiros portugueses”, em oposição aos partidários de Castela. Acrescentaríamos que o autor não apenas elogia o Condestável, mas não perde nenhuma oportunidade para colocá-lo como vítima da inveja e da maledicência dos seus pares, ainda que parentes – o que, no campo das possibilidades, poderia fazer-nos acreditar ser ele não nobre, ou pelo menos não pertencente à ala fidalga contrária ao seu herói. E, se não é imparcial, devido ao seu nacionalismo, crença religiosa e veneração pelo Condestável, no entanto, a raridade de cópias produzidas, cujo desaparecimento foi inevitável, indica ter sido a elaboração da obra fruto mais de “um esforço pessoal digno de admiração”, do que de engajamento partidário (CALADO, 1991, p. C). Enfim, escrita imediatamente após a morte do fidalgo, o seu valor decorre também do fato de, em versão impressa, ser a “única crónica biográfica senhorial chegada ao nosso tempo”, como destaca Teresa Amado, ocupando “lugar excepcional” na literatura portuguesa (AMADO, 1993, p. 187). Inclusive por ter servido de fonte ao genial cronista-mor Fernão Lopes, que, nas crônicas de D. Fernando e de D. João I, “só não usou oito dos oitenta capítulos que a compõem” (AMADO, 1993, p. 187); embora Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 114 Lopes indique a existência de outras fontes escritas sobre o Condestável, nenhuma seria tão completa, “se acreditarmos que foi justo o critério que o levou a dar-lhe primazia” (AMADO, 1993, p. 187). Mas tal obra, cujo valor historiográfio e literário tem sido reconhecido pela crítica especializada, careceu por muito tempo de uma edição crítica. Como acentua Calado (1991, p. V), “continuava a não existir uma edição que em rigor pudesse chamar-se de crítica, pelo que os estudiosos não dispunham de um texto seguro para utilização nas suas vertentes de documento histórico e de peça literária e linguística”; daí ter-se ele dedicado à fixação do texto, enfrentando os problemas relativos às edições conhecidas da obra, bem como os suscitados pelo próprio texto, pois “a chamada Coronica do Condestabre continuava a ser menos conhecida do que merecia” (CALADO, 1991, p. V). 2. As edições quinhentistas A primeira edição, de 1526, foi impressa pela oficina de Germão Gualharde, em Lisboa. Mendes dos Remédios (1911) levantou a hipótese da existência de uma edição anterior tendo por base a seguinte informação do (sub)título, relativa ao modo de estabelecimento do texto: “sem mudar da antiguidade de suas palauras nem stillo”. Mas, conforme demonstrou António Machado de Faria (1972), o desconhecimento do manuscrito ou de outra edição anterior tornam inconsistente tal hipótese. E Calado (1991) conclui ser a edição de 1526 a primeira, já que seria “extremamente improvável” uma impressão anterior e na obra não ocorre nenhuma referência a tal possibilidade. Observa, ainda, a “confusão entre redação e edição”, que teria levado Mendes dos Remédios a nela pensar (CALADO, 1991, p. X-XI). Calado, inclusive, após observar minúcias das características materiais dessa primeira edição – como as concernentes à xilogravura, ao estilo caligráfico, à grafia, ao caracteres góticos utilizados e ao formato harmonioso, que lhe imprimem sobriedade e dignidade –, passa a discutir as condições da imprensa e do mercado livreiro em Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 115 Portugal à época. Então, os livros mais vendidos eram os religiosos, os didáticos, os jurídicos, as novelas de cavalaria, as hagiografias e a história clássica, de recente aparição nesse mercado. Seria, pois, não lucrativa a edição da biografia de um herói nacional, sendo de estranhar que, apesar disso, fosse elaborada e publicada não apenas em papel, mas também em pergaminho, ao mesmo tempo. Além do mais, em 1554 o próprio Germão Galharde faria uma segunda edição da obra, o que indica não ter tido ele prejuízo com o empreendimento. Uma das hipóteses levantadas é a de que o duque de Bragança à época (1526), D. Jaime (1479-1532), fornecera subsídios ao editor para livrá-lo de prejuízo. Isto porque, como se destaca no (sub)título, o Condestável Nuno Álvares Pereira foi o “principiador da casa q agora he do Duque de Bragãça”; a este, logicamente, interessaria divulgar a biografia com os grandes feitos do seu antepassado. E mesmo que não tivesse partido de D. Jaime a iniciativa da publicação, uma outra hipótese é que poderia, pelo menos, ter fornecido ao editor o manuscrito em que a edição se baseara, “eventualmente existente nos arquivos” da casa ducal (CALADO, 1991, p. XXVII). O certo é que Galharde não apenas publicou uma segunda edição da obra, mas, um ano após o primeiro investimento, em 1527, a biografia de outro vulto nacional – a Cronica do sancto, e virtuoso Iffante dom Fernando, filho de D. João I. Da edição princeps de 1526 só se conhecem hoje dois volumes em Portugal: um impresso em pergaminho, pertença da Biblioteca Nacional, e outro em papel, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Ao que parece, Galharde ter-se-ia baseado em um manuscrito bem conservado, pois não se notam no texto impresso vestígios de lacunas nem truncagens de capítulos, nem saltos na narrativa que denunciem falta de folhas ou folhas rasgadas. Por outro lado, o manuscrito seria bastante legível para um vulgar compositor tipográfico, pois as dificuldades de interpretação detectáveis situam-se na área dos nomes de pessoas e de lugares, e podem atribuir-se inclusivamente ao copista do próprio manuscrito (CALADO, 1991, p. XXX). As características da edição indicam que Galharde, francês de origem e estabelecido como impressor em Lisboa em 1519, teria tido um auxiliar acadêmico no processo de Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 116 editoração – alguém com competência linguística, cujo trabalho culminaria na revisão das provas. Como observa Calado, essa presença é possivelmente atestada pelo subtil equilíbrio entre a manutenção de formas já então arcaicas e a modernização gráfica de algumas outras que poderão ter parecido tão semelhantes no sentido e no uso ainda corrente, que pouco sofreriam com uma ligeira ‘actualização’. Esse trabalho não seria fácil para um estrangeiro fixado em Portugal cerca de sete anos antes (CALADO, 1991, p. XXXI). Portanto, o impressor, até hoje respeitado, diante desse êxito editorial e da permanência do interesse pela figura do Condestável levaria a cabo a segunda edição da obra, publicada em 1554. Sua semelhança material com a princeps é evidente no formato, no número de fólios – cada um com duas colunas onde se busca a coincidência também do texto –, na letra gótica de forma utilizada, nos títulos-ementas dos capítulos – iniciados por capitais decoradas –, na utilização da gravura representativa do Condestável com traje de cavaleiro armado. Mas acrescenta outra gravura do Condestável, como religioso carmelita em gesto de oração. Também a página do título é modificada ao gosto da época e atualizada, com acréscimo da referência aos descendentes ilustres da Casa de Bragança em 1554, como o rei D. João III de Portugal e o imperador Carlos V. Observa ainda Calado (1991, p. XXXII-XLI), dentre outros aspectos, que esta segunda edição não apresenta nenhum aperfeiçoamento no aspecto gráfico – antes, ao contrário, parece ter utilizado caracteres já gastos; e as capitais são menos ornadas e de tamanho irregular. Quanto ao texto, constatou que foram mantidos muitos dos erros e dúvidas da primeira edição; e quando se buscou consertá-los, novas falhas foram por vezes acrescentadas. Ao que tudo indica, não se procedeu à colação de textos, utilizando-se tão somente a primeira edição. E a integralidade do texto relativamente à primeira edição, bem como a ausência de rasuras, indicam que, embora publicado em plena vigência da censura inquisitorial, não sofreu-lhe sanções, talvez pelo caráter exemplarmente piedoso atribuído ao Condestável. Noticia ainda Calado (1991, p. XLI) que dela poucos exemplares podem ser encontrados – são referidos dois na Biblioteca Nacional, um no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, um na Biblioteca da Ajuda e um em Estugarda. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 117 3. As edições posteriores A terceira edição da obra surgiu em 1623, publicada em Lisboa por António Álvares, impressor e comerciante de livros. Apresenta pequenas modificações em relação à de 1554, que lhe serviu de base, dentre elas a substituição dos caracteres góticos pelos redondos, ligeiras alterações na grafia, um parecer do jesuíta Doutor Baltasar Álvares, censor da Inquisição, bem como autorização para impressão, taxação, dedicatória redundante e convencional ao Duque e colofon – em que fica claro inclusive que a edição foi feita única e exclusivamente às espensas do editor. Escrita no período da dominação filipina, inscreve-se no rol das obras que buscaram manter bem acesa a chama do nacionalismo – por exemplo, também Francisco Rodrigues Lobo publicara, à época, um poema épico sobre o Condestável, com segunda edição de 1627. A quarta edição remonta a 1848, publicada no Porto pela Tipografia Constitucional com características materiais típicas de meados do século XIX, bem diversas das edições anteriores: formato 16cm X 23cm, mancha única por página, etc. Na Advertencia apresenta, segundo Calado (1991, p. XLVIII), uma informação incorreta: a de que apresentaria uma gravura do Condestável conforme a edição latina de 1723, elaborada por António Rodrigues da Costa, mas inexistente nos exemplares consultados por Calado (1991, p. XLVIII). 1 A quinta edição foi feita por Mendes dos Remédios em Coimbra, 1911. Ao que tudo indica, tomou por base a edição de 1526, através do exemplar da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, inclusive reproduzindo desta a página do título e o retrato do Condestável. Desconhecia a edição de 1554, pois se refere à de 1623 como a seguinte àquela (CALADO, 1991, p. XLIX). No Prefácio, levanta a inconsistente hipótese, já referida, da existência de uma edição anterior à de 1526; e estabelece comparações entre a obra e a Choronica do Infante Santo D. Fernando, também por ele editada anteriormente, concluíndo que a Coronica 1 Calado observa que foi esta quarta edição a declaradamente utilizada como fonte por Oliveira Martins para A vida de Nun’Álvares Pereira (CALADO,1991, p. XLVIII). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 118 do Condestabre teria sido escrita à época do biografado ou imediatamente após a sua morte. Para reforçar tal idéia, refere-se ao aproveitamento por Fernão Lopes de partes da biografia. E, ainda, a obras posteriores que a tiveram por base. Não possui notas, mas um “Vocabulário” anexo, “um misto de glossário e índice toponímico” não aprofundado, mas útil e bem fundamentado, na avaliação de Calado (1991, p. L); e fala da sua intenção de fidelidade ao texto da edição de base. Da mesma forma que as edições anteriores, dela se conhecem raros exemplares. Entre essa quinta edição e a próxima, em 1969, comemorando a inauguração das suas novas instalações, a Biblioteca Nacional fez uma reimpressão fac-similada da primeira edição em pergaminho de sua propriedade. Inclusive a cor e o desenho da encadernação fazem-lhe jus. A sexta edição foi efetivada em 1972 por António Machado de Faria, membro da Academia Portuguesa de História. Contém introdução – em que se ocupa dos problemas textuais e apresenta, de forma integral, as passagens da obra aproveitadas por Fernão Lopes –, glossário, índice onomástico e índice toponímico. Segundo Calado (1991, p. LII), o bom nível da Introdução contrasta sensivelmente com a, a seu ver, desastrosa transcrição modernizada do texto de 1526, objetivando alcançar um público vasto, não erudito. Nela procedeu-se à supressão de casos típicos da grafia do século XV, ao acréscimo de outros omitidos sistematicamente pelo original, à acentuação exagerada ou à pontuação equivocada, sem solucionar os erros e lacunas da edição princeps, mesmo os indicados pela edição de 1554. Daí colocar-se “algures entre uma exigente edição crítica e uma edição decididamente modernizada”, quedando-se “num ponto intermédio para o qual não há nenhum público definido” (CALADO, 1991, p. LII). 4. A última edição A sétima edição, efetivada por Adelino de Almeida Calado e publicada em 1991, como ele próprio defende é a única edição crítica da obra no sentido em que esta é entendida Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 119 modernamente: busca respeitar as formas vocabulares arcaicas, proceder à transcrição fidedigna do texto, facilitar a sua leitura e compreensão mas baseando-se em acurado estudo visando a reconstituição e aperfeiçoamento do original, para o que concorre a colação com outras edições. Neste sentido, serviu-se Calado, à falta do manuscrito de base, da edição impressa mais antiga, a princeps, de 1526, buscando sanar-lhe as gralhas e flutuações gráficas, a coexistência de formas arcaicas e modernas, indicativas de falta de rigor filológico na transcrição. A edição princeps já desde o título indicava, como vimos, haver respeitado a “antiguidade” das palavras e estilo da cópia manuscrita possivelmente do último quartel do século XV, cujo original teria sido redigido entre 1431 e 1436 (CALADO, 1991). Se a grafia de algumas palavras já se encontra modernizada, semelhante à da outra, já referida, publicação coeva do mesmo editor, no geral o texto “conservou provas genuínas do seu arcaísmo” (CALADO, 1991, p. CXLV) – exemplos: termos como aadur, terminações –om e -ees, formas verbais como anojedes (d intervocálico) e sabudo (terminação -udo). São detectadas principalmente nos discursos diretos, o que aponta para a maior antiguidade das fontes dos mesmos. Apresenta alguns castelhanismos, em termos que não eram comuns aos dois idiomas (português e castelhano) à época da redação do texto. Dado que o autor da obra, no correr da mesma, firma o seu nacionalismo extremado – por exemplo através da recorrente expressão “verdadeiro português” –, é possível que se tratem de formas espúrias, devidas ao compositor tipográfico ou ao revisor de provas. Por esse motivo, na sua edição crítica Calado substituiu essas formas pelas correspondentes em português. No geral, a linguagem utilizada apresenta pobreza de vocabulário, com repetições e redundâncias para o alcance da clareza de expressão, com a finalidade de passar ao leitor de forma mais precisa os acontecimentos. Calado testemunha que raramente teve de intervir com um esclarecimento em nota para tornar o texto mais compreensível. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 120 Alguns processos recorrentes de construção e encadeamento de frases podem ser encontrados em outros textos em prosa da época, como por exemplo os de Fernão Lopes – exemplos: frases iniciadas pela copulativa E, anteposição dos complementos do sujeito e do predicado, uso do gerúndio e do ablativo, etc. Ao fixar o texto, Calado corrigiu, quando necessário para a compreensão, o discurso indireto, frequentemente usado, e a sua combinação com o discurso direto, acrescentando aspas ou expressões como “responderam que”. Além dessa edição princeps, Calado também usou a segunda edição, de 1554, para cotejo e eleição da melhor forma a ser adotada na fixação do texto e resolução de passagens obscuras. Enfim, frisa ter seguido o método proposto em síntese por Carolina Michaëlis de Vasconcelos (CALADO, 1904, p. XII): inserir modificações ortográficas tendo em vista facilitar a compreensão do leitor mas sem desfigurar o seu caráter arcaico. Para tanto, adotou os seguintes critérios de transcrição: desenvolvimento de abreviaturas (por exemplo o til); separação ou junção de palavras (por ex. afazer – a fazer; ja mais – jamais, etc.); uso do ponto alto para separar (não se usava à época o hífen ou o apóstrofo); conversão de u em v, i em j e vice-versa; conversão de u com valor de n em n e vice-versa; uso de maiúsculas em nomes próprios (pessoas, lugares, instituições, datas consagradas) e em início de período e de discurso direto; uso de minúsculas de acordo com o sistema vigente de pontuação (por exemplo: delRey - del∙rei); etc. Quanto à apresentação gráfica do texto, não foram usados sinais convencionais indicativos das alterações feitas, quando estritamente necessárias, no texto-base. Nisto desenvolveu, usando-o sem exceções, o critério já utilizado por Giuliano Macchi para alguns caso (CALADO, 1991, p. CXCII). E a edição é enriquecida com minuciosa Introdução, além de Glossário dos termos com particularidades gráficas ou semânticas e Índices onomástico e toponímico. Gostaríamos de comentar a modificação feita por Calado, respeitante ao título da obra. No sentido de reconstituir e apurar a forma original, ao invés de ‘coronica’ ou crônica Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 121 chama à obra ‘estória’, divergindo de todas as edições anteriores. Na defesa de tal ato, assinala que 1º. O texto não é, no âmbito das concepções historiográficas da sua época, uma crónica, mas sim uma estória; 2º. O título de “crónica” é, no caso em questão, uma criação do seu editor quinhentista; 3º. O próprio texto fornece elementos que justificam e sugerem o título que ora lhe atribuímos (CALADO, 1991, p. LIV). Observa que Fernão Lopes usou os dois termos para designar a sua obra, mas D. Duarte utilizou o termo “poer em caronyca as estorias dos Reys ” quando encarregou-o desse mister. Da expressão, Calado conclui pela abrangência maior do termo ‘crônica’ – historiografia nacional, história geral do reino, crônica de reinados, reunindo vários acontecimentos julgados relevantes, em oposição à restrição destes na ‘estória’, subordinados que são à figura central. Abandona o conceito derivado da etimologia de ‘crônica’, uma vez que a ordenação cronológica é normalmente usada em quaisquer textos de história, inclusive no que se denominava à época como ‘estória’. Esta, denominaria mais especificamente as biografias ou acontecimentos em si próprios, textos autônomos à margem da historiografia oficial, podendo por esta serem incorporados. Zurara (1915, p. 124; 1841, p. 4) é autoridade da época evocada para o sustento da distinção entre os termos. Para Calado, o que teria acontecido foi uma atualização feita pelo editor Germão Galharde, da mesma forma que incluiu no título informações posteriores à época da escrita da crônica, relativas à casa de Bragança e seus descendentes ilustres, mudando esses dados na segunda edição, já que outros descendentes poderosos sobressaíram no período corrente entre as duas edições. Lembra que esse editor também mudou, comprobatoriamente, o título do manuscrito quatrocentista Trautado da vida e feitos do muito vertuoso senhor ifante dom Fernando para Cronica do Sancto, e virtuoso Iffante dom Fernando, que publicou em 1527 – o que indica ser tendência crescente no século XVI nomear por ‘crônica’ aos diversos tipos de escrita historiográfica, inclusive as biografias e outros textos monográficos. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 122 E demonstra que a própria obra se autorreferencia como ‘livro’, ‘estória’ ou ‘conto’, nunca como ‘crônica’. Possivelmente não teria sequer um título (CALADO, 1991, p. LX), que poderia ter-lhe sido acrescentado por Galharde de acordo com a tendência terminológica da época. E o que ora apresenta Calado em seu intento de reconstituição, embora para ele óbvio, como ele próprio considera “teve dificuldade em abrir caminho perante a resistência de um título que se tornara tradicional desde o século XVI” (CALADO, 1991, p. LXII). Daí especialistas como Teresa Amado optarem por chamar à obra de uma “crônica biográfica” (AMADO, 1993, p. 187). Por fim, vale ser destacada uma particularidade dessa “crônica biográfica”: a ausência de datas, até mesmo das cartas que apresenta, que têm de ser reconstituídas com base em informações externas sobre os acontecimentos relatados. Felizmente que esta sua lacuna foi preenchida por Calado na sua edição crítica da obra, proporcionando um maior entendimento dos fatos. 5. Características da composição No que concerne à gênese e composição da obra, o seu anônimo autor teria procedido à recolha das fontes narrativas, principalmente, e documentais; ordenado cronologicamente e harmonizado as versões, estruturando-a em capítulos. O resultado é uma “biografia completa [focalizando o herói a partir dos 13 anos], ordenada numa sequência cronológica, rica de pormenores, viva na sua maneira de relatar os acontecimentos e de retratar as personagens” (CALADO, 1991, p. CVII). Os capítulos são encabeçados por títulos, alguns dos quais verdadeiras ementas, outros meramente indicativos e até desproporcionais em relação à importância da matéria de que tratam, como ocorre relativamente às batalhas de Atoleiro, Aljubarrota e Valverde. A ligação entre eles se estabelece também por expressões de orientação ou indicativas de mudança de foco, do tipo “Mas ora leixa o conto de falar na dita batalha (...) e torna em como [Nun’Avrez] foi buscar Martym Anes de Barvudo, que da batalha fugira, a Monforte, honde lhe foy dito que estava” (Estoria, 1991, p. 69). Isto concorre para Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 123 demonstrar que a obra obedece a um planejamento, é “subordinada a um plano coerente que estabelece a solidariedade entre todas as suas partes”, não “um trabalho rudimentar, primitivo e falho de qualidade, ou mesmo um simples extracto de outras obras compostas com outros objectivos” (CALADO, 1991, p. CXI). Portanto, não é justa a crítica depreciativa que lhe é feita por alguns estudiosos, que insistem em compará-la à escrita do genial Fernão Lopes. Por ser uma biografia, devendo em consequência tudo girar em torno do biografado, na obra foi reduzido drasticamente o enfoque dos acontecimentos em que este não figura, por vezes utilizados apenas como elos de ligação (CALADO, 1991, p. CXVII). E, se as atitudes religiosas do Condestável são frequentemente destacadas, no entanto os capítulos versam preponderantemente sobre os seus feitos militares. Trata-se de uma biografia tipicamente medieval, não exaustivamente completa, faltando-lhe a descrição física do herói – segundo Calado (1991, p. CXXI), Zurara teria sido o primeiro a fazê-la, em relação ao Infante D. Henrique, na Crônica dos feitos de Guiné; mas Fernão Lopes também já o fizera, mesmo que de forma não completa, por exemplo com relação a D. João I, através da prosopopéia de Lisboa, que lhe indica a altura, a harmoniosa composição dos membros, a graciosa e honrada presença, o lado dos atributos morais, da coragem e engenhosidade na defesa da cidade (LOPES, 1977, p. 302). Faltam ainda indicações de lugar e data do seu nascimento, etc. Por outro lado, são destacados os dados genealógicos. Quanto à concepção de historiografia adotada e explicitada no Prólogo, é a clássica (de Tucídides, Tito Lívio, etc.), assimilada ao que parece indiretamente, sendo a corrente à época, inclusive endossada na Crônica Geral de Espanha de 1344. Segundo ela, a narrativa historiográfica tem característica especular, apresentando como modelos a serem seguidos os nobres e heróicos feitos e evitados os maus. Através das frases interrogivas, é na obra inclusive estabelecida uma exortação às futuras gerações para seguirem o paradigma de heroicidade portuguesa apresentado. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 124 Apesar da ausência de datas, reconstituídas como vimos na edição crítica, a ordenação objetiva, a linguagem clara, os dados numerosos, as fontes referidas como consultadas a creditam como documento historiográfico. Bem como a sua construção apresenta valor artístico: seu estilo é “simples, mas conciso e enérgico” (CINTRA, 1973, v.), sem nenhuma filosofia ou teorização literária, o que “reverte a favor de uma alta densidade factual” (CALADO, 1991, p. CXXIX); apresenta uma interpretação convincente do perfil do biografado e realismo na representação dos acontecimentos, etc. Enfim, não apenas a verossimilhança, mas a mimese atribuem qualidades retórico-poéticas à obra. Aproveita elementos convencionais na elaboração e desenvolvimento do texto, sendo que muitas vezes a economia narrativa se torna desproporcional à importância do acontecimento, como por exemplo a descrição por demais sucinta da batalha de Aljubarrota. Aliás, já desde o Prólogo nos dá uma prova da sobriedade do seu estilo, demonstrando consciência da sua brevidade e da maior extensão dos prólogos tradicionais. Emprega muitos discursos diretos, procedimento literário então corrente, não necessariamente aurido de fontes clássicas como Tito Lívio ou Salústio. Também da tradição corrente aproveita o gosto pelas frases exclamativas e interrogativas, que tornam o discurso mais impressivo, bem como as expressões ou frases de ligação, para tornar mais clara ao leitor a interconexão dos acontecimentos, para o que concorrem também os títulos dos capítulos. Por vezes, apresenta um esboçar da ironia, que os autores da época já sabiam explorar – como Fernão Lopes, que apresenta esse recurso retórico como marca significativa do seu estilo. O uso da duplicação vocabular, do ablativo e do gerúndio são também outras constantes herdadas da tradição corrente. Mas da metáfora, tão cara a Fernão Lopes, não há exemplos, quando muito um símile – “asy bastos como som os feixes no rrestolho do bõo trigo e bem basto” (Estória, 1991, p. 119). E, também diferindo-se do cronista-mor, poucas vezes se introduz na narrativa – por exemplo, dirigindo-se ao leitor-ouvinte através da expressão “ally veriades” (Estória, 1991, p. 131), no Prólogo através do uso da primeira pessoa, e nas preces. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 125 Incorpora superstições correntes, nem que seja para serem contestadas pelo herói; bem como sentenças ou provérbios por este endossados; sem falar em preces reconstituídas – tudo convergindo para a visão providencialista da história que então imperava. Enfim, conclui Calado (1991, p. CXLII) que, por todos esses elementos, “é uma obra literária, caracterizada pela aplicação intencional de um conjunto de técnicas de narração ao serviço de um estilo simples e directo enquadrado por uma capacidade de concepção, planeamento e execução”. Conforme Manuel Rodrigues Lapa, soube lançar mão de uma “linguagem correntia, popular, sem ser inculta, sem os arrebiques e neologismos tão em voga no seu tempo” (LAPA, Miscelânea, p. 391). 6. Uma narrativa exemplar Composta por oitenta capítulos e por um curto prólogo, este frisa o caráter de memória exemplar da obra, herdado da historiografia antiga – os erros serão narrados para serem evitados; e os “vallentes e nobres feytos” do Condestável, para serem copiados (Estoria, 1991, p. 1). O último capítulo, a modo de peroratio, descreve-lhe as benfeitorias realizadas, que deram sequência às do avô, e os atos piedosos, praticados ao lado dos feitos militares durante a vida do Condestável. A narratio, que focaliza o biografado a partir dos 13 anos (1373), como vimos, é dividida, conforme já observara Calado (1991, p. CXII), em “três partes bem individualizadas”: 1ª.) dos treze anos até à morte de D. Fernando em 22/10/1382, período em que foi escudeiro da Rainha Leonor Teles – capítulos II a XIV; 2ª.) desse acontecimento até à aclamação de D. João I nas Cortes de Coimbra em 6/4/1385, quando foi nomeado Condestável, período em que foi cavaleiro do Mestre de Avis – capitulos XV a XLII; 3ª. – dessa nomeação até à morte, em 1/4/1431, período em que foi Condestável e monge – capítulos XLIII a LXXIX. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 126 O primeiro capítulo se refere à genealogia de Nuno Álvares Pereira, a começar pelo seu bisavô, Dom Gonçalo Pereira, “grande cavaleyro muy fidalgo e de grande sangue”. Este, não apenas possuía alta estirpe, mas também riquezas, sendo, pois, “nobre de linhajem e de condiçam”, possuindo “grande casa e acompanhado de muytos bõos parentes e criados” (Estoria, 1991, p. 1). Dentre as “muytas e muy boõas” qualidades que possuia, destacava-se a prodigalidade: era “muy graado e dava de bõo coraçam o que avia, assy aos que o serviam como aaquelles que o nom serviam”, a tal ponto que era recriminado por alguns dos seus “chegados” (Estoria, 1991, p. 2). Esse fidalgo teve filhos e filhas, dentre os quais um que lhe herdou o nome: D. Gonçalo Pereira, que foi arcebispo de Braga e pai de Frei Álvaro Gonçalves Pereira. Este, apesar de filho ilegítimo, “foy grande e honrrado e rico de muytas riquezas e de muytas virtudes, ca era nobre de condiçam e bõo cavalleyro e muy entendido” (Estoria, 1991, p. 2). Foi Prior do Hospital, fazendo nesta Ordem “muytas obras e bõas cousas por acrecentamento della”, dentre elas a edificação de uma igreja em honra de Santa Maria, “em que deus faz muytos millagres” (Estoria, 1991, p. 2). Dentre as suas virtudes, ao lado da lealdade e da honradez destacava-se a generosidade herdada do avô: “foy em muytos bõos e grandes feytos, assy por servir seu rey como por sua honrra. E partia grandemente o que avia, assy com seus parentes como com outros muytos que o nom eram” (Estoria, 1991, p. 2). Daí ser por todos “bem servido e amado e beem acompanhado”, alcançando ser privado de três reis de Portugal: D. Afonso, D. Pedro e D. Fernando. Estes, pelos bons serviços e conselhos do fidalgo, por seu “gram siso e bõa discriçam”, “o amarom e prezarom muyto, em especial el rey dom Fernando” (Estoria, 1991, p. 3). Esse Frei Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Hospital, viveu “longamente” e teve 32 filhos, homens e mulheres, dentre os quais, de mães diferentes, Pedro Álvares Pereira, que o sucedeu no priorado da Ordem, e Nuno Álvares Pereira. Deste, a mãe foi Eirea Gonçalves do Carvalhal, uma “muy boõa e muy nobre molher e estremada em vida açerca de Deos”, que, após ter seus filhos, “viveo em grande castidade e abstinencia, nom comendo carne nem bevendo vinho per espaço de quorenta annos, fazendo grandes Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 127 esmolas e grandes jejuus e outros muytos bees” (Estoria, 1991, p. 3). Por sua “grande bondade”, foi escolhida para “covilheyra” – isto é, camareira – da Infanta Dona Beatriz, filha de D. Fernando e depois rainha de Castela, por casamento com D. João. No segundo capítulo tem início a vida de Nuno Álvares, já com treze anos. Gostaríamos de destacar a grande importância que é dada, no primeiro capítulo, à genealogia do biografado: não apenas a sua nobre estirpe é apresentada, como também as virtudes de seus genitores: do pai, a honradez, lealdade, prodigalidade, bons serviços, devoção mariana, sensatez e discrição; da mãe, a religiosidade e práticas desta decorrentes, como a castidade, a abstinência, o jejum e a caridade. Estas são as heranças do herói, que as desenvolverá como veremos. Trata-se, evidentemente, de uma obra laudatória; daí serem recorrentes as indicações das virtudes do Condestável, já desde o Prólogo apresentado como “vallente e muy virtuoso” (Estoria, 1991, p. 1). Procederemos a seguir à observação do retrato de cavaleiro que vai sendo delineado, começando por destacar que desde jovem assumira por modelo a Galaaz, o melhor e mais puro dos homens do rei Artur, cuja história era sua leitura preferida. Como tal, fica evidente que o Condestável, apesar da sua ‘mesura’ – condição fundamental da cortesia –, era adepto fundamentalmente não da ‘cavalaria cortês’, cujo paradigma bretão fora Lancelote e, na Península Ibérica, Amadis de Gaula; mas, sim, da ‘cavalaria espiritual’, seguidora das virtudes cristãs encarnadas por Galaaz, o ‘puro dos puros’, o melhor dos cavaleiros do rei Artur. Da mesma forma que Galaaz o fora, é apresentado como um predestinado: o alfageme de Santarem profetizara que, a serviço da terra e do Mestre, seria futuramente conde de Ourém, quando só então aceitaria receber pelo trabalho de consertar-lhe a espada (Estoria, 1991, p. 42). E, principalmente, como o mais exemplar dos cavaleiros da Távola Redonda, que “per virtude de virgindade” “acabara muytos grandes e notavees feytos que outros nom poderom acabar”, terminando por alcançar o Graal (Estoria, 1991, p. 8), Nuno Álvares também desejou permanecer virgem, recusando de início o casamento que lhe arranjara o pai com Dona Leonor d’Alvim, senhora dotada de “grande bondade e riqueza” (Estoria, 1991, p. 6). Mas, instado por parentes, diante da Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 128 insistência acaba concordando com a proposta, “pois que a seu padre prazia e o elles aviam por bem” (Estoria, 1991, p. 10). Foi um casamento sem festas (1376), por ser a noiva viúva, embora também ainda virgem. Na nova situação, de homem casado, “despendya seu tempo em tomar honestamente prazer com sua mulher” (Estoria, 1991, p. 12), que “lhe dava bõos conselhos das maneiras que avia de teer em aquella terra honde avia de viver” (Estoria, 1991, p. 12), isto é, nas terras de propriedade desta. Dessa união resultaram três filhos, mas dois morreram ao nascer, restando apenas uma mulher, D. Beatriz, que posteriormente foi condessa de Barcelos, casada com o filho bastardo de D. João I. Acrescente-se que, ao final da vida, o Condestável afastou-se da vida mundana, fazendo-se recluso no mosteiro do Carmo – aliás, assemelhando-se a Boorz, outro dos virtuosos cavaleiros arturianos, que se tornou ermitão após voltar para Camelot – até à morte. Assim, teria alcançado o seu “Graal”, providenciando a Igreja o processo de canonização pelos muitos milagres que eram obrados junto ao seu túmulo. E se aproximaria mais ainda do ideal de monge-cavaleiro proposto por São Bernardo, até por haver lutado numa guerra que foi apresentada como Santa, uma vez que o Mestre de Avis apoiava o papa de Roma, ao lado passo que o rei de Castela se colocava ao lado da França obediente ao papa cismático de Avinhão, inseridos no contexto da chamada Guerra dos Cem Anos (1337-1453) que então dividia a Cristandade. Lembremos que São Bernardo de Clairvaux, no século XII, justificava a violência bélica, afirmando que “morrer ou matar por Cristo não implica criminalidade alguma e reporta a uma grande glória” (BERNARDO, 1983, p. 503). Portanto, a primeira insistência da obra vai para a filiação do cavaleiro biografado ao paradigma representado por Galaaz, sendo que a virtude da castidade o levaria futuramente a inclusive proibir a presença de mulheres nas suas hostes (Estoria, 1991, p. 136). Essa virtude aparece ao lado do seu “bom gasalhado e doçes palavras”, e “gram misura”, sendo “bem rrazoado e porem de pouca e branda pallavra”, que “a todos prazia” (Estoria, 1991, p. 12). Assim, o autor o apresenta inicialmente como, além de religiosamente casto, prestativo e generoso, mesurado, cordato e discreto; no entanto, não se exime de indicar-lhe maus feitos, muito embora sem se deter em descrevê-los: Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 129 “aas vezes fazia na terra das suas, segundo seus vezinhos” (Estoria, 1991, p. 12). Mas busca justificar esses desmandos pela necessidade de cobrir a grande despesa que tinha com os seus homens, pelos costumes locais e pela pouca idade (casara aos dezesseis anos). E conclui observando que tais desmandos não o afastavam do “temor de Deos, ouvindo suas missas e vivendo honestamente e bem com sua mulher” (Estoria, 1991, p. 12). Antes desse episódio, sabemos que, ao ser levado, juntamente com o irmão Diego, para a casa do rei D. Fernando, impressionara a rainha Leonor Teles por sua sagacidade e valentia, ao narrar, a pedido desta, o que observara no caminho sobre as tropas castelhanas: “muyta gente mal acaudellada, e que pouca gente com bõo capitam, bem acaudellada, os poderia desbaratar’ (Estoria, 1991, p. 4). A rainha o toma por escudeiro e o rei ao seu irmão. Era então “muy vergonhoso”, isto é, tímido, e “misurado”, agradecendo e beijando-lhe a mão. Lembramos que, premonitoriamente talvez, por ser muito jovem, com apenas treze anos, não havia arnês que lhe servisse, pelo que foi solicitado o do Mestre de Avis, que fora armado cavaleiro ainda bem criança: “E assy tomou dom Nun’Alvrez as primeyras armas, que foram do mestre d’Avis, e per maãos da rraynha dona Lyanor, e de hy em diante a rraynha o ouve sempre por seu escudeiro” (Estoria, 1991, p. 5). A obediência era outra sua grande qualidade, observada em relação ao pai, como vimos no episódio do casamento, e ao rei D. Fernando, a quem obedecia mesmo que contrariando seu desejo: “nom sayriia do mandado delrey, ainda que fosse muyto contra seu prazer” (Estoria, 1991, p. 22). Como também futuramente ao rei D. João I, cuja entronização ajudara a construir. Não o afronta, mesmo quando lhe retira os vassalos – “que outrem non tevesse vassallos senom elle” (Estoria, 1991, p. 153) – e as terras de préstimos. A sua ambição restringia-se à busca de notoriedade e honra: “avia gram vontade de ganhar nome e honrra” (Estoria, 1991, p. 17); “muyto desejava de servir el rey dom Fernando, que o criara, e de seer conhecido e aver nome de boom” (Estoria, 1991, p. 19). Daí que posteriormente, pela sua lealdade ao Mestre de Avis e à terra portuguesa, Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 130 recusa as vantagens que lhe prometeu o rei de Castela, mesmo quando a sua própria mãe a este serve de mensageira; ao contrário, acaba por fazê-la aderir à causa do Mestre: ante contrariava a sua madre, dizendo que Deos nom quisesse que por dadivas e largas promessas elle fosse contra a terra que o criara, mas que ante despenderia seus dias e espargeria seu sangue por emparo della, de guisa que, onde ella vinha pera reduzir seu filho pera serviço delrey de Castella, Nun’Alvrez reduzeo ella pera serviço do mestre. (Estoria, 1991, p. 45) Busca adesão ao Mestre junto a outros fidalgos, como por exemplo seus irmãos, conseguindo a de Diego Álvares, mas não a do que era Prior do Hospital. Neste sentido, logo no início do movimento contra a rainha Leonor Teles, após o assassinato do conde de Andeiro, do bispo de Lisboa e do prior de Guimarães, argumentava que “esto era obra de Deos, que se queria lembrar desta terra, que nom fosse subjeyta a Castella e que, poys tal começo era feyto, que lhe pedia por mercee que todavia se tornasse a serviço do meestre, como já outras vezes lhe dissera” (Estoria, 1991, p. 42). Aliás, mesmo antes de tais acontecimentos, apresenta-se como o primeiro a desejar a morte do Andeiro pelo Mestre de Avis, conseguindo a adesão do tio Rui Pereira (Estoria, 1991, p. 40). Enfim, conclamava a “todollos bõos portugueses”, os “verdadeiros portugueses” (Estoria, 1991, p. 58; p. 76; p. 90; p. 93; p.104-105) – opostos dos cismáticos “maos portugueses” (Estoria, 1991, p. 122) – a “o seguirem e servirem atees mortes”, indo contra os velhos fidalgos que relutaram em fazê-lo – como o conde Álvaro Pires (Estoria, 1991, p. 54). Também colocou-se contra a arrogância do filho deste, D. Pedro, que desejava privilégios quanto a receber primeiramente o soldo (Estoria, 1991, p. 5657). Dentre esses bons portugueses, a narrativa destaca os “miudos”, as “jentes miudas”, que tomavam castelos para o Mestre (Estoria, 1991, p. 55). À lealdade junta-se as suas qualidades de grande soldado, sempre desejoso de combate – dizia, quando uma batalha ou um duelo se anunciava, que era “de taes novas muy ledo” (Estoria, 1991, p. 60), “tam ledo que nom podia mais seer com outra cousa” (Estoria, 1991, p. 20); ou, quando ela gorava, ficava “muy anojado” (Estoria, 1991, p. 19), “triste e muyto anojado’ (Estoria, 1991, p. 33); pelo que o narrador exclamaria: Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 131 “Oo que vontade de servir seu senhor e, por emparo da terra, asy avia gana de pelejar!” (Estoria, 1991, p. 66). Sua coragem apresenta-se como incomparável – por exemplo: em Cacilhas, num pequeno batel, com seis escudeiros, lança-se ao mar temerariamente revolto para alcançar uma embarcação maior, objetivando lutar com a frota de Castela (Estoria, 1991, p. 57); sozinho enfrentara cerca de “duzentos e çinquoenta homens d’armas” dessa frota que cercava Lisboa, sendo apenas posteriormente socorrido pelos seus, que de início se recusavam ao combate por serem inferiores numericamente aos inimigos (Estoria, 1991, p. 29-31); ironizava o inimigo poderoso, no caso Joam Rodrigues de Castanheda, indo ao seu encontro “pollo escusar do trabalho” e que, recebendo deste recado para aguardá-lo, que “lhe teeria bem feyto de jantar’ (Estoria, 1991, p. 76); apenas com “dous moços da estribeira, se deu às lanças com os castellãos ante que nenhum chegasse”, em uma barreira inimiga nas proximidades de Couna (Estoria, 1991, p. 85-86). Foi, enfim, grande estrategista (Estoria, 1991, p. 116-117) e animador de suas tropas, como por exemplo se percebe na seguinte passagem, relativa à batalha de Atoleiros: Começou d’andar pellas batalhas em cima de hu~ua mulla, esforçando todollas jeentes com boõas pallavras e gesto ledo, e dizendo a todos que lhes lembrassem bem, em seus coraçoões, quatro cousas: a primeira, que encoemndassem a Deus e à Virgem Maria, sua madre, e o tevessem asy em suas vontades; e a segunda, que eram ally por servir seu senhor e acalçar honrra grande que a Deos prazeria de lhe dar; e a terceyra, como ally vinham por defender sy e suas casas e a terra que possuiam e se tirar da sobjeiçam em que el’rey de Castella queria poer; e a quarta, que sempre tevessem nos entendimentos de soffrer todo trabalho e d’aperfiar em pellejar nom hu~ua hora, mais h~uu dia todo e mais, se comprisse. (Estoria, 1991, p. 67) Necessidade da proteção divina, honra que receberiam de Deus pelo serviço ao Mestre, defesa das próprias vidas e haveres e disposição para lutar o tempo que fosse necessário, tais eram, pois, os elementos indicados na sua conclamação. Sobretudo com o exemplo ensinava aos seus homens, colocando-se sempre na vanguarda nas batalhas (Estoria, 1991, p. 67; p. 116; p. 124; p. 169) – na retaguarda, só quando esta se fazia mais perigosa, ao voltar de Castela para Portugal (Estoria, 1991, p. 133) –, e lutando Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 132 incansavelmente, mesmo quando já ferido (Estoria, 1991, p. 131). Daí tornar-se invencível capitão, cuja fama por si só afastava os inimigos (Estoria, 1991, p. 52; p. 83; p. 86; p. 125; p. 133; p. 178; p. 195). Desprendido, o produto dos saques bélicos era totalmente repartido entre os seus homens – por exemplo, após uma batalha, em Couna “mandou repartir ho esbulho que assy traziam, sem avendo elle pera sy nenh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 87), após ter sido a villa “toda roubada, e forom hy achados muytos e bõos cavallos e azemellas e outras muytas boõas cousas” (Estoria, 1991, p. 87). Isto se repete nas outras batalhas empreendidas, “sem avendo nem querendo aver pera sy n~enh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 146), “sem tomando pera sy n~enh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 161). Enfrentava sem esmorecimento as privações (Estoria, 1991, p. 81) e era piedoso inclusive para com o inimigo – diante da sua rendição não o matava, pelo que exclama o narrador: “Oo viirtuoso e de gram piedade, sobre seu corpo seer posto em tam gram trabalho e periigo, e, asy maçado, seer lembrado de tanta piedade!” (Estoria, 1991, p. 32). Para com os necessitados, a sua bondade pode ser entrevista no seguinte episódio: quando se dirigia para as cortes de Coimbra com o Mestre de Avis, apiedou-se do cego que queria acompanhá-los, levando-o consigo, na garupa da mula que o conduzia, o que merece do narrador nova exclamação: “Oo, que humano e caridoso senhor! (Estoria, 1991, p. 98). Mas era ao mesmo tempo arrebatado – por exemplo, vinga-se dos que não lhe deixam lugar à mesa no casamento da filha de D. Fernando com o rei de Castela, tirando com a perna o pé da mesa que caiu ao chão, escarnecendo dessa forma dos que “nos pouco preçarom e de nos escarnecerom” e retirando-se em seguida “com grande assessego, bem como se nom fezessem neh~ua cousa” (Estoria, 1991, p. 57). Era avesso a superstições e agouros – como por exemplo em relação ao sonho agourento do escudeiro, que previra a sua prisão, tentando dissuadi-lo de não partir para Lisboa passando pela frota dos castelhanos que a cercavam; ao que ele não atendeu e respondeu “que ficasse com o seu sonho e nom no quis levar” (Estoria, 1991, p. 89). Isto também Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 133 se comprova no episódio da haste da bandeira que se quebrou quando pretendia ir tomar Vila Viçosa, o que não o impediu de tentar fazê-lo, muito embora “toda gente ouve por forte signal, e deziam a Nun’Alvrez que nom partisse” (Estoria, 1991, p. 93); ou quando da morte da besta que conduzia a cama na romaria a Santiago de Compostela, que não deixou de realizar, embora “todallas gentes ouverom por maravilha e grande sinal” (Estoria, 1991, p. 101). Por outro lado, era respeitador dos juramentos – por exemplo: diante da morte do irmão na tentativa de tomada de Vila Viçosa, considerou “que nunca lhe atal aquecimento e atam maao veeo senom polla cota e espada, que escondeu, de dom Garcia Fernandez em Portel, contra seu juramento” (Estoria, 1991, p. 95). Sempre eram atribuidas a Deus as vitórias (Estoria, 1991, p. 133; p. 120-121). Nas batalhas, conclamava os seus soldados a se colocarem sob a proteção divina; por exemplo, na de Atoleiros, como vimos, recomendava-lhes “que se encomendassem a Deus e à Virgem Maria, sua madre, e o tevessem asy em suas vontades” (Estoria, 1991, p. 67). E as práticas religiosas eram constantes em sua vida: se punha “em giolhos” “a rezar e a louvar a Deos, como era seu costume” (Estoria, 1991, p. 132), ouvia missas, acompanhava procissões, fazia romarias, cultuava a S. Jorge e a Santa Maria, em honra dos quais mandou edificar igrejas e mosteiros, como o “gentill e fermoso” mosteiro de Santa Maria do Carmo em Lisboa (Estoria, 1991, p. 148), onde terminaria os seus dias. Aliás, mesmo a eleição do Mestre para rei, nas cortes de Coimbra, é atribuída pelo autor a Deus, pelos seus merecimentos (Estoria, 1991, p. 99), não à hábil argumentação de João das Regras, que Fernão Lopes destacou como decisiva na Crônica de D. João I (LOPES, 1977, p. 345-370), embora também este apresente como profética a recepção do Mestre como rei pelas crianças, na sua chegada a Coimbra para as cortes (Estoria, 1991, p. 98). Apesar da fama alcançada, era humilde em relação aos seus – o que se percebe na seguinte passagem, quando, após a vitória obtida na batalha de Atoleiros (1384), chega à igreja de Santa Maria do Açumar, local deixado imundo pelos castelhanos, e não Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 134 apenas a manda limpar, mas “foy o primeyro que ajudou tirar o esterco fora” (Estoria, 1991, p. 70). Foi justiceiro rigoroso inclusive contra parentes, angariando-lhes inimizade: fazia “dereito sem n~enh~uua afeyçom, em tal guisa que os grandes e bõos que com elle acompanhavam em serviço del’rey se afastavam delle por a maneira que com elles tiinha em feyto de justiça” (Estoria, 1991, p. 190). A sua justiça alcançara, por exemplo, Antão Vasques, cavaleiro por ele muito estimado e que causara danos a um homem bom no Porto, sendo por isto condenado a indenizá-lo; pelo que ficou muito descontente e disse publicamente ao Condestável “pallavras muy soltas, as quaes lhe o conde soffreo muy benignamente e com grande paciencia, ca desto usava elle muy muito” (Estoria, 1991, p. 135). Sua humanização se observa, pois, na benevolência e paciência acima observadas. Como também na compreensão diante das covardias dos seus homens (Estoria, 1991, p. 29; p. 49; p. 110) e da má vontade destes para o combate quando faltava pagamento (Estoria, 1991, p. 150). E, ainda, na capacidade para perdoar, rindo-se dos que o contradiziam por despeito ou inveja do seu prestígio junto ao Mestre – “começou de riir porque sabia bem o por que o faziam” (Estoria, 1991, p. 48). Aliás, em muitas outras passagens da obra ele se apresenta como vítima da intriga, da má vontade, da inveja dos seus pares (Estoria, 1991, p. 72; p. 113; p. 135; p. 137; p. 143; p. 146-147; p. 151). Por outro lado, era muito amado pelos seus comandados, que, “pollo grande amor que lhe aviam”, “eram ledos de morrer e viver com elle” (Estoria, 1991, p. 20). Mas era também dotado de fraquezas humanas, como vimos em exemplo anterior, relativo à sua vida logo após o casamento, nas terras da esposa (Estoria, 1991, p. 12) – fraquezas desculpadas, neste caso, pela pouca idade que então possuía, pelas despesas que tinha com os seus homens e pelos costumes locais. Em passagem posterior, são justificadas pela doença que o acometeu em 1938, de “h~ua dor que lhe durou três meses”, acompanhada de “humor menenconico” (Estoria, 1991, p. 161-162). Essa depressão, que o impedia de comer, o fazia avesso à convivência com outras pessoas, culminando com a raiva inusitada e injusta contra Lourenço Eanes Cordovil, que o fora Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 135 visitar (Estoria, 1991, p. 163); do que em seguida se arrependeria, alegrando-se porque seu escrivão da puridade, Gil Airas, não havia de fato efetivado a insana punição que ordenara (Estoria, 1991, p. 164-167). Enfim, fora esses raros episódios negativos, caracterizava-se por mostras de coragem, lealdade, cortesia, generosidade, e, ainda, capacidade para suportar sofrimentos e privações. A ética cavaleiresca medieval se vê por ele revitalizada, para exemplo. A propósito, Duby (1987) observara como Guilherme Marechal, no século XII, retomara os valores da Cavalaria já à sua época em crise. Estes eram principalmente a fidelidade – o cavaleiro deveria sempre “manter a palavra, não trair a fé jurada” (DUBY, 1987, p. 118) –, a valerosidade – ser “intrépido até às raias da loucura” (DUBY, 1987, p. 119120) – e a largueza ou generosidade – “o cavaleiro tem o dever de nada reter em suas mãos”, daí resultando a força, o poder, “o renome e a calorosa amizade que o cerca” (DUBY, 1987, p. 120)2. 7. Epílogo O capítulo oitenta, a modo de epílogo, retoma sobretudo as qualidades do cavaleiro relativas à sua religiosidade, aproximando-o de Galaaz: a castidade – “foy muy casto de vontade e ainda de feito, porque elle com outra molher nunca dormio senom com a sua”, e mesmo com esta deixaria posteriormente de copular, embora “homem novo” “por servir a Deus” (Estoria, 1991, p. 198); e a prática constante do culto – ouvia duas missas por dia e três aos sábados e domingos; confessava-se amiudemente e comungava quatro vezes ao ano, no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e em Santa Maria de Agosto (Estoria, 1991, p. 198). Além do mais, edificou e reformou igrejas, capelas e mosteiros quase sempre em honra de Santa Maria, dentre “outras muytas obras meritorias” que realizou (Estoria, 1991, p. 199). 2 Pretendemos desenvolver, em estudo posterior, uma comparação entre aquele que foi considerado “o melhor cavaleiro do mundo” (DUBY, 1987, p. 210) e Nun’Álvares. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 136 Ia além do que se exigia de um religioso comum: rezava as horas, jejuava três dias na semana enquanto a idade permitiu – nas quartas, sextas, sábados e datas indicadas pela Igreja (Estoria, 1991, p. 199). Caridoso, dava o dízimo de todas as suas rendas “por amor de Deos a pobres” (Estoria, 1991, p. 199); a estes, dava ainda vestimentas periodicamente, bem como a cavaleiros e escudeiros e outras pessoas honradas (Estoria, 1991, p. 200). Distribuía as suas provisões de pão nos períodos de escassez, ficando por vezes sem nenhum para si próprio; e o fazia não somente aos das suas terras, mas até mesmo aos de Castela (Estoria, 1991, p. 20-201). Nos últimos anos da sua vida, objetivando tornar-se monge, dividiu os bens imóveis pelos parentes e os móveis – ouro, prata, dinheiro, jóias, armas, roupas e guarnimentos – pelos seus servidores, dos quais quitou as dívidas que tinham com ele. Ao ordenar-se, quis mesmo abdicar do sobrenome e do título e viver de esmola longe da sua terra, o que a muito custo não realizou, a pedido do primogênito filho de D. João I, D. Duarte, que o manteve e aos de sua Ordem no Convento do Carmo – “por lhe seer obediente outorgou’lhe de o fazer asy como elle mandava, posto que fosse contra sua vontade” (Estoria, 1991, p. 202). Termina o narrador por falar da impossibilidade de “lembrar pera se poer em esta estoria” as outras muitas virtudes e obras do Condestável (Estoria, 1991, p. 203). E que muitos milagres foram e ainda são, à época da escrita da obra, feitos por Deus no lugar em que foi enterrado, o que indica “que sua alma he com Deos em sua gloria” (Estoria, 1991, p. 203). Enfim, através das qualidades evocadas, sobressaem como principais facetas da personalidade do biografado: a do cavaleiro destemido, generoso, leal e incorruptível, e a do religioso, cujo misticismo seria acentuado por Fernão Lopes, sendo-lhe a santidade reconhecida pela Igreja, que logo após o seu falecimento dá início ao processo de canonização (1437). Incorpora, pois, o ideal de cavaleiro cristão; como também o de nobre necessário à consolidação da jovem Dinastia que ajudou a elevar ao poder. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 137 Referências AMADO, Teresa. “Crónica do Condestabre” (vb). In LANCIANI, Giulia, TAVANI, Giuseppe (Orgs.). Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p. 186-188. ARNAULT, Salvador Dias. A batalha de Trancoso. Coimbra: Instituto de Estudos Históricos da Faculdade de Letras, 1951. _______. Introdução a LOPES, Fernão. Crónica do senhor Rei Dom Fernando nono rei destes Regnos. 1966. 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Ademais, estuda a natureza autoral dessas rubricas e a compreensão que nela se registra do jugar de palabras, de maneira a procurar relacionar o sentido do termo expresso tanto na Lei XXX, como na Arte de trovar e nas rubricas. Palavras-chave: Sátira galego-portuguesa; Jugar de palabras e cantigas satíricas; Rubricas trovadorescas. Abstract: It considers the importance of the jugar de palabras or ridicule (as a concept presented in Law XXX of the Title IX from the Second of Las siete partidas, by Afonso X) to read the XIII century Galician-Portuguese satire. It observes this concept, in terms of philological and literary criticism, in the cantigas de escárnio e maldizer attributive and explaining rubrics. Moreover, it studies the author nature of these rubrics and what they suggest about the jugar de palabras. By these elements, it intends to relate the notion of ridicule express in the Law XXX, as well as in Arte de trovar and the rubrics. Keywords: Galician-Portuguese Satire; Jugar de palabras and satirical cantigas; Troubadour rubrics. Em Non serie juego onde omne non rrye: aspectos da sátira galego-portuguesa, ensaio desenvolvido no estágio de pós-doutorado, na Unicamp, entre 2007 e 2008, procurei demonstrar que as cantigas de escárnio e maldizer produzidas na Península Ibérica, sobretudo no século XIII, poderiam ter sido elaboradas a partir do que se registrou como jugar de palabras, conceito constante na Lei XXX do Título IX da Segunda de Las siete partidas, de Afonso X (1991; 1992; 2004). Nessa lei estariam1, teoricamente – ou utopicamente (LÓPEZ ESTRADA, 1992, p. 31) –, as normas de comportamento palaciano junto ao rei e aos que freqüentam sua corte. Como “convém que não sejam aí 1 Os argumentos que aqui se expõem foram apresentados no ensaio mencionado e nos trabalhos apresentados em eventos acadêmicos (SODRÉ, 2008; 2010). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 140 [palácio] ditas palavras senão verdadeiras, perfeitas e adequadas” –, Afonso X procurou classificar as principais circunstâncias sociais e maneiras palacianas de entretenimento ou, no dizer da época, o fablar en gasaiado: o departir (debater), retraer (contar ou narrar fatos reais ou fictícios) e o jugar de palabra (escarnecer). Sobre este conceitochave para a compreensão do que aqui se pretende discutir, afirma o rei: E en el juego deven catar que aquello que dixieren sea apuestamente dicho, e non sobre aquella cosa que fuere en aquel lugar a quien jugaren, mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle de cobardia; e esto debe ser dicho de manera que aquel a quien jugaren non se tenga por denostado, mas quel ayan de plazer, e ayan de rreyr dello tan bien el commo los otros que lo oyeren. E otrosy el que lo dixiere que lo sepa bien rreyr en el lugar do conveniere, ca de otra guysa non serie juego onde omne non rrye; ca sin falla el juego con alegria se deve fazer, e non con sanna nin con tristeza. Onde quien se sabe guardar de palabras sobejanas e desapuestas, e usa destas que dicho avemos en esta ley, es llamado palaçiano, porque estas palabras usaron los omnes entendidos en los palaçios de los Reyes mas que en otros lugares […].2 (ALFONSO X, 1991, p. 101-102) Como procurei expor no ensaio, o ponto de difícil leitura e fundamental do trecho está nessa passagem: no jogo devem observar que aquilo que disserem seja apropriadamente dito, não a respeito da coisa [defeito] que estiver naquele com quem jogarem, mas a jogos dele, como se ele fosse covarde dizer-lhe que é esforçado, jogar com sua covardia (“E en el juego deven catar que aquello que dixieren sea apuestamente dicho, e non sobre aquella cosa que fuere en aquel lugar a quien jugaren, mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle de cobardia”). Jesús Montoya Martínez examinou esse trecho da “Segunda Partida” (ALFONSO X, 1991), dando a entender que o exemplo dado pelo Sábio é negativo, ou seja, ele deduz que não se deve brincar com o covarde, chamando-o, por equívoco, de valente, nem vice-versa: 2 No jogo devem observar que aquilo que disserem seja apropriadamente dito, não a respeito do que for defeituoso naquele com quem jogarem, mas a jogos dele, como no caso do covarde dizer-lhe que é esforçado, jogar com sua covardia; e isto deve ser dito de maneira que aquele com quem jogarem não se tenha por ofendido, mas que sinta prazer, e ria do jogo tanto quanto os outros que o ouvirem. E que aquele que jogar saiba bem fazer rir no lugar conveniente, porque de outra maneira não seria jogo onde homem não ri; pois sem falha o jogo se deve fazer com alegria e não com sanha nem com tristeza. De modo que aquele que sabe se guardar de palavras excessivas e deselegantes, e usa as que estão nesta lei é chamado palaciano, porque estas palavras usaram os homens entendidos nos palácios dos reis mais que em outros lugares. Traduzo o trecho para evidenciar a base do que penso a seu respeito. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 141 Verdad y estética son por tanto las exigencias requeridas para este juego. Al cobarde no se le puede jugar de esforzado, ni al esforzado y valiente de cobarde, pero cualquiera de ellos puede tener unos rasgos morales que pueden ser hábilmente deformados. La clave está en encontrarlos y expresarlos convenientemente. (MONTOYA MARTÍNEZ, 1989, p. 438) A leitura de Montoya Martínez parece resultar imprecisa, a partir do momento em que se observa que o exemplo (covarde versus valente) dado pelo rei segue a norma estabelecida (não se deve apontar o defeito do cortesão, mas deve-se jogar com seu avesso): “mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle de cobardia”. Martínez lê, portanto, o trecho do exemplo como o que não se deve fazer, quando, talvez, seja o contrário, isto é: no jogo devem cuidar que aquilo que disserem seja apropriadamente/bem compostamente dito, e não [diretamente] sobre aquela coisa [o defeito do visado] que estiver naquele com quem jogarem, mas a jogos dele; ou seja, se ele for covarde, [devem] jogar satiricamente com seu esforço; se esforçado, com sua covardia. O jogo, o avesso, um tipo diferente de equívoco, estaria justamente na surpresa de os ouvintes e o próprio visado perceberem a brincadeira dos contrários. Nisso estariam a conveniência e a boa composição da cantiga: não dizer ao covarde que é covarde, nem ao sodomita que é sodomita, mas jogar com seu avesso, se isso fosse conveniente ao trovador, ao visado da sátira e à corte: um seria valente; o outro, heterossexual. Esses exemplos – muito arriscados, no caso do covarde, como indica a lei –, poderiam não ser exatamente os utilizados pelos jogadores de palabra. Mais provável é que os trovadores, por meio do que Marta Madero chama de “injúria lúdica”3 e do que considero um jogo de contrários, tomassem eventualmente, para efeito de broma e diversão cortesã, como alvo um funcionário heterossexual como sodomita, ou um bom trovador como “plagiário” ou “jograrón”, ou um rico-homem generoso como escasso, o que aparece com certa freqüência no cancioneiro de burla galego-português. 3 Marta Madero (1992) expõe os temas passíveis de injúria em tom de brincadeira: corpo (enfermidade, sexualidade, estética, integridade, parentesco), religião (judeus e mouros) e comportamento (traição, covardia, avareza etc.). Como resume Jacques Le Goff, no prefácio ao estudo de Madero: “Respecto del hombre las mayores injurias son las que lo acusan de sodomía y de traición; respecto de la mujer, las que ponen por delante la lujuria y la fealdad. Pero más en general, esta sociedad misógina ve en la feminidad ‘la inversión de todo lo alto, lo bello o lo puro’” (LE GOFF, 1992, p. 15). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 142 Examinar esse ponto da lei e cotejá-lo com as cantigas é producente, uma vez que dele se pode depreender um dos traços principais da sátira galego-portuguesa, não suficientemente desenhada na Arte de trovar. Qual seria o grau de “verdade” das “acusações” e “denúncias”, já posto em relatividade por Menéndez Pidal (1991, p. 207208) – e retomado recentemente por Xoan Carlos Lagares (2000) – a propósito da cantiga de Afonso X, “Pero da Pont’ á feito gran pecado”, em que o rei acusa Pero da Ponte de homicida e plagiário? Se não deveria haver, a princípio, ira nem tristeza, no entretenimento palaciano, e se a maior qualidade de um jugar de palabra estaria na capacidade de seu autor fazer-se ouvir prazenteiramente, as cantigas escarninhas, então, poderiam ser lidas como jogos de avessos, além de jogos de equívocos verbais? Podemos supor que o jogo equívoco prescrito na lei e possivelmente utilizado pelos trovadores estaria não apenas no plano retórico da palavra ambígua, mas também no plano da deformação pelo contrário de uma dada circunstância, de um rasgo moral ou de uma qualidade de um cortesão. Em outras palavras, o equívoco se manifestaria tanto no plano do texto (jogo de palavras stricto sensu) como no plano do contexto (situação posta pelo avesso). Sendo assim, a poética fragmentária galego-portuguesa ganharia um matiz conceitual importante: afirma-se que a cantiga de escárnio satiriza alguém por meio de equívocos verbais, ao passo que a de maldizer, por meio de palavras claras. Complementando a Arte de trovar, a Lei XXX do Título IX da “Partida Segunda” regula uma atividade cortesã que coincide com a natureza do gênero satírico, considerando o que nele deve prevalecer de equívocos de situação que propiciem o humor e o divertimento; tal informação redimensionaria o alcance da definição da Arte de trovar. Portanto, creio que não é apenas o recurso retórico da equivocatio, em sentido estrito, que deve estar em pauta quando investigamos e interpretamos a produção satírica peninsular medieval; além dos famosos equívocos verbais da “maeta descadeada” (com o sentido duplo de maleta e de órgão sexual feminino, em “Maria Pérez, a nossa cruzada”, de Pero da Ponte) ou da “midida de Espanha” (com o sentido ambíguo de Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 143 tamanho de madeira espanhola e tamanho do órgão sexual masculino, em “Joan Rodríguiz foi osmar a Balteira”, de Afonso X), devemos sondar os equívocos contextuais ou jogos de avesso como o dos “incompetentes” jograis Picandon e Lourenço, entre outros. É certo que a sátira ocupava um lugar destacado nos serões palacianos, seja pela grande produção dos trovadores (cerca de 450 cantigas de 85 trovadores, entre 1170 e 1350 [OLIVEIRA, 2001, p. 163-165]), 4 seja pela própria produção do Sábio (40 cantigas), seja ainda pelo destaque dado ao assunto em suas leis. Não menos evidente, no entanto, é a natureza desestabilizadora do escárnio e maldizer, oscilante entre o jogo e o crime – como se descreve na Lei 20 do Título IX da “Sétima Partida” (ALFONSO X, 1992, p. 386-387), o que requeria certo controle na produção de homens interessados em divertir uma corte por meio de cantigas que contrabalançassem, talvez capciosamente, o desejo de jogar/denunciar/divertir/ferir e a adequação palaciana exigida por lei, sim, mas, antes ainda, e sobretudo, pelos costumes dos homens polidos, palacianos. Ambas as ações, entretenimento e crime, dependiam da intenção do escarnecedor e da interpretação do escarnecido. Lembre-se de que a concepção de diversão cortesã era amparada pela noção de jogo que, segundo Marta Madero, era compartilhado e aceito unanimemente pelos participantes, o que apagava, teoricamente, o efeito injurioso do jugar de palavra (1992, p. 38). Cotejando o que dizem as Partidas, o que sugere o verso das cantigas e o que afirmam os pesquisadores (LAPA, 1981; LOPES, 1994; BELTRAN, 2005), deduz-se com certa plausibilidade que provavelmente havia dois tipos de alvo para o jugar de palabra. Um presumível rex facetus (LE GOFF, 1997, p. 452), Afonso X regia sua corte e o fablar en gasaiado, levando em conta os rumos históricos (de que são testemunhos os cantares sobre a traição dos vassalos na guerra contra Granada) e as relações políticas de seu reino. Assim sendo, o tratamento satírico dado aos inimigos – certamente fora de sua corte ou enrustidos em sua presença – implicaria na menção direta e na crítica explícita dos defeitos dos visados, irrompendo aí saña e tristeza, além do riso. Por outro lado, 4 Para Manoel Rodrigues Lapa (1995), somam-se 431 cantigas satíricas; para Graça Videira Lopes (2002), esse número sobe para 474. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 144 para o tratamento satírico dado aos amigos do rei o trovador dispunha do jogo do avesso, do equívoco para surtir surpresa e gargalhada descontraída. Para o jugar de palabra sobre os cortesãos leais é que a lei parece ajustar-se especialmente e para a qual deviam adequar-se os trovadores, como o nobre João Soares Coelho em sua tenção “– Vedes, Picandon, soo maravilhado” (LAPA, 1995, p.163), em que acusa de “incompetente” Picandon, prestigiado jogral do famoso trovador provençal Sordello (SODRÉ, 2010). A despeito da não coincidência entre a presumível data da tenção, que teria ocorrido entre o final da década de 20 e início da de 30 (BELTRAN, 2005, p. 64), e a data da produção das Partidas, entre 1256 e 1265 (D’AGOSTINO, 2001, p. 743), evidencia-se que os trovadores que produziram suas cantigas, no período de Fernando III (1217-1252), poderiam já dispor de certas regras e estratégias palacianas para a produção satírica, herdeiras de tratados retóricos em que se evidencia a necessidade da conveniência, com vistas a um fablar en gasaiado em companhia do rei ou de um senhor poderoso. Essa lei sobre o jugar de palabra seria a expressão jurídica de um costume anterior, respeitado como norma e, por essa razão, presumivelmente lembrado na confecção de Las siete partidas, que pretendeu ser uma recolha e uma súmula do Direito medieval peninsular, eivado de fueros municipais, senhoriais e régio, como afirma Joseph O’Callaghan (2001, p. xxxi). Assim sendo, e se estiver correta a hipótese, uma releitura das cantigas de escárnio e maldizer a partir do conceito de jugar de palabras ou jogo de avessos será, a despeito de seu teor polêmico, oportuna e producente. 2. Examinada a lei e identificada nela uma possível chave de leitura para algumas cantigas satíricas galego-portuguesas (SODRÉ, 2008; 2010), a etapa seguinte será investigar não ainda as cerca de quatrocentas e cinquenta cantigas propriamente ditas, mas um tipo textual ainda pouco observado pela crítica: as setenta e quatro (74) rubricas atributivas e explicativas que acompanham a compilação geral da lírica profana medieval, provavelmente ocorrida entre 1325 e 1350 (OLIVEIRA, 1994). Uma opção metodológica como essa, que conduz a investigação desde as leis afonsinas até as cantigas satíricas, passando pela análise das rubricas, talvez soe estranho a Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 145 princípio. Entretanto, em E por esto fez este cantar: sobre as rubricas explicativas dos cancioneiros profanos galego-portugueses, Xoan Carlos Lagares (2000), ao empreender uma edição crítica das rubricas – mencionadas aqui e ali por Manoel Rodrigues Lapa, em seu Cantigas d’escarnho e de maldizer dos cancioneiros medievais galegoportugueses (1995) e editadas preliminarmente por Graça Videira Lopes em Cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores e jograis galego-portugueses (2002) –, oferecenos não apenas um ponto de partida excelente para sua apreensão, como também uma justificativa exata: Pode parecer extravagante, no sentido etimolóxico do adxectivo, iniciar unha aproximación á lírica galego-portuguesa medieval tomando como ponto de partida o estudo das rubricas explicativas dos cancioneiros. Non debe buscarse a raíz desta escolla nunha equívoca pretensión de percorrermos as marxes do fenómeno trovadoresco ignorando precisamente o máis importante, a súa produción artística, senón, contrariamente, na vontade de abordarmos estes magníficos textos poéticos desde unha perspectiva ampla e abranxente, tentando acharmos elementos que permitan comprender as cantigas no seu contorno histórico e cultural, a súa relación coa expresión escrita, os meios materiais que lles permitiron chegar até hoxe e o modo en que manteñen, através dos séculos, a súa capacidade de diálogo con novos leitores. (LAGARES, 2000, p. 3) Como as leis afonsinas, as informações constantes das rubricas podem ser um passaporte de leitura fundamental entre o contexto da produção poética galegoportuguesa, quando estavam ainda nítidos os subtextos e pressupostos das cantigas, e o registro das cantigas nos cancioneiros, quando estariam provavelmente diluídos, devido à transmissão oral e a sua movência, os dados subliminares para a compreensão delas. Não obstante o cuidado que se deve ter na utilização desses textos, dados os descuidos e incongruências dos copistas na transmissão dos cancioneiros, como adverte Pilar Lorenzo Gradín, em seu artigo “Las razos gallego-portuguesas” (2003, p. 112-113), as rubricas são, de toda maneira, como a Arte de trovar, testemunhos preciosos para a compreensão da produção satírica galego-portuguesa e sua relação com as normas e coerções poéticas e jurídicas da época. Confirma essa opinião o fato de que, “em realidad, las didascalias son un complemento de la cantiga, una especie de filtro que Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 146 orienta el mensaje poético en textos construidos a menudo mediante la retórica de las ‘palavras cubertas’” (LORENZO GRADÍN, 2003, p. 113). Disso decorre, ademais, que los textos no iban acompañados de razos en la primera fase de transmisión, ya que las alusiones a hechos y personas eran lo suficientemente conocidas en el ambiente de producción de la cantiga, por lo que no eran necesarias referencias explícitas. Por eso parece lícito pensar que los textos en prosa fuesen concebidos en un momento posterior al de una fase primitiva de circulación de las cantigas, probablemente en alguno de los círculos en los que se organizaba el material poético. Sigue siendo uma incógnita determinar las razones que llevaron a dotar de texto exegético a poemas de determinados autores y no a otros, si bien en este caso es lógico pensar que los redactores de las razos no tenían las mismas noticias para todos los trovadores y que no todos les interesaban de igual manera. (LORENZO GRADÍN, 2003, p. 126) As rubricas, segundo Elsa Gonçalves (1994), podem ser de três tipos: atributivas (com indicações de autoria), explicativas ou razos (com informações sobre os motivos contextuais da produção da cantiga, além de seu gênero)5 e codicológicas (com exposição de dados sobre a constituição da tradição manuscrita). A investigação dos dados feita pela professora portuguesa, no entanto, se restringiu ao último tipo que, para efeito deste trabalho, não será considerado agora. Interessam-nos neste estudo as rubricas explicativas, cuja definição Xoan Carlos Lagares (2000, p. 21-22) amplia: aqueles breves textos en prosa que, situados próximos á cantiga a que se referen, indican cal é o tema da composición ou oferecen información adicional sobre ela. Pertencen por tanto a esta categoría todas aquelas que mostran a (ou contra) que persoa está dirixida a cantiga, fundamentalmente nas de escarnio que, como veremos, son as máis favorecidas pola presenza deste tipo de rubricas. Tamén deben ser incluídas neste grupo as que, sen ofereceren calquer información concreta sobre a cantiga que acompañan, achegan dados sobre o seu contexto, sobre os motivos que están na base da súa produción ou sobre o trovador en relación coa súa obra, e, finalmente, as que xustifican a inclusión do texto nos cancioneiros. Os primeiros exemplares de rubricas teriam sido elaborados provavelmente em torno de 1250 (LORENZO GRADÍN, 2003, p. 105). Ademais, a autora detalha alguns dados da concepção e da função desse “texto complementario”: 5 Os detalhes descritivos da rubrica explicativa podem ser observados na edição crítica de Xoan Carlos Lagares (2000, p. 21 ss.). Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 147 Las razos fueron seguramente concebidas por los compiladores de las grandes antologías (y en época tardía no se puede descartar que incluso por algún autor, como parece ser el caso de don Pedro de Barcelos). El motivo para la introducción de estos textos “secundarios” se fundamentaría en la necesidad de proporcionar una clave de lectura que orientase la recepción de los textos poéticos por parte de un público que no compartia el horizon d’ attente del momento de producción de la cantiga. (LORENZO GRADÍN, 2003, p. 111-112) Desse modo, os autores das rubricas foram os antologistas e copistas peninsulares que compuseram o cancioneiro primitivo. Num segundo momento, Angelo Colocci atuou como revisor das cópias italianas junto a seus amanuenses (GONÇALVES, 1994). O resultado disso, porém, é o número lamentavelmente pequeno de rubricas (74) de vinte e quatro trovadores de distintos períodos da produção galego-portuguesa. Dos trovadores com cantigas rubricadas, os que apresentam o maior número de textos atributivos e explicativos são Martin Soarez (13), dos mais antigos; Estevam da Guarda (10), dos mais novos; Lopo Liáns (7), da geração do meio, e Pedro de Portugal, Conde de Barcelos (7), dos últimos trovadores e, provavelmente, o compilador dos cancioneiros. O conjunto de cantigas de Fernan Rodriguez de Calheiros (da primeira metade do século XIII) e o de Johan de Gaia (1287-1330) apresentam três. Os outros tem duas ou uma rubrica cada. A garantia de uma chave de leitura e a orientação da recepção das cantigas, em especial das satíricas, são os aspectos funcionais das rubricas que chamam a atenção. Por esse motivo, pareceu-nos necessário analisá-las, mesmo que sua proporção seja mínima em relação ao número de cantigas recolhidas nos três maiores cancioneiros profanos conhecidos atualmente (Ajuda, Biblioteca Nacional e Vaticana): 74 rubricas para cerca de 1.500 cantigas6. Apesar do número reduzido desses textos, uma espécie de avaliador da primeira recepção das cantigas – e igualmente um freio interpretativo das metáforas nelas contidas (LAGARES, 2000, p. 51) –, seu exame pode nos ajudar a perceber até que 6 Cf. o capítulo “A situación das rubricas explicativas nos apógrafos quiñentistas” da edição de Lagares (2000, p. 31ss.) Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 148 ponto há indícios da relação entre o que prescrevem as leis afonsinas sobre o fablar en gasaiado, a sátira e o trovar galego-português. O interesse está na averiguação de ocorrência de termos como jogar e seu campo semântico; identificação, por meio de glossários especializados, do sentido das palavras ou expressões, e comparação entre essa terminologia e o alcance da lei afonsina. Os resultados desses objetivos, infelizmente pouco expressivos, é o que aqui procuramos expor. 3. De todas as rubricas explicativas observadas na edição de Xoan Carlos Lagares, apenas uma faz referência explícita a um jogo, na cantiga do trovador português Martin Soarez, “Joan Fernándiz, um mour’ est’ aqui”, parte de um ciclo de textos que tem em comum a chufa contra o ainda desconhecido – pela crítica – “mouro convertido” Joan Fernándiz (PIZZORUSSO, 1992, p. 146). Vejamos a cantiga e a rubrica: Joan Fernándiz, un mour’ est’ aqui fugid’, e dizen que vó-lo avedes; e fazed’ ora [a]tanto por mi, se Deus vos valha: que o mooredes7, ca vo-lo iran da pousada filhar; e se vós virdes no mouro travar, sei eu de vós que vos assanharedes. Levad’ o mour’ e ide-vos daqui, poi-l’ a seu don’ entregar non queredes, e jurarei eu que vo-lo non vi, en tal que vós con o mour’ escapedes, ca ei pavor d’ iren vosco travar; e quero-m’ ant’ eu por vós perjurar ca vós por mouro mao pelejedes. Si quer meaçan-vos agor’ aqui por este mouro que vosco tragedes, e juran que, se vos achan assi mour’ ascondudo, com’ est’ ascondedes, se o quiserdes un pouqu’ emparar, ca vo-lo iran sô o manto cortar, de guisa que vos sempr’ en doeredes (LAPA, 1995, p. 194-195) 7 Na edição de Valeria B. Pizzorusso (1992, p. 145), lê-se moveredes. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 149 (VII) -59B 1367 / V 975 - Martin Soarez a “Esta outra cantiga fez d’escarnho a un que dizian Joan b Fernandiz, e semelhava mouro e jogavan-lh’ende; e diss’assi” Joan Fernandiz, un mour’ést’aqui -59- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 975; Paxeco-Machado, Bib. Nacional 1318; Braga, Vaticana 975; Lapa, Escarnho 297; Bertolucci, Martin Soares XLII. (LAGARES, 2000, p. 144-145) As considerações de Rodrigues Lapa sobre essa rubrica esclarecem alguns de seus aspectos, como a insinuação de homossexualidade do visado: Diz a rubrica: “Esta outra cantiga fez d’ escarnho a um que dizian Joan Fernándiz, e semelhava mouro, e jogavan-lh’ ende”. O escarnho, contudo, incide sobre práticas homossexuais que João Fernandes manteria com outro mouro que tinha fugido para sua casa, e que ele mantinha contra o direito e a moral. (LAPA, 1995, p. 194) Como se sabe, a relação entre sodomia e Islã é muito comum nas cantigas satíricas. Conforme aponta Marta Madero, “La lujuria y la homosexualidad son condenadas de forma general, estén o no vinculadas a una identidad específica, pero en la ortodoxia de las representaciones la homosexualidad está vinculada al Islam” (1992, p. 127). Um dos pontos importantes da cantiga de Soares – e das que compõem o ciclo que tem Joan Fernándiz como centro de atenção dos trovadores – implica justamente na ambiguidade da relação deste seja com a etnia moura, seja com seus “hábitos” sodomitas. Por sua vez, Graça Videira Lopes (2002, p. 318) comenta essa cantiga e outras do ciclo de Joan Fernándiz – como a de João Soares Coelho, em que o trovador avisa o mouro de que outro “fode já sua molher” –, considerando que o ponto dos equívocos ou do jogo estaria justamente no fato de Joan Fernándiz se dizer cristão, mas ser, na verdade, “mouro”, de forma que o outro mouro, o escondido em sua casa (na cantiga de Martin Soares) e o amante de sua mulher (na de João S. Coelho), seria ele mesmo. A idéia engenhosa de se brincar com o duplo de Joan Fernándiz acirra ainda mais a chave de leitura da cantiga em termos de jogo de avesso. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 150 A propósito, Xoan Carlos Lagares sintetiza bem os motivos da sátira contra Fernándiz, alvo de uma “broma colectiva”: Advertimos, así, tres motivos de escarnio en torno á figura de Joan Fernandiz, que ás veces se entrecruzan nun mesmo poema. Joan Soarez Coelho (V 1013) chámalle mouro e mófase da súa intención de ir loitar a Terra Santa, contra os seus proprios correlixionarios, relacionándoa sarcasticamente co fin do mundo; tamén Afonso Eanes do Coton (B 1616 / V 1149) aponlle o apelativo ‘o mouro’ nunha cantiga en que o inclúe, xunto á súa propria persoa e a Pero da Ponte, outro feo famoso da lírica medieval galego-portuguesa, no grupo dos ‘mal talhados’. Este segundo motivo de escarnio contra o personaxe é utilizado tamén por Martin Soarez (B 1370 / V 978) nunha cantiga en que o acusa de levar a saia demasiado curta. E convive co terceiro motivo, o que fai referencia ao mouro oculto na súa casa, na cantiga de Rui Gomez de Briteiros (B 1544) que adverte a Joan Fernandiz de que un freire anda buscando un mouro que é cresp’e mal talhado (v.4). E aínda noutra cantiga de Joan Soarez Coelho (V 1012) se conta como un mouro (dando a entender que é o seu criado, pois é chamado “o vosso mouro”) mantén relacións sexuais coa súa muller, e tamén aquí a identificación co proprio Joan Fernandiz é evidente, pois o último verso declara: fode-a [tal] como a fodedes vós (v.18). Mais adiante, pondera o autor galego: Sen dúbida, a chave para a comprensión deste amplo grupo de cantigas está nas múltiplas connotacións que na altura debía de ter, e/ou nos valores disfémicos que foi alcanzando no contexto satírico trovadoresco, o substantivo ‘mouro’ e que hoxe descoñecemos. De calquer xeito, confiando na información que nos oferece a rubrica podemos concluír, cando menos, que Joan Fernandiz, que pasou á posteridade co sobrenome de ‘o mouro renegado’, non era ‘mouro’ senón que simplesmente o parecía (fisicamente ou no seu comportamento sexual), derivando de aí todo unha enfiada de bromas máis ou menos crueis compartidas por un grupo de trovadores que o escarneceron en cantigas dotadas de duplos e ás veces triplos sentidos. (LAGARES, 2000, p. 55-57) As observações de Lagares a respeito do parecer mouro de Fernándiz, seja no aspecto étnico, seja no sexual, ajudam-nos a relacionar com certa segurança a cantiga de Soares ao jogo de avesso, de que trataremos mais adiante. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 151 A editora do cancioneiro de Martin Soares,Valeria Bertolucci Pizzorusso (1992, p. 146. grifos nosso), comenta que O sentido da presente composición non é tan claro como podería parecer nunha primeira lectura, da cal se deduce que o protagonista ten agochado un mouro na casa, polo que se lle suxire que o afaste antes de que outras persoas poidan facerlle dano. Sen embargo, a rúbrica insinúa que se fala metaforicamente e que o mouro é o propio Johan Fernandiz, a quen tamén chaman mouro Affons’Eanes do Coton [...] e Johan Soares Coelho, em V 1013, onde fala do mouro pelegrin (v. 10) e do mouro cruzado (v. 6) Na leitura de Pizzorusso, hesitamos em compreender o advérbio metaforicamente: estaria relacionado ao sentido do verbo semelhar (“e semelhava mouro”) ou ao jogar (“e jogavan-lh’ende”)? Segundo o glossário de Rodrigues Lapa, semelhar significa “parecer, ter o aspecto de” (1995, p. 377); por sua vez, jogar e derivados significam motejar, brincar, zombar: jogador: gracejador, motejador jogar: motejar, zombar jogo: brincadeira (LAPA, 1995, p. 336) Que dimensão jurídico-cultural podemos inferir, portanto, nessas acepções? Se o jugar de palabras afonsino implica, como cremos, em jogo de avessos, em zombaria equívoca para difamar ludicamente alguém a partir de seu contrário físico, moral ou circunstancial, até que ponto será acertado afirmar que o fato de Joan Fernándiz semelhar mouro, como indica Lagares (“podemos concluír, cando menos, que Joan Fernandiz, que pasou á posteridade co sobrenome de ‘o mouro renegado’, non era ‘mouro’ senón que simplesmente o parecía (fisicamente ou no seu comportamento sexual)” [2000, p. 57]), seria apenas um mote pelo avesso para que um ciclo de cantigas fosse produzido a respeito de um presumível ariano sem semelhança alguma com mouros? Não há dúvida, de toda maneira, de que seria um desprestígio, injuriante ou lúdico, para alguém ser comparado à etnia moura, como afirma Marta Madero (1992, p. 117 ss.); a dúvida está, no entanto, na semelhança do visado com o mouro. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 152 As outras rubricas editadas por Lagares não mencionam o verbo jogar. Apresentam, contudo, outros termos cujos sentidos poderiam se aproximar ou não de seu campo semântico: apoer (“por defeito, difamar” [LAPA, 1995, p. 294]) e dizer (“declarar, manifestar, citar pelo nome” [LAPA, 1995, p. 319]). Registram aquele verbo as rubricas n. 30 (“que lhe apoinhan que era puto”) da cantiga de Estevam da Guarda, “Um cavaleiro me diss’en baldon”, e n. 66 (“e apoinhan-lhe que se pagava do vinho”) da cantiga de Joan de Gaia, escudeiro, “Eu convidei un prelado a jantar, se ben me venha”. O verbo dizer aparece nas rubricas n. 19 (“porque dizian que era seu entendedor”) e 20 (“porque dizian que era entendedor da rainha”) das cantigas de Gonzalo Eanes do Vinhal, “Amigas, eu oi dizer” e “Sei eu, donas, que deitad’ é aqui”. A mesma dúvida ocorre nesse conjunto: a fama dos visados (“apoinhan” e “dizian”) que os trovadores registram nas cantigas e que os copistas informam nas didascálias procede de fatos ou de ficções e avessos? Voltemos à rubrica da cantiga de Martin Soarez: “Esta outra cantiga fez d’escarnho a un que dizian Joan Fernandiz, e semelhava mouro e jogavan-lh’ende; e diss’assi”. A cantiga de Martin Soares não é facilmente entendida como um jogo de avessos, dada a falta de dados sobre o visado Fernándiz. Ao contrário dessa, algumas cantigas satíricas expõem nitidamente o jugar de palabras, tal como é possível entendê-lo, a princípio, na Partida Segunda de Afonso X: a cantiga deste rei, em que se acusa Pero da Ponte de latrocida e homicida, ou na de João Soares Coelho, em que se acusa Picandon de jogral ruim. Nestas, como vimos, o jogo é nítido, já que Ponte, trovador da corte, não poderia ser ladrão de cantigas, nem assassino de outro trovador impunemente, e Coelho não se desculparia com Picandon nem o reconheceria como bom jogral numa cantiga satírica não fosse um jogo sua acusação contundente, como se pode observar na finda da tenção: Sinher, conhosco-mi-vos, Picandon, e do que dixi peço-vos perdon e gracir-vo-l’ey, se mi perdoardes. Johan Soarez, mui de coraçon vos perdoarei, que mi dedes don Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 153 e mi busquedes prol per u andardes (GONÇALVES, 2000, p. 385-386) Embora saibamos que a sátira galego-portuguesa tende “á insinceridade e a inventar sucesos que non se corresponden coa realidade (que non teñen un referente real) co único obxecto de satirizar actitudes e comportamentos” (LAGARES, 2000, p. 52), conhecemos também cantigas em que eventos históricos entram no jogo poético dos trovadores, como a traição dos vassalos de Sancho II e a covardia dos guerreiros de Afonso X nas batalhas de Granada. Nessa fronteira da sátira, sempre devedora dos sucessos cotidianos, é que se coloca o desafio de averiguar o por vezes incógnito jugar de palabras. Referências ALFONSO X. Las siete partidas. Edição fac-similada da edição salmantina de 1555, glosada por Gregorio Lopez e impressa por Andrea de Portonariis. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 2004. 3 v. 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(II) -19V. 999 - Gonzalo Eanes do Vinhal a “Esta cantiga fez Don Gonçal’Eanes do Vinhal a Don Anrique en b nome da rein[h]a Dona Joana, sa madrasta, porque dizian que c era seu entendedor, quando lidou en Mouron con Don Nuno e d con Don Rodrigo Afonso, que tragia[n] o poder d’el-rei” Amigas, eu oí dizer -19- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 999; Braga, Vaticana 999; Paxeco-Machado, Indice 999; Nunes, Amigo CXLV. (III) -20V 1008 - Goncalo Eanes do Vinhal a “Esta cantiga fez Don Gonzalo ‘Anes do Vinhal ao Infante Don b Anrique, porque dizian que era entendedor da rainha Dona c Joana, sa madrasta; e esto foi quando o el-rei Don Alfonso pos d fora da terra” Sei eu, donas, que deitad’é d'aqui -20- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 1008; Braga, Vaticana 1008; Paxeco-Machado, Índice 1008; Nunes, Amigo CXLVI. (IV) -22V 1037 - O Conde D. Pedro de Portugal a “Esta cantiga foi feita a un [e]scudeiro que andou Alen-Mar, e b dizia que fora alo mouro” Alvar Rodriguez, monteiro-maior Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 157 -22- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 1037; Braga, Vaticana 1037; Paxeco-Machado, Indice 1037; Lapa, Escarnho 324; Simões, D. Pedro V. (V) -27B 935 / V 523 – Per’Eanes Marinho a “Esta cantiga fez Per’Eanes Marinho, filho de Joan Rodrigues b de Valadares, por salvar outra que fez Joan Airas de Santiago, c que diz as[s]i [o] começo: d ‘Dizen, amigo, que outra senhor e queredes vós sen meu grado filhar’” Boa senhor, o que me foi miscrar -27- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 523; Paxeco-Machado, Bib. Nacional 879; Braga, Vaticana 523. (VI) -30B 1304 / V 909 - Estevan da Guarda a “Esta cantiga foi feita a un cavaleiro que lhe apoinhan que era b puto” Un cavaleiro me diss’en baldon -30- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 909: Paxeco-Machado, Bib. Nacional 1253; Braga, Vaticana 909; Lapa, Escarnho 104; Pagani, Estevan da Guarda XIII. (VII) -59B 1367 / V 975 - Martin Soarez a “Esta outra cantiga fez d’escarnho a un que dizian Joan b Fernandiz, e semelhava mouro e jogavan-lh’ende; e diss’assi” Joan Fernandiz, un mour’ést’aqui -59- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 975; Paxeco-Machado, Bib. Nacional 1318; Braga, Vaticana 975; Lapa, Escarnho 297; Bertolucci, Martin Soares XLII. (VIII) -61B 1369 / V 977 - Martin Soarez a “Esta outra cantiga fez d’escarnho a ũa donzela; e diz assi” Ũa donzela jaz aqui -61- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 977; Paxeco-Machado, Bib. Nacional 1320; Braga, Vaticana 977; Bertolucci, Martin Soares XLIV. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 158 (IX) -66B 1452 / V 1062 - Joan de Gaia, escudeiro a “Esta cantiga foi seguida per ũa bailada que diz b‘Vós avede-los olhos verdes, c e matar-m’-edes con eles’; d e foi feita a ũu bispo de Viseu, natural d’Aragon, que era tan e cardeo como cada ũa destas cousas que conta en esta cantiga, f ou máis; e apoinhan-lhe que se pagava do vinho” Eu convidei un prelado a jantar, se ben me venha -66- ED. PRECEDENTES: Monaci, Vaticana 1062; Paxeco-Machado, Bib. Nacional 1364; Braga, Vaticana 1062; Lapa, Escarnho 199. Stegagno Picchio, “Os alhos verdes (Uma cantiga de escarnho de Johan de Gaya)”, in A Lição do Texto, p. 109. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 159 Fontes da misoginia medieval: ressonâncias aristotélicas no pensamento religioso medieval Pedro Carlos Louzada Fonseca Universidade Federal de Goiás (UFG) Resumo: Este trabalho examina duas das principais ideias que podem ser consideradas como fundamentais na formação da tradição antifeminista na cultura e literatura européias. A primeira dessas ideias são os estudos de Aristóteles sobre a fisiologia da mulher, onde ele reduziu o seu papel na procriação àquele de matéria prima, a esperar a agência formadora ou movimentadora do sêmen do homem. Essa consideração aristotélica certamente substanciou uma desagradável equação entre mulher e matéria, a qual encontrou apoio no pensamento religioso da Idade Média. Esta é a segunda das ideias mencionadas acima. De maneira comparativa e crítica, o trabalho aponta e discute aquelas ideias basilares da tradição antifeminista européia, por meio da seleção e da citação de significantes partes da Geração dos animais, de Aristóteles e de autores da escrita religiosa medieval. Palavras-chave: Antifeminismo; História e cultura; Tradição européia. Abstract: This work examines two of the main ideas which can be considered as fundamental to the formation of the antifeminist tradition in European culture and literature. The first of these ideas are Aristotle’s studies about the woman physiology, where he reduced her role in the procreation to that of prime matter awaiting the forming and moving agency of the male semen. This Aristotelian consideration certainly substantiated an unpleasing equation between woman and matter, which found support in the religious thinking of the Middle Ages. This is the second of the ideas above mentioned. In a comparative and critical manner, the work points out and it discusses those two basilar ideas of the European antifeminist tradition by means of a selection and quotation from significant parts of Aristotle’s Generation of Animals and from authors of medieval religious writing. Keywords: Antifeminism; History and culture; European tradition. Os postulados de Aristóteles (384-322 a. C.) acerca da geração ou procriação das espécies animais, incluindo o gênero humano, foram de fundamental influência na formação do tradicional antifeminismo, não só na época em que foram elaborados, mas também, posteriormente, no pensamento medieval e moderno. Tais postulados podem ser encontrados, consistentemente, em De generatione animalium [Sobre a geração dos animais], cujos princípios fisiológicos tiveram considerável impacto, principalmente a Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 160 partir do século XII, quando a obra de Aristóteles começou a ser estudada na Universidade de Paris. Na verdade, as fontes da misoginia medieval – desconsiderando-se a impressão que se tem de que elas podem ser localizadas cada vez mais regressivamente na história das ideias e da cultura ocidental – podem ser identificadas em duas direções: uma conduzindo à antiga lei hebraica, e a outra, ao alvorecer da cultura grega, onde, por exemplo, já em Hesíodo (c. 750 a. C.), aparecem certas imagens da mulher como responsável pela introdução do mal no mundo (ALLEN, 1985, p. 14-15). O legado dos pronunciamentos de Aristóteles sobre o gênero feminino, apesar do peso da auctoritas que o filósofo havia adquirido na Idade Média, não foi, entretanto, absolutamente incontestável. Em mais de um momento, médicos e comentadores discutiram acerca das mais derrogatórias deduções que a fisiologia de Aristóteles havia estabelecido para o corpo feminino, principalmente aquelas que a ele se referiam como uma espécie de corpo masculino deformado, ou cuja finalidade procriadora teria sido distorcida. É bastante conhecida a redução aristotélica da função da mulher na procriação como responsável pela contribuição da matéria prima apenas, semente inativa e informe, à espera do princípio formador e animador encontrado no sêmen do homem. A fim de se aquilatar a importância que os preceitos fisiologistas de Aristóteles tiveram na construção linguística, retórica e imaginária da figura feminina – a partir da influente obra enciclopedística de Isidoro de Sevilha (c. 570-636) denominada Etymologiae [Etimologias] –, uma seleção antológica, ainda que sucinta, de pontos surgidos na discussão de Aristóteles acerca do sêmen, da menstruação e da espécie de contribuição da mulher na procriação torna-se necessária ser examinada. Para tal seleção, constante de 726b, 727a, 727b, 728a, 729a, 737a, 738b e 775a, do De generatione animalium, foi utilizada a tradução de A. L. Peck, Aristotle: Generation of Animals (1963), cujos trechos selecionados do original correspondem às páginas 91-93, 97, 101-103, 109, 173175, 185 e 459-461. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 161 Aristóteles comenta sobre o sêmen masculino, uma espécie de resíduo nutricional em forma de sangue, de grande potência, obtido graças a uma especial preparação calorífera mais intensa no corpo do macho. Fala, em contrapartida, sobre o resíduo feminino, menos preparado nutricionalmente, expelido do corpo feminino em maior quantidade fluídica, como sangue, de valor potencial mais fraco por causa da menor quantidade de calor produzido em criaturas inferiores, como as fêmeas: Semen is pretty certainly a residue from that nourishment which is in the form of blood and which, as being the final form of nourishment, is distributed to the various parts of the body. This, of course, is the reason why semen has great potency – the loss of it from the system is just as exhausting as the loss of pure healthy blood […] Now (i) the weaker creature too must of necessity produce a residue, greater in amount and less thoroughly concocted; and (ii) this, if such is its character, must of necessity be a volume of bloodlike fluid. (iii) That which by nature has a smaller share of heat is weaker; and (iv) the female answers to this description.1 (ARISTOTLE, 1963, 726b) Na sequência dos comentários sobre as secreções procriadoras produzidas pelo macho e pela fêmea, Aristóteles chega aos seus famosos postulados binômicos sobre matéria / corpo e forma / alma; realidades que, respectivamente, caracterizariam, na geração dos descendentes, a contribuição da propriedade formativa e animadora do sêmen do macho, altamente nutriente por causa da sua natureza calorífera, e a contribuição da propriedade passiva e não-formativa do resíduo nutriente feminino, dada a frieza da sua natureza: Now it is impossible that any creature should produce two seminal secretions at once, and as the secretion in females which answers to semen in males is the menstrual fluid, it obviously follows that the female does not contribute any semen to generation; for if there were semen, there would be no 1 O sêmen é muito certamente um resíduo daquele nutriente que está na forma de sangue e que, por ser a forma final de nutriente, é distribuído às várias partes do corpo. Isso, claro, é a razão pela qual o sêmen tem maior potência – a perda dele do sistema é tão exaustiva quanto é a perda do puro sangue saudável [...] Agora, (i) a criatura mais fraca também deve, por necessidade, produzir um resíduo, maior em quantidade e inteiramente menor em preparação nutricional de conversão sanguínea; e isso, (ii) se tal é a sua característica, deve, por necessidade, ser um volume de fluido semelhante ao sangue. (iii) Aquilo que, por natureza, tem uma menor porção de calor é mais fraco; e (iv) a fêmea corresponde a esta descrição. 1 Agora, é impossível que qualquer criatura deva produzir dois tipos de secreção seminal ao mesmo tempo e, como a secreção nas fêmeas, que corresponde ao sêmen nos machos, é o fluido menstrual, obviamente segue-se que a fêmea não contribui com nenhum sêmen na geração; porque, se ele fosse sêmen, não existiria nenhum fluido menstrual, mas, como o fluido menstrual é de fato produzido, portanto não existe nenhum sêmen. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 162 menstrual fluid; but as menstrual fluid is in fact formed, therefore there is no semen.2 (ARISTOTLE, 1963, 727a). By now it is plain that the contribution which the female makes to generation is the matter used therein, that this is to be found in the substance constituting the menstrual fluid, and finally that the menstrual fluid is a residue.3 (ARISTOTLE, 1963, 727b). A woman is as it were an infertile male; the female, in fact, is female on account of inability of a sort, viz., it lacks the power to concoct semen out of the final state of nourishment […] because of the coldness of its nature.4 (ARISTOTLE, 1963, 728a) The male provides the “form” and the “principle of the movement,” the female provide the body, in other words, the material.5 (ARISTOTLE, 1963, 729a) Na sequência dessas reflexões, Aristóteles dá a entender que a contribuição da fêmea na geração, o seu fraco resíduo seminal, é responsável pela produção de machos deformados, isto é, de descendentes do sexo feminino, pois lhes faltam o princípio da alma, apenas encontrado, na sua inteireza, no sexo masculino. Portanto, a não produção de machos parece ser devida, em princípio, à espécie de atuação da fêmea genitora: When the semen has entered the uterus it “sets” the residue produced by the female and imparts to it the same movement with which it is itself endowed. The female’s contribution, of course, is a residue too, […] and contains all the parts of the body potentially, though none in actuality; and “all” includes those parts which distinguish the two sexes. Just as it sometimes happens that deformed offspring are produced by deformed parents, and sometimes not, so the offspring produced by a female are sometimes female, sometimes not, but male. The reason is that the female is as it were a deformed male; and the menstrual discharge is semen, though in an impure condition; i. e. it lacks one constituent, and one only, the principle of Soul.6 (ARISTOTLE, 1963, 737a) 2 Agora, é impossível que qualquer criatura deva produzir dois tipos de secreção seminal ao mesmo tempo e, como a secreção nas fêmeas, que corresponde ao sêmen nos machos, é o fluido menstrual, obviamente segue-se que a fêmea não contribui com nenhum sêmen na geração; porque, se ele fosse sêmen, não existiria nenhum fluido menstrual, mas, como o fluido menstrual é de fato produzido, portanto não existe nenhum sêmen. 3 Por agora está claro que a contribuição que a fêmea faz para a geração é a matéria nela usada, que esta é encontrada na substância que constitui o fluido menstrual, e finalmente, que o fluido menstrual é um resíduo. 4 Uma mulher é como se fosse um homem infértil; a fêmea, de fato, é fêmea devido a uma espécie de inabilidade, viz., falta-lhe o poder da preparação do sêmen num estado final de nutrição [...] por causa da frieza da sua natureza. 5 O macho provê a “forma” e o “princípio do movimento”, a fêmea provê o corpo, em outras palavras, o material. 6 Quando o sêmen entra no útero, ele “fixa” o resíduo produzido pela fêmea e imprime nele o mesmo movimento com o qual ele próprio é dotado. A contribuição da fêmea, claro, é um resíduo também, [...] e contém todas as partes do corpo potencialmente, embora nenhuma em atualidade; e “todas” inclui aquelas partes que distinguem os dois sexos. Da mesma forma que, às vezes, acontece de descendentes Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 163 Aristóteles dá a entender, na passagem a seguir, que a alma de cada corpo vivo é uma dotação do genitor, ao passo que o corpo, a parte física da criatura, vem da genitora, pois somente o sêmen masculino possui a capacidade de carregar a alma, essência de cada corpo em particular, a qual é impressa na matéria, dando-lhe forma: An animal is a living body, a body with Soul in it. The female always provides the material, the male provides that which fashions the material into shape; this, in our view, is the specific characteristic of each of the sexes: that is what it means to be male or female. Hence, necessity requires that the female should provide the physical part, i. e., a quantity of material, but not that the male should do so, since necessity does not require that the tools should reside in the product that is being made, nor that the agent which uses them should do so. Thus the physical part, the body, comes from the female, and the Soul from the male, since the Soul is the essence of a particular body.7 (ARISTOTLE, 1963, 738b) No trecho a seguir, o filósofo, continuando a sua reflexão sobre a condição de deformidade natural da fêmea, diz que, devido à frialdade da sua natureza, ela se desenvolve de forma mais débil e mais rapidamente perecível, uma vez que as coisas inferiores cumprem o seu fim mais rapidamente: Once birth has taken place everything reaches its perfection sooner in females than in males – e. g. puberty, maturity, old age – because females are weaker and colder in their nature; and we should look upon the female state as being as it were a deformity, though one which occurs in the ordinary course of nature. While it is within the mother, then, it develops slowly on account of its coldness, since development is a sort of concoction, concoction is effect by heat, and if a thing is hotter its concoction is easy; when, however, it is free from the mother, on account of its weakness is quickly approaches its maturity and old age, since inferior things all reach their end more quickly.8 (ARISTOTLE, 1963, 775a) deformados serem produzidos por pais deformados e, às vezes, não, assim os descendentes produzidos por uma fêmea são, às vezes, fêmeas, às vezes, não, mas machos. A razão é que a fêmea é como se fosse um macho deformado, e a descarga menstrual é sêmen, embora numa condição impura; i. e., falta-lhe um constituinte, e somente um, o princípio da Alma. 7 Um animal é um corpo vivo, um corpo com Alma dentro. A fêmea sempre provê o material, o macho provê aquilo que molda o material numa forma; isto, em nossa opinião, é a característica específica de cada um dos sexos: isto é o que significa ser macho ou fêmea. Daí que, a necessidade requer que a fêmea deve prover a parte física, i. e., a quantidade de material, mas não que o macho deve fazer o mesmo, uma vez que a necessidade não requer que os instrumentos devem residir no produto que está sendo feito, nem que o agente que os usa deve fazer o mesmo. Então, a parte física, o corpo, vem da fêmea; e a Alma, do macho, uma vez que a Alma é a essência de um corpo individual. 8 Uma vez ocorrido o nascimento, tudo alcança o seu acabamento mais cedo nas fêmeas do que nos machos – e.g. puberdade, maturidade e velhice – porque as fêmeas são mais fracas e mais frias em sua Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 164 Nessa breve seleção de pronunciamentos de Aristóteles sobre a fêmea, percebe-se uma maior derrogação da imagem feminina em relação à sua incapacidade em processar, de forma mais depurada, o nutriente convertido especialmente em sangue, o qual não atinge, de forma completa, o seu estado final de nutrição seminal por causa da insuficiência de calor que caracteriza a sua natureza. É por essa razão que o fluido menstrual é uma espécie de sêmen em condição impura, faltando-lhe um único constituinte – o princípio da Alma. Uma vez que, desde a tradição aristotélica, tal funcionamento do corpo feminino foi visto assim de forma tão negativa, a menstruação tornou-se uma preocupação constante não só da medicina, mas também da religião medieval. A condição de impureza da menstruação indicava a sujidade feminina, refletida não só no terreno da fisiologia, mas também no campo moral e religioso. Dentre outras superstições, o imaginário medieval conferia a ideia de que, se um homem tivesse sexo com uma mulher em estado de menstruação, estaria arriscando contrair a lepra (JACQUART e THOMASSET, 1988, p. 186). Esse aspecto fisiológico da mulher reprimia o seu completo desenvolvimento humano, tornando-a incapaz de igualar-se ao homem porque, diferente dele, o seu sistema corporal dava mostras da sua mais anômala inoperância: ter que se manter limpando periodicamente de uma espécie de água residual suja. Entretanto, as crenças imaginárias, derivadas dos pronunciamentos da tradição aristotélica sobre a fisiologia da menstruação, vão desde as mais ingênuas às mais grotescas e sinistras. Num livro do século XIII, intitulado De secretis mulierum [Sobre o segredo das mulheres], bastante popular e espuriamente atribuído a Alberto Magno, encontram-se os mais bizarros comentários acerca da mulher em estado de menstruação: normalmente poderia ser venenosa, mas, especialmente numa mulher menstruando-se natureza; e nós devemos considerar o estado da fêmea como uma deformidade, embora uma deformidade que ocorre no curso ordinário da natureza. Enquanto está dentro da mãe, então, a fêmea se desenvolve mais devagar, devido a sua frieza, uma vez que o desenvolvimento é uma espécie de preparação nutricional sanguínea e tal preparação é efetuada pelo calor, e se uma coisa é mais quente, a sua preparação é fácil; quando, entretanto, a fêmea sai de dentro da mãe, devido à sua fraqueza, ela Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 165 irregularmente ou numa velha, cujo sistema menstrual era considerado em estado de deterioração, os danosos fluidos, ao procurarem uma saída, poderiam ser transmitidos pelos olhos, tendo a capacidade de envenenar crianças pequenas (JACQUART e THOMASSET, 1988, p.75-76). Esses perniciosos atributos da menstruação, ao lado de muitos outros constantes da natureza feminina, criaram tradicionais crenças femifóbicas, indicando a ideação de uma adversidade biológica, na atração e no exercício sexual, do poder da mulher sobre a vida do homem. André Capelano (século XII) exemplifica isso, no comentário que faz de, certa vez, ter lido num tratado de medicina que a atividade sexual faz o homem envelhecer mais cedo. Em Andreas Capellanus On Love (1982) [De amore (c. 1185)], comentando sobre o descontrole danoso causado ao homem pelo sexo com uma mulher, diz o autor: “It does not matter how full of sound sense a man is. Once enticed to sexual intercourse he cannot observe moderation, deploy his wisdom to control tendencies to sexual indulgence, or curb his lethal activities” (ANDREAS CAPELLANUS, 1982, III. 62).9 Essa opinião, bastante corrente na literatura patrística da Idade Média, pode ser bem representada por São Jerônimo (c. 342-420), no seu misógino livro Adversus Jovinianum [Contra Joviniano] (c. 393), em passagens como aquela de I. 49: “The love of a beauty buries reason and is close neighbour of madness” (JEROME, 1893, p. 416).10 Aristóteles e Galeno haviam comentado que o sêmen masculino era uma espécie de resíduo de sangue altamente refinado. Consoante a essa opinião, havia a suposição, entre os médicos e fisiologistas medievais, de que a atividade sexual, praticada com muita frequência, poderia literalmente drenar a vitalidade do sangue do homem, debilitando-lhe, talvez, o cérebro ou mesmo os olhos (ARISTOTLE, 1963, 726b; ROUSSELLE, 1988, p. 12-20; JACQUART e THOMASSET, 1988, p. 55-56). rapidamente se aproxima da sua maturidade e da sua velhice, uma vez que todas as coisas inferiores alcançam o seu final mais rapidamente. 9 Não importa quão cheio de sadio senso o homem esteja. Uma vez atraído ao intercurso sexual, ele não pode observar a moderação, organizar a sua sabedoria para controlar tendências à indulgência sexual, ou refrear as suas atividades letais. 10 O amor por uma beldade enterra a razão e é vizinho próximo da loucura. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 166 É de se constatar que tais depoimentos antifeministas tenham decorrido da postulação aristotélica de que a fêmea seria uma espécie de macho incompleto, deformado, cuja geração não havia resultado satisfatória, principalmente devido ao corpo feminino ser, por natureza, mais frio, não conseguindo, por essa razão, refinar os seus fluidos seminais da mesma forma que o corpo masculino. Facilitado pelo calor natural do seu corpo, o macho produz o seu sêmen, o qual difere do fluido feminino, cuja acumulação em forma de mênstruos requer purgações periódicas. Na esteira dessas ideias aristotélicas, ligadas à fisiologia dos sistemas sexuais do macho e da fêmea, Galeno (131-201) desenvolve interessantes pontos de vista acerca da anatomia da deformidade da genitália feminina. Galeno foi um médico da corte do imperador Marco Aurélio e escreveu extensamente sobre medicina e sobre anatomia. Durante a Idade Média, o que escreveu, originalmente em grego, foi transmitido por escritos árabes. Galeno confirmou a teoria hierárquica dos sexos cunhada por Aristóteles. Ao comentar sobre a diferença de temperatura entre o sexo feminino e o masculino, ele acreditava que o pouco calor do corpo feminino era a causa dos seus órgãos generativos terem ficado internalizados, numa posição, portanto, inversa aos do corpo masculino. A fim de se poder avaliar a importância dos preceitos fisiologistas e anatomicistas de Galeno, em relação ao que ele segue ou acrescenta ao que Aristóteles expõe em De Generatione animalium, a seguinte seleção antológica, extraída do seu livro De usu partium (final do século II) [Sobre as partes do corpo], serve para apresentar pontos básicos da sua contribuição, no desenvolvimento da tradição aristotélica, à questão da geração do sexo masculino e do sexo feminino. Para tal seleção, constante de II. 299, II. 300 e II. 301, do De usu partium, foi utilizada a tradução de Margaret Tallmadge, Galen: On the Usefulness of the Parts of the Body (1968) [Sobre a utilidade das partes do corpo], cujos trechos selecionados do original correspondem às páginas 630-632. Diferenciando-se de Aristóteles, Galeno apresenta alguns reconhecimentos mais simpáticos a uma maior participação da fêmea na geração como, por exemplo, o fato da presença da sua semente no coito, contribuindo, assim, o “sêmen” feminino na Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 167 concepção. No seu livro, Galeno aborda a questão da presença e da quantidade do calor, instrumento primordial da Natureza, como a razão da perfeição do macho, tanto nos animais quanto nos seres humanos. As fêmeas, segundo Galeno, são mais imperfeitas do que os machos no seu aparelho genital que, por insuficiência do calor do seu corpo, não adquiriu a plenitude de uma manifestação exterior. Galeno faz questão de frisar que essa mutilação é vantajosa, pois convalida a necessidade da presença da fêmea no processo da geração: Now just as mankind is the most perfect of all animals, so within mankind the man is more perfect than the woman, and the reason for this perfection is his excess of heat, for heat is Nature’s primary instrument. Hence in those animals that have less of it, her workmanship is necessarily more imperfect, and so it is no wonder that the female is less perfect than the male by as much as she is colder than he. In fact, just as the mole has imperfect eyes, though certainly not so imperfect as they are in those animals that do not have any trace of them at all, so too the woman is less perfect than the man in respect to the generative parts. For the parts were formed within her when she was still a foetus, but could not because of the defect in the heat emerge and project on the outside, and this, though making the animal itself that was being formed less perfect than one that is complete in all respects, provided no small advantage for the race; for there needs must be a female. Indeed, you ought not to think that our Creator would purposely make half the whole race imperfect and, as it were, mutilated, unless there was to be some great advantage in such a mutilation.11 (GALEN,1968, II. 299) No que se segue, Galeno imprime ao sentido de “mutilação” da fêmea certa dignidade natural e tenta racionalizar os fatos: se a fêmea é imperfeita por falta de calor suficiente, não encontrado no seu corpo, essa mesma insuficiência calorífera, não favorecendo a dispersão do nutriente, mantém-no em forma de material abundante para a vida uterina do feto. Assim, naturalizando a constituição mais frígida da fêmea, comenta Galeno 11 Agora, do mesmo modo como a espécie humana é a mais perfeita de todos os animais, assim, dentro da humanidade, o homem é mais perfeito do que a mulher, e a razão dessa sua perfeição é o seu excesso de calor, porque o calor é o instrumento primordial da Natureza. Daí que, aqueles animais que o têm de menos, a sua obra [i. e., da Natureza] é necessariamente mais imperfeita, e, assim, não é de se admirar que a fêmea seja menos perfeita do que o macho, devido ao tanto que ela é mais fria do que ele. De fato, assim como a toupeira tem olhos imperfeitos, embora certamente não tão imperfeitos como naqueles animais que não tem, de forma alguma, nenhuma marca deles [dos olhos], assim também a mulher é menos perfeita do que o homem com respeito às partes generativas. Porque as partes foram formadas dentro dela, quando ela era ainda um feto, mas não puderam, por causa da insuficiência do calor, emergir e se projetar para o lado de fora, e isto, embora fazendo o próprio animal que estava sendo formado menos perfeito do que aquele que é completo em todos os aspectos, providenciou uma vantagem não pequena para a raça; por causa da necessidade de uma fêmea. Na verdade, não se deve pensar que o nosso Criador tenha propositadamente feito metade da raça inteira e, como se fosse, mutilada, a menos que exista uma grande vantagem nessa mutilação. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 168 que a sua insuficiência de calor corporal manteve a genitália escrotal recolhida, formando o útero para abrigar o feto, promovendo a geração e a continuidade da raça. Nesse caso, a existência da fêmea decorre de uma simples necessidade natural adjuntiva: Let me tell what this is. The foetus needs abundant material both when it is first constituted and for the entire period of growth that follows. […] Accordingly, it was better for the female to be made enough colder so that she cannot disperse all the nutriment which she concocts and elaborates. […] This is the reason why the female was made cold, and the immediate consequence of this is the imperfection of the parts, which cannot emerge on the outside on account of the defect in the heat, another very great advantage for the continuance of the race. For, remaining within, that which would have become the scrotum if it had emerged on the outside was made into the substance of the uteri, an instrument fitted to receive and retain the semen and to nourish and perfect the foetus.12 (GALEN, 1968, II. 300) Na sequência das suas reflexões sobre a imperfeição da mulher, enquanto necessidade planejada pela sabedoria do Criador para a geração das criaturas, Galeno, ainda tocando na questão da importância da quantidade de calor, em excesso no macho e deficiente na fêmea, parece chegar a uma pacífica concordância relativamente à relevância que os dois teriam na geração dos seus descendentes. Consoante a isso, preocupado com a constituição anatômica das partes sexuais do macho e da fêmea, analogiza essas partes, a ponto de dizer que a mulher tem testículos (ovários) como os homens, e que ambos produzem sêmen, mais perfeitos nestes e imperfeitos naquelas. Entretanto, mesmo essa imperfeição das partes sexuais da fêmea tem uma função compensatória, advinda da necessidade da natureza, na geração dos animais: Forthwith, of course, the female must have smaller, less perfect testes, and the semen generated in them must be scantier, colder, and wetter (for these things too follow of necessity from the deficient heat). Certainly such semen would be incapable of generating an animal. […] The testes of the male are as much larger as he is the warmer animal. The semen generated in them, having received the peak of concoction, becomes the efficient principle of the animal. Thus, from one principle devised by the Creator in his wisdom, that principle in accordance with which the female has been made less perfect 12 Deixe-me contar o que é isto. O feto precisa de material abundante, tanto quando ele é primeiramente constituído quanto para o período inteiro do crescimento que segue. [...] Conseqüentemente, foi melhor para a fêmea ser feita suficientemente mais fria para que ela não possa dispersar todo o nutriente que ela prepara e elabora. [...] Esta é a razão pela qual a fêmea foi feita fria, e a conseqüência imediata disto é a imperfeição das partes, as quais não podem emergir para o lado de fora devido à deficiência de calor, outra vantagem muito grande para a continuação da raça. Porque, permanecendo dentro, aquilo que teria se transformado no escroto, se tivesse emergido para fora, foi transformado na substância do útero, um instrumento apropriado para receber e reter o sêmen e para nutrir e aperfeiçoar o feto. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 169 than the male, have stemmed all these things useful for the generation of the animal: that the parts of the female cannot escape to the outside; that she accumulates an excess of useful nutriment and has imperfect semen and a hollow instrument to receive the perfect semen; that since everything in the male is the opposite [of what it is in the female], the male member has been elongated to be most suitable for coitus and the excretion of semen; and that his semen itself has been made thick, abundant, and warm.13 (GALEN, 1968, II. 301). Além de Galeno, dentre outros na Antiguidade, o fisiologismo de Aristóteles – relativo à participação do macho e da fêmea na geração dos animais e, por analogia, do homem e da mulher na geração da sua prole – deixou um influente legado no pensamento dos mais importantes religiosos da Idade Média. Especialmente quando preocupados com a questão da definição do gênero ligada às ideias aristotélicas de matéria e forma, as quais foram respectivamente utilizadas para indicar as propriedades do feminino e do masculino. Apesar da variada gama de escritos medievais que se basearam – quer de forma mais direta e literal, quer de maneira mais metafórica, simbólica ou figurativa – nos postulados aristotélicos fundamentados nessas ideias de qualificação genérica, os escritos de Santo Anselmo e de São Tomás de Aquino servem para dar uma exemplar e suficiente mostra do tratamento da questão no período medieval. Santo Anselmo (1033-1109), um monge beneditino, que havia chegado a Arcebispo da Cantuária, é uma figura curiosa, principalmente por seus escritos trazerem um imaginário não muito ortodoxo relativamente à questão do gênero transferida para o terreno do sagrado. Compôs uma prece lírica a São Paulo, na qual as metáforas simbólicas da geração e da nutrição de uma nova vida, muito apreciadas no cristianismo, imaginaram a figura de Jesus Cristo como uma verdadeira mãe (ALLEN, 1985, p. 265-66). Mesmo em termos de análise filosófica, na sua principal obra, 13 Com isso, é claro, a fêmea deve ter testículos menores e menos perfeitos, e o sêmen gerado neles deve ser mais escasso, mais frio e mais úmido (porque essas coisas também acontecem necessariamente devido ao calor deficiente). Certamente, tal sêmen seria incapaz de gerar um animal. [...] Os testículos do macho são maiores à medida que ele é um animal mais quente. O sêmen gerado neles, tendo recebido o máximo de refinamento, torna-se o princípio eficiente do animal. Então, de um princípio planejado pelo Criador em sua sabedoria, aquele princípio, de acordo com o qual a fêmea foi feita menos perfeita do que o macho, derivaram todas estas coisas úteis para a geração do animal: que as partes da fêmea não podem escapar para fora; que ela acumula um excesso de nutriente útil, e tem sêmen imperfeito e um instrumento oco para receber o perfeito sêmen; que, uma vez que, tudo no macho é o oposto (daquilo que está na fêmea), o membro do macho foi alongado para estar mais apropriado para o coito e para a excreção do sêmen; e que este sêmen foi feito grosso, abundante e quente. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 170 Monologium, Santo Anselmo, desafiando preconceitos canônicos, discute sobre o gênero do sagrado. Por meio de um curioso raciocínio, que joga com o gênero das principais palavras-conceito, utilizadas para definir os atributos do Supremo Espírito (Deus) e do seu filho Jesus, chega à seguinte conclusão: ambos podem ser, indiferentemente, chamados de pai e filho ou de mãe e filha, visto que ambos têm igualmente, no seu mais supremo teor, espírito (i. e., spiritus, no latim, uma palavra do gênero masculino) e verdade e sabedoria (i. e., veritas e sapientia, palavras do gênero feminino, no latim). Entretanto, após essa instigação, que lembra o método etimológico de Santo Isidoro de Sevilha, Santo Anselmo retrocede na sua conclusão. Lembra-se, para tanto, do conceito aristotélico da função paterna como causa principal da geração (princípio esse bastante de acordo com o postulado bíblico da precedência de Adão sobre Eva na Criação) e conclui, definitivamente, que o Supremo Espírito só poderia ser mesmo masculino, o mesmo acontecendo com o seu Filho, ao Pai unido em Espírito. O trecho a seguir, constante do capítulo 42 do Monologium, constitui uma derivação figurada e ideológica das ideias fisiologistas de Aristóteles e das ideias etimologistas de Santo Isidoro de Sevilha acerca das razões pelas quais o pai teria precedência como causa primeira na geração, visto que é o princípio da Alma, responsável pela forma e pelo movimento. A mãe vem em segundo plano, entrando com a matéria para a composição corporal dos descendentes. Sobre essa questão do pai como causa primeira, Santo Isidoro de Sevilha, em IX. v. 3, das Etymologiae, diz que o pai (pater) é a origem e a cabeça da família (paterfamilias), sendo assim chamado porque ele procria um filho para colocar em bom termo final uma capacidade (patratione). Para a apresentação do assunto discutido por Santo Anselmo, foi utilizada a edição e tradução de Jasper Hopkins e Herbert Richardson, Anselm of Canterbury (1974), cujo trecho selecionado do original corresponde ao capítulo 42 do Monologium. I should now like to infer, if I can, that the Supreme Spirit is most truly father and the Word most truly son. Yet, I think I ought not to bypass the question of which set of terms is more suitable for them – “father and son” or “mother and daughter” – for there is no sexual distinction in the Supreme Spirit and the Word. For if the Supreme Spirit is appropriately father and its offspring appropriately son because each is spirit, then by parity of reasoning why is it not appropriate for one to be mother and the other to be daughter on the grounds that each is truth and wisdom? Is it [preferable to call them father and son] because among those natures which have a difference of sex it is Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 171 characteristic of the better sex to be father and son and of the inferior sex to be mother and daughter? Now, although such is naturally the case for many beings, for others the reverse holds true. For example, in some species of birds the female sex is always larger and stronger, the male sex smaller and weaker. But surely, the Supreme Spirit is more suitably called father than mother because the first and principal cause of offspring is always the father. For, if the paternal cause always in some way precedes the maternal cause, then it is exceedingly inappropriate for the name “mother” to be applied to that parent whom no other cause either joins or precedes for the begetting of offspring.14 (ANSELM, 1974, i. 55-56) Os postulados aristotélicos, referentes à equivalência fisiologista da mulher à matéria, chegaram ao século XIII e tiveram, no pensamento escolástico de São Tomás de Aquino (1225-1274), uma significativa repercussão e interesse. Talvez o que mais tenha instigado o teólogo, na sua busca de explicação pragmática para os mistérios da teologia, foi a questão de Cristo não ter contraído o Pecado Original, apesar de ter sido concebido do ventre de uma mulher. A explicação encontraria o seu perfeito suporte no princípio aristotélico de que sempre o macho é que transmite o sêmen encarregado de dar formação e movimento anímico ao descendente. Como, segundo a Bíblia, Cristo não teve pai humano, então ele esteve livre da transmissão do Pecado Original (BORRESEN, 1981, p. 219-22; AQUINAS, Summa Theologiae, III. Q. 34, art. 4, onde se discute se a Virgem teve alguma parte ativa na concepção do corpo de Cristo). Algumas questões apresentadas na Summa Theologiae (1266-1272), relativamente à visão tomista sobre a mulher, referem-se à sua responsabilidade na introdução do Pecado Original no mundo, à isenção do mesmo em Cristo, e a assuntos que retomam a tradicional e debatida inferioridade biológica, moral e espiritual da mulher. São Tomás 14 Eu gostaria agora de inferir, se eu puder, que o Supremo Espírito é mais verdadeiramente pai e que a Palavra, mais verdadeiramente filho. Ainda, eu acho que eu não devia ignorar a questão sobre qual conjunto de termos é mais apropriado para eles – “pai e filho” ou “mãe e filha” – porque não existe diferença sexual entre o Supremo Espírito e a Palavra. Porque, se o Supremo Espírito é apropriadamente pai e o seu descendente apropriadamente filho, porque cada um é espírito, então, por paridade de raciocínio, por que não é apropriado para um ser mãe e para o outro ser filha, com base em que cada um é verdade e sabedoria? É [preferível chamá-los pai e filho] porque, entre aquelas naturezas que têm uma diferença de sexo, é característico do melhor sexo ser pai e filho, e do inferior sexo, ser mãe e filha? Agora, embora tal seja naturalmente o caso para muitos seres, para outros o reverso mantém-se verdadeiro. Por exemplo, em algumas espécies de aves, o sexo feminino é sempre maior e mais forte, o sexo masculino, menor e mais fraco. Mas com certeza, o Supremo Espírito é mais apropriadamente chamado de pai do que de mãe porque a primeira e principal causa da descendência é sempre o pai. Porque, se a causa paternal sempre, de certa forma, precede a causa maternal, então é extremamente inapropriado o nome “mãe” ser aplicado àquele genitor, ao qual nenhuma outra causa não se liga nem precede para a produção da descendência. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 172 de Aquino compartilhou da ideia agostiniana de que o pecado de Eva foi realmente mais grave do que o de Adão, devido à presunção que a fez acreditar na serpente (AUGUSTINE, 1982, ii, 175-76). Ainda assim, o autor da Summa tentou conciliar os virulentos pronunciamentos patrísticos misóginos com os pronunciamentos antifeministas de Aristóteles, a fim de que, mesmo aceitando-se o fato de a mulher ser um “macho defeituoso”, a Igreja devesse reconhecê-la como uma criação de Deus que, apesar de mais imperfeita do que o homem, seria, ainda assim, indefectível, visto que o Supremo Criador não cometera erro nenhum na Criação. Para a apresentação dessas e de outras idéias tomistas sobre o sexo feminino, contrafrásico ao masculino, foram utilizadas as traduções de R. J. Batten OP, para xxxiv da Summa Theologiae (1975) e de Edmund Hill OP, para xiii (1963) da Summa Theologiae, cujos trechos selecionados dos originais correspondem, respectivamente, às páginas 149 e 35-39. Respondendo à questão se alguém deveria amar mais a mãe do que o pai, São Tomás de Aquino adere nitidamente aos já anteriormente comentados postulados aristotélicos sobre a primazia do macho, como causa primeira e mais eficiente na geração dos animais. Não descartando o fato de que tanto o pai quanto a mãe são princípios necessários à nossa origem, diz, entretanto, que a força anímica, a alma, vinda da semente paterna e que dá forma ao ser, tem um papel superior a ser reconhecido e valorizado pelos seus descendentes: Reply) It is the father who ought to be loved more than the mother. For one’s father and mother are loved as principles in our natural origin. But the father, as the active partner, is a principle in a higher way than the mother, who supplies the passive or material element. And so, speaking per se, the father should be loved more. Hence: (I) In human generation, the mother provides the matter of the body which, however, is still unformed, and receives its form only by means of the power which is contained in the father’s seed.15 (AQUINAS, 1975, xxxiv. II. ii. 26. 10) 15 Resposta) É o pai que deve ser mais amado que a mãe. Porque o pai e a mãe de alguém são amados como princípios na nossa origem natural. Mas o pai, como o parceiro ativo, é um princípio de modo superior à mãe, que provê o elemento passivo ou material. E assim, falando por si mesmo, o pai deveria ser amado mais. Daí: (I) Na geração humana, a mãe provê a matéria do corpo que, entretanto, está ainda sem forma, e recebe a sua forma somente por meio do poder que está contido na semente do pai. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 173 Na seção da Summa, que se segue, São Tomás de Aquino retoma comentários feitos por Aristóteles e por Santo Agostinho sobre o gênero feminino. Trata do conceito aristotélico da mulher como homem fracassado e imperfeito (“manqué”) (ARISTOTLE, 1963, 737a). Também questiona sobre a sua participação na produção original das coisas. Conclui que a mulher não poderia ter participado na criação original porque, nela, tudo foi criado perfeito, segundo a onisciência e a onipotência divinas. Portanto, a conclusão é óbvia: a mulher é inferior, em capacidade e em qualidade, ao homem, não só por não ter participado na criação original das coisas, mas também por ter promovido, presunçosamente, a introdução do pecado no mundo. Deve, portanto, ser conservada em estado de submissão, porque a inferioridade é resultado daquele que pecou primeiro (Genesis 3: 16). Recordando Santo Agostinho, diz que a maior honra cabe à causa ativa, que é prerrogativa do sexo masculino (AUGUSTINE, 1982, XII. 16; MIGNE, 1844-1864, 43.467). Essa é outra razão pela qual a mulher não deve ter sido produzida na criação original das coisas, ocorrida antes do Pecado. Entretanto, São Tomás de Aquino, conforme comentado anteriormente, não descarta a necessidade de a mulher ter sido criada não só à semelhança do homem (Genesis 2: 18), mas também para o acompanhar e para ajudá-lo na procriação dos seus descendentes (AUGUSTINE, 1982, IX. 5). Por outro lado, explica, de acordo com Aristóteles, que o sexo feminino só é produzido quer por uma debilidade do poder ativo da semente do homem, quer devido ao material seminal da mulher ou por causa de fatores externos (ARISTOTLE, 1963, 766b). Diz ainda que o defectivo do sexo feminino é uma questão individual apenas, não se referindo à tendência da natureza da espécie humana como um todo, a qual, criada por Deus, deve-lhe extrema obediência. Entretanto, São Tomás de Aquino não deixa de insinuar a presença da participação da mulher na procriação, apesar de desempenhar um expediente de segunda ordem, o que a coloca num plano visivelmente secundário e discriminatório: Should woman have been made in that original creation of things? THE FIRST POINT: 1. It seems that woman ought not to have been produced in the original production of things. For the Philosopher says that female is a male manqué. But nothing manqué or defective should have been produced in the first establishment of things; so woman ought not to have been produced then. 2. Again, subjection and inferiority are a result of sin; for it Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 174 was after sin that woman was told, “Thou shalt be under the power of the man”; and Gregory says that where we have done no wrong, we are equal. Yet woman is by nature of lower capacity and quality than man; for the active cause is always more honourable than the passive, as Augustine says. So woman ought not to have been produced in the original production of things before sin. […]. ON THE OTHER HAND, there is Genesis: “It is not good for man to be alone; let us make him a help that is like himself.” REPLY: It was absolutely necessary to make woman, for the reason Scripture mentions, as a help for man; not indeed to help him in any other work, as some have maintained, because, where most work is concerned man can get help more conveniently from another man than from a woman; but to help him in the work of procreation. […] HENCE: 1. Only as regards nature individual is the female something defective and manqué. For the active power in the seed of the male tends to produce something like itself, perfect in masculinity; but the procreation of a female is the result either of the debility of the active power, of some unsuitability of the material, or of some change effected by external influences, like the south wind, for example, which is damp, as we are told by Aristotle. But with reference to nature in the species as a whole, the female is not something manqué, but is according to the tendency of nature, and is directed to the work of procreation. Now the tendency of the nature of a species as a whole derives from God, who is the general author of nature. And therefore when He established a nature, He brought into being not only the male but the female too.16 (AQUINAS, 1963, xiii. 1a. 92. article 1) A seguir, São Tomás de Aquino, discutindo sobre os tipos de sujeição lícitos ao dirigente superior, comenta que a mulher não só é inferior e está sujeita ao homem em virtude do pecado, mas também devido à ordem natural dos grupos humanos, nos quais, mesmo antes do pecado, o mais inteligente, e que tem mais poder de discernimento, 16 Deve a mulher ter sido feita naquela criação original das coisas? O PRIMEIRO PONTO: 1. Parece que a mulher não deve ter sido produzida na produção original das coisas. Porque o Filósofo diz que a fêmea é um macho fracassado. Mas nada fracassado ou defectivo deve ter sido produzido no primeiro estabelecimento das coisas; assim, a mulher não deve ter sido produzida então. 2. Novamente, sujeição e inferioridade são um resultado do pecado; porque foi depois do pecado que foi dito à mulher, “Tu deverás estar debaixo do poder do homem”; e Gregório diz que onde não fizemos nada de errado, nós somos todos iguais. Ainda a mulher é, por natureza, de capacidade e qualidade mais baixas do que o homem; porque a causa ativa é sempre mais ilustre do que a passiva, conforme diz Agostinho. Assim, a mulher não deve ter sido produzida na produção original das coisas, antes do pecado. [...] POR OUTRO LADO, existe o Genesis: “Não é bom para o homem estar só; vamos fazer uma ajudante para ele, a qual lhe seja semelhante.” RESPOSTA: Foi absolutamente necessário fazer a mulher; porque a razão a Escritura menciona, como uma ajudante para o homem; não, na verdade, para ajudá-lo em qualquer trabalho, como alguns têm mantido, porque, no que se refere à maioria do trabalho, o homem pode obter ajuda mais convenientemente de outro homem do que de uma mulher; mas para ajudá-lo no trabalho da procriação. [...]. Daí: 1. Somente em relação à natureza no individual, a mulher é algo defectivo e fracassado. Porque o poder ativo na semente do macho tende a produzir alguma coisa como ele, perfeita na masculinidade; mas a procriação de uma fêmea é o resultado ou da debilidade do poder ativo, ou de alguma impropriedade do material, ou de alguma mudança efetuada por influências externas, como o vento sul, por exemplo, que é úmido, como nos diz Aristóteles. Mas, com referência à natureza na espécie como um todo, a fêmea não é algo fracassado; mas está de acordo com a tendência da natureza, e está direcionada ao trabalho da procriação. Agora, a tendência da natureza de uma espécie como um todo deriva de Deus, que é o autor geral da natureza. E, portanto, quando Ele estabeleceu a natureza, Ele deu existência não somente ao homem como também à mulher Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 175 comanda o menos apto (AUGUSTINE, 1982, XI. 37). Assim, de forma dupla, natural, mental e teologicamente, a mulher encontra-se inferiorizada em relação ao homem, devendo-lhe obediência e sujeição à sua vontade e ao seu comando: 2. Subjection is of two kinds: one is that of slavery, in which the ruler manages the subject for his own advantage, and this sort of subjection came in after sin. But the other kind of subjection is domestic or civil, in which the ruler manages his subjects for their advantage and benefit. And this sort of subjection would have obtained even before sin. For the human group would have lacked the benefit of order had some of its members not been governed by others who were wiser. Such is the subordination in which woman is by nature subordinate to man, because the power of rational discernment is by nature stronger in man.17 (AQUINAS, 1963, xiii. 1a. 92. article 1) Continuando nas considerações sobre a origem da mulher, São Tomás de Aquino, ainda no segundo artigo da Summa Theologiae, diante da pergunta sobre a origem da mulher, defende o caso de Eva ter realmente nascido do homem, pois, sendo o homem feito à imagem de Deus, nada mais digno e honroso que a mulher tenha dele nascido, sendo ele, dessa forma, a sua cabeça. Assim, assegurando a condição secundária da mulher na criação, apresenta o seguinte argumento: REPLY: It was right for woman to be formed from man in the original establishment of things, for reasons that do not apply to the other animals. In the first place, this was desirable in order to maintain a certain style and dignity for the first man, by making him, in virtue of his likeness to God, the original of his whole kind, just as God is the original of the whole universe. So Paul says that God “made the whole of mankind from one.” In the second place, this was good in order to make the man love the woman more and stick to her more inseparably, knowing that she had been brought forth from himself. […] Thirdly, as Aristotle says, “with man male and female are not only joined together for purposes of procreation, as with the other animals, but to establish a home life, in which man and woman work together at some things, and in which the man is head of the woman.” So the woman was rightly formed from the man, as her origin and chief. 18 (AQUINAS, 1963 xiii. 1a. 92. article 2) 17 A sujeição é de duas espécies; uma é aquela da escravidão, na qual o dirigente controla o subjugado para o seu próprio benefício, e esta espécie de sujeição veio depois do pecado. Mas o outro tipo de sujeição é doméstica ou civil, na qual o dirigente controla os seus subjugados para vantagem e benefício deles. E este tipo de sujeição seria obtido mesmo antes do pecado. Porque o grupo humano teria falta do benefício da ordem se alguns dos seus membros não fossem governados por outros que eram mais inteligentes. Tal é a sujeição em que a mulher é por natureza subordinada ao homem, porque o poder de discernimento racional é por natureza mais forte no homem. 18 RESPOSTA: Foi certo para a mulher ser formada do homem no estabelecimento original das coisas, devido a razões que não se aplicam a outros animais. Em primeiro lugar, isto foi desejável a fim de se manter um certo estilo e dignidade para o primeiro homem, por fazê-lo, em virtude da sua semelhança com Deus, o original [i. e., principium, o princípio] da sua espécie inteira, da mesma forma que Deus é o original do universo inteiro. Assim, Paulo diz que Deus “fez a humanidade inteira de um.” Em segundo Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 176 Os comentários, até agora feitos, a respeito de alguns postulados aristotélicos referentes a aspectos e à importância da fisiologia dos aparelhos genitores, tanto nos animais quanto nos humanos, apresentam a imagem do sexo feminino em geral, e da mulher em particular, numa posição de discriminada inferioridade em relação ao do masculino. Tais comentários serviram de base para a formação de um antifeminismo tradicional, cujas marcas mais profundas de ultraje misógino apareceram durante a Idade Média, especialmente no pensamento religioso. Na esteira dessas idéias acerca da derrogação do corpo e do sexo femininos, R. Howard Bloch (1987, p. 20) tem razão em afirmar que “in the misogynistic thinking of the Middle Ages, there can, in fact, be no distinction between the theological and the gynaecological” [no pensamento misógino da Idade Média, não pode haver, de fato, nenhuma distinção entre o teológico e o ginecológico.] . E a ginecologia do feminino medieval materializava a mulher como uma realidade orientada principalmente pelo corpóreo. Esse tipo de reducionismo medieval da mulher ao domínio da matéria e dos sentidos, principalmente na esfera do teológico, foi concebido alegoricamente por Santo Ambrósio, na sua conhecida representação alegórica da Queda, onde a serpente é “a type of pleasures of the body” [um tipo de prazeres do corpo], a mulher “stands for our senses” [representa os nossos sentidos] e o homem “for our minds” [representa as nossas mentes] (AMBROSE, Paradise, 1961, XV. 73, 1961, p. 351). É nesse sentido de influência disseminadora do pensamento misógino medieval que – aparentemente inocente em termos de uma afiliação antifeminista – surgem, no século VII, as Etymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha, um estudo enciclopedista dos mais completos jamais escritos na Idade Média. Santo Isidoro de Sevilha cresceu na Espanha durante o domínio dos visigodos, foi educado num monastério, ordenando-se e, mais tarde, tornou-se Arcebispo de Sevilha. As suas Etymologiae tornaram-se conhecidas, lugar, isto foi bom a fim de fazer o homem amar mais a mulher e ligar-se a ela mais inseparavelmente, sabendo que ela saiu dele próprio. [...] Em terceiro lugar, conforme Aristóteles diz, “no homem, o macho e a fêmea não só estão ligados para as finalidades da procriação, como acontece com os outros animais, mas para estabelecerem uma vida de lar, na qual o homem e a mulher trabalham juntos em certas coisas, e na qual o homem é a cabeça da mulher.” Assim, a mulher foi acertadamente formada do homem, origem e chefe dela. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 177 com essa nomenclatura, devido à maciça ênfase que o livro dá às derivações de palavras-chave que aparecem sob cada assunto encabeçado para tratamento. A enciclopédia de Santo Isidoro – devido à enorme valoração filosófica e teológica dada à palavra (verba) como portadora, na sua raíz ou no seu étimo, do sentido da substância e da realidade da coisa (res) – alcançou enorme influência e popularidade em toda a Europa medieval, sendo, inclusive, citada por muitos séculos depois. A questão medieval do conhecimento e da identificação do sentido da realidade das coisas criadas por Deus, a partir da palavra designada para nomeá-las, tem procedência na própria Bíblia, no episódio em que o Criador delega a Adão a função de nomeação dos animais. Atesta esse procedimento epistemológico de conhecimento da coisa a partir do seu nome, a significativa presença do método etimológico de Santo Isidoro de Sevilha no bestiário medieval, uma das mais importantes produções literárias da Idade Média. Para o caso da verificação do antifeminismo de Aristóteles na De generatione animalium, cuja influência transladou-se da fisiologia para o domínio da linguagem nas Etymologiae de Isidoro de Sevilha, um exemplo característico desse procedimento interdisciplinar aparece no chamado Bestiário de Cambridge, que se encontra atualmente na biblioteca da Universidade de Cambridge (Inglaterra), listado como MS. II. 4. 26. O seguinte trecho desse bestiário, tendenciosamene misógino, compara, utilizando-se do método etimológico, a natureza e as qualidades do homem com as da mulher, transcrevendo e ampliando com prédicas moralizantes, o seguimento das Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha, que trata do mesmo assunto: A man is called Vir because there is more worth (virtus) in him than there is in women. Hence also he gets the name of courage, or else because he governs this women by force (vi). Mulier the Woman is derived from ‘weakness’, since ‘mollior’ (weaker), with a letter taken away or changed, becomes ‘mulier’. They are differentiated from man both in courage and in imbecility of body. Man has the greater capacity, woman the lesser, on purpose that she should give in to him: i. e., lest, with women being difficult about it, lust should compel men to look elsewhere and to go awhoring after another sex. She is called ´mulier’ from her femininity and not because of her weakness in having her chastity corrupted, for the language of Holy Writ is: ‘And Eve was suddenly made out of the side of her man’. Not by contact with man is she called ‘mulier’. The scriptures say: ‘And he (God) formed her into a woman.’ […] Actually, ‘femina’, a woman, comes from ‘femur’ the upper part of the thigh, where the appearance of sex is different from man’s. Others, by using a Greek derivation say that it is because of the fiery force with which a woman vehemently lusts, and that females are more Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 178 longing than males, both in humans and in animals. Too much love was therefore thought to be effeminate among the ancients.19 (BOOK OF BEASTS, 1984, p. 222-223) Os pronunciamentos acima, evidentemente extraídos das Etymologias de Isidoro de Sevilha, ressoando as ideias de Aristóteles e de outros pensadores da Idade Média, indicam claramente uma ampliação figurada e ideológica de postulados fisiologistas para o terreno moral, com características edificantes em termos patriarcais, respaldados pela doutrina religiosa acerca da representação do gênero. Isso pode ser ratificado pelo fato de o bestiário – obra ideologicamente comprometida com a edificação moral e a salvação do homem, simbolicamente auxiliadas pelo enaltecimento exemplar das virtudes dos animais e pela condenação dos seus vícios – tratar da questão do gênero, apontando excelências no homem em detrimento das qualidades da mulher. Graciano (século XII), por exemplo, dentre outros, sintonizando os pronunciamentos de Santo Isidoro de Sevilha e do bestiarista acerca da superioridade do homem, mantém que homem (vir) não deriva apenas de força (vi), mas de uma força especial, a da mente (virtus animi). Quanto à mulher (mulier), comenta que a palavra veio de amolecimento da mente (mollities mentis) (FRIEDBERG, 1955, i, col. 1145). O fato de Santo Isidoro de Sevilha aventar a hipótese de que femina (mulher) possa ser suposto por alguns como proveniente da etimologia grega para significar força que queima (i. e., da palavra grega fos), por causa da maior intensidade do desejo sexual encontrada no sexo feminino, levou os defensores da mulher a preferirem ligar o significado etimológico da palavra mulier a mollities (i. e., apenas mais fraca, 19 Um homem é chamado de Vir porque existe mais valor (virtus) nele do que nas mulheres. Por essa razão, ele também obtém o nome de coragem, ou outro, porque ele governa as suas mulheres por força (vi). Mulier, a mulher, é derivada de ‘fraqueza’, uma vez que ‘mollior’ (mais fraco), com uma letra retirada ou mudada, torna-se ‘mulier’. Elas são diferenciadas do homem tanto em coragem como em imbecilidade do corpo. O homem tem a maior capacidade, a mulher, a menor, com a finalidade de que ela deve ceder a ele: i.e., para que, com a mulher sendo difícil nisso, o desejo sexual não compila os homens a irem buscá-lo em outro lugar e a se prostituírem com outro sexo. Ela é chamada de ‘mulier’ devido à sua feminilidade e não por causa da sua fraqueza em ter a sua castidade corrompida, porque as palavras do Espírito Santo são: ‘E Eva foi subitamente feita de uma parte do lado do corpo do seu homem’. Não por contato com o homem ela é chamada ‘mulier’. As Escrituras dizem: ‘E ele (Deus) formou-a numa mulher’[...] Na verdade, ‘femina’, uma mulher, vem de ‘femur’, a parte superior da coxa, onde a aparência do sexo é diferente da do homem. Outros, usando uma derivação grega, dizem que é por causa da ardente força com a qual uma mulher veementemente deseja, e que as fêmeas são mais desejosas do que os machos, tanto nos humanos quanto nos animais. Também, os antigos pensavam que muito amor efeminava Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 179 amolecida). Também aquela noção de que femina recebeu esse nome em razão da fêmea, não só entre os animais, mas também entre os humanos, ser mais libidinosa, derivou o uso da palavra efeminado (femineus) ser, entre os antigos, aplicada àqueles que manifestassem um excesso de amor. Essa noção encontrou larga difusão na Idade Média, a ponto de Andreas Capellanus aconselhar os seus protegidos a reprimirem o prazer físico (voluptatem), procedendo como homens verdadeiros (viriliter) (ISIDORE OF SEVILLE, 1982, III. 50). A seleção de trechos abaixo, extraída das Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha, serve para identificar, nessa obra, a influência da tradicional visão de inferioridade constitutiva da natureza feminina que, elaborada pela fisiologia de Aristóteles, encontrou respaldo e transmissão, de forma ideologicamente simpática, por padres e pensadores religiosos, na sua maioria, misóginos e antifeministas da Igreja e da sociedade laica medieval. Nesse sentido, Santo Isidoro de Sevilha, sendo um deles, traduz para o domínio do conhecimento da língua, o que Aristóteles havia feito no domínio da fisiologia e da ciência: Vir nuncupatus, quia maior in eo vis est quam in feminis: unde et virtus nomen accepit; sive quod vi agat feminam. 18 – Mulier vero a mollitie, tamquam mollier, detracta littera vel mutata, appelata est mulier. 19 – Vtrique enim fortitudine et inbecillitate corporum separantur, Sed ideo virtus maxima viri, mulieris minor, ut patiens viri esset; scilicet, ne feminis repugnantibus libido cogeret viros aliud appetere aut in alium sexum proruere.20 (ISIDORE OF SEVILLE, 1982-1983, XI. ii. 17) Quae vero nunc femina, antiquitus vira vocabatur . . . 24 – Femina vero a partibus femorum dicta, ubi sexus species a viro distinguitur. Alii Graeca etymologia feminam ab ignea vi dictam putant, quia vehementer concupiscit.Libidinosiores enim viris feminas tam in mulieribus quam in animalibus. Vnde nimius amor apud antiquos vocabatur.21 (ISIDORE OF SEVILLHE, 1982-1983, XI.ii.23). 20 O nome de varão (vir) se explica porque nele há maior força (vis) que na mulher; daqui deriva também o nome de virtude; ou talvez porque obriga a mulher pela força. 18 – A mulher, mulier, deriva a sua denominação de mollities, moleza, como se disséssemos mollier; suprimindo ou alterando letras resulta o nome de mulier. 19 – A diferença entre o homem e a mulher localiza-se na força e na debilidade do corpo. A força é maior no varão e menor na mulher, para que a mulher possa suportá-lo, e ainda, não fosse que, ao ver-se rechaçado pela mulher, o marido se visse empurrado por sua concupiscência a buscar outra coisa ou desejar o prazer homossexual. 21 Hoje em dia se emprega a palavra femina, enquanto que na antigüidade se usava a palavra vira (i. e. a fêmea de vir, homem). . . 24 – Femina deriva a sua denominação das partes dos músculos, femur, pelas quais seu sexo se distingue do do homem. Outros crêem que a etimologia é grega, fazendo derivar o nome de femina da força do fogo, porque a sua concupiscência é muito apaixonada. Afirma-se que as Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 180 Entretanto, tanto no fisiologismo de Aristóteles quanto no etimologismo de Santo Isidoro de Sevilha, a tônica comum é a da derrogação do feminino, a qual atinge o seu mais alto grau quando, a exemplo das Etymologiae, o fluido menstrual que – de simplesmente sujo e improfícuo, descarga seminal de um organismo naturalmente menos perfeito para Aristóteles – passa a ser diabolicamente destruidor das coisas, do homem e da natureza: Menstrua supervacuus mulierum sanguis. Dicta autem menstrua a circuitu lunaris luminis, quo solet hoc venire profluvium; luna enim Graece mene dicitur. Haec et muliebria nuncupantur; nam mulier solum animal menstruale est. 141 – Cuius cruoris contactu fruges non germinant, acescunt musta, moriuntur herbae, amittunt arbores fetus, ferrum rubigo corripit, nigrescunt aera. Si qui canes inde ederint, in rabiem efferuntur. Glutinum asphalti, quod nec ferris nec aquis dissolvitur, cruore ipso pollutum sponte dispergitut.22 (ISIDORE OF SEVILLHE, 1982-1983, XI. i. 140). Apesar de ter sido originariamente abordada por Plínio, foi, a partir de Santo Isidoro de Sevilha, que essa verdadeira litania da desgraça do sangue menstrual entrou no imaginário das superstições medievais, adquirindo recrudescida virulência no final da Idade Média, quando a mulher passa a ser objeto de um obsessivo processo de demonologização. Essa sucinta coletânea, de feitio comparado, examinou a influência disseminadora da fisiologia de Aristóteles em alguns seguidores seus, que se tornaram pilares fundamentais da tradição antifeminista medieval não só no campo da filosofia religiosa (Santo Anselmo e São Tomás de Aquino), mas também no interessante domínio do conhecimento etimológico, tal qual exposto, de forma ímpar, nas Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha. Assim, o fisiologismo de Aristóteles e o etimologismo de Santo fêmeas são mais libidinosas do que os homens, tanto entre as mulheres como entre os animais. Devido a isso, entre os antigos, um amor ardente se chamava amor feminino. 22 X. i. 140 – Menstrua é o sangue supérfluo das mulheres. Denomina-se menstrua devido ao ciclo lunar, tempo que costuma mediar na repetição do fluxo; pois em grego a palavra lua é chamada mene. É conhecida também com o nome de muliebria, pois a mulher é o único animal que tem menstruação. 141 – Ao contato com este sangue, os frutos não germinam; os sumos das uvas azedam; as ervas morrem; as árvores perdem seu fruto; o ferro fica corroído com ferrugem; os bronzes se tornam negros. Se os cães comerem algo que tenha estado em contato com ele (o sangue menstrual), tornam-se loucos. E o betume asfáltico, que não se dissolve nem com ferro nem com água, dissolve-se espontaneamente quando salpicado por esse sangue. Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 181 Isidoro de Sevilha, ambos sintonizados em postulados que definiram o tradicional antifeminismo, são duas das muitas ideias fundadoras dessa tendência discriminatória da mulher no pensamento e na cultua do homem ocidental. Referências ALLEN, Sr Prudence, RSM. The Concept of Woman: The Aristotelian Revolution 750 BC-AD 1250. Montreal: Eden Press, 1985. AMBROSE, St. Hexameron, Paradise, and Cain and Abel. Tr. J. J. 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