distúrbios de linguagem e epilepsia

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distúrbios de linguagem e epilepsia
DISTÚRBIOS
DE LINGUAGEM
E EPILEPSIA
estudos, Goiânia, v. 33, n. 5/6, p. 455-471, maio/jun. 2006.
DANIELLA DE MIRANDA FERREIRA, LARISSA SEABRA
TOSCHI, TATIANE DE OLIVEIRA SOUZA
Resumo: este estudo buscou traçar o perfil lingüístico
de indivíduos portadores de epilepsia, com idade entre 4 e
14 anos, na tentativa de estabelecer uma relação entre distúrbios de linguagem e epilepsia com base numa amostra do
Centro de Referência, Tratamento e Pesquisa em Epilepsia
(CERTEPE-Goiânia). Alterações de linguagem estiveram
presentes em 100% dos sujeitos da amostra pesquisada.
Palavras-chave: epilepsia, distúrbios de linguagem
a literatura nacional, as limitadas referências sobre
epilepsia na infância, que envolvem o tema linguagem, são mais freqüentemente citadas nos estudos da
neurologia infantil. É possível encontrar com certa facilidade a menção de alterações de linguagem na aura de
determinados tipos de crises ou durante as mesmas. Entretanto, os sintomas originados como conseqüência das
agressões cerebrais ocasionadas pela epilepsia são expostos,
mas não são especificados.
A neuropsicologia oferece vários estudos sobre linguagem e sua lateralização, quando o hemisfério dominante é
lesado, principalmente na necessidade de averiguação para
procedimentos neurocirúrgicos. Contudo, eles não esclare-
N
455
As epilepsias são manifestações clínicas, habitualmente
paroxísticas e recorrentes de uma descarga ou sucessão de
descargas neuronais excessivas, que podem ocorrer em múltiplas estruturas encefálicas e obedecer a situações condicionantes e causais muito diversas (PERELLÓ; PONCES,
1995).
456
Para Brasil (2000), a epilepsia é uma doença que ocasiona
disfunção cerebral caracterizada clinicamente por alterações subjetivas e objetivas, súbitas e transitórias que se repetem ao longo
da vida.
Várias são as classificações das crises epilépticas. Algumas
se prendem aos sintomas, outras se baseiam em localização
anatômica. A International League Against Epilepsi (ILAE) leva
em conta dois critérios: a localização cerebral (em que as alterações específicas são chamadas crises parciais e as disfunções
difusas e bilaterais consistem nas crises generalizadas) e a
perseveração motora ou não da responsividade do paciente ao
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cem a relação dos distúrbios de linguagem com epilepsia. A literatura neuropsicológica comenta alterações de linguagem sob um
enfoque de avaliação pré e pós-cirúrgica.
Grande parte das informações pesquisadas na área neurológica, que tem alguma relação entre distúrbios de linguagem e
epilepsia, é referente à síndrome de Landau Kleffner, que consiste em uma afasia epiléptica adquirida.
No entanto, o interesse deste estudo não se encontrava nos
casos cirúrgicos ou sindrômicos. O fato que impulsionou a investigação foi a tentativa de detalhar o que a literatura descrevia de
forma superficial: as alterações de linguagem em indivíduos epilépticos falantes.
As questões iniciais que direcionaram esta busca foram as
seguintes: Existe relação entre distúrbios de linguagem e epilepsia? A epilepsia predispõe o surgimento de alterações lingüísticas?
Destas questões outras ainda surgiram: Caso haja relação, os
medicamentos teriam alguma influência? Os tipos de crises podem se diferenciar quanto ao prejuízo lingüístico? Quais seriam
as alterações de linguagem mais freqüentes? Poderiam os distúrbios de linguagem ser considerados comorbidade da epilepsia?
ambiente durante as crises parciais. São divididas em simples,
quando a responsividade está preservada, e complexas, se associadas a desordens na responsividade ao ambiente (BRASIL, 2000).
Os tipos de crises epilépticas estão apresentados no Quadro 1.
Quadro 1: Tipos de Crises Epilépticas e Área Corticais de Origem
Tipos de crises
Área de origem
1. Crises parciais simples (CPS)
(preservação da responsividade)
1.1 Motoras
Córtex motor
1.2 Sentitivas/sensoriais
Córtex parietal/visual
1.3 Vegatativas/autonômicas
lobo temporal
1.4 Psíquicas intelectuais (complexas)
lobo temporal/frontal
2. Crises parciais complexas (CPC)
(alteração da responsividade)
3. Crises generalizadas (CGEN)
3.1 Tônico-clônicas (TCG)
3.1.1 Primárias
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3.1.2 Secundárias
3.2 Crises de ausêncis
3.3 Crises mioclônicas
3.4 Crises Tônicas/atônicas
Nota: formas de propagação: CPS → CPC; CPS → TCG; CPS → CPC → TCG
Fonte: Palmini e Costa (apud BRASIL, 2000).
A causa da crise epiléptica está associada a lesões cerebrais
orgânicas de tipo macroscópico ou ligadas a um transtorno na
bioquímica cerebral (PERELLÓ; PONCES, 1995). Alguns processos fisiológicos e patológicos podem influenciar na origem da
epilepsia: febres, fatores metabólicos, ativação sensorial, fatores
emocionais, ritmos cicardianos, fatores hormonais e ingestão de
álcool. Outros fatores, como lesões no cérebro ou infecções, também podem ser causas da epilepsia e em alguns casos sua origem
ainda é desconhecida (GRÜNSPUM; GROSSMAN, 1992).
Além das alterações fisiológicas, os indivíduos com epilepsia
sofrem os efeitos psicossociais da doença. O estigma que o termo
457
458
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“epilepsia” traz consigo os afasta do convívio social. As mudanças
de comportamento e a influência da epilepsia em aspectos psicossociais são observadas em pacientes epilépticos desde muito cedo,
pois as primeiras dificuldades de adaptação social podem surgir
na infância ou na adolescência (ÁREA MEDICA, 2004).
Estudos (GRÜNSPUM, GROSSMAN, 1992; SOUZA, GUERREIRO, 1996) têm demonstrado prejuízos sobre a cognição e o QI
(quociente intelectual), pois podem existir alterações significativas
da atenção em crianças epilépticas. A precocidade e a duração das
crises são fatores que estão ligados diretamente ao QI e à aprendizagem do indivíduo. Dificuldades na memorização e lentidão mental
também são destacadas entre as deficiências cognitivas.
Pesquisas (SILVA; GUERREIRO, 1996) descrevem relações
entre cognição e alguns tipos específicos de epilepsia, como em
sujeitos com epilepsia mioclônica grave do lactente (caracterizada por convulsões febris recorrentes e pelo aparecimento posterior
de abalos mioclônicos no primeiro ano de vida), que apresentam
atraso do desenvolvimento ou involuções das funções cognitivas
em razão da resistência aos medicamentos.
Sabe-se que o principal tratamento para a epilepsia consiste no
uso de drogas antiepilépticas (DAEs). Contudo, todas as drogas
antiepilépticas podem interferir no desempenho cognitivo de forma
mais grave quando são realizadas associações com ela (GUERREIRO; GUERREIRO, 2002).
Atualmente, pesquisas (SANTOS, 2004; REIS, 1999) têm
demonstrado que, entre as drogas utilizadas, a Primidona, Fenitoína
e Fenobarbital se relacionam com as dificuldades atencionais,
memória imediata e com o QI, ao passo que a Carbamazepina (CBZ)
tem efeitos mais limitados. Os Benzodiazepínicos, por sua vez,
podem tanto interferir na memória a curto prazo, como prejudicar
o armazenamento da informação a longo prazo. Estudos atuais
(NEUROPSICONEWS, 1998) esclarecem que o Topiramato acarreta dificuldades na fala e na linguagem.
As relações estabelecidas entre alterações de linguagem e a
aura (momento que antecede a crise) são encontradas com certa
facilidade na literatura. Perelló (1995) atesta que as logopatias
desencadeadas pela epilepsia são diferenciadas em transitórias e
crônicas. As afasias transitórias que ocorrem no momento da aura
podem apresentar vários graus, desde uma leve dificuldade de
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encontrar palavras até o mutismo e as manifestações mais escassas
como a disartria, o tropeço silábico e a gagueira. Já nas manifestações
crônicas, aparecem a disartria, a fala arrastada, monótona e cansada. O autor também cita estudos que descrevem outros sintomas
na aura, como epilepsia com gagueira clônica, balbismo, paralisia
bilateral de língua, véu e pregas vocais, que resultam em uma fala
ininteligível ou mutismo.
São ainda encontrados relatos de alterações lingüísticas durante e após as crises. Isto porque as descargas elétricas excessivas interferem no funcionamento normal do córtex durante e após
a crise epiléptica. Durante as crises parciais que envolvem a área
da linguagem, o indivíduo adulto pode apresentar dificuldades na
compreensão de palavras e da escrita, fala inadequada e ininteligível com a presença de estereotipias (GRÜNSPUM, GROSSMAN,
1992). Cypel (1980) declara que, durante as crises parciais, em razão
das alterações motoras, o indivíduo pode sofrer crises afásicas e
fonatórias.
Outra alteração que ocorre durante as crises de ausência está
relacionada a alterações da linguagem escrita, como omissões de
palavras e linhas deformadas, ocasionadas pela perda da consciência (LAUNAY, 1989).
Os efeitos da epilepsia sobre a linguagem que extrapolam o
momento da crise ou de sua aura têm sido discutidos em diversos
estudos (SHIRMER; FONTOURA; NUNES, 2004). Os distúrbios mais relatados englobam as disfasias do desenvolvimento,
afasias críticas (agudas) com alteração transitória da função cognitiva
e a afasia epiléptica adquirida (Síndrome de Landau-Kleffner), caracterizada pela deterioração da linguagem na infância.
Voltando a atenção à afasia, Perelló (1995) observou dez casos
de afasia infantil considerados de origem epiléptica, em que as
crises eram únicas e se iniciaram entre cinco e seis anos de idade.
Na mesma pesquisa, 30% dos casos não obtiveram melhora, apesar do tratamento fonoaudiológico. A mesma população apresentou
leve perda auditiva que, quando melhorava, coincidia com a piora
da compreensão e da fala.
Alguns autores (PERELLÓ, PONCES, 1995; LAUNAY,
1989) já observaram uma aproximação entre gagueira e epilepsia,
com base em teorias neurológicas, e relatam que crianças epilépticas demonstram distúrbios de expressão verbal, como repetição
459
MÉTODOS
460
Para a efetivação do presente estudo, realizou-se uma seleção de indivíduos com base em de informações contidas em
prontuários de Centro de Referência em Tratamento e Pesquisa
em Epilepsia (Certepe), da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia.
Foi realizado um levantamento de 133 prontuários (no período de 23 de agosto a 29 de outubro) de pacientes com epilepsia
ativa ou inativa, sem distúrbios psiquiátricos associados. Destes
pacientes foi possível estabelecer contato com 24, e 22 compareceram para realização da triagem fonoaudiológica, a fim de
investigar a relação entre epilepsia e alterações de linguagem.
Todos os pacientes compareceram ao local de avaliação acompanhados pelos responsáveis, critério imprescindível para a obtenção de informações sobre o histórico da criança.
Dois instrumentos foram utilizados para investigar os aspectos de linguagem dos sujeitos: uma entrevista direcionada com o
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descontrolada de uma palavra ou frase. Perelló (1995) enfatiza que
a gagueira aparece mais nos indivíduos epilépticos do que em
oligofrênicos e esquizofrênicos. Grünspum (1992) cita outros sintomas lingüísticos que acometem as crianças epilépticas, como
dislalias e taquilalias.
Diversas alterações ainda podem ser encontradas (PERELLÓ;
PONCES, 1995), como a uniformidade na voz, a perseveração, a
afasia assemântica, todos os graus de parafasias, contaminação de
frases, formulação imprecisa, dislexias, disortografias e alterações
na estrutura espacial. Sujeitos epilépticos podem apresentar também maior sensibilidade a sons agudos.
As manifestações da epilepsia infantil se distinguem da do
adulto por diversos aspectos, principalmente quanto ao processo
de maturação, que possibilita à criança uma melhor defesa e evolução do cérebro diante das agressões causadas pelas crises
(GRÜNSPUM; GROSSMAN, 1992). Em virtude deste processo
de maturação, a idade de início das crises torna-se um fator importante. A linguagem, por exemplo, parece mais preservada em
pacientes que tiveram o início da epilepsia antes do terceiro ano
de vida (PORTUGUEZ, 1996).
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responsável que englobou questões sobre o desenvolvimento da
linguagem, escolaridade, comunicação atual, compreensão, tipos
de crises, medicamento, história familiar de atraso de linguagem
(Anexo 1); uma triagem fonoaudiológica organizada mediante a
adaptação de dois instrumentos: prova de vocabulário ABFW e
protocolo de avaliação de linguagem da Clínica Escola de Fonoaudiologia da Universidade Católica de Goiás, para investigar
condutas pragmáticas, aspecto fonético-fonológico, produção de
texto oral no aspecto (Anexo 2).
As triagens foram realizadas entre 30 de setembro e 12 de
novembro de 2004 nas salas de atendimento do Serviço de Neuropsiquiatria da Infância e Adolescência (Nina) do Departamento
de Saúde Mental e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da
UFG). Cada avaliação teve duração de aproximadamente trinta
minutos. As amostras foram registradas com o uso de gravador e
anotações no protocolo.
Para a análise dos resultados, foram realizadas transcrições
do material colhido e comparação com parâmetros encontrados
na literatura sobre alterações de linguagem e idade, medicamento
e alterações de linguagem mais freqüentes (pragmáticas, fonético-fonológicas e sintático-semânticas).
RESULTADOS
Antes de apresentar os resultados, é importante ressaltar que
a triagem realizada serviu para investigar a possibilidade e a freqüência de alterações lingüísticas nesta população.
Os resultados do presente estudo mostraram que, em 80% das
crianças, a aquisição de linguagem ocorreu dentro do esperado
quanto à normalidade, porém 20% destas iniciaram suas produções entre um ano e meio e dois anos de idade. Vinte por cento dos
indivíduos apresentaram retardo na aquisição de linguagem, já que
as primeiras palavras surgiram após os dois anos de idade. Zorzi
(2002) afirma que crianças que chegam à faixa etária dos dois anos,
sem terem adquirido linguagem, podem revelar dificuldades quanto
ao desenvolvimento lingüístico.
Ao pesquisar a compreensão, os responsáveis relataram que
73% das crianças com epilepsia não demonstraram dificuldades
na compreensão da linguagem oral, ao passo que 27% dos infor-
461
mantes observaram alterações. Oitenta por cento da amostra são
bastante “comunicativas” e apenas 20% são “menos falantes”.
Ainda sobre os dados da anamnese, 82% dos sujeitos estudam. Entre os que freqüentam a escola, 50% apresentam algum
tipo de dificuldade.
Os tipos de crises epilépticas dos sujeitos da amostra encontram-se detalhados na Tabela 1.
Tabela 1: Tipos de Crises Epilépticas
Tipo de crise
N°
%
Tônico-clônica generalizada (CTCG)
12
54,6
Atônica generalizada
2
9,1
Parcial complexa
3
13,6
Tônico-atônica generalizada
1
4,5
Crise de ausência
2
9,1
Parcial benigna da infância
1
4,5
Generalizada não classificada
1
4,5
22
100
Grande parte da amostra apresentou início das crises epilépticas antes dos três anos. Os resultados estão ilustrados na Figura 1.
9,0%
4,5%
4,5%
32,0%
13,5%
4,5%
462
Figura 1: 1234
Início das Crises Epilépticas
1234
Legenda: 1234
antes de um ano
1234
1234
1234 com um ano
três anos
quatro anos
cinco anos
seis anos
oito anos
32,0%
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Total
A maioria dos sujeitos da amostra (68,5%) apresentou início
das crises antes dos três anos e maior prejuízo lingüístico. Estas
informações estão descritas na Figura 2.
9%
91%
estudos, Goiânia, v. 33, n. 5/6, p. 455-471, maio/jun. 2006.
Figura 2: Prejuízo Lingüístico em Relação ao Início das Crises
Legenda:
início da crise até 6 anos (68,5%)
Início da crise após 3 anos (31,5%)
Trinta e seis por cento das crianças epilépticas apresentaram
antecedentes de alterações lingüísticas (9% destes relataram gagueira
na família). Sessenta e quatro por cento não relataram histórias de
distúrbios lingüísticos entre entes próximos.
As drogas antiepilépticas ministradas estão registradas na
Tabela 2.
Tabela 2: Tratamento Medicamentoso
Medicamento
N°
%
Carbamazepina (Tegretol)
8
36,3
Fenobarbital (Gardenal)
2
9,1
Diclofenaco sódico (Biofenac)
1
4,5
Carbamazepina (Tegretol) e Topiramato (Topamax)
1
4,5
Carbamazepina (Tegretol) e Vigamatrina (Sabril)
1
4,5
Fenobarbital (Gardenal) e Carbamazepina (Tegretol)
1
Não fazem uso de medicamento
8
36
22
100
Total
4,5
Após a realização das entrevistas e triagens, foi possível observar que 23% das crianças revelaram dificuldades pragmáticas
(em iniciar e manter a comunicação). Treze e meio por cento tam-
463
bém demonstraram não compreender bem questões simples referentes à informação de dados pessoais.
Várias alterações foram detectadas no aspecto fonéticofonológico analisados com base nos processos fonológicos descritos por Andrade (WERTZNER, 2002). O número total de alterações
(68%) serviu de base para os cálculos das porcentagens (100%),
dispostos na Figura 3.
4,5%
27,3%
Figura 3: Alterações no Aspecto Fonético-Fonológico
Legenda:
crianças com alterações fonético-fonológicas
Crianças sem alterações
Crianças que não realizaram a prova
464
Na prova que envolvia avaliação de vocabulário (WERTZNER,
2002), das 9 categorias avaliadas, houve alterações em 8 destas.
Os resultados estão demonstrados na Figura 5.
Na verificação do aspecto sintático, na prova de elaboração oral
de história mediante a apresentação de estímulo visual, 13,5% dos
indivíduos não contaram a história, 4,5% apresentaram produção ininteligível e 81% elaboraram discurso. A descrição dos resultados foi
organizada com base nos sujeitos que contaram a história (81%)
(considerados 100% para a análise). Conforme Acosta (2003), em
torno de cinco anos a criança tem o domínio do sistema gramatical
básico de uma língua. A descrição dos resultados foi baseada, portanto, nos 18 sujeitos maiores de 5 anos. Deste total, 83,3% apresentaram alterações sintáticas. A descrição percentual dos
resultados se encontra na Tabela 3, nas 6 e 7, respectivamente.
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68,2%
4,2%
2,1% 2,1%
4,2%
27,0%
8,3%
10,4%
16,7%
12,5%
12,6%
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Figura 4: 1234
Processos Fonológicos Apresentados
Legenda: 1234
simplificação de encontro consonantal
1234
1234
simplificação de líquida
1234
1234
1234
1234 outros
simplificação de consoante final
redução de sílabas
plosivisação de fricativas
frontalização de velares
ensurdecimento de fricativas
sonorização de fricativas
1234
1234
fala inteligível
1234
1234
4,5%
9,1%
13,6%
45,5%
27,3%
Figura 5: Alterações Semânticas-Prova de Vocabulário
Legenda:
substituições e não designações
substituições
não-designações
sem alterações
não realizou a atividade
465
Tabela 3: Dados Referentes à Produção Discursiva
Presente
Alterado
TOTAL
Crianças
início, meio e fim
38,9
61,1
100
18
vínculo têmporo-causal
61,1
38,9
100
18
27,8
72,2
100
18
Aí
66,7
33,3
100
18
Artigos
88,9
11,1
100
18
Preposição
77,8
22,2
100
18
Conectivos
77,8
22,2
100
18
Outros
61,1
38,9
100
18
Coerência
27,8
72,2
100
18
100
18
100
18
apresentar personagens/eventos/
contexto com clareza
elementos de coesão:
Número de elementos na frase
100
Intervenção do examinador
44,4
fala ininteligível
não soube contar a história
55,6
4,5
1
13,5
3
22
Nota: das 18 crianças inclusas nesta análise 3 não apresentaram alterações
6%
28%
466
66%
Figura 6: Elaboração do Discurso em Indivíduos Acima de Cinco Anos
Legenda:
elaboraram discurso com alterações
elaboraram discurso sem alterações
não elaboraram discurso
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TOTAL
6%
28%
66%
Figura 7: Tipos de Discursos Apresentados pelas Crianças
Legenda:
narrativo
Dissertativo
Descritivo
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DISCUSSÃO
Na anamnese foi observado que 59% dos responsáveis relataram algum tipo de queixa em relação aos sujeitos epilépticos,
porém nos resultados obtidos na avaliação, 100% das crianças
apresentaram algum aspecto lingüístico alterado.
Já em relação à compreensão, segundo as informações colhidas, 73% dos informantes não referiram falhas na compreensão
de seus filhos. Os resultados da avaliação foram compatíveis com
as informações colhidas, pois 63,5% das crianças não tiveram
dificuldades para compreender ao passo que 36,5% não compreenderam as questões.
Em contradição com a literatura pesquisada (PORTUGUEZ,
1996), crianças que tiveram início das crises antes dos 3 (três)
anos apresentaram mais alterações lingüísticas que aquelas com
crises iniciadas após esta idade. Brasil (2000) explica que “quando
o sistema nervoso ainda é imaturo as crianças são mais propensas às crises, pela falta de sistemas inibitórios às crises. As crises
precoces são mais rápidas, recorrentes e evoluem facilmente para
status epiléptico”.
Ao confrontar o início da fala com as alterações de linguagem, constatou-se que as crianças que começaram a falar após os
dois anos de idade (20%) apresentaram 45,7% de prejuízo
lingüístico. Já nas crianças que falaram até um ano (60%), o prejuízo linguístico não se diferenciou muito, pois corresponde a
467
468
estudos, Goiânia, v. 33, n. 5/6, p. 455-471, maio/jun. 2006.
42,9%. Nas crianças em que o início das produções ocorreu entre
um ano e meio e dois anos, as alterações de linguagem foram
menores, correspondentes a 11,4%. Zorz (2002) refere dificuldades no desenvolvimento lingüístico em crianças que adquirem
linguagem após os dois anos. Entretanto, nesta amostra, as crianças epilépticas que adquiriram linguagem antes de dois anos
também apresentaram dificuldades lingüísticas posteriores.
Ao comparar a idade atual dos sujeitos deste estudo com
alterações de linguagem, 36,4% das crianças triadas com idade até seis anos, que, segundo Machado (2004), ainda estão em
processo de desenvolvimento lingüístico, apresentaram 57,1%
de alterações de linguagem. As crianças com idade superior a
seis anos (63,6%) demonstraram menos prejuízo lingüístico
(42,9%).
Levando em conta o número de alterações de linguagem para
realizar a comparação com o tratamento medicamentoso, diante dos
resultados obtidos na avaliação, pode-se dizer que, coincidentemente, os indivíduos que possuem mais alterações de linguagem
fazem uso da carbamazepina. Entretanto, são aqueles que também apresentam crises generalizadas. Com base na avaliação,
observou-se que as crises do tipo tônico-clônica generalizada
(54,5%) e generalizada não classificada (4,5%) parecem levar a
um maior prejuízo na linguagem.
O número de alterações presentes nos indivíduos que não
utilizam mais qualquer tipo de medicamento foi de 24,4%. Na
literatura, vários autores (GUERREIRO, 2002; SANTOS, 2004;
REIS, 1999; NEUROPSICONEWS, 2004) constataram que as
drogas antiepilépticas têm efeitos sobre a linguagem, principalmente se são realizadas associações medicamentosas. Entretanto,
as crianças que fazem associações não apresentaram mais alterações que as que fazem monoterapia. Apesar de as crises epilépticas
estarem controladas em 36,4% dos indivíduos (que não fazem uso
de medicamento), foram encontradas alterações de linguagem
significativas neste grupo, que se equiparam ao grupo dos indivíduos que mais têm prejuízos na linguagem.
Na tentativa de especificar a relação entre epilepsia e habilidades lingüísticas, com base nos dados obtidos, constatou-se
que a alteração de linguagem mais freqüente está centrada no
aspecto semântico (86,4%), seguida de prejuízo no aspecto
sintático (83,3%) e fonético-fonológico (68,2%). Nas condutas pragmáticas (23%) e na compreensão (13,5%), alterações
também se encontram presentes, porém em uma freqüência bem
menor.
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CONCLUSÃO
Diante dos dados obtidos, visando caracterizar o perfil
lingüístico de indivíduos epilépticos com idade entre 4 e 14 anos,
foi possível estabelecer as seguintes conclusões:
• Todos os indivíduos avaliados manifestaram distúrbios lingüísticos em pelo menos uma habilidade lingüística, o que leva a
crer neste caso que as alterações de linguagem podem ser consideradas comórbidas à epilepsia em crianças.
• Ao contrário das informações descritas na literatura, as crianças com início de crise epiléptica até os três anos de idade
demonstraram maior prejuízo lingüístico que as crianças que
tiveram início de crise, após três anos de idade.
• O fator idade também foi importante na observação do desenvolvimento lingüístico, uma vez que indivíduos mais velhos
demonstraram menores prejuízo que os mais novos.
• Na amostra colhida, observou-se que existem alterações lingüísticas mesmo naqueles pacientes em que as crises estão controladas.
• Todos os sujeitos, com crises convulsivas controladas ou não,
necessitam de intervenção fonoaudiológica.
• Com base na avaliação, observou-se que as crises do tipo tônico-clônica generalizada (54,5%) e generalizada não-classificada
(4,5%) parecem levar a um maior prejuízo na linguagem, já que
todas as habilidades pesquisadas estão defasadas.
• As crianças com maior comprometimento de linguagem têm
crises generalizadas e fazem uso da carbamazepina.
• Entre as alterações de linguagem mais freqüentes, destaca-se o
prejuízo no aspecto semântico, com 86,4% de danos lingüísticos,
seguido de prejuízos sintáticos (83,3%).
Cabe ao fonoaudiólogo conhecer e investigar mais esta população. Apesar de este estudo englobar uma amostra pequena,
demonstrou uma alta incidência de alterações lingüísticas.
469
Referências
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Abstract: this study tried to draw the linguistic profile of
indivi-duals suffering from epilepsy, with ages from four to fourteen
y.o., in an attempt to establish a relation between language
disturbance and epilepsy based on a sample from the Reference,
Treatment and Research in Epilepsy Center of Goiânia. “(Centro
de Referência, Tratamento e Pesquisa em Epilepsia - CERTEPEGoiânia)” Language alterations were present in a hundred percent
(100%) of the sample subjects researched.
Key words: epilepsy, language disturbances
DANIELLA DE MIRANDA FERREIRA
TATIANE DE OLIVEIRA SOUZA
Fonoaudiólogas graduadas na Universidade Católica de Goiás (UCG).
LARISSA SEABRA TOSCHI
Mestre em lingüística pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Fonoaudióloga
clínica. Professora no curso de Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da UCG.
Responsável pelo setor de fonoaudiologia do Serviço de Neuropsiquiatria da
Infância e Adolescência (Nina) do Departamento de Saúde Mental e Medicina
Legal da Faculdade de Medicina da UFG.
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