Literatura A pátria deles é o mundo

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Literatura A pátria deles é o mundo
Literatura A pátria deles é o mundo
Público, 30.09.2008
Os Beatles têm a ver com Pessoa? E Manoel de Oliveira? E Manet? E
Baudelaire? A Gulbenkian convidou António M. Feijó para mostrar literatura.
Os arquitectos Aires Mateus conceberam uma instalação em 11 salas. Mostrase como a literatura portuguesa é uma literatura do mundo. Há pinturas,
filmes, fotografias, manuscritos, discos e sobretudo texto na parede. Ver é o
primeiro passo de ler. É uma exposição e lê-se.
Por Alexandra Lucas Coelho
A letra W está pousada no chão, à espera.
É a primeira letra da palavra alemã Weltliteratur, usada no século XIX por Goethe para
descrever a aspiração a uma literatura cosmopolita, mundial.
O que é que isto tem a ver com a literatura portuguesa? Tudo, segundo a exposição que esta
noite abre na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Por isso mesmo o comissário
António M. Feijó lhe chamou Weltliteratur, com um verso de Cesário Verde em subtítulo:
"Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o Mundo!"
É a grande aposta da Gulbenkian para este Outono na galeria do edifício principal e
representa um trabalho de "meses e meses", como resume o arquitecto Manuel Aires
Mateus, que em parceria com o irmão, Francisco, concebeu o cenário, uma instalaçãopercurso ao longo de 11 espaços contínuos. "A ideia é que a pessoa tenha uma sensação
entre ordem e labirinto", explica. "Cada espaço repercute os seus conteúdos e prepara-nos
para os seguintes."
Quando o P2 lá esteve, sexta-feira à tarde, ainda vinham a caminho pinturas, manuscritos,
máquinas do mundo e havia operários em movimento. Por isso é que o W do título estava
pousado no chão. E logo ao lado uns degraus brancos.
É possível começar neles ou acabar neles, porque a exposição é circular, o fim bate no
princípio, fiel à ideia de que "em arte não há progresso".
"Estes degraus foram uma ideia dos Mateus para se poder ver o conjunto", explica António
Feijó, subindo os degraus, que são como um pódio de onde se avista uma cidade, lá adiante.
Vista assim de cima, é uma cidade branca e labiríntica.
Depois, descendo os degraus e caminhando, a cidade vai ficando ao nosso nível e deixa de
se ter a percepção do conjunto. O que se vê agora é só o corredor de entrada a afunilar,
porque a altura das paredes é a altura média de uma pessoa, 1.73. "Mas quem for mais alto
pode espreitar para o outro lado", ressalva Feijó.
Este é um dos jogos que os arquitectos propõem, que a experiência da exposição dependa
da escala de cada um. "A escala foi colocada como limite entre uma escala escultórica e uma
escala arquitectónica", explica Manuel Aires Mateus. Quando se está sobre a instalação, é
uma escultura. Quando se está dentro da instalação, é arquitectura.
Entrada
Entra-se por uma epígrafe gigante a vermelho: um bilhetinho que a empregada de Pessoa
lhe deixou: "Snr Pessoa, Precisei de sair, está o jantar prompto, é só sentar à mesa, tirar do
lume e comêr. Adelaide."
"É como se as pessoas respondessem a esta instrução doméstica, é só sentar à mesa e
comer", sorri António Feijó, estendendo o braço, como quem convida a entrar.
Se é possível mostrar literatura, o que mostrar e como?
Professor de literatura, ensaísta, tradutor, Feijó tomou como eixo Fernando Pessoa e
estabeleceu relações não-cronológicas e não-nacionais.
É por isso que está lá Camões, séculos antes, como está Jorge de Sena, décadas depois. Que
estão lá Konstandinos Kavafis, um grego de Alexandria, e o francês Charles Baudelaire.
E estão lá Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso ou SantaRita Pintor, mas também Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Mário de Cesariny,
António Botto, Raul Leal, Judith Teixeira, Alexandre O'Neill.
E, além dos textos ampliados na parede, dos manuscritos originais e dos livros, há filmes,
pinturas, fotografias de autores como Manoel de Oliveira, Joshua Benoliel, Édouard Manet,
Álvaro Lapa, António Dacosta, Fantin-Latour, os óleos setecentistas do holandês Jan Steen,
Raul Brandão enquanto pintor e até o Sgt. Peppers dos Beatles.
Pessoa é o eixo, e - lembra Feijó, num dos ensaios para o catálogo - foi Pessoa quem
escreveu: "O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro
português foi português: foi sempre tudo."
A pátria, aqui, é o mundo.
Do Rossio à bandeira
Na primeira sala estão fragmentos do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa/Bernardo
Soares como este: "Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida! Na grande praça
ao centro da cidade, a água sobriamente multicolor da gente passa, desvia-se, faz poças,
abre-se em riachos, junta-se em ribeiros."
"Ele faz uma descrição do Rossio sem dizer que é o Rossio, e nós pusemos uma imagem do
Rossio em 1930", mostra Feijó. E a seguir uma imagem do Cais do Sodré por causa de outro
fragmento, e a célebre fotografia de Pessoa em que ele vai a andar na rua e há uma mulher
com um cesto no braço em segundo plano. "Sempre fiquei fascinado com esta mulher",
aponta Feijó. "Nunca suspeitou que ia atrás deste homem."
O homem que também escreveu isto:
"E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo,
transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é
estúpida, porém a vida que define é mais estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam
ter duas tampas, como meias ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos
extremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco
ao longo dos dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do
que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquecem."
Feijó associa este bicho no cesto ao cesto que mulher transporta na fotografia e dá a ler o
texto ampliado na parede.
"Isto era um bocado ousado, pensar que podíamos expor os textos, que uma pessoa os leria
na exposição. E estabelecer nexos entre eles. E cada texto ser extraordinário por si."
A passagem para a segunda sala é feita com um ecrã onde está a ser projectado em loop um
excerto do filme de Manoel de Oliveira sobre Cristovão Colombo. O próprio Oliveira e a
mulher saem do carro, caminham junto ao mar, depois a câmara filma a água, ondulante,
desce à praia e passa ao grande oceano azul.
"Aqui, o mar é uma espécie de entrada na sala sobre a nação, os modos de entender o
patriotismo. Nunca percebi muito bem aquela inflação patriótica", diz Feijó.
O visitante verá uma imagem digitalizada de uma máquina do mundo do século XVI que
está em França, o original de um antigo atlas e pode ler o que Camões escreveu no canto X
de Os Lusíadas:
"Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende."
Da máquina do mundo, pode o visitante "passar para a Europa, onde Portugal é a cabeça",
sugere Feijó. Também está n'Os Lusíadas, canto III
"Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente."
Há uma imagem literal disto que vem da Hungria e está na exposição, um mapa do século
XVI em forma de rainha, com "Lusitania" escrito na coroa.
E na parede se pode ler Pessoa, na Mensagem:
"A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal."
Onde foi Feijó descobrir o mapa húngaro em corpo de rainha? "Fui falando com várias
pessoas e uma amiga disse-me: 'Ah, eu sei de um mapa desses..."
Mundo, Europa e finalmente as quinas portuguesas, sequência simbolicamente patriótica
que a parede em frente "tenta instabilizar", como diz Feijó. Por exemplo, através do ecrã
onde está a ser mostrada a bruta faina dos pescadores de bacalhau em A Campanha do
Argos, filme de 1950 do neo-zelandês Alan Villiers. "Homens desde Viana do Castelo a
Ílhavo em pequenos botes, quase a afundar...", descreve Feijó.
E há horóscopos de Pessoa em reprodução e os originais da Mensagem. "Esta exposição não
é bibliófila, mas também não se furta a mostrar", justifica Feijó. "São grandes textos do
século XX a que as pessoas raramente têm acesso."
Em torno da nação, aqui passam ainda, por diferentes razões, Afonso Lopes Vieira
(duramente atacado por Pessoa), Jorge de Sena, a dupla Teófilo Braga-Guerra Junqueiro e
Ângelo de Lima, com uma carta sobre a bandeira portuguesa.
Sexo e morte
À terceira sala, Feijó chama "a da diferença sexual". É aqui que estão edições originais de
António Botto, Raul Leal, Judith Teixeira. Os livros de Oscar Wilde da biblioteca de Pessoa.
Ou aquela ode de Ricardo Reis que diz:
"A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço?
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste."
Feijó passa o dedo na parede sobre a palavra "avaro". É a prova encoberta de que Reis tinha
em mente um rapaz. E o visitante pode ler a seguir o que o próprio Pessoa/Álvaro de
Campos escreveu sobre o assunto: "É a primeira vez que a sintaxe aparece como véu de
pudor - delgado cendal, ou lá o que quer que seja, que cobre as partes do discurso."
De onde vem este "delgado cendal"?, pergunta Feijó. "De Os Lusíadas." Canto II:
"C'um delgado cendal as partes cobre,
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo esconde, nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro"
Cá está o "avaro" que Pessoa/Reis foi buscar.
Mais um nexo, como num hipertexto infinito.
Na sala seguinte, é com Baudelaire que Pessoa dialoga.
O visitante pode ver O Rapaz das Cerejas, de Manet, emprestado pelo Museu Gulbenkian,
ler o poema em prosa de Baudelaire sobre esse rapaz de "fisionomia ardente e travessa" que
acabou por se enforcar, e ler o poema de Pessoa que se chama O Silva:
"Morreu o filho do barbeiro,
Uma criança de cinco anos.
Conheço o pai - há um ano inteiro
Que me barbeia e nos falamos.
Quando mo disse, o que em mim há
De coração sofreu assombro
E eu abracei-o, incerto já,
E ele chorou sobre o meu ombro.
Nunca acho uma atitude plana
Na vida estúpida e tranquila;
Mas, meu Deus, sinto a dor humana!
Nunca me tires o senti-la!"
É ainda nesta sala que o mago Alesteir Crowley, cúmplice de Pessoa na Boca do Inferno,
pode ser visto no topo esquerdo do Sgt Pepper dos Beatles.
Louros, cinzas
A quinta sala é a romana.
Lêem-se poemas de Pessoa (Julião o apóstata, Juliano em Antioquia), Kavafis (Juliano e os
de Antioquia), Cesariny (discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro),
Sena (Cabecinha Romana de Milreu) e de novo Cesariny, na morte de O'Neill:
"Ca morreu trigoso e gentil
e não mais irá a fossado
nem de seu elmo constelado
terá nome Alexandre O'Neill
ca morreu má hora e mau grado,
em as ondas do mar quebrado
vou pôr outro Deprimil"
A imagem final é a célebre fotografia de O'Neill em imperador romano, com coroa de
louros.
Aqui termina aparentemente a presença de Pessoa e começam as salas (quase) individuais.
Primeiro Teixeira de Pascoaes, com várias pinturas e desenhos, do próprio e também de
Cesariny, e excertos, por exemplo, de São Paulo: "Já não é Saulo: é Paulo, com P grande e
romano. Ao S fugidio sucede uma letra firme, em arco de pedra, apoiado numa coluna de
pedra. Agora, é ele, destacado na sua pessoa inconfundível. Sabe que lhe compete o
primeiro lugar e ocupa-o. É o supremo orientador das almas. A sua atitude é de absoluto
predomínio, porque ele não é ele: é Jesus Cristo: Eu vivo, mas quem vive, em mim, é o
Cristo."
"O Pascoaes é um autor de uma magnitude...", destaca Feijó. "Mas foi raptado por esta coisa
do saudosismo e da filosofia portuguesa."
Uma espantosa imagem de Camilo Pessanha, gigante, sentado nas rochas com as suas
barbas negras, abre a sala que lhe é dedicada. Podem ver-se vários manuscritos, incluindo
cartas que Pessanha trocou com Ana de Castro Osório, a mulher que o recusou em
casamento, e fragmentos de Clepsydra:
"Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!..."
Segue-se Mário de Sá Carneiro, em correspondência com Santa-Rita Pintor e em poemas
como Caranguejola:
"Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou."
E o que Mário Cesariny escreveu para Sá-Carneiro:
"desembarcou como tinha embarcado
Sem Jeito Para o Negócio"
O fim é o princípio
"Aos que gritam, a vida cala-os", escreveu Almada Negreiros sobre Amadeo de SouzaCardoso e a sala seguinte reúne-os. Lá está a reprodução do quadro de Velázquez que
Amadeo e amigos reencenam, de tronco nu e com frutos. E uma bela sequência de sete
auto-retratos de Almada, com o seu perfil de homem-pássaro-africano.
A décima sala é de Vitorino Nemésio, que aqui entra como "um representante da poesia
pós-Pessoa", diz Feijó. Há uma coincidência simbólica: Nemésio estreou-se em livro no ano
em que Pessoa morreu, 1935.
Os poemas que aqui se podem ler são de livros posteriores e boa parte refere-se a pinturas
holandesas:
"Nos céus de Flandres dos de Holanda me despeço:
Aqui pudéramos morar,
Mas é tarde nos tectos e eu começo,
Sem lágrimas, a chorar."
Ao longo dos textos, o visitante pode ver óleos setecentistas de Jan van Goyen e Jan Steen.
E "para mostrar que não há progresso em arte" a exposição termina com quatro poemas de
Pascoaes face a quatro poemas de Pessoa.
Saída
O visitante que entrou com um bilhete da empregada de Pessoa sai com uma entrevista de
Pascoaes, em que ele conta: "Entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira
da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre: 'Já notou uma coisa,
ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem
ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, qual, em seu entender, tem mais
valor?' Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa
rematou: 'é também a minha opinião'."
António Feijó gostava que esta saída fosse "uma reflexão sobre o estado de Pessoa em
Portugal", tão falado e pouco lido.
É também um pretexto para recomeçar, recomeçar a ler, o que pode querer dizer ler afinal
pela primeira vez.
Manuel Aires Mateus encontrou uma forma de dizer isto que se calhar encerra todo o
programa: "Esta exposição dá aquilo que nós dermos. Não é passiva, obriga a esforço e a
envolvimento. O prazer é tanto maior quanto for o envolvimento. Ver é o primeiro
momento de ler e esta é uma exposição para se ler."
Em 2008, não é pouco.
A 22 de Novembro, o Nobel da literatura V.S. Naipaul será um dos 18 conferencistas do
programa paralelo à exposição Weltliteratur. Entre amanhã (sessão com o comissário
António M. Feijó e os arquitectos Aires Mateus) e 17 de Dezembro, a lista inclui nomes tão
variados como Eduardo Lourenço, D. José Policarpo, Filomena Molder, Teresa Beleza, Rui
Vieira Nery, Clara Pinto Correia ou Eduardo Batarda, sempre no auditório 3 da Gulbenkian,
às 18h.
Além de António M. Feijó, o ambicioso catálogo da exposição reúne ensaios de alguns dos
consultores como Abel Barros Baptista, Fernando J. B. Martinho, Fernando Cabral Martins,
Gustavo Rubim e Richard Zenith.
A exposição termina a 4 de Janeiro.

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